bicicleta e tempo de contestação

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 BICICLETA E TEMPO DE CONTESTAÇÃO Leo Vinicius Maia Liberato 1  Resumo O presente artigo procura apontar algumas razões pelas quais a bicicleta surge, potencialmente, como um elemento partícipe na construção de uma sociedade ecológica e na contestação da atual ordem social, na qual o automóvel é hegemônico nas vias e nos deslocamentos ordinários. O entendimento de que as tecnologias não são neutras, e de que os problemas ecológicos possuem fundamentalmente causas sociais, nos leva a analisar o tempo como significação imaginária social e a perceber no automóvel uma tecnologia que encarna e figura a significação social de tempo da sociedade capitalista. Esse mesmo entendimento, mesmo que num nível mais intuitivo, também se faz presente em diversos movimentos sociais, que vinculam a contestação de determinadas tecnologias a uma contestação da própria ordem social em que elas emergem. E é em parte através de alguns desses movimentos que a bicicleta tem surgido como elemento ao mesmo tempo de uma contestação e de uma alternativa a problemas ecológicos, sociais e existenciais, além de potencialmente portadora de uma distinta significação de tempo. Palavras-chave: mobilidade urbana; movimentos sociais; ecologia social; tecnologia Introdução As relações entre ecologia e bicicleta podem ser variadas. A começar pelas distintas noções e definições do que seja ecologia. A bicicleta, de forma geral, é reconhecida como meio de locomoção ecologicame nte correto, frente ao domínio do automóvel. É desnecessário, por exemplo, citar estatísticas 2  sobre a poluição gerada pelo automóvel durante seu uso, basta-nos respirar o ar das grandes cidades – ou simplesmente nos darmos conta de que podemos enxergá- lo – para se ter uma experiência prática quanto a isso. Mas a experiência enquanto morad ores de centros urbanos não é capaz de constatar, por exemplo, o fato do automóvel poluir mais durante o seu processo de fabricação do que durante toda a sua vida útil, e nem que essa poluição irá afetar desigualmente regiões, indivíduos e classes. Às questões propriamente ambientais, da  poluição à asfaltificaç ão do solo, ac rescenta-se ainda os chamados “acidentes de trânsito” envolvendo automóveis, que são a maior causa de morte de jovens no mundo, e as mortes derivadas da poluição atmosférica relacionada ao automóvel, que em alguns países estima-se que seja em número até maior do que as mortes geradas pelos “acidentes de trânsito”.  No momento, o q ue nos interessa aqui é antever a impossibilidade de rela cionarmos a  bicicleta a qualque r noção de eco logia contemporan eamente sem nos referirmos também ao automóvel. Isso porque, como disse Illich (1974) 3 , apesar da bicicleta ser uma invenção da mesma geração que criou o veículo a motor, “as duas invenções são símbolos de avanços feitos em direções opostas pelo homem moderno”. O que ocorre é que as técnicas e tecnologias não são neutras ecologicamente, socialmente, ideologicamente ou politicamente. E quando falamos de  bicicleta estamos fala ndo de uma tec nologia. 1  Mestre em Sociologia Política pela UFSC, doutorando em Sociologia Política na UFSC e participante das  bicicletadas de Florianópolis. 2  Os veículos motorizados são a maior causa isolada da poluição atmosférica, contribuindo estimadamente com 14% das emissões mundiais de dióxido de carbono provenientes da queima de combustível fóssil, uma proporção que aumenta continuamente. Adicionadas as emissões na extração, transporte, refino e distribuição de combustível, esse número aumenta para 15 a 20% das emissões mundiais (Fonte: www.carbusters.org). 3  O texto de Ivan Illich a que se faz referência neste artigo deverá ser lançado finalmente no Brasil, pela Conrad Editora (São Paulo). Fará parte de uma coletânea de textos críticos ao automóvel de título  Apocalipse Motorizado: a tirania do automóvel em um planeta poluído , organizada por Ned Ludd.

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artigo sobre a bicicleta e temas relacionados ao seu uso e cultura

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  • BICICLETA E TEMPO DE CONTESTAO Leo Vinicius Maia Liberato1 Resumo O presente artigo procura apontar algumas razes pelas quais a bicicleta surge, potencialmente, como um elemento partcipe na construo de uma sociedade ecolgica e na contestao da atual ordem social, na qual o automvel hegemnico nas vias e nos deslocamentos ordinrios. O entendimento de que as tecnologias no so neutras, e de que os problemas ecolgicos possuem fundamentalmente causas sociais, nos leva a analisar o tempo como significao imaginria social e a perceber no automvel uma tecnologia que encarna e figura a significao social de tempo da sociedade capitalista. Esse mesmo entendimento, mesmo que num nvel mais intuitivo, tambm se faz presente em diversos movimentos sociais, que vinculam a contestao de determinadas tecnologias a uma contestao da prpria ordem social em que elas emergem. E em parte atravs de alguns desses movimentos que a bicicleta tem surgido como elemento ao mesmo tempo de uma contestao e de uma alternativa a problemas ecolgicos, sociais e existenciais, alm de potencialmente portadora de uma distinta significao de tempo. Palavras-chave: mobilidade urbana; movimentos sociais; ecologia social; tecnologia Introduo

    As relaes entre ecologia e bicicleta podem ser variadas. A comear pelas distintas noes e definies do que seja ecologia. A bicicleta, de forma geral, reconhecida como meio de locomoo ecologicamente correto, frente ao domnio do automvel. desnecessrio, por exemplo, citar estatsticas2 sobre a poluio gerada pelo automvel durante seu uso, basta-nos respirar o ar das grandes cidades ou simplesmente nos darmos conta de que podemos enxerg-lo para se ter uma experincia prtica quanto a isso. Mas a experincia enquanto moradores de centros urbanos no capaz de constatar, por exemplo, o fato do automvel poluir mais durante o seu processo de fabricao do que durante toda a sua vida til, e nem que essa poluio ir afetar desigualmente regies, indivduos e classes. s questes propriamente ambientais, da poluio asfaltificao do solo, acrescenta-se ainda os chamados acidentes de trnsito envolvendo automveis, que so a maior causa de morte de jovens no mundo, e as mortes derivadas da poluio atmosfrica relacionada ao automvel, que em alguns pases estima-se que seja em nmero at maior do que as mortes geradas pelos acidentes de trnsito.

    No momento, o que nos interessa aqui antever a impossibilidade de relacionarmos a bicicleta a qualquer noo de ecologia contemporaneamente sem nos referirmos tambm ao automvel. Isso porque, como disse Illich (1974)3, apesar da bicicleta ser uma inveno da mesma gerao que criou o veculo a motor, as duas invenes so smbolos de avanos feitos em direes opostas pelo homem moderno. O que ocorre que as tcnicas e tecnologias no so neutras ecologicamente, socialmente, ideologicamente ou politicamente. E quando falamos de bicicleta estamos falando de uma tecnologia. 1 Mestre em Sociologia Poltica pela UFSC, doutorando em Sociologia Poltica na UFSC e participante das bicicletadas de Florianpolis. 2 Os veculos motorizados so a maior causa isolada da poluio atmosfrica, contribuindo estimadamente com 14% das emisses mundiais de dixido de carbono provenientes da queima de combustvel fssil, uma proporo que aumenta continuamente. Adicionadas as emisses na extrao, transporte, refino e distribuio de combustvel, esse nmero aumenta para 15 a 20% das emisses mundiais (Fonte: www.carbusters.org). 3 O texto de Ivan Illich a que se faz referncia neste artigo dever ser lanado finalmente no Brasil, pela Conrad Editora (So Paulo). Far parte de uma coletnea de textos crticos ao automvel de ttulo Apocalipse Motorizado: a tirania do automvel em um planeta poludo, organizada por Ned Ludd.

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    Em torno da bicicleta e do automvel se desenvolveram conflitos que vo muito alm de questes meramente ambientais. Como em inmeros outros conflitos sociais, em ltima anlise eles podem representar uma fissura no imaginrio instituinte da sociedade em que vivemos. Ecologia e tecnologia pedem que examinemos, na expresso de Castoriadis (1982), as significaes imaginrias sociais. Tecnologia e Sociedade

    Lewis Mumford, em seu Technics and Civilization, aponta que as inovaes mecnicas e tecnolgicas sempre tiveram de enfrentar alguma forma de resistncia social na histria ocidental, indo de uma espcie de nostalgia romntica por parte de intelectuais at a forma mais simples e direta de resistncia: a destruio das mquinas que eram consideradas nocivas ou o assassinato de seu inventor. Aqui no nos interessa buscar um histrico dessas resistncias, mas sim demarcar um ponto de partida resgatando aquele que foi o movimento social moderno mais paradigmtico associado a um antagonismo em relao a determinadas tcnicas e tecnologias.

    Cento e noventa anos atrs, na Inglaterra, um movimento de massa de trabalhadores que quebravam mquinas e incendiavam fbricas que as hospedavam s foi contido com o efetivo de milhares de soldados do exrcito ingls. Ficaram conhecidos como ludditas, derivado de Ludd, sobrenome do seu suposto e mtico lder. Os inimigos da Revoluo Industrial, como no poderia deixar de ser diferente, entraram para a Histria como inimigos da tecnologia, e luddita virou verbete sinnimo de antiprogresso, antitecnologia, anti-caminhos inevitveis das coisas.

    Vale ressaltar aqui o fato do pensamento socialista do sculo XIX (e por que no tambm do sculo XX?) ter contribudo, da sua forma, para a configurao desse verbete.

    Se o materialismo dialtico teleolgico de Marx e Engels o qual reificava os meios de produo, isto , a tcnica, como determinante do progresso da humanidade no era compartilhado por Proudhon, Bakunin e Blanc, por exemplo, no menos verdade que os pensadores socialistas do sculo XIX, a exceo de Charles Fourier, no viam nos meios de produo, na tcnica, ou nas coisas, um mal a ser combatido. A preocupao em relao s tcnicas e tecnologias era acima de tudo a de socializ-las, fosse atravs do Estado (Marx, Engels, Blanc), ou da gesto operria, da autogesto (Proudhon, Bakunin). A fbrica, em si, era tida como local de produo, e no necessariamente de alienao e escravido.

    Eis a descoberta dos socialismos cientficos, seja o de Proudhon ou o de Marx: so as relaes sociais que alienam, desumanizam e escravizam!

    Desvelada enfim, pelo raciocnio minucioso desses socialistas, a fonte da alienao e da desumanizao, a fonte do mal humano e social: para um (Proudhon) a Autoridade, seja a Autoridade da propriedade ou a do Estado; para o outro (Marx) o Capital. Em resumo, o problema estava nas relaes sociais capitalistas, e no nas mquinas ou nas fbricas.

    Portanto, no de admirar que os ludditas passariam a ser lembrados na melhor das vezes como a fase infantil do movimento operrio, uma fase de ignorncia. E talvez tambm no seja coincidncia que Fourier tenha sido aquele que, dentre os que podemos chamar de socialistas clssicos, apresentava uma crtica ao sistema industrial estabelecido e ao mesmo tempo carregava a viso de uma sociedade organizada em torno do ldico e do prazer.

    Evidentemente, passando longe do mito criado pela direita (com a ajuda do pensamento de esquerda), de que os ludditas quebravam mquinas e incendiavam fbricas simplesmente para manterem seus empregos ou por serem irracionalmente contra o progresso e contra qualquer tecnologia, o fato que o movimento luddita, enquanto movimento de massa, certamente no teria ganho a amplitude que teve se se sustentasse meramente no desejo de se manter o ganha-po, mas, indo muito mais alm, era um movimento contra um processo que destitua os trabalhadores de uma autonomia, de uma liberdade e, para usar uma expresso moderna, de um

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    estilo de vida4. Dessa forma, no se pode cham-los de infantis ou ingnuos. Analogamente, os zapatistas lutam hoje em Chiapas contra um processo que leva destituio de sua cultura, das suas comunidades, de seu modo de vida e de sua autonomia.

    Quebrando as mquinas e fbricas, os ludditas quebravam as tcnicas e tecnologias que eles sentiam ser em alto grau alienantes. Afirmavam assim, mais do que um desejo de socializar ou de sobreviver, um desejo de liberdade e autonomia. Acima de tudo, a batalha luddita era uma batalha por uma afirmao cultural, isto , de um modo de vida, de um conjunto de relaes e tcnicas que eram ameaadas e eliminadas por processos e foras, nos quais as mquinas e tecnologias que eles destruam no eram certamente entes exgenos, neutros e separveis.

    Pode-se dizer que somente na segunda metade do sculo XX o pensamento socialista, em figuras como Cornelius Castoriadis e Murray Bookchin, conseguiu finalmente perceber a necessidade e atar de maneira coerente e consistente a crtica s tcnicas implcita nas aes dos ludditas crtica s relaes sociais (de explorao e dominao) que j eram prprias do pensamento e prtica socialistas. Por tempo demais as tcnicas foram tidas como neutras mesmo pelos socialistas; fbrica e autogesto, por exemplo, no eram vistas como concepes antitticas5. No entanto, desde meados dos anos 1960 aparece claramente no horizonte revolucionrio um mundo a destruir, no s composto por relaes sociais, mas tambm por mquinas, tecnologias, que so encarnaes de significaes, de valores.

    Fazendo a crtica a Marx, Castoriadis (1982) afirma e procura demonstrar que: No se pode pensar a mquina, ainda que reduzida a seu ser-tcnico, como neutra, a no ser acidentalmente. As mquinas em questo durante o perodo capitalista so mquinas intrinsecamente capitalistas (p. 402). Desta forma, s relaes entre pessoas mediadas por coisas de Marx, ao se referir este s relaes de produo capitalistas, seria preciso corrigir e acrescentar, segundo Castoriadis (1982), que s podem se tratar de relaes capitalistas se so mediadas por coisas especficas, isto , por coisas capitalistas. As tcnicas e tecnologias expressam significaes imaginrias sociais, figuram valores. Elas no entanto no determinam o social: relaes, pessoas e coisas so indissociveis uns dos outros, sem que haja relao causal de um sobre o outro. Assim como ningum pode tornar-se um pianista sem que exista piano, um piano no serve para nada seno se pianista. Sujeito e objeto, pessoa e tcnica, so estabelecidos simultaneamente. Portanto, a criao de outra sociedade implicaria a criao de um outro homem, outras relaes sociais e outras tcnicas, simultaneamente (Castoriadis, 1982). Os ludditas demonstravam possuir esse conhecimento de forma intuitiva.

    Nos anos 1960 e 1970, principalmente com o movimento antinuclear, as tecnologias saram novamente de dentro do armrio na Europa e na Amrica do Norte para serem alvos de questionamento pblico. Pensadores como Castoriadis e Bookchin tiveram, assim, muito a dizer e compartilhar com parte do movimento verde que emergia. Bookchin, que, provavelmente no por coincidncia, chegou a usar o pseudnimo Harry Ludd nos anos 50, se envolveria mais diretamente com questes propriamente ecolgicas, criando nos anos 60, inclusive, o conceito de ecologia social. Murray Bookchin e a Ecologia Social

    Mumford (1963) chama ateno para um tipo de conseqncia indireta de um mundo cada

    vez mais mecanizado e tecnolgico, muitas vezes ignorada por no coincidir com a lgica

    4 Como salienta Sale (1999), na melhor e mais atual obra sobre os ludditas traduzida para o portugus, a questo nunca se resumiu s mquinas. Os ludditas se opunham evidncia palpvel e cotidiana das foras alm de seu controle e poder, s quais no queriam continuar to submissos, posto que elas lhes retiravam os meios de sustento, transformando suas vidas (p. 71). E o que estava em jogo no era apenas os empregos de alguns, mas toda a organizao social existente (ibidem, p. 100). 5 Cf. BOOKCHIN, Murray. Autogesto e Tecnologias Alternativas. In: BOOKCHIN, Murray. Textos Dispersos. Lisboa: SOCIUS, 1998.

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    racionalista das mquinas. Trata-se do florescer de um irracionalismo que com freqncia emergiria em meio s pessoas. Uma espcie de reao mquina.

    A obra de Murray Bookchin melhor compreendida se levarmos em conta que ela se insere num debate bastante vivo na Amrica do Norte, onde a ecologia social se contrape diretamente a certas correntes verdes, como a ecologia profunda, as quais, segundo o pensamento de Bookchin, podemos considerar como parte desse florescer anti-razo e mstico que tem acompanhado e feito parte de uma hipermecanizao da sociedade. Bookchin faz questo de se vincular explicitamente a uma tradio iluminista, indo talvez na contramo de uma tendncia tanto acadmica quanto em movimentos ecologistas de imputar razo e aos ideais iluministas os males ecolgicos e sociais contemporneos. Para Bookchin (s/d), testemunhamos o alastrar do assalto contra as capacidades da razo, da cincia e da tecnologia em contriburem para a melhoria do mundo, para ns prprios e para a vida em geral. Expresses genricas e vagas como civilizao, sociedade e humanidade esconderiam vastas diferenas e mesmo antagonismos de classes, entre opressores e oprimidos, assim como diferenas entre sociedades livres, no hierrquicas, sem Estado e sem classes, por um lado, e sociedades que so hierrquicas, estatistas e dirigidas por interesses de classe, por outro. Falar abstratamente de sociedade, engolindo com essa expresso a enorme variedade de formas sociais, levaria assim a concluir que a sociedade, em si, anti-natural. Deste modo, a razo, a cincia, a tecnologia tornam-se [para essa forma de pensar] coisas destrutivas, sem qualquer relao com os fatores sociais que condicionam seu uso (Bookchin, s/d).

    A ecologia social se funda, portanto, na convico de que todos os problemas ecolgicos so problemas sociais. Da mesma forma que para compreender os problemas econmicos e polticos atuais, para compreender os problemas ecolgicos deve-se examinar as causas sociais, e procurar as suas solues atravs de processos tambm sociais (Bookchin, s/d). Ela parte tambm de uma concepo que nega a separao entre sociedade e natureza:

    A ecologia social tenta mostrar de que modo a natureza se introduz lentamente na sociedade, sem ignorar as diferenas entre uma e outra, por um lado, nem a extenso pela qual se fundem, por outro. (...) as divises entre sociedade e natureza tm as suas razes profundas nas divises internas do domnio social, nomeadamente nos conflitos humanos, que tantas vezes ignoramos pelo uso generalizado da palavra humanidade. (...) A questo, portanto, no a de que de qualquer modo a evoluo social se firma por oposio evoluo natural. como que a evoluo social pode situar-se na evoluo natural e porque que tem sido arremessada escusadamente, como argumentei contra a evoluo natural, em detrimento da vida como um todo. A capacidade de ser racional e livre no basta para assegurar que essa capacidade se concretize. Se a evoluo social vista como a potencialidade para a expanso dos horizontes da evoluo natural at linhas criativas sem precedentes, e os seres humanos como a potencialidade de a natureza se tornar autoconsciente e livre, ento a questo porque que estas potencialidades tm sido desviadas e como que podem vir a concretizar-se (Bookchin, s/d).

    Para Bookchin (1998b), embora as tecnologias no sejam neutras, mesmo as ms, como os reatores nucleares, apenas amplificam problemas existentes, e no os criam. O mercado, a ilimitada acumulao de capital, em suma, o sistema de crescimento conseqente do sistema capitalista o que, em ltima anlise, estaria destruindo a biosfera a ponto da vida no planeta se ver ameaada em mdio prazo. A questo das tcnicas e das tecnologias no deve, portanto, ser abordada isoladamente, separada das formas sociais em que emergem e se inserem. Bookchin (1998b) assim vaticina que: Nenhuma libertao ser completa, nenhuma tentativa de criar harmonia entre os seres humanos e entre a humanidade e a natureza poder ter xito se no forem erradicadas todas as hierarquias e no apenas a de classe, todas as formas de domnio e

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    no apenas a explorao econmica (p. 104). Em suma, os problemas ecolgicos, do ponto de vista da ecologia social, remetem ao domnio do homem sobre o homem; longe de serem problemas criados pela razo humana, pela cincia e pela tecnologia em si.

    Mas, como j antecipamos, para Bookchin (1998a) a neutralidade da tcnica sobre as relaes sociais apenas mais um mito. Ela, a tcnica, mergulha num universo social de intenes, de necessidades, de desejos e de interaes. (p. 94). A transformao no sentido de uma sociedade ecolgica passa, portanto, tambm pela transformao das tcnicas6.

    Como Castoriadis (1982) tambm aponta, as tcnicas, de todo modo, permanecem ligadas a fins que no resultam de suas prprias determinaes intrnsecas. Elas determinam e so determinadas (circularmente) por necessidades sociais. Sendo assim, uma tcnica ou uma instituio seja a energia nuclear, o dinheiro, caas supersnicos, o automvel etc. s uma necessidade na medida que alguma coisa alimenta essa necessidade (Bookchin, 1998a, p. 95). Ou seja, as tcnicas se ligam a necessidades, que por sua vez so socialmente determinadas. E uma vez que esses fins e funes desempenhadas por uma tecnologia ou por uma instituio so postos em causa, abre-se o caminho para se questionar a necessidade de tal tecnologia ou instituio.

    O que vimos at aqui nos faz levantar uma primeira questo e procurar algumas respostas: para entendermos os problemas ecolgicos, urbansticos e humanitrios ligados ao sistema de transporte estabelecido, e em especfico ao automvel, devemos buscar as causas sociais desses problemas, isto , entender a sociedade do automvel e a que fins e funes o automvel est ligado. Outras questes aparecem. Primeiro: pode a bicicleta substituir o automvel no cumprimento desses fins e funes que se erigem como necessidade social? Segundo: desejvel que a bicicleta se ligue a esses fins e funes de modo a substituir o automvel? Terceiro: so desejveis esses fins e funes? Quarto: a bicicleta, como ser-tcnico que conhecemos, pode substituir o automvel e potencialmente determinar e possibilitar uma transformao social e uma transformao da vida cotidiana mais profundas, isto , para alm de uma atmosfera bem mais limpa e da sensvel diminuio de mortes no trnsito? Se sim, sob quais circunstncias e condies e at que ponto? O Tempo na Sociedade do Automvel

    Entender a sociedade do automvel na complexidade e nas interligaes de seus vrios aspectos tarefa no apenas para um volume, quanto mais para apenas um artigo. Similarmente, discorrer sobre fins e funes do automvel poderia encher pelo menos um livro7. No mistrio que os fins e funes do automvel o automvel na forma como ganha existncia na sociedade e como conhecemos ultrapassam muito o que poderamos chamar de seu uso prtico, ou seja, como veculo, como meio de deslocamento. A esse uso prtico, que poderamos relacionar a um valor de uso, se acrescenta uma mirade de fins e funes, muitos, em parte, revelados pela publicidade.

    Focaremos apenas alguns aspectos da sociedade do automvel, e que se relacionam a determinados fins e funes do automvel. Uma vez que tanto o automvel quanto a bicicleta

    6 bom frisar, seguindo o pensamento de Castoriadis (1981), que se por um lado as tcnicas no so neutras, por outro seria falso tambm acreditar que ela capaz, por is s, de determinar uma sociedade, bastando modific-la para fazer surgir uma nova sociedade. Alm disso, tambm bom deixar claro que a transformao da tecnologia existente no poder ser feita a partir de um vazio, e ter que contar necessariamente com o que existe: Isto , ser preciso ainda apoderar-nos de partes do que existe agora como tecnologia (...). O que essencial chegar a uma viso suficientemente clara daquilo que queremos fazer e do que queremos evitar, para que as partes que utilizamos no ameacem reengendrar o sistema que tentamos destruir (Castoriadis, 1981, p. 57). 7 Duas obras bastante recomendveis que tratam da sociedade em questo e reservam algumas pginas relacionando alguns de seus aspectos ao automvel: LEFEBVRE, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. So Paulo: tica, 1991 (pp. 110-113); e BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995 (pp. 42-3 e p. 84).

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    so tecnologias de locomoo (ponto em comum entre as duas), parece lgico que esse foco recaia sobre as significaes sociais de tempo, espao, velocidade e/ou movimento. Nos deteremos no tempo; significao social de tempo na sociedade do automvel. Sociedade do automvel que, j hora de apontarmos, pode ser nomeada como sociedade de consumo. Mas para chegarmos at o tempo na sociedade de consumo, bom antes percorrermos um caminho histrico, tendo um ponto de partida dado por Mumford (1963).

    Mumford (1963) lembra que a aplicao de mtodos quantitativos de pensamento para o estudo da natureza teve sua primeira manifestao na mensurao regular do tempo. A concepo mecnica de tempo, por sua vez, teria em parte emergido a partir da rotina dos monastrios. Inclusive por isto, os beneditinos so por vezes creditados como os fundadores do capitalismo. A vida monstica contribuiu para dar s atividades humanas a batida e o ritmo coletivo regulares da mquina8. Como salienta Mumford (1963), o relgio no simplesmente um meio de saber as horas, mas um meio de sincronizar as aes dos homens. Dessa forma, o relgio, e no a mquina a vapor, seria a mquina fundamental da era industrial moderna.

    O produto da mquina-relgio so segundos e minutos, produto por sua essncia e por sua natureza dissociado do tempo dos acontecimentos humanos.

    A burguesia, classe em emergncia, foi a primeira a descobrir que tempo dinheiro no domnio do quantitativo tudo se torna equivalente. A regularidade do funcionamento do relgio era inclusive um ideal burgus, e possuir um relgio de bolso (de uso pessoal) foi por muito tempo um smbolo de sucesso, como lembra Mumford (1963). A cadncia cada vez maior da civilizao levou ento necessidade de um poder maior, e por sua vez o poder acelerava a cadncia.

    Enfim, o tempo deixou de se relacionar a uma seqncia de experincias, passando a ser relacionado a uma coleo de horas, minutos e segundos. Dessa forma, pde surgir a prtica de poupar tempo e acrescentar tempo. O tempo se tornou uma grandeza, entrando no domnio do quantitativo, podendo ser dividido e preenchido. O tempo abstrato se tornou o novo mediador da existncia, regulando inclusive as funes orgnicas (comer, dormir etc.), como aponta Mumford (1963).

    Mudanas histricas na significao social de espao contriburam tambm para a conquista do espao e do tempo, coordenados pelo movimento. Vale lembrar, por exemplo, que o conceito de acelerao surge to somente no sculo XVII.

    Com o desenvolvimento do capitalismo, novos hbitos de abstrao e clculo adentraram principalmente vida urbana. A economia capitalista adquire uma forma cada vez mais abstrata, at os nossos dias. Ela se volta a futuros imaginrios, ganhos hipotticos e prospeces. Como aponta Mumford (1963), numa economia baseada no dinheiro, acelerar o processo de produo significa acelerar o retorno; isto , multiplicar o dinheiro.

    Chegamos ento sociedade de consumo, que toma forma em meados do sculo XX principalmente nos centros urbanos dos chamados pases desenvolvidos, mas que em maior ou menor medida se faz presente e cada vez mais em outros lugares, isto , em zonas rurais e pases subdesenvolvidos. Baudrillard (1995a; 1995b) nos oferece uma anlise extremamente perspicaz e profunda da sociedade de consumo, que tende a generalizar-se, no sem resistncias, a todo o globo, fruto da prpria expanso e mundializao do capitalismo contemporneo.

    Baudrillard (1995a; 1995b) v o consumo, e o define, como um sistema de valor de troca-signo como converso do valor de troca econmico em valor de troca-signo. A lgica do consumo, tendo como lcus privilegiado os centros urbanos, uma lgica de diferenciao-personalizao a partir do valor de troca-signo, e na qual o valor de uso desempenharia um papel de libi. O objeto de consumo seria, antes de tudo, um objeto-signo, e no um objeto-utenslio.

    Sem nos aprofundarmos mais na explicao da sociedade de consumo, e do consumo, segundo Baudrillard (1995a; 1995b), passemos mais especificamente ao tempo no contexto dela.

    8 Mumford (1963) lembra que inclusive vigorou durante bastante tempo a lenda de que o primeiro relgio mecnico moderno teria sido inventado pelo monge Gerberto d'Aurillac, que depois se tornaria o Papa Silvestre II.

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    Para Baudrillard (1995a), a analogia do tempo com o dinheiro (...) fundamental para analisar o nosso tempo e o que pode implicar o grande corte significativo entre tempo de trabalho e tempo livre (...). Time is money: esta divisa (...) rege inclusive () o lazer e o tempo livre (p. 162).

    Tambm para Baudrillard (1995a), da mesma forma que vimos em Mumford (1963), o tempo seccionvel, abstrato e cronometrado torna-se, assim, homogneo do sistema de valor de troca, no qual se integra como qualquer outro objeto. Transformado em objeto de clculo temporal, pode e deve cambiar-se por qualquer outra mercadoria (sobretudo o dinheiro) (p. 162).

    Portanto, o tempo na sociedade capitalista contempornea uma mercadoria submetida s leis do valor de troca, como se constata pelo tempo de trabalho, que comprado e vendido (Baudrillard, 1995a). E o que se pode constatar cada vez mais atravs do tempo livre, que para ser consumido tende a ser direta ou indiretamente comprado (ibidem).

    Normam Mailer analisa o clculo da produo aplicado ao suco de laranja, que se entrega congelado ou lquido. Este mais caro porque no preo se incluem os dois minutos ganhos relativamente preparao do produto congelado: o prprio tempo livre vende-se desta maneira ao consumidor. Nada mais lgico; o tempo livre tempo ganho, capital que pode render, fora produtiva virtual, que importa resgatar a fim de ser possvel dispor dele (Baudrillard, 1995a, p. 162).

    Por fim, Baudrillard (1995a) conclui que:

    As leis do sistema (de produo) nunca entram em frias. Reproduzem incessantemente e por toda a parte nas estradas, nas praias, nos clubes, o tempo como fora produtiva. O aparente desdobramento em tempo de trabalho e tempo de lazer inaugurando este a esfera transcendente de liberdade constitui um mito (p. 163).

    O tempo livre na sociedade capitalista , na verdade, como os outros tempos nessa

    sociedade, um tempo constrangido, sendo este tempo do consumo (o do lazer, o tempo livre) o mesmo da produo. O tempo livre, por mais que se queira relaciona-lo a um perder tempo, a uma restituio do valor de uso do tempo, continua sendo propriedade privada e objeto ganho pelo indivduo; objeto possudo e diante do qual o indivduo se v impossibilitado de se desapossar, para, por exemplo, o destinar disponibilidade total, ausncia de tempo que consistiria a verdadeira liberdade (Baudrillard, 1995a, p. 168).

    Resta notar, como salienta Baudrillard (1995a), que nas sociedades ditas primitivas no h tempo. E toda a questo de ter ou no ter tempo perde sentido.

    O tempo reduz-se nelas ao ritmo das atividades coletivas repetidas (ritual de trabalho, das festas). No se dissocia de semelhantes atividades para se projetar no futuro, previsto e manipulado. No individual, mas constitui o prprio ritmo de permuta, que culmina no ato da festa. No existe nome para o nomear, confunde-se com os verbos da permuta, com o ciclo dos homens e da natureza (p. 162).

    De forma semelhante, Morin (1975) salienta que o tempo livre na cultura de massa um

    tempo ganho sobre o trabalho, mas que diferente do tempo das festas, caracterstico do antigo modo de vida (p. 56).

    As festas, distribudas ao longo do ano, eram simultaneamente o tempo das comunhes coletivas, dos ritos sagrados, das cerimnias, da retirada dos tabus, das pndegas e dos festins. O tempo das festas foi corrodo pela organizao moderna e a nova repartio das zonas de tempo livre: fim-de-semana, frias. Ao mesmo tempo, o

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    folclore das festas se enfraqueceu em benefcio do novo emprego do tempo livre. A ampliao, a estabilizao, a quotidianizao do novo tempo livre se efetuam simultaneamente em detrimento do trabalho e da festa (Morin, 1975, p. 56).

    Assim, o tempo livre no seria mais, na sociedade da cultura de massa, apenas o tempo de

    repouso, nem seria mais a participao coletiva na festa nem em atividades familiares produtivas, mas sim cada vez mais a possibilidade de ser enquanto consumidor (Morin, 1975).

    Como Gorz (1973)9 bem apontou, o automvel surgiu como um privilgio de burgueses,

    ou seja, um luxo. Ele surge j como signo estatutrio. Com o automvel, pela primeira vez, as classes comeam a se mover em velocidades diferentes. Diga-me a que velocidade te moves e te direi que s, dizia Illich (1974) diante desta sociedade motorizada. O automvel responde, simultaneamente, significao de tempo dinheiro da sociedade capitalista e ao individualismo de uma sociedade burguesa. Prometendo poupar tempo, ou seja, dinheiro, o automvel o prottipo onipresente na vida cotidiana da concorrncia prpria da economia capitalista. Acelerar significa multiplicar o dinheiro, multiplicar o tempo. O carro veloz, mesmo que jamais possa ultrapassar os 60 km/h nos centros urbanos, smbolo de poder, entre outras coisas por ser uma mquina de ganhar tempo, uma mquina para se chegar frente da concorrncia, fazer dinheiro, mesmo que esse potencial em geral no possa se realizar.

    H trinta anos Illich (1974) mostrou os efeitos da velocidade alcanada pelos veculos motorizados em termos de desigualdade social, consumo de espao, perda de autonomia para deslocamentos ordinrios e aumento do tempo social gasto com a circulao. Illich (1974) lembra que o norte-americano gasta 25% do tempo social disponvel com a circulao, enquanto que nas sociedades no motorizadas destinado de 3 a 8% do tempo social com a circulao. Ele lembra ainda que ao ultrapassar certo limite de velocidade (em torno dos 20 km/h), os veculos motorizados produzem distncias que s eles podem cobrir, e que o tempo total devotado pela sociedade circulao comea a aumentar. A velocidade cria a dependncia por ela, e aqueles que no tm acesso aos veculos motorizados se encontram muitas vezes na condio de excludos da vida social.

    Concluso: a busca concorrencial por velocidade, na nsia de fazer-valer seu tempo, acaba custando o tempo de todos. Um aparente paradoxo s explicvel nos reportando separao e oposio entre indivduo e sociedade, prpria de certas formaes sociais. Fica claro, deste modo, que o automvel figura e encarna um certo individualismo, propriamente burgus.

    A bicicleta, como Illich (1974) mostra, ao contrrio do automvel, no retira a autonomia individual, relativamente no consome espao, no gera estratificao e permite a cada um controlar o gasto da sua prpria energia: o ser humano com bicicleta se converte em dono dos seus prprios movimentos, sem estorvar o vizinho (Illich, 1974). De forma oposta, O veculo a motor inevitavelmente torna os usurios rivais entre si pela energia, pelo espao e pelo tempo (ibidem). A bicicleta, no seu uso prtico, implica uma racionalidade social, ou socialista; o automvel carrega uma racionalidade individualista. Em termos de tempo social, eqidade e autonomia, a bicicleta incomparavelmente mais eficiente que os automveis. Na verdade, pouco sentido tem uma comparao em termos de eficincia, pois a bicicleta e o automvel seguem em direes opostas a respeito desses temas.

    A urgncia do automvel a urgncia da produo, a urgncia do retorno. A velocidade do automvel no mais do que a cronometria (a quantificao do tempo abstrato) e a concorrncia dos capitais individuais aplicados aos deslocamentos humanos ordinrios. Como frisou Baudrillard (1996), a era da sociedade de consumo tambm a era do desaparecimento da fbrica por sua difuso a toda a sociedade. O tempo dos lazeres e o tempo do deslocamento so o mesmo tempo da produo e seguem os mesmos imperativos desta.

    9 O referido artigo de Andr Gorz tambm dever ser publicado no Brasil pela Conrad Editora no livro Apocalipse Motorizado: a tirania do automvel em um planeta poludo, organizado por Ned Ludd.

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    A bicicleta, assim como nunca foi investida e revestida simbolicamente como o automvel (signo de poder, status, virilidade etc.), tambm mantm relativa distncia da racionalidade da produo capitalista, que perpassa hoje em dia todas as esferas da vida e, como vimos, as prprias tcnicas. E no por outro motivo que a bicicleta aparece como uma tecnologia alternativa mas tambm como uma potencial tecnologia de uma sociedade alternativa.

    eficincia social da bicicleta, cronometricamente falando, apontada por Illich (1974), soma-se uma possibilidade ou aposta mais radical: a possibilidade ou aposta de uma outra significao de tempo, e de trnsito (ou a supresso de ambos).

    Ferrovias podem ser mais rpidas do que canais para gndolas, e um lampio a gs pode iluminar mais do que uma vela: mas somente em termos de objetivo humano e em relao a um conjunto de valores humanos e sociais que a velocidade ou a iluminao tm algum significado. Se se deseja absorver o cenrio, o movimento lento de um canal pode ser prefervel ao movimento rpido de um carro (Mumford, 1963, p. 282).

    A Contestao

    At mesmo essa proposta realista ir parecer extremamente utpica para muitos, mas h um limite para quanto do mundo real um homem pode aceitar e ainda manter o seu auto-respeito. Robert Paul Wolff

    No seio mesmo da sociedade de consumo surgiram movimentos expressivos de

    questionamento da cultura do automvel. Coincidentemente ou no, os movimentos mais significativos que questionaram o automvel, contestaram tambm a ordem social em que ele aparece.

    Nos anos 60, quando a luta contra o automvel era algo realmente novo e um atentado contra as maravilhas do progresso, em plena ascenso automobilstica, um movimento em Amsterd chamado Provos (uma abreviatura para provocao) contraps a emergente cultura automobilstica com a bicicleta. Entre os vrios e inusitados planos que o Provos delineou estava o Plano das Bicicletas Brancas. A idia era espalhar bicicletas pintadas de branco pela cidade para que qualquer um pudesse utiliza-las, deixando-as no ponto de destino para que outra pessoa qualquer pudesse fazer uso dela.

    A contestao do Provos em relao ao automvel ia desde os problemas ambientais causados por ele, passando pelos problemas urbanos (o roubo do espao pblico), at a agressividade e o risco vida conseqente dele. Apesar da contestao do Provos no se restringir ao automvel, o primeiro choque verdadeiro entre eles e a polcia se deu por causa da bicicleta.

    Plano das Bicicletas Brancas (Provokatie n 5) Cidado de Amsterdam! Basta com o asfltico terror da classe mdia motorizada! Todo dia, as massas oferecem novas vtimas em sacrifcio ao ltimo patro a quem se dobraram: a auto-ridade. O sufocante monxido de carbono seu incenso. A viso de milhares de automveis infecta ruas e canais. O plano Provo das bicicletas nos libertar desse monstro. Provo lana a bicicleta branca de propriedade comum. A primeira bicicleta branca ser apresentada ao pblico quarta-feira, 28 de julho, s trs da tarde no Lieverdje, o monumento ao consumismo que nos torna escravos.

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    A bicicleta branca estar sempre aberta. A bicicleta branca o primeiro meio de transporte coletivo gratuito. A bicicleta branca uma provocao contra a propriedade privada capitalista, porque a bicicleta branca anarquista! A bicicleta branca est disposio de quem quer que dela necessite. Uma vez utilizada, ns a deixamos para o usurio seguinte. As bicicletas brancas aumentaro em nmero at que haja bicicletas suficientes para todos, e o transporte branco far desaparecer a ameaa automobilstica. A bicicleta branca simboliza simplicidade e higiene diante da cafonice e da sujeira do automvel. Uma bicicleta no nada, mas j alguma coisa10.

    A polcia recolheria as bicicletas brancas das ruas, porm no sem ter algumas de suas

    bicicletas pintadas de branco pelo Provos. As bicicletas brancas acabariam se tornando uma espcie de smbolo do movimento.

    Unindo um senso de humor e um deboche sua contestao anticapitalista e das autoridades e instituies constitudas, o Provos foi precursor de muitos movimentos. Talvez precursores do que se costuma chamar contracultura; e tambm precursores de uma crtica ecolgica e social ao automvel. O ento bizarro plano das bicicletas brancas, dcadas depois, viraria poltica municipal na cidade francesa de Rochelle (bicicletas azuis) e mais recentemente na cidade portuguesa de Aveiro11.

    O Provos era um movimento constitudo basicamente por jovens, de ntida influncia anarquista, e tambm artstica. Foi em meio a happenings e cerimnias que se encontravam em algum ponto entre o mstico, o artstico, o poltico e o no sense que o Provos ganhou vida. Esses happenings e cerimnias, em determinada altura, passaram a acontecer sempre numa mesma praa, meia-noite de sbado, juntando por vezes milhares de pessoas. Sem dvida elas carregavam um teor ntido de festa e de rito.

    Muito do esprito do Provos se faz presente hoje em dia no Reclaim The Streets: um movimento surgido nos anos 90 na Inglaterra a partir das lutas anti-estradas e das raves ilegalizadas. Como pode-se avaliar pelo seu prprio nome, o RTS , a princpio, um movimento (e uma forma de ao) pelo resgate do espao pblico, privatizado, entre outras cosias, pelo automvel. Por ter tido sua origem ligada ao forte movimento anti-estradas britnico surgido no incio dos anos 90, e por consistir em festas de rua que interrompem o trnsito abrindo as ruas para as pessoas, o RTS por vezes reduzido a um movimento anticarro. Se certo que a crtica ao automvel ntida no RTS, no entanto, assim como o Provos sua contestao abrange processos sociais mais amplos. Trata-se de um movimento libertrio, isto , de influncia anarquista, e ecologicamente direcionado. Inclusive, o RTS teve um destacado papel na formao das redes e manifestaes anticapitalistas que ficariam midiaticamente caracterizadas como antiglobalizao. Tambm importante destacar o carter ldico do RTS, e a imploso da separao entre festa e poltica, entre o ldico e o srio nas suas prticas. Assim como o Provos, o RTS carrega uma influncia situacionista, que passa pela preocupao com questes urbansticas e pela idia da revoluo como festa e como revoluo da vida cotidiana.

    A Massa Crtica12 outro movimento contemporneo (que assim como o RTS pode ser entendido como uma forma de ao) que contesta a cultura do automvel ao mesmo tempo que reivindica as ruas para os no motorizados. Ela surgiu na cidade de San Francisco, EUA, em 1992, e a idia consistia em reunir os ciclistas da cidade uma vez por ms para voltarem juntos para suas casas, numa espcie de coincidncia organizada, de modo que essa presena em massa fosse sentida pelos prprios ciclistas e pela cidade como um todo.

    10 Trecho do Plano das Bicicletas Brancas, aqui reproduzido de Guarnaccia (2001, p. 76). 11 Cf. http://www.bikemagazine.com.br/especial/buga/buga.htm 12 O nome Massa Crtica foi retirado do documentrio sobre bicicletas Return of the Scorcher, de Ted White, no qual a travessia de cruzamentos nas grandes cidades chinesas discutida em termos de massa crtica: as bicicletas se acumulam at atingirem um ponto de massa crtica, no qual conseguem parar o trfego e atravessar o cruzamento.

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    Em pouco tempo a idia se espalhou pelo mundo, a ponto de hoje em dia ser quase impossvel precisar todas as cidades em que elas ocorrem mensalmente.

    A Massa Crtica se tornou tambm uma forma comum de manifestao na Europa e na Amrica do Norte como parte de protestos contra guerras, contra organismos gestores da globalizao capitalista etc...

    Em 2002 algumas cidades brasileiras ganharam sua verso da Massa Crtica. Com o nome de Bicicletada13 ela tem ocorrido no ltimo sbado de cada ms em So Paulo, Florianpolis, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Petrpolis. Ainda cedo para saber o futuro e as implicaes das Bicicletadas no Brasil, j que o contexto e o histrico latino-americanos so distintos do europeu e norte-americano.

    No Brasil, embora o Cdigo de Trnsito Brasileiro determine que a bicicleta tem preferncia em relao aos automveis, o que se constata no dia-a-dia a bicicleta sendo vista como um corpo estranho na rua, quer pela prpria Polcia Militar, quer pelos motoristas ou mesmo por certos jornalistas. A bicicleta no Brasil tem sido, do ponto de vista das classes dominantes e autoridades constitudas, sinnimo de brinquedo de fim-de-semana, e no de um meio de locomoo14.

    Num pas de terceiro mundo, onde o carro no um objeto de consumo acessvel a todos, seu valor de troca-signo no sistema de diferenciaes e distines, prprio da sociedade de consumo, se torna mais forte. O carro signo do moderno na vida cotidiana da periferia da modernidade. O uso cotidiano da bicicleta acaba em grande parte se restringindo aos sem-dinheiro, aos sem-poder. Na economia dos signos e na organizao das aparncias o valor da bicicleta ainda mais baixo num pas de terceiro mundo, como o caso do Brasil. A bicicleta se depara assim com motivos extras que a pe fora do dia-a-dia das pessoas, ficando reservada e confinada ao lazer.

    Portanto aqui no Brasil e na Amrica Latina as Bicicletadas, colocando os brinquedos na rua, tm o potencial de significarem a reivindicao no dia-a-dia de cada um da promessa contida e separada no lazer. Uma ilustrao: elas podem significar um impulso no sentido da expanso do Parque do Ibirapuera, transformando e submergindo a cidade de So Paulo no Parque. Se as ciclovias em So Paulo so confinadas num parque para servirem a passeios relaxados e despreocupados de fim-de-semana, resta uma aposta de que a construo de ciclovias e o uso cotidiano de bicicletas possam significar uma expanso do parque para fora de seus limites, num questionamento mais amplo dos fins e funes desempenhados pelo automvel, pelo urbanismo e pela locomoo cotidiana das pessoas e bens. A aposta nesse caso de que os brinquedos deixem de ser simplesmente brinquedos quando libertados do confinamento do lazer, e a corrida e concorrncia do trnsito se esvaia pela ludicidade daquilo que continua sendo brinquedo. Esse um caso em que a bicicleta no apenas portadora de uma eficincia cronomtrica no plano social, mas tambm portadora de outros conjuntos de valores, que buscam realizar a mtica promessa separada no lazer. Do Tempo da Depresso ao Tempo da Festa

    Cerca de trinta anos atrs Baudrillard (1995a) explicava a multiplicidade de fenmenos

    discordantes como a abundncia, a euforia e a depresso que em conjunto caracterizam a sociedade de consumo fazendo referncia a desconstruo e dissociao da ambivalncia do desejo no sistema de consumo.

    Vaneigem (2002), entre outros, j apontava nos anos 60 o carter depressivo da sociedade de consumo. De l para c essa caracterstica parece ter se aprofundado. Em 1990 a depresso

    13 Cf. www.bicicletada.org 14 Espera-se que estejamos assistindo uma mudana em curso, visto que um projeto que institui o dia 22 de setembro (dia mundial sem carros) como Dia Sem Carros (de adeso voluntria) foi aprovado pela Assemblia Legislativa de Santa Catarina, pioneiramente no Brasil.

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    ganhou a quarta posio entre as causas de morte no mundo. A Organizao Mundial de Sade, o Banco Mundial e a Escola de Sade Pblica de Harvard prevem que em 2010 a depresso afetar 30% de todos os adultos e em 2020 ser a segunda maior causa de invalidez e morte em todo o mundo. Nada mais do que a expanso e o aprofundamento dos processos sociais prprios da sociedade de consumo. Interessante notar que a mesma previso das trs instituies indica os acidentes de carro como a terceira maior causa de mortes e ferimentos em todo o planeta no ano de 2020, perdendo apenas para as isquemias de corao e a depresso. Se acrescentarmos ainda que as principais causas de morte entre jovens europeus entre 15 e 24 anos so, por ordem, os acidentes de carro, suicdios e cncer (de acordo com o escritrio estatstico da Unio Europia Eurostat)15, ento podemos notar claramente uma coincidncia entre uma sociedade depressiva e a sociedade do automvel. Uma sociedade que leva ao extremo os problemas da vida, transformando-os tambm em problemas da sobrevivncia.

    Os aspectos ldico e festivo presentes de forma e em graus diferentes no Provos, no RTS e na Massa Crtica (Bicicletada) denunciam e se colocam em contraposio a uma sociedade cada vez mais depressiva, onde o isolamento a regra e as relaes so mediadas por imagens, papis e objetos de consumo em geral. Paradoxalmente o carro acaba sendo depositrio de uma tentativa de fuga, na procura da festa perdida.

    Os happenings do Provos resgatavam o carter das festas do antigo modo de vida de que fala Morin (1975). Tempo das comunhes coletivas, e onde rito e mito se fundem, fazendo da festa um evento agregador, poltico, e no mero rito ou diverso individualizada em massa.

    As festas do RTS so uma contestao explcita dos paradigmas espaciais dominantes. Tambm so uma crtica bastante clara da vida cotidiana nas sociedades capitalistas. Talvez menos bvia seja a contestao, implcita nessas prticas, do tempo como fora produtiva. O tempo da festa, busca ser o no-tempo, para alm do consumo e da produo, para alm da abstrao cronomtrica.

    O processo de colonizao nunca se completa. E na chamada periferia, nas neocolonias

    como a Amrica latina, onde se pode mais facilmente encontrar sociabilidades, significaes e modos de vida distintos daqueles prprios da sociedade de consumo. Os povos originrios, por exemplo, vide a luta dos zapatistas e dos Mapuches, carregam uma distinta significao da terra, que se choca com a concepo da terra como recurso, mercadoria, propriedade, tpica do universo capitalista.

    Mas mesmo em boa parte das cidades brasileiras possvel encontrar localidades e comunidades que ainda compartilham antigos modos de vida, onde o tempo das festas no foi totalmente corrodo pelo tempo como fora produtiva e pelo tempo livre da sociedade de consumo. Nesses casos a bicicleta pode aparecer como parte de uma alternativa integral a um dado desenvolvimento, do qual sabemos os resultados ecolgicos, e no fim do qual o que estar esperando , na melhor das hipteses, a depresso.

    Entre 1912 e 1916 um movimento de massa de trabalhadores caboclos, no interior do que

    agora Santa Catarina, s foi contido com o efetivo de milhares de soldados federais e com o massacre dos rebeldes. O episdio ficou conhecido como Guerra do Contestado, por ter ocorrido em terras contestadas pelos estados do Paran e Santa Catarina. Com a empresa Brazil Railway e a construo de uma ferrovia que cortaria a regio, adentraram foras polticas, econmicas e sociais inteiramente novas, e que foram um importante fator na ecloso do movimento. Com a estrada de ferro chegava uma nova lgica econmica, poltica e social, se sobrepondo s

    15 No Brasil o trnsito responsvel por mais da metade das mortes de adolescentes entre 15 e 19 anos, sendo a principal causa de bito de jovens entre 10 e 25 anos. No temos dados sobre a depresso, mas no difcil perceber pela prpria experincia de vida de cada um, inclusive do leitor, que a depresso torna-se problema cada vez mais comum, na prpria medida que so incorporados os modos de vida, os valores e sociabilidades prprios da sociedade de consumo, irradiados do centro para a periferia da ordem geopoltica mundial.

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    existentes. Apropriao de terras e grandes serrarias vinham com o capitalismo corporativo que chegava com a Brazil Railway: do tempo mtrico e abstrato, do tempo como dinheiro.

    Lembrando os ludditas, os pelados (como eram conhecidos os rebeldes) destruram uma grande serraria, do mesmo grupo corporativo da Brazil Railway.

    Criaram redutos tambm conhecidos como cidades santas onde viviam e onde o dinheiro foi praticamente abolido. A historiografia em geral salienta o carter festivo que impregnava o cotidiano dos redutos, apontando esta como uma das principais caractersticas dessa experincia rebelde. Monteiro (1974) fala em festa permanente, onde os momentos de exceo passaram a ser regras; onde os ritos das festas religiosas reencontraram os mitos; o reencontro da alegria; cessao do fluxo do tempo; fim do tempo. Julho de 2003 Referncias Bibliogrficas BAUDRILLARD, Jean. (1995a) A Sociedade de Consumo. Rio de Janeiro: Elfos. __________. (1995b) Para Uma Crtica da Economia Poltica do Signo. Rio de Janeiro: Elfos. __________. (1996) A Troca Simblica e a Morte. Rio de Janeiro: Loyola. BOOKCHIN, Murray. (1998a) Autogesto e Tecnologias Alternativas. In: BOOKCHIN,

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