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BAKHTIN OUTROS CONCEITOS-CHAVE

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Análise e teoria do discurso

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BAKHTINOUTROS CONCEITOS-CHAVE

BETH BRAIT

BAKHTINOUTROS CONCEITOS-CHAVE

(organizadora)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catálogo sistemático:1. Ciências humanas : Pesquisa 001.3072

EDITORA CONTEXTO

Diretor editorial: Jaime Pinsky

Rua Acopiara, 199 – Alto da Lapa05083-110 – São Paulo – SP

PABX: (11) 3832 [email protected]

www.editoracontexto.com.br

Brait, BethBakhtin : outros conceitos-chave/ Beth Brait, (org.). – São Paulo :

Contexto, 2006.

Bibliografia.ISBN 85-7244-332-0

1. Análise do discurso 2. Bakhtin, Mikhail Mikhailovitch, 1895-1975 - Crítica e interpretação 3. Ciências humanas - Pesquisa4. Lingüística I. Brait, Beth.

Copyright 2006 Beth Brait

Todos os direitos desta edição reservados àEditora Contexto (Editora Pinsky Ltda.)

2006

Proibida a reprodução total ou parcial.Os infratores serão processados na forma da lei.

CapaGustavo S. Vilas Boas

DiagramaçãoAntonio Kehl

RevisãoAlicia Klein

Heloísa BeraldoRuy Azevedo

06-2599 CDD-001.3072

Sumário

Introdução .............................................................................................. 7Beth Brait

Análise e teoria do discurso .................................................................... 9Beth Brait

Bakhtin, Foucault, Pêcheux .................................................................. 33Maria do Rosário Gregolin

Carnavalização ...................................................................................... 53Norma Discini

Cronotopo e exotopia ........................................................................... 95Marilia Amorim

Diálogo ............................................................................................... 115Renata Coelho Marchezan

Esfera e campo ................................................................................... 133Sheila V. de Camargo Grillo

Interdiscursividade e intertextualidade ............................................... 161José Luiz Fiorin

Poesia .................................................................................................. 195Cristovão Tezza

Psicologia ............................................................................................ 219Yves Clot

Realismo grotesco ............................................................................... 243Eduardo Peñuela Cañizal

A organizadora ................................................................................... 259

Os autores .......................................................................................... 261

IntroduçãoBeth Brait

Este volume dá continuidade a Bakhtin: conceitos-chave (Contexto, 2005).Também aqui, o conjunto do pensamento bakhtiniano é surpreendido

em momentos de real produtividade para a compreensão da linguagem epara o desenvolvimento de seu estudo. Assim, mais alguns dos conceitos-chave, que continuam produzindo conhecimento nos estudos lingüísticose literários e nas Ciências Humanas de maneira geral, estão recuperados ereconhecidos em textos/discursos verbais, visuais e verbo-visuais.

Um primeiro ensaio, “Análise e teoria do discurso”, procura dar contade um posicionamento contemporâneo diante de textos e de discursos que,por diferentes caminhos, assumem aspectos teóricos e metodológicosadvindos do pensamento bakhtiniano. A demonstração dessa forma de en-carar a linguagem e desenvolver pesquisas em torno dela realiza-se no con-junto dos demais textos que compõem este livro.

Três deles – “Bakhtin, Foucault, Pêcheux”, “Psicologia” e “Esfera ecampo” – discutem perspectivas e conceitos que, oriundos do Círculo,dialogam de maneira mais ou menos polêmica com importantes tendên-cias filosóficas e/ou teórico-analíticas da atualidade. Essas articulações dediferentes horizontes teóricos revelam proximidades e distanciamentos

BAKHTIN outros conceitos-chave

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efetivamente produzidos e constatados nas pesquisas atuais desenvolvidaspelas Ciências Humanas.

Seguindo a tendência que caracterizou o primeiro volume de Bakhtin:conceitos-chave, os demais textos – “Carnavalização”; “Cronotopo e exotopia”;“Diálogo”; “Interdiscursividade e intertextualidade”; “Poesia” e “Realismo gro-tesco” – situam os conceitos em sua origem e/ou dispersão na obra de Bakhtine do Círculo e realizam leituras de textos e discursos estimulados por eles.

Este volume segue os propósitos do anterior: situar pontos fundamen-tais da teoria bakhtiniana, recuperados por pesquisadores envolvidos comas particularidades do pensamento bakhtiniano e de sua produtividade naconstrução do conhecimento e, assim, possibilitar aos leitores, quer inicia-dos ou não, a abertura de mais uma porta para a leitura dos textos-fonte.

Análise e teoriado discurso

Beth Brait

A memória é uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda opassado em função do presente.

(Mario Vargas Llosa)

Ninguém, em sã consciência, poderia dizer que Bakhtin tenha propos-to formalmente uma teoria e/ou análise do discurso, no sentido em queusamos a expressão para fazer referência, por exemplo, à Análise do Discur-so Francesa. Entretanto, também não se pode negar que o pensamentobakhtiniano representa, hoje, uma das maiores contribuições para os estu-dos da linguagem, observada tanto em suas manifestações artísticas comona diversidade de sua riqueza cotidiana. Por essa razão, mesmo conscientede que Bakhtin, Voloshinov, Medvedev e outros participantes do que atual-mente se denomina Círculo de Bakhtin jamais tenham postulado um con-junto de preceitos sistematicamente organizados para funcionar como pers-pectiva teórico-analítica fechada, esse ensaio arrisca-se a sustentar que oconjunto das obras do Círculo motivou o nascimento de uma análise/teoria

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dialógica do discurso, perspectiva cujas influências e conseqüências são vi-síveis nos estudos lingüísticos e literários e, também, nas Ciências Huma-nas de maneira geral.

Sem querer (e sem poder) estabelecer uma definição fechada do queseria essa análise/teoria dialógica do discurso, uma vez que esse fechamentosignificaria uma contradição em relação aos termos que a postulam, é pos-sível explicitar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel rela-ção existente entre língua, linguagens, história e sujeitos que instaura osestudos da linguagem como lugares de produção de conhecimento de for-ma comprometida, responsável, e não apenas como procedimento subme-tido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas. Maisainda, esse embasamento constitutivo diz respeito a uma concepção de lin-guagem, de construção e produção de sentidos necessariamente apoiadasnas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados.

Iniciar a apresentação da análise/teoria dialógica do discurso dessa manei-ra significa, de imediato, conceber estudos da linguagem como formulaçõesem que o conhecimento é concebido, produzido e recebido em contextoshistóricos e culturais específicos e, ao mesmo tempo, reconhecer que essasatividades intelectuais e/ou acadêmicas são atravessadas por idiossincrasiasinstitucionais e, necessariamente, por uma ética que tem na linguagem, e emsuas implicações nas atividades humanas, seu objetivo primeiro.

Para perseguir essa hipótese (ou tese), que só pode ser recuperada noconjunto das obras do Círculo, este ensaio escolhe, como ponto de partida,a concepção de Metalingüística, conforme sugerida por Bakhtin na obraProblemas da poética de Dostoiévski, e à qual Paulo Bezerra, tradutor e estu-dioso de Bakhtin, se refere da seguinte maneira:

[...] no livro sobre Dostoiévski, a Metalingüística já se esboça como

método de análise do discurso e hipótese de uma futura síntese da

filologia com a filosofia, que Bakhtin imaginava como uma discipli-

na humana nova e específica capaz de reunir em contigüidade a

Lingüística, a Filosofia, a Antropologia e a Teoria da Literatura.1

No início do capítulo “O discurso em Dostoiévski”, encontra-se o pri-meiro momento em que uma “análise/teoria dialógica do discurso” é pro-posta. Bakhtin afirma:

11

Intitulamos este capítulo “O discurso em Dostoiévski” porque te-

mos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade con-

creta e viva e não a língua como objeto específico da Lingüística,

obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e ne-

cessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são

justamente esses aspectos, abstraídos pela Lingüística, os que têm

importância primordial para os nossos fins. Por este motivo as

nossas análises subseqüentes não são lingüísticas no sentido rigo-

roso do termo. Podem ser situadas na Metalingüística, subenten-

dendo-a como um estudo – ainda não-constituído em disciplinas

particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que

ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da

Lingüística. As pesquisas metalingüísticas, evidentemente, não

podem ignorar a Lingüística e devem aplicar os seus resultados. A

Lingüística e a Metalingüística estudam um mesmo fenômeno con-

creto, muito complexo e multifacético – o discurso, mas estudam

sob diferentes aspectos e diferentes ângulos de visão. Devem com-

pletar-se mutuamente e não fundir-se. Na prática, os limites entre

elas são violados com muita freqüência.2

Já nessa primeira referência a uma nova disciplina, intituladaMetalingüística e considerada necessária a um estudo do discurso que ultra-passasse os resultados atingidos pela Lingüística, uma coisa deve ser obser-vada: a metodologia proposta para o estudo do objeto, considerado com-plexo e de muitas faces, embora se ofereça como uma ótica diferenciada,não exclui a Lingüística. Ao contrário: recomenda aplicar os seus resultados.O leitor que costuma usar Bakhtin como um petardo para aniquilar a Lin-güística, especialmente a estruturalista de lastro saussureano, pára nesse pontodo texto e pensa que talvez tenha pulado alguma coisa. Volta, vê que é issoque está escrito num texto assinado Bakhtin ele mesmo.

Como entender esse raciocínio, ou seja, o não dispensar a Lingüística,se o pensamento bakhtiniano incide sobre o discurso, a linguagem em uso,e não sobre a língua? Na verdade, essa afirmação tem importância e conse-qüências fundamentais para a análise/teoria dialógica do discurso que estásendo gestada, como se verá mais adiante.

Dando continuidade à idéia, à possibilidade e à necessidade de umaMetalingüística, Bakhtin, nesse capítulo, vai refinando a definição do obje-to e as formas de concebê-lo e abordá-lo. Assim, na definição seguinte, o

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termo discurso, apresentado como o objeto complexo, pertencente simulta-neamente à Lingüística e à nova disciplina proposta, é substituído por rela-ções dialógicas:“As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do fa-lante com sua própria fala) são objetos da Metalingüística”. As relaçõesdialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própria fala)são objetos da Metalingüística.”3

Agora o leitor fica mais contente e até esquece o susto da afirmaçãoanterior. Com essa nova definição, Bakhtin reveste o objeto a ser estudadopela Metalingüística com uma dimensão extralingüística, afirmando literal-mente: “[...] As relações dialógicas são extralingüísticas”. Afinal, pergunta-se o leitor, trata-se de considerar a materialidade lingüística, aquilo quepode ser considerado interno, como está explicitado anteriormente, ou setrata de tomar como objeto a exterioridade, o extralingüístico?

Antes mesmo que se possa respirar, a resposta aparece no texto de Bakhtin:

Assim, as relações dialógicas são extralingüísticas. Ao mesmo tem-

po, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou

seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A lingua-

gem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É

precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verda-

deiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja

qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a práti-

ca, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações

dialógicas. Mas a Lingüística estuda a “linguagem” propriamente

dita com sua lógica específica na sua generalidade, como algo que

torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai conseqüen-

temente as relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam

no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico e, por

isto, tais relações devem ser estudadas pela Metalingüística, que

ultrapassa os limites da Lingüística e possui objeto autônomo e

metas próprias.4

Mesmo que não se recupere integralmente essa primeira e básica sementede uma análise/teoria dialógica do discurso (e que o leitor poderá fazê-lodedicando-se à leitura integral de Problemas da poética de Dostoiévski), é pos-sível distinguir aí um traço que caracterizará todo o pensamento do Círculo esua forma de conceber a linguagem e de enfrentar a complexidade do discur-so. Esse traço fundante diz respeito ao fato de que a abordagem do discurso

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não pode se dar somente a partir de um ponto de vista interno ou, ao contrá-rio, de uma perspectiva exclusivamente externa. Excluir um dos pólos é des-truir o ponto de vista dialógico, proposto e explicitado pela teoria e pelaanálise, e dado como constitutivo da linguagem. É a bivocalidade de “dialógico”,situado no objeto e na maneira de enfrentá-lo, que caracteriza a novidade daMetalingüística e de suas conseqüências para os estudos da linguagem.

A idéia de uma Metalingüística que tem nas relações dialógicas o seu objetoé várias vezes recolocada nesse capítulo, confirmando, de diferentes maneiras, aespecificidade da abordagem bakhtiniana do discurso, ou seja, sua proposta deencontrar caminhos teóricos, metodológicos e analíticos para desvendar a arti-culação constitutiva do que há de interno/externo na linguagem:

As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às con-

creto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico.

Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, con-

verter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na lingua-

gem para que entre eles possam surgir relações dialógicas.

[...] As relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem rela-

ções lógicas e concreto-semânticas, mas são irredutíveis a estas e

têm especificidade própria.

Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semân-

ticas devem, como já dissemos, materializar-se, ou seja, devem

passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou

seja, enunciado e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja

posição ela expressa.5

O enfrentamento bakhtiniano da linguagem leva em conta, portanto,as particularidades discursivas que apontam para contextos mais amplos,para um extralingüístico aí incluído. O trabalho metodológico, analítico einterpretativo com textos/discursos se dá – como se pode observar nessaproposta de criação de uma nova disciplina, ou conjunto de disciplinas –,herdando da Lingüística a possibilidade de esmiuçar campos semânticos,descrever e analisar micro e macroorganizações sintáticas, reconhecer, recu-perar e interpretar marcas e articulações enunciativas que caracterizam o(s)discurso(s) e indiciam sua heterogeneidade constitutiva, assim como a dossujeitos aí instalados. E mais ainda: ultrapassando a necessária análise dessa“materialidade lingüística”, reconhecer o gênero a que pertencem os textos

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e os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades emque esses discursos se inserem e, a partir desse diálogo com o objeto deanálise, chegar ao inusitado de sua forma de ser discursivamente, à suamaneira de participar ativamente de esferas de produção, circulação e re-cepção, encontrando sua identidade nas relações dialógicas estabelecidascom outros discursos, com outros sujeitos.

Não há categorias a priori, aplicáveis de forma mecânica a textos e dis-cursos, com a finalidade de compreender formas de produção de sentidonum dado discurso, numa dada obra, num dado texto.

A prova disto está justamente em Problemas da poética de Dostoiéviski.O capítulo utilizado neste ensaio a fim de discutir um primeiro mo-

mento da proposta de uma Metalingüística, aqui interpretada como teoria/análise dialógica do discurso, faz parte das estratégias utilizadas por Bakhtinpara, a partir da minuciosa leitura e análise do conjunto da obra deDostoiévski, configurar o gênero polifônico, apresentar o conceito depolifonia. E não o contrário. Não se tem um conceito de polifonia e depoisse constata sua presença numa obra ou num conjunto de obras. Nesse sen-tido, é possível compreender as objeções que alguns estudiosos do pensa-mento bakhtiniano fazem do uso indiscriminado do conceito de polifonia,como se fosse um conceito abstrato, criado para ser aplicado a qualquerdiscurso, e não uma marca de identidade do discurso de Dostoiévski, reco-nhecida a partir da análise bakhtiniana. Esse é o caso, por exemplo, deCristovão Tezza que, num texto recente, afirma de maneira certeira:

O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) criou uma das categorias

mais atraentes da Teoria Literária das últimas décadas do século

20: polifonia. Tomando a palavra de empréstimo da arte musical,

isto é, o efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas

independentes mas harmonicamente relacionadas, Bakhtin em-

prega-a no seu livro sobre Dostoiévski, publicado pela primeira

vez em 1929, para definir especificamente tanto a obra de

Dostoiévski quanto o que ele chama de “um novo gênero roma-

nesco”, o “romance polifônico”. Essa expressão teve uma carreira

tão errática quanto a do próprio Bakhtin.

[...] Transformada em moda, a polifonia bakhtiniana perde o seu

sentido de origem e se torna exatamente aquilo que negava: uma

instância narrativa estrutural da Literatura ou da Lingüística, con-

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fundindo-se, muitas vezes, com simples intertextualidade; tornada

um conceito reiterável, passa a ser um modelo a se aplicar em qual-

quer narrativa com dois ou três pontos de vista gramaticais distin-

tos. Mas a complexidade do conceito para aqueles que se debruça-

vam com mais cuidado sobre ele não era mesmo fácil de resolver.

[...] Para colocar de novo a bola ao chão, digamos desse modo, é

preciso voltar ao próprio Bakhtin, agora com a visão do conjunto

de sua obra (incluindo os manuscritos filosóficos da década de

1920), e retomar seus pressupostos. A primeira tarefa será tentar

recolocar nos trilhos originais a polifonia bakhtiniana.6

Dando continuidade à idéia de que o pensamento bakhtiniano produziuuma teoria/análise dialógica do discurso, é possível situar a questão de umaoutra maneira, lançando um olhar sobre o fato de que grande parte das leitu-ras e das releituras iniciadas no final da década de 1970 e intensificadas apartir dos anos 1990, tem como um de seus mais significativos produtos aexistência de novos “Círculos”, mais ou menos bakhtinianos. O ponto dearticulação entre eles parece ser justamente a tentativa de enfrentamentodialógico da linguagem, da teoria e análise do discurso, a partir do conjuntodo pensamento bakhtiniano ou mesmo da seleção de alguns de seus pontosespecíficos. As diferentes formas de conceber “enfrentamento dialógico dalinguagem” constituem, por sua vez, movimentos teóricos e metodológicosque se desenvolvem em diferentes direções.

Uma dessas direções pode ser caracterizada pelos trabalhos de intérpre-tes cujo objetivo central é o aprofundamento da compreensão das propos-tas do primeiro Círculo bakhtiniano e de suas conseqüências radicais paraos estudos da linguagem, quer na perspectiva das teorias lingüísticas, querdas teorias literárias ou de seu alcance dentro das demais Ciências Huma-nas. O que diferencia esse Círculo contemporâneo, radicalmente bakhtiniano,dos demais, é o empenho em ressaltar a origem filosófica, ética e estéticaque constitui a gênese do pensamento bakhtiniano como um todo.

Os trabalhos desses pesquisadores, nacionais e estrangeiros, resultam emleituras e interpretações que situam as categorias, os conceitos e as noções advindasdo pensamento bakhtiniano dentro do contexto epistemológico e cultural queos originou. Isso ajuda a diferenciar a perspectiva bakhtiniana de outras impor-tantes teorias sobre a linguagem e, especialmente, estabelecer fronteiras bem

Análise e teoria do discurso BETH BRAIT

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nítidas entre designações idênticas para conceitos completamente diferentes, quandonão contraditórios. Esse é o caso de polifonia, como aponta Cristóvão Tezza,mas poderia ser também o de carnavalização e de gêneros.7

Como avaliar, por outro lado, o diversificado conjunto de trabalhosque, mesmo parecendo distanciar-se das origens, contribui para o reconhe-cimento do constitutivo papel da linguagem nas atividades humanas e, por-tanto, nas diferentes ciências que têm o sujeito e sua alteridade como objetode estudos?

Na tentativa de ao menos enfrentar essas questões, é necessário situar osanos 1970, no que diz respeito aos estudos da linguagem. Eram tempos detransição e afirmação, especialmente em relação a novos caminhos teóricos,considerando-se as construções, as polêmicas e as heranças positivas e nega-tivas produzidas pelo Estruturalismo e pelo Formalismo. Como não é obje-tivo deste ensaio fazer história, a referência a dois artistas da palavra quesituaram criticamente os estudos lingüísticos pode servir de metonímia paraa compreensão daquele momento. Trata-se de do peruano Mario VargasLlosa e do brasileiro Carlos Drummond de Andrade.

Em 1987, Vargas Llosa lançou um romance intitulado El falador, lança-do no Brasil no ano seguinte pela Francisco Alves, com o título O falador.Nessa obra, o narrador principal evoca recordações de um companheiro desua juventude passada em Lima, apelidado Mascarita, fascinado por umapequena cultura primitiva denominada machiguengas. Paralelamente, umanônimo contador ambulante de histórias, justamente o “falador” que dátítulo à obra, uma espécie de testemunha da memória coletiva dos índiosmachiguengas da Amazônia peruana, conta a própria existência, a história eos mitos de seu povo.

No quarto capítulo dessa obra, há uma curiosa discussão sobre o Insti-tuto Lingüístico de Verão, uma famosa e real instituição, que durou quatrodécadas e que, segundo o narrador, foi objeto de virulentas controvérsiasnesses quarenta anos em que existiu no Peru. O que interessa, aqui, é vercomo a imagem da Lingüística e dos lingüistas aparece em alguns trechosda obra, fortemente ligada ao Instituto de Verão e a seu papel junto a dife-rentes comunidades. Os trechos escolhidos, um tanto longos é verdade,dão a dimensão dessa imagem da Lingüística naquele momento e do dis-curso politizado que o produz.

17

Em que consiste a missão do Instituto? Segundo seus inimigos, é

um braço do imperialismo norte-americano que, sob o pretexto

da pesquisa científica, realiza trabalhos de inteligência e uma ação

de penetração cultural neocolonialista entre os indígenas amazô-

nicos. Essas acusações procedem, sobretudo, da esquerda. Mas tam-

bém são seus adversários alguns setores da Igreja Católica – princi-

palmente os missionários da selva –, que o acusam de ser nada

mais que uma falange de evangelizadores protestantes disfarçados

de lingüistas. Entre os antropólogos, há quem lhe reprove o fato

de perverter as culturas aborígenes, tratar de ocidentalizá-las e

incorporá-las a uma economia de mercado. Alguns conservadores

criticavam a presença do Instituto no Peru alegando razões nacio-

nalistas e hispânicas.8

Segundo o mesmo narrador, havia também os defensores, que o faziamcom argumentos pragmáticos, afirmando:

A ação dos lingüistas – estudar as línguas e os dialetos da Amazô-

nia, estabelecer vocabulários e gramáticas das diferentes tribos –

servia ao país e, além disso, pelo menos em teoria, estava controla-

da pelo Ministério da Educação, que devia aprovar seus projetos e

recebia cópias de todo material recolhido pelo Instituto.9

Nessa mesma obra, um pouco mais adiante e a respeito do mesmo ins-tituto, o narrador refere-se a um jovem casal de lingüistas, os Schneil:

Tinham recebido o diploma, assim como os demais lingüistas, na

Universidade de Oklahoma, mas eram, acima de tudo, como seus

colegas, seres animados por um projeto espiritual: a difusão da

Bíblia. [...] A intenção que os induzia a estudar as culturas primi-

tivas era religiosa: traduzir a Bíblia para aquelas línguas a fim de

que esses povos pudessem ouvir a palavra de Deus nos compassos

e inflexões de sua própria música. Esse foi o desígnio que levou o

Doutor Peter Towsend – um interessante personagem, mistura de

missionário, amigo do Presidente Mexicano Lázaro Cárdenas e

autor de um livro sobre ele – a fundar o Instituto, e o incentivo

que move ainda os lingüistas a realizarem o paciente trabalho que

realizam.10

E ainda, a palavra feroz de Mascarita, sempre tão ponderado, dirigindo-se ao personagem narrador, contra os lingüistas:

Análise e teoria do discurso BETH BRAIT

BAKHTIN outros conceitos-chave

18

– Eles são os piores de todos, esses seus apostólicos lingüistas. Eles

se incrustam nas tribos para destruí-las de dentro, igualzinho que

os bichos de pé. Em seus espíritos, em suas crenças, em seu sub-

consciente, nas raízes de seu modo de ser. Os outros tiram deles o

espaço vital e os exploram ou empurram para o interior. No pior

dos casos, eles os matam fisicamente. Esses seus lingüistas são mais

refinados, querem matá-los de outro modo. Traduzindo a Bíblia

para o machiguenga: o que é que você acha [...].11

E, para finalizar, um outro trecho em que se lê:

Os lingüistas eram alguma coisa muito diferente. Tinham, atrás

de si, um poder econômico e uma engrenagem eficientíssima, que

lhes permitia talvez implantar seu progresso, sua religião, sua cul-

tura. Aprender as línguas aborígenes, ora que logro! Para quê? Para

fazer dos índios amazônicos bons ocidentais, bons homens mo-

dernos, bons capitalistas, bons cristãos reformados? Nem mesmo

isso. Só para apagar do mapa das culturas, seus deuses, suas insti-

tuições e adulterar-lhes até seus sonhos. Como tinham feito com

os peles-vermelhas e os outros, lá no país deles. Isso é o que eu

queria para nossos compatriotas da selva? Que se convertessem no

que eram, agora, os aborígenes da América do Norte?12

Se essa perspectiva insere uma certa Lingüística dos anos 1940, 50 e 60numa dimensão política e crítica, o fato de a obra ser dos anos 1980 sugereque a circulação de uma consciência a respeito dos estudos lingüísticos e deseus efeitos acontecia, por assim dizer, para um público não especializado.Essa perspectiva crítica, com a qual todos os lingüistas “politicamente cor-retos” concordam hoje, diz respeito unicamente às atividades do famosoInstituto de Verão. Entretanto, é também dessa mesma época um poemaintitulado “Exorcismo”, em que Carlos Drummond de Andrade constróiuma imagem dos estudos da linguagem que, tanto quanto os trechos de Ofalador, revela uma percepção pouco simpática da Lingüística e, mais espe-cificamente, da parafernália terminológica, do jargão propagado pelos tex-tos teóricos e conhecidos por público externo à academia.

19

EXORCISMO

Das relações entre topos e macrotopos

Do elemento suprassegmental,

Libera nos, Domine.

Da semia

Do sema, do semema, do semantema,

Do lexema,

Do classema, do mema, do sentema,

Libera nos, Domine.

Da estruturação semêmica,

Do idioleto e da pancronia científica,

Da realibilidade dos testes psicolingüísticos,

Da análise computacional da estruturação silábica dos

falares regionais,

Libera nos, Domine.

Do vocóide,

Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal,

Do vocóide baixo e do semivocóide homorgâmico,

Libera nos, Domine.

Da leitura sintagmática,

Da leitura paradigmática do enunciado

Da linguagem fática,

Da fatividade e da não-fatividade na oração principal,

Libera nos, Domine.

Da organização categorial da língua,

Da principalidade da língua no conjunto dos sistemas semiológicos,

Da concretez das unidades no estatuto que dialetaliza a língua,

Libera nos, Domine.

Do programa epistemológico da obra,

Do corte epistemológico e do corte dialógico,

Do substrato acústico do culminador,

Dos sistemas genitivamente afins,

Libera nos, Domine.

Análise e teoria do discurso BETH BRAIT

BAKHTIN outros conceitos-chave

20

Da camada imagética

Do estado heterotópico

Do glide vocálico

Libera nos, Domine.

Da lingüística frástica e transfrástica,

Do signo cinésico, do signo icônico e do signo gestual

Da clitização pronomial obrigatória

Da glossemática,

Libera nos, Domine.

Da estrutura exossemântica da linguagem musical

Da totalidade sincrética do emissor,

Da lingüística gerativo-transformacional

Do movimento transformacionalista,

Libera nos, Domine.

Das aparições de Chomsky, de Mehler, de Perchonock

De Saussure, Cassirer, Troubetzkoy, Althusser

De Zolkiewsky, Jakobson, Barthes, Derrida, Todorov

De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et caterva

Libera nos, Domine.13

Carlos Drummond de Andrade

O que há de comum entre essas duas posturas diante da Lingüística edo fazer dos lingüistas, cobrindo uma grande faixa desse fazer no século XX?Há uma percepção nada lisonjeira da Lingüística, dos lingüistas e mesmodo aparato teórico utilizado. Essas críticas, situadas no passado, são locali-zadas e parecem distantes do momento atual em que os estudos da lingua-gem reencontraram o sujeito, suas relações com a história, a partir da ob-servação da linguagem em uso, de maneira a redefinir paradigmas e repen-sar o papel do pesquisador. Como afirma François Dosse:

O reprimido do estruturalismo, o sujeito, teve um regresso tanto

mais ruidoso visto que se acreditou poder passar sem ele durante

uma vintena de anos. Apanhado numa tensão constante entre

divinização e dissolução, o sujeito experimentou não poucas difi-

culdades para reintegrar-se no campo do pensamento, dada a com-

plexidade que lhe é própria, dividido entre a autonomia do poder

21

e as redes de dependência que o condicionam. Diante da falsa

alternativa, por largo tempo apresentada como inelutável, entre o

sujeito onipotente e a morte do sujeito, toda uma corrente da

reflexão contemporânea se desenvolveu em torno do paradigma

da dialógica, do agir comunicacional, e pode representar um ca-

minho real de emancipação social, bem como um paradigma fe-

cundo no domínio das ciências sociais.14

Dentre as grandes tendências que possibilitam “o regresso do sujeito”estão, sem dúvida, a Análise do Discurso Francesa e o pensamentobakhtiniano, o qual chega ao Brasil, e ao resto do Ocidente, aos poucos enão como um bloco coeso. Postular a existência de uma teoria/análise dodiscurso exige, por assim dizer, uma reconstituição do percurso desse pen-samento e dos aspectos que vão sendo iluminados e tidos como nucleares,segundo a maneira como vai se instalando. Olhar esse percurso é tambémentrar em contato com as conseqüências que vai provocando em termosdos estudos da linguagem, em termos dos estudos da enunciação, em ter-mos de estudos do discurso que, centralizados na Lingüística e também naTeoria Literária, alçam vôo e ganham espaço nas diferentes Ciências Hu-manas e Sociais.

Embora Bakhtin e seu Círculo tenham produzido seus trabalhos sobre alinguagem desde a segunda década do século XX, os lingüistas entraram emcontato com esse pensamento no final da década de 1970, por meio de Mar-xismo e filosofia da linguagem. A versão brasileira, como as demais, tem umsubtítulo bastante significativo: Problemas fundamentais do método sociológicona ciência da linguagem. Esse subtítulo indicia a linguagem e seu estudo deuma forma ampla que, sem excluir a Lingüística ou Teoria Literária, antecipaa importância da linguagem na perspectiva das Ciências Humanas.

Um outro aspecto que chama a atenção nas versões da obra para o Oci-dente é que as diferentes versões trazem assinatura de Valentin Voloshinov –M. Bakhtin (Voloshinov)15 –, indicando ao menos uma duplicidade de auto-ria. A questão da autoria é importante para se pensar não apenas as origensdesse pensamento, o círculo de intelectuais que lhe dá origem, as possíveiscausas das diferentes assinaturas, mas também os elementos que, estando sobdiferentes assinaturas, contribuem para a construção de uma teoria/análisedo discurso. Esses aspectos devem ser considerados a fim de que sejam enten-

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didas não apenas as razões da multiplicidade de assinaturas, mas especialmen-te a dimensão assumida pela autoria num pensamento em que o outro écondição sine qua non para a existência do “eu”.

Exatamente o que desta primeira obra conhecida pelos lingüistas mar-cou uma nova postura diante da linguagem? O que interferiu na forma deenfrentar a linguagem e constituir diferentemente os estudos lingüísticos etambém, de certa maneira, os estudos literários?

O aspecto nuclear dessa obra, que atingiu os lingüistas de imediato, foiprecisamente a forma de conceber a linguagem e seus estudos. Naquele mo-mento, final da década de 1970, havia claramente duas opções: de um lado, avertente estruturalista, voltada para as questões do sistema, que muito ensinoua todos e à qual se deve o aprofundamento dos diferentes níveis da análiselingüística, caso da fonética, da fonologia, da sintaxe, e que na Teoria Literáriapoderia ser traduzida, grosso modo, pelo formalismo e seus estudos estruturais danarrativa e da poesia, por exemplo. De outro lado, uma poética sociológica, umavertente múltipla, voltada, por assim dizer, para os estudos do “conteúdo”.

O aparecimento de Marxismo e filosofia da linguagem se dá como umaespécie de “terceira margem dos estudos da linguagem”. Tanto as duas gran-des correntes do pensamento lingüístico, o estruturalismo e a estilística clás-sica, são colocadas na berlinda, mais diretamente no capítulo intitulado“Duas orientações do pensamento filosófico lingüístico”, como um avançona direção dos estudos enunciativos e discursivos é colocado em andamen-to, a partir de discussões instaladas pelos capítulos mais lidos da obra: “Lín-gua fala e enunciação”, “Interação verbal” e “O ‘discurso de outrem’”.

A percepção da linguagem e da possibilidade de estudá-la levando-seem conta a historicidade, os sujeitos, o social, sem dúvida, provocaramprofundas mudanças, que podem ser simbolizadas na idéia de signo ideoló-gico. Nenhuma ideologia pode aparecer fora dos signos, e nenhum signoestá despido de ideologia, como a obra vai mostrando ao longo de seuscapítulos. Partindo da tradição dos estudos da linguagem, sem apagar osganhos trazidos pelos estudos saussureanos e pelos estudos estilísticos, opensamento bakhtiniano presente nessa obra ofereceu a ocasião de um saltoqualitativo no sentido de observar a linguagem não apenas no que ela temde sistemático, abstrato, invariável, ou, por outro lado, no que de fato temde individual e absolutamente variável e criativo, mas de observá-la em uso,

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na combinatória dessas duas dimensões, como uma forma de conhecer oser humano, suas atividades, sua condição de sujeito múltiplo, sua inserçãona história, no social, no cultural pela linguagem, pelas linguagens.

Evidentemente que as demais partes da obra, de excepcional importân-cia para a concepção histórica e social da linguagem, só foram retomadasmais tarde, como é o caso, por exemplo, de “Tema e significação na língua” –sem a qual não se pode entender o conceito de gênero discursivo (noçãoque aparecerá como tal na obra Estética da criação verbal, datada de 1979) –ou “Teoria da Enunciação e problemas sintáticos” e “Discurso indireto,direto e suas variantes”, capítulos fundamentais para uma compreensãoaprofundada das formas e graus de assimilação e circulação do “discurso deoutrem”, ou seja, da constituição dos sentidos, da possibilidade do quechamamos de interdiscurso, de alteridade constitutiva.16

Além disso, é preciso lembrar que a compreensão e mobilização dopensamento bakhtiniano implica, necessariamente, como acontece nas Ciên-cias Humanas em geral, o conhecimento dos interlocutores com quem essepensamento dialoga.17 No caso de Marxismo e filosofia da linguagem, porexemplo, há muitos interlocutores. Assim sendo, não apenas uma leituracuidadosa do capítulo “Duas orientações do pensamento filosóficolingüístico” leva à compreensão de que ele não está destruindo Saussure esua obra, ou a estilística como vertente do conhecimento, mas aponta parauma leitura mais cuidadosa do próprio Saussure e do que ele representouno século XX. Não fosse ele o criador da Lingüística, o pensamentobakhtiniano não necessitaria colocá-lo como interlocutor polêmico. Para opensamento bakhtiniano, o outro nunca é abstrato.

A partir dos aspectos destacados em Marxismo e filosofia da linguagem,portanto, também aí, mesmo considerando a assinatura Voloshinov, há im-portantes contribuições para uma teoria/análise dialógica do discurso, har-monizadas com a proposta de uma Metalingüística. As relações dialógicassão trabalhadas na perspectiva de uma teoria da enunciação em que as ques-tões do sentido, de sua construção e de seus efeitos são apresentadas pormeio da discussão dos conceitos de tema e de significação e, também, dasformas de presença do outro na linguagem e no fio do discurso.

O acesso a Problemas da poética de Dostoiévski, cuja primeira tradução parao português data de 1981, parecendo, pelo título, estar mais voltada aos estudos

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literários que aos estudos lingüísticos, teve, por isso mesmo, mais influência nosestudos da literatura, escapando, até bem pouco tempo, à atenção dos lingüis-tas. Entretanto, é por intermédio dela que se pode reconhecer um procedimen-to analítico essencial para uma teoria/análise dialógica do discurso: chegar auma categoria, a um conceito, a uma noção, a partir da análise de um corpusdiscursivo, dos sujeitos e das relações que ele instaura. Para definir o gêneropolifônico do romance, e situar sua inovação e seu alcance, Bakhtin analisa,como se observou, a obra toda de Dostoiévski. Ele não tinha um conceito adhoc de polifonia para testar nos escritos de Dostoiévski. É a partir dos textos deDostoiévski que o conceito é formulado, constituído. Portanto, essa é sem dú-vida uma das características de uma teoria/ análise dialógica do discurso: nãoaplicar conceitos a fim de compreender um discurso, mas deixar que os discur-sos revelem sua forma de produzir sentido, a partir de ponto de vista dialógico,num embate. E que Marilia Amorim define da seguinte maneira:

[...] A produção de conhecimento e o texto em que se dá esse co-

nhecimento são uma arena onde se confrontam múltiplos discur-

sos. Por exemplo, entre o discurso do sujeito analisado e conhecido

e o discurso do próprio pesquisador que pretende analisar e conhe-

cer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxais

vai emergir. Assumir esse caráter conflitual e problemático das Ciên-

cias Humanas implica renunciar a toda ilusão de transparência: tanto

do discurso do outro quanto de seu próprio discurso. E é portanto

trabalhando a opacidade dos discursos e dos textos, que a pesquisa

contemporânea pode fazer da diversidade um elemento constituinte

do pensamento e não um aspecto secundário.18

Somente essas duas obras já seriam suficientes para extrair dos aspectosnucleares do pensamento bakhtiniano uma teoria/análise dialógica do dis-curso, gesto que, ao enfrentar a linguagem, se reveste necessariamente daética proposta pelo Círculo e da possibilidade e necessidade de lidar comvários campos do conhecimento a partir do reconhecimento do papel fun-damental da linguagem na constituição dos sujeitos históricos.

Entretanto, seguindo essa espécie de percurso que tem a ver com aforma como o pensamento bakhtiniano foi se instalando nos estudos dalinguagem, interferindo na concepção de pesquisa e de conhecimento depráticas sociais, culturais e históricas, outros dois trabalhos, assinados por

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Bakhtin, devem ser mencionados: A obra de François Rabelais e a culturapopular na Idade Média, que aparece em 1965 e tem sua primeira traduçãopara o português em 1987, e Questões de literatura e de estética – a teoria doromance, datada de 1975 e traduzida para o português em 1988. ComoProblemas da poética de Dostoiévski, eles parecem, pelo título, interessar ape-nas aos literatos e, por essa razão, durante algum tempo, foram lidos so-mente por estudiosos da linguagem literária.

O que contêm essas duas obras para interessar outras áreas do conheci-mento que não a teoria da literatura? Que noções fundamentais trazem quese articulam ao restante do pensamento bakhtiniano, impedindo os interes-sados na teoria/análise dialógica do discurso de ignorá-las?

Em A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média, como propósito de estudar esse autor e mostrar aspectos ainda não desvendadosde sua obra, Bakhtin faz um estudo original sobre o riso, sobre a culturapopular, sobre o Carnaval, fenômenos que, pela tradição e pelas particula-ridades, propiciam uma visão inusitada, criativa e irreverente do mundo. Ovocabulário da praça pública, as formas e imagens da festa popular, a ima-gem grotesca do corpo, as imagens de um autor e a realidade de seu temposão alguns dos aspectos cujo estudo aprofundado resultou em conceitosque, mais tarde, foram mobilizados pela Lingüística, pela literatura, pelaantropologia ou por outras Ciências Humanas.

Mais uma vez, um conceito fundante do pensamento bakhtiniano éconstruído a partir da leitura do conjunto da obra de um autor, apontandopara a análise das especificidades de um discurso e para a maneira como eleindicia o contexto extralingüístico que o constitui. Sem dúvida, aí estãopraticados alguns princípios observados teórica e praticamente em Proble-mas da poética de Dostoiévski e que, na observação da obra de Rabelais,resultam no conceito de carnavalização, tão importante quanto o conceitode polifonia. É verdade que o destino de carnavalização é muito parecidocom o de polifonia...

Em Questões de literatura e de estética – a teoria do romance, aparecemalgumas noções que especialmente os lingüistas utilizam com muita produ-tividade. Esse é o caso de plurilingüismo, palavra autoritária e palavra inte-riormente persuasiva, por exemplo, dimensões que, a fim de serem trabalha-das na literatura, foram, primeiramente, apontadas como características da

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linguagem em uso, inspirando muitos estudos e possibilitando leituras nãopreconceituosas em relação às diferentes formas que a língua e a linguagemassumem, necessariamente, do ponto de vista histórico, social, cultural.

Durante muito tempo, e até hoje, muitas pessoas perguntam por queler e discutir Questões de literatura e de estética – a teoria do romance, se apraia dos lingüistas é a análise do discurso? Em primeiro lugar, porque asmanifestações artísticas da linguagem não estão excluídas de uma teoria/análise dialógica do discurso, uma vez que as artes constituem discursospoderosos sobre a vida, sobre os seres humanos. Deve-se ler tal obra especial-mente porque a teoria do romance no pensamento bakhtiniano ocupa umespaço fundamental para se entender a linguagem em sua multiplicidade,em sua variação, no dialogismo que a constitui e no entrecruzar de discur-sos magistralmente representados nos romances, na prosa de ficção. Se osestudiosos da literatura tiveram acesso a algumas obras antes dos lingüistas,assim como os lingüistas tiveram acesso a Marxismo e filosofia da linguagemantes dos estudiosos da literatura, sabe-se hoje que essa separação não podeser levada em conta na medida em que o pensamento bakhtiniano, parafalar da linguagem em uso e avançar em sua concepção social e histórica delinguagem, não descarta qualquer tipo de discurso.

Quando, em 1979, aparece a obra Estética da criação verbal – reuniãode um conjunto de escritos de diferentes épocas, de 1919 a 1974, e a que oautor na verdade não deu acabamento final –, de fato, a idéia de um pensa-mento bakhtiniano se concretizou, assim como o de uma teoria/análisedialógica do discurso. Os conceitos de enunciado, comunicação verbal, gê-neros discursivos, formas e concepções de destinatário, esferas da atividadehumana, texto e, ainda, observações sobre a epistemologia das CiênciasHumanas dão continuidade e dialogam com conceitos iniciados em obrasanteriores, em momentos anteriores, preenchendo aparentes lacunas. Otexto “O autor e o herói”, que pelo título novamente poderia parecer volta-do apenas a uma área do conhecimento, demonstra uma forte vocação paradiscutir, em profundidade, a questão da relação eu/outro, tanto na vidacomo na arte, aí incluída a pesquisa, especialmente nas Ciências Humanas.A citação de um pequeno trecho ajuda a compreender essa afirmação, esseaspecto nuclear do papel do pensamento bakhtiniano para a pesquisa emCiências Humanas, transformando o objeto da pesquisa em sujeito:

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Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu

sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar,

e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo

o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo,

criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha

visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento.19

Sem dúvida, essas poucas referências dão a indicação do alcance dosescritos contidos nessa obra e da forma como ela atuou e continua atuandosobre os estudos da linguagem.

Indicados esses títulos e um certo caminho percorrido para a instalaçãodo pensamento bakhtiniano, e que sem dúvida podem ser reconhecidos naprodutividade representada pelos trabalhos de pesquisadores e grupos depesquisadores, ainda se deve destacar mais alguns estudos que, assinadospor componentes do Círculo, também representam aspectos nucleares dopensamento bakhtiniano e da teoria/análise dialógica do discurso.

Discurso na vida e discurso na arte, escrito em 1926 e assinado Voloshinov,é um deles.20 Nesse texto de poucas páginas estão contidas algumas dasidéias nucleares do pensamento bakhtiniano, como é o caso de interação.Tal conceito é retomado em Marxismo e filosofia da linguagem, quando otexto apresenta uma série de noções sem as quais seria impossível compreen-der a amplitude e o alcance de interação. É o caso de conceitos comoenunciação ou enunciado concreto, comunicação, incluindo a comunica-ção estética, verbal e extraverbal se pressupondo, e as noções de situação econtexto como elementos diferenciados. Também aí aparecem os conceitosde entoação e avaliação, como marcas da participação ativa dos interlocutoresno evento social representado pelo discurso. Todos esses aspectos vão sur-gindo a partir de um exemplo que resulta numa idéia muito repetida pornós, ainda que não tenhamos lido diretamente este texto: “O ‘eu’ poderealizar-se verbalmente apenas sobre a base do ‘nós’.” Essas indicações pare-cem suficientes para o reconhecimento de que numa teoria/análise dialógicado discurso os conceitos enunciados acima são imprescindíveis.

Um último texto, que na verdade é certamente um dos primeiros senãoo primeiro a ser escrito por Bakhtin, publicado na Rússia em 1986, queconfirma a gênese de uma teoria/análise dialógica do discurso. Trata-se dePor uma filosofia do ato,21 certamente o texto mais difícil do conjunto, não

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apenas por não ter sido finalizado pelo autor, mas justamente por trazer asbases filosóficas do pensamento bakhtiniano. Lá estão as noções de evento,de ato, de acontecimento, aspectos que sem dúvida podem ser reconheci-dos pelos que leram as obras posteriores e que, talvez por isso, podem com-preender de onde partem as idéias, qual é o núcleo gerador do conjuntoque identificamos como “pensamento bakhtiniano”.

Com esse texto, a idéia já enunciada de uma concepção de estudos da lin-guagem como lugar de produção de conhecimento de forma comprometida,responsável e, ainda, de uma concepção de linguagem, de construção e produ-ção de sentidos, necessariamente apoiada nas relações discursivas empreendidaspor sujeitos historicamente situados, fica confirmada. Como diz Augusto Ponzio,num ensaio intitulado “Para uma filosofia da ação responsável”:

Bakhtin insiste sobretudo no compromisso inevitável com o outro

– com um “outro concreto”, e não com um outro eu abstrato,

concebido teoricamente como consciência gnoseológica abstrata

– que o ser responsavelmente partícipe comporta na unicidade do

próprio lugar no mundo.22

Para finalizar, estão enunciadas algumas características dessa teoria/aná-lise dialógica – e que aparecem evidenciadas neste volume – em cada umdos textos que, para situar um conceito-chave, mobiliza o pensamentobakhtiniano, e alguns de seus interlocutores, no que ele tem de original:fazer da análise um processo de diálogo entre sujeitos, no sentido forteassumido pelo termo.

(I) Há conceitos próximos, mas não necessariamente intercambiáveis, caso dealteridade, dialogismo, polifonia, que constituem, como heterogeneidade,interdiscursividade e intertextualidade, dimensões da noção de “outro” e desua importância na reflexão sobre linguagem. Nem sempre esses conceitosse fundamentam nos mesmos princípios, ganhando especificidades emdiferentes teóricos ou tendências de análise. O conceito de heterogeneidade,cunhado por Jacqueline Authier-Revuz, assim como o de intertextualidade,estabelecido por Kristeva, têm fortes raízes no pensamento bakhtiniano,ainda que ambas tenham recorrido a outros arredores teóricos e deslocadoos conceitos para o centro de suas preocupações específicas. De qualquerforma, seja qual for o rumo assumido, a questão da alteridade constitutiva

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ganhará um espaço fundamental nos estudos da linguagem, interferindona noção de sujeito, de autoria, de texto (verbal e não verbal), de discurso,interlocutor e especialmente de vozes discursivas.

(II) Há formas e graus de representação da dimensão dialógica da linguagem,trabalhadas especialmente a partir das obras Filosofia do ato (1919), Marxismoe filosofia da linguagem, Problemas da poética de Dostoiévski, A cultura popularna Idade Média e no Renascimento, que ajudam a entender o conceito dedialogismo como constitutivo de qualquer discurso, mas que pode serdimensionado diferentemente em textos e discursos específicos. Essasdiferenças produzem diferentes efeitos de sentido, indiciando o projeto defala aí implicado. Assim sendo, os trabalhos sobre argumentação, persuasão,por exemplo, têm se valido na última década da teoria bakhtiniana e doselementos que ela oferece em termos de perspectiva enunciativa, explicitaçãoe posicionamento das vozes discursivas.

(III) Há um dimensionamento essencial da interação, ligada à enunciação, àsformas de produção e circulação dos textos e discursos. Em Discurso na artee discurso na vida (1926), texto que objetiva “tentar alcançar umentendimento do enunciado poético, como uma forma desta comunicaçãoestética especial, verbalmente implementada”,23 chama a atenção a maneiracomo o conceito de interação, considerado processo verbal e processo social,começa a ganhar singularidade na reflexão bakhtiniana. Mais tarde, ele serevela um esteio da concepção de linguagem do Círculo.

As contribuições bakhtinianas para uma teoria/análise dialógica do dis-curso, sem configurar uma proposta fechada e linearmente organizada, cons-tituem de fato um corpo de conceitos, noções e categorias que especificama postura dialógica diante do corpus discursivo, da metodologia e do pesqui-sador. A pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise dasespecificidades discursivas constitutivas de situações em que a linguagem edeterminadas atividades se interpenetram e se interdefinem, e do compro-misso ético do pesquisador com o objeto, que, dessa perspectiva, é umsujeito histórico.

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NOTAS

1 Paulo Bezerra, “Prefácio à segunda edição brasileira”, em Mikhail Bakhtin, Problemas da poéticade Dostoiéviski, trad. Paulo Bezerra, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. X.

2 Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiéviski, trad. Paulo Bezerra, 3. ed., Rio deJaneiro, Forense Universitária, 2002, p. 181.

3 Idem, p. 182.4 Idem, p. 183.5 Idem, p. 184.6 Cristovão Tezza, “A polifonia como categoria ética”, em Cult Especial Biografia, São Paulo,

n. 4, pp. 24-26.7 A respeito de carnavalização e gêneros, consultar: o texto “Carnavalização”, de Norma Discini,

(nesta obra); Irene Machado, “Gêneros discursivos”, em B. Brait (org.), Bakhtin: conceitos-chave, São Paulo, Contexto, 2005, pp. 151-66; B. Brait e R. Rojo, Gêneros: artimanhas do textoe do discurso, São Paulo, Pueri Domus/Escolas Associadas, 2002.

8 Mario Vargas Llosa, O falador, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, p.65.9 Idem.10 Idem, p. 78.11 Idem, p. 86.12 Idem, p. 87.13 Jornal do Brasil, 12/4/1975.14 François Dosse, História do estruturalismo: o canto do cisne de 1967 aos nossos dias, trad.

Álvaro Cabral, São Paulo/Campinas, Editora Ensaio/Editora da Unicamp, 1994, p. 493.15 A edição espanhola, traduzida por Tatiana Bubnova e datada de 1992, traz unicamente a assina-

tura de Valentin Nikólaievich Voloshinov.16 A respeito de interdiscurso, ver nesta obra o texto “Interdiscursividade e intertextualidade”, de

José Luiz Fiorin.17 Para uma melhor compreensão desse aspecto, ver: Carlos Alberto Faraco, Linguagem e diálogo:

as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin, Curitiba, Criar, 2003.18 Marilia Amorim, “A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e

epistemológica”, em M. T. Freitas et al., Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de MikhailBakhtin, São Paulo, Cortez, 2003, p. 12.

19 M. Bakhtin, Estética da comunicação verbal, trad. Paulo Bezerra, 4. ed., São Paulo, MartinsFontes, 2003, p. 45.

20 “La palabra en la vida y la palabra en la poesia. Hacia una poética sociológica, por ValentinVoloshinov (M. M. Bajtin)”. In: Mijail M. Bajtin, Hacia una filosofia Del acto ético. De losborradores. Y otros escritos, trad. Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997.

21 Mijail M. Bajtin, Hacia una filosofia del acto ético: De los borradores. Y otros escritos, trad.Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997.

22 Augusto Ponzio, “Para una filosofía de la acción responsable”, em Mijail M. Bajtin, Hacia unafilosofia del acto ético – De los borradores. Y otros escritos, trad. Tatiana Bubnova, Barcelona,Anthropos Editorial, 1997, p. 236.

23 Discurso na arte e discurso na vida.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, Marilia. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética eepistemológica. In: FREITAS, M. T. et al. Ciências Humanas e pesquisa: leituras de MikhailBakhtin. São Paulo: Cortez, 2003.

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Análise e teoria do discurso BETH BRAIT

Bakhtin, Foucault,Pêcheux

Maria do Rosário Gregolin

A história de uma ciência é um conjunto indefinidamente móvel deescansões, defasagens, coincidências, que se estabelecem e se desfazem.

(Michel Foucault, As palavras e as coisas)

ENTORNOS DA HISTÓRIA

Escansões, defasagens, coincidências: tais são, segundo Foucault, osentornos da história agindo sobre o desenvolvimento das teorias. Apanharalguns dos fios que entrelaçam esses entornos, iniciar uma discussão sobrenossas “heranças e filiações” no campo da análise do discurso (AD) praticadaatualmente no Brasil são os objetivos deste artigo. Por meio de uma revisitaçãoa alguns momentos da constituição dessa disciplina, centrada particular-mente nas propostas de Pêcheux, Bakhtin e Foucault, procuro caminharem direção à história da construção conceitual que interliga o discurso, osujeito e a sociedade. Esse movimento é motivado pela tentativa de rebateralgumas idéias muito freqüentes hoje em dia, como, por exemplo, as que

BAKHTIN outros conceitos-chave

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afirmam que: a) tudo é AD e b) a AD carece de identidade teórica. Na basedessas afirmações está a não consideração dos lugares ocupados por certosautores e suas formulações, das diferenças teóricas e metodológicas e, con-seqüentemente, da existência de diferentes projetos no interior de um grandecampo do saber, hoje denominado “AD”.

Ao mesmo tempo, ao pensar sobre “nossas heranças e filiações”, abre-sea possibilidade de discutir a circulação de certos slogans como “a AD

pecheutiana só trabalha com o ideológico” ou “Foucault nada tem a vercom discurso”; ou, ainda, a redução de um pensador como Bakhtin a umpunhado de conceitos como “gênero”, “dialogismo”, etc., desligados docontexto histórico e político em que foram produzidos.

Enfim, na base de minha argumentação está a interrogação: como enu-merar esses nomes de autores sem transformá-los em fetiches teóricos? Ou, emoutras palavras: como fugir do apagamento da dimensão histórica da AD eenxergar a contribuição de cada um deles num certo momento da constru-ção de um grande projeto teórico que atravessou o século XX e se estende atéos nossos dias?

Tenho, portanto, o objetivo de iniciar uma discussão necessária, atual-mente, para o campo da AD no Brasil, atravessado pelo apagamento da sin-gularidade das posições, posicionando-me contra a homogeneização que,nas palavras de Courtine1 “amalgama, neutraliza e torna indistinguível sobuma etiqueta consensual posições teóricas contraditórias”. Mais do que nunca,é necessário resgatar as fundações teóricas dos projetos desses diferentesautores, as exigências teóricas dos seus textos fundadores para, a partir des-se movimento, problematizar a própria noção de “herança”, isto é, lançaraos analistas de discurso o desafio de nos perguntarmos: “como esses auto-res foram e estão sendo lidos, interpretados e postos em funcionamento emtrabalhos atuais no Brasil?”

LUGARES DE AUTORIA

Proponho enxergar lugares de autoria na história dos desenvolvimentos daAD, a partir dos diálogos teóricos que Pêcheux trava com os pensamentos deBakhtin e Foucault. Desse ponto de vista, ao pensar as propostas desses auto-

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res no interior do projeto teórico pecheutiano, é possível visualizar diferentesmomentos da história epistemológica da AD. Assim, esses três Michéis (comsuas singularidades) tomam seu sentido no interior do projeto de constitui-ção – desde o final dos anos 1960, na França – de uma análise do discursoque adotou, num primeiro momento, o discurso político como objeto privi-legiado. Essa tentativa – totalmente identificada com o marxismo e a psicaná-lise – fez da Lingüística uma referência metodológica essencial. Portanto, osdiálogos entre Pêcheux, Foucault e Bakhtin envolveram diferentes respostas àarticulação entre teorias lingüísticas, teorias do sujeito e teorias da história eda sociedade. Observando os distanciamentos e as aproximações entre essasdiferentes formulações, perceberemos que o solo epistemológico da AD foifertilizado pela interpretação que cada um desses autores fez daquilo quePêcheux chamou de “tríplice aliança”, em torno de Saussure, Marx e Freud.A ênfase, as aproximações e os distanciamentos em relação a essa tríade deter-minaram a arquitetura das propostas.

Do mesmo modo, é preciso considerar que, enquanto Pêcheux e Foucaultviveram intensamente as lutas políticas da França entre 1960-1980, Bakhtinproduziu sua obra teórica em outro tempo e espaço, e, por isso, ele participada AD como um “outro”, uma leitura, uma interpretação. Nesse sentido, aleitura que Pêcheux faz de Bakhtin é determinada por várias distâncias: par-ticipando da “primeira recepção” de Bakhtin na França, no final dos anos1960,2 como todos os que o leram naquele momento, Pêcheux tinha umavaga referência sobre aquele teórico russo de quem se traduzia Marxismo efilosofia da linguagem e Problemas da poética de Dostoiévski, obras escritas naUnião Soviética do final dos anos 1920.3 Como sabemos, a obra de Bakhtiné muito ampla e diversificada e ainda hoje não totalmente conhecida.

Nas décadas de 1960-1970, momento da primeira recepção de Bakhtinna Europa, as obras traduzidas incidem sobre problemas da literatura,razão pela qual ele será uma referência fundamental para os estudiosos deTeoria Literária. Segundo Brait,4 Marxismo e filosofia da linguagem, obrade grande interesse para os estudos lingüísticos, datada de 1929 e traduzidano final da década de 1960, na verdade terá realmente repercussão nadécada de 1980, quando aparece como uma forma de incorporar aos es-tudos lingüísticos uma concepção de linguagem diferente da Lingüísticapós-saussureana, na medida em que incluía a história e o sujeito. Assim,

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BAKHTIN outros conceitos-chave

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Bakhtin, nesse primeiro momento de sua leitura no Ocidente, teve umimpacto muito mais forte sobre os estudos literários do que sobre os estu-dos lingüísticos. Hoje, livros de Bakhtin como Problemas da poética deDostoiévski e A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Mé-dia e no Renascimento, mesmo tendo a literatura como objeto principal, étomado por lingüistas como fonte para a reflexão sobre gênero, polifonia,cronotopo, carnavalização, formas de incorporação do outro à linguagem,definição do “outro” bakhtiniano, vozes, etc.

Essas distâncias temporais e espaciais explicam, em certa medida, asrecusas expressas por Pêcheux em relação a Bakhtin. Da mesma forma, astransformações teóricas e políticas ocorridas entre os anos 1960-1980 en-curtarão essas distâncias e levarão o projeto pecheutiano a incorporar pro-postas bakhtinianas. Essa incorporação virá através dos trabalhos de J.Authier-Revuz e trará para a AD a idéia de heterogeneidade, indicando umavia para a análise das relações entre o fio do discurso (intradiscurso) e ointerdiscurso, na análise das não-coincidências do dizer.5

O projeto pecheutiano de AD se delineia inicialmente em uma época derecusas. Fortemente assentada nas teses althusserianas, entre 1969 e 1975,a obra de Pêcheux estabelece um diálogo conflituoso com Foucault e Bakhtin.A partir de 1976, deslocando-se de posições dogmáticas (tanto políticasquanto teóricas), Pêcheux faz a crítica das propostas da “primeira época”,remodela o edifício teórico e se aproxima desses autores, incorporando con-tribuições que abrem diversas perspectivas para a análise de discursos.

Assim, o que Pêcheux chamou de “três épocas da AD”6 revela os emba-tes, as reconstruções, as retificações operadas na constituição do campoteórico em torno da articulação entre a língua, o sujeito e a sociedade. Nodecorrer das três épocas, essa articulação será construída a partir das refle-xões de Althusser às quais Pêcheux acrescenta aportes de Foucault e deBakhtin. Um percurso feito de lutas, combates, escansões. Afinal, nada émais estranho ao pensamento desses autores do que a idéia de um desenvol-vimento contínuo, teleológico do saber científico, que atingiria sua pleni-tude num certo momento. Ao contrário, esse diálogo do pensamento dePêcheux com os outros Michéis se dá sob a forma da descontinuidade, doemaranhado de descontinuidades que afasta qualquer possibilidade tantoda linearidade quanto da idéia de um projeto unificador do saber.

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GRANDES RECUSAS: DIVERGÊNCIAS ENTRE PÊCHEUX EBAKHTIN

No interior do grupo de Michel Pêcheux, as discussões sobre as propos-tas de Bakhtin ocorreram em meados dos anos 1970, e ele foi visto, pelamaioria dos integrantes, como um pensador que trazia grande contribuiçãoaos estudos de análise do discurso na medida em que a sua translingüísticarecuperava a dimensão histórica, social e cultural da linguagem. MichelPêcheux, no entanto, não concorda com Bakhtin em dois pontos cruciais:a) a crítica bakhtiniana ao “objetivismo abstrato” de Saussure e b) a inser-ção bakhtiniana em concepções “marxistas” que, para Pêcheux, pertencemao “sociologismo” e ao “humanismo teórico”.

Por isso, diante daquilo que era até então conhecido das propostas deBakhtin, as discordâncias principais de Pêcheux envolvem seus diferentesposicionamentos em face da teoria lingüística e de uma teoria do social eda história.7

DUAS LEITURAS DE SAUSSURE

Tanto Pêcheux quanto Bakhtin retornam a Saussure a fim de discuti-rem o objeto da Lingüística estrutural (a langue, como sistema abstrato,formal) e proporem um novo objeto – o discurso. Mas esse retorno se dáde maneira diferente nos dois autores, o que provoca a discordância dePêcheux com a leitura de Bakhtin. Novamente, são duas leituras que sedão em momentos históricos diferentes e por isso produzem diferentesefeitos de sentido.

Em toda a obra de Pêcheux, a reflexão sobre a relação entre a Lingüís-tica fundada por Saussure e a teoria do discurso é essencial. Para ele, Saussuremostrou a complexidade da língua, entendendo-a, ao mesmo tempo, comoinstituição social e como sistema de signos. Pêcheux8 e Gadet procuram evi-denciar que a Lingüística pós-saussureana obscureceu a idéia do “valor” ecentralizou-se na separação radical entre língua e fala e que isso a) levou aLingüística a abandonar o estudo da Semântica e b) abriu a porta para oformalismo e o subjetivismo (já que a parole é pensada como individual e,por isso, o objeto da Lingüística deve ser a langue, pensada como sistema

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abstrato e coletivo). Essa leitura, segundo Pêcheux, deixou na sombra agrande inovação de Saussure, a descoberta do real da língua – o fato de queo equívoco é um fato estrutural9 e, por isso, contém a possibilidade dametáfora, dos deslizamentos, dos jogos de palavras (o jogo nas regras e ojogo com as regras). Visto dessa maneira, o sistema contém a regulação e acriatividade e torna possível, simultaneamente, a “felicidade da simetria e odrama da abertura de cada palavra”.10 Esse fato incontornável faz com quea fronteira que separa o lingüístico e o discursivo seja constantementerecolocada em causa em toda prática discursiva, pois as “sistematicidades”não existem sob a forma de um bloco homogêneo de regras organizadas àmaneira de uma máquina lógica.

Acatando a idéia de que nas propostas saussureanas apresenta-se essa com-plexidade do objeto “língua” – e que, portanto, não há um corte entre alangue e o discurso –, Pêcheux não concorda com as críticas formuladas porBakhtin/Voloshinov ao “objetivismo abstrato” de Saussure. Esse é o primeiroponto de sua recusa às teses bakhtinianas: ele entende que há um erro deavaliação em Marxismo e filosofia da linguagem11 e coloca-se do lado dos traba-lhos do Círculo Lingüístico de Moscou (principalmente de Jakobson) e dosformalistas. Evidentemente, não podemos nos esquecer de que, diferente-mente de Bakhtin – que tomou contato com as idéias do Curso de LingüísticaGeral logo após sua publicação, no início dos anos 1920, e se opõe à leituraque os “formalistas” fazem de Saussure12 –, Pêcheux, nos anos 1970, faz umaleitura de Saussure já fundamentada nos trabalhos de Godel13 sobre as fontesmanuscritas do Curso de Lingüística Geral e de Starobinsky14 sobre os estudossaussureanos dos anagramas. Assim, antes de atribuir a “leitura correta deSaussure” a Pêcheux ou a Bakhtin, é mais prudente que perguntemos: nãoestarão eles falando de dois diferentes “Saussures”?

Com base na tese de que houve uma leitura equivocada de Saussure,Pêcheux afirma que Bakhtin “tende a anular a dimensão própria da língua:opondo ao ‘sistema abstrato de formas lingüísticas’ o ‘fenômeno social dainteração verbal, realizada através da enunciação e dos enunciadores’; eleconduz à fusão da Lingüística em uma vasta semiologia”.15 Pêcheux enten-de que Saussure deve ser considerado como o inaugurador da ciência dalinguagem e, por isso, em torno de suas propostas devem continuar a seremgestadas as grandes questões da análise do discurso: a possibilidade de pen-

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sar os jogos da/na língua (a “felicidade da simetria/o drama da abertura”), aprodução da singularidade do sujeito na língua, assim como a articulaçãoentre a língua, a ideologia e o inconsciente.

DUAS LEITURAS MARXISTAS

O segundo pólo de críticas de Pêcheux em relação a Bakhtin diz respeitoàs suas diferentes maneiras de pensar a articulação entre o discurso, o sujeitoe o social a partir do marxismo. A posição fortemente althusseriana dos traba-lhos de Pêcheux – de 1969 a 1975 – leva-o a recusar o que chama de“sociologismo” de Bakhtin, entendido como o “anúncio de uma sociolingüísticamaterialista apoiada numa psicologia social herdada de Plekhanov”,16 queencontra suas garantias numa psico-sociologia da comunicação verbal. Se-gundo Pêcheux, na base das propostas bakhtinianas está a ideologia da Vida, ohumanismo teórico,17 que entendem a produção do discurso como fruto dacisão indivíduo/sociedade e o inscrevem na esfera das relaçõesinterindividuais.18 Assim, o segundo ponto teórico fundamental, em tornodo qual se assentam as críticas de Pêcheux a Bakhtin, é o modelo bakhtinianoda interindividualidade, que se fundamenta na idéia de interaçãosociocomunicativa. Para Pêcheux, a produção do sentido não pode ser pensa-da na esfera das relações interindividuais; do mesmo modo, ela não pode sertomada em relações sociais pensadas como interação entre grupos humanos.

Essa recusa a Bakhtin expressa uma crise no interior da “análise dodiscurso francesa”, uma divisão entre aqueles que Pêcheux classifica comolingüistas marxistas e aqueles rotulados como os sociologistas. Há, nessadivisão, uma luta teórica determinada pelas diferentes posições dos inte-lectuais franceses, nos anos 1970, no interior do Partido Comunista Fran-cês. Aliando-se à vertente dos lingüistas marxistas, Pêcheux critica os“sociologistas” que desenvolvem uma “sociolingüística materialista”centrada nas idéias de interação e dialogismo – o grande alvo de sua críti-ca são as posições expressas, por exemplo, por Marcellesi e Gardin.19 ParaPêcheux, essa sociolingüística é “um lugar de recobrimento da políticapela psicologia”, em que se desdobram sem perceber as “evidências” dosujeito individual e coletivo, da comunicação intersubjetiva.20 Marxista

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filiado às teses althusserianas, Pêcheux não poderia concordar com as te-ses de Bakhtin que articulam o signo ideológico, ao mesmo tempo, comoarena das lutas sociais e expressão íntima e pessoal de indivíduosinterlocutores. Essa discussão sobre as divisões entre as interpretaçõesmarxistas entremeava-se com a política, e os althusserianos travavam,naquele momento de crise do marxismo, uma batalha teórico-políticacontra o que denominavam de “reformismo”.21

Inserido nessa verdadeira guerra – que determinava aos grupos de inte-lectuais daquele momento que se perguntassem: “o que é ser marxista emLingüística?” – Pêcheux propõe que, a partir do materialismo histórico, épreciso “mudar de terreno” a fim de lutar contra o empirismo (desembara-çar-se da problemática subjetivista centrada no indivíduo) e contra o for-malismo (não entender a língua como uma máquina lógica e sem exterior –uma “língua de marcianos”). Isso implicava a introdução de novos objetostomados em relação ao “novo terreno teórico”.

As divergências fundamentais do grupo pecheutiano no que diz respei-to a Bakhtin era, certamente, essa relação com o marxismo, já que, apesarde não concordarem com a leitura que ele faz de Sausurre, tanto para Pêcheuxquanto para Bakhtin, duas idéias fundamentais assentam seus projetos deanálise do discurso: a) a língua é um sistema e, portanto, tem uma organi-zação que já prevê a possibilidade dos deslizamentos; b) a língua é umainstituição social. Esse caráter sistêmico e social da linguagem é a base apartir da qual será pensada a heterogeneidade dos processos discursivos. Alíngua é entendida como condição de possibilidade do discurso e a questãoa ser respondida é: se a língua é o lugar material onde se realizam os efeitosde sentido, de que é feita sua materialidade? Nos últimos textos de Pêcheux,desde 1980, a problemática do “real da língua” aliada ao problema do “realda história” será uma interrogação constante. E o grupo pecheutiano en-contrará nas formulações bakhtinianas respostas para entenderem essamaterialidade discursiva na análise da “heterogeneidade enunciativa”.

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PÊCHEUX, FOUCAULT: VOZES ENTREMEADAS

Para o desenvolvimento da obra de Pêcheux, Foucault foi sempre umadversário estimulante. Desde as primeiras formulações da AD pecheutianaencontram-se idéias derivadas da arqueologia do saber foucaultiana como oconceito central de formação discursiva. Foucault desenvolve essa noção comoum dispositivo metodológico para a análise arqueológica dos discursos, daía sua definição:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de

enunciados, semelhante sistema de dispersão e, no caso em que

entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas

temáticas se puder definir uma regularidade (uma ordem, correla-

ções, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por

convenção, que se trata de uma formação discursiva [...].22

Ao deslocar esse conceito para sua proposta de análise do discurso,Pêcheux dá a ela uma interpretação que fortalece os aspectos lingüísticos ea insere dentro das proposições althusserianas sobre o “primado da luta declasses”. O desenvolvimento desse conceito nuclear da AD mostra os confli-tos e as recusas de Pêcheux em relação a Foucault, na sua reticência ematribuir-lhe a autoria e o empréstimo.23 Novamente, as críticas em relação aFoucault ligam-se à teoria lingüística e à interpretação das teses marxistas.

Com relação à teoria lingüística, Pêcheux é categórico em afirmar queFoucault promove a elisão da língua e, portanto, nem coloca em causa se háalguma leitura saussureana sustentando o projeto foucaultiano de análisedo discurso. Se essa não é a preocupação central de Foucault – a ponto deele ter estabelecido como “sua” tríplice aliança os nomes de Nietzsche, Freud,Marx –, o conceito de “enunciado”, fartamente discutido em A arqueologiado saber, não deixa dúvidas de que ele está muito próximo da Semiologia,principalmente a barthesiana. Foucault define enunciado em relação à lín-gua, entendendo-a como um sistema de possibilidades de construçõesenunciativas. No entanto, para a análise arqueológica não interessa essecampo de virtualidades das formas lingüísticas. Partindo da idéia de que“não basta qualquer realização material de elementos lingüísticos, ou qual-quer emergência de signos no tempo e no espaço, para que um enunciadoapareça e passe a existir”,24 Foucault mostra que o que torna uma frase,

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uma proposição, um ato de fala em um enunciado é justamente a funçãoenunciativa: o fato de ele ser produzido por um sujeito, em um lugarinstitucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possi-bilitam que ele seja enunciado.

Toda a discussão sobre o conceito de enunciado é feita, em A arqueolo-gia do saber, a fim de precisar que o objeto da descrição arqueológica não é“o enunciado atômico – com seu efeito de sentido, sua origem, seus limitese sua individualidade”, mas “o campo de exercício da função enunciativa eas condições segundo as quais ela faz aparecerem unidades diversas (quepodem ser, mas não necessariamente, de ordem gramatical ou lógica)”.25

O exercício da função enunciativa, suas condições, suas regras de con-trole, o campo em que ela se realiza estão no centro das reflexões de Foucault,na medida em que entre o enunciado e o que ele enuncia não há apenasrelação gramatical, lógica ou semântica; há uma relação que envolve ossujeitos, que passa pela História, que envolve a própria materialidade doenunciado. É dessa perspectiva que ele pode afirmar:

[...] gostaria de mostrar que os “discursos”, tais como podemos

ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são

como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de

coisas e de palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta,

visível e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o discurso

não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre

uma realidade e a língua, o intrincamento entre um léxico e uma

experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos,

que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os la-

ços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e desta-

car-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. Essas

regras definem não a existência muda de uma realidade, não o uso

canônico de um vocabulário, mas o regime dos objetos. “As pala-

vras e as coisas” é o título – sério – de um problema; é o título –

irônico – do trabalho que lhe modifica a forma, lhe desloca os

dados e revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferen-

te, que consiste em não mais tratar os discursos como signos (ele-

mentos significantes que remetem a conteúdos ou a representa-

ções), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de

que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que

fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse

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mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse

“mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever.26

Quanto à relação com o marxismo, a partir do desenvolvimento dagenealogia do poder,27 as divergências tornam-se acirradas, pois Foucault dis-corda fundamentalmente das teses centrais de Althusser: os aparelhos ideo-lógicos, a centralidade do poder de Estado, a interpelação ideológica, oassujeitamento, a luta de classes, etc. Nesse sentido, conforme Pêcheux –devido às transformações políticas posteriores a 1978 –, se afasta das posi-ções althusserianas dogmáticas, seus pensamentos se aproximam.28

A teoria foucaultiana da microfísica do poder e das resistências vem deencontro às teses althusserianas, motivo pelo qual ele é acusado pelo grupopecheutiano de praticar um “marxismo paralelo”.29 Foucault afirma que opoder não é unitário e global, mas se constitui de formas díspares, hetero-gêneas, em constante transformação. Entendendo o poder como uma prá-tica social constituída historicamente, as análises da genealogia do poderfoucaultiana realizaram um importante deslocamento em relação à idéiados “aparelhos ideológicos de Estado”, pois propõem que não há uma rela-ção direta entre poder e Estado (considerado como um aparelho central eexclusivo de poder), mas que ele se manifesta em uma articulação de pode-res locais, específicos, circunscritos a uma pequena área de ação (“institui-ção”). Os micropoderes são formas de exercício do poder diferentes doEstado, a ele articulados de maneiras variadas e que são indispensáveis à suasustentação e atuação eficaz. Foucault situa sua análise no nível em que opoder intervém materialmente e atinge os indivíduos – na concretude deseus corpos – e penetra no seu cotidiano. Analisando os poderes molecularesque se relacionam com determinados saberes – sobre o criminoso, a sexua-lidade, a doença, a loucura, etc. –, sua análise concebe o poder não comouma dominação global e centralizada que se pluraliza, difunde e repercutehomogeneamente nos diversos setores da vida social, mas como tendo umaexistência própria e formas específicas. Essa concepção coloca, para osalthusserianos, dois grandes problemas, fundamentalmente políticos e teó-ricos. Politicamente, se o poder não tem um centro, a sua tomada pela classedominada e a modificação dos aparelhos de Estado não são suficientes parafazer desaparecer ou transformar, em suas características fundamentais, a

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rede de poderes que impera em uma sociedade. Por negar a idéia de “revo-lução” que poderia transformar o poder de Estado (e de seus aparelhos), osalthusserianos acusarão Foucault de “reformista”.

Teoricamente, a idéia de microfísica do poder faz com que as noções de“aparelhos ideológicos” e de “luta de classes” (centrais nas propostasalthusserianas) percam seu valor heurístico: como os poderes não estão si-tuados em nenhum ponto específico da estrutura social, se eles funcionamcomo uma rede de dispositivos sem um exterior possível, limites ou fron-teiras, para Foucault não existe, de um lado, aqueles que têm poder (“classedominante”), e, de outro, os que estão dele alijado (“classe dominada”). Osmicropoderes se disseminam por toda a estrutura social. Do mesmo modo,a resistência não tem um ponto fixo, mas pontos móveis, transitórios quetambém se distribuem por toda estrutura social, e há, no interior das pró-prias “classes”, microlutas pelo poder. Além disso, Foucault não relaciona osaber e o poder diretamente com a economia (a infra-estrutura), como nomarxismo clássico. Compreendido como materialidade, como prática, comoacontecimento, o saber está intimamente relacionado com os poderes. De-corre disso que Foucault não faz distinção entre ciência e ideologia. Eleevita, explicitamente, empregar o termo “ideologia”, por ser muito carrega-do de significados, o que não denota, entretanto, que ele não mobilize aidéia de luta pelo poder.

Situando a ideologia como história do saber, Foucault afasta a idéia deneutralidade objetiva da ciência e da ideologia como “falsa consciência”.Todo conhecimento (científico ou ideológico) só pode existir a partir decondições políticas – condições que determinam a possibilidade de forma-ção tanto do sujeito quanto dos domínios de saber. Todo saber é político;não porque gerado pelo Estado, mas porque tem sua gênese nas relações depoder. Saber e poder se implicam mutuamente. O poder quer gerir, con-trolar, aumentar a produtividade dos corpos (objetivo econômico e políti-co). Para conseguir essa gestão e controle, criaram-se as sociedades discipli-nares, por meio da organização do espaço e do controle do tempo. A vigi-lância é um dos seus principais instrumentos de controle, pois ao mesmotempo em que exerce um poder, produz um saber. Em suas últimas obras(A história da sexualidade, principalmente no seu volume 1, A vontade desaber), Foucault formula a existência de outras formas de poder além da

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disciplinaridade: analisando a sexualidade, vê que o seu controle também éexercido por um biopoder, cujos dispositivos envolvem a “segurança”, a“regulação”, etc.30

Decorre dessas idéias a análise de que o poder é produtor da ilusão deindividualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber (o hos-pício produz o louco como doente mental, personagem individualizado apartir da instauração de relações disciplinares de poder). O poder discipli-nar não destrói o indivíduo; ao contrário, o fabrica e, por isso, o indivíduoé um dos mais importantes efeitos do poder.

Pensando o “sujeito” como essa fabricação, realizada, historicamente,pelas práticas discursivas, é no entrecruzamento entre discurso, sociedade ehistória que poderemos observar as mudanças nos saberes e sua conseqüen-te articulação com os poderes. Para Foucault, o sujeito é o resultado de umafabricação que se dá por intermédio de dispositivos e suas técnicas. Portan-to, se o objetivo fundamental de Foucault é produzir uma história dos dife-rentes modos de subjetivação do ser humano na nossa cultura e, se essa históriaé constituída pelo discurso, a relação entre linguagem, história e sociedadeestá na base de suas reflexões. Usando as palavras de Foucault, para analisaros diferentes modos de subjetivação é preciso determinar e descrever “aproliferação dos acontecimentos através dos quais, graças ao quais e contraos quais se formaram as noções, os conceitos, os topoi que atravessam econstituem os objetos e engendram os discursos que falam sobre eles.”31

Assim, em vez de considerar o discurso como uma série de acontecimentoshomogêneos (as formulações individuais), Foucault distingue, na própriadensidade discursiva, diversos planos de acontecimentos possíveis (planoda emergência dos enunciados; do aparecimento dos objetos; dos tipos deenunciação; dos conceitos; das escolhas estratégicas; da derivação de novasregras; da substituição de uma formação discursiva por outra, etc.).

PÊCHEUX, BAKHTIN, FOUCAULT: CONVERGÊNCIAS

A partir de 1978, Pêcheux inicia um período de autocríticas que irá deslocá-lo, teórica e politicamente, das posições dogmáticas da “primeira época”. Es-sas retificações atingem pontos centrais das posições teóricas e políticas (como

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no anexo à edição inglesa de Semântica e discurso, publicada em 1978, cujotítulo é “Só há causa daquilo que falha”); dos pressupostos e procedimentosda AD (como em “L’étrange mirroir de l’analyse du discours”),32 1981); domarxismo ( Discurso: estrutura ou acontecimento?)33.34 A discussão da articula-ção entre discurso e história torna-se proeminente, trazendo com ela umaampla reformulação que integra a noção bakhtiniana de heterogeneidade eque resulta, entre outros deslocamentos:

a) na discussão sobre as relações entre a materialidade discursiva e o interdiscurso,com a leitura feita por Authier-Revuz35 das propostas de Bakhtin e a formulaçãodos conceitos de heterogeneidade mostrada e constitutiva;

b) no encontro com historiadores (Robin, Guilhaumou, Courtine), que traza rediscussão da relação entre discurso e história a partir da leitura daspropostas de Foucault e a incorporação das noções de “acontecimento”,“arquivo”, “práticas discursivas”, etc;

c) no papel decisivo da leitura de Bakhtin e de Michel de Certeau para que aAD incorporasse aquilo que Pêcheux chama de registro do ordinário do sentido:“Coloca-se cada vez mais a necessidade de entender esse discurso – na maiorparte das vezes silencioso – da urgência às voltas com os mecanismos desobrevivência: trata-se, para além da leitura dos Grandes Textos, de se pôrna escuta das circulações cotidianas, tomadas no ordinário do sentido”.36 Atransformação no objeto de estudos da AD traz novas questões ao deslocar-se dos discursos escritos-legítimos-oficiais para o registro dos diálogos,réplicas, narrativas, histórias, provérbios, aforismos, etc. Como em Bakhtin,encontra-se em De Certeau,37 em sua reflexão sobre a escrita da história, apreocupação com a alteridade, com a palavra do outro – o patois durante aRevolução Francesa, o possuído, o estrangeiro, o místico – e as formasutilizadas pelos sujeitos para se apropriarem dos códigos e lugares que lhesão impostos ou para subverterem as regras a fim de comporem novas formas(as invenções do cotidiano). Essas reflexões, em cuja base está um diálogocom as idéias da arquegenealogia de Foucault,38 traz para a AD a problemáticada tensão entre os poderes e as resistências e a crítica de Pêcheux, em seuúltimo texto, às teses althusserianas:

Esse caráter oscilante do registro do ordinário do sentido escapou

completamente à intuição do movimento estruturalista, que o fe-

chou totalmente no inferno da ideologia dominante e do empirismo

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prático, considerados como ponto-cego, lugar de pura reprodução

do sentido.39

A revisão teórico-metodológica, que aproxima a AD pecheutiana deFoucault, Bakhtin e De Certeau, leva à análise do real da língua e do real dahistória, integrados na produção “em espiral” de reconfigurações do corpus.São explicitadas, nos textos posteriores a 1978, a tematização daheterogeneidade, a idéia da alteridade (“presença do discurso do outro comodiscurso de um outro e/ou discurso do Outro”), as relações entre intradiscursoe interdiscurso (no “fio do discurso”, vestígios da memória discursiva), etc.

HERANÇAS, FILIAÇÕES...

A discussão das recusas e das aproximações entre o projeto da AD

pecheutiana e os projetos de Bakhtin e Foucault, apenas esboçada nestetexto, não propõe, evidentemente, que seja possível decidir “quem estavacom a razão”, porque as verdades científicas são relativas. A própria verda-de, conforme afirma Foucault, é uma construção histórica. Trata-se de en-tender essas “vontades de verdade” produzidas em certo contexto histórico,sob a ação e a determinação da História. É nesse sentido que podemoscompreender as singularidades das propostas desses autores, suas divergên-cias e convergências.

Ao mesmo tempo, a compreensão dessas singularidades pode permitirque se comece a enfrentar alguns efeitos provocados pela homogeneização –encontrada com freqüência em trabalhos brasileiros que afirmam filiar-se à“análise do discurso” – das propostas desses autores:

a) em relação à circulação das idéias de Bakhtin, promove-se uma“desmarxização” de suas formulações e a redução de suas propostas aconceitos operatórios desligados das motivações filosóficas que osengendraram. Essa “desmarxização” (que é, fundamentalmente, uma“des-historicização”) acaba produzindo como efeito o apagamento daspolêmicas estabelecidas entre Bakhtin e outros “marxistas” (como osalthusserianos e foucaultianos);

b) em relação ao desenvolvimento, no Brasil, da AD derivada de Pêcheux, adistância temporal e espacial provoca alguns efeitos interpretativos:

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• a maior parte dos textos produzidos na França a partir de 1975 ainda nãoforam suficientemente discutidos, e, por isso, mantêm-se fortemente avinculação com as teses althusserianas (“ideologia”; “sujeito assujeitado”,etc.) e as críticas a Bakhtin e a Foucault no que respeita à relação comSaussure e com o “marxismo”;• do mesmo modo, a circulação dos textos de Pêcheux, no Brasil, nãoacompanha a cronologia de sua produção em francês e isso leva à misturade conceitos estabelecidos em diferentes “épocas” (muitos conceitosfoucaultianos são incorporados sem que se alterem outros, de basealthusseriana, como, por exemplo, a convivência pacífica entre diferentesconcepções de “história” e “sujeito” conjugando “arquivo” e “forma sujeito”;“acontecimento”, “práticas discursivas” e “interpelação ideológica”);• apagando as polêmicas (teóricas e políticas), apagam-se as retificaçõesque o próprio Pêcheux realizou em seu projeto; assim, ao mesmo tempo,há uma “des-althusserianização” por meio da incorporação de conceitosdos outros autores e a reprodução das recusas a esses mesmos autores.

Será hoje a ocasião – quando nos voltamos para os inúmeros trabalhosbrasileiros que enumeram (como referências-fetiches teóricas), Pêcheux,Foucault e Bakhtin – de retomarmos a fala de Pêcheux40 de que é chegado omomento de começar a partir os espelhos?

NOTAS

1 J. J. Courtine, “A estranha memória da análise do discurso”, em F. Indursky e M. C. Leandro-Ferreira (org.), Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos,Claraluz, 2005.

2 Maldidier escreve: “Foi em 1968, em um artigo intitulado ‘Le mot, le dialogue, le roman’, queJulia Kristeva introduziu Bakhtin na França. Essa primeira recepção concerne essencialmente àliteratura, ao terreno da semiótica literária e das práticas significantes múltiplas. Os lingüistaspuderam ler, no nº 12 de Langages (preparado por Roland Barthes, 1968), um artigo de Bakhtinchamado ‘O enunciado no romance’. Nos anos 1980 começa um segundo período de descobertade Bakhtin, marcada pela multiplicação das traduções e dos estudos e a generalização das referên-cias em todos os campos, notadamente na Lingüística. Um pandialogismo parece, então, seinstalar, no qual as correntes as mais diversas se apropriam dele.” (D. Maldidier, “(Re)lire MichelPêcheux ajourd’hui”, em M. Pêcheux, L’inquiétude du discours, Paris, Cendres, 1990.)

3 Se hoje pensamos em um “Círculo de Bakhtin”, no momento da primeira recepção da obra naFrança encontramos uma espécie de “volatização” da autoria Voloshinov/Bakhtin. Isso significaque a própria constituição do lugar de autoria de Bakhtin foi uma construção posterior ao mo-mento da leitura que dele se fez na Europa nos anos 1970.

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4 B. Brait, “O discurso sob o olhar de Bakhtin”, em M. R. Gregolin e R. L. Baronas (orgs.), Análisedo discurso: as materialidades do sentido, São Carlos, Claraluz, 2001.

5 Acompanhar esses embates entre os teóricos exige, também, que se incorpore a dimensão trágicadas transformações históricas e políticas que determinou a interrupção brusca desse projeto naFrança, na metade dos anos 1980. Essa tragicidade envolve o desaparecimento desses e de outrosgrandes pensadores franceses entre 1975-1985.

6 M. Pêcheux, “Análise do discurso: três épocas”, em F. Gadet e T. Hack, Por uma análise automá-tica do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux, Campinas, Unicamp, 1995.

7 A leitura bakhtiniana de Freud provavelmente ainda não era conhecida, já que a tradução doestudo de Voloshinov/Bakhtin sobre o Freudismo (1927) só foi publicada, em francês, em 1982.

8 M. Pêcheux, Analyse automatique du discours, Paris, Dunod, 1969; M. Pêcheux, et al., “Lasémantique et la coupure saussurianne: langue, langage, discourse”, em Langages 24, Paris,Larrousse, 1971; M. Pêcheux, “L’étrange mirroir de l’analyse du discours”, em Langages 61,Paris, Larrousse, 1981.

9 Cf. F. Gadet, e M. Pêcheux, A língua inatingível: o discurso na história da Lingüística, Campinas,Pontes, 2004: “O espaço do valor é o de um sistêmico capaz de subversão em que, no máximo,qualquer coisa pode ser representada por qualquer coisa”.

10 M. Pêcheux, “Sobre a desconstrução das teorias lingüísticas”, em Línguas e InstrumentosLingüísticos (4/5), Campinas, Unicamp, 1998.

11 Gadet e Pêcheux (op. cit.) argumentam que escapou a Bakhtin a intuição fundamental de Saussurede que “a língua não poderia ser pensada completamente se a ela não se integrasse a possibilidadedo poético”.

12 “A translingüística proposta por Bakhtin incorpora na linguagem os fatores sociais que haviam sidoerradicados pelos lingüistas pós-saussureanos, [...] um dos modos pelos quais Bakhtin formula essadistinção é dizer que os lingüistas estudam a língua ao passo que ele está preocupado com a comu-nicação.” (K. Clark e M. Holquist, Mikhail Bakhtin, São Paulo, Perspectiva, 1998, p. 237.)

13 R. Godel, Les sources manuscrites du Cours de linguistique génerale, Géneve, Un. Géneve, 1957.14 J. Starobinsky, As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure, São Paulo,

Perspectiva, 1974.15 D. Maldidier, op. cit.16 Gadet e Pêcheux, op. cit.17 Essa crítica ao “humanismo teórico” de Bakhtin tem como base as teses althusserianas sobre os apare-

lhos ideológicos e o assujeitamento, que propõem um sujeito atravessado pela ideologia e pelo incons-ciente – um sujeito que não é fonte nem origem do dizer; que reproduz o já-dito, o já-lá, o pré-construído. A recusa ao “humanismo” fundamenta-se, portanto, na proposta de uma teoria nãosubjetivista, já que é a ideologia que interpela os indivíduos em sujeitos. Por outro lado, o grupo dos“humanistas”, na França dos anos 1970, criticava as teses althusserianas por serem “teoricistas”.

18 F. Gadet, e M. Pêcheux, op. cit.19 J. B. Marcellesi, e B. Gardin, Introdução à sociolingüística, Lisboa, Áster, 1975.20 D. Maldidier op. cit.21 Há vários textos de Pêcheux nos quais se pode ler essas batalhas teórico-políticas, como, por

exemplo: M. Pêcheux, Remontons de Foucault à Spinoza, em L’Inquietude du discourse, Paris,Cendres, 1990; M. Pêcheux, Há uma via para a Lingüística fora do logicismo e do sociologismo?,em Escritos 3, Campinas, Labeurbe/Nudecri, 1998.

Bakhtin, Foucault, Pêcheux MARIA DO ROSÁRIO GREGOLIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

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22 Foucault, A arqueologia do saber, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1986, p. 43.23 A noção de formação discursiva aparece, pela primeira vez, em M. Pêcheux, et al., “La sémantique

et la coupure saussurianne: langue, langage, discourse”, em Langages 24, Paris, Larrousse, 1971,mas lá ele o atribui “aos clássicos do marxismo”. “Apoiando-nos sobre um grande número depropostas contidas naquilo que se denomina ‘os clássicos do marxismo’, propomos que as forma-ções ideológicas, assim definidas, comportam, necessariamente, como um de seus componentes,uma ou mais formações discursivas interligadas, que determinam aquilo que se pode e se devedizer (articulada sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição,de um programa, etc.) a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada: o ponto essencial,aqui, é que não se trata somente da natureza das palavras empregadas, mas também (e sobretudo)das construções nas quais essas palavras se combinam, na medida em que elas determinam asignificação que essas palavras adquirem: como nós indicamos anteriormente, as palavras mu-dam de sentido de acordo com as posições sustentadas por aqueles que as empregam; pode-seprecisar, então: as palavras ‘mudam de sentido’ ao passarem de uma formação discursiva a umaoutra.” ( M. Pêcheux et al, “La sémantique et la coupure saussurianne: langue, langage, discourse”,em Langages, 24, Paris, Larrousse, 1971, pp. 102-3.)

24 Foucault, op. cit., p. 98.25 Idem, p. 122.26 Idem, pp. 55-6.27 Trata-se de ditos e escritos desenvolvidos no início dos anos 1970 e que foram reunidos poste-

riormente em livros: Foucault, Vigiar e punir: história da violência nas prisões, Petrópolis, Vozes,1987; Foucault, Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979.

28 Para discussão mais demorada sobre essas conflituosas relações, ver M. R. Gregolin, Foucault ePêcheux na análise do discurso, Diálogos e Duelos, São Carlos, Claraluz, 2004.

29 Essa polêmica com Foucault está explícita no texto “Remontons de Foucault à Spinoza”, produ-zido em 1977 e publicado em Pêcheux, L’Inquiétude du discours: Textes choisis par D. Maldidier,Paris, Cendres, 1990.

30 J. Revel, Foucault: conceitos essenciais, São Carlos, Claraluz, 2005.31 Foucault, “O sujeito e o poder”, em P. Rabinow e H. Dreyfus, Michel Foucault: uma trajetória

filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.32 M. Pêcheux, “L’étrange mirroir de l’analyse du discours”, em Langages 61, Paris, Larrousse, 1981.33 M. Pêcheux, Discurso, estrutura ou acontecimento, Campinas, Pontes, 1999.34 Nesse último texto de Pêcheux pode-se ler: “Como todos os saberes de aparência unificada e homo-

gênea, o dispositivo de base da ontologia dialética marxista foi capaz de justificar tudo, em nome daurgência. [...] Não se pode dizer que a escolástica produziu a inquisição, nem que o marxismoproduziu o Gulag, nem que o neo-positivismo produziu a servidão humana. No entanto, a capaci-dade justificadora desses sistemas filosóficos é incontestável” (Pêcheux op. cit., p. 63).

35 J. Authier-Revuz, Héterogéneité montrée et hétérogeneité constitutive: élements pour uneapproche de l’autre dans le discours, em DRLAV 26, 1982, pp. 91-151.

36 A análise das produções ordinárias aproxima a AD também dos estudos de Foucault que, desde oinício dos anos 1970, estava interessado em estudar o que ele chamou de “história dos homensinfames” (Foucault, Eu, Pierre Riviére, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, Riode Janeiro, Graal, 1977; Foucault, “A vida dos homens infames”, em Les cahiers du chemin 29).Na introdução à análise do dossiê Pierre Riviére (p. xii), Foucault explica: “Creio que o que nos

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fixou nesse trabalho [...] é que se tratava de um dossiê, isto é, de um acontecimento em torno doqual e a propósito do qual vieram a se cruzar discursos de origem, forma, organização e funçãodiferentes: o do juiz de paz, o do procurador [...] do médico de província e o de Esquirol; os dosaldeões com seu prefeito e seu cura. Por fim o do assassino. Todos falam ou parecem falar damesma coisa – pelo menos é ao acontecimento do dia 3 de junho que se referem todos essesdiscursos. Mas todos eles, e em sua heterogeneidade, não formam nem uma obra nem um texto,mas uma luta singular, um confronto, uma relação de poder, uma batalha de discursos e atravésde discursos”.

37 M. de Certeau, A escrita da História, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002; M. de Certeau,A invenção do cotidiano, tomos I e II, Petrópolis, Vozes, 1994.

38 Discutindo os fundamentos de seu método arquegenealógico de análise dos discursos, assim seexpressa Foucault: “O discurso anônimo, o discurso cotidiano, todas essas falas esmagadas, recu-sadas pela instituição ou afastadas pelo tempo, o que dizem os loucos nas profundezas dos asiloshá séculos [...] o que foi dito nessas condições, essa linguagem a um só tempo transitória eobstinada, que jamais ultrapassou os limites da instituição literária, da instituição da escrita, éessa linguagem que me interessa cada vez mais” (Foucault, Da arqueologia à dinástica, em M. B.da Motta (org.), Foucault: estratégia, poder-saber, Ditos e Escritos IV, Rio de Janeiro, ForenseUniversitária, 2003).

39 Pêcheux op. cit. Segundo o autor, este “é um dos pontos fracos da reflexão althusseriana sobre osAIE e de suas primeiras aplicações na AD na França.”

40 M. Pêcheux, “L’étrange mirroir de l’analyse du discours”, em Langages 61, Paris, Larrousse, 1981.

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CarnavalizaçãoNorma Discini

A COSMOVISÃO CARNAVALESCA

Bakhtin apresenta como uma das descrições mais antigas do carnavaluma visão mística do inferno vivenciada por um santo dos primórdios daIdade Média, São Grochelin, e relatada por um historiador normando doséculo XI, Orderico Vital. Uma procissão de almas errantes do purgatório,ocupadas em resgatar-se, assim é apresentada:1

À frente vêm homens vestidos de peles de animais que carregam

todo um aparato culinário e doméstico. Em seguida outros ho-

mens trazendo cinqüenta caixões sobre os quais estão empoleirados

curiosos homenzinhos com enormes cabeças, segurando vastas

cestas na mão. Depois dois etíopes com um cavalete de tortura

sobre o qual o diabo suplicia um homem, enfiando-lhe agulhas de

fogo no corpo. Em seguida vem uma multidão de mulheres a ca-

valo que saltitam sem cessar sobre as selas guarnecidas de pregos

incandescentes; vêem-se entre elas algumas mulheres nobres, al-

gumas reais e vivas no tempo da visão. Depois avança o clero e,

para fechar o cortejo, guerreiros envoltos em chamas.

BAKHTIN outros conceitos-chave

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Alerta Bakhtin para a interpretação cristã da cena infernal, no que dizrespeito ao relato tanto do visionário como do historiador, o que, segundoo filósofo russo, determina “o tom, o caráter, às vezes mesmo certos deta-lhes da narrativa de Oderico”.2 Dessa visão, identificada pelo santo e pelohistoriador como do “exército de Arlequim”, sendo Arlequim descrito comoum gigante armado de uma clava monumental, é destacado pelo estudiosoda linguagem, como elementos componentes do tom e caráter cristãos, “oterror de Gochelin, as lamúrias e lamentações das personagens, as puniçõesde que algumas são vítimas (o homem supliciado é o assassino de um padre,as mulheres são castigadas pela sua depravação)”.3

Alerta também Bakhtin para a ausência do termo e da noção de carna-val no relato dos homens medievais, mas acaba por demonstrar que, “ape-sar da influência deformadora das concepções cristãs [...] o caráter carnava-lesco de certas imagens e da procissão no seu conjunto é absolutamentecerto”.4 O que entende Bakhtin por caráter carnavalesco de certas imagens?Essa é a pergunta a partir da qual se iniciam as reflexões a ser aqui desenvol-vidas, as quais se apóiam fundamentalmente em duas obras do autor: ACultura Popular na Idade Média e no Renascimento:o contexto de FrançoisRabelais e Problemas da Poética de Dostoiévski5 ambas voltadas, cada qual asua maneira, para a questão do carnaval e da carnavalização.

Atentando primeiramente para o estudo sobre a obra de Rabelais, voltamosà citada visão mística do inferno. Bakhtin aponta como elementos do carnaval,entre outros, as figuras: do gigante, por seu corpo grotesco, o que por ora podeser entendido como afastado da estética realista e naturalista, naquilo que elatem de acabamento e estaticidade; das criancinhas empoleiradas sobre os cai-xões, pela alusão à ambivalência da morte que dá à luz; das entranhas tocadaspor pregos incandescentes como alusão à vida renovada. A ambivalência proje-ta o relato para uma dimensão carnavalizada: é o que veremos.

São ainda dados por Bakhtin como eminentemente carnavalescos oshomens vestidos de peles de animais e armados de utensílios culinários edomésticos. A partir da orientação oferecida pelo autor, justifica-se a natu-reza carnavalesca de todas essas figuras pela excepcionalidade e inacabamentoda apresentação. Dessa carnavalização não se excluem as mulheres saltitan-tes sobre selas. O galope/ coito que não cessa contém sugestão ao “baixo”material e corporal regenerador.

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É, entretanto, o aspecto de “procissão dos deuses destronados” oenfatizado por Bakhtin como elemento carnavalesco do sonho de SãoGrochelin, já que os pecadores eram apresentados como antigos senhoresfeudais, cavaleiros, damas da alta sociedade, eclesiásticos, todos transfor-mados em almas destronadas. Nesse ponto e a título de curiosidade,Bakhtin observa como característico o fato de que desde a segunda meta-de do século XIX estudiosos alemães identificaram a origem alemã da pala-vra carnaval, “que teria a sua etimologia de Karne ou Karth, ou ‘lugarsanto’ (isto é, a comunidade pagã, os deuses e seus servidores) e de val (ouwal) ou ‘morto’, ‘assassinado’”.6

À penetração dos elementos carnavalescos na visão oficial do inferno,fato consumado na obra de Rabelais, Bakhtin chama carnavalização do in-ferno: o inferno, como símbolo da cultura oficial, como encarnação doacerto de contas, como imagem do fim e do acabamento das vidas e dojulgamento definitivo sobre elas, é transformado em alegre espetáculo, bompara ser montado em praça pública e no qual o medo é vencido pelo riso,graças à ambivalência de todas as imagens. O inferno carnavalizado, apre-sentado por Bakhtin como constituinte do sistema de imagens rabelaisianas,testemunha a permutação do alto e do baixo ou a lógica da inversão, pró-pria à cultura popular: os grandes são destronados, os inferiores são coroa-dos. Esse inferno confirma ainda dois princípios da literatura cômica popu-lar, fonte para a criação de Rabelais: o do inacabamento de tudo o que há eo dos baixos regenerados, porque regeneradores. Como vemos, a cosmovisãocarnavalesca não diz respeito à “concepção espetaculosa-teatral do carnaval,bastante característica dos tempos modernos”, como alerta Bakhtin.7 Acosmovisão carnavalesca diz respeito, segundo essa fonte, a “uma grandiosacosmovisão universalmente popular dos milênios passados”.

Vamos à obra de Rabelais, Gargântua e Pantagruel.8 Nela é narrada asaga de ambos os gigantes: Gargântua, o pai, e Pantagruel, o filho. A traje-tória de Gargântua é desenvolvida no Livro Primeiro e a de Pantagruel aolongo dos livros Segundo, Terceiro, Quarto e Quinto. Em episódio do ca-pítulo XXX, do Livro Segundo, apresenta-se o amigo de Pantagruel, Panúrgio,às voltas com a ressurreição de um guerreiro aliado, Epistemon, morto emcombate.9 Ressalta-se que, entre as providências de Panúrgio, apresenta-sea primeira: “Pegou a cabeça [de Epistemon] e a apertou contra a sua bragui-

Carnavalização NORMA DISCINI

BAKHTIN outros conceitos-chave

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lha, a fim de que não tomasse vento”. O relato das experiências no infernoé feito pelo ressurrecto logo depois que começou a respirar: “De súbitoEpistemon começou a respirar, depois abriu os olhos, depois bocejou, de-pois espirrou, depois deu um peido com todo o gosto”. A este último gestode Epistemon segue imediatamente o diagnóstico de Panúrgio: “A estashoras ele já está seguramente curado”.

Vejamos parte da cena da ressurreição do guerreiro:

E então começou a falar, dizendo que tinha visto os diabos, con-

versado familiarmente com Lúcifer e se divertido muito no infer-

no e nos Campos Elíseos. E afirmava na frente de todos que os

diabos eram bons sujeitos. A respeito dos danados, disse que esta-

va aborrecido por ter Panúrgio tão cedo lhe feito voltar à vida.

“Pois, disse ele, eu me divertia muito em vê-los. – Como? disse

Pantagruel. – Não são tratados tão mal como pensais, disse

Epistemon; mas o seu estado é mudado de modo bem estranho.”

Pois vi Alexandre o Grande que remendava velhos calções e assim

ganhava a vida.10

Prossegue a narração sobre o cotidiano no inferno. Xerxes lá vendemostarda, Rômulo é lenhador, Dario limpador de latrinas, ao que juntao ressurrecto:

Todos os cavaleiros da mesa redonda são pobres remadores, que

fazem a travessia dos rios Cócito, Flegeton [e outros] [...], quando

os senhores diabos querem passear na água [...]. Mas para cada

passagem só ganham um piparote no nariz e à noite um pedaço de

pão duro. [...] Dessa maneira os que foram grandes senhores neste

mundo terão uma vida pobre e trabalhosa lá embaixo. Ao contrá-

rio os filósofos e os que foram indigentes neste mundo lá serão

grandes senhores por sua vez. Vi Diógenes que andava

magnificamente, com uma grande túnica de púrpura e com um

cetro na destra, e ralhava com Alexandre o Grande quando este

não remendava direito os calções, e lhe pagava com bastonadas.

[...] Vi Pathelin, tesoureiro de Radamento, querendo comprar os

pastéis que o Papa Júlio vendia, perguntar-lhe quanto custava uma

dúzia. “Três blancs, disse o papa.” Mas Pathelin lhe disse: “– Três

bordoadas é o que mereces; sai daqui, vilão, sai daqui, vai procurar

outros.” O pobre papa foi-se embora chorando; quando se viu

diante de seu patrão pasteleiro, disse-lhe que tinham lhe tirado os

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pastéis. Então o seu senhor lhe deu uma chicotada tão forte que a

sua pele não serviria para fazer cornamusas.

Procurando entender as imagens rabelaisianas segundo a orientação deBakhtin, vemos aí confirmada a lógica das permutações, as quais, por suavez, remetem à relatividade das verdades para que se definam as degrada-ções próprias a um mundo dado ao revés. Tais degradações são demonstra-das no exercício do destronamento do papa e do imperador e na configura-ção da flatulência como diagnóstico definitivo da ressureição de Epistemon.Entendidas, então, como o ato de entrar em comunhão com a vida da parteinferior do corpo, dada como “baixo produtivo”, as degradações, própriasda cultura cômica popular, justificam a ressurreição do soldado após o aque-cimento de sua cabeça nas braguilhas de Panúrgio. As degradações rebai-xam o corpo ao dá-lo como aproximado da terra. Mas a terra, vista comotúmulo, ventre, nascimento e ressurreição, viabiliza o movimento de rege-neração dos baixos. O baixo material e corporal concebido na sua funçãoregeneradora ampara-se na reversibilidade dos movimentos, o que é fundantedo grotesco. A função regeneradora do rebaixamento grotesco compõe acosmovisão carnavalesca.

A propósito, no parto de Pantagruel temos o lamento de Gargântuapela perda da esposa: “Ah! falsa morte, és má, és ultrajante, roubando-meaquela à qual a imortalidade pertencia por direito!”, desabafo seguido daexplicação do narrador: “Assim falando, [Gargântua] chorava como umavaca, mas, ao mesmo tempo, ria como um bezerro, quando lhe vinha àmemória seu filho Pantagruel”.11 Na seqüência das comparações disparata-das, um epitáfio feito pelo esposo para prantear a amada morta contribuipara reverter a dor da perda. O efeito de nonsense é então amparado pelaargumentação tautológica dos dois versos finais:

Rezai a Deus, rezai por ela,

Pra ter a paz que mereceu.

Deixou o mundo, pura e bela,

No ano e dia em que morreu.

Não poderia ser dado na seriedade confirmadora das aspirações e cren-ças do mundo oficial o epitáfio feito por Gargântua, pois o que permeia acena é a relação aberta e reversível entre morte e nascimento, dada sob a

Carnavalização NORMA DISCINI

BAKHTIN outros conceitos-chave

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perspectiva da degradação carnavalesca. Em consonância ao sistema de ima-gens rabelaisianas, tal como descrito por Bakhtin, o epitáfio tinha dediscursivizar-se por meio do princípio da movimentação, segundo o qual olamento se ancora no riso e o pranteador se junta à vaca que chora. Assim seconstitui o realismo grotesco.

A IMAGEM GROTESCA

Vamos à Roma do século XV. O termo grotesco, segundo Bakhtin, tevena origem a acepção de metamorfose “em movimento interno da própriaexistência”.12 Uma pintura ornamental encontrada no século XV nas pare-des subterrâneas das termas de Tito, denominada grottesca devido ao subs-tantivo grotta (gruta), reunia representações de formas vegetais, animais ehumanas que se transformavam e se confundiam entre si. O termo grotescopassou então a exprimir a “transmutação de certas formas em outras, noeterno inacabamento da existência”.13 Bakhtin alerta também para o fato deque “o motivo ornamental romano era apenas um fragmento (um caco) doimenso universo da imagem grotesca que existiu em todas as etapas daAntigüidade e que continuou existindo na Idade Média e noRenascimento”.14 Para isso são enfatizados os elementos de leveza, liberda-de e “alegre ousadia, quase risonha”, segundo os quais se apresentavam asfiguras descobertas durante as escavações.

Lembrando a mãe de Pantagruel que, na cena citada da obra deRabelais, morreu ao dar à luz, destacamos a idéia do “inacabamento daexistência” nesse modo de representar a morte, assim incorporada à con-cepção cômica do mundo. Esse olhar sobre a morte alia-se a outro, o dacontemplação do corpo nas suas fendas e aberturas, nos seus buracos,enfim. Não custa voltar os olhos para aquele corpo idealizado peloascetismo cristão segundo a celsitude e idealizado pelos cânones clássicossegundo o acabamento e a perfeição. Esse corpo é rebaixado pelo pontode vista que constrói a imagem grotesca. Compatível com a vida corporaldada na sua inesgotabilidade e não sancionada por um olhar normalizador,emerge a imagem grotesca emparelhada à loucura alegre do carnaval e dasfestas populares da praça pública. Adiantamos, entretanto, que essa praça

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pública poderá legitimar-se em espaço interno, tal como uma sala de visi-tas. É o que veremos adiante.

Neste momento, para que examinemos a concretização do corpo gro-tesco na literatura, tomemos outra personagem de Gargântua e Pantagruel:a velha que mostra ao diabo “sua como-é-que-se-chama” e por isso salva omarido das garras do inimigo. Essa velha é emblemática da cosmovisãocarnavalesca e se encontra no episódio “De como o diabo foi enganado poruma velha papafigas”, narrado no Livro Quarto, intitulado “Dos fatos editos heróicos do nobre Pantagruel” (capítulo XLVII).15

Antes, porém, façamos uma digressão. É interessante observar que emambos os episódios antecedentes ao da velha, chamada papafigas como osoutros habitantes da ilha na qual Pantagruel desembarcara, explicita-se a pró-pria designação daquele povo (capítulo XLV) e a razão por que o demôniodeveria atacar o lavrador, marido da velha (capítulo XLVI).16 A designação sejustifica por uma ofensa cometida pelos Galhardetes, antigo nome dospapafigas: aquelas pessoas “diante do retrato papal tinham feito figa”, justa-mente numa festa na ilha vizinha de Papimania. Os papimanos se vingaram:

Para se vingar, os papimanos, alguns dias depois, sem dizerem uma

palavra, puseram-se todos em armas, surpreenderam, saquearam e

arruinaram a ilha dos Galhardetes, passaram a fio da espada todo

homem que tinha barba. Às mulheres e aos jovens perdoaram com

condições semelhantes às que o imperador Frederico Barbarossa

usou com os milaneses.

A narração das condições estabelecidas pelo imperador Frederico paraperdoar os milaneses é por sua vez antecedida pelo relato das ações corres-pondentes à rebelião desse povo, entre as quais está a expulsão da impera-triz “ignominiosamente montada em uma velha mula chamada Tacor, ca-valgando às avessas, quer dizer, o cu virado para a cabeça da mula, e o rostopara as ancas”. O imperador em seu regresso, tendo subjugado e prendidoos revoltosos e tendo recuperado a célebre mula Tacor, impõe aos revoltososo castigo efetuado pelo carrasco. Vejamos o castigo:

Por sua ordem o carrasco pôs nos membros vergonhosos de Tacor

uma figa, presentes e vendo os cidadãos cativos; depois gritou, de

parte do imperador, ao som da trompa, que quem quer deles que

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quisesse se livrar da morte teria de arrancar publicamente a figa

com os dentes, depois a colocar no lugar devido, sem ajuda das

mãos. Quem quer que se recusasse, seria no mesmo instante en-

forcado e estrangulado. Alguns deles tendo vergonha e horror de

tão abominável provação, a sobrepuseram ao temor da morte e

foram enforcados. A outros o temor da morte foi mais forte do

que tal vergonha. Esses, tendo com os dentes tirado a figa, a mos-

travam ao carrasco abertamente, dizendo: Ecco lo fico.

Em igual ignonímia, o resto daqueles pobres e desolados galhardetes

foram da morte poupados e salvos. Tornaram-se escravos e tribu-

tários e foi-lhes imposto o nome de papafigas.

Na progressão do narrado, apresenta-se entre os míseros papafigas olavrador, marido da velha. Era um homem que “semeava trigo no dia e nahora em que um diabinho (o qual ainda não sabia trovejar, somente poden-do estragar a salsa e a couve, e também não sabendo ler nem escrever) tinhaa Lúcifer pedido ir àquela ilha de Papafigas para se recrear e se divertir”.Diante do lavrador, o diabinho atribui a si direitos de posse sobre o campo,confirmando o momento de origem dos seus direitos: “desde o tempo e ana hora em que ao papa fizestes figa”. É feita então pelo diabo a exigênciada divisão do lucro na colheita do trigo: “Eu escolho o que ficar na terra; tuterás o que ficar por cima”. Não conhecedor da lavoura, o representantedos infernos fica com a palha deixada na terra e concede ao homem os grãosa ser ceifados. No mercado, o diabinho, que viera acompanhado por umséquito, vê-se na impossibilidade de vender seu produto e, ainda, para maiordesgosto, vê-se cercado da zombaria dos camponeses. Inquirido, o lavradorexplica: “O grão que vedes, na terra é morto e corrompido; a corrupçãodele é a geração do outro que me vistes vender. Assim escolhestes o pior. Épor isso que sois maldito no Evangelho”.

Em novo acordo para outra lavoura, a dos rábanos, o diabo decide retero que ficaria em cima da terra. Manda o homem trabalhar, enquanto infor-ma sobre o que vai fazer: “Vou tentar os heréticos, que são apetitosa carneassada; o senhor Lúcifer está com cólica e isso lhe fará muito bem”. Novadecepção ocorre para o diabinho que, no mercado, presencia o lavradorvender os rábanos, enquanto ele próprio, com as folhas da planta nas mãos,torna-se alvo de zombaria pela segunda vez. Para se vingar, o pequeno demomarca um arranhamento mútuo com o lavrador para dali a uma semana:

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quem vencesse ficaria com o campo todo. Enquanto isso, sai o diabinho àcaça de almas “de advogados perversores do direito e espoliadores dos po-bres”, entre outras, para as refeições de Lúcifer.

O dia escolhido para a contenda foi aquele em que chegaram à ilhaPantagruel e seus seguidores, para quem o lavrador conta sua história. En-tretanto, mal o lavrador terminara o relato, chega a todos a notícia de que avelha enganara o diabo e ganhara o campo. Confrontada com o diabrete,que entrara em sua casa disposto a acabar com o “vilão”, a velha se queixado marido para o apadrinhado de Lúcifer. Para isso deita-se no chão, “cho-rando e se lamentando”:

“Ah! disse a velha, ele me disse, o carrasco, o tirano, o arranhador

dos diabos, que tinha marcado um encontro convosco para se ar-

ranharem; para ensaiar as unhas, ele me arranhou apenas com o

dedo mindinho aqui entre as pernas e me deixou toda machucada.

Estou perdida, não vou me curar jamais. Vede. E ainda foi à casa

do ferreiro, para apontar e afiar as unhas ainda mais. Estais perdi-

do, senhor diabo, meu amigo. Fugi, antes que ele vos veja. Retirai-

vos, eu vos peço”. Então se descobriu até o queixo, da forma que

outrora as mulheres persas se apresentavam aos filhos, fugitivos da

batalha, e lhe mostrou sua como-é-que-se-chama. O diabo, vendo

aquela enorme solução de continuidade de todas as dimensões,

exclamou: “– Mahon, Demiurgon, Megera, Alecto, Personfe! Ele

não me pega. Vou-me embora. Nunca! Eu lhe deixo o campo”.

Diluem-se verdadeiramente as fronteiras, a fim de que o sistema deimagens rabelaisianas se consolide. Viabiliza-se a mutabilidade dos fenôme-nos e fica reforçada a metamorfose contínua da própria existência. Não égratuita, portanto, a ênfase dada ao renascimento do grão do trigo apodre-cido sob a terra e à galhofa inspirada pelo ridículo representante dos infer-nos, “muito novo no ofício”, como acrescenta Rabelais. No lugar do temorestá o riso que libera, para a composição da imagem de um Lúcifer quesente cólicas e se alimenta de “advogados perversos do direito e espoliadoresdos pobres”. Seja o mais experiente, seja o neófito, a imagem da entidadedo inferno é contraditória àquela, assustadora e punitiva, tão cara à éticaoficial cristã. Não poderia ser representação nem do coroamento da senten-ça moral, nem do pavor diante do erro irreversível, que atormenta o ho-

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mem, a imagem grotesca, cuja concepção se ampara na idéia de superaçãode tudo o que tem caráter acabado.

Atentemos um pouco mais para a seqüência das cenas recém-transcri-tas. Observamos a ambivalência regeneradora dos baixos corporais, confir-mada por meio do “inferior” corporal afastado do valor negativo e censor.Ratifica-se o baixo regenerado justamente por meio da mulher ida em anose, portanto, mais próxima da morte. O órgão genital feminino, apresenta-do como “aquela enorme solução de continuidade de todas as dimensões” econfigurado como instrumento de confrontação, ainda que diante de umdiabrete, confirma o mesmo sistema de imagens: é transferido ao baixotudo o que é elevado. Essa parte do corpo feminino, enfatizada na suaabertura, confirma a importância dos orifícios para a concepção do corpocomo o lugar que o mundo penetra e de onde o mundo emigra. Esse é ocorpo grotesco, dado pela cosmovisão carnavalesca, tal como propõe Bakhtin.

Por sua vez a hiperbólica seqüência de blasfêmias, proferida pelo dia-binho diante do que vê, mistura o cômico ao espanto. Coerentes naambivalência, as imagens da velha e do diabinho, respaldadas pelo riso,juntam-se àquela dos membros vergonhosos da égua Tacor, destacadosem função da prova imposta aos papafigas. Por ordem solene do carrasco,ao toque da trompa os órgãos do animal tornaram-se receptáculo da figaa ser retirada com os dentes pelos cidadãos cativos. Na verdade tudo édegradantemente solene. A retirada da figa é tanto prova glorificante comocastigo desonroso.

Luta e conquista, ignonímia e honra, coragem e medo apresentam-se,cada elemento e todos conjuntamente, relativizados pelas funções de degra-dar, destronar e regenerar, constantes das imagens grotescas. Namultiplicidade de significações definem-se essas imagens, enquanto negamo princípio da estaticidade e aliam-se a uma certa gramática jocosa, tal comopede a visão carnavalesca do mundo.

Dos episódios citados, fica então destacada a hiperbólica valorização dafissura vaginal do corpo da velha como elemento corroborador não apenas doinacabamento, mas também da metamorfose desse corpo, assim remetidopara além de seus limites. Ao exibir-se por meio de tais recursos, o corpolegitima-se em função de suas aberturas e se aproxima em relação à fronteiratanto da morte como do nascimento. Que fique também ressaltada a contra-

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dição formal do corpo grotesco diante dos cânones literários e plásticos daAntigüidade clássica, os quais constituem a base estética do Renascimento.

A fim de ressaltar a imagem grotesca em confronto com a estética clás-sica, esta para a qual se apagam protuberâncias, tapam-se orifícios, retiram-se excrescências, abstraem-se imperfeições e para a qual concepção, gravi-dez, parto e agonia passam despercebidos, Bakhtin cita esculturas que re-presentam as velhas grávidas que riem:17

Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam

no Museu l’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas

cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembre-

mos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de

um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotes-

co ambivalente: é a morte prenhe, a morte que dá à luz. Não há

nada perfeito, nada estável ou calmo no corpo dessas velhas. Com-

binam-se ali o corpo descomposto e disforme da velhice e o corpo

ainda embrionário da nova vida. A vida se revela no seu processo

ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito

nem completo, é a quintessência da incompletude. Essa é precisa-

mente a concepção grotesca do corpo.

Vinculando o clássico não só aos parâmetros estéticos da Antigüidadeincorporados pelo Renascimento como ideal de perfeição, mas também à“estética da vida cotidiana preestabelecida e completa”, Bakhtin alerta que,diante de tais cânones, nada resta à imagem grotesca senão ser interpretadacomo monstruosa.18 O grotesco será então considerado monstruoso, se seperder a ambivalência regeneradora, se se perder o tom alegre comandadopelo riso. Pensando no duelista que se confronta com o lavrador papafiga,concordamos que, se for eliminado o tom de bobagem alegre, será perdido oestatuto de espantalho, que compõe o diabinho. Pensando no relato da res-surreição de Epistemon, abstraído desse mesmo tom, veremos que se tornaráfalso o livre contato familiar entre os entes do inferno e os humanos.

O caráter alegre e festivo é também depreensível da fala da velha papafigadiante do diabo. Que o diga a seqüência de epítetos por meio dos quais édesignado o marido (“carrasco, tirano, arranhador dos diabos”). Que o digaprincipalmente a figura do dedo mindinho, arranhador das partes baixas damulher. É ainda alegre e festivo o modo como se apresenta o papa que

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chora e apanha, enquanto vende pastel. O inferno cotidianizado contribuipara a representação do destronamento dos poderosos. Vê-se que não há,ao longo das cenas, uma única ocorrência da sátira que exagera o “negativoque não deveria ser”, reproduzindo agora a expressão que Bakhtin usoupara a referência ao sarcasmo, afastado do grotesco rabelaisiano.19

Sem a regeneração e o inacabamento contínuos, base da metamorfoseamparada pelo riso alegre, não há realismo grotesco, marca do estilo deRabelais. Um princípio positivo rege esse fenômeno. Com apoio nesse prin-cípio, é possível entender tanto o conceito de tal realismo como a descriçãoda gradativa degeneração do grotesco ao longo dos séculos. Eis a caracteri-zação dada por Bakhtin do realismo grotesco:20

herança (um pouco modificada, para dizer a verdade) da cultura

cômica popular, de um tipo peculiar de imagens e, mais ampla-

mente, de uma concepção estética da vida prática que caracteriza

essa cultura e a diferencia claramente dos séculos posteriores (a

partir do Classicismo).

A DEGENERAÇÃO DO GROTESCO

A degeneração do grotesco corresponde a um enfraquecimento dacosmovisão carnavalesca e é fato verificável na estética filosófica e nas mani-festações literárias, tais como obras românticas e realistas. Ao longo do estu-do que faz sobre a obra de Rabelais, Bakhtin insiste na definição das ima-gens grotescas medievais e renascentistas como realistas e corrobora a ne-cessidade da compreensão de tais imagens dentro do próprio sistema aosquais elas pertencem. As reflexões do filósofo se encaminham para a de-núncia em relação ao abastardamento do realismo grotesco nas dimensõestanto da literatura como dos estudos literários. No que diz respeito à litera-tura, é feito o alerta em relação à degeneração do realismo grotesco emempirismo naturalista, fato do qual é apontado como isento o chamadorealismo em grande estilo, sustentado por autores como Stendhal e Balzac,que são tidos como os que mantêm vivos alguns elementos do grotescomedieval e renascentista. Na crítica literária, é apontada por Bakhtin adistorção no exame do grotesco, considerado fora do âmbito da cultura

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popular da Idade Média e da literatura do Renascimento, o que teriaviabilizado a interpretação do fenômeno como mero riso destrutivo.

Ao tocar nos séculos posteriores àquele de Rabelais, Bakhtin afirmaráentão que, a partir do século XVII, certas formas do grotesco começam adegenerar em “caracterização estática e estreita da pintura de costumes,como conseqüência da limitação específica da concepção burguesa de mun-do”.21 Fará referência à estética que, se consegue escapar da construção sériae unilateral do mundo, cai no riso trivial. O autor enfatiza então, para acompreensão desse processo, a necessária atenção para determinado tom decertas obras literárias: grave e monótono, do que é dado como sério; sen-tencioso e acusatório, quando não puramente recreativo e despreocupado,do que é dado como cômico.

Mas é interessante atentar para as diferentes concepções de mundoque justificam a complexidade da cultura renascentista vista como umatotalidade: a concepção derivada da cultura popular e aliada ao princípiomaterial ridente, destronador e renovador, tal como se apresenta emRabelais e aquela tipicamente aliada aos cânones clássicos, segundo osquais os atos efetuados pelo corpo são dados como exteriores ao mesmocorpo, assim consumado no próprio fechamento. O texto que segue, ex-traído de um manual intitulado A Civilidade Pueril, de autoria de Erasmode Rotterdam, publicado no ano de 1530, confirma a imagem ditadapelos cânones clássicos:22

Em relação aos mais velhos há que falar com respeito e em poucas

palavras; com os da mesma idade, afetuosamente e de boa vonta-

de. Quando se fala com alguém, deve-se pegar no chapéu com a

mão esquerda, deixando a direita pousar suavemente sobre o estô-

mago; é ainda mais aconselhável segurar o chapéu com as duas

mãos, deixando os polegares de fora, de maneira a tapar a parte do

abdômen. Apertar um livro ou a boina debaixo do braço é próprio

de uma criança mal educada. Um decoro íntimo fica bem; o que

dá cor ao rosto, não o que parece ser estúpido.

O olhar deve estar voltado para a pessoa com quem se fala, mas

este deve ser calmo, franco e não deve denotar nem descaramen-

to nem maldade. Fixar os olhos no chão, como faz o catoblepas,

leva a supor uma má consciência; fitar alguém de viés é testemu-

nhar-lhe aversão.

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Virar a cabeça para um lado e outro é prova de leviandade. Tam-

bém é pouco próprio dar toda espécie de expressão ao rosto, como

frisar o nariz, enrugar a fronte, soerguer as sobrancelhas, torcer os

lábios ou abrir e fechar bruscamente a boca; todas essas caretas são

prova de um espírito tão inconstante como o de Proteu.

A dedicatória feita por Rotterdam e registrada na página de rosto sugereo caráter pedagógico do texto: Ao muito nobre Henri de Bourgogne, filho deAdolphi, príncipe de Veeri, criança de quem muito se espera, salve. É curiosoobservar mecanismos textuais que constroem a ilusão da assepsia da subje-tividade de quem “fala” e de quem “escuta”: não se diz eu, nem tampoucotu. Tais mecanismos resultam no abafamento da função conativa da lingua-gem. Essa função, proposta por Jakobson, prevê a valorização da presençado sujeito com quem se fala, o que seria compatível com a cena deaconselhamento.23 Entretanto, à dissimulação do tu corresponde a dissimu-lação do eu, para que sejam consolidados autor e leitor segundo determina-do ideal. Podemos supor outro modo de construção textual, com o empre-go da segunda pessoa e do vocativo. Teríamos o efeito de aproximação e nãode dissimulação do sujeito. Vejamos essa hipótese: “Em relação aos maisvelhos, caro aprendiz, deverás falar com respeito. Quando falares com al-guém, apega-te no chapéu com a mão esquerda. Aconselho-te ainda, meurapaz, que segures o chapéu com as duas mãos”.

No texto de Rotterdam, a hexis corporal radicada no corpo equilibra-do ampara-se na condenação tanto dos movimentos exagerados como dequalquer posição de assimetria e diagonalidade, as quais remeteriam aoinacabamento do próprio corpo. Não é a falta, nem o excesso, mas é ajusta medida o fundamento do perfil idealizado. Deparamo-nos entãocom uma época, o século XVI, que engendra imagens contraditórias entresi: aquelas ditadas pelos princípios da univocidade e da completude, talcomo se apresentam no manual citado, e aquelas ditadas pelo princípiodo contínuo devir, que traça o corpo incompleto, porque valorizadoconcomitantemente naquilo que definha e naquilo que nasce. Entre asúltimas se emparelham as imagens constituintes da obra O Elogio da Lou-cura, do mesmo Erasmo de Rotterdam.

No manual de civilidade não apenas os recursos gramaticais contribuempara a construção de um sujeito dado como asséptico, o que o vincula à

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idéia de acabamento e de perfeição. O abdômen devidamente tapado como chapéu, entre outras imagens que completam o corpo a que se aspira,testemunha o ideal clássico, este que é visto por Bakhtin como herançaincorporada pela contemporaneidade: “O cânon clássico nos serve de guiaaté a atualidade”.24 As imagens do corpo dadas no manual acabam, entre-tanto, por demonstrar o entrecruzamento de valores contraditórios quepalpitam no próprio signo, assim consolidado como “arena onde se desen-volve a luta de classes”.25 Jogados nós, no manual de civilidade, para longedo inferior positivo capaz de renovar a vida, podemos então vislumbrar adialética interna do signo lingüístico e a palavra como “indicador sensívelde todas as transformações sociais”.26

Atentando um pouco mais para o caráter anticanônico da imagem gro-tesca diante do ideal clássico, lembramos agora que Bakhtin elucidou aacepção por meio da qual o termo cânon é por ele empregado, ou seja,“tendência determinada, porém dinâmica e em processo de desenvolvimento”e não apenas conjunto de regras e normas que integram determinado siste-ma de imagens.27 Faz isso o filósofo para enfatizar a incompatibilidade docorpo grotesco em relação tanto aos cânones clássicos como aos modernos epara respaldar o entendimento das “sobrevivências petrificadas” do própriogrotesco: “as grosserias e obscenidades modernas conservaram as sobrevi-vências petrificadas e puramente negativas dessa concepção do corpo”.28

Ao ressaltar esse empobrecimento contínuo, dado ainda no “nível cô-mico de baixa qualidade” e na “decomposição naturalista” das artes dosséculos XVII e XVIII, o autor reserva para o século XVIII a denúncia em relaçãoao didatismo e ao utilitarismo dos filósofos iluministas, entendidos estescomo aliados das tendências artísticas de tom sério e unilateral e de um“racionalismo estreito”.29 Não deixa, entretanto, de ser feito por Bakhtinum alerta para a riqueza e o vigor grotescos subsistentes em determinadascomédias, como as de Molière, e em determinados romances filosóficos,como os de Voltaire.

Por sua vez, um grotesco peculiar tido como muito distante da visãopopular e carnavalesca e como determinado pelo crivo da subjetividadeexacerbada será identificado na primeira metade do século XIX. Tambémreconhecido como “de câmara” e classificado como romântico, esse grotes-co é apresentado por Bakhtin como confrontante em alguns aspectos com

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os cânones da época clássica e com aqueles do século XVIII. Sob a orientaçãodos parâmetros oferecidos pelo filósofo, podem ser identificadas manifesta-ções desse grotesco no texto da literatura brasileira ora recortado.

É ELA! É ELA! É ELA! É ELA!

É ela! é ela! – murmurei tremendo,

E o eco ao longe murmurou – é ela!

Eu a vi – minha fada aérea e pura –

A minha lavadeira na janela!

Dessas águas-furtadas onde eu moro

Eu a vejo estendendo no telhado

Os vestidos de chita, as saias brancas;

Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido

Nas telhas que estalavam nos meus passos

Ir espiar seu venturoso sono,

Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! Que profundo sono!...

Tinha na mão o ferro de engomado...

Como roncava maviosa e pura!...

Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:

Palpitava-lhe o seio adormecido...

Fui beijá-la... roubei do seio dela

Um bilhete que estava ali metido...

Oh! De certo... (pensei) é doce página

Onde a alma derramou gentis amores;

São versos dela... que amanhã de certo

Ela me enviará cheios de flores...

Tremi de febre! Venturosa folha!

Quem pousasse contigo neste seio!

Como Otelo beijando a sua esposa,

Eu beijei-a a tremer de devaneio...

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É ela! é ela! – repeti tremendo;

Mas cantou nesse instante uma coruja...

Abri cioso a página secreta...

Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota

Dando pão com manteiga às criancinhas,

Se achou-a assim mais bela, – eu mais te adoro

Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! É ela! Meu amor, minh’alma,

A Laura, a Beatriz que o céu revela!

É ela! É ela! – murmurei tremendo,

E o eco ao longe suspirou – é ela!

Álvares de Azevedo30

Antonio Candido refere-se a esse texto como aparente antídoto ao motivodos amores intangíveis, motivo este recorrente nos outros poemas de Álvares deAzevedo.31 Atribui, ainda, ao mesmo texto, a pecha de “poema até certo pontoperverso”, argumento este desenvolvido mediante o reconhecimento de “umsentimento de classe tão antipático nesse filho família bem-educado”. Cotejan-do o chamado elemento burlesco com o platônico dos outros poemas do mes-mo autor, Candido assim descreve a esquivança do poeta diante da mulheradormecida: “Marcando de grotesco os amores tangíveis, o poeta se exime de-les, recuando-os para o impossível, da mesma forma que fez com os demais pormeio da idealização extremada”. Ao prosseguir na análise, o literato afirma: “Osamores aparentememente tangíveis, a posse grosseira que reserva à ‘filha dopovo’, servem para elevar mais alto o pedestal dos outros, mostrando que sãobelos apenas os que se perdem de todo na esfera das coisas irrealizáveis”.32

Os amores ditos tangíveis, dados como razão para afastamento do amantedevido à marca grotesca neles impressa, são concretizados no poema emimagens como a do corpo que ronca, contrária àquele das outras adormeci-das do poeta, em que “um suspiro tépido ressona”. A propósito, sugere oliterato que ambos os corpos fazem o poeta recuar: o tangível, pela fealdadegrotesca; o intangível, pela beleza platônica. Importa que o riso toma aforma de ironia e sarcasmo dirigidos à lavadeira adormecida. Importa quepoeta e literato confirmam o grotesco como da ordem do repudiável.

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Certo que temos o destronamento daquela donzela adormecida “no lei-to perfumado”, virgem de cujas “pálpebras divinas” vê-se orvalhar “um prantode amor”, tal como é dado em outro poema de Álvares de Azevedo.33 Certotambém que a hiperbólica repetição do “É ela!”, no título, com o fim deimitar o eco ao longe, projeta o cômico. Certo também que a inadequaçãoda figura do ferro de engomar nas mãos da bela dormente remete aoinacabamento da própria figura feminina. Certo, por fim, que a expectati-va em relação à perfeição, recorrentemente frustrada pela substituição dosaltos, como o “bilhete derramado de gentis amores”, pelos baixos, como o“rol de roupa suja”, ratifica o destronamento. Mas resultam em abstraçãoesses mecanismos. Primeiro, porque os altos são substituídos por baixosestáticos, aliás como todo o objeto de contemplação, que em nada reage: aolongo dos versos a moça mantém-se imóvel na ocupação do espaço físico. Alavadeira permanece virgem destronada até o final do poema, quando recu-pera o estatuto de revelação feita pelos céus, ao ser admitida entre as mulhe-res excelsas: Carlota, Laura, Beatriz. Mantém-se, entretanto, o corpo esva-ziado das imagens da vida material. Altos e baixos não se misturam.

O próprio poema, aliás, autoriza a pensar em outras estaticidades, quefundam o ideal do corpo fechado. Escolhas enunciativas, como o apaga-mento de paixões advindas de ofensa sofrida por um amante recusado,enfraquecem a dinamicidade da cena narrada e enrijecem o ideal de corpo.Poderiam encetar dinamismo ao narrado paixões como a cólera e a vingan-ça vividas pelo amante devido a uma frustração sofrida. Mas essas paixõesse tornam inviáveis, pois não há, da parte da mulher contemplada, ofensaao amante, nem há recusa na intangibilidade dada por meio do sono. Tudose consuma na estaticidade.

Poderíamos replicar que a mobilidade trazida pela seqüência ofensa,cólera e vingança incompatibilizaria o poema com o grotesco ridente, jáque conduziria a cena para o sério unilateral. Temos aí um engano. Osujeito ofendido, encolerizado e em ação de vingança, pode ser dado pormeio da imagem material aliada ao riso jocoso e alegre, próprio àcosmovisão carnavalesca. Isso acontecerá desde que ofensa, cólera e vin-gança não sejam elementos coincidentes consigo mesmos, isto é, sejamdados em contradição interior, o que abre a brecha para o “inacabamentoda própria existência”.

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Vejamos outra criação literária, em que contracenam uma mulher ina-cessível e um galanteador, em passagem dada segundo o realismo grotesco ena qual se incorporam as paixões citadas. O episódio, comparativamente aopoema, valerá como indicativo do que se perdeu da cosmovisão carnavales-ca no grotesco romântico. Voltamos à obra Gargântua e Pantagruel. Estamosno capítulo XXI, intitulado “De como Panúrgio se apaixonou por uma damade Paris”. Teremos demonstradas as paixões da cólera e da vingançacarnavalizadas, enquanto se apresentará a mulher inatingível aos apelos doapaixonado, por ser tempo de quaresma, “em que não se atrevem a tocar nacarne”, e inatingível por ser de alta estirpe, casada e avessa aos desejos dePanúrgio, que abre a cena com sua fala:34

“Madame, seria muito útil a toda a república, deleitável para vós,

honroso para a vossa estirpe, e para mim necessário, que sejais

coberta pela minha raça; e podeis crer que a experiência vos de-

monstrará.” A estas palavras a dama recuou mais de cem léguas,

dizendo: “Louco desprezível, como vos atreveis a me fazer tal pro-

posta? Com quem pensais que estais falando? Ide e não apareçais

diante de mim, pois, do contrário, eu vos farei cortar os braços e

as pernas.” – “Ora, disse ele, ser-me-ia bom ter os braços e as

pernas cortadas, com a condição de que fizéssemos, eu e vós, um

tronco unido, juntando os manequins pela parte de baixo; pois

(acrescentou, mostrando seu comprido membro) eis mestre João

Quinta-feira, que vos tocará uma antiquaille que sentireis até a

medula dos ossos. Ele é galante e conhece bem o seu ofício.”

[...]

Assim se foi [Panúrgio], sem se preocupar muito com a recusa que

sofrera e não deixou de comer muito bem.

No dia seguinte, ele se encontrava na igreja à hora em que ela foi

à missa, e à entrada ofereceu-lhe água benta, inclinando-se pro-

fundamente diante dela; depois se ajoelhou ao seu lado, familiar-

mente, e disse-lhe: “Madame, sabei que estou a tal ponto apaixo-

nado por vós que já não consigo mijar nem cagar; já imaginastes

se me acontecer algum mal por vossa causa?”

No capítulo XXII, “De como Panúrgio se vingou da dama que o desde-nhou”, temos a vingança de Panúrgio e a “patifaria” referida pelo narradorafirmadas no modo da carnavalização, como o foi a própria declaraçãoamorosa recém-citada, o que significa que, de todo o relato, mantêm-se

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BAKHTIN outros conceitos-chave

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indepreensíveis quaisquer pretensões de significação incondicional. Esseepisódio enfatizará a diferença do realismo grotesco diante do grotesco“de câmara”:35

Panúrgio tanto procurou de um lado para o outro, que encontrou

uma cadela no cio, a qual amarrou com o seu cinto e a levou para

o seu quarto, e a alimentou muito bem durante aquele dia e toda

a noite; de manhã a matou e tirou aquilo que conhecem os

geomantes gregos, e o partiu em pedaços os mais miúdos que pôde,

levou-os bem escondidos, e foi aonde a dama devia ir acompanhar

a procissão.

Panúrgio espalha o material no papel de um rondó que entrega à dama,bem como nas dobras do vestido da senhora. Despede-se, então, em tom delamento pelas noites passadas em claro e pelos percalços e aborrecimentos aele impostos. Não terminara de formular o adeus, quando “todos os cãesque se achavam na igreja correram para aquela dama, por causa do cheirodas drogas que ele nela espalhara: pequenos e grandes, gordos e magros,todos vinham, de membro duro, e a cheiravam e mijavam em suas pernas:a maior patifaria do mundo”.36

Observamos que as paixões podem verdadeiramente ser carnavalizadas.

CARNAVALIZAÇÃO E POLIFONIA

Como último estágio destas reflexões serão consideradas as repercus-sões da cosmovisão carnavalesca no romance polifônico, reconhecido porBakhtin na ficção de Dostoiévski. O objetivo é ratificar a carnavalizaçãocomo categoria analisável nos textos. É então mister recuperar a noção depolifonia proposta por Bakhtin37 e explicitada por Bezerra38 no primeirovolume destes Conceitos-chave. A polifonia de uma obra diz respeito àmultiplicidade de vozes que, orientadas para fins diversos, se apresentamlibertas do centro único incorporado pela intencionalidade do autor. Pormeio desse recurso temos, segundo o filósofo russo, a “interação de consciên-cias eqüipolentes e interiormente inacabadas”39 e a “vontade de combina-ção de muitas vontades, a vontade do acontecimento”.40 Dessa maneira apolifonia viabiliza o herói (personagem) que fala com o autor e não é falado

73

por ele; o herói com autonomia de voz e constituído como avesso à biogra-fia “no sentido do ido e do plenamente vivido”;41 o herói carnavalizado.

Não coincidente consigo mesmo, esse herói diverge de si, a identidadecriada como acabamento, e do outro, o próprio autor. Por sua vez o autor,não constituído para o vezo da dominação sobre a criatura, radica-se nummodo de dizer resistente a qualquer dogmatismo. Estamos diante do heróie do autor dialógicos não somente porque são dados em co-participação noato de narrar, mas porque se entrecruzam as entonações das vozes na orien-tação responsiva do discurso do herói em relação ao do seu criador e vice-versa. O sujeito (autor e herói), assim apresentado, revela-se no texto pormeio de bruscas mudanças do agir e do ser. Revertem-se, então, as posiçõesprevistas: o autor, delegador de vozes; o herói, voz delegada; o autor, aqueleque comanda; o herói, o comandado. Da parte do herói, a não coincidênciaconsigo mesmo leva-o a um modo variado de ocupar o espaço social. Se foro jogador Aleksei Ivanovitch, teremos refletida, na voz não conclusiva, ou-tra, a de Polina, mulher concomitantemente travada e solta no amor pelopróprio jogador. Teremos também, dada em contato interno com o mesmoAleksei e, portanto, por meio de verdades colocadas cara a cara, outra per-sonagem, a “avozinha” que, tal como Aleksei, se debate entre a fé e o ceticis-mo em relação aos que a cercam, enquanto arrisca, perde e ganha muitodinheiro na roleta da cidade de Roletemburgo.

Segue transcrita cena de O Jogador, de Dostoiévski, obra à qual perten-cem as personagens recém-identificadas.42 Será a passagem em que Polina,num momento de vulnerabilidade, vai ao quarto de Aleksei, que costumaoferecer-lhe dedicação quase idólatra sem nada pedir em troca. Polina relataao rapaz que Des Grieux, um quase-vilão, fez-lhe certa cobrança urgente decinqüenta mil francos. [O quase se compatibiliza com o princípio doinacabamento, que rege o caráter desses heróis.] Por sua vez, Aleksei, quesupunha alguma atração de Polina por outro, o inglês Mr. Asteley, no co-meço da cena assim expressa o desejo de ajudar a moça:

– Mas, então, onde buscar esses cinqüenta mil francos? – repeti,

rangendo os dentes, como se fosse possível de repente apanhar o

dinheiro do chão. – Escute: e Mr. Astley? – perguntei, dirigindo-

me a ela com o princípio de uma estranha idéia.

Seus olhos brilharam.

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74

– Mas, então, tu queres que eu te deixe por esse inglês? – disse,

encarando-me com um olhar penetrante e sorrindo com amargu-

ra. Era a primeira vez que me tratava por tu.

Pareceu-me que a cabeça lhe rodava de emoção: ela sentou-se de

repente no sofá, como que sem forças.

Foi como se um raio me atingisse. Fiquei ali de pé, sem acreditar

nos meus olhos, sem acreditar nos meus ouvidos! Então, ela me

amava! Tinha vindo procurar a mim e não a Mr. Astley! Ela, sozi-

nha, uma moça, tinha vindo ao meu quarto, num hotel, compro-

metendo-se aos olhos de todos, e eu ali estava, diante dela, ainda

sem compreender!

Um pensamento louco me fulgurou na mente.

– Polina! Dá-me uma hora só! Espera aqui só uma hora e... eu

volto! Isto... isso é necessário! Verás! Fica aqui, fica aqui!

Saí correndo do quarto, sem responder ao seu olhar interrogador;

ela gritou-me alguma coisa, mas não voltei.

Sim, às vezes o pensamento mais louco, o mais impossível na apa-

rência, implanta-se com tal força em nossa mente que acabamos

acreditando em sua realidade... Mais ainda: se essa idéia está liga-

da a um desejo forte, apaixonado, acabamos acolhendo-a como

algo fatal, necessário, predestinado, como algo que não pode dei-

xar de acontecer! Talvez ainda haja mais: uma combinação de pres-

sentimentos, um extraordinário esforço de vontade, uma

autodireção da própria fantasia, ou lá o que seja – não sei; o fato é

que comigo àquela noite (que nunca na vida esquecerei) aconte-

ceu uma aventura miraculosa. [...]

Eram dez e um quarto, entrei no cassino com firme presença, e ao

mesmo tempo com uma emoção como nunca experimentara. Nos

salões de jogo havia bastante gente, se bem que duas vezes menos

que durante o dia.

Às onze horas só ficam ao redor das mesas os verdadeiros jogado-

res, os jogadores inveterados para os quais nas estações de águas

existe uma única coisa, a roleta; que só por causa dela vieram, que

mal observam o que se passa em redor, que por nada mais se inte-

ressam em toda a saison, só fazem jogar de manhã à noite e estariam

prontos a jogar a noite inteira, até o amanhecer, se isso fosse pos-

sível. E é sempre com pesar que se dispersam, quando o cassino

fecha à meia-noite. E quando o mais antigo dos crupiês, antes do

fechamento, um pouco antes da meia-noite, anuncia: Les trois

derniers coups, messieurs! – estão prontos a jogar nessas três últimas

75

jogadas tudo o que têm no bolso – realmente é então que mais se

perde. Dirigi-me à mesa onde estivera sentada a avozinha.

Voltemos à carnavalização. Ao propugnar essa noção organicamente com-binada com a polifonia, Bakhtin destaca na poética da obra dostoievskiana ovínculo próprio com a tradição do gênero cômico-sério, o que justifica acarnavalização como algo revivido. Antes de examinar tal tradição, atente-mos, porém, um pouco mais para a cena recém-citada, tal como contextualizadaem O Jogador. Os movimentos carnavalescos aí se concretizam: na situação-limite e fronteiriça com a crise; na tangibilidade em relação aos momentosdecisivos; na inconclusibilidade da voz de Aleksei, sempre responsiva à dePolina; na paixão ambivalente de Polina e nas próprias “excentricidades dotipo carnavalesco”, como diz Bakhtin em sua análise.43

Para a carnavalização, valem ainda as reviravoltas dadas num espaço dolimiar, o do cassino com seus salões e mesas de apostas, onde se oferecemfortuna e miséria simultaneamente. Essas reviravoltas também compõem otempo do limiar, correspondente tanto àquele da abertura rumo às apostascomo àquele próprio ao ato de jogar. O tempo, representado no limiar dastransformações vitais, apresenta-se como realidade (des)construída, à reve-lia das indicações dadas com precisão: eram dez e um quarto; às onze horas;um pouco antes da meia-noite. Vale ainda para a carnavalização o discursoconfessional que Aleksei faz sobre si mesmo, amparado pela função denarrador-personagem.

Da voz de Aleksei se depreende o entrecruzamento de outras tantas vozes,como a do indivíduo que se dá conta da própria entrega irrestrita ao pensa-mento “mais louco”. Acontece que a representação da autoconsciência deAleksei poderia remeter a um sujeito tipificado como jogador compulsivo,com papel fixo e definido nas relações sociais cotidianas. Pelo contrário, Alekseiacaba por configurar-se como homem do subsolo, não incorporável à temática“normal” da vida. Esse homem do subsolo viabiliza a polifonia.

Aleksei ficará milionário na jogada que sucede a cena recém-transcrita.Viajará, sem verdadeiramente querer, para Paris, “aonde vão todos os russosque ganham no jogo”, dará conscientemente toda a fortuna para MademoiselleBlanche, com quem não frui nenhum prazer, voltará a ser miserável, para,no final, dizer: “Amanhã, amanhã acaba tudo”.

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Na seqüência de situações de limiar, temos mais um depoimento deAleksei, em que se encontram em mútua relação os termos contrários entresi: idade madura/ infância e adolescência; razão/ loucura, o que subsidia aconstrução do herói polifônico:44

Às vezes é engraçado, pelo menos para mim. Não posso me dar

conta do que se passa comigo, se realmente eu me encontro em

estado de frenesi ou se simplesmente me transviei e faço bobagens

enquanto não me agarram. Por momentos parece-me que perco a

razão. E por momentos parece-me que saí há pouco da infância, dos

bancos escolares e apenas faço grosseiras travessuras de colegial.

Os heróis de Dostoiévski, segundo Bakhtin, são gerados não só pelaidéia do homem do subsolo, mas também pela idéia do herói da família casual,o que possibilita um modo próprio de profanação e destronamento. Assim“o fermento carnavalesco” se mantém nos romances polifônicos deDostoiévski, é o que comprova o estudioso. A praça pública estará trans-posta, sem degeneração, para a sala de visitas, já que a forma histórica dacarnavalização ora considerada é outra.

Para entender esse homem do subsolo, acompanhemos, no estudo citadode Bakhtin sobre Dostoiévski, a procura da gênese da linha carnavalesca doromance no campo do cômico-sério, desde a Antigüidade. Consideremos,então, que o estudioso russo remonta ao método dialógico de Sócrates,apresentado como inicialmente o da busca da verdade, concebida comorevelação nascida entre homens e afastada do monologismo oficial. Ao afir-mar que “em Sócrates já podemos falar de um tipo especial de ‘diálogo nolimiar’”, Bakhtin45 projeta a categoria limite vs. limiar, por meio da qualdescreverá a transposição, para a literatura, do carnaval, “forma sincréticade espetáculo de caráter ritual [...], espetáculo sem ribalta e sem divisãoentre atores e espectadores”.46 O pólo do limiar, correspondente aoinacabamento, opõe-se ao do limite, correspondente ao fechamento. O li-miar sustenta a carnavalização nos discursos polifônicos. Fala-se agora deuma forma alterada de inacabamento, se tomarmos como parâmetro a ima-gem grotesca rabelaisiana. Em Rabelais temos o inacabamento em funçãodo riso estridente; em Dostoiévski esse efeito estará em função do cômico-sério e do riso reduzido.

77

Para demonstrar a materialização do gênero cômico-sério no romancepolifônico, Bakhtin aponta não só para os diálogos socráticos, mas tam-bém para a sátira menipéia. Esse gênero, indicado em relação de con-vergência com o folclore carnavalesco e de divergência com gênerossérios como epopéia e tragédia, apresenta-se impregnado da forçatransformadora da cosmovisão carnavalesca e sobrevive “mesmo emnossos dias”, segundo Bakhtin:47 “Aqueles gêneros que guardam atémesmo a relação mais distante com as tradições do cômico-sério conser-vam mesmo em nossos dias o fermento carnavalesco que os distingueacentuadamente de outros gêneros”.

É importante entender o gênero cômico-sério para o reconhecimentoda relação entre polifonia e carnavalização. Veremos duas cenas exempla-res da sátira menipéia. Os textos foram extraídos da obra Diálogo dosMortos, de autoria de Luciano de Samósata, satírico do fim da Antigüida-de, que viveu na Grécia no segundo século d.C.48 Teremos os diálogosentre Antístenes, Diógenes e o Velho (Diálogo 27), e entre Menipo eTirésias (Diálogo 28).49 A cena do primeiro diálogo se passa entre os he-róis que decidiram dar um passeio rumo à entrada do mundo dos mortos,para verificar quem eram as pessoas que desciam e quais seriam as reaçõesde cada uma delas. “O espetáculo pode ser divertido, ver dentre eles osque choram, os que suplicam que os soltem, alguns descendo com difi-culdade e empacando – apesar de Hermes os empurrar pelo cangote – edobrando-se para trás para oferecer resistência, inutilmente”, dizAntístenes.50 Ao longo do caminho, cada um dos interlocutores conta oque viu e como se sentiu durante sua própria descida.

Podemos confirmar a fusão do sério e do cômico já na fala de Antístenes,herói que assim se comporta em relação aos outros mortos no momento dadescida: “Sem fazer conta de suas choradeiras, corri na frente até a barca eocupei antes de todos um lugar, para fazer a travessia confortavelmente.”Por sua vez Diógenes, no mesmo diálogo, relata ao interlocutor o interro-gatório que dirigira a um homem extremamente idoso:

DIÓGENES

Por que você está chorando, se morreu com tanta idade? Por que

essa indignação, nobre amigo, se está chegando aqui já velho? Acaso

você era algum rei?

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VELHO

De modo algum!

DIÓGENES

Um sátrapa, então?

VELHO

Nem isso.

DIÓGENES

Então vai ver que você era rico e o que te aflige é estar morto,

tendo abandonado muita luxúria?

VELHO

Nem isso. Ao contrário, eu cheguei aos noventa anos levando uma

vida sem recursos, vivendo da vara e do anzol, pobre demais, sem

filhos, e ainda por cima era manco e enxergava mal.

DIÓGENES

E você queria viver ainda, em tais condições?

VELHO

Sim! A luz era doce e a condição de morto é uma coisa horrível,

que se deve evitar.

DIÓGENES

Você não bate bem, velho, e se comporta como um adolescente

rebelde diante do inevitável, apesar de ter a mesma idade que o

barqueiro. O que se haveria de dizer, então, a respeito dos mo-

ços, quando homens de tanta idade, que deviam perseguir a

morte como um remédio para os males da velhice, são amantes

da vida!

Tendo narrado esse episódio, Diógenes convida os comparsas para irembora, pois “ficar rodeando a entrada” poderia, segundo ele, gerar des-confiança sobre algum planejamento de fuga. De modo abrupto se encer-ra o Diálogo 27, para que se apresente o outro, entre Menipo e Tirésias,o adivinho que tinha sido mulher, não-estéril mas sem filhos, e de cujaspartes, um dia, enquanto criava barba, “brotou um membro masculino”(Diálogo 28). Perguntado se não mentia, o adivinho lembra ao interlocutoras mulheres que “se tornaram aves, ou árvores ou feras”. O texto, queapresenta fusões variadas, promovendo o encontro entre o sublime e orasteiro, tem no início da cena ora recortada a fala do inquiridor:

79

MENIPO

[Você] aprendeu a ser homem e adivinho ao mesmo tempo?

Tirésias

Está vendo? Você ignora tudo a meu respeito! Ignora até que solu-

cionei uma discussão entre os deuses, que Hera me tornou cego e

que Zeus compensou minha desgraça com a arte da adivinhação.

MENIPO

E você ainda sustenta essas mentiras, Tirésias? Mas você age assim

à maneira dos adivinhos! É costume de vocês dizer insanidades.

Conforme os estudos que constam do prefácio à obra de Luciano, éidentificável, no diálogo dos mortos, outro, o filosófico, o qual Luciano “teriafeito andar com os pés no chão” e no qual se apresenta “o riso cômico sob agravidade filosófica”.51 Diremos, com apoio em Bakhtin, que esse diálogo dosmortos propõe o limiar como modo de presença carnavalizada. O limiar estáno espaço da entrada ao mundo dos mortos e no tempo da morte “vivido”nesse mundo. Desse tempo a vida cotidiana não se exclui, como fica demons-trado em ações de outro herói, o guerreiro que, morto em combate sobre umcavalo, por não querer andar a pé na descida para aquele mundo, pede peloanimal morto juntamente com ele, como relata Crates (Diálogo 27).

O limiar está também na simultaneidade dos elementos, esta que é abase da duplicidade de cada um deles, assim apresentados: homem/ mu-lher; insanidade/ razão; pranto/ galhofa; constrangimento/ conforto; deu-ses/ figuras históricas. O limiar está ainda na dimensão da relatividade, paraa qual entra tanto a espoliação sofrida em vida pelo nonagenário pobre esozinho, como a luz da vida, considerada doce. O limiar está, por fim, noexercício de experimentação da verdade, depreensível diretamente das falasde Menipo e Tirésias, e indiretamente das situações extraordinárias ligadasà visita ao mundo dos mortos. As cenas narradas apresentam-se libertastanto do caráter previsível de luto, como das exigências daquilo que Bakhtinchama verossimilhança externa e que permite compreender a verdadeobjetivada com pretensão de acabamento e transparência. Constatam-senessas cenas “a combinação orgânica do diálogo filosófico, do elevado sim-bolismo, do fantástico, da aventura e do naturalismo de submundo”, con-forme aponta Bakhtin.52 Vale a conexão entre verdade e carnavalização, oque será adiante retomado.

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Frisemos por ora os diálogos no limiar (do Olimpo e do Inferno) dadosna sátira menipéia e definidos por Bakhtin como subsídios da linha dialógicada prosa romanesca de Dostoiévski. Da vinculação desses diálogos com acarnavalização, o filósofo russo abstrairá um princípio classificatório paradiferentes modalidades da própria carnavalização, do qual resultam estascategorias: carnavalização externa/ carnavalização interna; paraíso carnava-lesco/ inferno carnavalesco. Tomando este último par opositivo para análiseda composição do herói dostoievskiano, vemos que, para o paraíso, estáreservado o herói dado por meio da alegria própria à integridade ingênua;para o inferno, está o herói dado por meio da sombra da culpa e do tormen-to. A noção do limiar constitui ambos igualmente.

Para heróis ancorados no limite, Dostoiévski não dedica nem o paraísonem o inferno carnavalescos. A eles é reservada a ironia. Observemos estacena, que se abre com referência ao que Totski pensa de si mesmo. Serãonarradas as sensações de Afanássi Ivánovitch, o Totski, diante de NastáciaFilíppovna, que fora seduzida por ele na adolescência e entre gargalhadasnaquele momento se rebelava. Temos à mão o romance O Idiota.53

Mais que tudo no mundo, ele amava e apreciava a si, a sua tranqüi-

lidade e conforto, como cabia a um homem decente ao extremo.

Não se podia admitir a mínima violação, o mínimo abalo naquilo

que durante a vida inteira foi se estabelecendo e tomara essa forma

tão maravilhosa. Por outro lado, a experiência e a visão profunda das

coisas sugeriram a Totski, com muita brevidade e uma certeza extraor-

dinária, que agora ele estava diante de um ser absolutamente fora do

comum, precisamente daquele ser que não só ameaça mas sem falta

cumpre e, o principal, não se detém terminantemente diante de

ninguém, ainda mais porque não aprecia decididamente nada no

mundo, de sorte que nem seduzi-lo é possível. Pelo visto, aí havia

algo diferente, pressupunha-se alguma coisa intragável da alma e do

coração – algo como uma indignação romântica sabe Deus com

quem e por quê, como um insaciável sentimento de desprezo total-

mente fora da medida –, em suma, algo extremamente ridículo e

inadmissível numa sociedade decente.

O ser “absolutamente fora do comum”, resistente à sedução por serdotado de um “sentimento de desprezo totalmente fora da medida”, éNastácia. Sabemos disso por meio do narrador, cuja voz é invadida por

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outra, a de Totski, o herói. Define-se assim a bivocalidade da palavra donarrador, para o que contribuem recursos advindos do emprego do dis-curso indireto livre. Provam-no o uso do pronome demonstrativo “essa”no lugar de “aquela”, a expressão avaliativa “sabe Deus com quem e porquê” e o trecho de síntese final “em suma, algo extremamente ridículo einadmissível numa sociedade decente”. Quem pensa a sociedade com taldecência é o herói, não o autor, comprova-se no texto e na obra. O dis-curso indireto livre viabiliza, nesse caso, a ironia que alveja o herói. Dessamaneira, o que corresponde à voz de Totski é desqualificado, para quesejam ratificados pontos de vista contraditórios e dados em concomitância:o do herói e o do autor. Totski passa a manter-se mais nas mãos do autordo que outros heróis como a própria Nastácia, que tem assegurada para sia última palavra. Totski é, portanto, menos dialógico do que Nastácia; aúltima palavra não será a dele, mas a do autor, que o avalia ironicamente.Esse herói se consolida no limite.

Emparelhado com a natureza de Totski, está o general Ivan Fiódorovitch,pai de Aglaia. Esse homem, segundo o narrador, merecia respeito da socie-dade por ser rico e bastante decente, embora limitado. Dostoiévski ironiza,enquanto generaliza:54 “Um certo embotamento da inteligência parece seruma qualidade quase indispensável, senão de todo e qualquer homem deação, pelo menos de todo sério ganhador de dinheiro”. Totski e o generalnão são dados segundo a “função carnavalizadora da imagem do PríncipeMíchkin” (e de Nastácia), é o que nos autoriza pensar Bakhtin.55

Vejamos outra cena de O Idiota, da qual emergem o príncipe Míchkin, demiserável a rico herdeiro na virada de uma noite, e Nastácia Filíppovna, a mu-lher que desencadeará no príncipe “idiota” sensações simultâneas de intimidadee estranhamento, enfeixadas, tais sensações, por um fio contínuo de inevitávelfascínio. Acrescenta-se que o príncipe amará, como irmão, juntamente comNastácia, Rogójin, seu rival em relação a ela, bem como Aglaia, a bela que sedefine como moça concomitantemente acessível e inacessível a Míchkin.

A “inconveniência” de personalidade e comportamento excluem tanto opríncipe como Nastácia das relações comuns da vida. É daquele, entretanto,o paraíso, e é desta o inferno carnavalesco, afirma Bakhtin.56 Para Míchkin, o“idiota”, a integridade ingênua é impeditiva da aceitação da vida no seu as-pecto definitivo. Para Nastácia, a “louca”, as contradições internas orientam a

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existência pela depressão. Uma atmosfera luminosa, quase alegre, cercaMíchkin; uma atmosfera sombria, infernal, cerca Nastácia, diz Bakhtin.

O próprio estudioso, no entanto, autoriza o olhar analítico sobre Nastáciae Míchkin como, cada qual a seu modo, reflexo e refração dos atores doDiálogo dos Mortos, em que o cômico se impregna do filosófico “sem tirar ospés do chão”. Estamos diante de heróis que, em conjunto, são dados emfunção das últimas e universais questões da vida e da morte, e também sãodados em relação de hostilidade diante de qualquer desfecho definitivo.Nastácia, especificamente, espelha outro morto do diálogo da sátira menipéiade Luciano. Trata-se de Ismenodoro que, segundo o relato de Crates (Diá-logo 27),57 fora “assassinado por bandidos nos arredores do Citerão”. Essemorto, segundo Crates, “gemia com as mãos no ferimento, chamava osfilhos, que deixara pequeninos, e recriminava a si próprio por ter ousadoatravessar o Citerão”. Em tormento paralelo dá-se Nastácia.

A cena que será agora recortada de O Idiota58 ocorre na casa em que Míchkinse hospedara, levado por Gânia, que havia pedido Nastácia em casamento, poroutros interesses, que não o amor. Gânia, após ter ofendido gratuitamente opríncipe, discutia com a mãe e a irmã, as quais se negavam receber Nastácia.Esta, por sua vez, seduzida na sua adolescência pelo rico senhor da sociedade,Totski, como já foi dito, mantinha-se até então como sua concubina, sem o serverdadeiramente. Nastácia deveria naquela noite dar o aceite a Gânia. Nesseprimeiro encontro com o príncipe, ela terá um comportamento não usual comaquele que julga ser um criado. O príncipe, contudo, já se encontrava encanta-do pela mulher que contemplara em fotografia. Chegamos, como anunciadoanteriormente, à sala de visita carnavalizada.

Ele [o príncipe] atravessou a sala em direção à ante-sala, a fim de

chegar ao corredor, e daí ao seu quarto. Ao passar ao lado da porta

de entrada que dava para a escada, ouviu e notou que do outro

lado da porta alguém fazia todos os esforços tentando tocar a sineta;

mas pelo visto havia nela alguma coisa danificada: ela apenas estre-

mecia levemente, mas não tinha som. O príncipe puxou o ferro-

lho, abriu a porta e – recuou maravilhado, chegando até a estre-

mecer por inteiro: à sua frente estava Nastácia Filíppovna. Ele a

reconheceu imediatamente pelo retrato. Os olhos dela chameja-

ram numa explosão de irritação quando ela o viu; ela passou rapi-

83

damente para a ante-sala, empurrando-o do caminho com o om-

bro, e disse colérica, arrancando o casaco de pele:

– Se tem preguiça de consertar a sineta devia ficar pelo menos na

ante-sala quando estão batendo. Vejam, agora deixou o casaco

cair, bobalhão.

O casaco realmente estava no chão; sem esperar que o príncipe lhe

tirasse das costas, ela mesma o lançou nos braços dele sem olhar,

por trás, mas o príncipe não conseguiu segurá-lo.

– Tu precisas ser posto na rua. Vai, comunica [quem acaba de chegar]!

O príncipe quis dizer alguma coisa mas estava tão perdido que

nada conseguiu pronunciar e foi para a sala de visitas levando o

casaco que apanhara do chão.

– Vejam só, agora está indo com o casaco! Por que está levando o

casaco? Quá-quá-quá! Ora, tu és louco?

Observam-se como elementos de carnavalização na composição das perso-nagens: o encontro entre contrários que se olham mutuamente para refletir-seum no outro; o contraste entre o maravilhamento de um e a explosão de irritaçãode outro; o contato interno e familiar estabelecido entre os dois desconhecidos;a inoportunidade do comportamento de ambos, acompanhada por certa dispo-sição para revelar-se; a entronização e o destronamento; a coexistência de con-trários. Sobre o espaço e o tempo, nota-se que a ante-sala se vincula a um tempoque favorece mudanças radicais, para que se confirme o limiar. A propósito, éinteressante observar como Bakhtin se expressa a respeito desse episódio: “Écaracterística a breve cena acentuadamente carnavalesca na ante-sala, no limiar,quando aparece inesperadamente Nastácia Filíppovna e confunde o príncipecom um criado e o destrata grosseiramente”.59

No episódio subseqüente ao da ante-sala, reúnem-se na sala, além deMíchkin e Nastácia, o pai de Gânia, que é um general semi-embriagado eque insiste em contar histórias malucas e imediatamente desmentidas pelosouvintes, mais a turma mista e embriagada de Rogójin, mais os anfitriõese, entre os convivas, ainda Ferdischenko, que faz repetidas diabruras e pro-vocações. Bakhtin designará essa reunião na sala de visita como“exageradamente carnavalesca”, o que faz supor graus de carnavalização nacomposição de cenas. Dirá então que “a sala de visitas dos Ivolguin se trans-forma em praça pública carnavalesca, onde se cruzam e se entrelaçam pelaprimeira vez o paraíso carnavalesco de Míchkin e o inferno carnavalesco de

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Nastácia Filíppovna”.60 O estudioso classificará, então, Ferdischenko e ogeneral Ivolguin, personagens regidas pela inconseqüência escandalosa, como“figuras carnavalescas externas”, o que permite a identificação desses heróisem relação a figuras carnavalescas internas, tais como Míchkin e Nastácia,dados estes últimos segundo o “carnaval-mistério”. Este último remete aoDiálogo dos Mortos, de Luciano.

Por sua vez, o tempo em que se inserem todas as cenas dostoievskianascitadas dura um dia e toma a primeira parte do romance, esta que “começa noraiar da manhã e termina tarde da noite”. Esse é o tempo carnavalesco, “comoque excluído do tempo histórico”. Diz Bakhtin que os acontecimentos dadosno limiar e, portanto, em seu profundo sentido interno, acompanhados deheróis como Míchkin, não poderiam ser revelados no tempo biográfico ehistórico comum. O filósofo acrescenta que a polifonia, entendida como“ocorrência de consciências eqüipolentes e interiormente inacabadas” requerconcepção própria de tempo e espaço, o que equivale a “uma concepção ‘não-euclidiana’”.61 Destaca-se que a carnavalização do espaço liga-se ao clima car-navalesco do herói e ambos, espaço e herói, vinculam-se ao tempo das meta-morfoses radicais e revelações decisivas: o tempo carnavalizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegam ao fim estas reflexões sobre a literatura que consegue transpora linguagem do carnaval para o campo da ficção e aí instalar a visão carna-valesca de mundo. Fica registrada a carnavalização como movimento dedesestabilização, subversão e ruptura em relação ao “mundo oficial”, sejaeste pensado como antagônico ao grotesco criado pela cultura popular daIdade Média e Renascimento, seja este pensado como modo de presençaque aspira à transparência e à representação da realidade como sentido aca-bado, uno e estável, o que é incompatível com a polifonia.

De Rabelais a Dostoiévski, fica patente a transformação sofrida pelanoção de carnavalização nos estudos de Bakhtin. A obra de cada um dessesclássicos, considerada como resposta às transformações sociais e históricas,somente confirma a variação semântica do próprio discurso. O topos bur-guês sala de visita, como elemento semântico histórico, não se coaduna com

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o discurso do realismo renascentista. Entretanto, esse mesmo topos, pormeio de uma variação do ritual de coroação e destronamento, pode trans-formar-se em espaço carnavalizado. Nesse topos, tal como tratado pela poé-tica de Dostoiévski, diz Bakthin que “por um instante as pessoas se vêemfora das condições habituais de vida, como na praça pública carnavalescaou no inferno, e então se revela um outro sentido – mais autêntico – delasmesmas e das relações entre elas”.62

O inferno carnavalesco, constituinte das contradições internas do heróidado na sala de visitas, radica-se no gênero cômico-sério, de cujamaterialização tivemos a sátira menipéia de Luciano. Esse inferno faz nãocrer num mundo de evidências e inquestionabilidades. Guia-se, isto sim,para a desconstrução da realidade dada como transparência, ao desestabilizara verdade dada como acabamento. Para isso, o discurso multiplica indaga-ções sobre o rumo da vida depois e, simultaneamente, antes da morte. Mui-ta coisa fica fora do lugar habitual, na evolução da temática para as últimasquestões existenciais, enquanto se firmam na opacidade do sentido os he-róis dados em diálogo, seja no mundo dos mortos (inferno menipéico), sejano mundo dos vivos (inferno na sala de visitas), postos ambos os mundosna relação cara a cara.

Por sua vez, o efeito recorrente do absurdo e da surpresa poderia viabilizarcríticas que se referissem a tais cenas infernais como “inverossímeis emtermos reais e artisticamente injustificadas”, segundo apontamentos deBakhtin.63 É curioso que o filósofo tenha feito essa alusão à crítica contem-porânea a ele, com o fim de rebater avaliações similares a respeito de cenasde escândalos do romance de Dostoiévski. Para a réplica às inverossimi-lhanças alegadas com base nas cenas de escândalo e excentricidade deDostoiévski, Bakhtin confirma nos romances em questão a “verdade artís-tica” sustentada na linha carnavalesca. Por conseguinte, as noções de “ver-dade artística” e de carnavalização encontram-se para mútuo subsídio.

Tudo indica que a linha carnavalesca da prosa literária remete à chama-da experimentação da verdade, o que, nos estudos sobre a sátira menipéiafoi classificado como provocação filosófica. Diz Bakhtin:64

A particularidade mais importante do gênero da menipéia consis-

te em que a fantasia mais audaciosa e descomedida e a aventura

Carnavalização NORMA DISCINI

BAKHTIN outros conceitos-chave

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são interiormente motivadas, justificadas e focalizadas aqui pelo

fim puramente filosófico-ideológico, qual seja, o de criar situações

extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica.

No rastro da provocação e da experimentação filosófica ancora-se a ver-dade carnavalizada.

Com apoio nos estudos bakhtinianos, conclui-se que a experimentaçãoda verdade, tal como exercida pela menipéia, dá-se, no romance polifônico,no modo próprio de projetar o herói, o tempo e o espaço como elementosdo limiar. Ressalta-se que, no quadro teórico proposto por Bakhtin, essascategorias discursivas são descritas semanticamente. Por isso é consideradoo tempo das metamorfoses radicais, o espaço da abertura para movimentosvitais decisivos, o herói de consciência autônoma e, portanto, não dadocomo mero objeto do autor. Tais elementos assim tratados remetem aodiálogo interno, fundante da carnavalização, e ao espaço emblemático dasala de visitas, constituído no limiar entre a vida e a morte, a mentira e averdade, a razão e a loucura.

Pelo que temos visto a respeito do herói, do tempo e do espaçocarnavalizados no romance polifônico, entendemos que a experimentaçãoda verdade, herança da sátira menipéia, orienta-se para um tipo peculiar decontrato entre autor e leitor, compatível com o limiar da própria verdade.65

Retomemos, então, a título de encerramento, a composição da imagem daheroína Nastácia. Temos a cena de um embate que, investido do traço defatalidade, é travado entre Aglaia, “a grã-senhorinha”, e Nastácia (O Idiota).Observa-se que esta, dolorosamente destratada por aquela, proclama aosgritos e com “o rosto morto e deformado” a posse sobre o príncipe. Acres-centa-se que a própria Nastácia tentara aproximar esse homem de Aglaia eque a mesma Nastácia fugira dele muitas vezes e assim continuou fazendoaté o fim:66 “É meu! É meu! – bradou ela! – A grã-senhorinha orgulhosa foiembora? Quá-quá-quá! – ria num ataque de histeria. – Quá – quá-quá! Euo havia dado àquela senhorinha? E para quê? Para quê? Louca! Louca!... Vaiembora, Rogójin, quá-quá-quá!”

É da carnavalização externa a risada escandalosa e a fala entrecortada deexclamações. É da carnavalização interna a negação da equação A = A, na-quilo que essa negação fundamenta a definição do caráter de Nastácia. Não

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coincidente consigo mesma, a heroína põe em crise a verdade dogmática;não previsível nas próprias ações e reações, provoca o efeito de não-reco-nhecimento; não tipificável, confirma o próprio inacabamento. Nastácia,heroína segundo a qual nada é fixo e imutável, concretiza o herói dado nomodo da carnavalização interna.

Verdade não dogmática e carnavalização interna são noções que se am-param mutuamente. Para o esclarecimento da categoria carnavalização ex-terna/ carnavalização interna proposta por Bakhtin, contribuem, então, asnoções de “verdade artística” e de verossimilhança interna. É à carnavalizaçãointerna que o russo vincula a cosmovisão carnavalesca profunda, tal comose verifica em Nastácia e Míchkin; é à carnavalização externa que Bakhtinmantém ligada a forma “um tanto simplificada da carnavalização”, expres-são esta usada em momentos como a referência ao emprego do tema fantás-tico em Bobok67 e também em momentos como a caracterização das figurasde Ferdischenko e o general Ivolguin;68 aquele, que só faz diabruras; este,que vive semi-embriagado: ambos e, cada qual a seu modo, tão idênticos asi mesmos, que se afastam de contradições internas, do inacabamento dopróprio ser no mundo e do limiar.

A estrutura do herói dado na coexistência e na simultaneidade de contrá-rios consolida a verossimilhança interna. A essa estrutura pode juntar-se oentrecruzamento de entonações diferentes na voz do narrador, a fim de quese consolide a experimentação da verdade e a carnavalização interna para aconstrução do herói e do autor. É oportuno observar outra passagem de OIdiota, como exemplo da voz do autor dada como responsiva à voz do leitor.No contexto da narração, quem não coincide consigo mesmo será agora opróprio narrador, o qual discorre sobre o ato de narrar para desconstruí-lo eassim confirmar a carnavalização interna vinculada a esse ato:

Passaram-se duas semanas depois do acontecimento narrado no

último capítulo e a situação das personagens de nossa história

mudou a tal ponto que nos seria sumariamente difícil continuá-la

sem explicações particulares. Não obstante, sentimos que deve-

mos nos limitar a uma simples exposição dos fatos, na medida do

possível sem maiores explicações e por um motivo muito simples:

porque em muitos casos nós mesmos temos dificuldade de expli-

car o ocorrido. Esse aviso de nossa parte deve parecer muito estra-

Carnavalização NORMA DISCINI

BAKHTIN outros conceitos-chave

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nho e vago ao leitor: como narrar aquilo de que você não tem uma

noção nítida nem opinião pessoal? Para não nos colocarmos em

uma situação ainda mais falsa, o melhor é tentarmos nos explicar

exemplificando, e talvez o leitor bem intencionado compreenda a

nossa dificuldade, ainda mais porque esse exemplo não será uma

digressão, mas, ao contrário, uma continuação direta e imediata

da história.69

O desabafo subsidia a imagem do autor não centralizado, nemcentralizador, nem tampouco conclusivo, seja no que diz respeito à voz dosheróis, seja no que diz respeito à própria voz. Esse desabafo também dizrespeito à imagem do autor compromissado com a representação da verda-de como experimentação, para o que contribui a assunção explícita da nar-rativa como ato em construção. Sai robustecida a imagem do inacabamentotanto do narrado como do próprio ato de narrar, o que permite confirmara carnavalização da imagem do autor.

Autor e leitor da cena recém-transcrita, tal como dados pelo narrador,fortalecem a polifonia; aquele, ao conversar com o leitor; este, ao ser dadocomo quem pode escutar e responder. A experimentação da verdade, postaem função do ato de narrar, demonstra uma vez mais a carnavalização in-terna. Procedimentos afins podem ainda ser verificados na passagem de OsDemônios, que segue transcrita.70 Identifica-se na cena a coexistência e asimultaneidade dos tempos passado, presente e futuro, para que se firme otempo do limiar: o narrador fará com que o passado seja recordado e vividocomo presente, enquanto o futuro vira passado, o que aprofunda acarnavalização interna: “Esse dia de amanhã, isto é, o próprio domingo emque devia decidir-se irremediavelmente o destino de Stiepan Trofímovitch,foi um dos mais notáveis de minha crônica”. Vamos à cena:

Saí. Um pensamento inverossímel se consolidava mais e mais em

minha imaginação. Pensava com tristeza no amanhã...

[...]

Esse “dia de amanhã”, isto é, o próprio domingo em que devia

decidir-se irremediavelmente o destino de Stiepan Trofímovitch,

foi um dos mais notáveis dias de minha crônica. Foi um dia de

surpresas, um dia de desfechos do velho e de desencadeamento do

novo, de vários esclarecimentos e de ainda mais confusão. Pela

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manhã, como o leitor já sabe, eu estava obrigado a acompanhar

meu amigo à casa de Varvara Pietrovna, conforme ela mesma ha-

via marcado, e às três horas já deveria estar em casa de Lizavieta

Nikoláievna para lhe contar – eu mesmo não sei o quê – e ajudá-

la – eu mesmo não sei em quê. Enquanto isso, tudo se resolveu de

um modo que ninguém havia suposto. Em suma, foi um dia de

coincidências surpreendentes.

Antes de proceder ao exame do tempo, pensemos no não-saber donarrador sobre o narrado. Ao falar do agora do ato de narrar, com os olhosvoltados ao passado, o narrador é previsto como aquele que sabe tudo sobreo vivido. Não é, entretanto, o que acontece. É no desconhecimento sobre oque foi contar a Lizavieta e em que foi ajudá-la que se mantém o narrador.Com a corroboração do não-saber do narrador (“não sei”, duas vezes afir-mado), confirma-se como semanticamente inacabado o próprio passado;isso, à revelia do uso das formas verbais do pretérito perfeito, que encerrama passagem: “tudo se resolveu; foi um dia de coincidências surpreendentes”.Por meio da utilização de tais recursos, narrador e passado narrado sãomantidos na ambigüidade carnavalesca profunda.

Como já foi ressaltado, estamos no âmbito da carnavalização interna,para o que contribui a neutralização dos tempos. Destaca-se, ainda, aneutralização da oposição futuro do pretérito (deveria)/ pretérito imperfeito(devia). Este tempo, usado no lugar daquele, respalda o efeito de certeza,mas, ao ratificar a instabilidade temporal, consolida o inacabamento e, comele, a verossimilhança interna: “Esse dia de amanhã, isto é, o próprio do-mingo em que devia [deveria] decidir-se irremediavelmente o destino deStiepan Trofimovitch, foi um dos mais notáveis de minha crônica”.

Atentemos um pouco mais para essa verossimilhança: “Pensava comtristeza no amanhã. Esse dia de amanhã foi um dos mais notáveis de minhacrônica”. “Amanhã”, advérbio usado para exprimir a posterioridade em re-lação ao momento presente, é da ordem do futuro; no entanto, na cenanarrada, o “dia de amanhã” vira passado, como já observamos: “foi um dosmais notáveis”. Rompe-se, então, uma vez mais, a verosssimilhança externa,esta que poderia ter sido viabilizada de tantas maneiras, como por meio douso do presente: Esse ‘dia de amanhã’ é um dos mais notáveis de minha crôni-ca. Com essa hipótese, ficaria confirmada a concomitância do narrado em

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BAKHTIN outros conceitos-chave

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relação ao agora do ato de narrar. Na cena de Os Demônios fica, entretanto,neutralizada a oposição presente vs. passado, em benefício deste último. Comisso confirma-se a destruição da previsilibilidade e da fixidez, para que seinstaure a carnavalização do ato de narrar.71 Há ainda uma outra hipótese,também formulada sob a perspectiva do acabamento e da verossimilhançaexterna: Esse dia foi um dos mais notáveis da minha vida. Eliminada a expressão“de amanhã” (futuro) e “minha crônica” (presente), teríamos o encadea-mento temporal dado sem desestabilizações na anterioridade.

Notamos, contudo, que não interessam estabilidades vinculadas àunivocidade e ao limite, nem para a polifonia da obra de Dostoiévski, nempara o realismo grotesco da obra de Rabelais. Para que possa ser arquitetadaa carnavalização de maneira própria em cada uma das totalidades referidas,é imprescindível a ambivalência estrutural das imagens. A funçãocarnavalizadora do herói, do tempo e do espaço articula-se a um sistema derepresentação que se afasta da fixidez e do acabamento.

Ao fim destas notas que fique então a noção do limiar como elementoconstituinte da carnavalização. Entretanto, anteriormente a isso, que fiquea constatação de que a carnavalização é categoria que pode ser depreendidae analisada nos textos de qualquer época. Certamente cobra pesquisa a des-crição do riso reduzido, considerado como efeito de sentido dos textos. Épreciso procurar entender, para que se possa fruir a percepção carnavalescado mundo a partir da sala de visita.

NOTAS

1 Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de FrançoisRabelais, trad. Yara Frateschi Vieira, São Paulo, Hucitec, 1987, p. 343.

2 Idem, p. 344.3 Idem, ibidem.4 Idem, ibidem.5 Mikhail Bahtin, Problemas da Poética de Dostoiévski, trad. Paulo Bezerra, Rio de Janeiro, Fo-

rense-Universitária, 1981.6 Idem, ibidem.7 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 138-9.8 François Rabelais, Gargântua e Pantagruel, trad. David Jardim Júnior, Belo Horizonte,

Hitatiaia, 2003.

91

9 As passagens transcritas, que dizem respeito ao episódio da ressurreição, encontram-se na obrarecém-citada de Rabelais (2003), entre as páginas 363 e 369.

10 Respeitou-se em todas as transcrições o uso das aspas tal como apresentado na fonte.11 As citações que dizem respeito ao parto encontram-se na obra indicada de Rabelais (2003), entre

as páginas 253 e 255.12 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1987, pp. 28-9.13 Idem, ibidem.14 Idem, ibidem.15 Rabelais, op. cit., 2003, pp. 732-4.16 As citações que dizem respeito ao episódio dos papafigas encontram-se na obra indicada de

Rabelais (2003), entre as páginas 724 e 733.17 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1987, pp. 22-3.18 Idem, ibidem.19 Idem, p. 268.20 Idem, p. 17.21 Idem, p. 45.22 Erasmo de Rotterdam, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreio, Lisboa, Estampa, 1978,

pp. 100 -4.23 Roman Jakobson, Lingüística e Comunicação, trad. Isidoro Blinkstein e José Paulo Paes, São

Paulo, Cultrix, 1970.24 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1987, p. 26.25 Mikhail Bakhtin e Voloshinov, Marxismo e Filosofia da Linguagem, trad. Michel Lahud e Yara

F. Vieira, São Paulo, Hucitec, 1988, p. 46.26 Idem, p. 41.27 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1987, p. 27.28 Idem, p. 25.29 Idem, pp. 29, 33.30 Álvares de Azevedo, Poesias Completas de Álvares de Azevedo, São Paulo, Saraiva, 1957, pp. 219-20.31 Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira (momentos decisivos), 3. ed., São Paulo,

Martins Fontes, 1969, v. 2, pp. 182-3.32 Idem, ibidem.33 Álvares de Azevedo, op. cit., 1957, pp. 56-7.34 François Rabelais, op. cit., 2003, p. 328.35 Idem, pp. 332-5.36 Idem, p. 334.37 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981.38 Paulo Bezerra, Polifonia, em Beth Brait (org.), Bakhtin: conceitos-chave, São Paulo, Contexto,

2005, pp. 191-200.39 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 153.40 Idem, p. 16.

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BAKHTIN outros conceitos-chave

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41 Idem, p. 23.42 Fiódor Dostoiévski, O Jogador (do diário de um jovem), trad. Moacir Werneck de Castro, 6.

ed., Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 2002, pp. 144-6.43 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 149.44 Fiódor Dostoiévski, op. cit., 2002, p. 54.45 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 95.46 Idem, p. 105.47 Idem, p. 92.48 Luciano de Samósata (Luciano), Diálogo dos Mortos, trad. e notas de Maria Celeste Consolin

Dezotti, São Paulo, Hucitec, 1996, pp. 173-83.49 Segundo notas da edição consultada da obra de Luciano, temos esclarecimentos a respeito dos

heróis: Antístenes (personagem histórica) foi discípulo de Sócrates, viveu de 445 a 365 a.C. É ofundador da escola cínica. Diógenes (personagem histórica) dito filósofo cínico, discípulo deAntístenes, converteu-se numa das figuras mais populares da Antigüidade. Em Atenas, moravanum tonel e costumava andar com uma lanterna à procura de um homem de verdade. Hermes(personagem mitológico) foi mensageiro dos deuses, era o único deus que transitava pelos trêsmundos, o céu, a terra e o mundo dos mortos. Menipo (personagem histórica) é tido tambémcomo filósofo cínico do século III a.C. e celebrizou-se como o criador da “sátira menipéia”. Tirésias(personagem mitológico) é o mais célebre dos adivinhos gregos. Como revelou a Zeus que de dezpartes do prazer sexual a mulher experimentava nove e o homem uma só, Hera enfureceu-se epuniu-o com a cegueira. Zeus, em recompensa, concedeu-lhe o dom da profecia. Foi o únicomortal que viveu os dois sexos: foi homem e foi mulher.

50 Todas as passagens transcritas do Diálogo dos Mortos encontram-se na obra citada de Luciano,1996, nas páginas já indicadas.

51 Luciano, op. cit., 1996, p. 15.52 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 99.53 Fiódor Dostoiévski, O Idiota, trad. Paulo Bezerra, São Paulo, Editora 34, 2003, p. 65.54 Idem, p. 368.55 Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 151.56 Idem, p. 152.57 Luciano, op. cit., 1996, p. 175.58 Fiódor Dostoiévski, op. cit., 2003, pp. 130-1.59 Mikhail Bakhtin, 1981, p. 152.60 Idem, ibidem.61 Idem, p. 153. (Essa indicação cobre todas as citações do parágrafo.)62 Idem, p. 125.63 Idem, p. 126.64 Idem, p. 98.65 José Luiz Fiorin desenvolveu interessante estudo sobre diferentes tipos de contratos enunciativos,

dados em função da representação da verdade e da realidade em obras literárias. Trata-se doartigo intitulado “Crise de representação ou aumento de complexidade? O exemplo do romance”(2005, cópia xerog.). Esse estudo aprofunda a análise do trabalho com a linguagem na literatura.

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66 Fiódor Dostoiévski, op. cit., 2003, p. 635.67 Mikhail Bakhtin, 1981, op. cit., p. 126.68 Idem, p. 152.69 Fiódor Dostoiévski, op. cit., 2003, p. 636.70 Fiódor Dostoiévski, Os Demônios, trad. Paulo Bezerra, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 157.71 Sobre Neutralização entre Tempos Verbais, ver Fiorin, op. cit., 1966, pp. 191-228.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Cronotopo eexotopia

Marilia Amorim

Cronotopo e exotopia são dois conceitos de Bakhtin que falam darelação espaço-tempo. O primeiro foi concebido no âmbito estrito dotexto literário; o segundo refere-se à atividade criadora em geral – inicial-mente à atividade estética e, mais tarde, à atividade da pesquisa em Ciên-cias Humanas.

Os dois conceitos, construídos em momentos distintos, tratam da relaçãoespaço-tempo de modo também distinto, mas, apesar disso, em nenhummomento do pensamento bakhtiniano, eles se substituem. Permanecem, aolongo de sua obra, como dois modos possíveis de abordar essa relação.

A tradução da expressão em russo para o francês exotopie foi propostapor Todorov1 naquela que foi a primeira obra a sistematizar, para a EuropaOcidental, o pensamento de Bakhtin. Talvez pela sua importância no tra-balho de difusão e de introdução no Ocidente da obra de Bakhtin, a tradu-ção de Todorov ficou consagrada. Alguns tradutores a criticam pelo seu

BAKHTIN outros conceitos-chave

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caráter estranho à língua portuguesa e mesmo ao idioma russo. Mas consi-deramos que, do ponto de vista do enunciado e não da língua, a expressãoforjada por Todorov é bastante feliz, pois sintetiza o sentido que se produzna obra de Bakhtin e que é o de se situar em um lugar exterior.

A idéia de um lugar exterior, fundamental ao trabalho de criação e deobjetivação, já aparece no primeiro grande texto de Bakhtin, o “Para umafilosofia do ato”. Mas seu texto de base é “O autor e o herói”, publicado nacoletânea Estética da criação verbal. Esses dois textos indicam que a idéia deexotopia começou a ser concebida a partir de 1919 e que tomou formaentre 1922 e 1924. Veremos, adiante, que o conceito de cronotopos é en-gendrado e formulado em um ensaio escrito entre 1937 e 1938, portantomais de dez anos depois.2

A criação estética expressa a diferença e a tensão entre dois olhares,entre dois pontos de vista. Se tomarmos o exemplo do retrato, em pintura,falaremos do olhar do retratado e do olhar do retratista ou artista. O traba-lho deste último consiste em dois movimentos. Primeiro, o de tentar captaro olhar do outro, de tentar entender o que o outro olha, como o outro vê.Segundo, de retornar ao seu lugar, que é necessariamente exterior à vivênciado retratado, para sintetizar ou totalizar o que vê, de acordo com seus valo-res, sua perspectiva, sua problemática.

O retratado é aquele que vive cada instante de sua vida como inacabado,como devir incessante. Seu olhar está voltado para um horizonte sem fim.O sentido da vida para aquele que vive é o próprio viver. O retratista tentaentender o ponto de vista do retratado, mas não se funde com ele. Eleretrata o que vê do que o outro vê, o que olha do que o outro olha. De seulugar exterior, situa o retratado num dado ambiente, que é aquilo que cercao retratado, e em relação ao qual é situado pelo artista. O ambiente é umadelimitação dada pelo artista, uma espécie de moldura que enquadra o re-tratado. A delimitação do artista dá um sentido ao outro, fornece uma visãodo outro que lhe é completamente inacessível. Não posso me ver comototalidade, não posso ter uma visão completa de mim mesmo, e somenteum outro pode construir o todo que me define.

Os acontecimentos maiores que definem minha existência, meu nasci-mento e minha morte, não me pertencem. Porque, para que ganhem senti-do de acontecimento, precisam ser situados em relação a um antes e a um

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depois. E não posso estar antes do meu nascimento nem depois de minhamorte. O que faz Bakhtin dizer que “ninguém é herói de sua própria vida”.Somente posso me constituir como herói no discurso do outro, na criaçãodo outro. O outro que está de fora é quem pode dar uma imagem acabadade mim e o acabamento, para Bakhtin, é uma espécie de dom do artistapara seu retratado. O acabamento aqui não tem sentido de aprisionamento,ao contrário, é um ato generoso de quem dá de si. Dar de sua posição, daraquilo que somente sua posição permite ver e entender.

Um interessante exercício para trabalhar o conceito de exotopia étentar observar um retrato que Picasso fez de uma de suas mulheres,Dora Mäar. Sabemos que Picasso teve várias mulheres e que delas fezvários retratos, mas entre os vários que pintou desta mulher, este setornou o mais conhecido. Chama-se A mulher que chora e foi concluídono final de 1937.

Primeiramente, é preciso dizer que a própria estética do cubismo co-loca em cena uma multiplicidade de olhares. Mais do que o objeto em si,o que se vê são os múltiplos olhares possíveis sobre um objeto. O quepoderíamos tomar como deformação do objeto é, na verdade, um certocorte do objeto e de alguns de seus ângulos. Como o próprio Picassodisse, “eu pinto o que penso e não o que vejo”. Essa estética rompe com aidéia de um objeto idêntico a ele mesmo, o que permitiria um olhar está-vel. Assim, ele restitui o movimento do sentido do objeto pela restituiçãodo movimento do olhar.

Em tensão direta com essa abertura a possíveis e infinitos olhares, há ogesto exotópico de acabamento e totalização pelo olhar do artista. ParaPicasso, neste quadro, Dora Mäar é a mulher que chora. Ela é definida pelassuas lágrimas, pelo seu choro, e toda a composição do retrato está a serviçodesta única idéia. Todos os elementos participam na criação do todo: orosto decomposto, sacudido, animalizado, terrível, é o próprio retrato dochoro e do sofrimento.3 A beleza feminina, tantas vezes cantada e pintada,é aqui literalmente desfeita. A decomposição dos traços, os traçados rápidose espessos das linhas constroem, então, um outro movimento. O movimen-to do choro, do rosto sendo abalado e sacudido pelo sofrimento e pelaconvulsão das lágrimas. O movimento do olhar e da decomposição da figu-ra presentifica o movimento do corpo de quem chora. O movimento do

Cronotopo e exotopia MARILIA AMORIM

BAKHTIN outros conceitos-chave

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sofrimento é dado na totalização que cria o artista do olhar do outro. Opróprio retrato inspira terror, porque Dora Mäar está aterrorizada pelo quevê, pelo que olha.

Pode-se dizer que uma das razões do sucesso desse retrato é que elepassou, de certo modo, a representar o choro ou o sofrimento da mulher emgeral. Ou ainda, o choro e o sofrimento da humanidade em geral. Enfim, atotalização exotópica do artista criou, a partir de uma mulher singular, emuma situação particular, um sentido abstrato e universal.

Alguns dados da história permitem consolidar nossa leitura bakhtinianadessa obra. Picasso e Dora Mäar eram comunistas militantes e, no momen-to do retrato, estamos em plena Guerra Civil Espanhola. Em maio/junhodo mesmo ano, Picasso finaliza o famoso painel Guernica. Painel este que seinspirou em fotos da guerra de jornais da época. Dora Mäar também eraartista, fotógrafa e criadora de montagens cubistas. Ela fotografou as dife-rentes fases do painel Guernica, enquanto este estava sendo feito por Picasso.Pode-se então dizer que Dora Mäar olha a guerra e que Picasso restitui oque vê do olhar de Dora Mäar olhando a guerra.

Passando agora para a história individual da personagem, outras coinci-dências com nossa leitura aparecem. Sabe-se por inúmeros documentosque Dora Mäar era uma mulher que foi se tornando cada vez mais depressiva.Ao final de sua vida, a depressão tomou conta dela e ela tornou-se louca.Pode-se dizer que Picasso, de seu lugar exterior, captou algo de profundo eessencial dessa mulher. E que até anteviu que as lágrimas e o sofrimentoviriam efetivamente a definir o sentido da existência de Dora Mäar.

O conceito de exotopia é também muito importante para o trabalho depesquisa em Ciências Humanas. As Ciências Humanas são entendidas porBakhtin como ciências do texto, pois o que há de fundamentalmente hu-mano no homem é o fato de ser um sujeito falante, produtor de textos.Pesquisador e sujeito pesquisado são ambos produtores de texto, o queconfere às Ciências Humanas um caráter dialógico. Uma primeira conse-qüência disto é que o texto do pesquisador não deve emudecer o texto dopesquisado, deve restituir as condições de enunciação e de circulação quelhe conferem as múltiplas possibilidades de sentido. Mas o texto dopesquisado não pode fazer desaparecer o texto do pesquisador, como se estese eximisse de qualquer afirmação que se distinga do que diz o pesquisado.

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Cronotopo e exotopia MARILIA AMORIM

Picasso, retrato de Dora Mäar.

BAKHTIN outros conceitos-chave

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O fundamental é que a pesquisa não realize nenhum tipo de fusão dos doispontos de vista, mas que mantenha o caráter de diálogo, revelando sempreas diferenças e a tensão entre elas. Importante ressaltar que esse diálogo nãoé simétrico e aqui reaparece o conceito de exotopia. O pesquisador devefazer intervir sua posição exterior: sua problemática, suas teorias, seus valo-res, seu contexto sócio-histórico, para revelar do sujeito algo que ele mes-mo não pode ver.

No âmbito da cultura, a exotopia é o motor mais potente da com-

preensão. Uma cultura estrangeira não se revela em sua completude

e em sua profundidade que através do olhar de uma outra cultura

[e ela não se revela nunca em toda sua plenitude, pois outras cultu-

ras virão e poderão ver e compreender mais ainda]. [...] Face a

uma cultura estrangeira, colocamos perguntas novas que ela mes-

ma não se colocava. Procuramos nelas uma resposta a essas ques-

tões que são as nossas, e a cultura estrangeira nos responde, nos

desvelando seus aspectos novos, suas profundidades novas de sen-

tido. Se não colocamos nossas próprias questões, nos desligamos

de uma compreensão ativa de tudo que é outro e estrangeiro [tra-

ta-se, bem entendido, de questões sérias, verdadeiras].4

Em seus últimos escritos, o valor do conceito de exotopia para a pesqui-sa é confirmado pelo modo como Bakhtin analisa o trabalho de compreen-são do texto do outro:

Em um primeiro momento, a tarefa consiste em compreender a

obra como a compreendia o próprio autor, no interior dos limites

da compreensão que lhe era própria. Dar conta desta tarefa é difícil

e necessita geralmente que se recorra a um material considerável.

Em um segundo momento, a tarefa consiste em tirar partido de

sua exotopia temporal e cultural – incluir a obra em seu próprio

contexto (estrangeiro ao autor).5

Como já dissemos, o conceito de exotopia, embora possa designaruma posição no tempo, por exemplo, de um pesquisador que analisa umtexto de outra época, enfatiza a dimensão espacial. Essa ênfase não é casu-al. O conceito está relacionado à idéia de acabamento, de construção deum todo, o que implica sempre um trabalho de fixação e deenquadramento, como uma fotografia que paralisa o tempo. O espaço é a

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dimensão que permite fixar, inscrever o movimento ou, dito de outraforma, a dimensão em que o movimento pode se escrever e deixar suasmarcas. A fixação é o resultado de todo trabalho de objetivação, seja cien-tífico ou artístico, pois esse trabalho distingue dois sujeitos e duplica seusrespectivos lugares: o daquele que vive no instante e no puro devir e odaquele que lhe empresta um suplemento de visão por estar justamentede fora. Por mais provisória que possa ser a objetivação produzida, elaimplica sempre o extrair-se do puro movimento. Isto não significa que oautor ou o pesquisador vivem fora do tempo e dos acontecimentos. Maso acontecimento do qual o pesquisador participa já é um outro: é o acon-tecimento do próprio pensar. Nesse acontecimento, o autor ocupa umlugar singular e único que o constrange a se responsabilizar, face ao outro,pelo seu pensamento. Ao assinar seu pensamento ou sua obra, o autor atorna não-indiferente: dota-lhe de valor no contexto.

Interessante notar que o acabamento daquilo que é por naturezainacabado, a objetivação e o excedente de visão, acessíveis somente porexotopia, são os mesmos elementos que constituem o estilo do autor.

Beth Brait,6 em seu artigo sobre o conceito dialógico de estilo, coloca aseguinte epígrafe de Bakhtin:

“Onde o poeta achou esse ponto? Onde ele se encontra e de

onde observa?”

E mais adiante, o estilo é assim definido:

Chamamos estilo a unidade constituída pelos procedimentos empre-

gados para dar forma e acabamento ao herói e ao seu mundo [...].7

Vemos assim que assinatura em Bakhtin é algo que designa a singulari-dade do autor na relação de alteridade colocada por um dado contextosocial. Ela é, ao mesmo tempo, originalidade e responsabilidade. Em rela-ção ao estilo, Brait lembra que se “ele é o homem”, no dito de Buffonconhecido por todos, em Bakhtin, ele é pelo menos duas pessoas ou maisprecisamente, uma pessoa mais seu grupo social. Do mesmo modo, o con-ceito de exotopia designa uma relação de tensão entre pelo menos doislugares: o do sujeito que vive e olha de onde vive, e daquele que, estando defora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê do olhar do outro.

Cronotopo e exotopia MARILIA AMORIM

BAKHTIN outros conceitos-chave

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A criação estética ou de pesquisa implica sempre um movimento duplo: ode tentar enxergar com os olhos do outro e o de retornar à sua exterioridadepara fazer intervir seu próprio olhar: sua posição singular e única num dadocontexto e os valores que ali afirma.

Quanto ao conceito de cronotopos, este traz no nome um maior equi-líbrio entre as dimensões de espaço e de tempo. Bakhtin toma-o empresta-do à matemática e à teoria da relatividade de Einstein para exprimir aindissolubilidade da relação entre o espaço e o tempo, sendo este últimodefinido como a quarta dimensão do primeiro. O cronotopos em literaturaé uma categoria da forma e do conteúdo que realiza a fusão dos índicesespaciais e temporais em um todo inteligível e concreto.

Os índices do tempo descobrem-se no espaço e este é percebido e

medido de acordo com o tempo.8

Assim, por exemplo, o cronotopos da estrada, em um certo tipo deromance, indica o lugar onde se desenrolam as ações principais, onde sedão os encontros que mudam a vida dos personagens. No encontro, a defi-nição temporal (naquele momento) é inseparável da definição espacial(naquele lugar). A estrada é, portanto, o lugar onde se escande e se mede otempo da história. A cada vez, é preciso voltar a ela para que o tempoavance. Analogamente, encontramos no âmbito do cinema um tipo de fil-me que se convencionou chamar de road movie. O termo designa aquelesfilmes que se desenrolam inteiramente na estrada. Um bom exemplo dafilmografia recente é Diários de motocicleta, em que, por assim dizer, a per-sonagem histórica que irá se tornar Che Guevara revela-se na experiênciada estrada e se forja na temporalidade da viagem.

Entretanto, quando lemos o texto básico do conceito de cronotopos,descobrimos que há na verdade uma inversão com relação ao conceito deexotopia. Aqui, o elemento privilegiado é o tempo. Esse privilégio é formu-lado brevemente e entre parênteses.

Em todas as análises que se seguem, concentraremos nossa atenção

no problema do tempo (princípio primeiro do cronotopos) [...].9

Ao longo de todo o texto, Bakhtin deixa claro que deseja saber, emcada época da história do romance, como o problema do tempo é trata-

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do ou qual é a concepção de tempo que vigora. A concepção de tempotraz consigo uma concepção de homem e, assim, a cada novatemporalidade, corresponde um novo homem. Parte, portanto, do tem-po para identificar o ponto em que este se articula com o espaço e for-ma com ele uma unidade. O tempo, conforme já indicamos, é a dimen-são do movimento, da transformação e, várias vezes nesse ensaio, vemosBakhtin analisar a natureza da metamorfose a que é submetido o herói.Por exemplo: identifica a metamorfose por crise, a metamorfose da pro-va e assim por diante. Em todos os casos estamos diante de uma análiseque põe em relevo a relação alteração/identidade. As questões centraisda história do romance são: como o herói se torna outro? Como é obri-gado a passar por outro? Como o herói acaba por ser identificado ouque provas lhe são exigidas para que confirme sua identidade? Estamos,portanto, no campo das transformações e dos acontecimentos. E este éo campo do tempo.

Não por acaso, Bakhtin segue uma linha (evolutiva?) de análise que setece entre dois pontos precisos da história. Começa com o romance grego,cujo tempo é voltado para um passado mítico estável e em que o heróiatravessa todas as provas permanecendo idêntico a ele mesmo. Terminacom o cronotopos de Rabelais, da cultura popular e do carnaval. Ora, oponto final opõe-se assim ao inicial, pois o movimento se torna máximo e ametamorfose radical.

Em seu estudo maior dedicado a Rabelais e à cultura popular,10 Bakhtinexplica que o verdadeiro herói do carnaval é o tempo. Diferentemente daliteratura que trata do indivíduo e em que se encontram múltiplos temposcorrespondentes aos diferentes indivíduos e às diferentes esferas de suasatividades, na cultura popular e no carnaval, o tempo é coletivo. Ou seja, osujeito da cultura popular é o sujeito coletivo. Seu espaço é a praça pública,espaço de todos. O coletivo remete aqui à idéia de uma sociedade semclasses em que todos compartilham do trabalho e, por conseguinte, com-partilham do tempo. Tempo compartilhado, porque suposto como anteriore posterior à sociedade de classes.

Esse tempo compartilhado, porém, se distingue também do tempomítico, o qual se volta para um passado que é sempre o mesmo. Aqui otempo integra o passado e o futuro mais longínquos, para ressignificá-los a

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cada vez. Tempo de transformações incessantes e inevitáveis, em que asgerações desempenham um papel fundamental de transmissão e de supera-ção. Tempo que se define como grande temporalidade, pois projeta a huma-nidade e o mundo para um além do contexto conhecido e representado. Ashierarquias e os poderes estabelecidos são contingentes e serão transforma-dos. Esse tempo é maior do que todos porque é utópico da abertura denovas possibilidades. Renovação dos sentidos do passado e criação de senti-dos futuros. Aqui, o sentido não morre, já que se inscreve em um espaço-tempo de permanente abertura às transformações. Como a terra da semea-dura e da colheita, o espaço da praça pública acolhe tanto os ciclos cósmicosquanto as sucessões históricas. Aqui, a morte é o que engendra a vida e avida é o que vai morrer. O corpo não é o corpo individual e biográfico, masé a carne do mundo. Aqui, os ideais e os valores não pertencem a ummundo abstrato, mas se materializam e tomam forma nos elementos davida. Em resposta direta à ordem religiosa medieval do tempo de Rabelais,no carnaval não é preciso matar o corpo ou condenar a matéria ao que épecaminoso e sujo para alcançar a outra esfera, seja ela mundo das idéias oumundo da alma.

A morte não começa nada, e não conclui nada de essencial no

mundo coletivo e histórico da vida humana.11

Chegamos a um ponto em que Bakhtin parece dialogar consigo mes-mo. Ao contrário do que diz em seu texto de base sobre o conceito deexotopia, a morte na cultura popular não designa um acontecimentoconstitutivo nem definitivo. Mas, justamente, no texto sobre exotopia, amorte e o nascimento dizem respeito à constituição do indivíduo ou doherói, que somente pode ser herói para um outro sujeito, para aquele que orepresenta e o totaliza. Já no carnaval, estamos no âmbito do sujeito coleti-vo, do povo na rua e da rua no tempo.

A diferença entre o conceito de cronotopo e o de exotopia não constituiuma contradição. Quando Bakhtin retoma, nesse mesmo texto dedicado aoconceito de cronotopo, a questão da criação e do lugar do autor, as idéiasapresentadas no texto dedicado ao conceito de exotopia permanecem asmesmas. Ele distingue o tempo que representa do tempo representado pararesponder à seguinte questão: a partir de que ponto espaço-temporal o au-

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tor considera os acontecimentos que narra? Responde, então, reafirmandoenfaticamente o conceito de exotopia, embora sem nomeá-lo. Mesmo nocaso de uma escrita autobiográfica ou confessional, o autor permanece defora do mundo que é por ele representado.

Se narro (ou relato por escrito) um acontecimento que acaba de

me acontecer, já me encontro, enquanto narrador (ou escritor),

fora do tempo e do espaço onde o episódio ocorreu. A identidade

absoluta de meu “eu” com o “eu” de que falo é tão impossível

quanto suspender-se a si próprio pelos cabelos. Por mais verídico,

por mais realista que seja o mundo representado, ele não pode nun-

ca ser idêntico, do ponto de vista espaço-temporal, ao mundo real,

àquele que representa, àquele onde se encontra o autor que criou

essa imagem.12

Esse trecho prova que os dois conceitos, longe de se substituírem,completam-se ao tratarem de domínios distintos. O conceito de exotopiatrata da questão da criação individual. Desde seu esboço em Para umafilosofia do ato, este é um conceito que visa consolidar duas teses. A pri-meira, que irá atravessar todo o pensamento bakhtiniano, diz que o esté-tico e o epistemológico, isto é, a criação artística e a criação de conheci-mentos, são irredutíveis ao um. Há sempre no mínimo dois que não semisturam, que não se fusionam: dois olhares, o que em outros textos deBakhtin irá corresponder a duas vozes (no mínimo). E quando, em umaobra qualquer, se ouvem vozes, ouvem-se também, com elas, mundos:cada um com o espaço e o tempo que lhe são próprios. A segunda tesetrazida com o conceito de exotopia afirma que a criação é sempre ética,pois do lugar singular do criador derivam-se valores.

O conceito de cronotopo trata de uma produção da história. Designaum lugar coletivo, espécie de matriz espaço-temporal de onde as váriashistórias se contam ou se escrevem. Está ligado aos gêneros e a sua trajetó-ria. Os gêneros são formas coletivas típicas, que encerram temporalidadestípicas e assim, conseqüentemente, visões típicas do homem. Por exemplo:Bakhtin mostra que à visão do sujeito individual e privado corresponde umtempo individualizado e desdobrado em múltiplas esferas: o tempo de cadaum dos sujeitos, em função de suas múltiplas vivências. Já numa visão dohomem como sujeito público, que se define inteiramente pela esfera social,

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corresponde um tempo coletivo e único: tempo partilhado por todos emesferas comuns de atividade.

Podemos então concluir que, no trabalho de análise dos discursos e dacultura, quando conseguimos identificar o cronotopo de uma determinadaprodução discursiva, poderemos dele inferir uma determinada visão dehomem. Determinadas produções culturais facilitam essa tarefa, pelo seupoder de síntese e por sua precisão, e podem, assim, nos ajudar a identificaro que poderíamos chamar de cronotopo contemporâneo.

Se tomarmos como exemplo o cinema do iraniano Kiarostami, encon-tramos algo de sistemático a esse respeito. Em muitos de seus filmes,13 umagrande parte das cenas se passa no interior de um carro ou na visão exteriorde um carro. Pode-se dizer que o carro desempenha em seus filmes umverdadeiro papel de cronotopo, pois é ali que o tempo da ação se escande eavança. Isso nos convida a refletir sobre a possibilidade de entender o carrocomo um dos principais cronotopos do mundo contemporâneo e que, comele, uma visão de homem se afirma.

O carro é um lugar fechado, idêntico a si mesmo, que atravessa lugaresabertos. Freqüentemente, vemos em seus filmes, imensos espaços no cam-po recortados por uma pequena estrada e a visão minúscula de um carro aolonge. Com o carro, é possível mudar de lugar, sem mudar de lugar. Atra-vessar diferentes paisagens tendo sempre o mesmo ângulo de visão.

Em Através das oliveiras (1994), a câmera restringe o ângulo de visão àjanela da Kombi, o que faz com que várias vezes se perca a visibilidade dooutro que ficou pra trás ou do rosto que é mais alto do que a janela. Ooutro é obrigado a se abaixar e enquadrar o rosto na janela do carro parapoder dialogar com o motorista impassível e ereto em seu volante.

Com o carro encontramos o outro: outro lugar, outra cultura, outraspessoas, de dentro de nosso mundo, recobertos por nossa carapaça. Comele, podemos ir mais longe do que a pé ou a cavalo, e, sobretudo, estamosprotegidos e exercemos um maior controle daquilo que poderia interferirem nossa viagem. Nosso contato com o outro obedece às condições ditadaspelo “estar de carro”. O carro nos torna mais independentes do outro.

Levando a imagem ao extremo, podemos evocar os carros de turismoque vemos em nosso cotidiano, circulando pelas cidades dos diferentes paí-ses: os viajantes permanecem entre si, ouvindo e falando sua própria lín-

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gua. No ônibus, sentem-se “em casa” e é dessa pequena janela que obser-vam o mundo. O desenvolvimento e o monopólio da indústria automobi-lística condenam o sujeito contemporâneo ao carro. Assim, tornou-se pos-sível a contradição de viajar sem sair de casa.

Mas o cinema de Kiarostami não se conforma com essa visão de ho-mem. Ao contrário, ele desmonta essa lógica, introduzindo justamente oprincípio da alteração dentro do carro. A grande viagem, dentro desselugar idêntico a si mesmo que é o carro, se dá pelo diálogo com o outro.Os diálogos são a ação, os diálogos são o que transforma. Pode-se mesmodizer que, nos filmes de Kiarostami não acontece nada, nada além dediálogos. Nada além da trama delicada e tensa de um diálogo, em que sebuscam respostas, em que se busca dar sentido, no qual há enigmas adecifrar. O outro é, por princípio, opaco. Opacidade que contradiz intei-ramente o valor de “transparência” que se afirma nas formas atuais decomunicação. Em O gosto da cereja (1996), o personagem-motorista querse suicidar e, com cada um que sobe em seu carro, ele conversa a respeito.Ele está à procura de alguém que o queira enterrar o que, evidentemente,coloca um enigma.

Outro aspecto importante é que os carros de Kiarostami não corremnunca. Ao tempo da velocidade que o carro poderia proporcionar, opõe-seo tempo lento que um verdadeiro diálogo exige. Ao contrário do carro queaparece nos filmes de ação e de aventura do mundo contemporâneo, ocarro aqui não exibe performance nem precisão. Muitas vezes é um carrovelho ou claudicante. O que importa é o diálogo que pode ocorrer dentrodele. Diálogo no sentido bakhtiniano que não tem nada de harmônico eque é muito mais uma arena. Discussões, discordâncias, mas também umprofundo entendimento.

Mas é um entendimento que altera. A personagem do diretor em Atra-vés das oliveiras decifra, nas conversas de carro, o enigma que ela encontrano outro. Por que os habitantes daquela paisagem tão bonita e tranqüilapreferem morar na beira da estrada? Porque, dizem eles, durante o terremo-to que ali aconteceu, salvaram-se aqueles que estavam mais próximos docontato externo. Uma outra lógica, a da sobrevivência, sobrepõe-se àquelade quem está a passeio e que prefere os lugares calmos e isolados. Por que orapazinho analfabeto não quer casar com uma moça analfabeta? Porque,

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diz ele, um casal deve ser complementar. Ele, que é marceneiro, poderáconstruir a casa para morar, e a esposa, que tiver estudos, poderá ajudar osfilhos na escola. A descoberta de outras lógicas diferentes da sua transformao ponto de vista do diretor.

O carro em Kiarostami é, assim, o cronotopo a partir do qual se dão astransformações de sentido. O filme que melhor condensa essa idéia não sepassa no campo, mas na cidade, e isso faz com que as paisagens exterioresdesapareçam quase por completo. O filme inteiro se passa dentro de ummesmo carro, o que não deixa de ser uma maneira de sublinhar o fato deque o homem da cidade passa a maior parte do seu tempo dentro de umcarro. Trata-se do filme Dez (2001), que consiste em dez diálogos da perso-nagem-motorista com outros. Nada mais acontece além disso. O aconteci-mento, mais uma vez, é a produção de sentido.

A motorista e dona do carro é uma mulher que vive grandes conflitoscom seu filho pequeno, depois de ter se separado do marido e pai da crian-ça. Entre os dois há grandes discussões, pois o menino argumenta muitobem. Como a iniciativa da separação foi dela, o menino a acusa de egoísta.E durante todo o filme há uma reflexão, através dos diálogos com dez per-sonagens diferentes, a respeito da condição da mulher: sua relação com ocasamento, com o trabalho, com os filhos. O que claramente remete àquestão da condição feminina nas sociedades orientais, mas que também sedirige a uma problemática geral da mulher contemporânea.

Em contraponto com Dez encontra-se O vento nos levará (1999). Nesteúltimo, o lugar principal não é ocupado pela palavra, mas pela imagem e,mais precisamente, pela paisagem, por sinal, lindíssima. Esse é o filme demaior cronotopia do cinema de Kiarostami. Aqui, os diálogos são importan-tes, como sempre, mas o diálogo mais importante se dá entre o carro e apaisagem, entre a imagem e a ação.

É a história de uma equipe de cinema que chega em um vilarejo irania-no para fazer um documentário sobre uma cerimônia tradicional ligada àmorte e ao enterro dos habitantes deste vilarejo. Mas esse objetivo não podeser relatado aos habitantes e também não é explicado ao expectador quesomente compreende no final do filme. Enquanto espera a morte de umavelhinha que está quase morrendo, o diretor do documentário vai conhe-cendo e interagindo com a comunidade. Mais uma vez no cinema de

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Kiarostami, o principal acontecimento é dado pelas alterações recíprocas. E,mais uma vez,14 é o próprio cinema que chega interferindo na vida de umacomunidade, a qual acaba por se deixar transformar.

O principal diálogo, porém, como já dissemos, não se dá entre os perso-nagens. A paisagem e o vilarejo são lindíssimos e cada cena é uma obra dearte, com sua luz, suas cores, suas formas. O carro atravessa as imagenscomo um puro meio de transporte, utilitário, que permite o acesso maisrápido aos lugares. O carro é metonímia da equipe que se impacienta porpoder filmar o enterro e a cerimônia, para poder voltar para casa. O carro eo telefone celular são as marcas do mundo contemporâneo, da pressa, dodesejo de “maximizar” as ações e o controle sobre os acontecimentos. A elesse opõem um espaço-tempo arcaico: a comunidade com seus costumes e aarquitetura do vilarejo branco incrustado na colina. Ao tempo acelerado dopersonagem do diretor com suas máquinas contrapõe-se o ritmo lento dovilarejo e da câmera de Kiarostami. E enquanto o personagem do diretortenta agir, as imagens nos convidam a simplesmente olhá-las. O diretor vaise interessando e se deixando alterar, pelo vilarejo. Ao final, a velhinhamelhora e sua equipe se impacienta para ir embora, enquanto ele faz detudo para ficar um pouco mais.

A velhinha melhorou com os remédios receitados por um médicoque passava pela região e foi o próprio diretor do documentário quemfoi comprá-los. Esse médico, já significativamente idoso, circula pelaregião em uma mobilete: uma mobilete é bem menor e menos potenteque um carro; nela, tudo é aberto e, praticamente, não há fronteiraentre quem está nela e o espaço que é atravessado. Esse mesmo médicodá carona ao diretor e lhe explica, durante o caminho, que o melhordessa vida é poder apreciar a beleza do mundo. Detalhe: o médico dáesta explicação ao documentarista recitando um poema enquanto dirigea mobilete. E as imagens de Kiarostami desse espaço-tempo do vilarejosão como um poema visual.

Para terminar, é como se o filme tivesse sido feito de encomenda para osanalistas bakhtinianos: as últimas imagens são do rio da região. O rio cor-rendo por entre as margens, sabemos todos, é uma imagem consagradauniversalmente como metáfora do tempo que passa.

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A utilização de um retrato como exemplo para o conceito de exotopia ea de um carro para o conceito de cronotopo foi intencional. Queríamosmostrar, com a gravura, uma forma de arte que fixa no espaço e, com ocinema, a imagem do movimento.

Essa diferença de ênfase, colocada ora no tempo ora no espaço, pareceindicar dois aspectos fundamentais que se alternam no pensamentobakhtiniano e que constituem na verdade os pólos extremos entre os quaissuas idéias se movem: acabamento e inacabamento, totalização e abertura.

No interior do conceito de exotopia, aparece a alternância entre aca-bamento e inacabamento. Tensão que se torna, às vezes, contradição. Noprimeiro texto de sistematização do conceito, “O autor e o herói”, Bakhtincritica Dostoiévski por não assumir uma posição exotópica e manter suavoz em pé de igualdade com a dos personagens. Nesse momento, paraBakhtin, o acontecimento estético é acabamento e totalização e o que ostorna possíveis é a exotopia. Mas todos sabemos que, um pouco depois,em 1929, o livro dedicado à obra de Dostoiévski15 faz do inacabamento edo diálogo aberto entre autor e personagens o próprio princípio da

Paisagem com carro (filme do Kiarostami) com o título do filme:“O vento nos levará” (1999).

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polifonia literária. Para esta contradição, podemos encontrar uma respos-ta em um dos últimos textos, apostando, assim, que o que foi dito porúltimo é o que vale:

O discurso do autor (real), daquele que opera a representação (se

esse discurso ocorre) é, em seu princípio, um discurso de tipo

particular que não pode se situar no mesmo plano que o discurso

dos personagens. Esse discurso é, precisamente, quem determina

a unidade última da obra e é sua instância última de sentido, por

assim dizer, sua última palavra.16

Bakhtin está distinguindo o discurso exotópico do autor, da imagem doautor representada no texto. Esta última é que está lado a lado com asimagens das personagens e que com elas dialoga no interior da obra. Por-tanto, a aparente contradição se resolve por uma distinção de planos: oplano do criador e o plano da criatura. O autor do texto é autor representa-do, o que significa que ele é uma personagem como as demais. Portanto, oautor que dialoga com as personagens em pé de igualdade no romancepolifônico, é a personagem do autor e não o criador. E a criação supõe aexotopia do criador.

Além da resposta que Bakhtin apresenta, gostaríamos de sugerir umaresposta mais geral para a presença dos pólos opostos e das alternâncias nopensamento de Bakhtin. Ele seria, segundo nossa leitura, um pensador dastensões17 que unem e que, ao mesmo tempo, separam os diferentes pólosdo discurso e da cultura. A tensão em Bakhtin não é algo negativo nem algoa ser superado. Ao contrário, ela é constitutiva da criação humana, porqueela é o que atesta a presença do outro, daquele que não se identifica comigo,daquele que me escapa e a quem minha palavra se dirige. Do mesmo modo,em se tratando de cronotopo e exotopia, eles seriam, seguindo nossa hipó-tese, conceitos que colocam em cena, ao mesmo tempo, a indissolubilidadee a diferença entre dimensão espacial e dimensão temporal.

Para terminar, gostaríamos de indicar um outro aspecto dos conceitosaqui trabalhados. Como ocorre freqüentemente no pensamentobakhtiniano, os conceitos de exotopia e cronotopo parecem estar sujeitosa uma gradação. Há textos mais cronotópicos do que outros. O uso dosubstantivo denotando propriedade e, conseqüentemente, originando o

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adjetivo, é do próprio Bakhtin, em um texto redigido na mesma época,entre 1936 e 1938, mas publicado apenas no volume póstumo Estética dacriação verbal. Trata-se de um ensaio sobre Goethe18 que, provavelmente,seria publicado juntamente com o ensaio sobre cronotopo que examina-mos anteriormente. Nesse texto, Bakhtin fala de autores ou de literaturasprofundamente cronotópicos e analisa, particularmente, a cronotopia19

excepcional de Goethe. Na obra desse autor, tempo e espaço sãoindissolúveis e concretos – um lugar geográfico preciso corresponde a umacontecimento histórico trabalhado pelo homem. Isso distingue, por exem-plo, a natureza descrita por Goethe da natureza descrita por Rousseau.Embora neste último ela apareça igualmente humanizada, o tempo que semarca não é histórico e concreto, mas é um tempo idealizado, tempo doidílio ou tempo utópico de uma idade de ouro estável. Bakhtin está pro-pondo, portanto, que a existência de uma maior ou menor capacidade dotexto ou do autor de revelar a indissolubilidade entre a geografia (outopologia) e a história (ou a temporalidade).

A capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no espaço e, simultane-

amente, de perceber o preenchimento do espaço sob a forma de

um todo em formação, de um acontecimento, e não sob a forma

de uma tela de fundo imutável ou de um dado pronto. A capacida-

de de ler em todas as coisas – seja na natureza ou nos costumes do

homem e até em suas idéias (em seus conceitos abstratos) –, os

índices da marcha do tempo.20

Assim, podemos dizer que é pertinente falar do cinema de Kiarostamicomo sendo dotado de grande cronotopia. As paisagens são concretamenteiranianas e, ao mesmo tempo, mostram uma história e uma temporalidadeespecíficas do campo e dos trabalhadores rurais. Em contraste com o espaçodo carro que é puro movimento, é o próprio tempo da cidade que se con-trapõe e se deixa alterar pelo tempo/espaço do campo.

Do mesmo modo, podemos dizer que, na pintura e no retrato, determi-nadas composições ou concepções estéticas permitem uma visibilidade maiorou menor da exotopia entre o autor e seu herói. O choque primeiro quecausa o retrato de Dora Mäar pela feiúra, pela deformação ou pela mons-truosidade atribuídas a uma mulher bela e amada, atesta uma estética ondese rompe qualquer coincidência entre olhares. Retrato altamente exotópico,

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em que se desfaz toda ilusão de correspondência entre o objeto do olhar e oolhar que o representa, por um lado, e, por outro, entre o que vê um sujeitoe o que se pode ver do que ele vê.

NOTAS

1 T. Todorov, Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique, Paris, Seuil, 1981.2 As datas aqui mencionadas são as fornecidas por Todorov na lista cronológica dos escritos de

Bakhtin e de seu Círculo. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique, op. cit., pp. 173-4.3 Comparar, por exemplo, com a escultura de Rodin, O choro, onde reencontramos essa mesma

“feiúra” do rosto. Museu Rodin de Paris.4 M. Bakhtin, Les études littéraires aujourd’hui, em Esthétique de la création verbale, op. cit,

p. 348, traduzido por mim.5 M. Bakhtin, Les Carnets. 1970-1971, em Esthétique de la création verbale, op .cit, p. 365,

traduzido por mim.6 B. Brait, Estilo, em B. Brait, (org.), Bakhtin: conceitos-chave, Contexto, São Paulo, 2005.7 Brait cita Bakhtin in op cit, p. 87.8 M. Bakhtin, Formes du temps et du chronotope dans le roman (essais de poétique historique), em

Esthétique et théorie du roman, Paris, Gallimard, 1978, p. 237, traduzido por mim.9 Idem, p. 239.10 M. Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François

Rabelais, São Paulo, Hucitec, 1987.11 M. Bakhtin, Formes du temps et du chronotope, op. cit, p. 348, traduzido por mim.12 Idem, p. 396.13 Ver, por exemplo, Où est la maison de mon ami?, Através das oliveiras, O gosto da cereja e Dez.14 A outra vez é em Através das oliveiras.15 M. Bakhtin, La poétique de Dostoiévski, Paris, Seuil, 1970.16 M. Bakhtin, Le problème du texte, em Esthétique de la création verbale, op. cit, p. 327, tradu-

zido por mim. Segundo a cronologia de Todorov, este texto foi escrito entre 1959 e 1961.17 Desenvolvemos essa idéia em nosso livro O pesquisador e seu outro. Bakhtin nas Ciências Huma-

nas, São Paulo, Musa, 2001.18 M. Bakhtin, O romance de aprendizagem na história do realismo, em Estética da criação verbal,

op. cit.19 Idem, p. 249, traduzido por mim. Em francês, o termo utilizado é chronotopicité; optei por

cronotopia, por me parecer mais simples do que um eventual cronotopicidade.20 Idem, p. 232, traduzido por mim.

Cronotopo e exotopia MARILIA AMORIM

BAKHTIN outros conceitos-chave

114

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa, 2001.

BAKHTIN, M. La poétique de Dostoiévski. Paris: Seuil, 1970.

__________. Formes du temps et du chronotope. In: ________. Esthétique et théorie du roman.Paris: Gallimard, 1978.

__________. Les études littéraires aujourd´hui. In: _________. Esthétique de la creation verbale.Paris: Gallimard, 1984.

__________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais.São Paulo: Hucitec, 1987.

__________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BRAIT, B. Estilo. In: ______ (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.

TODOROV, T. Mikhaïl Bakhtine: le príncipe dialogique. Paris: Seuil, 1981.

DiálogoRenata Coelho Marchezan

A vida [...] não afeta um enunciado de fora; ela penetra e exerceinfluência num enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão daexistência que circunda os falantes e unidade e comunhão de julgamen-

tos de valor essencialmente sociais, nascendo deste todo sem o qualnenhum enunciado inteligível é possível. A enunciação está na fronteira

entre a vida e o aspecto verbal do enunciado; ela, por assim dizer,bombeia energia de uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá aqualquer coisa lingüisticamente estável o seu momento histórico vivo, oseu caráter único. Finalmente, o enunciado reflete a interação social dofalante, do ouvinte e do herói como o produto e a fixação, no material

verbal, de um ato de comunicação viva entre eles.

(Voloshinov/Bakhtin)

DO DIÁLOGO COMO CONCEITO

Nos estudos do Círculo de Bakhtin, afirma-se a característica dialógica dalinguagem. Diante disso, é razoável afirmar que, entre seus conceitos-chave,destaca-se o diálogo. Caberia, pois, apontá-lo e, em obra dedicada ao assunto,apresentar uma definição do termo, quem sabe já lida, já ouvida? Talvez seconsiga algo mais, depois de uma certa convivência com o conceito.

BAKHTIN outros conceitos-chave

116

Um bom começo é introduzir aquela citação que se fez esclarecedora,abriu caminhos e que, assim, nos animou a explorá-los como se fôssemos osprimeiros: “Um diálogo no sistema de Bakhtin é um dado oriundo da expe-riência passível de servir de paradigma econômico para uma teoria queabarque dimensões mais globais”.1 Que a citação seja ainda instigante! Nãopara nos reter na discussão sobre a oportunidade do emprego dos termos“sistema”, “paradigma”, e das vozes que repercutem, mas a fim de colocar-mos o foco na economia teórica sugerida e em sua produtividade.

As “dimensões mais globais”, a que se refere mais diretamente a citação,dizem respeito à comunicação, mas se pode manter a mesma proposiçãopara o âmbito da linguagem – e considerar a mesma economia teórica –,uma vez que a comunicação é a essência da linguagem na reflexãobakhtiniana, que considera ficcional2 a Lingüística que abstrai a comunica-ção, tanto a que o faz para ressaltar sua função expressiva, quanto a querenuncia a ela para conformar um objeto científico mais homogêneo.

Assim, o diálogo interessa aos dois domínios de reflexão, tanto à comu-nicação quanto à linguagem, quando é caso de distingui-los, tarefa ingrata,no contexto bakhtiniano, em que há uma profusão de termos, e de suastraduções, que se relacionam, se articulam. Nessa trama teórica, é maissensato e fecundo selecionar um fio, impossível outra escolha, e segui-lo,na tentativa de obter uma amostra relevante.

É no âmbito da linguagem que insistimos, na afirmação de seu caráterdialógico, que aponta para a consideração do diálogo como uma boa amostra,um conceito-fonte irradiador e organizador da reflexão – como nos confirmao trecho a seguir –, que, além de explicar porque celebra o diálogo, tambémajuda a defini-lo como a alternância entre enunciados, entre acabamentos, ouseja, entre sujeitos falantes, entre diferentes posicionamentos.

O diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a forma clássica da

comunicação verbal. Cada réplica, por mais breve e fragmentária

que seja, possui um acabamento específico que expressa a posição

do locutor, sendo possível responder, sendo possível tomar, com

relação a essa réplica, uma posição responsiva.3

Bem apropriada a um contexto de crítica à abstração, à neutralidade, aforma clássica é também do rés-do-chão; uma terminologia nada complica-

117

da, até popular, que a obra bakhtiniana, como mostra a citação, faz reviver,ativando o reconhecimento da reciprocidade entre o eu e o outro, presenteem cada réplica, em cada enunciado, que compreende o verdadeiro diálo-go, o diálogo “real”, concreto, não aquele que já se fez letra morta, decoradamecanicamente, repetida sem razão, sem vontade. Diálogo e enunciadosão, assim, dois conceitos interdependentes.4 O enunciado de um sujeitoapresenta-se de maneira acabada permitindo/provocando, como resposta, oenunciado do outro; a réplica, no entanto, é apenas relativamente acabada,parte que é de uma temporalidade mais extensa, de um diálogo social maisamplo e dinâmico.

Considerado dessa maneira o diálogo, não é difícil acompanhar a ex-tensão do conceito para a linguagem em geral, para a pertinência do reco-nhecimento de seu caráter dialógico, para o entendimento de que qualquerdesempenho verbal é constituído numa relação, numa alternância de vozes.Não é também difícil recortar uma citação que estimule esse aproveitamen-to do conceito:

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro,

senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da

interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo”

num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em

voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação

verbal, de qualquer tipo que seja.5

DA CONVERSA DO COTIDIANO À OBRA ESCRITA

É claro – e produtivo, conforme se quer enfatizar aqui – o convite àaplicação do diálogo para a compreensão da linguagem verbal6 comoum todo, de modo a considerá-la sempre como um acontecimento en-tre sujeitos.

Como é recorrente, e imprescindível, não somente nos estudos lingüísticos,mas nas Ciências Humanas em geral, a reflexão bakhtiniana reúne sujeito,tempo e espaço – e o diálogo o mostra de maneira modelar –, mas, diferente-mente de outras perspectivas, lhes conserva e releva a constituição histórica,social e cultural, também explorada por meio do conceito de cronótopo.

Diálogo RENATA COELHO MARCHEZAN

BAKHTIN outros conceitos-chave

118

A afirmação a seguir, que, à primeira vista, parece contradizer as anterio-res, valoriza e acentua a diversidade dos diálogos, dos cronótopos que osmotivam e em que ocorrem:

[...] A relação existente entre as réplicas de tal diálogo [o diálogo

real (conversa comum, discussão científica, controvérsia política,

etc.)] oferece o aspecto externo mais evidente e mais simples da

relação dialógica. Não obstante, a relação dialógica não coincide

de modo algum com a relação existente entre as réplicas de um

diálogo real, por ser mais extensa, mais variada e mais complexa.

Dois enunciados, separados um do outro no espaço e no tempo e

que nada sabem um do outro, revelam-se em relação dialógica

mediante uma confrontação do sentido, desde que haja alguma

convergência do sentido (ainda que seja algo insignificante em

comum no tema, no ponto de vista, etc.).7

Sem recuo ao convite, o reconhecimento das propriedades do diálogopermite apreender a linguagem viva, em ato, não apenas para a afirmação desua base comum, para a necessária identificação de suas invariantes – desdeque sem desvios para a reificação –, mas também para a caracterização de seusdiferentes modos de existência. Não se considera, pois, um grande diálogogeral, sem feições, mas uma diversidade de diálogos, traduzíveis emespecificidades de estilo8 e gênero, que os particularizam e localizam em prá-ticas sociais cotidianas e em esferas de atividade mais sistematizadas.

DOS DIÁLOGOS AOS GÊNEROS

Entende-se que os diálogos sociais não se repetem de maneira absoluta,mas não são completamente novos, reiteram marcas históricas e sociais,que caracterizam uma dada cultura, uma dada sociedade. Por meio do con-ceito de gênero, apreende-se a relativa estabilidade dos diálogos sociais, ouseja, assimilam-se as formas pregnantes que manifestam as razoabilidades (etambém a constituição) do contexto sócio-histórico e cultural. Assim seconfigura o desafio a que se propõe responder com a noção de gênero:apreender a reiteração na diversidade, organizar a multiplicidade buscandoo comum, sem cair em abstrações dessoradas de vida. Longe disso, é aprópria dinâmica e heterogeneidade social que podem explicar os gêneros.

119

Nessa inter-relação entre conceitos, assinalamos o diálogo, agora emsua relação com o gênero, como o conceito fomentador e organizador dareflexão, como a unidade de base necessária e primordial, requerida porBakhtin,9 para a classificação dos gêneros. Muitas vezes aproveitado fora doâmbito da reflexão dialógica, o próprio conceito de gênero é, antes, caracte-rizado com base no diálogo. A distinção entre gênero primário e gênerosecundário – que, emprestada a outros domínios, pode ser considerada poucoespecífica ou operacional – retoma, respectivamente, as duas maneiras de seconsiderar o diálogo, a que já fizemos menção: em stricto sensu, o diálogocotidiano, espontâneo, e, com base nele, o diálogo mais extenso e complexoque constitui todo e qualquer enunciado.

A atenção dedicada ao romance10 não encobre a importância tambémconferida ao gênero primário, inclusive para o estudo do próprio romance,cujas características prosaicas, o tom não elevado, o aproximam da lingua-gem comum e, defende Bakhtin, o deixam à margem da classificação clás-sica dos gêneros, sem existência oficial.11

O diálogo não é, assim, tão-somente uma metáfora12 na reflexão, resulta-do da transferência de um termo de um domínio semântico a outro que, nãosendo o seu habitual, nele se destaca e atua. Trata-se de considerar, conjunta-mente, os diálogos no sentido mais estrito do termo e os diálogos no sentidoamplo de condição dialógica da linguagem. Os diálogos que experimentamossensível e concretamente, no dia-a-dia, são assimilados por gêneros mais com-plexos, os secundários, que se desenvolvem mediante uma alternância dife-rente entre sujeitos, não imediata ou espontânea, menos evidente. Nestesgêneros, os diálogos são mais fortemente estabilizados, institucionalizados,mas continuam a receber dos diálogos cotidianos, mais permeáveis a mudan-ças sociais, o alimento de mudança e transformação.

Base, então, da constituição e da dinâmica dos outros gêneros, os diálo-gos do cotidiano, os gêneros primários, constituem o cerne da linguagem.Proposição que se desenvolve no estudo sobre o romance – tanto no exameda complexa dialogização das falas dos heróis em Dostoiévski, quanto naanálise da incorporação da linguagem popular em Rabelais –, e também nareflexão sobre a produção artística de um modo geral, como mostra, já pelotítulo, a aproximação entre Discurso na vida e discurso na arte: sobre poéticasociológica, em que se examinam os “enunciados da fala da vida e das ações

Diálogo RENATA COELHO MARCHEZAN

BAKHTIN outros conceitos-chave

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cotidianas, porque em tal fala já estão embutidas as bases, as potencialidadesda forma artística”.13

Segundo o estudo, há entre os participantes do diálogo, tanto na vidaquanto na arte, uma parte que não é explicitada, uma parte presumida, quecompreende valores comuns para os membros de uma dada sociedade. Esteé o mote da reflexão. O diálogo na vida cotidiana não verbaliza o que épresumido pelo evento que o integra: por exemplo, o horizonte comumdos falantes, sua gestualidade, sua entoação. Também não reafirma os valo-res sociais consentidos: “Um julgamento de valor social que tenha forçapertence à própria vida e desta posição organiza a própria forma de umenunciado e sua entoação; mas de modo algum tem necessidade de encon-trar uma expressão apropriada no conteúdo do discurso”.14 A significaçãodo diálogo depende diretamente da situação, que, assim, pode-se dizer, tam-bém o constitui. Essa íntima dependência expõe claramente a natureza so-cial do diálogo cotidiano, e se mostra exemplar para o entendimento dalinguagem como um todo, aí incluída a linguagem artística. É por essecaminho, ou seja, a partir da reflexão sobre o diálogo primário, especifican-do-lhe as raízes embrenhadas na sociedade, que o estudo caracteriza a obrade arte e responde à proposição da autonomia da obra de arte. A considera-ção da arte sem seus laços sociais, fora da vida, é o fundamento de duasabordagens da arte, ambas identificadas e criticadas pelo estudo: a que re-duz a obra a um objeto, convertendo-a em um artefato e, até, em umfetiche; e a que define a obra como expressão de uma individualidade doautor ou do contemplador.15

DO DIÁLOGO DO COTIDIANO À OBRA DE ARTE.DO GÊNERO PRIMÁRIO AO GÊNERO SECUNDÁRIO.DO EXEMPLAR À PARTICULAR RELAÇÃO ENTRE A OBRA DEARTE E A SOCIEDADE

O exemplar não é, obviamente, assimilado tal qual pelos gêneros artís-ticos. A dependência destes em relação à situação social em que são produ-zidos é relativa. Não é a mesma que caracteriza os diálogos do cotidiano etambém não é a mesma que configura os enunciados de outras esferas da

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atividade humana mais diretamente submetidas a injunções, réplicas e ra-zões históricas, políticas, religiosas, científicas.

O que é pressuposto socialmente, o já-conhecido, o já-admitido, não érepetido diretamente no conteúdo da obra de arte, não é reproduzido emsua temática; é, sim, incorporado em sua forma artística, que “libera oconteúdo de suas amarras com a ciência e com a ética e permite que oautor-criador se torne um elemento constitutivo da forma”.16 À negação daautonomia da arte, o estudo não vincula, portanto, uma rejeição da forma;enfatiza, ao contrário, sua importância para a consideração da estética. Nãose trata, porém, da forma do material, nem da forma dessubstancializada,mas da forma forjada pelo trabalho social, pelos valores da época – aí inclu-ídos os juízos estéticos –, modulada pela entoação, pela inflexão das vozes,cujo exame revela significados, posicionamentos sociais:

Quando uma pessoa entoa e gesticula, ela assume uma posição

social ativa com respeito a certos valores específicos e esta posição

é condicionada pelas próprias bases de sua existência social. É pre-

cisamente este aspecto objetivo e sociológico da entoação e do

gesto – e não o subjetivo ou psicológico – que deveria interessar os

teóricos das diferentes artes, uma vez que é aqui que residem as

forças da arte responsáveis pela criatividade estética e que criam e

organizam a forma artística.17

O estudo argumenta que a tarefa do estudioso da arte seria compreen-der o diálogo especial que ela realiza e de que participam o autor, o herói,o contemplador. No trabalho dedicado a Dostoiévski, Bakhtin critica, jáno início, os estudos que desconsideram a forma artística, a arquitetônicadas obras, tanto os conteudísticos, que se aplicam à discussão apaixonadados conteúdos filosóficos expostos pelos heróis, convertidos, então, emfilósofos autônomos; quanto os de cunho psicológico, que procuram lo-calizar as diferentes vozes dos heróis no universo único da consciência doautor. Ambas são perspectivas monológicas, pois ou promovem um mo-nólogo filosófico ou traçam um psiquismo uno e único. As críticas ilumi-nam a análise (e vice-versa, certamente), que depreende das obras deDostoiévski uma forma artística inovadora configurada pela polifonia:uma multiplicidade de consciências eqüipolentes e imiscíveis dos heróis,com quem o autor dialoga.

Diálogo RENATA COELHO MARCHEZAN

BAKHTIN outros conceitos-chave

122

A arquitetônica artística denota valores sociais, posicionamentos pro-movidos pela vida social e em resposta a ela. Para Bakhtin, no caso das obrasde Dostoiévski, a polifonia – a forma artística produzida – manifesta umaluta contra a coisificação do homem: “Com imensa perspicácia, Dostoiévskiconseguiu perceber a penetração dessa desvalorização coisificante do ho-mem em todos os poros da vida de sua época e nos próprios fundamentosdo pensamento humano”.18

Essa percepção, esse posicionamento, não é expresso à maneira de en-saio, manifesta-se no conteúdo, sim, e também na própria forma artística,na configuração dos heróis, na relação de sua voz com a voz do autor.Segundo Bakhtin, Dostoiévski não objetifica o herói, “não fala do heróimas com o herói”,19 não confere ao herói uma existência prévia, acabada,una. É como se lhe fossem imputadas uma voz própria e, desse modo, umaexistência independente do autor, uma autoconsciência dialogizada, que“em todos os seus momentos está voltada para fora, dirige-se intensamentea si, a um outro, a um terceiro”.20 O herói, o homem, não é objeto dereflexão, de representação, é o “sujeito do apelo”.21 O diálogo é o fundamen-to dessa reflexão, que continua:

[...] Representar o homem interior como o entendia Dostoiévski

só é possível representando a comunicação dele com um outro.

Somente na comunicação, na interação do homem com o homem

revela-se o “homem no homem”, para outros ou para si mesmo.

Compreende-se perfeitamente que no centro do mundo artístico

de Dostoiévski deve estar situado o diálogo, e o diálogo não como

meio, mas como fim. Aqui o diálogo não é limiar da ação mas a

própria ação. Tampouco é um meio de revelação, de descobrimen-

to do caráter como que acabado do homem. Não, aqui o homem

não apenas se revela exteriormente como se torna, pela primeira

vez, aquilo que é, repetimos, não só para os outros mas também

para si mesmo.22

É desse modo que o escritor23 se revela para Bakhtin e – no diálogo emtom entusiasmado com as obras de Dostoiévski, revela-se o próprio Bakhtin,o “homem no homem”, a palavra sobre a palavra – depreendem-se aarquitetônica da reflexão bakhtiniana, o seu conceito de diálogo, que carac-teriza o falante como “sujeito do apelo”, da consciência dialogizada, consti-

123

tuída com a voz do outro e, assim, marcadamente social. A identidade dosujeito se processa por meio da linguagem, na relação com a alteridade. Talé a importância da linguagem.

Nesse contexto teórico, a palavra diálogo é mesmo “mal-dita” – é Faraco24

quem realça – quando utilizada para caracterizar tão-somente tipos de es-trutura gramatical ou quando empregada no sentido socialmente cristaliza-do de consenso. É o diálogo reificado, finalizado, convertido em monólo-go. A palavra diálogo, ao contrário, é bem entendida, no contextobakhtiniano, como reação do eu ao outro, como “reação da palavra à pala-vra de outrem”, como ponto de tensão entre o eu e o outro, entre círculosde valores, entre forças sociais. A essa perspectiva, interessa não a palavrapassiva e solitária, mas a palavra na atuação complexa e heterogênea dossujeitos sociais, vinculada a situações, a falas passadas e antecipadas.

DAS FRONTEIRAS DO DIÁLOGO

A despeito de sua complexidade e dinamicidade, e, como as formas dalíngua, também os diálogos, os modos de “reação da palavra à palavra”, detransmissão da palavra de outrem, passam por processos degramaticalização,25 socialmente, reconhecidos, utilizados, obedecidos, re-criados. No aprendizado da escrita, as formas gramaticais consagradas aessa funcionalidade são logo ensinadas na representação de diálogos.

Com base nessas formas, identifica-se, por exemplo, na propaganda26

que segue, um diálogo: uma pergunta, sinalizada pelo ponto final de in-terrogação, e uma resposta, que a atende: “Em 97, a Telebrás teve o me-lhor desempenho da sua história. Então por que privatizar? Para alguémcuidar da telefonia, enquanto o governo se dedica à saúde e educação”.Embaixo dos dizeres, ao modo de assinatura, de responsabilidade pelotexto, estão os logotipos da Telebrás, do Ministério das Comunicações edo projeto Brasil em Ação.

Diálogo RENATA COELHO MARCHEZAN

BAKHTIN outros conceitos-chave

124

A obediência às regras formais não é suficiente para caracterizar a se-qüência como um diálogo da maneira que o considera a perspectivabakhtiniana; trata-se, sim, de um diálogo retórico. Uma pergunta feita porquem tem, de antemão, a resposta e a apresenta a serviço da afirmação deum posicionamento; no caso, assumido pelo governo, em conjunto pelastrês assinaturas. O governo é o autor27 do texto, mas fala de/por si mesmoem terceira pessoa –28 “enquanto o governo [ele] se dedica à saúde e educa-ção” –, como se, não ele próprio, mas um outro lhe conferisse a atribuição.

No contexto da propaganda, como um todo, esse texto-manchete éreiterado, detalhado, exemplificado, ilustrado. O texto-manchete e as assi-naturas mostram-se sobre um fundo amarelo, com uma moldura verde,que continua margeando a outra página, incluindo na composição da pro-paganda uma cena que exemplifica, nas cores da bandeira brasileira, o aten-dimento à saúde e à educação: a foto de um menino sorridente, de unifor-me, com uma bola, um braço quebrado, mas bem cuidado.

Sobreposto na parte de baixo da imagem do estudante, um outro tex-to acrescenta informações, detalha o “desempenho invejável” da Telebrás,o investimento recorde nos serviços brasileiros de telecomunicações; es-

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forços, ainda de acordo com o texto, insuficientes em face da demanda edas necessidades de modernização de um país que cresce a cada dia. Abai-xo, na margem, conclui-se, de maneira resumida: “Telebrás. Privatizarpara acompanhar o Brasil”. O slogan da vez, parte do programa mais geraldo governo da época, que poderia também ser sintetizado: “Privatizar ébom para o país”.

A propaganda participa do debate da época (que leitura faríamos se nãopudéssemos retomá-lo?). É uma resposta às vozes contrárias à privatização,que recrudesceram no caso de uma estatal não-deficitária, com bom de-sempenho. O texto publicitário apropria-se dessa reação e contra-argumenta.O posicionamento contrário à privatização é o mote e está explicitado naprópria propaganda, mais particularmente no enunciado destacado, quecompõe a pergunta anunciada, mas figura, ali, refutado pela trama do tex-to, regulado pelo contrapeso prometido: dedicação à saúde e à educação.

Rompem-se fronteiras, toma-se a outra voz, para dominá-la em terrenopróprio. O texto é bem arquitetado, mas, obviamente, isso não lhe garantepleno êxito junto a seus interlocutores; pode provocar ecos de identifica-ção, sim, mas também de refutação, hesitação. Ecos, que continuam a soar,certamente de maneira menos intensa, nos ouvidos de hoje, ocupados tam-bém com outras manchetes, outros diálogos, outras conversas.

DE CONVERSA EM CONVERSA

Com direito a uma pequena chamada, a Folha de S.Paulo, de 9 de feve-reiro de 2006, publica em página interna:29

Furlan diz que presidente não bebe há 40 dias

Do enviado especial a Argel

A dieta que levou Luiz Inácio Lula da Silva a perder 12 quilos em

quatro meses tem privado o presidente de mais uma coisa, além de

massas e doces: a bebida. Numa conversa informal ontem com

jornalistas, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan,

afirmou que Lula está abstêmio há cerca de 40 dias.

“No avião agora, só Coca Light e sorvete”, brincou o ministro,

quando contava sobre como tinha sido a viagem de nove horas no

Diálogo RENATA COELHO MARCHEZAN

BAKHTIN outros conceitos-chave

126

Aerolula, de Brasília a Argel. “Ele vem seguindo à risca o regime

dele, inclusive está abstêmio há cerca de 40 dias”, disse.

Nos últimos meses, o presidente está feliz com os quilos a menos e

toca no assunto sempre que pode, com ministros e auxiliares. Na

semana passada, disse ao ministro Antonio Palocci (Fazenda) que

ele precisava emagrecer: “Como eu, que estou com corpinho de

toureiro espanhol”, brincou.

A nova inconfidência sobre esse ingrediente da dieta de Lula acon-

tece menos de dois anos depois de uma das maiores polêmicas da

história do Brasil sobre seus líderes e bebidas.

Em maio de 2004, o correspondente do New York Times no Rio

de Janeiro, Larry Rohter, publicou uma reportagem segundo a

qual o país estava “preocupado com o hábito de beber” do presi-

dente. Em reação, o governo chegou a cassar o visto de permanên-

cia no país do jornalista norte-americano, mas, após a repercussão

negativa do caso, recuou da decisão. [...] (PDL)

O texto termina com comentários sobre a dieta das proteínas do presi-dente, os exercícios físicos adotados e a boa saúde de que goza. O que nosinteressa aqui, no entanto, além da saúde do presidente, são, no trecho acima,as falas do ministro. Elas foram puxadas do evento em que foram confiadas.O próprio enunciado nos diz que se tratava de uma “conversa informal comjornalistas”, e, conforme avalia, um momento de brincadeiras (“‘No aviãoagora, só Coca Light e sorvete’, brincou o ministro [...]”).

Entre os participantes de um diálogo informal, que se pode vincular aoschamados gêneros íntimos, são atenuadas as convenções culturais e é dis-pensada a atenção a hierarquias e a diferentes papéis sociais. Desse relaxa-mento de regras e coerções sociais, derivam a descontração, a confiança, aexpectativa de boa vontade.

No caso em análise, recomposto com aspas, o diálogo informal é trans-posto em outro gênero, as palavras do ministro passam a limitar com osenunciados alheios, que se pode atribuir a um jornalista (PDL, enviado espe-cial a Argel); perdem a relação estreita, espontânea, que certamente tinhamcom o evento em que despertaram, e com os outros enunciados que oconstituíram. Ganham o status de notícia, que, por definição do gênero,acolhem o relato de acontecimentos da atualidade e de interesse público.Do privado ao público, um caminho explorado pela notícia. De conversa

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espontânea à notícia com direito a chamada. De brincadeira à inconfidên-cia, como calcula a própria notícia.

Os enunciados estão fora de seu acontecimento primário, espontâneo,face a face, em que, a qualquer indício de resposta do interlocutor, podiamser reajustados de imediato. As falas do ministro são, agora, sem o ministro, esob a batuta de um jornalista, reacomodadas em outro domínio, encaminha-das a outros destinatários. Mesmo relatado o contexto em que primeiramenteocorreram, elas não se orientam mais em função dos jornalistas “em pes-soa”,30 que antes as ouviram em (aparente) descanso, mas aos leitores do jor-nal, aos demais jornalistas também, enfim, ao público como um todo.

Esse terceiro participante não é, conforme já dissemos, aquele íntimo,situado face a face, quase em fusão com o locutor, e também não se carac-teriza da maneira mais ou menos homogênea e seleta como se definem osmembros de uma área de atividade específica, com suas polêmicas aíestabelecidas e circunscritas.31

Trata-se de um auditório plural; o enunciado em análise, no entanto, nãoparece considerá-lo desse modo, mas como uma coletividade homogênea,toda ela interessada nas confidências (inconfidências?) do ministro, divulgadaspor jornalistas (inconfidentes?). O enunciado, portanto, não antevê ou nãose preocupa com eventuais reações diversificadas de seus interlocutores, umavez que não as prenuncia em forma de uma “dramaticidade”32 interna. Sempejo, sem conflito, dá como de interesse público e comum o que revela ecomo apropriado o tom brincalhão que emprega.

A considerar-lhe um público plural, a notícia pode ter gerado respostasdiversificadas: esquecimento, desinteresse, menosprezo, reprovação, indig-nação, identificação, preocupação em relação ao autor e/ou aos “heróis”. Eaté zombaria, como a publicada no dia seguinte em trecho do Painel, espa-ço bem descontraído do mesmo jornal, que também interpreta o semblantedo ministro, como uma possível resposta ao que fora divulgado:

Ressaca brava

Senador governista comenta declaração do ministro do Desenvol-

vimento: “O presidente está sem beber, mas o Furlan parece ter

inaugurado o bar do Aerolula”. Chateado com a repercussão de

Diálogo RENATA COELHO MARCHEZAN

BAKHTIN outros conceitos-chave

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suas palavras sobre a abstinência presidencial, Furlan passou o dia

de cara amarrada.33

A fala informal e sua entoação – que transpostas para gêneros formais,oficiais, tradicionais, desencadeiam um processo renovador e destruidor –,34

configuram, em nosso tempo, os próprios gêneros do jornalismo institu-cional. A quebra das hierarquias, das formalidades, das barreiras – tambémas definições de certo e errado, de verdadeiro e falso –, não é, obviamente,absoluta, mas relativa à vida social, de um modo geral, e à esfera do jorna-lismo, em particular. Sua apreciação depende também do assunto em pau-ta, seu espaço de divulgação e suas circunstâncias.

A notícia, de carona com o ministro, traz de volta às páginas do jornal areportagem de Larry Rohter, baseada na qual qualifica as falas do ministrocomo uma “nova inconfidência”. Obedecendo as regras do gênero, semnomear-se, mas, evidenciando-se por meio de modalizações, o autor danotícia relembra os desdobramentos polêmicos da reportagem e lhes confe-re caráter histórico. Quer fornecer, assim, importância, motivo e ocasiãopara ativar nova (semelhante) contenda, em que, entretanto, não dá a suacara a bater, e sim a do ministro.

DO DIÁLOGO NA VIDA AO DIÁLOGO NA TEORIA

Das fronteiras do diálogo, de conversa em conversa, o diálogo, alçado aconceito paradigmático, revela, na relação que mantém com outros conceitos,a “coerência” da reflexão bakhtiniana, não sem razão designada “dialogismo”.

O diálogo fundamenta e também instrui a consideração da linguagemem ato, que constitui e movimenta a vida social, que surge como réplicasocial e contra a réplica que consegue antever. Guarda em relação à lingua-gem, assim entendida, estreita “adequação”. Da vida à teoria, o diálogo, demaneira recursiva, é identificado na ação entre interlocutores, entre autor eleitor, entre autor e herói, entre heróis, entre diferentes sujeitos sociais,que, em espaços e tempos diversos, tomam a palavra ou têm a palavra re-presentada, ressignificada.

O ponto de vista dialógico não cria um objeto ideal, de sujeito ausente,a ser tratado a distância; orienta, antes, o estudioso a participar do jogo, a

129

considerar o enunciado, o texto, como vozes a compreender, com as quaisdialogar.35 O texto não se dirige, ele também, a um outro ausente, reificado.O esforço do diálogo do estudioso com o texto é, então, de se aproximar,compreender as forças vivas de que surge e em que atua, de vivenciá-las,para, depois – de volta ao seu cronótopo, ao presente e às fronteiras dareflexão teórica, sem confundir seus posicionamentos e a especificidade desua atividade –, examinar o texto de fora, com a visão de um todo.36

O diálogo instrui a perspectiva de análise, ao mesmo tempo que nomeiaseu próprio “objeto” e, a despeito de outras reverberações semânticas – de quese tenta proteger a metalinguagem mais abstrata e arbitrária –, auxilia o estu-dioso da linguagem, que também o experimenta na vida, a contornar odualismo entre a teoria e a vida.37 O emprego dos termos “teoria” e “concei-to”, no contexto bakhtiniano, solicita esse esforço.

NOTAS

1 Clark; Holquist, 1998, p. 238.2 Bakhtin, 1997, p. 290.3 Idem, p. 294. Em inglês: “Because of its simplicity and clarity, dialogue is a classic form of speech

communication. Each rejoinder, regardless of how brief and abrupt, has a specific quality ofcompletion that expresses a particular position of the speaker, to which one may respond or mayassume, with respect to it, a responsive position.” (Bakhtin, 1986, p. 72).

4 De que este texto não esquece, apenas privilegia o conceito de diálogo como fio condutor desua reflexão.

5 Bakhtin, Voloshinov, 1979, p. 109. Em inglês: “Dialogue, in the narrow sense of the word, is, ofcourse, only one of the forms – a very important form, to be sure – of verbal interaction. Butdialogue can also be understood in a broader sense, meaning not only direct, face-to-face, vocalizedverbal communication between persons, but also verbal communication of any type whatsoever.”(Voloshinov, 1986, p. 95).

6 E, embora se trate principalmente da linguagem verbal, as linguagens não-verbais também sãoacolhidas nas reflexões.

7 Bakhtin, 1997, p. 354.8 Sobre estilo, de que não se trata aqui, ver Brait (2005).9 Bakhtin, 1997, p. 284.10 “O romance em seu todo é um enunciado, da mesma forma que a réplica do diálogo cotidiano ou

a carta pessoal (são fenômenos da mesma natureza); o que diferencia o romance é ser um enun-ciado secundário (complexo).” (Idem, p. 281).

11 Nos domínios estabelecidos pela grande literatura clássica – em que os diferentes gêneros secompletam organicamente –, não há lugar para receber o insurgente romance (Bakhtin, 1988).

Diálogo RENATA COELHO MARCHEZAN

BAKHTIN outros conceitos-chave

130

12 Holquist, 2002, p. 41.13 Voloshinov; Bakhtin, 2001, p. 5.14 Idem, p. 7.15 Procedimentos que configuram, respectivamente, os chamados objetivismo abstrato e subjetivismo

idealista.16 Bakhtin, 1988, p. 61.17 Voloshinov, Bakhtin, 2001, p. 10.18 Bakhtin, 1981, p. 53.19 Idem, p. 54.20 Idem, p. 222.21 Idem, ibidem.22 Idem, pp. 222-3.23 “O autor [não o homem real] se encontra no momento inseparável em que o conteúdo e a forma

se fundem, e percebemos-lhe a presença acima de tudo na forma.” (Bakhtin, 1997, p. 403).24 Idem, 2003, p. 58.25 Bakhtin, Voloshinov, 1979, p. 142.26 Veja, São Paulo, 29, abr. 1998.27 Não é relevante, aqui, considerar a mediação do trabalho publicitário.28 Sobre essa neutralização entre as pessoas do discurso ver Fiorin (1996).29 Folha de S.Paulo, 9 fev. 2006, p. A11.30 Bakhtin, 1997, p. 321.31 Idem, p. 322.32 Idem, ibidem.33 Folha de S.Paulo, 10 fev. 2006, p. A4.34 Bakhtin, 1997, p. 323.35 Idem, pp. 401-14.36 Procedimento que configura a exotopia, tratada por Bakhtin (1997), no contexto estético e

epistemológico. Ver também Amorim, 2003, pp. 11-25.37 Para uma discussão dessa questão, que aparece principalmente em Bakhtin (1973), ver Faraco,

2003, pp. 19-23.

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Diálogo RENATA COELHO MARCHEZAN

Esfera e campoSheila V. de Camargo Grillo

A obra de Bakhtin e de seu Círculo deu origem a uma das correntes depensamento mais influentes do século XX. Entre os aspectos responsáveispela sua repercussão, está a formulação de uma complexa malha conceitual,1

construída nos interstícios de diversos domínios das Ciências Humanas (aFilologia, a Filosofia da Linguagem, a Lingüística, a Sociologia, a Estética,a História, a Antropologia) e, por isso mesmo, capaz de produzir questões,de orientar abordagens e de apontar caminhos de pesquisa que não se esgo-tam em uma única disciplina acadêmica. Essa natureza interdisciplinar podeexplicar o fato de que a obra do Círculo tenha sido incorporada e articuladaa diversos outros teóricos, das formas as mais variadas.2

O conceito de esfera da comunicação discursiva (ou da criatividadeideológica, ou da atividade humana, ou da comunicação social, ou da utili-zação da língua, ou simplesmente da ideologia) está presente ao longo detoda a obra de Bakhtin e de seu Círculo, iluminando, por um lado, ateorização dos aspectos sociais nas obras literárias e, por outro, a naturezaao mesmo tempo onipresente e diversa da linguagem verbal humana. Por-

BAKHTIN outros conceitos-chave

134

tanto, a esfera ou o campo da comunicação discursiva é um conceito-chavepara compreendermos o modo de articulação entre os domínios da Sociolo-gia, da Lingüística e da Teoria Literária.

O sociólogo e filósofo francês Pierre Bourdieu é produtor de uma impor-tante teoria social, composta, assim como a obra bakhtiniana, por uma po-tente malha conceitual, tecida com os conceitos de habitus, sentido prático,trajetória, capital simbólico, capital econômico, posições relativas, tomada deposição e campo. Este último apresenta grandes semelhanças com a obra doCírculo, mas também diferenças advindas das especificidades do objeto deinvestigação e das condições sócio-históricas nas quais as duas obras foramproduzidas, com destaque para o ambiente intelectual e os conseqüentesinterlocutores de cada autor. Considerando esses elementos, serão expostos,aqui, os conceitos de esfera e de campo, com vistas a demonstrar que eles dãoconta de um conjunto de fenômenos sociais ao mesmo tempo comuns edistintos nas duas obras, o que faz com que a sua articulação complementarproduza uma melhor compreensão desses mesmos fatos. Nesse momento, assemelhanças formam o terreno necessário para que as especificidades de cadaenfoque proporcionem uma ampliação em profundidade e em extensão dosinstrumentos de análise das duas teorias.

SUBJETIVISMO E OBJETIVISMO: AS ALTERNATIVAS DOCÍRCULO E DE BOURDIEU

As novas formulações teóricas surgem e se desenvolvem em razão dodiálogo que travam com as correntes de pensamento vigentes. A lógica des-se diálogo é a da distinção, com vistas a produzir novos problemas, objetose formulações para as disciplinas acadêmicas envolvidas. Com isso em mente,serão apresentadas, nesta seção, algumas linhas de pensamento às quais osautores se opõem, as soluções por eles encontradas e a concepção da relaçãométodo/objeto.

Nas obras do Círculo de Bakhtin e de Pierre Bourdieu, são expostas,de forma sintética e clara, as teorias que compunham o ambiente intelec-tual da Rússia no início do século xx e da França nas décadas de 1960 e de1970. Ambos os autores formularam seus trabalhos como contraposição

135

e alternativa ao subjetivismo não-hegemônico, porém ainda influente nasformas de pensar das respectivas épocas, e ao objetivismo reinante. O Cír-culo de Bakhtin, sobretudo nos domínios da filosofia da linguagem e daestética, e Bourdieu, na sociologia, buscaram inserir a ordem social, ahistória e o sujeito em suas teorias, de forma a deslocar as duas perspecti-vas disponíveis.

No projeto de construção de um método sociológico para o estudo dalinguagem, Bakhtin e seu grupo se contrapõem às duas orientações do pen-samento filosófico-lingüístico: o subjetivismo idealista e o objetivismo abstra-to. A primeira orientação, sintetizada na idéia de Vossler da “primazia doestilístico sobre o gramatical”, localiza no psiquismo individual o funda-mento da língua: “O psiquismo individual constitui a fonte da língua. Asleis da criação Lingüística – sendo a língua uma evolução ininterrupta, umacriação contínua – são as leis da psicologia individual, e são elas que devemser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da linguagem”.3 Ao colocaremem primeiro plano os fatores psicológicos e os dados estilísticos individuais,os representantes do subjetivismo permanecem em uma dimensãomonológica da linguagem como expressão das particularidades do sujeito.Essa corrente se contrapunha ao positivismo reinante que via a língua comoconstituída de formas e do ato psicofisiológico de sua produção.

A obra de Bourdieu também investe contra o subjetivismo, só que,aqui, formulado no âmbito da filosofia de Sartre, o qual fundamentarácorrentes do interacionismo que se dedicam ao estudo das estratégias indi-viduais, explicitamente orientadas, dos sujeitos em processo de comunica-ção verbal:

O exemplo de Sartre, o intelectual por excelência, capaz de viver

como ele o diz e como por dizer as “experiências” produzidas pela

e para a análise, ou seja, essas coisas que merecem ser vividas por-

que merecem ser contadas, faz ver que, como o objetivismo

universaliza a relação erudita ao objeto da ciência, o subjetivismo

universaliza a experiência que o sujeito do discurso erudito faz de

si próprio enquanto sujeito.4

Bourdieu vê, nessa perspectiva, a transferência da visão do filósofo so-bre si próprio para a sua concepção do sujeito, ou seja, a ênfase sartreana naliberdade e na escolha do sujeito está atrelada à visão do intelectual como

Esfera e campo SHEILA V. DE CAMARGO GRILLO

BAKHTIN outros conceitos-chave

136

ser capaz de compreender os determinismos sócioideológicos e, portanto,de libertar-se deles. Apesar de não ocuparem uma posição hegemônica nocenário intelectual, o subjetivismo permeia a visão corrente das práticas deprodução de linguagem cotidianas, em que os indivíduos, imersos no seufazer prático, pouco refletem sobre a ordem social que eles (re)produzem,ao mesmo tempo que são por ela produzidos.

A linha mestra das Ciências Humanas na época em que Bakhtin e Bourdieuformularam suas obras é, certamente, o objetivismo. Conforme Bakhtin, “apouca audiência que a escola de Vossler tem na Rússia corresponde inversa-mente à popularidade e influência de que a de Saussure aí goza”. Sem cair navisão do sujeito como consciência livre, auto-reflexiva e criadora, própria dosubjetivismo, os dois teóricos se contrapõem a uma concepção da língua e dasociedade, como sistema sem sujeito. Bakhtin situa as raízes filosóficas doobjetivismo no racionalismo cartesiano do século XVII na França, onde, aindano início do século XX, se mantém influente:

A idéia de uma língua convencional, arbitrária, é característica de

toda a corrente racionalista, bem como o paralelo estabelecido entre

o código lingüístico e o código matemático. Ao espírito orientado

para a matemática, dos racionalistas, o que interessa não é a rela-

ção do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo

que o engendra, mas a relação de signo para signo no interior de

um sistema fechado, e não obstante aceito e integrado.5

Saussure é apontado como o melhor representante dessa visão da línguacomo sistema de signos. A obra do Círculo apresenta as origens históricasdo sistema como o produto de uma reflexão sobre a língua, decorrente doestudo filológico das línguas mortas e do ensino de línguas estrangeiras.

Na França, a Lingüística saussureana tornou-se modelo para domínioscomo a Antropologia, os estudos literários, a psicanálise, gerando releiturasestruturalistas de Freud por Lacan e de Marx por Althusser. É no contextodo estruturalismo francês das décadas de 1950 e 1960 que Bourdieu come-ça a produzir sua obra sociológica. No final da década de 1970, o sociólogofaz a crítica ao estruturalismo em Antropologia e em Sociologia, ao formu-lar seus conceitos de habitus e sentido prático, sendo estes alternativas paraintroduzir o sujeito e a sua constituição sócio-histórica no domínio dasformações sociais.

137

Basta ignorar a dialética das estruturas objetivas e das estruturas

incorporadas que se opera em cada ação prática para se fechar na

alternativa canônica que renasce sem parar sob novas formas na

história do pensamento social, declaram aqueles que pretendem

tomar o contraponto do subjetivismo, como hoje os leitores es-

truturalistas de Marx, a cair no fetichismo das leis sociais; con-

verter em entidades transcendentais, que estão para as práticas

na relação da essência à existência, as construções às quais a ciên-

cia deve recorrer para dar conta de conjuntos estruturados dota-

dos de sentido que produzem a acumulação de inumeráveis ações

históricas, é reduzir a história a um “processo sem sujeito” e subs-

tituir simplesmente o “sujeito criador” do subjetivismo por um

autômato subjugado pelas leis mortas de uma história da nature-

za. Essa visão imanente que faz da estrutura, Capital ou Modo

de produção, uma enteléquia se desenvolvendo ela mesma em

um processo de auto-realização, reduzindo agentes históricos ao

papel de “suportes” da estrutura e suas ações a simples manifesta-

ções epifenomenais do poder que pertence à estrutura de se de-

senvolver segundo suas próprias leis e de determinar ou de

sobredeterminar outras estruturas.6

De forma clara, Bourdieu recusa a visão estruturalista de um sujeito“assujeitado” e da ordem social como estrutura sem sujeito do objetivismo.

Em síntese, apesar de pertencerem a países distintos e com um intervalode aproximadamente trinta anos,7 a obra do Círculo de Bakhtin e do soció-logo francês Pierre Bourdieu são surpreendentemente próximas na identifi-cação das linhas mestras do pensamento de suas épocas e nas críticas quefazem ao subjetivismo e ao objetivismo, com vistas a redimensionar a inser-ção da linguagem, do sujeito, da história, da ideologia e do social no âmbitodas Ciências Humanas.

Passemos, agora, às soluções apresentadas aos questionamentos acimaexpostos. Elas são motivadas, em grande parte, pelas diferentes áreas de atua-ção dos autores e seus respectivos objetos de análise. Bourdieu concentra-seno estudo da relação entre estruturas sociais e constituição da subjetividade,enquanto a obra do Círculo privilegia a natureza social da linguagem.

Bakhtin e seus companheiros localizam na interação verbal8 o espaçode constituição e existência da língua: “A verdadeira substância da línguanão é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela

Esfera e campo SHEILA V. DE CAMARGO GRILLO

BAKHTIN outros conceitos-chave

138

enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua pro-dução, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através daenunciação ou das enunciações.”9 Concebida como uma opção às duasperspectivas vigentes, o conceito de interação verbal concentra os princi-pais aspectos da teoria dialógica da linguagem, elaborada pelo Círculo: arelação do enunciado com o contexto social imediato e amplo, o modo deconstituição da subjetividade na inter-subjetividade e a delimitação doconteúdo temático.

A interação se dá entre indivíduos organizados socialmente, o que colo-ca em jogo condições sócio-históricas de duas ordens. Primeira, a situaçãosocial mais imediata, cujos componentes, descritos em trabalho anterior,10

são o horizonte social comum aos co-enunciadores (a unidade do lugarvisível), o conhecimento e a compreensão da situação, compartilhados pe-los co-enunciadores, e a avaliação que eles fazem dessa situação. Segunda, omeio social mais amplo, definido, por um lado, pelas especificidades decada esfera da produção ideológica (ciência, literatura, jornalismo, religião,etc.) e, por outro, por um certo “horizonte social” de temas recorrentes, emrazão da onipresença social da linguagem verbal e da relação que as esferasideológicas estabelecem com a ideologia do cotidiano: “Com o horizonteideológico de cada época, há um centro valorativo em direção ao qual todosos caminhos e aspirações da atividade ideológica levam.”11 Nessa relaçãoentre material verbal e contexto, o discurso não é concebido como umreflexo da situação, mas como o seu acabamento avaliativo. Brait12 vê, nessecontexto mais amplo, a participação do interdiscurso que, apesar de nemsempre explícito, faz parte da produção de sentidos.

Em segundo lugar, a consciência individual é constituída no meio socialou “de fora para dentro”, por meio dos materiais semióticos que a organi-zam, adquiridos nas interações verbais. No contexto interior, esses signosassumem nova significação, devido à sua inserção em um novo contextovivencial. Sua orientação ideológica ocorre em razão das duas dimensõessociais acima descritas. Com isso, a expressão individual já é dialogicamenteorientada, uma vez que se manifestará em razão das condições sócio-histó-ricas da existência dos sujeitos e da relação com a alteridade. Poderíamosdizer que o Círculo não apresenta propriamente uma teoria da subjetivida-de, mas antes da inter-subjetividade.

139

Terceiro, a delicada questão do sentido dos enunciados é resolvida peladistinção entre significação e tema. A significação se define pelos elementosreiteráveis e estáveis do sistema lingüístico e o tema pelo seu caráter concre-to, singular, sócio-historicamente determinado e irredutível a uma análisetotalizante. O tema incorpora o caráter ativo da compreensão de um enun-ciado, ou seja, o processo interpretativo do co-enunciador se dá na suacapacidade de dialogar com o enunciado, por meio da sua inserção em umnovo universo pessoal. Além do tema e da significação, toda palavra é cons-tituída por “acento de valor ou apreciativo”, cuja manifestação mais eviden-te é a entoação expressiva.

Bourdieu vai buscar, sobretudo na noção de habitus – mas também detrajetória, sentido prático e estratégia –, uma via mediana, no dizer de Dosse,para reintroduzir o agente, sem desconsiderar as coerções sociais de sua ação.

Escapando à alternativa das forças inscritas no estado anterior do

sistema, no exterior dos corpos, e das forças interiores, motivações

surgidas, no instante, da decisão livre, as disposições interiores,

interiorização da exterioridade, permitem que as forças exteriores

se exerçam, mas segundo a lógica específica dos organismos nos

quais elas são incorporadas, quer dizer de maneira durável, siste-

mática e não mecânica; sistema adquirido de esquemas geradores,

o habitus torna possível a produção livre de todos os pensamentos,

de todas as percepções e de todas as ações inscritas nos limites

inerentes às condições particulares de sua produção, e delas so-

mente. Por meio dele, a estrutura, da qual ele é o produto, gover-

na a prática não segundo as vias de um determinismo mecânico,

mas por meio de coerções e de limites originariamente atribuídos

a suas invenções. [...] Uma vez que o habitus é uma capacidade

infinita de produzir em toda liberdade (controlada) produtos –

pensamentos, percepções, expressões, ações – que têm sempre por

limites as condições historicamente e socialmente situadas de sua

produção, a liberdade condicionada e condicionadora que ele as-

segura é assim distanciado de uma criação de imprevisível novida-

de assim que de uma simples reprodução mecânica dos condicio-

namentos iniciais.13

Semelhantemente à obra do Círculo, Bourdieu concebe que o sentido daconstituição dos sujeitos caminha do social para o individual. Os sujeitos sãoformados pela incorporação de disposições produzidas por regularidades ob-

Esfera e campo SHEILA V. DE CAMARGO GRILLO

BAKHTIN outros conceitos-chave

140

jetivas, situadas dentro da lógica de um campo determinado (ciência, reli-gião, mídia, família, classe social, etc.), mas que são redimensionadas emrazão da trajetória individual e da posição ocupada pelo sujeito nesse campo.

A relação entre as condições sociais nas quais se constitui um habitus eas condições sociais nas quais ele é operado produz o sentido prático, o qualé engendrado sem a sua representação explícita pelos sujeitos, que são pe-gos na urgência de agir. Nesse ponto, vemos uma proximidade entre omodo de constituição do sentido prático em Bourdieu e a produção deavaliações socialmente condicionadas na obra do Círculo. Estas são tratadascomo componentes da situação extraverbal de qualquer discurso, tal comodiscutido no texto “Le discours dans la vie et dans la poésie”:

O sentido prático, necessidade social transformada em natural

convertida em esquemas motores e em automatismos corporais, é

o que faz com que as práticas, no e pelo que elas permanecem

obscuras aos olhos dos seus produtores e por onde se traem os

princípios transubjetivos de sua produção, são dotadas de sentido,

isto é, habitadas por um sentido comum. É porque os agentes não

sabem nunca completamente o que eles fazem, e o que eles fazem

tem mais sentido do que eles sabem. (Bourdieu)14

As avaliações subentendidas tomam, nesse caso, uma significação

particularmente importante. De fato, as principais avaliações so-

ciais, que se enraízam imediatamente nas particularidades da vida

econômica de certo grupo social, não são, na maioria das vezes,

enunciadas: elas entram na carne e no sangue de todos os repre-

sentantes desse grupo; elas organizam as ações e a conduta das

pessoas; elas são de qualquer modo coladas às coisas e aos fenôme-

nos correspondentes; é porque elas não requerem formulações ver-

bais particulares. [...] Se a avaliação é efetivamente condicionada

pela vida mesma de certa coletividade, ela é admitida à maneira de

um dogma, como algo que vai de si e não se presta à discussão.

Inversamente, se a avaliação fundamental é enunciada e demons-

trada, é porque ela tornou-se duvidosa, que ela está descolada de

seu objeto, que ela cessou de organizar a vida e, em conseqüência,

que seu laço com as condições de existência da coletividade foi

rompido. (Voloshinov)15

Tanto as práticas sociais de Bourdieu quanto as avaliações subentendi-das de Voloshinov são produzidas pelos sujeitos sociais sob condições sócio-

141

históricas determinadas. Esses sujeitos atribuem um sentido evidente àspráticas e às avaliações, sendo que o seu questionamento é sinal de que elasestão em via de alteração. Como vimos anteriormente, a avaliação socialestá articulada, na obra do Círculo, à interação verbal, da qual é compo-nente. Em Bourdieu, a incorporação do habitus comporta modos de per-cepção e de apreciação da realidade. Dessa aproximação, podemos concluirque os autores estão descrevendo aspectos inter-relacionados, uma vez queas avaliações bakhitinianas são uma das práticas engendradas pelo habitusque, por sua vez, é produzido sob condições sociais específicas.

As soluções encontradas por Bourdieu e pelo Círculo podem ser com-preendidas em razão, por um lado, das oposições às correntes de pensamen-to vigentes e, por outro, da relação entre o método elaborado e o objeto deestudo. Nesse sentido, os autores se aproximam em uma orientação teóri-co-metodológica, voltada para a delimitação e a explicação de seus objetos.

O método tem, obviamente, de ser adaptado ao objeto. Por outro

lado, sem um método definido não pode certamente haver abor-

dagem do objeto. É necessário ser capaz de isolar o objeto de estu-

do e corretamente tomar nota de seus aspectos importantes. Esses

aspectos distintivos não são etiquetados. Outros movimentos vêem

outros aspectos do objeto como distintivos.

[...]

Abordagens primárias e orientações têm de ser colocadas em um

contexto metodológico amplo. A Teoria Literária entra na esfera

de outras disciplinas. Ela deve ser orientada nessa esfera, tem de

estar em harmonia com os métodos e objetos de disciplinas alia-

das. As inter-relações das disciplinas têm de refletir as inter-rela-

ções de seus objetos. (Medvedev/ Bakhtin)16

É uma transformação semelhante que é preciso operar para chegar

a impor nas Ciências Sociais um novo espírito científico; teorias

que se alimentem menos da defrontação puramente teórica com

outras teorias que do confronto com objetos empíricos sempre

novos; conceitos que, antes de tudo, têm por função indicar, de

maneira estenográfica, conjuntos de esquemas geradores de práti-

cas científicas epistemologicamente controladas. (Bourdieu) 17

Os dois excertos revelam que os autores, sem cair em um empirismoingênuo, elaboram seus quadros teóricos motivados por uma dupla pers-

Esfera e campo SHEILA V. DE CAMARGO GRILLO

BAKHTIN outros conceitos-chave

142

pectiva: o diálogo com o ambiente intelectual de sua época e a atençãopara a natureza do objeto de estudo. Essas semelhanças não apagam, en-tretanto, as especificidades de cada um. O fragmento de Medvedev/Bakhtin– extraído da obra em que os autores descrevem e criticam o métodoformal de análise da obra de arte – destaca a natureza do objeto de estudoque impõe uma aproximação interdisciplinar, a fim de não mutilar a suacompreensão. Esse princípio pode explicar a impossibilidade de enqua-drar a obra do Círculo em uma disciplina particular, uma vez que, nessetrabalho, os autores estão dialogando com uma corrente teórica que pro-põe que a análise da obra de arte deve prescindir dos aspectos sociológi-cos. Já a obra de Bourdieu se mostra mais preocupada com a consolidaçãoda autonomia e da abrangência do campo sociológico, o que explica o seuataque a outras disciplinas.

Do que foi exposto, podemos perceber semelhanças entre os modos deconstituição das duas obras em questão. Primeiramente, o Círculo de Bakhtine Pierre Bourdieu questionaram, com nuances próprias, as mesmas duascorrentes de pensamento: o subjetivismo e o objetivismo. Em seguida, suasobras apresentaram soluções distintas, mas que partiram de um terrenocomum: a constituição sócio-histórica do sujeito agente que não é um pro-duto de um determinismo mecânico da estrutura, mas também não é umaindividualidade autoconsciente e livre de coerções. Por fim, os dois autoreselaboraram suas teorias numa dialética entre, de um lado, o contextosocioideológico do campo intelectual e, de outro, a compreensão da natu-reza do seu objeto de estudo. Na próxima seção, veremos o desenvolvimen-to das noções de esfera e de campo nas obras em questão.

O CONCEITO DE ESFERA NA OBRA DO CÍRCULO DE BAKHTIN

A obra do Círculo na década de 1920,18 início de sua produção, é par-ticularmente profícua na reflexão sobre a natureza da constituição e dainter-relação entre as diversas esferas da produção ideológica.

Nos textos “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie”, de1926, e “The formal method in literary scholarhip”, de 1928, o Círculodesenvolve o conceito de esfera para explicar a natureza e as especificidades

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das produções literárias. A posição do Círculo se constrói no diálogo comduas correntes teóricas de sua época: o formalismo russo e o marxismo. OCírculo se opõe à idéia dos formalistas da existência de um núcleo imanentedos estudos literários, o qual escaparia às influências das transformaçõessocioeconômicas e das outras esferas ideológicas (ciência, educação, reli-gião, etc.), mas sem negar o modo próprio de refratar esses domínios exter-nos: “A comunicação artística se enraíza, portanto, em uma infra-estruturaque ela partilha com as outras formas sociais, mas ela conserva, não menosque essas outras formas, um caráter próprio”.19

O estudo da obra de Dostoiévski mostra como essa questão é importan-te para a compreensão da relação da obra literária com seu contexto social.Bakhtin defende que Dostoiévski não inventava as idéias encarnadas porsuas personagens, mas as apreendia a partir da realidade de sua época. En-tretanto, o romancista “não copiou nem expôs esses protótipos, mas osreelaborou de maneira livremente artística, convertendo-os em imagensartísticas vivas das idéias”.20 Para Bakhtin, essa reelaboração se deu sob aforma da polifonia em que as idéias eram colocadas em interação dialógica.Com isso, a obra literária, como produto ideológico, não é nem cópia doreal nem criação, mas um modo próprio de refração da realidade social,segundo a lógica específica da esfera artística.

O diálogo com o marxismo, já presente nos dois textos citados, aparecede forma mais desenvolvida em “Marxismo e filosofia da linguagem”, de1929, em que se busca superar a visão determinista e mecanicista provenienteda ortodoxia marxista, da influência dos fatos da base socioeconômica co-mum sobre os produtos ideológicos. Nesse sentido, a noção de esfera dacomunicação discursiva (ou da criatividade ideológica, ou da atividade hu-mana, ou da comunicação social, ou da utilização da língua, ou simples-mente ideologia) é compreendida como um nível específico de coerçõesque, sem desconsiderar a influência da instância socioeconômica, constituias produções ideológicas, segundo a lógica particular de cada esfera/campo.

No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem dife-

renças profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da

representação, do símbolo religioso, da fórmula científica, da for-

ma jurídica, etc. Cada campo de criatividade ideológica tem seu

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próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à

sua própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no

conjunto da vida social. É seu caráter semiótico que coloca todos

os fenômenos ideológicos sob a mesma definição geral.21

A obra do Círculo caracteriza-se, de um lado, por admitir asespecificidades coercivas de cada campo/esfera e, de outro, por assentar asua natureza comum sobre a constituição semiótica, em especial no signolingüístico. A onipresença social da palavra, ou seja, a sua influência emtodos os campos ideológicos (ciência, religião, literatura, etc.) confere-lhe oestatuto privilegiado para o estudo da organização dos diversos campos.

Toda refração ideológica do ser em processo de formação seja qual for

a natureza de seu material significante, é acompanhada de uma

refração ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente

concomitante. A palavra está presente em todos os atos de com-

preensão e em todos os atos de interpretação.

Todas as propriedades da palavra que acabamos de examinar – sua

pureza semiótica, sua neutralidade ideológica, sua implicação na

comunicação humana ordinária, sua possibilidade de interiorização

e, finalmente, sua presença obrigatória, como fenômeno acompa-

nhante, em todo ato consciente – todas essas propriedades fazem

dela o objeto fundamental do estudo das ideologias.22

Uma vez que o signo ideológico, e em especial o lingüístico, só ocorreentre indivíduos socialmente organizados, ou seja, na interação verbal, esteé o lugar de existência da psicologia do corpo social e de contato entre abase socioeconômica comum e as diversas esferas ideológicas. Em seçãoanterior, vimos como a interação verbal foi apontada, por Bakhtin/Voloshinov, como o objeto de reflexão alternativo às correntes reinantes doobjetivismo e do subjetivismo. Na interação verbal, materializam-se a língua,os signos ideológicos, a intersubjetividade, a articulação fatores externos/internos à esfera. Ao tratar da interação verbal, o Círculo estabelece umadistinção entre a ideologia do cotidiano e os sistemas ou esferas ideológicasconstituídas. A ideologia do cotidiano está ligada à palavra interior e acom-panha todos os gestos e atos da consciência humana. Ela é o ponto departida para a constituição das esferas ideológicas, mas também sofre delasa influência. Voloshinov/Bakhtin faz uma distinção entre o nível inferior

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da ideologia do cotidiano, em que o fator biográfico e o biológico têmpapel importante, sendo constituído pelas “atividades mentais e pensamen-tos confusos e informes que se acendem e apagam na nossa alma, assimcomo as palavras fortuitas ou inúteis”; e seus níveis superiores, caracteriza-dos pelo contato direto com os sistemas ou esferas ideológicas e, por issomesmo, mais suscetíveis à sua influência. O nível superior realiza-se sob aforma de tipos de discursos da vida cotidiana ou gêneros cotidianos taiscomo a ordem, o pedido, as conversas de operários à hora do almoço, asconversas de salão, etc. A obra do Círculo, portanto, estabelece, na teorizaçãodas esferas, a distinção e a relação entre as interações que ocorrem na ideo-logia do cotidiano e aquelas que ocorrem nos sistemas ou esferas ideológi-cas constituídos.

No texto “A pessoa que fala no romance”, de 1934/1935, Bakhtin exa-mina o papel do discurso alheio no romance, ao mesmo tempo em quetrata da sua presença e transmissão em outros domínios da vida e da criaçãoideológica, ou seja, dos campos/esferas. A palavra alheia desempenha umpapel fundamental na formação ideológica do homem e se apresenta comopalavra autoritária e como palavra interiormente persuasiva. A palavra au-toritária exige reconhecimento e assimilação, uma vez que está associada àsposições de poder – pai, professor, adulto, cientista, padre, etc. – das diver-sas esferas ideológicas – família, escola, ciência, religião, etc. A palavra inte-riormente persuasiva está entrelaçada com as palavras do homem em for-mação e é fundamental para o seu processo de independência. Ela tambémestá presente em todos os domínios ou esferas da criação ideológica. Apósessa distinção, Bakhtin passa a examinar a presença e o papel da palavraalheia em diversas esferas: a jurídica, a religiosa, a da ciência natural, apolítica. Portanto, as esferas são determinantes para a compreensão da pre-sença e do tratamento dado à palavra alheia.

No texto sobre os gêneros do discurso, escrito nos anos 50, mas somen-te publicado no final da década de 1970, a noção de esfera/campo volta aaparecer na obra bakhtiniana. Aqui, a dificuldade de teorização dos gênerosé associada, entre outros, à sua grande diversidade decorrente da complexi-dade das esferas da atividade humana.

Mais à frente, nesse mesmo texto, ao questionar a falta de critérios unifi-cados para a classificação dos gêneros discursivos, Bakhtin atribui essa falha à

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“incompreensão da natureza de gênero dos estilos de linguagem e da ausênciade uma classificação bem pensada dos gêneros discursivos por campos deatividade”. Bakhtin demonstra a importância da noção de esfera/campo paraa compreensão da natureza e a conseqüente classificação dos gêneros. Emseguida, o autor passa a investigar as características das unidades da enunciação(o enunciado) e das unidades da língua (oração e palavra). Aqui, embora nãoseja expandida, a noção de esfera permeia a caracterização do enunciado e dosseus tipos estáveis, os gêneros, no que diz respeito ao seu tema, à sua relaçãocom os elos precedentes (enunciados anteriores) e com os elos subseqüentes(a atitude responsiva dos co-enunciadores).

O tema se refere ao modo de relação do enunciado com o objeto dosentido; ele é, portanto, de natureza semântica. Nessa relação, o tema ca-racteriza-se por atribuir uma apreensão delimitadora do objeto do sentido epor compor-se de uma expressão valorativa, uma vez que não há neutrali-dade no domínio do enunciado. A relação deste com o seu referente é con-dicionada pelo campo da comunicação discursiva:

[...] a relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com

o conteúdo do objeto e do sentido do seu enunciado. Nos diferen-

tes campos da comunicação discursiva, o elemento expressivo tem

significado vário e grau vário de força, mas ele existe em toda

parte: um enunciado absolutamente neutro é impossível.23

O diálogo do enunciado com os elos precedentes, que podemos nomearsob os títulos de interdiscurso e de intertexto, é condicionado pela identi-dade temática e pelas coerções de um determinado campo:

A expressão do enunciado, em maior ou menor grau, responde,

isto é, exprime a relação do falante com os enunciados do outro, e

não só a relação com os objetos do seu enunciado. As formas das

atitudes responsivas [...] diferenciam-se acentuadamente em fun-

ção da distinção entre aqueles campos da atividade humana e da

vida nos quais ocorre a comunicação discursiva.24

Por fim, a relação do enunciado com seus co-enunciadores – a antecipa-ção de sua atitude responsiva, o conhecimento de sua posição social, seusgostos, suas preferências, etc. – também é condicionada pelas especificidadesde um campo:

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Todas essas modalidades e concepções do destinatário são deter-

minadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enun-

ciado se refere. [...] Cada gênero do discurso, em cada campo da

comunicação discursiva, tem a sua concepção típica do destinatá-

rio que o determina como o gênero.25

Organizados pelo campo/esfera, esses três aspectos dos enunciados (ede seus tipos estáveis) formam um todo orgânico, ou seja, a elaboração dotema é motivada pela reação a enunciados precedentes sobre o mesmo temae pela antecipação da posição responsiva do destinatário. O campo/esfera éum espaço de refração que condiciona a relação enunciado/objeto do senti-do, enunciado/enunciado, enunciado/co-enunciadores.

Em síntese, verificamos que a noção de campo/esfera está presente emtoda a obra do Círculo de Bakhtin. Ela se constitui em importante alterna-tiva para pensar as especificidades das produções ideológicas (obras literári-as, artigos científicos, reportagens de jornal, livro didático, etc.), sem cairna visão imanente da obra de arte do formalismo nem no determinismo domarxismo ortodoxo. As esferas dão conta da realidade plural da atividadehumana ao mesmo tempo que se assentam sobre o terreno comum da lin-guagem verbal humana. Essa diversidade é condicionadora do modo deapreensão e transmissão do discurso alheio, bem como da caracterizaçãodos enunciados e de seus gêneros.

O CONCEITO DE CAMPO NA OBRA DE BOURDIEU

O conceito de campo começa a ganhar destaque na obra do filósofo esociólogo francês Pierre Bourdieu no final dos anos 70, mas é a partir dadécada de 1990 que a sua teorização cresce em importância. No livro Homoacademicus, de 1984, Bourdieu, ao analisar a crise na universidade francesaem 1968, define o campo como “o lugar de uma luta para determinar ascondições e os critérios de pertencimento e de hierarquia legítimos”. Entre-tanto, é no livro sobre a formação do campo literário francês, publicado em1992, que Bourdieu produz formulações mais desenvolvidas e explicitaque o conceito de campo se coloca como alternativa tanto ao formalismoquanto ao marxismo:

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Mas ela também permitiu escapar à alternativa da interpretação

interna e da explicação externa, diante da qual se achavam colo-

cadas todas as ciências das obras culturais, história social e socio-

logia da religião, do direito, da ciência da arte ou da literatura,

ao lembrar a existência dos microcosmos sociais, espaços separa-

dos e autônomos, nos quais essas obras se engendram: nessas

matérias, a oposição entre um formalismo nascido da codificação

de práticas artísticas levadas a um alto grau de autonomia e um

reducionismo aplicado em relacionar diretamente as formas ar-

tísticas a formações sociais dissimulava que as duas correntes ti-

nham em comum o fato de ignorar o campo de produção como

espaço de relações objetivas.26

Assim como o Círculo, Bourdieu desenvolve o conceito de campo, a fimde explicar a complexidade das produções ideológicas (entre as quais se incluemas obras literárias), que não poderiam ser explicadas unicamente pelas leisinternas do campo, mas que também não se reduzem aos determinismossocioeconômicos. Dessa forma, o conceito de campo de Bourdieu aparececomo um espaço social de transformação das demandas externas.

Uma das manifestações mais visíveis da autonomia do campo é

sua capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma específica

as pressões ou as demandas externas. [...]

Dizemos que quanto mais autônomo for um campo, maior será o seupoder de refração e mais as imposições externas serão transfiguradas, a pon-to, freqüentemente, de se tornarem perfeitamente irreconhecíveis. O graude autonomia de um campo tem por indicador principal seu poder de re-fração, de retradução.27

Aqui também, o modo de existência do campo é sua capacidade derefratar ou retraduzir as demandas externas. As duas obras concebem ocampo como um espaço social capaz de refratar, traduzir ou transformar asdemandas externas, sobretudo da base socioeconômica comum. Busca-se,em ambos os casos, escapar à visão de que os produtos ideológicos refletemdiretamente as transformações políticas, sociais e econômicas, tirando-lhesa sua autonomia social e também, na visão bakhtiniana, semiótica.

Em um texto publicado postumamente, em 2001, “Science de la scienceet réflexivité”, Bourdieu acrescenta que o conceito de campo, como estru-

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tura de relações objetivas, está ancorado em uma filosofia “disposicionalista”da ação que rompe com o finalismo, correlativo de um intencionalismoingênuo. Primeiramente, o campo “é uma rede de relações objetivas entreposições” e se constitui em um espaço de lutas, onde os agentes assumemposições segundo quatro coerções: a relação com o habitus, ou seja, as dis-posições incorporadas sob a forma de modos de agir, preferências, gostos,capacidade de compreensão das regras do jogo, etc.; o capital simbólico,decorrente da posição ocupada no campo e do conseqüente reconhecimen-to pelos pares; o capital econômico, proveniente sobretudo da herança e darenda; e as possibilidades e as impossibilidades oferecidas por um campoaos seus agentes, segundo as disposições por eles incorporadas. Esse espaçosocial define-se por um sistema de propriedades relativas, isto é, as posiçõessão apreendidas por suas relações recíprocas em um dado momento da exis-tência do campo, portanto, social e historicamente situadas. As posiçõesrelativas comandam as tomadas de posição (obras, atos, discursos, manifes-tos, polêmicas, etc.) que, por sua vez, se definem pelo espaço de possíveisapresentados na “herança acumulada pelo trabalho coletivo”.

Neste momento, é importante destacar que a obra do Círculo não éindiferente às posições relativas dos enunciados em um dado campo, comovemos no fragmento a seguir:

Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada

esfera da comunicação, em uma dada questão, em um dado assun-

to, etc., é impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-

la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de varia-

das atitudes responsivas a outros enunciados de uma esfera da co-

municação discursiva.28

A especificidade, aqui, está no enfoque dado à linguagem e na concep-ção de que a posição relativa de cada enunciado se manifesta na sua atituderesponsiva em relação aos demais de uma determinada esfera.

Um segundo aspecto do campo é sua relação de maior ou menor inde-pendência com as condições econômicas de existência, cujo princípio bási-co é “o cálculo dos lucros individuais, portanto, do interesse econômico”.Bourdieu mostra que as sanções dos campos literário, artístico ou científicoadvêm do reconhecimento do capital simbólico, isto é, do conhecimento e

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do reconhecimento que os pares fazem da trajetória e do prestígio pessoal,decorrente das produções por eles valorizadas. Essas sanções são, muitasvezes, inversas à lógica econômica. O sociólogo mostra que o campo literá-rio francês se formou em um período de ascensão e de influência da socie-dade burguesa, que se caracterizava pela exaltação do dinheiro e do lucro,pela expansão da imprensa e dos folhetins, representantes da penetração daprodução industrial sobre a literatura. Em face a esse contexto, o campoliterário constituiu-se sob uma lógica econômica inversa, ou seja, o prestí-gio literário de um autor podia ser medido inversamente ao seu capitaleconômico: “o artista só pode triunfar no terreno simbólico perdendo noterreno econômico (pelo menos em curto prazo), e inversamente (pelo menosem longo prazo)”.

Outro componente diz respeito à relação hierárquica entre os gêneros dodiscurso que o campo engendra e que nele circulam. Essa hierarquia estabe-lece uma gradação entre os gêneros que melhor representam o campo e aque-les que estão em suas margens. O prestígio do agente se mede pelo modo deacesso aos gêneros “maiores” e aos “menores”. Por exemplo, no jornal impres-so, os jornalistas dominantes têm acesso aos editoriais, a artigos assinados, àedição da primeira capa, enquanto os iniciantes se distribuem entre as notíciase reportagens não assinadas do interior do caderno. O prestígio do cientistapode ser medido pelas possibilidades de produção e de publicação dos gêne-ros dominantes nos veículos mais valorizados, que se constituem pela arbitra-gem dos pares. O valor do gênero também pode ser medido pelas caracterís-ticas do seu público-alvo: em determinados campos, os gêneros voltados aospares costumam ser mais valorizados do que os produzidos para agentes ex-ternos. No campo científico, os artigos publicados em revistas internacional-mente reconhecidas e voltados para cientistas são dominantes em relação amanuais de iniciação ou artigos de divulgação científica em jornal, cujo pú-blico é formado, respectivamente, por estudantes e leigos.

Um quarto aspecto refere-se ao fato de que o processo histórico deformação do campo acompanha-se de uma reflexão sobre os gêneros e asobras nele produzidas:

[...] à medida que o campo se fecha sobre si, o domínio prático das

aquisições específicas de toda a história do gênero que estão

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objetivadas nas obras passadas e registradas, codificadas, canoniza-

das por todo um corpo de profissionais da conservação e da cele-

bração, historiadores da arte e da literatura, exegetas, analistas, faz

parte das condições de entrada no campo de produção restrita.

A percepção exigida pela obra produzida na lógica do campo é

uma percepção diferencial, distintiva, comprometendo na percep-

ção de cada obra singular o espaço das obras compossíveis, logo,

atenta e sensível às variações com relação a outras obras, contem-

porâneas e também passadas.29

O conhecimento dos gêneros é imprescindível para a inserção em umdeterminado campo da produção cultural. Entretanto, o processo social deatualização varia de campo para campo. Nas artes, as rupturas nos gênerose a inversão hierárquica dos mesmos constituem uma aposta capaz de mar-car época e fazer nomes de prestígio. No campo científico, verifica-se umcrescimento de manuais e regras de codificação dos gêneros aí produzidos,sendo o seu domínio indispensável para o sucesso. O investimento dosagentes, aqui, é maior no deslocamento dos temas e das categorias de per-cepção e de apreciação do real.

O quinto aspecto compreende a elaboração de uma linguagem pró-pria que seja parte do processo de emergência de um campo: “entre todasas invenções que acompanham a emergência do campo de produção, umadas mais importantes é, sem dúvida, a elaboração de uma linguagem pro-priamente artística”. Assim como nas artes, os demais campos produzemuma linguagem própria para nomear e caracterizar os agentes e seus pro-dutos. Essa linguagem elabora esquemas de classificação e de apreciaçãoque visam, dentro da lógica interna do campo, construir hierarquias emodos de percepção.

Por fim, a autonomia do campo pode se construir sob o preceito daprimazia da forma sobre a função, ou do estilo sobre o conteúdo: “coagir alinguagem para coagir a atenção para a linguagem, tudo isso equivale, emdefinitivo, a afirmar a especificidade e o caráter insubstituível do produto edo produtor, ressaltando o aspecto mais específico e mais insubstituível doato de produção”.30 Aqui deparamo-nos com um princípio específico docampo de produção artístico. O modo de valorização do estilo se dá deforma distinta nos campos sociais. Enquanto o campo artístico valoriza os

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efeitos de estilo sobre o conteúdo, o campo científico se constitui em umalógica distinta, ou seja, seus gêneros são elaborados em função da produçãode efeito de teoria ou de objetividade. O que vale no campo científico é queo estilo deve subordinar-se à exposição de conceitos e categorias de análise,capazes de fazer avançar o estado de conhecimentos da área.

A noção de campo remete sempre a uma realidade social plural, isto é,à diversidade de manifestações da atividade humana e de seus modos deorganização em uma dada formação social. Essa pluralidade se deve a doiscomponentes inter-relacionados constitutivos do campo: a sua autonomiarelativa e a sua capacidade de refração das demandas externas. A autonomiase mede pela capacidade de transformar as demandas externas, origináriasdas outras esferas e de uma base socioeconômica comum. Essa refração outransformação ocorre em razão das relações objetivas entre os agentes, asinstituições, e do diálogo entre as obras de um campo. A autonomia nãosignifica, entretanto, indiferença e impermeabilidade em relação às deman-das externas, as quais, embora interfiram na dinâmica interna de um cam-po, não se refletem diretamente nas suas produções ideológicas. Portanto, ainfluência de uma determinada transformação social em uma obra tem queser analisada em razão das especificidades do campo.

CAMPOS E GÊNEROS DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

A divulgação científica é uma prática discursiva em expansão na socieda-de brasileira. A dificuldade em defini-la, seja como gênero discursivo, sejacomo discurso segundo – derivado do científico –, deve-se, em grande parte,à diversidade de esferas/campos nos quais ocorre. Ela assumirá característicaspróprias, em razão das coerções sociodiscursivas de três campos: o científico,o educacional e o jornalístico. Cada um deles é formado por gêneros próprios,que representam um segundo nível de coerções ou de normas.

No campo científico, a divulgação costuma assumir a forma do gêneroartigo, com um público-alvo mais restrito, normalmente composto por cien-tistas de outras áreas (um biólogo escrevendo para químicos, físicos, mate-máticos, etc.), universitários e pós-graduandos de uma forma geral. Buenochama essa modalidade de disseminação extrapar.

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No campo educacional, ela está presente em gêneros como os livros emanuais didáticos, a aula (expositiva, seminário, estudo do texto, etc.), li-vros paradidáticos, etc. Seu público-alvo é composto por estudantes dividi-dos por faixa etária e nível de escolaridade, os quais, quando inseridos nainstituição universitária, podem vir a se tornar pares do campo científico.

No campo jornalístico, ela toma a forma dos gêneros notícia, reporta-gem, artigo, perguntas do leitor. Dirige-se a um público amplo, variável emfunção do meio tecnológico de difusão, e recebe o nome de jornalismocientífico. As revistas especializadas (Galileu, Superinteressante, ScientificAmerican Brasil) e os jornais escritos diários (Folha de S.Paulo, O Estado deS.Paulo, Jornal do Brasil), embora se voltem ao leigo, têm leitores com ca-racterísticas socioeconômico-culturais mais restritas: pertencem às classes Ae B, moram sobretudo nas cidades, freqüentam ou freqüentaram o sistemaeducacional até, pelo menos, a universidade, e são consumidores de produ-tos culturais menos populares (livros, revistas, jornais, cinema, teatro, obrasde arte, etc.). A televisão atinge um público mais amplo e heterogêneo,formado tanto por aquele que acabamos de descrever, quanto por camadasmais populares e menos escolarizadas.

A divulgação da ciência em jornais e revistas assume particularidadesdiscursivas que são produzidas por cinco coerções constitutivas do campo/esfera jornalístico: a atualidade, a periodicidade, a objetividade, ainformatividade e a captação do leitor.

A atualidade caracteriza o jornalismo como um relato dos aconteci-mentos contemporâneos à sua realização. Esse aspecto é responsável pelafalta de perspectiva histórica dos fatos narrados, que são apresentadoscomo um presente sem história. Em razão disso, prevalecem o relato denovas descobertas científicas, apresentadas sem o processo histórico e sema tradição que permitiu o seu aparecimento, e a explicação de um proce-dimento científico, atrelado a algum fato da atualidade de outra área,como vemos na reportagem de O Estado de S.Paulo, “Cientistas criticammistura de temas”, de 3 de março de 2005. A explicação da obtenção decélulas-tronco é motivada pela votação, no Congresso Nacional brasilei-ro, de um projeto de lei, ou seja, um fato político da atualidade é o gan-cho para a divulgação científica.

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A periodicidade está na base do ritmo das publicações. Segundo Bueno,ela, no caso da ciência, está menos atrelada ao ritmo de edição dos veículosjornalísticos, que em conformidade com o desenvolvimento peculiar daciência. Entretanto, como vimos na coerção da atualidade, a ciência, ao serrefratada pelo campo jornalístico, está sujeita não só à periodicidade docampo científico, mas dependente de acontecimentos de outros domínios(político, econômico, cotidiano, etc.).

A informatividade estabelece uma relação de interlocução jornalística,baseada na detenção de uma informação pelo jornalista e no interesse do

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leitor em obtê-la. Essa informatividade é condicionada pelo leitor leigo dojornal, que precisa de informações sobre conceitos e procedimentos cientí-ficos, desnecessários para cientistas do campo. A utilização do infográficona reportagem de O Estado de S.Paulo fornece, de forma esquemática, aexplicação dos procedimentos para obtenção de células-tronco.

A objetividade é produzida por meio de recursos enunciativos quemostram os acontecimentos noticiados como anteriores e independentesda instância jornalística, cujo papel é registrar e relatar fatos de formaimparcial. No gênero reportagem jornalística, a objetividade é produzidacom a utilização maciça do discurso citado de atores detentores de legiti-midade social para falar sobre o tema. Essa utilização produz o efeito deduplicação do real ou de reprodução das falas dos envolvidos nos fatos. Otexto da reportagem de O Estado de S.Paulo é composto, majoritariamen-te, pela transmissão das vozes de três atores sociais: o ambientalista Ven-tura Barbeiro, o advogado Reginaldo Minaré e o pesquisador AluízioBorém. Entre os três, a voz do cientista tem o estatuto de autoridadelegítima, o que faz com que a escolha do sujeito-tópico do título da re-portagem recaia sobre os “Cientistas”.

Por fim, a captação do leitor é constitutiva do caráter comercial dosveículos de comunicação de massa, os quais sobrevivem da venda do seuproduto. Na verdade, a quase totalidade das receitas das empresas de comu-nicação provém de verbas publicitárias, que são proporcionais à capacidadede captação do público-alvo e do prestígio do veículo. O jornalismo cientí-fico apresenta maior apelo junto ao público-leitor, quanto maior for seuimpacto sobre a vida cotidiana e sua capacidade de trazer soluções para ela.Os leitores estão menos interessados nos conhecimentos científicos em sique nas suas aplicações terapêuticas, fato que explica o predomínio dasáreas da medicina e da biologia no noticiário jornalístico. Na reportagemem questão, o infográfico, que domina a maior parte do espaço e é o ele-mento de maior captação da atenção do leitor, traz uma explicação sobre asfontes embrionárias das células-tronco e não sobre as pesquisas com trans-gênicos, também contidas no texto da reportagem. Outro dado semelhantea este é o tema do último parágrafo que aponta o potencial terapêutico dascélulas-tronco para a cura de lesões e de doenças como Parkinson e Alzheimer.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise comparativa das duas obras procurou evidenciar as suas seme-lhanças, as suas diferenças e os pontos de articulação que se mostrarampertinentes. A recente retradução do livro Estética da criação verbal, deMikhail Bakhtin, substitui, em muitos momentos, o termo esfera por cam-po, fato que facilita a aproximação dos conceitos nas duas obras. Entretan-to, as traduções em inglês, em francês e em espanhol dos livros do Círculomantêm o termo esfera. Se é certo que campo corresponde à tradução dostextos de Pierre Bourdieu, a palavra esfera parece, no momento, ser a maisadequada para o Círculo, embora ocorra uma oscilação terminológica nastraduções brasileiras.

Os conceitos de esfera e de campo testemunham a atenção à diversidadedas manifestações culturais humanas presente nas duas obras. Com isso, elesproporcionam uma compreensão mais ampla das produções ideológicas, quesofrem as coerções e adquirem um valor relativo no domínio em que sãoproduzidas (literatura, ciência, religião, mídia, educação, etc.). A linguagemé o terreno comum sobre o qual se assentam todos os campos/esferas, adquireespecificidades e é responsável pela identidade de cada um deles.

É importante ainda salientar que o campo/esfera é um conceito funda-mental para o estudo e a classificação dos gêneros discursivos. A relação deum texto com outros da mesma espécie passa pela sua inserção em determi-nado domínio cultural, adquirindo um modo próprio de refratar a realida-de em seus diversos aspectos. Na obra de Bourdieu, a ênfase recai sobre ahierarquia entre os gêneros e sobre o seu acesso desigual pelos agentes deum mesmo campo. A compreensão das práticas de divulgação científica nasociedade brasileira passa pela consideração das influências dos diferentescampos e gêneros nos quais elas ocorrem.

NOTAS

1 A exposição de conceitos dessa malha conceitual, a partir de análises do conjunto da obrabakhtiniana, pode ser encontrada no livro organizado por Brait, Bakhtin: conceitos-chave, SãoPaulo, Contexto, 2005.

2 No domínio das ciências da linguagem e da literatura, podemos lembrar a utilização dos conceitosde polifonia, de enunciado, de plurilingüismo e de gêneros do discurso, entre outros, pelos

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teóricos franceses Jacqueline Authier-Revuz, Dominique Maingueneau, Oswald Ducrot, TzvetanTodorov, Julia Kristeva.

3 M. Bakhtin e V. Voloshinov, Marxismo e filosofia da linguagem, trad. Michel Lahud e Yara F.Vieira, 6. ed., São Paulo, Hucitec, 1992, p. 72. (Original russo, 1929.)

4 “L’exemple de Sartre, l’intellectuel par excellence, capable de vivre comme il les dit et commepour les dire des “expériences” produites par et pour l’analyse, c’est-à-dire des ces choses quiméritent d’être vécues parce qu’elles méritent d’être racontées, fait voir que, comme l’objectivismeuniversalise le rapport savant à l’objet de la science, le subjectivisme universalise l’expérience quele sujet du discours savant se fait de lui-même en tant que sujet.” Pierre Bourdieu, Le senspratique, Paris, Minuit, 1980, p.77.

5 M. Bakhtin e V. Voloshinov, op. cit., p. 83.6 “Il suffit d’ignorer la dialectique des structures objectives et des structures incorporées qui

s’opère dans chaque action pratique pour s’enfermer dans l’alternative canonique qui, renaissantsans cesse sous de nouvelles formes dans l’histoire de la pensée sociale, voue ceux qui entendentprendre le contrepied du subjectivisme, comme aujourd’hui les lecteurs structuralistes de Marx,à tomber dans le fétichisme des lois sociales; convertir en entités transcendantes, qui sont auxpratiques dans le rapport de l’essence à l’existence, les constructions auxquelles la science doitavoir recours pour rendre raison des ensembles structurés et sensés que produit l’accumulationd’innombrables actions historiques, c’est réduire l’histoire à un “processus sans sujet” etsubstituer simplement au “sujet créateur” du subjectivisme un automate subjugué par les loismortes d’une histoire de la nature. Cette vision émanatiste qui fait de la structure, Capital ouMode de production, une entéléchie se développant elle-même dans un processusd’autoréalisation, réduit les agents historiques au role de “supports” (Träger) de la structure etleurs actions à de simples manifestations épiphénoménales du pouvoir qui appartient à lastructure de se développer selon ses propres lois et de déterminer ou de surdéterminer d’autresstructures.” Pierre Bourdieu, op. cit., p.70.

7 Mikhail Bakhtin passou toda sua vida (1895-1975) na Rússia. Suas primeiras obras datam doinício década de 1920. Pierre Bourdieu nasceu e viveu na França entre 1930 e 2002. Começa apublicar no final da década de 1950.

8 Para conferir a importância do conceito de interação verbal no conjunto da obra do Círculo, lero artigo de Brait (2002).

9 M. Bakhtin e V. Voloshinov, op. cit., p. 123.10 M. Bakhtin e V. Voloshinov, Le discours dans la vie et le discours dans la poésie. Contribution à

une poétique sociologique, em Tzvetan Todorov, Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique. Suivide Écrits du Cercle de Bakhtine, Paris, Seuil, 1981, pp. 181-215. (Original russo, 1926.)

11 “With the ideological horizon of every epoch, there is a value center toward which all the pathsand aspirations of ideological activity lead.” M.Bakhtin, P. Medvedev, The formal method inliterary scholarship: a critical introduction to sociological poetics, trad. Albert J. Wehrle, Maryland,Johns Hopkins Press, 1991, p. 157. (Original russo, 1928.)

12 Beth Brait, Interação, gênero e estilo, em D. Preti (org.), Interação na fala e na escrita, SãoPaulo, Humanitas/FFLCH/USP, 2002, pp. 125-57.

13 “Echappant à l’alternative des forces inscrites dans l’état antérieur du système, à l’extérieur descorps, et des forces intérieurs, motivations surgies, dans l’instant, de la décision libre, les dispositionsintérieures, intériorisation de l’extériorité, permettent aux forces extérieures de s’exercer, maisselon la logique spécifique des organismes dans lesquels elles sont incorporées, c’est-à-dire de

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BAKHTIN outros conceitos-chave

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manière durable, systématique et non mécanique; système acquis de schèmes générateurs, l’habitusrend possible la production libre de toutes les pensées, toutes les perceptions et toutes les actionsinscrites dans les limites inhérentes aux conditions particulières de sa production, et de celles-làseulement. A travers lui, la structure dont il est le produit gouverne la pratique, non selon lesvoies d’un déterminisme mécanique, mais au travers des contraintes et des limites originairementassignées à ses inventions. [...] Parce que l’habitus est une capacité infinie d’engendrer en touteliberté (contrôlée) des produits – pensées, perceptions, expressions, actions – qui ont toujourspour limites les conditions historiquement et socialement situées de sa production, la libertéconditionnée et conditionnelle qu’il assure est aussi éloignée d’une création d’imprévisiblenouveauté que d’une simple reproduction mécanique des condionnements initiaux.” PierreBourdieu, op. cit., p. 92.

14 “Le sens pratique, nécessité sociale devenue nature, convertie en schèmes moteurs et en automatismescorporels, est ce qui fait que les pratiques, dans et par ce qui en elles reste obscur aux yeux de leursproducteurs et par où se trahissent les principes transsubjectifs de leur production, sont sensées,c’est-à-dire habitées par un sens commun. C’est parce que les agents ne savent jamais complètementce qu’ils font que ce qu’ils font a plus de sens qu’ils ne le savent.” Idem, p. 116.

15 “Les évaluations sous-entendues prennent dans ce cas une signification particulièrement importan-te. En effet, les principales évaluations sociales, qui s’enracinent immédiatement dans les particularitésde la vie économique du groupe social donné ne sont pas le plus souvent énoncées: elles sont entréesdans la chair et dans le sang de tous les représentants de ce groupe; elles organisent les actions et laconduite des gens; elles sont en quelque sorte soudées aux choses et aux phénomènes correspondants;c’est pourquoi elles ne requièrent pas de formulations verbales particulières. [...] Si l’évaluation esteffectivement conditionnée par la vie même de la collectivité donnée, elle est alors admise à lamanière d’un dogme, comme quelque chose qui va de soi et ne prête pas à discussion. Inversement,si l’évaluation fondamentale est énoncée et démontrée, c’est qu’elle est devenue douteuse, qu’elles’est détachée de son objet, qu’elle a cessé d’organiser la vie et, par conséquent, que son lien avec lesconditions d’existence de la collectivité a été rompu.” Bakhtin/Voloshinov, 1926/1981, p. 193.

16 “Method must of course be adapted to the object. On the other hand, without a definite methodthere can certainly be no approach to the object. It is necessary to be able to isolate the object ofstudy and correctly make note of its important features. These distinctive features are not labeled.Other movements see other aspects of the object as distinctive features.[...]Primary approaches and orientations must be set in the broad methodological context. Literaryscholarship enters the sphere of other disciplines. It must be oriented in this sphere, must be inharmony with the methods and objects of allied disciplines. The interrelationships of disciplinesmust reflect the interrelationships of their objects.” Bakhtin/Medvedev, 1928/1991, pp. 77-8.

17 Pierre Bourdieu, As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário, trad. Maria LúciaMachado, São Paulo, Companhia. das Letras, 1996, p. 251. (Original francês, 1992.)

18 Em especial, os textos: “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie. Contribution à unepoétique sociologique” (1926/1981), “The formal method in literary scholarship: a criticalintroduction to sociological poetics” (1928/1991), “Marxismo e filosofia da linguagem” (1929/1992) e “Problemas da poética de Dostoiévski” (1929/1997).

19 “La communication artistique s’enracine donc dans une infraestrutucture qu’elle partage avec lesautres formes sociales, mais elle conserve, non moins que ces autres formes, un caractère propre”.M. Bakhtin e V. Voloshinov, Le discours dans la vie et le discours dans la poésie. Contribution àune poétique sociologique, em Tzvetan Todorov, Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique. Suivide Écrits du Cercle de Bakhtine, Paris, Seuil, 1981, pp. 187. (Original russo, 1926.)

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20 M. Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski, trad. Paulo Bezerra, 2. ed., Rio de Janeiro,Forense Universitária, 1997, p. 90. (Original russo, 1929.)

21 M. Bakhtin e V. Voloshinov, Marxismo e filosofia da linguagem, trad. Michel Lahud e Yara F.Vieira, 6. ed., São Paulo, Hucitec, 1992, p. 33.

22 Idem, p. 38.23 M. Bakhtin, Os gêneros do discurso, em Estética da criação verbal, trad. Paulo Bezerra, São

Paulo, Martins Fontes, 2003. p. 289. (Original russo, 1979.)24 Idem, p. 298.25 Idem, p. 301.26 Pierre Bourdieu, op. cit. 1996, pp. 254-5. (Original francês, 1992.)27 Pierre Bourdieu, Os usos sociais da ciência, Por uma sociologia clínica do campo científico, trad.

Denice B. Catani, São Paulo, Unesp, 2004, pp. 21-2. (Original francês, 1997.)28 M. Bakhtin, Os gêneros do discurso, em Estética da criação verbal, op. cit., p. 297.29 Pierre Bourdieu, op. cit., 1996, pp. 273, 280.30 Idem, p. 334.

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Interdiscursividade eintertextualidade

José Luiz Fiorin

Nam ubi ea uiderunt qui futura cecinerunt, si nondum sunt? Nequeenim potest uideri id quod non est. Et qui narrant praeterita, non

utique uera narrarent, si animo illa non cernerent: quae si nulla essent,cerni omnino non possent.1

(Santo Agostinho)

Só não existe o que não pode ser imaginado.

(Murilo Mendes)

Exister, c’est coexister.

(Gabriel Marcel)

Agostinho, em sua bela reflexão sobre o tempo, mostra-nos, ao discutira existência do passado e do futuro, que só se pode falar do que é e nãodaquilo que não é. Conclui pela existência do passado e do futuro porquefalamos dele. Sunt ergo et futura et praeterita. Essas reflexões agostinianasvêm bem a propósito, quando se trata de explicar o problema dainterdiscursividade e da intertextualidade em Bakhtin. Se formos ater-nos

BAKHTIN outros conceitos-chave

162

ao significante, não temos o que dizer, pois, na obra bakhtiniana, não ocor-rem os termos interdiscurso, intertexto, interdiscursivo, interdiscursividade,intertextualidade. No conjunto da obra do autor russo aparece uma únicavez o termo intertextual: “As relações dialógicas intertextuais e intratextuais.Seu caráter específico (extralingüístico). Diálogo e dialética” (Bakhtin, 1992,p. 331). No entanto, a primeira coisa a verificar diante dessa ocorrência é seela se trata de um problema de tradução. Como a tradução brasileira foifeita a partir do francês, consultou-se primeiro o texto em francês, em quea palavra também aparece: “Les rapports dialogiques intertextuels etintratextuels. Leur caractère particulier (extra-linguistique). Dialogique etdialectique” (Bakhtin, 1984, p. 313). Como, no entanto, a tradução fran-cesa certamente estaria impregnada das ressonâncias da obra de Kristeva,que introduziu Bakhtin na França, seria preciso consultar outras traduçõesfeitas a partir do texto russo. Tomando a tradução espanhola, nota-se quenela o termo não ocorre: “Las relaciones dialógicas entre los textos y dentrode los textos. Su carácter específico (no lingüístico). El diálogo y la dialéctica”(Bakhtin, 1985, p. 296). Essa tradução parece mais fiel ao texto russo(Bakhtin, 1986, p. 299). Assim, não há nem mesmo o termo intertextual naobra bakhtiniana2 e esse verbete, portanto não teria lugar. No entanto, aquestão é mais complexa, pois, como nota Sírio Possenti, “sob diversosnomes – polifonia, dialogismo, heterogeneidade, intertextualidade – cadaum implicando algum viés específico, como se sabe, o interdiscurso reinasoberano há algum tempo” (Possenti, 2003, p. 253). Assim, a questão é: a)verificar se, sob outro nome, a questão do interdiscurso está presente naobra de Bakhtin; b) examinar se é possível distinguir, com base nas idéiasbakhtinianas, interdiscursividade e intertextualidade.

O APARECIMENTO DO TERMO INTERTEXTUALIDADE

A palavra intertextualidade foi uma das primeiras, consideradas comobakhtinianas, a ganhar prestígio no Ocidente. Isso se deu graças à obra deJúlia Kristeva. Obteve cidadania acadêmica, antes mesmo de termos comodialogismo alcançarem notoriedade na pesquisa lingüística e literária.Rastreemos brevemente a história do aparecimento desse termo.

163

Em 1967, Kristeva publica, na Critique, uma longa discussão acerca dasteorias bakhtinianas expostas nas obras Problemas da poética de Dostoiévski eA obra de François Rabelais (Kristeva, 1967, pp. 438-65).3 A preocupaçãoda semioticista era discutir o texto literário. Segundo ela, para Bakhtin, odiscurso literário “não é um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento desuperfícies textuais, um diálogo de várias escrituras” (Idem, p. 439). Todotexto constrói-se, assim, “como um mosaico de citações, todo texto é absor-ção e transformação de um outro texto” (Idem, p. 440). Em sua leitura daobra de Bakhtin, Kristeva identifica discurso e texto: “O discurso (o texto)é um cruzamento de discursos (de textos) em que se lê, pelo menos, umoutro discurso (texto)” (Idem, p. 84). Afirma ainda que, no lugar da noçãode intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade (Idem, p. 441).Bakhtin opera com a noção de intertextualidade, porque considera que o“diálogo é a única esfera possível da vida da linguagem” (Idem, p. 443). Porisso, ele vê “a escritura como leitura do corpus literário anterior e o textocomo absorção e réplica a um outro texto” (Idem, p. 444). Está aí entronizadaa noção de intertextualidade como procedimento real de constituição dotexto. Mais tarde, Kristeva vai elaborar a proposta teórica de uma ciênciado texto, a que denominou Semanálise (Kristeva, 1974).

No entanto, essa intertextualidade generalizada não pode funcionar se sevê o texto da maneira como tradicionalmente ele foi definido. Por isso, Kristevatrata de repensar essa noção. Roland Barthes, em verbete para a edição de1973 da Encyclopedia universalis, explica, de maneira didática, esse conceitoredefinido pela semioticista búlgara (Barthes, 1994, pp. 1.677-89). Segundoa opinião corrente, o texto é “a superfície fenomênica da obra literária: é otecido das palavras utilizadas na obra e organizadas de maneira a impor umsentido estável e tanto quanto possível único” (Idem, p. 1.677). Como dizBarthes, no fundo, ele não passa de “um objeto perceptível pelo sentido davisão” (Idem, ibid.). Como o texto é “o que está escrito”, ele é, na obra,

o que suscita a garantia da coisa escrita, cujas funções de salvaguarda

ele concentra: de um lado, a estabilidade, a permanência da inscri-

ção, destinada a corrigir a fragilidade e a imprecisão da memória; de

outro, a legalidade da letra, traço irrecusável, indelével, do sentido

que o autor da obra nela intencionalmente depositou. O texto é

uma arma contra o tempo, o esquecimento, e contra as velhacarias

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

164

da palavra, que, muito facilmente, volta atrás, altera-se, renega-se. A

noção de texto está, portanto, historicamente ligada a todo um con-

junto de instituições: direito, Igreja, literatura, ensino; o texto é um

objeto moral: é o que está escrito, enquanto participa do contrato

social; ele assujeita, exige ser observado e respeitado; mas em troca

confere à linguagem um atributo inestimável (que em sua essência

ela não tem): a segurança. (Idem, ibid.)

O texto assim concebido, como “depositário da própria materialidadedo significante” (Idem, p. 1.678), deveria ser mantido em sua exatidão.Para isso, cria-se a filologia, que se vale da técnica da crítica textual. Essaconcepção de texto está ligada a uma metafísica, a da verdade. Ora, no finaldo século XIX, começa-se a demolir essa metafísica. Por isso, também a no-ção de texto entra em xeque (Idem, pp. 1.677-80). Citando Kristeva, Barthesredefine o texto: “aparelho translingüístico que redistribui a ordem da lín-gua colocando em relação uma palavra comunicativa, que visa à informa-ção direta, com diferentes enunciados anteriores ou sincrônicos” (Idem,p. 1.680). Atribui a Kristeva a elaboração dos principais conceitos teóricosimplicados nessa noção de texto: práticas significantes, produtividade,significância, fenotexto e genotexto e intertextualidade. Dizer que o texto éprática significante quer dizer que “a significação se produz, não no nívelde uma abstração (a língua), tal como postulara Saussure, mas como umaoperação, um trabalho, em que se investem, ao mesmo tempo e num sómovimento, o debate do sujeito e do Outro e o contexto social” (1994,p. 1.681). O texto é uma produtividade, porque é o teatro do trabalho coma língua, que ele desconstrói e reconstrói (Idem, ibid.). É significância,porque é um espaço polissêmico, onde se entrecruzam vários sentidos pos-síveis. A significância é um processo, em que o sujeito se debate com osentido e se descontrói (Idem, p. 1.682). O fenotexto é “o fenômeno verbaltal como ele se apresenta na estrutura do enunciado concreto”. É contin-gente. Já o genotexto é o campo da significância, domínio verbal e pulsional,onde se estrutura o fenotexto, lugar da constituição do sujeito da enunciação(Idem, pp. 1.682-3). “Todo texto é um intertexto; outros textos estão pre-sentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis”(Idem, p. 1.683). A intertextualidade é a maneira real de construção dotexto (Idem, ibid.).

165

Como se observa, o conceito de texto em Kristeva e Barthes, na medidaem que é prática significante, em que desconstrói e reconstrói a língua, emque é o lugar de constituição do sujeito, em que seu modo de funciona-mento real é a relação constitutiva com outros textos, poderia muito facil-mente recobrir aquilo que entendemos por discurso. Aliás, esse conceito detexto apresenta um problema, que é distinguir, de um lado, manifestaçãoacabada do trabalho com a língua e, de outro, esse próprio trabalho. Não ésem razão que Kristeva teve de diferençar o fenotexto do genotexto. E Barthesfaz uma distinção entre o texto e a obra. Esta é um objeto acabado, aqueleé um trabalho, uma produção (Idem, p. 1684). Cabe uma última pergun-ta: por que esses autores não utilizaram o termo discurso? Porque, segundoBarthes, esse termo estava comprometido semanticamente. A linguagemestava dividida em duas regiões distintas e heterogêneas para fins de análise:tudo o que era de nível inferior ou igual à frase era do domínio da Lingüís-tica; tudo o que estava no nível superior ao da frase, o discurso, era objetode uma ciência normativa, a retórica (Idem, ibid.).

Barthes não desqualifica a Lingüística, nem a retórica, nem a semiótica,nem a semiologia. Apenas propugna a constituição de uma semanálise, queteria um objeto, o texto, diverso daqueles dos campos do conhecimentoacima citados. A semiótica, por exemplo, para ele, estudaria o fenotexto.Ora, nesse conjunto de níveis e de objeto, o que é exatamente aintertextualidade? Qualquer referência ao Outro, tomado como posiçãodiscursiva: paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias, repetições,reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens, varianteslingüísticas, lugares comuns, etc. O conceito foi sendo utilizado de maneiramuito frouxa, ao longo do tempo. É hora, entretanto, de voltar à obra deBakhtin e começar a discutir os problemas enunciados na introdução.

A QUESTÃO DO INTERDISCURSO EM BAKHTIN

Em Bakhtin, a questão do interdiscurso aparece sob o nome dedialogismo. É preciso examinar mais detidamente esse conceito. Cumpre,no entanto, inicialmente, afastar duas leituras recorrentes da obrabakhtiniana: a) dialogismo equivale a diálogo, no sentido de interação face

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

166

a face; b) há dois tipos de dialogismo: o dialogismo entre interlocutores e odialogismo entre discursos (cf., por exemplo, Authier, 1982, pp. 118-9).Essas duas afirmações parecem equivocadas.

Bakhtin, em O problema do texto, afirma;

O diálogo real (conversa comum, discussão científica, controvér-

sia política, etc.). A relação existente entre as réplicas de tal diálo-

go oferece o aspecto externo mais evidente e mais simples da rela-

ção dialógica. Não obstante, a relação dialógica não coincide de

modo algum com as relações existentes entre as réplicas de um

diálogo real, por ser mais extensa, mais variada e mais complexa.

(Bakhtin, 1992, pp. 353-4)

O dialogismo não se confunde com a interação face a face (cf. Bakhtin,1998, p. 92). Essa é uma forma composicional em que ocorrem relaçõesdialógicas, que se dão em todos os enunciados no processo de comunica-ção, tenham eles a dimensão que tiverem. Não se pode, portanto, pensar odialogismo como algo que possa reduzir-se aos estudos que faz, por exem-plo, a Análise da Conversação.

Em segundo lugar, não se pode dizer que haja dois dialogismos: entreinterlocutores e entre discursos. O dialogismo é sempre entre discursos. Ointerlocutor só existe enquanto discurso. Há, pois, um embate de dois dis-cursos: o do locutor e o do interlocutor, o que significa que o dialogismo sedá sempre entre discursos. Isso fica claro quando Bakhtin discute a questãodo que chama as “ciências do espírito” e o problema da “compreensão”:

O espírito (o próprio e o do outro) não pode ser dado enquanto

objeto (objeto diretamente observável nas ciências naturais), mas

somente na expressão que lhe dará o signo, na realização que lhe

dará o texto – em se tratando de si mesmo e do outro. [...] O gesto

natural na representação do ator que adquire valor de signo (a

título de gesto deliberado, representado, submetido ao desígnio

do papel). [...] O estenograma do pensamento humano é sempre

o estenograma de um diálogo de tipo especial: a complexa

interdependência entre o texto (objeto de análise e de reflexão) e o

contexto que o elabora e o envolve (contexto interrogativo,

contestatório, etc.) através do qual se realiza o pensamento do su-

jeito que pratica o ato da cognição e do juízo. Há encontro de dois

167

textos, do que está concluído e do que está sendo elaborado em

relação ao primeiro. Há, portanto, encontro de dois sujeitos, de

dois autores. (Idem, pp. 332-4).

Mas o que é efetivamente dialogismo em Bakhtin? Interessam-nosdois sentidos:

a) é o modo de funcionamento real da linguagem e, portanto, é seu princípioconstitutivo;

b) é uma forma particular de composição do discurso.4

Por que o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem?

Os homens não têm acesso direto à realidade, pois nossa relação comela é sempre mediada pela linguagem. Afirma Bakhtin que “não se poderealmente ter a experiência do dado puro” (Bakhtin, 1993, p. 32). Isso querdizer que o real se apresenta para nós semioticamente, o que implica quenosso discurso não se relaciona diretamente com as coisas, mas com outrosdiscursos, que semiotizam o mundo. Essa relação entre os discursos é odialogismo. Como se vê, se não temos relação com as coisas, mas com osdiscursos que lhes dão sentido, o dialogismo é o modo de funcionamentoreal da linguagem, uma vez que

[...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para

o qual está voltado, sempre, por assim dizer, desacreditado, contes-

tado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário,

iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O

objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de

vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o

seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturba-

do e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações.

Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com

uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode

formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus es-

tratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo

o seu aspecto estilístico. (Bakhtin, 1998, p. 86)

Como não existe objeto que não seja cercado, envolto, embebido emdiscurso, todo discurso dialoga com outros discursos, toda palavra é cerca-da de outras palavras (Bakhtin, 1992, p. 319).

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

168

Bakhtin, ao contrário do que faz crer certa leitura eivada de marxismovulgar, não nega a existência do sistema da língua, já que, “por trás de todotexto, encontra-se o sistema da língua” (Idem, p. 331).5 Não condena seuestudo; ao contrário, considera-o necessário para estudar as unidades dalíngua (Idem, pp. 357-8). No entanto, mostra que ele não dá conta domodo de funcionamento real da linguagem (Idem, pp. 346-7). Por isso,propõe uma outra disciplina, a translingüística,6 que teria por objeto o exa-me das relações dialógicas entre os enunciados, seu modo de constituiçãoreal (Bakhtin, 1970, p. 239; 1992, p. 342).

As palavras e as orações são as unidades da língua, enquanto os enun-ciados são as unidades reais de comunicação. As primeiras são repetíveis,os segundos, irrepetíveis, são sempre acontecimentos únicos (Idem, pp.334-5; p. 287; pp. 295-7; p. 332). Bakhtin, diante da irreprodutibilidadedo enunciado, pergunta-se se a ciência pode tratar de uma individualida-de tão irrepetível, que estaria fora do domínio do conhecimento científi-co – que deve tender à generalização. Responde que, em seu ponto departida, a ciência trabalha com singularidades. Depois, faz generalizaçõessobre a forma específica e a função dessas singularidades, o que significa,no caso da translingüística, estudar os aspectos e as formas da relaçãodialógica que se estabelece entre os enunciados e entre suas formastipológicas (Idem, p. 335).

Não é a dimensão que determina o que é um enunciado: ele pode serdesde uma réplica monolexemática até um romance em vários tomos (Idem,p. 305). O que delimita sua fronteira é a alternância dos sujeitos falantes.Isso significa que o enunciado é uma réplica de um diálogo que se estabele-ce entre todos eles (Idem, p. 298). Nesse caso, o dialogismo é constitutivodo enunciado, ele não existe fora do dialogismo:

Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação ver-

bal de uma dada esfera. As fronteiras desse enunciado determi-

nam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados não

são indiferentes uns aos outros nem auto-suficientes; conhecem-

se uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente es-

ses reflexos recíprocos que lhes determinam o caráter. O enuncia-

do está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos

quais está vinculado numa esfera comum da comunicação verbal.

169

O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma res-

posta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra

“resposta” está empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confir-

ma-os, completa-os, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de

outro, conta com eles. Não se pode esquecer que o enunciado

ocupa uma posição definida numa dada esfera da comunicação

verbal relativa a um dado problema, a uma dada questão, etc. Não

podemos determinar nossa posição sem correlacioná-la a outras

posições. (Idem, p. 316)

A relação dialógica é uma relação (de sentido) que se estabelece entreenunciados na comunicação verbal. Dois enunciados quaisquer, se justa-postos no plano do sentido (não como objeto ou exemplo lingüístico), en-tabularão uma relação dialógica (Idem, pp. 345-6).

A primeira característica de um enunciado é ter um autor, ao passoque as unidades da língua não pertencem a ninguém. Os enunciados re-velam sempre uma posição de autoria (Bakhtin, 1963, pp. 240-1; 1992,p. 308). É por isso que as relações dialógicas não são relações lógicas ousemânticas, mas relações entre distintas posições (Bakhtin, 1963, pp. 24-241). O enunciado, sendo como que uma réplica de um diálogo, possuium acabamento específico (Bakhtin, 1992, p. 299). Por isso, ele constituium todo de sentido (Idem, p. 351) e, por conseguinte, permite uma res-posta. As unidades da língua não têm acabamento, não constituem umtodo que possibilita uma resposta (Idem, p. 299). As unidades da línguasão completas, mas não tem acabamento. A completude é característicado elemento, o acabamento é o que singulariza o todo (Idem, p. 307). Apalavra fogo é completa, mas não suscita nenhuma resposta. Só quandoadquire uma autoria e ganha um acabamento, transforma-se em enunci-ado, que denuncia uma situação de perigo e permite ser objeto de umaresposta. Sendo réplicas de um diálogo, os enunciados têm um destinatá-rio, enquanto as unidades da língua não são dirigidas a ninguém (Idem,p. 353). As unidades da língua são neutras, os enunciados contêm neces-sariamente emoções, juízos de valor, expressões (Idem, pp. 308-12).7 Asunidades da língua, puramente potenciais, têm significação, que se deter-mina na relação com outras palavras da mesma língua ou de outra língua(Idem, p. 346). Os enunciados não têm significação, mas sentido (Idem,

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

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p. 355). Se eles são constitutivamente dialógicos, seu sentido é de ordemdialógica (Idem, p. 342 e p. 355). O sentido concreto (distinto da signifi-cação) é o conteúdo do enunciado (Idem, p. 310) e sua natureza é dialógica(Idem, pp. 310, 335 e 326). Como se vê, o conceito de enunciado emBakhtin recobre o que chamamos habitualmente discurso. Adiante, apre-sentaremos algumas precisões a mais sobre essas correspondências.

Quando se diz que o dialogismo é constitutivo do enunciado, está-seafirmando que, mesmo que, em sua estrutura composicional, as diferentesvozes não se manifestem, o enunciado é dialógico. Toda réplica, considera-da em si mesma, é monológica, enquanto todo monólogo é dialógico (Idem,pp. 345 e 317-8). Todo enunciado possui uma dimensão dupla, pois reveladuas posições: a sua e a do outro.

Como nota Faraco, um dos significados da palavra diálogo é o queremete à “solução de conflitos”, “entendimento”, “promoção de consen-so”; no entanto, o dialogismo é tanto convergência, quanto divergência; étanto acordo, quanto desacordo; é tanto adesão, quanto recusa; é tantocomplemento, quanto embate (Faraco, 2003, p. 66). Prossegue aindaFaraco, mostrando que, na verdade, “o Círculo de Bakhtin entende asrelações dialógicas como espaços de tensão entre os enunciados”, pois,“mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao dizerde outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com outros dizeres (ou-tras vozes sociais)” (Idem, p. 67). Isso significa que, do ponto de vistaconstitutivo, o dialogismo “deve ser entendido como um espaço de lutaentre as vozes sociais” (Idem, ibid.). Assim, pode-se dizer que,constitutivamente, a relação dialógica é contraditória.

Exemplifiquemos esse caráter constitutivo do dialogismo. Para isso, to-memos um fragmento do sermão do quinto domingo da Quaresma, de Vieira:

Como estamos na corte, onde das casas dos pequenos não se faz

caso, nem têm nome de casas, busquemos esta fé em alguma casa

grande e dos grandes. Deus me guie.

O escudo desta portada em um quartel tem as quinas, em outro

as lises, em outro as águias, leões e castelos; sem dúvida este deve

ser o palácio em que mora a fé cristã, católica e cristianíssima.

Entremos e vamos examinando o que virmos, parte por parte.

Primeiro que tudo vejo cavalos, liteiras e coches; vejo criados de

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diversos calibres, uns com libré, outros sem ela; vejo galas, vejo

jóias, vejo baixelas; as paredes vejo-as cobertas de ricos tapizes;

das janelas vejo ao perto jardins, e ao longe quintas; enfim, vejo

todo o palácio e também o oratório; mas não vejo a fé. E por que

não aparece a fé nesta casa? Eu o direi ao dono dela. Se os vossos

cavalos comem à custa do lavrador, e os freios que mastigam, as

ferraduras que pisam e as rodas e o coche que arrastam são dos

pobres oficiais, que andam arrastados sem poder cobrar um real,

como se há de ver a fé na vossa cavalariça? Se o que vestem os

lacaios e os pajens, e os socorros do outro exército doméstico

masculino e feminino dependem do mercador que vos assiste, e

no princípio do ano lhe pagais com esperanças e no fim com

desesperações, a risco de quebrar, como se há de ver a fé na vossa

família? Se as galas, as jóias e as baixelas, ou no Reino, ou fora

dele foram adquiridas com tanta injustiça ou crueldade, que o

ouro e a prata derretidos, e as sedas se se espremeram, haviam de

verter sangue, como se há de ver a fé nessa falsa riqueza? Se as

vossas paredes estão vestidas de preciosas tapeçarias, e os miserá-

veis a quem despistes para as vestir a elas, estão nus ou morrendo

de frio, como se há de ver a fé, nem pintada nas vossas paredes?

Se a Primavera está rindo nos jardins e nas quintas, e as fontes

estão nos olhos da triste viúva e órfãos, a quem nem por obriga-

ção, nem por esmola satisfazeis, ou agradeceis o que seus pais vos

serviram, como se há de ver a fé nessas flores e alamedas? Se as

pedras da mesma casa em que viveis, desde os telhados até os ali-

cerces estão chovendo os suores dos jornaleiros, a quem não fazíeis

a féria, e, se queriam ir buscar a vida a outra parte, os prendíeis e

obrigáveis por força, como se há de ver a fé, nem sombra dela na

vossa casa? (Vieira, 1959, vol. II, tomo 4, pp. 203-4)

Nesse sermão, Vieira fala do que é a fé e resolve mostrá-la no palácio(alguma casa grande) de um nobre (dos grandes). Simula estar entrando,juntamente com os ouvintes por ele convidados, em um palácio de fidalgosmuito ricos cujo escudo no alto da portada exibe os signos heráldicos (qui-nas, lises, águias, leões e castelos) da “fé cristã, católica e cristianíssima” dafamília. Vai, então, fazendo ver, de um lado, as riquezas da casa, os objetosde luxo, os cavalos e coches, a multidão de criados, as belezas dos jardins edas quintas, etc; de outro, os seres humanos explorados para que essa rique-za possa existir: os pequenos proprietários de terra, a quem não se paga o

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

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que os cavalos comem; os artesãos, a quem não se pagam os objetos (freios,ferraduras, rodas e coches) que fizeram; os mercadores, a quem não se pa-gam as mercadorias que forneceram; os criados, a quem não se pagam ossalários; os diaristas (jornaleiros), a quem não se paga a féria (a diária); asviúvas e os órfãos de criados, a quem se deixa no abandono.

Vieira nota, então, que não pode haver fé, sem que se leve uma vida emconformidade com ela, ou seja, deixa claro que não há fé sem as obrascorrespondentes. A fé cristã, segundo o pregador, exige a justiça com os quetrabalham, implica que o trabalho seja remunerado, que a riqueza não seconstrua sobre a exploração do outro. O sermão de Vieira constitui-se emoposição ao discurso feudal, que defendia os privilégios da nobreza e asrelações servis de trabalho, em que os servos tinham obrigação de prestarserviços ao senhor e não podiam mudar de trabalho, pois estavam presos auma propriedade (“se queriam buscar a vida a outra parte, os prendíeis eobrigáveis pela força”). Em oposição ao discurso que defendia os privilégiosda nobreza, dados por seu nascimento, Vieira tem o ponto de vista da socie-dade mercantil, que valoriza o trabalho dos operários e dos burgueses (mer-cadores, etc.); que condena as relações servis de trabalho e defende oassalariamento, em que o operário tem a liberdade de fazer contrato detrabalho com quem quiser; que preconiza que o valor de cada homem nãoé dado por seu nascimento, mas por sua ação no mundo. Condena viva-mente os que dizem ter fé, mas que não praticam as obras correspondentes.O sermão de Vieira faz parte da esfera do discurso religioso, é um discursojesuítico, pregando que o ser humano se define por sua ação no mundo.Opõe-se ao discurso jansenista, segundo o qual a fé basta para salvar ohomem, mesmo que desacompanhada das obras. O discurso religioso deVieira manifesta uma voz ativista e pragmática, que se constitui numa rela-ção polêmica com o que foi chamado o quietismo, que sustenta que a per-feição consiste na anulação da vontade, na indiferença total em relação aosacontecimentos e na união contemplativa com Deus.

Observe-se que mesmo que essas vozes todas não sejam mostradas noenunciado, elas constituem o enunciado de Vieira, pois ele se constrói emoposição a elas, em contradição com elas. É dessa forma que Bakhtin expli-ca a produção da estatuária grotesca, que se constitui em oposição à estatuáriaclássica (Bakhtin, 1970a, pp. 33-6).

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No “simpósio universal” (Bakhtin, 1989, p. 293), que poderíamos in-terpretar como uma formação social específica, definida pelo presente deseus múltiplos enunciados contraditórios, pelo passado discursivo, a tradi-ção de que é depositária, e pelo futuro discursivo, suas utopias e seus obje-tivos, atuam forças centrípetas e centrífugas. Aquelas buscam impor umacentralização enunciativa no plurilingüismo da realidade; estas procuramminar, principalmente, por intermédio da derrisão e do riso, essa tendênciacentralizadora (Bakhtin, 1988, pp. 80-3). As ditaduras são centrípetas; asdemocracias centrífugas. As ditaduras têm um forte componente narcísico.Com efeito, poderíamos fazer uma leitura dos mitos de Narciso e Eco, à luzdo princípio do dialogismo. Esses dois mitos aparecem sempre juntos: emEco existe a negação radical da identidade, já que ela foi condenada porJuno a jamais ter a iniciativa da palavra; em Narciso ocorre uma recusa totalda alteridade, pois ele se apaixona pela própria imagem refletida no espelhodas águas de uma fonte. Eco e Narciso são a própria negação do dialogismo.As ditaduras, em seu afã centrípeto, apresentam um forte componentenarcísico, tentando negar a alteridade, impondo sua identidade e exigindoque os outros a ecoem. No entanto, essa mesma identidade é constituídadialogicamente (Idem, p. 81).

Como observa Faraco, Bakhtin, com os conceitos de forças centrípetase forças centrífugas, “aponta para a existência de jogos de poder entre asvozes que circulam socialmente” (Faraco, 2003, p. 67). Isso significa que,para o autor russo, não há uma neutralidade na circulação de vozes. Aocontrário, ela tem uma dimensão política. As vozes não circulam fora doexercício do poder; não se diz o que se quer, quando se quer, como se quer.

Além desse dialogismo que não se exibe no fio do discurso, há umoutro, que nele se mostra. É quando as diferentes vozes são incorporadasno interior do discurso. Dizemos que, nesse caso, o dialogismo é umaforma composicional. É aquilo a que Bakhtin chamará “concepção estrei-ta do dialogismo” ou “formas externas, visíveis”, do dialogismo (Bakhtin,1992, p. 350). Cabe aqui um esclarecimento. O autor russo não as con-sidera menos importantes. Quando afirma que reduzir o dialogismo aelas é ter uma visão estreita desse fenômeno, quer dizer que o dialogismovai muito além dessas formas em que as vozes entram na composição doenunciado, pois ele é o próprio modo de funcionamento real do enuncia-

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

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do, o próprio modo de sua constituição. No entanto, essas formas deincorporação do discurso do outro são a própria maneira de tornar visívelesse princípio de funcionamento das unidades reais de comunicação, osenunciados. São modos pelos quais o princípio real de funcionamento dalinguagem é enunciado.

Há duas maneiras básicas de incorporar distintas vozes no enunciado:a) aquela em que o discurso do outro é “abertamente citado e nitidamen-te separado” (Idem, p. 318); b) aquela em que o enunciado é bivocal, ouseja, internamente dialogizado (Idem, p. 348 e pp. 337-8; 1970, pp. 248-58). Na primeira categoria, entram formas composicionais como o dis-curso direto e o discurso indireto (Bakhtin, 1979, pp. 141-59), as aspas(Bakhtin, 1992, p. 349), a negação (Bakhtin, 1970, pp. 240-1); na se-gunda, aparecem formas composicionais como a paródia, a estilização, apolêmica velada ou clara (Idem, pp. 259-60); o discurso indireto livre(Bakhtin, 1979, pp. 160-82).

Observemos um exemplo de cada um desses procedimentoscomposicionais. Para o primeiro, tomaremos um caso de negação.

Cansados, finalmente, os embaixadores de lhes responder o Batis-

ta que não era Messias, nem Elias, nem profeta pediram-lhe, fi-

nalmente, que, pois eles não acertavam a perguntar, lhes dissesse

ele quem era. A esta instância não pôde deixar de deferir o Batista.

E o que vos parece que responderia? Ego sum vox clamantis in

deserto: Eu sou uma voz que clama no deserto. Verdadeiramente

não entendo esta resposta. Se os embaixadores perguntaram ao

Batista o que fazia, então estava bem respondido com a voz que

clamava no deserto, porque o que o Batista fazia no deserto era dar

vozes e clamar; mas se os embaixadores perguntavam ao Batista

quem era, como lhes responde ele o que fazia? Respondeu

discretissimamente. Quando lhe perguntavam quem era, respon-

deu o que fazia: porque cada um é o que faz, e não é outra cousa.

As cousas definem-se pela essência: o Batista definiu-se pelas ações;

porque as ações de cada um são a sua essência. Definiu-se pelo que

fazia, para declarar o que era.

Daqui se entenderá uma grande dúvida, que deixamos atrás de

ponderar. O Batista, perguntado se era Elias, respondeu que não

era Elias: Non sum. E Cristo no capítulo onze de S. Mateus disse

que o Batista era Elias: Joannes Baptista ipse est Elias. Pois se

175

Cristo diz que o Batista era Elias, como diz o mesmo Batista que

não era Elias? Nem o Batista podia enganar, nem Cristo podia

enganar-se: como se hão de concordar logo estes textos? Muito

facilmente. O Batista era Elias, e não era Elias; não era Elias,

porque as pessoas de Elias e do Batista eram diversas; era Elias,

porque as ações de Elias e do Batista eram as mesmas. A modés-

tia do Batista disse que não era Elias, pela diversidade das pesso-

as; a verdade de Cristo afirmou que era Elias, pela uniformidade

das ações. Era Elias, porque fazia ações de Elias. Quem faz ações

de Elias é Elias; quem fizer ações de Batista será Batista; e quem

as fizer de Judas será Judas. Cada um é as suas ações, e não é

outra cousa. Oh que grande doutrina esta para o lugar em que

estamos! Quando vos perguntarem quem sois, não vades revol-

ver o nobiliário de vossos avós, ide ver a matrícula de vossas ações.

O que fazeis, isso sois, nada mais. Quando ao Batista lhe per-

guntaram quem era, não disse que se chamava João, nem que era

filho de Zacarias; não se definiu pelos pais, nem pelo apelido. Só

de suas ações formou a sua definição: Ego vox clamantis. (Vieira,

1959, vol I, tomo 1, pp. 211-3)

No Sermão da Terceira Dominga do Advento, a que esse trecho pertence,Vieira parte do episódio bíblico (João, 1, 19-34), que narra a ida a JoãoBatista de uma embaixada de sacerdotes e levitas de Jerusalém, a fim deperguntar-lhe quem era, e sua resposta de que era a voz que clama nodeserto. Com base nessa resposta, Vieira tece uma argumentação, paramostrar que cada um se define por aquilo que faz, pelo seu trabalho. O queimporta aqui é analisar a negação que aparece no seguinte trecho: “Quandovos perguntarem quem sois, não vades revolver o nobiliário de vossos avós,ide ver a matrícula de vossas ações”. Vieira nega o ponto de vista social queafirma que a posição de uma pessoa na sociedade é dada pela família emque nasceu, pelo sangue. Ao contrário, assevera que o que define o serhumano é sua ação no mundo. Mais adiante, em outro trecho desse ser-mão, negará que a fidalguia, a nobreza, seja uma herança familiar, afirman-do que pertence à esfera da ação, do trabalho. Diz que ela não é qualidadenem sangue, mas ação. Esse sermão opõe-se à posição aristocrática de que anobreza é algo ontológico, um valor herdado pelo nascimento. A essa pers-pectiva Vieira contrasta a idéia de que a nobreza é uma virtude conquistadano trabalho, de que não há uma ordem social natural. Poderíamos dizer

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

176

que à maneira de ver da aristocracia feudal Vieira contrapõe o modo bur-guês de considerar o mundo. A negação, ao receber um autor, mostra osdois pontos de vista distintos.

Para o segundo procedimento, tomemos um caso de discurso indireto livre:

Olhou as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, sus-

pirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar.

Baixava a crista. Se não baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia

com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem?

Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada! [...]

Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Apa-

rentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa

que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados

e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Es-

tava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes arre-

liava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa. (Ramos,

1971, pp. 138-9)

No discurso indireto livre, misturam-se duas vozes, a do narrador e a dapersonagem (em nosso texto, Fabiano). No entanto, faltam elementoslingüísticos, como os dois pontos e o travessão no discurso direto ou aconjunção integrante que no indireto, que determinem a fronteira entre asduas. Há dois tons diferentes, que permitem perceber essas duas vozes: otom mais ou menos neutro da narração e o tom entre colérico e resignadoda personagem. Há frases claramente do narrador (“Olhou as cédulas arru-madas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços”); ou-tras que, sem dúvida nenhuma, pertencem à personagem (“Para onde? Hem?Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada!”). Outras, noentanto, poderiam ser de um ou de outro (“Se pudesse mudar-se, gritariabem alto que o roubavam” poderia ser dita tanto pelo narrador quanto pelapersonagem). Essa impossibilidade de separação nítida entre a voz donarrador e a da personagem, faz do enunciado em discurso indireto livreum enunciado bivocal. Ao misturar sua voz à da personagem, o narradorrevela uma “profunda simpatia” por esse homem submetido a condições“pré-capitalistas” de trabalho, a esse homem espoliado e degradado. É comose o narrador assumisse como sua a indignação da personagem diante daexploração a que estava sujeita.

177

Cabe perguntar agora se o dialogismo é um fenômeno social ou indivi-dual. Em outras palavras, as vozes que estão em relação dialógica são indi-viduais ou sociais? A teoria formulada por Bakhtin leva em conta tanto oque é de ordem individual, quanto o que é do domínio social:

O locutor não é um Adão, e por isso o objeto de seu discurso se

torna, inevitavelmente, o ponto onde se encontram as opiniões de

interlocutores imediatos (numa conversa ou numa discussão acerca

de qualquer acontecimento da vida cotidiana) ou então as visões de

mundo, as tendências, as teorias, etc. (na esfera da comunicação

cultural). A visão de mundo, a tendência, o ponto de vista, a opi-

nião têm sempre sua expressão verbal. (Bakhtin, 1992, pp. 319-20)

Ao levar em conta o individual e o social, Bakhtin pretende considerarnão só as polêmicas políticas, culturais, econômicas, que refletem visões demundo diversas, mas também fenômenos como a fala – que se vai moldan-do pela opinião do locutor imediato ou a reprodução da fala alheia comuma entonação zombeteira, dubitativa, admirativa, indignada, aprovadora,reprovadora, etc. (Idem, pp. 337-8; cf. 1988, pp. 91-3) É toda uma gamade fenômenos que estão presentes na comunicação real. No entanto, a rela-ção entre o individual e o social não é simples nem estanque em Bakhtin.De um lado, Bakhtin mostra que a maioria das opiniões dos indivíduos ésocial. Todo enunciado, além de um destinatário imediato, que é percebidocom maior ou menor consciência, dirige-se a um superdestinatário, cujacompreensão responsiva, idealmente correta, é determinante em sua pro-dução. Esse superdestinatário assume uma identidade que varia de épocapara época, de formação social para formação social, de grupo social paragrupo social: a Igreja, a “correção política”, o partido, a ciência, etc. (Bakhtin,1992, pp. 356-7). Na medida em que mesmo uma réplica individual numaconversação cotidiana se dirige ao superdestinatário, os enunciados são, namaior parte das vezes, sociais. De outro, não preconiza um sujeito absolu-tamente assujeitado, o que seria a própria negação da heteroglossia e dodialogismo. Como observa Faraco, a utopia bakhtiniana é “a resistência aqualquer processo centrípeto, centralizador” (Faraco, 2003, p. 72); odialogismo incessante é “a única forma de preservar a liberdade do ser hu-mano e do seu inacabamento; uma relação, portanto, em que o outro nun-ca é reificado; em que os sujeitos não se fundem, mas cada um preserva sua

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

178

própria posição de extra-espacialidade e excesso de visão e a compreensãodaí advinda” (Idem, p. 73-74). A singularidade do sujeito ocorre na “interaçãoviva das vozes sociais” e, por isso, ele é social e singular (Idem, p. 83).

Normalmente, quando se fala em dialogismo, pensa-se em relações comenunciados já constituídos e, portanto, enunciados anteriores, passados.No entanto, o enunciado está relacionado não só aos que o precedem, mastambém aos que lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal. Com efei-to, na medida em que um enunciado é elaborado em função de uma res-posta, está ligado a essa resposta, que ainda não existe. O locutor sempreespera uma compreensão responsiva ativa e o enunciado se constitui paraessa resposta esperada (Bakhtin, 1992, p. 320).

INTERDISCURSIVIDADE E INTERTEXTUALIDADE

Notam Beth Brait e Rosineide de Melo que,

como [...] é próprio do pensamento bakhtiniano, a concepção de

enunciado/enunciação não se encontra pronta e acabada numa deter-

minada obra, num determinado texto: o sentido e as particularidades

vão sendo construídos ao longo do conjunto das obras,

indissociavelmente implicados em outras noções paulatinamente

construídas. [...] O enunciado concreto, visto dessa perspectiva teóri-

ca poderá, ao longo de outras obras (e em diferentes traduções) [...]

ser substituído ou fundido na idéia de palavra, de texto, de discurso (e

até mesmo de enunciação concreta). (Brait, 2005, p. 65 e 67).

Pelas razões apontadas por Brait e Melo, há uma dificuldade em distin-guir os conceitos de texto, enunciado e discurso na obra de Bakhtin. Ora elesse equivalem; ora se distinguem. Para nossos propósitos, tomaremos o traba-lho O problema do texto,8 em que Bakhtin tratou, de maneira específica, daquestão do texto. Nele, os termos texto, enunciado e discurso não se recobrem.

O texto “representa uma realidade imediata (do pensamento e da emoção)”(Bakhtin, 1992, p. 329). Sendo o texto “um conjunto coerente de signos”, elenão é uma entidade exclusivamente verbal. Na verdade, ele é uma categoriapresente em todas as linguagens, em todas as semióticas (Idem, ibid.). A dife-rença fundamental entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais, emborasua separação não seja rígida, reside no fato de que, naquelas, “o pensamento é

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orientado para o pensamento, o sentido, o significado do outro, que se manifes-tam e se apresentam ao pesquisador somente em forma de textos. Quaisquerque sejam os objetivos de um estudo, o ponto de partida só pode ser o texto”(Idem, p. 330). O texto, em Bakhtin, é uma unidade da manifestação: manifes-ta o pensamento, a emoção, o sentido, o significado.

Cada texto tem atrás de si um sistema compreensível para todos (con-vencional, dentro de uma dada comunidade) – uma língua, “ainda que sejaa língua da arte” (Idem, p. 331). Não há texto que não pressuponha umalíngua. Se não há uma língua atrás de um texto, temos um fenômeno natu-ral e não um texto: por exemplo, uma sucessão de gritos e gemidos (Idem,ibid.). Tudo o que no texto é repetitivo e reproduzível é da ordem da lín-gua, pois o texto é único, individual e irreproduzível (Idem, ibid.). Mesmoquando o texto é reproduzido por um sujeito (excetuada evidentemente areprodução mecânica, como, por exemplo, a reimpressão), “é um aconteci-mento novo, irreproduzível na vida do texto, é um novo elo na cadeiahistórica da reprodução verbal” (Idem, p. 332). Todo texto tem um autor e,por isso, o texto enquanto entidade “não se vincula aos elementosreproduzíveis de um sistema da língua (dos signos) e sim aos outros textos(irreproduzíveis) numa relação específica, dialógica” (Idem, ibid.). “O acon-tecimento na vida do texto, seu ser autêntico, sempre sucede na fronteirade duas consciências, de dois sujeitos” (Idem, p. 333). Temos, pois, numtexto, dois pólos: o que é reproduzível e o que é irrepetível.

As Ciências Humanas situam-se entre esses dois pólos:

Pode-se tender para o primeiro pólo, isto é, para a língua – a lín-

gua de um autor, a língua de um gênero, de um movimento literá-

rio, a língua natural (o procedimento da Lingüística) – e, por fim,

para a língua potencial (o procedimento do estruturalismo, da

glossemática). Pode-se tender para o segundo pólo, para o aconte-

cimento irreproduzível do texto (Idem, ibid.).

Se o texto tem um autor, é irrepetível e só ganha sentido na relaçãodialógica, texto não é, na verdade, sinônimo de enunciado? É preciso lercuidadosamente o trabalho de Bakhtin, juntando indícios colocados ao longode seu texto:

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

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“O texto enquanto enunciado (Idem, p. 330).

Dois fatores determinam um texto e o tornam um enunciado: seu

projeto (a intenção) e a execução desse projeto (Idem, p. 332).

Fora dessa relação (a relação dialógica), o enunciado não tem rea-

lidade (a não ser como texto) (Idem, p. 351).

A Lingüística lida com o texto, não com a obra. [...] Pode-se dizer,

simplificando, que a abordagem puramente lingüística (ou seja, o

objeto lingüístico) encara a relação do signo com o signo e com os

signos dentro dos limites do sistema de uma língua ou de um

texto (relações com o interior de um sistema ou relações lineares

entre os signos). A relação de um enunciado com a realidade exis-

tente, com o sujeito falante real e com os outros enunciados reais

(relação que faz que um enunciado seja o primeiro a articular o

verdadeiro ou o falso, o belo, etc.), esta relação não poderia tor-

nar-se objeto da Lingüística. Os signos tomados isoladamente, o

sistema de uma língua ou o texto (enquanto unidade de signos)

não podem ser verdadeiros, nem falsos, nem belos”. (Idem, pp.

352-353).

Na medida em que o texto se torna um enunciado, ele é distinto deste.O texto pode ser visto como enunciado, mas pode não o ser, pois, quandoo enunciado é considerado fora da relação dialógica, ele só tem realidadecomo texto. Pode-se ter uma Lingüística que estuda o texto, mas o fazcomo uma entidade em si, fora das relações dialógicas, já que essas nãopodem ser objeto da Lingüística.

Se o texto é distinto do enunciado e este é um todo de sentido (Idem,p. 351) – marcado pelo acabamento (a obra) (Idem, p. 345), dado pelapossibilidade de admitir uma réplica –, cuja natureza específica é dialógica,o texto é a manifestação do enunciado, que é uma “postura de sentido”(Idem, p. 352). Por isso, ele é uma realidade imediata, dotada de umamaterialidade, que advém do fato de ser um “conjunto de signos”. Oenunciado é da ordem do sentido; o texto é do domínio da manifestação.O sentido não pode construir-se senão nas relações dialógicas.9 Sua mani-festação é o texto e este pode ser considerado como uma entidade em si.

Há ainda um elemento curioso nesse texto: é que Bakhtin diferenciaenunciado e discurso. Diz ele:

181

Pode-se estabelecer um princípio de identidade entre a língua e o

discurso, porque no discurso se apagam os limites dialógicos do

enunciado, mas jamais se pode confundir língua e comunicação

verbal (entendida como comunicação dialógica efetuada mediante

enunciados). (Idem, p. 335).

O discurso deve ser entendido como uma abstração: uma posição so-cial considerada fora das relações dialógicas, vista como uma identidade.Poder-se-ia então acusar Bakhtin de considerar as relações dialógicas comoexteriores ao discurso. Não, pelo contrário, o enunciado (interdiscurso)não é um conjunto de relações entre intradiscursos (discurso, em Bakhtin).O interdiscurso é interior ao intradiscurso, é constitutivo dele. Na comu-nicação verbal real, o que existem são enunciados, que são constitu-tivamente dialógicos. O discurso é apenas a realidade aparente (mas rea-lidade) de que os falantes concebem seu discurso autonomamente, dão aele uma identidade essencial. Entretanto, no seu funcionamento real, alinguagem é dialógica.

Com base em tudo o que foi dito, é possível distinguir interdiscursividadee intertextualidade. Voltemos a Bakhtin: “O texto como mônada específicaque refrata (no limite) todos os textos de uma dada esfera. Interdependênciado sentido (na medida em que se realiza através do enunciado)” (Bakhtin,1992, p. 331).

Há claramente uma distinção entre as relações dialógicas entre enuncia-dos e aquelas que se dão entre textos. Por isso, chamaremos qualquer rela-ção dialógica, na medida em que é uma relação de sentido, interdiscursiva.O termo intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que arelação discursiva é materializada em textos. Isso significa que aintertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas que ocontrário não é verdadeiro. Por exemplo, quando a relação dialógica não semanifesta no texto, temos interdiscursividade, mas não intertextualidade.No entanto, é preciso verificar que nem todas as relações dialógicas mostra-das no texto devem ser consideradas intertextuais. Bakhtin fala em “rela-ções dialógicas intertextuais e intratextuais” (Idem, ibid.). Como já mostra-mos, seria mais fiel ao texto russo falar em relações dialógicas entre textos edentro do texto. As relações dentro do texto ocorrem quando as duas vozesse acham no interior de um mesmo texto: no caso do exemplo de Vidas

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

BAKHTIN outros conceitos-chave

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secas, temos uma relação dialógica dentro do texto, pois as vozes do narradore de Fabiano se encontram no interior de um texto, não estão constituídasnum outro texto fora do texto em análise. A mesma coisa acontece noexemplo da negação em Vieira. No entanto, pode-se ter também relaçõesentre textos, quando um texto se relaciona dialogicamente com outro textojá constituído. Há no texto que se relaciona com ele um encontro de doistextos. É o que acontece, por exemplo, na negação que aparece em Satélite,de Manuel Bandeira:

SATÉLITE

Fim de tarde.

No céu plúmbeo

A Lua baça

Paira

Muito cosmograficamente

Satélite.

Desmetaforizada,

Desmitificada,

Despojada do velho segredo de melancolia,

Não é agora o golfão de cismas,

O astro dos loucos e enamorados,

Mas tão-somente

Satélite.

Ah Lua deste fim de tarde,

Demissionária de atribuições românticas;

Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,

Gosto de ti, assim:

Coisa em si,

– Satélite.

(Bandeira, 1973, p. 232)

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Nas linhas de 1 a 6, o poeta constrói uma figura da lua, situando-a numfim de tarde, num céu plúmbeo, atribuindo-lhe a qualidade de baça e dizen-do que ela paira muito cosmograficamente. Como cosmografia é a astrono-mia descritiva, principalmente referente ao sistema solar, o que o poetaquer dizer com paira muito cosmograficamente é que a lua está no alto purae simplesmente como um astro. Ele sintetiza essa imagem numa palavra:Satélite. Com essa figura, pretende enfatizar o conceito “puro” de lua, des-pojado de qualquer tipo de associação paralela, sem as impressões senti-mentais que ele evoca.

O uso reiterado do prefixo des, que indica ação contrária (desmetaforizada,desmitificada, despojada), e a afirmação de que a lua não é agora o astro dosloucos e dos enamorados pressupõe que, no passado, ela foi metaforizada,mitificada, considerada como o depósito do velho segredo de melancolia,como um golfão de cismas, como o astro dos loucos e enamorados. A nega-ção, tanto a indicada pelo prefixo des, quanto a feita pelo advérbio não,implica a presença de duas vozes, dois pontos de vista a respeito da lua: umque a vê como uma fonte e um repositório de sentimentos, de mitos e demetáforas; outro que a considera em sua realidade nua indicada pela pala-vra satélite.

Apesar de essas duas perspectivas estarem delimitadas pela negação, pre-cisamos ainda de nosso conhecimento dos textos literários, para entenderbem o que o poeta está refutando. As expressões “golfão de cismas” e “astrosdos loucos e enamorados” remetem-nos a uma estrofe do poema Plenilúnio,de Raimundo Correia:

Há tantos anos olhos nela arroubados,

No magnetismo do seu fulgor!

Lua dos tristes e enamorados,

Golfão de cismas fascinador.

(Correia, 1976, p. 65)

Ao opor-se a uma concepção a respeito da lua, atribuída a um literatodo passado, podemos concluir não que o poeta esteja lamentando o fim dosbons tempos românticos e criticando a frieza do mundo moderno, mas queé avesso aos exageros sentimentais de uma certa literatura em torno da lua.Quando ele diz sem show para as disponibilidades sentimentais, quer dizer

Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

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que a lua à qual dirige seus versos não está mais a exibir-se para pessoaspredispostas a vê-la de maneira sentimental. Se levarmos em conta que amais-valia se define como a diferença entre o custo da força de trabalho e ovalor do produto produzido pelo trabalhador, ao dizer fatigado de mais-valia, o poeta manifesta sua aversão aos exageros próprios de literatos deépocas passadas, que consistem em explorar a lua, roubando dela significa-dos que ela não comporta. O poeta expõe sua predileção pela concepçãomoderna (Gosto de ti assim: / Coisa em si, / Satélite).

Por meio das negações, e da negação de um texto poético, o poeta cir-cunscreve no texto dois pontos de vista a respeito da poesia. Contesta umapoesia que idealiza a realidade, assume como sua uma concepção de poéticacomo busca da essência da realidade.

Só pode ser considerada intertextualidade a negação explícita dos versosde Raimundo Correia. As outras negações são da ordem dainterdiscursividade. No poema de Bandeira, encontram-se dois textos: o deBandeira e o de Raimundo Correia. O texto de Raimundo Correia temuma existência como texto fora do texto de Bandeira. É só nesses casos quese deve falar em intertextualidade. Ela é o processo da relação dialógica nãosomente entre duas “posturas de sentido”, mas também entre duasmaterialidades lingüísticas.

A concepção que, com base na obra de Bakhtin, adotamos deintertextualidade é bastante restrita – nada tem a ver com o uso frouxo quese vem fazendo dela. No entanto, ela pode ser um pouco alargada.

Como os estilos são manifestados por “elementos de ordem material”,“quando existe uma vontade consciente de representar uma variedade deestilos, estabelece-se sempre uma relação dialógica entre eles” (Bakhtin, 1992,pp. 339; cf. pp. 345, 347 e 349). Por ter uma materialidade, os estilos deautores, de movimentos literários, de grupos sociais, quando são estilizadosou parodiados, mantêm também relações intertextuais.

Mário de Andrade faz, no texto a seguir, uma paródia de estilo.

Senhoras:

Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura

desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de

saùdade e muito amor com desagradável nova. É bem verdade que

na boa cidade de São Paulo – a maior do universo no dizer de seus

185

prolixos habitantes – não sois conhecidas por “icamiabas”, voz es-

púria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós se afirma

cavalgardes belígeros ginetes e virdes da Hélade clássica; e assim

sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperator vosso, tais dislates

de erudição, porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais

heróicas e mais conspícuas, tocadas por essa pátina respeitável da

tradição e da pureza antiga.

Mas não devemos esperdiçarmos vosso tempo fero, e muito me-

nos conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau cali-

bre; passemos, pois, de imediato, ao relato de nossos feitos por cá.

Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando

a mais temerosa desdita pesou sobre nós. Por uma bela noite dos

idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrém

grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias

esdrúxulas, ortografam muyrakitam e até mesmo muraqué-itã, não

sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tão familiar a vossas

trompas de Eustáquio, é quasi desconhecido por aqui. Por estas

paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos, guar-

das-cívicas, boxistas, legalistas, mazorqueiros, etc.; sendo que al-

guns desses termos são neologismos absurdos – bagaço nefando

com que os desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusi-

tano. Mas não nos sobra já vagar para discretearmos “sub tegmine

fagi”, sobre a língua portuguesa, também chamada lusitana. O

que vos interessará, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros

de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalámico,

mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por voláteis

folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro, o “curriculum

vitae” da civilização a que hoje fazemos ponto de honra em per-

tencermos. (Andrade, 1978, pp. 71-2)

Esse texto, logo à primeira vista, parece ter sido escrito num períodoanterior ao modernismo, em que se cultivava uma forma “clássica” de es-crever. Os traços que permitem afirmar isso são:

a) uso da segunda pessoa do plural para tratamento;

b) emprego sistemático do plural majestático;

c) utilização do objeto indireto pleonástico, em Muito nos pesou a nós;

d) uso de um léxico preciosista e até de sabor arcaizante (voz por “palavra”,missivas por “cartas”, Hélade por “Grécia”, belígeros ginetes por “cavalos de

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guerra”, dislates por “asneiras”, conspícuas por “ilustres”, “respeitáveis”, pátinapor “envelhecimento”, fero por “feroz”, idos de maio por “dia 15 de maio”;translato por “passado”, petimetre por “homem que se veste com apuroexagerado”, discretear por “discorrer calmamente”, enlace epitalâmico por“casamento”, vulgo por “povo”, mavórticas – adjetivo derivado de Mavorte,forma epentética de Marte – por “guerreiras”);

e) utilização de perífrases que chegam ao ridículo, para falar de coisas bastantebanais (trompas de Eustáquio por “ouvidos”);

f ) emprego de formas da sintaxe clássica, como, por exemplo, oração reduzidade infinitivo em casos em que no português moderno se utiliza umaoração desenvolvida (de vós se afirma cavalgardes belígeros ginetes e virdesda Hélade clássica);

g) uso do infinitivo flexionado em locuções verbais ou junto de auxiliarescausativos (não devemos esperdiçarmos; fazemos ponto de honra pertencermos);

h) emprego das normas portuguesas antigas de acentuação (saùdade em lugarde saudade, epitalámico em vez de epitalâmico);

i) citação de dois versos de Os Lusíadas, com que se inicia o célebre episódiodo Gigante Adamastor:

Porém já cinco sóis eram passados

Que dali nos partíramos cortando (V, 37, 1-2).

j) citação de um trecho do primeiro verso das Bucólicas, de Virgílio: subtegmine fagi.

O texto surpreende no contexto do romance, porque o narrador rompecom a modalidade espontânea de linguagem que vinha utilizando até entãoe adota um registro marcadamente formal. Ao optar por um léxico e umasintaxe já desusados, muito a gosto dos parnasianos e pré-modernistas (comoRui Barbosa, Coelho Neto, Bilac), o narrador imita o estilo desses autores,para ridicularizar a literatura brasileira do período anterior ao modernismoe, por conseguinte, toda a cultura brasileira dessa época – já que esse estilocorrespondia ao gosto da moda. Ao satirizar o caráter anacrônico e formalda linguagem da época, escarnece do caráter ultrapassado e solene de nossacultura urbana em geral. Ironiza as discussões etimológicas, muito aprecia-das então. Ao dizer que as palavras da gíria ou da linguagem familiar são

187

neologismos absurdos, bagaço nefando, com que se conspurca a línguaportuguesa, satiriza os puristas. Ridiculariza uma certa norma do português,o que era tido por “português castiço” no período. Ironiza uma forma deescrever, em que, sem o menor propósito, cita-se a literatura clássica. É umcaso de paródia de estilo, pois o narrador desqualifica o estilo imitado nopróprio movimento de imitação.

Trata-se de um caso de intertextualidade, pois é a materialidadelingüístico-textual do estilo do pré-modernismo que se encontra presenteno texto de Manuel Bandeira. Entretanto, nem tudo o que diz respeito aestilo será do domínio da intertextualidade. O estilo, sendo um fato dofuncionamento real da linguagem, constitui-se dialogicamente. Nesse caso,não se encontra num texto a materialidade lingüístico-textual de dois esti-los. Temos, então, um fato de interdiscursividade e não de intertextualidade,pois é da ordem do dialogismo constitutivo.

A poesia da terceira geração romântica brasileira é uma poesia libertária.Por isso, posicionou-se contra a escravidão e a favor do progresso. É escri-ta numa linguagem grandiosa, cheia de hipérboles e antíteses. Toma ànatureza, à divindade e à história o material para metáforas e compara-ções. Nela, a natureza significa e revela. Os símiles são construídos comos aspectos da natureza que sugerem a imensidão e a infinitude: os astros,o oceano, as procelas, os tufões, os alcantis, o Himalaia, os Andes, a águia,o condor. É uma poesia indignada (a “ira condoreira”), plena de vocativos,de apóstrofes, de imprecações contra a divindade, de convocação da natu-reza e dos heróis do passado. Tem um tom oratório e, por isso, apresentaa oralidade do discurso exaltado da praça pública. Esse tom declamatórioé marcado por reticências, que indicam as pausas dramáticas; por traves-sões, que assinalam as pausas de elocução; por pontos de exclamação, quemodulam a ênfase. Há um grande subjetivismo no trato dos temas, poisse parte do princípio de que os sentimentos e as emoções têm papel cen-tral na História. Aos ideais de liberdade expostos no plano do conteúdocorresponde uma grande liberdade de versificação, de ritmos e de rimas(Bosi, 1975, pp. 132-6). Tomemos, para exemplificar, um fragmento deNavio negreiro, de Castro Alves, sem dúvida nenhuma o maior represen-tante dessa geração.

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Existe um povo que a bandeira empresta

Pra cobrir tanta infâmia e cobardia!... [...]

Auriverde pendão da minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas de esperança...

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteada dos heróis na lança,

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!...

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu na vaga,

Como um íris no pélago profundo!...

... Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...

Andrada! arranca este pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta de teus mares!

(Alves, 1972, pp. 183-4)

Em oposição ao tom grandiloqüente da poesia da terceira geração ro-mântica, o parnasianismo representou uma descida de tom. Constrói umapoesia inenfática, que faz um esforço para aproximar-se impessoalmentedas coisas, dos objetos. Há um culto à forma, um ideal da arte pela arte. Osupremo cuidado estilístico não é senão a manifestação do desejo de criarum objeto imperecível, longe dos embates da história. A religião da formatem origem no pessimismo que subjaz à ideologia do determinismo (Bosi,1975, p. 187). No parnasianismo, há um efeito de objetividade no tratodos temas. Não se trata de temas sociais; ao contrário, há um fetichismodos objetos: “O parnasiano típico acabará deleitando-se na nomeação dealfaias, vasos e leques chineses, flautas gregas, taças de coral, ídolos de gessoem túmulos de mármore... e exaurindo-se na sensação de um detalhe ou namemória de um fragmento narrativo” (Idem, p. 248). Por isso, oparnasianismo tem um gosto particular pela descrição nítida (a “mímesepela mímese”), trata-se de uma poética descritiva, do quadro, da cena, doretrato. Seu compromisso não é intervir na História, mas operar a mímese.

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A esse desejo de construir um objeto imarcescível correspondem os usos deuma língua clássica, de uma sintaxe plena de inversões e sínquises, de for-mas tradicionais de metro, de rima e de ritmo, de um léxico preciosista. Apoética parnasiana acaba com o que era considerado a frouxidão e a incor-reção dos românticos (Idem, pp. 246-56). Sirva de exemplo para essa poé-tica, o soneto Vaso grego, de Alberto de Oliveira:

Esta de áureo relevos, trabalhada

De divas mãos, brilhante copa, um dia,

Já de aos deuses servir como cansada

Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta Teos que a suspendia

Então, e, ora repleta ora envasada,

A taça amiga aos dedos seus tinia,

Toda de roxas pétalas colmada.

Depois... Mas o lavor da taça admira,

Toca-a, e do ouvido aproximando as bordas

Finas hás-de lhe ouvir, canora e doce,

Ignota voz, qual se da antiga lira

Fosse a encantada música das cordas,

Qual se essa voz de Anacreonte fosse.

(Barbosa, 1997, p. 142)

O estilo parnasiano se constitui numa relação dialógica com o da tercei-ra geração romântica. Temos aqui um caso de interdiscursividade, mas nãode intertextualidade, pois não se encontram, no mesmo texto, duasmaterialidades textuais distintas, como se vê, por exemplo, na “Carta prasicamiabas”, de Mário de Andrade.

Olavo Bilac tinha consciência da constitutividade dialógica do estilo eexpôs isso em sua Profissão de fé.

Não quero o Zeus Capitolino,

Hercúleo e belo,

Talhar no mármore divino

Com o camartelo.

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Que outro – não eu! – a pedra corte

Para, brutal,

Erguer de Athene o altivo porte

Descomunal.

Mais do que esse vulto extraordinário,

Que assombra a vista,

Seduz-me um leve relicário

De fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:

Imito o amor

Com que ele, em ouro, o alto relevo

Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara

A pedra firo:

O alvo cristal, a pedra rara,

O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,

Sobre o papel

A pena, como em prata firme

Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,

A idéia veste:

Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem

Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima

A frase; e, enfim,

No verso de ouro engasta a rima,

Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina

Dobrada ao jeito

Do ourives, saia da oficina

Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso,

Por tão sutil,

Possa o lavor lembrar de um vaso

De Becerril.

(Bilac, 1942, pp. 5-7)

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Bilac afirma que não quer fazer o que faz o escultor, mas que seu traba-lho é semelhante ao do ourives. O escultor é a figura do poeta da terceirageração romântica com sua grandiloqüência, sua grandiosidade, suamonumentalidade, com sua imersão na realidade, com suas hipérboles, comseu gosto pronunciado pelo narrativo, com sua liberdade formal; o ourivesé o poeta parnasiano, com sua leveza, sua sutileza, seu requinte, com seuafastamento da realidade, com sua busca pela perfeição, com seu tominenfático, com seu culto ao descritivo, com sua rigidez formal.

CONCLUSÃO

Se em Bakhtin há uma distinção entre texto e enunciado e este pode seraproximado ao que se entende por interdiscurso – já que se constitui nasrelações dialógicas, enquanto aquele é a manifestação do enunciado –, arealidade imediata dada ao leitor, pode-se fazer uma diferença entreinterdiscursividade e intertextualidade. Aquela é qualquer relação dialógicaentre enunciados; esta é um tipo particular de interdiscursividade, aquelaem que se encontram num texto duas materialidades textuais distintas. Cabeentender que, por materialidade textual, pode-se entender um texto emsentido estrito ou um conjunto de fatos lingüísticos, que configura umestilo, um jargão, uma variante lingüística, etc. O caráter fundamental-mente dialógico de todo enunciado do discurso impossibilita dissociar dofuncionamento discursivo a relação do discurso com seu outro.

O discurso em Bakhtin é lingüístico e histórico. No entanto, o autorrusso não apreende essa historicidade discursiva por meio de “anedotas”acerca da produção de um determinado discurso. Com o conceito dedialogismo, capta-a no próprio movimento lingüístico de sua constituição.É na relação com o discurso do Outro, que se apreende a história queperpassa o discurso. Essa relação está inscrita na própria interioridade dodiscurso, constitutiva ou mostradamente. Com a concepção dialógica dalinguagem, a análise histórica de um texto deixa de ser a descrição da épocaem que o texto foi produzido e passa a ser uma fina e sutil análise semânti-ca, que leva em conta confrontos sêmicos, deslizamentos de sentido, apaga-mentos de significados, interincompreensões, etc. Em síntese, em Bakhtin,

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BAKHTIN outros conceitos-chave

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a História não é algo exterior ao discurso, mas é interior a ele, pois o sentidoé histórico. Por isso, para perceber o sentido, é preciso situar o enunciadono diálogo com outros enunciados e apreender os confrontos sêmicos quegeram os sentidos. Enfim, é preciso captar o dialogismo que o permeia.

NOTAS

1 Com efeito, aqueles que previram as coisas futuras onde as viram, se elas não existem ainda? Nãose pode prever o que não é. E aqueles que narram as coisas passadas, de toda maneira nãonarrariam coisas verdadeiras, se não as apreendessem pela imaginação: porque se elas não fossemnada, não poderiam de modo algum ser apreendidas.

2 A questão das relações dialógicas entre textos e dentro dos textos será discutida mais adiante.3 Posteriormente, esse texto constituiu o capítulo 4 do livro Introdução à Semanálise.4 Poder-se-ia dizer que há ainda um terceiro sentido, mais geral: é um princípio de constituição

dos seres humanos; é o modo de agir e de estar no mundo.5 Observe-se ainda: “Cada texto pressupõe um sistema compreensível para todos (convencional,

dentro de uma dada coletividade) – uma língua (ainda que seja a língua da arte). Se por trás dotexto não há uma língua, já não se trata de um texto, mas de um fenômeno natural (não perten-cente à esfera do signo); por exemplo, uma combinação de gritos e de gemidos, desprovida dareprodutibilidade lingüística (própria do signo)” (Bakhtin, 1992, p. 331).

6 O termo proposto por Bakhtin é Metalingüística. Preferimos, no entanto, chamar essa ciência, àmaneira dos franceses, translingüística, por causa dos valores semânticos que envolvem a palavraMetalingüística. Esse problema de denominação é uma prova da correção das teses bakhtinianassobre o problema da distinção entre as unidades potenciais do sistema (objeto da Lingüística) eas unidades reais de comunicação (objeto da translingüística). Do ponto de vista do sistema,meta (prefixo grego) e trans (prefixo latino) são equivalentes; no entanto, eles são completamentedistintos no funcionamento discursivo. De qualquer forma, o que Bakhtin pretendia era consti-tuir uma ciência que fosse além da Lingüística, pois trataria de analisar o funcionamento real dalinguagem e não apenas o sistema virtual que possibilita esse funcionamento.

7 Essa tese bakhtiniana mostra o equívoco da chamada linguagem politicamente correta, que pre-tende dar às palavras da língua um sentido intrínseco. O campo de batalha ideológico não são asunidades da língua, mas os enunciados.

8 Esse texto é um manuscrito, não totalmente acabado, que deve ter sido produzido por volta doinício da década de 1960.

9 Viu-se anteriormente que Bakhtin distingue significação e sentido.

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Interdiscursividade e intertextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

PoesiaCristovão Tezza

O centro da produção de Mikhail Bakhtin repousa no conceito de pro-sa romanesca. Se olharmos retrospectivamente para o conjunto de seus tex-tos, que se fizeram quase todos incompletos ao longo de cinco décadas,abarcaram um leque temático que vai da filosofia à teoria da literatura epassaram pela teoria da linguagem, encontraremos de modo sistemático erecorrente o tópico “prosa romanesca” como uma presença sempreiluminadora. Em alguns momentos, este tópico é o objeto exclusivo doolhar bakhtiniano, como no longo ensaio “O discurso no romance”; emoutros, o conceito de prosa é o eixo metodológico, digamos assim, que lhepermite abrir caminhos novos na apreensão de fenômenos literários, comoacontece no seu livro sobre Dostoiévski. A célebre categoria do “romancepolifônico”, com a qual Bakhtin definiu primordialmente a literatura ma-dura de Dostoiévski, é de fato um corolário da sua apreensão da natureza“prosaica” da linguagem. A categoria da “carnavalização”, já presente naobra de 1929, reaparecerá na catedral que ele ergue mais tarde em torno daprodução de François Rabelais – e também aí encontrará na sua singularpercepção da prosa boa parte do alicerce teórico.

BAKHTIN outros conceitos-chave

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Até aqui teríamos, pois, um conceito mais ou menos fechado de “gêne-ro” – o objeto teórico de Bakhtin foi a prosa (Dostoiévski, Rabelais; a con-figuração da linguagem no romance). Limitando assim o seu olhar, umverbete sobre o conceito de poesia em Bakhtin não faria sentido; no máxi-mo, seria uma nota de rodapé acidental na vida intelectual de alguém quenão escreveu sobre este outro gênero. Do mesmo modo, se acompanhar-mos a obra do Círculo de Bakhtin, também não encontraremos nada maisespecífico sobre a poesia. Tanto em Voloshinov como em Medvedev, paraficar nos nomes mais proeminentes do Círculo, o centro teórico está ou nafilosofia da linguagem, ou nas questões teóricas diretamente vinculadas ànatureza da produção estética, ou ainda nas questões político-filosóficasrelacionadas diretamente a estes tópicos, de acordo, aliás, com a atividadeprática, com o dia-a-dia do período revolucionário em que tanto um comooutro estiveram envolvidos.

O UNIVERSO BAKHTINIANO

À medida entretanto que nossa leitura de Bakhtin se amplia, abarcan-do, numa ponta, os seus escritos filosóficos de juventude, e noutra ponta,os manuscritos dos últimos vinte anos de sua vida, alguns complicadores seapresentariam ao analista que se contentasse em fechar o universobakhtiniano no conceito de “prosa”, delimitando-o mais ou menos comoexpressão de um gênero literário isolado, ainda que amplo.

Consideremos, por exemplo, o ensaio “Sobre o autor e o herói”, escritoao longo do ano 1919. Embora trate de uma questão estritamente literária– “a relação do autor com o herói”, como ele se apresenta na primeira linhaque chegou até nós –, vai ficando mais ou menos visível que Bakhtin estátomando o discurso literário como ponto de partida para a discussão detópicos da linguagem que vão transcender em muito os limites de um “gê-nero” (o gênero narrativo, por exemplo). “Tópicos da linguagem” ainda éuma expressão insuficiente para definir o ponto em que Bakhtin quer che-gar. Vejamos didaticamente dois momentos deste ensaio. Num primeiromomento, Bakhtin diz que é preciso compreender a reação do autor diantedo seu herói:

197

Só depois de compreender essa resposta total e essencialmente cri-

adora do autor à personagem, de compreender o próprio princí-

pio da visão da personagem – princípio que a cria como um todo

definido em todos os seus momentos –, pode-se pôr uma ordem

rigorosa na definição da forma-conteúdo das modalidades de per-

sonagem, dar a estas um sentido unívoco e criar para elas uma

classificação sistemática não aleatória.1

Veja-se que estamos, parece, estritamente no terreno da Teoria Literá-ria. O leitor que não conheça Bakhtin poderá até sonhar que em algummomento de sua obra encontrará uma “tipologia” organizada ao modo dasdefinições de “gêneros literários” ou modelos estéticos. Na verdade, emboramuitas vezes Bakhtin prometa tais esquemas, eles nunca se realizaram. Nãoporque as vicissitudes de sua vida o impediram quase sempre de terminarsuas obras, mas porque, muito provavelmente, desde o início não era mes-mo este (a organização tipológica do que quer que seja) o objeto de suapalavra. A tipologia bakhtiniana será sempre um breve gancho didático,volátil e mais ou menos inútil. Daí porque será um equívoco metodológicotomar ao pé da letra o conceito de “prosa romanesca” e encerrá-lo – agorasim – numa “tipologia” de gêneros literários.

Para tornar evidente o fato de que Bakhtin se move em outra esfera,leia-se mais um trecho de “O autor e o herói”, que aparecerá algumas pági-nas adiante, sempre sobre o mesmo tema (a relação entre o autor e o herói):

O modo como eu vivencio o eu do outro difere inteiramente do

modo como vivencio o meu próprio eu; [...] e essa diferença tem

importância fundamental tanto para a estética quanto para a ética.

Para o ponto de vista estético é essencial o seguinte: para mim,

eu sou o sujeito de qualquer espécie de ativismo: do ativismo da

visão, da audição, do tato, do pensamento, do sentir, etc.; é como

se eu partisse de dentro de mim nos meus vivenciamentos e me

direcionasse em um sentido adiante de mim, para o mundo,

para o objeto.2

Mesmo sem considerarmos aqui os conteúdos específicos discutidos porBakhtin, o que iria além dos limites deste verbete, salta aos olhos já nasprimeiras páginas do ensaio o fato de que Bakhtin encontra, na constitui-ção do discurso romanesco, representações outras, de natureza filosófica,

Poesia CRISTOVÃO TEZZA

BAKHTIN outros conceitos-chave

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que vão desde a noção de constituição dialógica do sujeito até a – agora noterreno estritamente estético – inseparabilidade entre esse dialogismo pri-meiro da natureza da linguagem e os modos de sua realização estética emdiferentes discursos. O conceito de prosa e o conceito de poesia, tais comoele os definirá anos mais tarde, são pois expressões de diferentes modos deapropriação da linguagem, numa atividade em que necessariamente have-rá, no mínimo, dois participantes, que, neste primeiro momento, Bakhtinchama de “autor” e de “herói”. Assim, para Bakhtin, apenas secundaria-mente prosa e poesia se diferenciam como formas genéricas, catalogáveis etipologizadas; primariamente, separam-se como dois modos distintos deapreensão da linguagem alheia.

PROJETO DE FILOSOFIA MORAL

O jovem Bakhtin de Para uma filosofia do ato3 nos dará mais algumaspistas de seu objeto de estudo e do lugar que a poesia ocupava nele. Nesseprojeto filosófico inicial, Bakhtin propõe uma filosofia, necessariamentemoral, que desse conta do “evento do ser”, aquele instante perpétuo, afronteira do tempo, para o qual não temos álibi e de cuja responsabilidadenão podemos fugir, o “aqui-agora”, sem transformá-lo num objeto teóricoque exclua o olhar do sujeito; uma filosofia, enfim, que rompesse aincomunicabilidade de dois mundos “mutuamente impenetráveis: o mun-do da cultura e o mundo da vida”.4 Este projeto de filosofia moral, assim,abdica de um “sistema logicamente unificado”; ele não pretende dar “umatranscrição teórica dos valores que têm sido realmente, historicamente, re-conhecidos pela humanidade, de modo [...] a sistematizá-los”. E assim sin-tetiza sua ambição primeira:

O que queremos fazer é uma representação, uma descrição da

arquitetônica real, concreta, do mundo dos valores experimenta-

dos – não com uma fundação analítica à frente, mas com aquele

centro real, concreto, tanto espacial quanto temporal, do qual sur-

gem avaliações, asserções e ações, e onde os membros constituin-

tes são objetos reais, interconectados por relações-eventos no evento

único do Ser.5

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Este curto parágrafo sintetiza parte do projeto inteiro da vida de Bakhtin,o coração de suas categorias teóricas e literárias. Aí estão alguns dos seuspontos de partida fundamentais: a inseparabilidade da noção de valor emqualquer projeto teórico, o princípio do cronotopo como eixo axiológicodo olhar, a obsessão com a “concretude” do evento real da vida, jamaisredutível a uma formalização reiterável. Sabemos que, pelas vicissitudes epelos rumos da vida e da própria Revolução Russa, Bakhtin não voltoumais a fazer filosofia em sentido estrito. É possível que esta opção tenhasido a única razoável diante da realidade política da União Soviética quecomeçava a se erguer à sombra de Stálin. Mas também pode ser porque, empouco tempo, Bakhtin encontrasse em outra linguagem a realização de seuprojeto de natureza filosófica – na linguagem literária, ou mais especifica-mente, na prosa romanesca. Comparando-se, por exemplo, o projeto desteprimeiro manuscrito com a obra sobre Dostoiévski que ele publicaria em1929, encontramos uma surpreendente semelhança entre o conceito de“polifonia” (aquele conjunto de traços que para ele vai definir o romancedostoievskiano) e a proposta filosófica de “uma representação, uma descri-ção da arquitetônica real, concreta, do mundo dos valores experimentados,[...] com aquele centro real, concreto, tanto espacial quanto temporal, doqual surgem avaliações, asserções e ações, e onde os membros constituintessão objetos reais, interconectados por relações-eventos”.

Tal coincidência já não será tão surpreendente assim, se avançamos umparágrafo do jovem Bakhtin filósofo:

Para dar uma idéia preliminar da possibilidade de uma arquitetônica

valorativa concreta, vamos analisar aqui o mundo da visão estética

– o mundo da arte. Em sua concretude e sua impregnação com o

tom emocional-volitivo, este mundo está mais perto do mundo

unitário e único do ato realizado do que qualquer outro mundo

abstrato cultural (tomado isoladamente). Uma análise desse mun-

do nos ajudaria a chegar mais perto de um entendimento da es-

trutura arquitetônica do mundo-evento real.6

E daí por diante, Bakhtin passa a teorizar sobre a natureza da “unida-de do mundo na visão estética”, como uma unidade “não sistemática”,mas “arquitetônica”, uma distinção sutil: “O mundo se dispõe em tornode um centro valorativo concreto, que é visto e amado e pensado. O que

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BAKHTIN outros conceitos-chave

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constitui esse centro é o ser humano: tudo nesse mundo adquiresignificância, sentido e valor apenas em correlação com o homem”. Nasdensas páginas seguintes, Bakhtin vai tocar em praticamente todos ospontos que se tornarão chaves na sua categorização do mundo: a relaçãoentre autor e herói como dialógica e assimétrica (no tempo e no espaço),a inevitabilidade da noção de valor para fundar o objeto estético, ainseparabilidade de forma e de conteúdo (“uma distinção possível apenascom relação a categorias de conteúdo abstrato”), e mesmo o poder daentonação como expressão de um centro de valores (o que terá um pesoespecífico na Lingüística do Círculo de Bakhtin).

Assim, não parece despropositado afirmar que Bakhtin descobriu, nalinguagem literária, o potencial de um novo projeto filosófico, projeto esseque, na sua utopia inicial, seria capaz de enfim transcender a formalizaçãoque marcava o cientificismo da época e sua abstração racionalizante, emdireção a um olhar “participativo” (a palavra é dele) que não fosse indife-rente ao objeto que vê para melhor manobrar as suas formas abstratas ereiteráveis. Curiosamente, Bakhtin dirá que “a melhor maneira de clarificara disposição arquitetônica do mundo na visão estética em torno de umcentro de valores, isto é, o ser humano mortal, é apresentar uma análise deforma-e-conteúdo de alguma obra particular” – e então ele apresenta nãoum texto de prosa, mas “o poema lírico Separação [Razluka], de Pushkin”.7

Curiosamente porque, justo na primeira análise literária que encontramosem toda a sua obra, está não um exemplar da prosa romanesca que o torna-ria célebre como teórico, mas um poema.

Vamos nos deter neste momento para sentir de que modo o primeiroBakhtin se aproxima da literatura. Mais uma vez, flagramos aqui as catego-rias básicas da representação estética bakhtiniana, antecipando os temasque serão largamente desenvolvidos no manuscrito seguinte, “O autor e oherói na atividade estética”. Depois de transcrever o poema – aliás, umpoema narrativo – diz Bakhtin:

Há duas pessoas ativas neste poema – o herói lírico (o autor

objetivado) e “ela” [...] e, conseqüentemente, há dois contextos de

valor, dois pontos de referência concretos para os quais os mo-

mentos valorativos, concretos, do Ser estão correlacionados. [...]

Todos os momentos concretos da arquitetônica são atraídos e con-

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centrados em torno de dois centros de valor (o herói e a heroína)

e ambos são igualmente abrangidos pela auto-atividade estética

humana, afirmadora e valorativa, em um único evento.8

A realização estética (aqui especificamente literária) é compreendidacomo o ponto de encontro de, no mínimo, dois centros de valores, ambosabrangidos pelo fechamento do “sujeito estético” (e Bakhtin acrescenta: “doautor, do contemplador” – o contemplador para ele é parte integrante doobjeto estético), com uma determinação: “estar situado do lado de fora”, acategoria “exotópica” bakhtiniana.

Fiquemos neste ponto: a duplicidade de “centros de valores” como cons-tituinte da realização literária – embrionariamente aquilo que, mais tarde,Bakhtin e seu Círculo chamarão de “natureza dialógica da linguagem”, comopressuposto lingüístico, e que Bakhtin ele-mesmo transformará em umadas expressões da história literária, o impulso “dialógico”, em contraposiçãoà centralização “monológica”.

Na obra sobre Dostoiévski Bakhtin tratará deste caráter “dialógico” daprosa romanesca, traçando nas entrelinhas um percurso histórico que in-cluirá, nas origens, até mesmo os diálogos socráticos. O romance polifônicodostoievskiano seria, para ele, a mais completa realização deste impulso.

Poucos anos depois, em “O discurso no romance”, Bakhtin sistemati-zará este seu olhar sobre a prosa, agora não mais preocupado com o con-ceito de “romance polifônico”, que ele de fato abandona. Num painelmais amplo, Bakhtin reserva um capítulo para discorrer sobre as “duaslinhas estilísticas do romance europeu”, uma de natureza lingüística eestilisticamente centralizadora, de certa forma “monolíngüe”, e outradescentralizadora e “plurilíngüe”. Sobre esta arquitetura básica, que ja-mais se fecha num esquema impermeável, e que faz a literatura se alimen-tar, sempre, das linguagens sociais em jogo e da presença da estratificaçãode valores, Bakhtin constrói sua teoria do romance. Justamente neste li-vro se encontra o único texto mais longo em que Bakhtin discorre sobrea poesia e sobre a linguagem poética: “O discurso na poesia e o discursono romance”. Aí está o que podemos chamar de o “núcleo duro” de seuconceito de poesia.

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ORIENTAÇÃO DIALÓGICA DO DISCURSO

O ponto de partida bakhtiniano é o que ele chama, agora, de “orienta-ção dialógica do discurso para os discursos de outrem”:

Entre o discurso e o objeto, entre ele e a personalidade do falante,

interpõe-se um meio flexível, freqüentemente difícil de ser pene-

trado, de discursos de outrem, de discursos “alheios” sobre o mes-

mo objeto, sobre o mesmo tema.9 [...]

Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto

para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado,

contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo con-

trário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre

ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por

pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações.10

Pois bem, Bakhtin dirá que a prosa encontra na “concentração de vozesmultidiscursivas” que repousam no objeto o seu alimento, a sua razão de ser –essas vozes sociais são o pano de fundo imprescindível do discurso romanes-co; e entre o autor e o seu herói mantém-se, obrigatoriamente, uma distânciasegura. O texto prosaico faz da natureza dialógica da linguagem – o fato deque toda palavra é no mínimo dupla – a essência de sua realização estética.Em uma palavra, na prosa romanesca é um “outro” que fala, e toda a signifi-cação estética e estilística da obra se faz em torno da distância entre o autorque organiza o texto, o olhar que narra, e o seu herói, com o qual ele mantémum espectro amplo de relações dialógico-valorativas, encontro vivo de pontosde vista, que podem ir da eventual concordância e empatia (personagens“positivos”), até a mais completa discordância e antipatia (personagens “nega-tivos”). Na prosa, o conjunto de pontos de vista que socialmente já acompa-nham o objeto quando pela primeira vez ele cai sob o olhar narrativo, é parteintegrante e, mais que isso, definidora, da estética prosaica. Assim, em todasas formas genéricas que a narrativa prosaica assumiu ao longo da história atéa complexidade do romance moderno, este “plurilingüismo”, esse encontrovivo de pontos de vista no mesmo enunciado (para Bakhtin, toda enunciação éuma réplica, explícita ou implícita), está no seu centro estético-estilístico. Oque define o prosaico, para Bakhtin, não é o elemento composicional exter-

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no, mas o modo específico de apropriação da linguagem e o espaço que odialogismo ocupa nele. Em suas palavras, “o prosador não purifica seus dis-cursos das intenções e tons de outrem” e, deste modo, ele “pode se destacarda linguagem da sua obra, e o faz em diversos graus de algumas de suascamadas e elementos”.11

E a poesia? O poeta, na sua relação com as linguagens alheias, vai emsentido absolutamente contrário: “A exigência fundamental do estilo poéti-co é a responsabilidade constante e direta do poeta pela linguagem de todaa obra como sua própria linguagem, a completa solidariedade com cada ele-mento, tom e nuança. Ele satisfaz a uma única linguagem e a uma únicaconsciência lingüística”.12

Para que estes dois eixos não se esquematizem mecanicamente, pense-mos, antes de avançar, em uma imagem da produção estética literária comoum continuum, que vai idealmente da “prosa absoluta” à “poesia absoluta” –todo objeto estético literário encontra-se em algum lugar deste continuum,que assim não se define por essência, mas por “quantidade”. Pois bem, aprosa faz da natureza dialógica da linguagem o seu próprio alimento:

[A dialogicidade interna] no romance, penetra interiormente na

própria concepção de objeto do discurso e na sua expressão, trans-

formando sua semântica e sua estrutura sintática. [...] No romance

[...] a dialogicidade interna torna-se um dos aspectos essenciais do

estilo prosaico e presta-se a uma elaboração literária e específica.13

Isso significa que, na prosa, a tensão entre pontos de vista distintos namesma enunciação, a réplica permanente e sempre inacabada que ela fazaos discursos alheios e aos outros pontos de vista, é um elemento essenciale esteticamente criador – aliás, é aí que Bakhtin situa aquilo que se chama“estilo”. Os estilos prosaico e poético (em todas as suas gradações e interse-ções históricas) se definem a partir do papel que essa dialogicidade ocupana enunciação literária.

Na outra ponta do espectro, encontramos os gêneros poéticos. Como anoção de diálogo (em sentido estrito e metafórico) tornou-se extraordinari-amente cara ao nosso tempo pela idéia democrática que lhe parece intrínse-ca, a definição bakhtiniana de poesia pode causar estranheza num primeiromomento. Veja-se:

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Nos gêneros poéticos (em sentido restrito) a dialogização natural

do discurso não é utilizada literariamente, o discurso satisfaz a si

mesmo e não admite enunciações de outrem fora de seus limites.

O estilo poético é convencionalmente privado de qualquer interação

com o discurso alheio, de qualquer “olhar” para o discurso alheio.14

E, mais adiante, ele acentua o aspecto central do discurso poético: “Alíngua do poeta é a sua própria linguagem, ele está nela e é dela inseparável”.

Bakhtin ressalva que o poeta, existindo “historicamente”, está também,é claro, envolvido no plurilingüismo, mas ele não o emprega dialogicamente(se o empregasse, seria um prosador). Veja-se:

Os elementos do plurilingüismo não entram [na poesia] com os

direitos de uma outra linguagem, que traria seus próprios pontos

de vista particulares, através da qual seria possível dizer aquilo que

não se pode dizer em sua própria língua, mas sim com os direitos

de coisa representada. E daquilo que lhe é estranho o poeta fala

em sua própria linguagem. Para aclarar o mundo de outrem ele

jamais se vale da linguagem de outrem como sendo a mais adequa-

da para este mundo.15

Isto é, o poeta submete todas as outras linguagens à sua própria lingua-gem, às exigências de seu próprio estilo. O prosador, ao contrário, continuaBakhtin, tenta dizer até o que lhe é próprio na linguagem dos outros; “elemede o seu mundo com escalas lingüísticas alheias”.

Em razão desse traço fundamental do estilo poético – esse é outro as-pecto fundamental observado por Bakhtin –, o poeta “não tem limites”lingüísticos, ao contrário do prosador. O prosador, ao colocar a linguagemde outrem no centro de sua voz, fica de certo modo escravo dela; o seu graude liberdade vai até o limite de não descaracterizar a voz alheia a ponto dedeixá-la irreconhecível como tal (isto é, como voz alheia, com direitos sobresua própria palavra). Já o poeta pode fazer da linguagem o que quiser: ela éinteiramente sua e está inteiramente ao seu serviço.

Dessa liberdade vem a possibilidade – freqüentemente sonhada e reali-zada – de uma “linguagem poética” pura, especial, de uma “linguagem dosdeuses”, etc., possibilidade bastante freqüente no imaginário poético. Aidéia de uma linguagem da poesia, essencialmente desvinculada das outraslinguagens, fez parte substancial, no início do século XX, do ideário dos

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simbolistas e em seguida do grupo de teóricos conhecidos como os formalistasrussos.16 Diz Bakhtin:

A idéia de uma linguagem da poesia, única e especial, é um

filosofema utópico característico do discurso poético: na base des-

se filosofema repousam as condições e as exigências reais do estilo

poético, que satisfaz a uma linguagem única, diretamente intenci-

onal, a partir de cujo ponto de vista as outras linguagens (a lingua-

gem falada, a linguagem de negócios, a linguagem prosaica, etc.)

são percebidas como objetivadas e em nada equivalentes a ela.17

É preciso relembrar, entretanto, que estamos falando de um continuumestilístico, que vai do “extremo poético” ao “extremo prosaico”. Nesse le-que, o limite poético máximo consolidaria o máximo de centralização lin-güística, o que inclui, além das peculiaridades formais isolantes (isto é, queisolam a fala poética de qualquer “contato” com as marcas da linguagemcomum) – versos, métrica, rimas, assonâncias e dissonâncias, forte unidadeinterna (as partes remetendo-se umas às outras, e não ao “exterior”) –, tam-bém o isolamento semântico-ideológico,18 a ponto de às vezes se tornaruma voz “autoritária, dogmática e conservadora”, nas palavras de Bakhtin.

Assim, a centralização formal e estilística do discurso poético é tambémútil em outros gêneros não intrinsecamente literários, como o ensaio, afilosofia, o texto religioso – nos momentos de isolamento estilístico, comoque se reforça, pela autoridade da voz, pela sua altissonância poética, aforça do argumento. Veja-se a importância do estilo poético em Nietszcheou, para ficar no Brasil, em Euclides da Cunha. E o mais clássico exemplode todos: a linguagem bíblica, que tem no estilo poético um auxiliarpoderosíssimo em seu poder centralizador de persuasão.

“IMPULSO POÉTICO”

Acontece que o grau de centralização ou descentralização da linguagemnão é apenas uma escolha pessoal a-histórica: há tempos lingüisticamentecentralizadores (que poderíamos chamar de tempos estilisticamente poéti-cos) e tempos lingüisticamente descentralizadores (que seriam tempos pro-saicos, em que o forte contato entre línguas e a intensa estratificação lin-

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güística trabalha para solapar a autoridade de uma voz única e centraliza-da). É claro que cada nação e cada cultura terá suas peculiaridades em dife-rentes momentos históricos, e o que Bakhtin, na sua obra dos anos 40,chama de “forças centrípetas” e “forças centrífugas” da linguagem deve serentendido em sua perspectiva sócio-histórica, e não como alguma derivaestrutural que andasse por conta própria.

As peculiaridades históricas podem explicar, por exemplo, por que par-te substancial da poesia européia do século XX – peguemos os exemplos deT. S. Eliot, na prática, e as concepções literárias do formalismo russo, nateoria – é “centralizadora”, aproximando-se daquele “limite estritamentepoético” a que Bakhtin faz referência, enquanto o movimento modernistabrasileiro foi enraizadamente prosaico. Um prosaísmo, aliás, que, até o ad-vento dos poetas concretos, e agora, depois deles, continua sendo uma es-pécie de renitente marca registrada da poesia brasileira. Entre nós, quandofalamos em “rigor formal”, queremos de fato dizer “centralização poética”,“autoridade poética”, correspondentemente distante da “linguagem prosai-ca”. Os mecanismos pelos quais a linguagem se centraliza poeticamente nãosão, é claro, apenas temáticos (os temas “elevados”), mas muito especifica-mente composicionais – todos os recursos gráficos, visuais e sonoros de queo poeta dispõe para isolar sua linguagem de todas as outras, para delimitaro seu território, serão usados.

O universo semântico-ideológico, porém, encontrará na sua expressão aresistência da cultura coletiva da qual o poeta faz parte e de onde extrai a con-venção de sua arte. Assim, há sempre um toque transcendente na voz poética,a busca do “tom maior”, coletivo, que dá à poesia a autoridade de sua própriapresença, a dignidade que a justifica. Se, tecnicamente, o estilo poético “nãoconhece limites”, como diz Bakhtin, ideologicamente o poeta será “um homemde seu tempo” – o limite de autoridade poética é o eco de sua voz.

A questão é que vivemos num tempo prosaico, retomando a arquiteturaliterária de Bakhtin. Isso acontece não porque haja propriamente uma prefe-rência universal arbitrária pela prosa, mas porque, talvez mais do que emqualquer outro tempo, a consciência e valorização das linguagens alheias –consideradas não como objeto, mas, digamos que democrática emulticulturalmente, como sujeitos ativos do mundo dos significados – estápresente; e, parece, é cada vez mais difícil a autoridade poética encontrar eco,

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isto é, encontrar recepção e ressonância a uma entonação centralizada, marcaabsoluta do estilo poético na sua voltagem máxima. Assim, o que podemoschamar de “contaminação prosaica” é a marca contemporânea obrigatória detoda poesia. O poético absoluto – que em outros tempos cantava, em formascomposicionais congeladas, a grandeza épica dos povos, a iluminação cristã esua organização de mundo, ou mesmo, mais modernamente, a busca da per-feição estética como sinal de transcendência artística – ficou sem lugar nopoema, ou pelo menos manteve-se como expressão desconfortável de ummundo ideológico que não encontra mais eco, cuja voz não encontra auditó-rio disposto a lhe conceder a autoridade da voz.

Mas é claro que esse “impulso poético” prossegue vivíssimo em segun-do plano, ou mesmo invadindo (ou recuperando) gêneros que havia perdi-do ao longo da história, como os gêneros narrativos, ao tirar deles a indis-pensável dialogicidade interna, a fratura de linguagens, e envernizá-los comuma centralização tematicamente espiritualizante.19

O REFÚGIO DO DISCURSO POÉTICO

Pois bem: em que outro lugar pode se refugiar o discurso poético paraquem vive a consciência multifacetada das linguagens do nosso tempo? Nomundo leigo, não há mais espaço para uma voz “centralizadora”, “autoritá-ria” ou “dogmática”, nos termos em que Bakhtin definia o limite poético. Acontaminação prosaica – não necessariamente composicional, mas certa-mente semântica – acaba sendo a sua marca registrada. A dualidade domodernismo brasileiro, balançado sempre entre o que se chama generica-mente de “rigor formal” e o que se chama também genericamente de“emotividade”, “afetividade”, mas que pode se traduzir também como“prosaísmo”, mais do que uma guerra de escolas é uma tensão do tempo.

Um exemplo excepcional de alta intensidade poética, que deixa entre-ver em cada instante a batalha “prosa vs. poesia”, é a obra de um dos maisimportantes escritores brasileiros contemporâneos, Paulo Henriques Britto.Vejamos alguns poemas tomados de seu livro Macau.20 O primeiro deles(“Três tercinas”, I) pode ser lido como a expressão quase paradoxal, certa-mente angustiante, de um projeto poético contemporâneo:

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Para o que se quer, isto basta.

Parece pouco. E é pouco, mesmo,

é quase um nada. E no entanto

cabe um bocado, cabe tanto

que é até preciso dar um basta.

Quanto ao assunto – o si-mesmo –

é invariavelmente o mesmo.

Um ponto. Um fragmento. Entretanto

é um universo que se basta –

e como! e tanto! – a si mesmo.

E agora basta.

Rigorosamente não há uma só expressão deste poema que não seja pro-saica. Há uma espécie de “anti-retórica” percorrendo a alma de cada pala-vra, do modo como o poeta nos apresenta. O tom coloquial se define pelovocabulário, pela frase curta, pelo solilóquio miúdo, pela despreocupaçãocom o menor sinal altissonante e mesmo pela gaguejante argumentaçãoque deixa entrever. A idéia de “fala” – no que ela tem de dialógica, tensa –e a idéia de “resposta” (há sempre um interlocutor implícito) estão presen-tes em cada linha. Entretanto, cada um dos traços prosaicos deste texto érigidamente controlado pelas marcas do estilo poético, que acaba por do-minar o conjunto por inteiro. Todos os elementos, em cada verso, estão aserviço de uma voz organizadora que transforma em objeto tudo que toca.E que marcas lingüísticas são essas?

Começamos pelo metro, que é o primeiro estranhamento, o mais co-mum e o mais popular, do estilo poético. Aliás, o metro é a força milenar dapoesia, o seu ponto de contato com o canto, o seu afastamento radical dalinguagem “comum”, da fala cotidiana; o metro, seu sistema de cesuras e areiteração rítmica que dele decorre representam o imediato isolamento dalinguagem – cantar é um ato que transforma o outro imediatamente emouvinte passivo ou, no máximo, em eco da voz que canta, repetindo-lhe orefrão. O canto tem uma natureza estritamente unilateral. Como diz Bakhtin,referindo-se ao poder centralizador do ritmo:

[...] por mais que sejam numerosos e multiformes os fios semânti-

cos, os acentos, as associações, as indicações, as alusões, as coinci-

209

dências que procedem de cada discurso poético, todos eles servem

a uma só linguagem, a uma única perspectiva [...].

O próprio ritmo dos gêneros poéticos não favorece qualquer

estratificação substancial da linguagem. O ritmo, ao criar a parti-

cipação direta de cada momento do sistema acentual do conjunto

(através das unidades rítmicas mais próximas) destrói em estado

ainda embrionário aqueles mundos e pessoas virtualmente conti-

dos no discurso: em todo o caso, o ritmo coloca-lhes determinadas

barreiras, não lhes permitindo se desenvolver e se materializar; ele

fixa e enrijece ainda mais a unidade e o caráter fechado do estilo

poético e da linguagem única que é postulada por este estilo.21

Na poesia escrita, a composição gráfica cumpre, em outro código, essafunção divisória. A composição gráfica do texto em versos, aqui de oitosílabas (com uma cesura variável entre a quarta e a quinta sílaba), já noscoloca de imediato num território visualmente isolado. Lembremos que,na sua versão escrita, o verso é uma arma do isolamento poético: estamosdiante de uma escolha composicional que, objetivamente, contrapõe-se à“naturalidade” prosaica do texto. Os olhos do leitor como que saem do seumundo comum de leitura (o jornal, a revista, o livro de prosa), no qual elesentrariam desarmados, e se adaptam a uma especificação isolante, especial,peculiar, que exige a todo momento uma atenção diferenciada. Assim, oque o poeta Paulo Britto, nestes versos, dá com uma das mãos (o tom colo-quial, a proximidade, a conversa simples), tira com a outra (aquilo queparece um diálogo comum é, de fato, um objeto fechado). Toda a liberdadeda fala se enclausura rigorosamente no interesse do poeta.

Relembremos Bakhtin, em uma de suas afirmações mais controversas(sempre frisando que aqui Bakhtin se refere ao “máximo” poético, dentrodo continuum a que fizemos referência):

Nos gêneros poéticos (em sentido restrito) [...] o discurso satisfaz

a si mesmo e não admite enunciações de outrem fora de seus limi-

tes. O estilo poético é convencionalmente privado de qualquer

interação com o discurso alheio, de qualquer “olhar” para o dis-

curso alheio.22

Será mesmo assim? No poema de Britto, praticamente todas as palavrase expressões são populares, isto é, têm uma tonalidade comum, coloquial,

Poesia CRISTOVÃO TEZZA

BAKHTIN outros conceitos-chave

210

fazendo emergir a representação de uma espécie de “voz do povo”; há todauma sugestão prosódica, quase que podemos ver os gestos do falante: “istobasta”, “parece pouco”, “cabe um bocado”, “e como!”, “e agora basta”. En-trevemos também, em cada instante, um ouvinte imaginário, alguém físi-co, concreto, que daria pleno sentido ao que o poeta diz – mas a verdade éque lemos o poema como se flagrássemos um pedaço de conversa de queperdemos o início e de que jamais saberemos o fim. E sem esses dois peda-ços, que têm de ser adivinhados, completados pela intuição do leitor, opoeta nos deixa no ar e, metaforicamente, sem ar. Aqui não temos, de fato,um “extremo poético”, mas a “linguagem alheia”, prosaica, que o poeta nosoferece, carece de qualquer autonomia.

Pois bem, chegamos então em outro traço marcante do estilo poético,que é o seu poder essencial de indeterminação histórica, a sua irresistíveltranscendência. Ao nos abrir uma conversa comum em estado bruto, massimultaneamente nos negar a chave de suas referências, todos os traços dalinguagem alheia, de um possível interlocutor, de uma autonomia outraque não a do poeta, desaparecem e se objetificam, como Bakhtin queriademonstrar. Sim, o leitor pode concordar que o prosaísmo de Britto sig-nifica, de certa forma, uma renúncia à unilateralidade poética, uma re-núncia à altissonância do estilo do gênero, um prévio desarmamento dacentralização ideológica, como uma escolha, uma recusa, uma descrençado poder poético – mas, no impulso estritamente poético que se revela aofim, toda a matéria-prima da prosa que, parece, está em suas mãos, nostermos mesmos da prosa, domestica-se docilmente à soberania poética. Ochão prosaico alça-se, na síntese absoluta de cada verso, à intencionalidadepoética do autor e fica inteiramente inerme, a seu serviço, um objeto decontemplação e não o contraponto de uma outra voz. Na obra de Britto,“a linguagem realiza-se como algo indubitável, indiscutível, englobante.Tudo o que vê, compreende e imagina o poeta, ele vê, compreende eimagina com os olhos da sua linguagem, nas suas formas internas” – aspalavras são de Bakhtin.

Nesse ponto da análise precisamos transcender o objeto poético em si, aauto-suficiência de seus mecanismos internos, “as peças do automóvel” deque falava Vítor Shklóvski,23 numa das imagens-síntese dos formalistas rus-sos, e considerar os aspectos supostamente extraliterários (mas que, de fato,

211

determinam o que é e o que não é literário) do objeto estético. As “peças doautomóvel”, aqui, são meia dúzia de palavras corriqueiras empregadas numatonalidade igualmente corriqueira, mas dominadas, sílaba a sílaba, por umareiteração formal, tanto no isolamento do verso, escravo do antecessor eguia do seguinte (uma reiteração só quebrada no último, cortado pela me-tade, síntese da idéia central do poema – E agora basta. –, numa firmezaagora sem ênfase, como uma porta prosaica que respira e se abre – paralugar algum), como por uma reiteração semântica: cada palavra ao mesmotempo afirma e nega o que se disse antes, em soluços adversativos que seencerram abruptamente, sem nenhum tertius. Veja-se: isto basta / parecepouco / e é pouco / e no entanto / cabe tanto / que é preciso um basta / quanto aoassunto / é o mesmo / entretanto / se basta / e tanto / e agora basta.

Paulo Henriques Britto, usando apenas peças de um automóvel prosai-co, monta-nos um perfeito quebra-cabeças poético, da primeira à últimalinha, que ilustra perfeitamente as marcas essenciais da linguagem da poe-sia segundo Bakhtin. Como na linguagem poética estrita só o poeta fala, aidéia elevada de “mensagem” ou de “revelação” – absolutamente inaceitávelna prosa, pelo que tem de doutrinário, proselitista, parcial – faz sentido napoesia; na verdade, é esse historicamente o terreno dela, quando em estado“puro”. São duas palavras fortes, para a cultura do nosso tempo – mensa-gem e revelação –, pelo que têm justamente de doutrinário, religioso oumesmo dogmático, como diria Bakhtin. Mas, numa arte laica,irrecuperavelmente à deriva, sem a âncora de uma hegemonia ideológicaque em outros tempos assegurava a força de sua voz, o que resta à poesiapara manter viva a sua linguagem?

No caso muito específico de Britto – mas que encontra eco em muitosoutros poetas contemporâneos – resta à poesia discutir justamente o seuestatuto, o seu lugar no mundo, com as armas composicionais do discursopoético de um lado, e com a memória semântica de uma hegemonia perdi-da, em outro. Claro, há um imenso terreno lírico em que essa questão nãose coloca ostensivamente, ainda que o poeta, mesmo quando, digamos,apenas canta em louvor de sua amada, sempre se veja obrigado a construir(composicional e semanticamente) o breve oásis em que a autoridade desua voz possa ser ouvida e ser aceita (na música popular esse oásis se fazinstantaneamente pelo magnetismo do canto, que, como já dissemos, colo-

Poesia CRISTOVÃO TEZZA

BAKHTIN outros conceitos-chave

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ca o interlocutor na posição de puro ouvinte). E qual é o estatuto da poesia,segundo Britto? Retomando seus versos, parece pouco, é quase um nada, mascabe tanto que é até preciso dar um basta. Enfim, a poesia – isso fica porconta do leitor, mas faz pleno sentido no conjunto do livro Macau – “é umuniverso que se basta”.

Virando a página, encontramos a tercina II, agora escrita em línguainglesa, em mais súbito traço da transcendência poética, a sua – de certaforma a palavra é esta mesmo –, “desconsideração” do leitor e de sua deter-minação histórica. Aliás, é bastante freqüente na história a figura do poetaeventualmente bilíngüe, fazendo valer o peso de um desenraizar-selingüístico, o exercício da palavra que parece não dever nada a ninguém emseu aqui e agora. Veja-se o primeiro terceto:

A word, a will, an eye, a hand –

that’s what it takes to make a world.

All else follows from that, you say.24

O “you say” dá a marca do diálogo prosaico que acompanhaargumentativamente o poema até o último verso, mas também aqui oque faz o mundo é, de modo literal, “uma palavra, uma vontade, umolho, uma mão” – do poeta, podemos interpretar; o mundo inteiro édele. Deixemos esta segunda tercina – o fato de estar escrita em inglês jáé amostra suficiente de seu isolamento composicional, no sentido queestamos considerando. Mais uma vez, o que o poeta dá com a mão direita(um diálogo) tira com a esquerda (escrito em inglês, num livro que meta-foricamente faz de “Macau” – a longínqua e perdida colônia portuguesana China – uma referência simbólica ao isolamento, à distância e à fragi-lidade da nossa língua).

Na última tercina, o poeta, agora sem nenhum álibi, se assumeassertivamente como tal. Leia-se:

Nunca não ser ninguém nem nada,

porém deixar-se estar no tempo

como se a vida fosse água,

como quem bóia à flor da água

sem rumo, sem remo, sem nada

além de sono, tédio e tempo,

213

senhor de todo o espaço e o tempo,

munido só de pão e água

e, sem precisar de mais nada,

beber sua água enquanto é tempo.

E, depois, nada.

Neste belo poema, com uma intensidade que se manifesta em todos osseus segmentos, o poeta “pontifica” – de modo unilateral, ele nos aconse-lha. Na verdade, pontificar não é bem o caso – de fato, ele não se dirige anós; ele apenas fala, intransitivamente. Não há mais aqui o nervosocontraponto implícito, adversativo, da primeira tercina, nem o tom colo-quial – “you say” – da segunda, como marcas de uma invasão prosaica, deum mundo alheio a que ele tem de responder quase que no mesmo tom.Aqui não. O movimento métrico mantém-se rigorosamente o mesmo doconjunto, como isolante composicional da linguagem; mas, além disso, nocampo semântico-ideológico, também só ele fala.

O poema é uma ordem – o traço imperativo do primeiro verso (Nuncanão ser ninguém nem nada), um imperativo transcendente, já que não sedirige especificamente a ninguém em particular, vai se explicando (mas nãose desculpando ou suavizando ou concedendo) nos versos seguintes, até sefechar, igualmente peremptório, na última afirmação: E depois, nada. Comoapropriação da linguagem, este poema é a cristalina ilustração das palavrasde Bakhtin:

Na obra poética a linguagem realiza-se como algo indubitável, in-

discutível, englobante. Tudo o que vê, compreende e imagina o

poeta, ele vê, compreende e imagina com os olhos da sua lingua-

gem, nas suas formas internas, e não há nada que faça sua

enunciação sentir a necessidade de utilizar uma linguagem alheia,

de outrem.25

Observe-se que o “indubitável” ou o “indiscutível” não decorrem pro-priamente de um conteúdo autoritário, de uma mensagem tradicional ouingenuamente enfeixada numa ordem; a “ordem” pode ser perfeitamenteassumida pela prosa, na medida em que se dirige diretamente a alguém,considera esse “alguém” como uma linguagem própria, eventualmente usaessa linguagem alheia para comentá-la, considerá-la, desconsiderá-la ou

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BAKHTIN outros conceitos-chave

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destruí-la. O “faça isto” prosaico carrega a tensão de linguagens distintasque se encontram em guerra. Já no discurso poético, como dissemos, não setrata de uma “mensagem” objetiva; os traços peremptórios da linguagem dapoesia consubstanciam-se no momento mesmo em que a palavra se assumepoética, colocando a seu serviço centralizador todos os recursoscomposicionais e semânticos à disposição no seu repertório técnico e ideo-lógico e ignorando radicalmente a linguagem do outro; a linguagem poéti-ca, pelo princípio organizador de si mesma, não pede uma resposta – ela éuma resposta.

Mas é claro que há um outro mundo a considerar no poema lido, alémdas marcas de sua constituição como linguagem poética. Já fizemos refe-rência às amarras composicionais rigorosas que mantêm o conjunto dostrês poemas considerados sob a força de uma intensa unidade, pela reitera-ção métrica, uma fôrma que se retoma nos três casos. Nesse sentido, há umimpulso clássico nesta escolha de formas, na medida em que se contrapõe –pelo menos no caso brasileiro – a uma tradição que tem nas marcas formaisprosaicas um dos seus traços mais definidores. Naturalmente, a escolha deformas composicionais mais rígidas coloca o poeta na linha de outros reen-contros. No caso, um reencontro em que o verso, o léxico, o tema e o ritmofinal que anima esses elementos dão ao poema o seu toque quase que pasto-ril, de uma écloga comme il faut, de sabor árcade. Visto assim, cruamente,seria o caso de considerá-lo maneirista, mais ou menos em paralelo com asbrincadeiras barrocas em que este ou aquele poeta habilidoso brinca deoxímoros no rigor do soneto, mas já sem nenhuma das tensões concretasque criaram o estilo quatrocentos anos atrás?

Mais uma vez, como no próprio poema, a resposta é “não”. O reencon-tro com o passado de Paulo Henriques Britto se dá aqui, no presente. Nãohá nesses poemas nenhuma entrega dócil ao já formulado, mas a dura con-quista de um lugar incerto, ou, melhor dizendo, um roteiro para esta con-quista. O poema reconhece plenamente, sim, que faz parte de uma família,que é herdeiro de uma cultura; mas o despreendimento do mundo materialse realiza aqui não como expressão mecânica de um ideário clássico ourousseauniano, sob o concerto ideológico de uma visão comunitária oucoletiva, mas como uma solidão em estado bruto. A radical economia devocabulário, no chão comezinho das repetições, em que as rimas, mais ain-

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da que pobres, se fazem pela simples duplicação de três palavras,26 concen-tra e centraliza a angustiante unilateralidade poética. A voz do poeta canta,mas sabe, em cada passo, que, munida “só de pão e água” não há propria-mente o que cantar, exceto a negação, uma negação que inclui uma duraconsciência do próprio tempo, como atitude (“beber sua água enquanto étempo”) e como destino (“E, depois, nada”). O poeta se reconhece – e esseé o desespero de sua linguagem – órfão de qualquer cosmogonia.

Há quem diga que o conceito de poesia em Bakhtin é parcial epreconceituoso com relação às qualidades da prosa, por contrapor valores tãocaros ao nosso tempo como “centralização” (a autoridade de um único pontode vista) e “descentralização” (multiplicidade de pontos de vista) ou, maistecnicamente, “arte monológica” e “arte dialógica”, e portanto a poesia seria“inferior” à prosa. Mas uma releitura cuidadosa dos termos em que Bakhtincoloca a questão – como modos distintos de apropriação da linguagem, den-tro de um quadro em que a linguagem é essencialmente dupla – e, igualmen-te, um olhar atento à poesia maior contemporânea, como nesta amostra dePaulo Henriques Britto, demonstrará que, longe de promover uma reduçãomecânica da questão, o mestre russo abriu um novo caminho de investigaçãodo discurso poético, ultrapassando os limites das “peças do automóvel” deShklóvski, sem cair nas paráfrases de conteúdo que fazem das palavras merosveículos do pensamento ou ilustrações temáticas.

Para Bakhtin, o poético é a expressão completa de um olhar sobre o mundoque chama a si a responsabilidade total de suas palavras. Num mundo fragmen-tário e prosaico como o nosso, não é tarefa fácil sustentar o poder dessa lingua-gem sem se entregar aos lugares comuns da cultura de massa ou aos universaispoético-religiosos, que, parece, são a hegemonia que nos restou. Não é fácil,mas é possível, como nos mostra a poesia de Paulo Henriques Britto.

NOTAS

1 M. Bakhtin, Estética da criação verbal, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 7.2 Op. cit., pp. 35-6.3 M. Bakhtin, Toward a Philosophy of the Act, Austin, University of Texas Press, 1993. Translation

and notes by Vadim Liapunov. Esta primeira obra de fôlego de Bakhtin, que restou inacabada,foi escrita no início dos anos 20 e permaneceu inédita até 1986. As citações no presente ensaiosão de uma tradução inédita da edição americana, feita por Carlos Alberto Faraco e por mim.

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4 Op. cit., p. 2.5 Op. cit., p. 60.6 Idem, ibid.7 Op. cit., p. 65.8 Op. cit., p. 66.9 M. Bakhtin, Questões de literatura e estética (A teoria do romance), São Paulo, Hucitec/Unesp,

1988, p. 86.10 Idem, ibid.11 Op. cit., pp. 104-5.12 Op. cit., p. 94.13 Op. cit., pp. 92-3.14 Op. cit., p. 93.15 Idem, p. 95.16 Um reflexo desta postura teórica pode ser encontrado, por exemplo, nos manifestos do movi-

mento concretista brasileiro, que trouxe ao Brasil, em meados dos anos 50, as questões teóricas eos projetos estéticos criados pelo formalismo russo.

17 Op. cit., p. 95.18 A palavra “ideológico”, em Bakhtin, não tem o sentido estrito que normalmente lhe dão as

correntes marxistas – “ideologia” como “mascaramento do real”. Para Bakhtin, o termo “ideoló-gico” compreende tudo aquilo que envolve visão de mundo e axiologia, isto é, escala de valor.

19 Nesse sentido, compreende-se talvez, por exemplo, parte do fenômeno da obra de Paulo Coelho;ela realizaria essa prosa “poética” em pelo menos um dos aspectos frisados por Bakhtin – uma vozcentralizadora reduz o mundo inteiro à sua própria autoridade e encontra na audiência a exataaceitação, o eco que a faz respirar.

20 Paulo Henriques Britto, Macau, São Paulo, Companhia das Letras, 2003. Os três poemas cita-dos aqui estão nas páginas 23, 24 e 25.

21 Op. cit., p. 104.22 Idem, p. 93.23 “A pessoa que entende inspeciona o automóvel com serenidade e compreende ‘para que serve

cada coisa’: por que o carro tem tantos cilindros, por que tem grandes rodas, onde se coloca atransmissão, por que a parte posterior é cortada em ângulo agudo e por que o radiador não épolido. É deste modo que se deveria ler.” In P. Steiner, Il formalismo russo, Bologna, Il Molino,1991, p. 54. Tradução nossa.

24 “Um verbo, a volição, um olho, a mão – / é o necessário pra fazer um mundo. / O resto éconseqüência, diz você.” Tradução de Caetano Waldriguez Galindo.

25 Op. cit., p. 94.26 Observe-se que as tercinas de Britto evocam, ou subvertem, a forma das sextinas renascentistas,

poemas em que as mesmas seis palavras apareciam segundo uma ordem preestabelecida. Devo aCaetano Waldriguez Galindo este detalhe.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

_____. Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993. Translation andnotes by Vadim Liapunov.

_____. Questões de literatura e estética (A teoria do romance). São Paulo: Hucitec/Unesp, 1988.

BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

STEINER, P. Il formalismo russo. Bologna: Il Molino, 1991.

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PsicologiaYves Clot

Trad. Anna Rachel Machado

À primeira vista, a questão é clara. Como Dostoiévski, Bakhtin não gos-tava dos psicólogos. Ele poderia ter dito, qual Stavroguine a Tikhon, em Osdemônios: “Escute, não gosto de psicólogos e de espiões, pelo menos nãogosto de psicólogos e espiões que se querem insinuar na minha alma”. Bakhtinopõe à psicologia, segundo C. Emerson, até mesmo o conceito de “não acaba-mento”, que é um de seus conceitos fundamentais (Emerson, 1994). Alémdisso, é certo que o não acabamento está no centro de sua concepção dodiálogo. Entretanto, é com Bakhtin que queremos, neste artigo, esclarecer acontribuição de dois grandes psicólogos do século XX. Ambos são russos, comoele, e fundadores da psicologia histórico-cultural. Nossa hipótese é a de que otrabalho de Bakhtin permitiria compreender um pouco melhor a perspectivadesses psicólogos sobre o desenvolvimento.

Na verdade, com Pensamento e linguagem, Vygotski1 deixou-nos umaherança que não é só brilhante. Ela envolve enigmas, algumas “possibilida-des não realizadas” – para falarmos como ele – com as quais seus herdeirostiveram de se confrontar. Na seção seguinte, enfocaremos o modo comoLeontiev se confrontou com duas questões levantadas por Vygotski: a pri-

BAKHTIN outros conceitos-chave

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meira refere-se à teoria da significação. A segunda, à da atividade. Nos doiscasos, recorreremos à obra de Bakhtin a fim de compreender as dificulda-des encontradas e as tentativas que se desenvolveram para superá-las.

O ENRIQUECIMENTO DAS PALAVRAS

Os textos são conhecidos. De um lado, Vygotski escreve: “Desde o iní-cio o pensamento e a palavra não se estruturam, absolutamente, pelo mes-mo modelo. Em certo sentido, pode-se dizer que entre eles existe antes umacontradição que uma concordância. Por sua estrutura, a linguagem não ésimples reflexo especular da estrutura do pensamento, razão pela qual nãopode esperar que o pensamento seja uma veste pronta. A linguagem nãoserve como expressão de um pensamento pronto. Ao transformar-se emlinguagem, o pensamento se reestrutura e se modifica. O pensamento nãose expressa mas se realiza na linguagem” (Vygotski, 2001, p. 412). A lin-guagem modifica, assim, o pensamento.

Por outro lado, entretanto, Vygotsky observa que o sentido real de umapalavra é inconstante (Idem, p. 465). Conforme a operação de trabalho dopensamento, a significação varia:

Esse enriquecimento das palavras que o sentido lhes confere a

partir do contexto é a lei fundamental da dinâmica do significa-

do das palavras. A palavra incorpora, absorve de todo o contexto

com o que está entrelaçada os conteúdos intelectuais e afetivos e

começa a significar mais e menos do que contém o seu significa-

do quando a tomamos isoladamente e fora do contexto: mais,

porque o círculo dos seus significados se amplia, adquirindo adi-

cionalmente toda uma variedade de zonas preenchidas por um

novo conteúdo; menos, porque o significado abstrato da palavra

se limite e se restringe àquilo que ela significa apenas em um

determinado contexto. (Idem, 465-6)

Portanto, o pensamento também modifica a linguagem. A significação daspalavras desenvolve-se por proliferação na vida concreta e se enriquece graças àespecialização dos domínios em que a palavra é mobilizada. Mas, simultanea-mente, a estrita especificação da palavra empobrece a significação. Há, portan-to, um “devenir” da palavra, em parte imprevisível, na ação e no pensamento.

221

É por isso que, mesmo havendo de fato um “processo vivo de nascimentodo pensamento na palavra” (Idem, p. 484), esse processo é inseparável de umprocesso vivo: o de um vir a ser da palavra na comunicação entre os homense em cada um deles. Tomando forma na vida, a palavra leva o pensamento aseu total acabamento. A significação real da palavra nasce no ponto de conta-to entre sua significação formal e o sentido que ela retira de uma situação.Destarte, a significação real é um terceiro termo, uma recriação verbal situa-da; de algum modo, uma morfogênese que assegura o dinamismo das signifi-cações formais por meio do enriquecimento das palavras. A linguagem é vivae a língua também o é, dado que são, ao mesmo tempo, o meio e o objeto deuma atividade linguageira dialógica que as renova.

Aqui, podemos fazer duas observações que se referem à concepção quepodemos ter dos mecanismos do pensamento. Para Vygotski, a interiorizaçãoda palavra é, simultaneamente, exteriorização do pensamento. A objetivaçãodo pensamento realiza-se por meio de uma subjetivização da palavra. Pode-mos falar, então, da realização do pensamento pessoal nas palavras do ou-tro, palavras essas que o sujeito, ao mesmo tempo em que as retoca, devefazer suas. O pensamento se exterioriza na palavra, delimitando sua signifi-cação, e, simultaneamente, a palavra é interiorizada, fixando o pensamen-to, graças ao apoio que ela lhe oferece. Assim, quando Vygotski fala doprocesso vivo de nascimento do pensamento na palavra, desse modo, eleressalta que, para o sujeito, a exteriorização do pensamento é apenas a outraface da interiorização da palavra, e vice-versa.

De forma mais ampla, o desenvolvimento psicológico não é apenas ainternalização dos instrumentos sociais, dado que é, ao mesmo tempo,externalização do pensamento pessoal vivo. O conceito de apropriação dáconta, de maneira adequada, desse processo, freqüentemente mal descritopela noção de interiorização. O que o sujeito aprende só é verdadeiramenteapropriado por ele quando o objeto da aprendizagem é subvertido, a fim dese tornar um meio a serviço de sua atividade vital: os instrumentos sociaissão apropriados por ele, quando são apropriados para ele. Como observaRivière (1990, p. 92), a aprendizagem deve transformar-se em desenvolvi-mento. Finalmente, o desenvolvimento – tanto intelectual quanto afetivo –é a transformação das aprendizagens e das experiências em meios para sus-tentar as paixões. Acreditamos que esse é o fio condutor da obra de Vygotski:

Psicologia YVES CLOT

BAKHTIN outros conceitos-chave

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“São exatamente as paixões que se constituem como o fenômeno funda-mental da natureza humana” (Vygotski, 1998, p. 267).

A respeito do problema das relações entre internalização e externalização,podemos observar a proximidade entre as preocupações de Vygotsky e as deBakhtin. Para este, todo discurso recupera um outro discurso e se dirige aum outro (Peytard, 1995, p. 38). Mesmo a linguagem interior é um “dis-curso relatado”. Assim, “a procura da própria palavra é, de fato, procura dapalavra precisamente não minha mas de uma palavra maior que eu mesmo;é o intento de sair de minhas próprias palavras, por meio das quais nãoconsigo dizer nada de essencial” (Bakhtin, 2002, p. 385). Mas, simultanea-mente, “compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra(Bakhtin, 1997, p. 132). Dito de outra forma, o sujeito existe para si mes-mo, não negando as interações com os outros, mas pela via de seu vir a ser.Conseqüentemente, não existe nada “que não convoque uma resposta eque já tenha dito sua última palavra” (Bakhtin, 1970, p. 343). Aliás, é issoque sempre faz com que a responsabilidade do sujeito esteja engajada emcada um de seus enunciados (Bakhtin, 2003a).

BAKHTIN INDO ALÉM DE SAUSSURE

A proximidade que acabamos de assinalar entre Bakhtin e Vygotsky deveser, entretanto, questionada. A comparação é muito útil, se quisermos com-preender melhor o que pôde incomodar, na própria herança de Vygotsky, oque o desenvolvimento da teoria da significação de Leontiev incomodou naherança de Vigotsky. Assim, esse é o primeiro problema que abordaremos.

Para isso, uma volta à obra de Bakhtin parece-nos indispensável. Segundoo autor, a língua não é interiorizada. Não é preciso partir da interiorização dalíngua, mas da produção verbal do sujeito entre os outros, a fim de se apreen-der como o dado da linguagem se transfigura em criado. De fato, de acordocom o autor, a palavra existe sob três formas: a palavra neutra do dicionário,a palavra do outro, a palavra própria. Não aplicamos as palavras do dicionáriona vida. A experiência verbal do homem é um processo de assimilação maisou menos criativo das palavras de outro e não das palavras da língua em simesmas. Nossa fala é repleta das palavras do outro e nossos enunciados se

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caracterizam, em diferentes graus, pela alteridade ou pela assimilação, porum emprego idêntico ou demarcado, retrabalhado ou desviado das palavrasdo outro (Bakhtin, 1984, p. 296). Para agir no mundo, vivemos no universodas palavras do outro e toda a nossa vida consiste em orientarmo-nos nesseuniverso, a enfrentarmos um duro combate dialógico nas fronteiras flutuan-tes entre as palavras do outro e as palavras próprias (Idem, pp. 363-4). “Alinguagem não é um meio neutro que se torne fácil e livremente a proprieda-de intencional do falante, ela está povoada ou superpovoada de intenções deoutrem. Dominá-la, submetê-la às próprias intenções e acentos é um proces-so difícil e complexo” (Bakhtin, 1988, p. 100).

Para chegar a isso, o sujeito não se encontra sozinho diante da língua,abandonado à sua fala, isolado. Beneficia-se do fato de que as palavras dooutro têm uma vida dupla. Elas vivem no curso inesperado e imprevisíveldo desenvolvimento das trocas verbais, mas, ao mesmo tempo, pertencem afuncionamentos sociais previsíveis e esperados, em que o sujeito pode seapoiar. Bakhtin designa essa organização social preexistente das palavras dooutro com o conceito de gênero do discurso. Os gêneros prefiguram asações linguageiras possíveis (Schneuwly, 1994, p. 161; Bronckart, 1996).Assim, as relações entre o sujeito, a língua e o mundo não são diretas.Manifestam-se em gêneros de discurso disponíveis, dos quais o sujeito devedispor para entrar na comunicação. “Se os gêneros do discurso não existis-sem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vezno processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cadaenunciado, a comunicação discursiva seia quase impossível” (Bakhtin, 2003,p. 283). Esses gêneros fixam, em um determinado meio, o regime social defuncionamento da língua. Trata-se de um estoque de enunciados espera-dos, protótipos das formas de dizer ou de não dizer em um espaçosociodiscursivo. Podemos falar, a partir de Fréderic François, de proto-sig-nificações (François, 1998, p. 9). Esses enunciados pré-construídos e esta-bilizados retêm a memória impessoal de um meio social em que são autori-dade, dão o tom. Traem os subentendidos que regulam as relações com osobjetos e entre as pessoas, as tradições adquiridas que se exprimem e sepreservam sob o envelope das palavras. Pré-municiam o sujeito contra ouso deslocado dos signos em uma determinada situação. Um gênero estásempre ligado a uma situação no mundo social.

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BAKHTIN outros conceitos-chave

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Com esse conceito, Bakhtin critica a Lingüística de Saussure. Para este,conforme sabemos, a língua se opõe à palavra como o social ao individual.De um lado, a língua prescrita, o signo arbitrário; de outro, a liberdade realdo locutor em situação. Bakhtin trabalha para refutar essa bipolarização davida da linguagem entre o sistema da língua única, de um lado, e o indiví-duo do outro (Bakhtin, 1978, p. 94; François, 1998, p. 120; Peytard, 1995,pp. 34-6). Ele descobre, entre o fluxo perpétuo da fala real em situação e asformas de línguas normalizadas de Saussure, outras formas estáveis, que sediferenciam profundamente das formas estáveis da língua: as formas sociaisdo gênero do enunciado em que a fala se ordena em enunciações-tipos. Oquerer-dizer de um sujeito se realiza – de modo pior ou melhor – na esco-lha de um gênero. Falamos na forma de gêneros variados, sem mesmo sus-peitar de sua existência. Moldamos nossa fala em determinadas formas pre-cisas de gêneros estandartizados, estereotipados, mais ou menos flexíveis,plásticas ou criativas.

Esses gêneros, que são as falas sociais em uso numa situação, nos sãoquase dados, assim como nos é dada a língua materna. Os gêneros organi-zam nossa fala, assim como as formas gramaticais. Na melhor das hipóteses,o sujeito recria-os, mas não os cria. Mais que dados, eles lhe são empresta-dos, para que possa falar e ser compreendido pelos outros. Não podemosproduzir um enunciado que não faça referência a um outro enunciado domesmo gênero. Portanto, a fala não é um ato puramente individual opostoà língua como fenômeno social. Há um outro regime social da linguagem,organizado de acordo com as formas sociais catalogadas da fala em umdomínio de atividades. Bakhtin fala de “diapasão lexical” próprio de ummeio e de uma época (Bakhtin, 1970, p. 279). Ou seja, “ao falante não sãodadas apenas as formas da língua nacional (a composição vocabular e aestrutura gramatical) obrigatórias para ele, mas também as formas de enun-ciado para ele obrigatótórias, isto é, os gêneros do discurso: estes são tãoindispensáveis para a compreensão mútua quanto as formas da língua”(Bakhtin, 2003, p. 285).

Bakhtin acrescenta que “é preciso dominar bem os gêneros para empregá-los livremente” (Idem, p. 284). É a esse preço que os sujeitos podem aí seliberar dos gêneros, não os negando, mas por via de sua metamorfose, dei-xando aos gêneros, então, sua vitalidade, isto é, sua eficácia no mundo. Os

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gêneros, portanto, são, ao mesmo tempo, restrições e meios de agir no uni-verso das palavras do outro; recursos para fazer valer nossas intenções nastrocas verbais com os outros. Mas também são o instrumento de seleção dasformas por meio das quais podemos ver e conceituar a realidade, um sistemaimpessoal de meios e de métodos que asseguram ao sujeito o controle e aavaliação das finalidades de sua ação singular, mesmo que ele não conheçatodos os recursos e todas as ramificações dos gêneros. Um instrumento, escre-ve B. Schneuwly (1994, p. 158), que faz existir as atividades linguageiras forade sua realização única, que as prepara, as sustenta e as orienta. Podemosacrescentar que isso se opera de acordo com uma lógica interna e encadea-mentos cuja execução pemite ao sujeito economizar muito esforço para “en-trar” na troca verbal. As leis do gênero precedem a enunciação, delimitando –mas nunca de modo definitivo – o campo dos enunciados possíveis e impos-síveis, sua conexão, sua sucessão. Elas o liberam de um trabalho redundante enão deixam-no se perder na situação. Sem esconder o fato de que um gêneroanêmico pode tornar-se um peso morto para o sujeito, lembremos que ele é,senão uma âncora necessária, uma força viva, dado que, em suas formas,conservam-se os laços de um grupo (Clot, 2005).

BAKHTIN INDO ALÉM DE VYGOTSKI?

Acabamos de escrever: nunca de modo definitivo. Com efeito, entre alíngua e a vida, as leis do gênero tomam forma na atividade que, em troca,não termina de retocá-los. Segundo Bakhtin, é preciso então olhar um gê-nero não como uma norma, mas como um sistema de variantes em movi-mento, cujos atritos conservam a heterogeneidade e as dissonâncias do gê-nero. Este só se revela mesmo nas diversas variantes que se formam nodecorrer de sua história. Quanto mais um sujeito tiver pontos de contatoscom essas variantes, mais rico e mais ágil será seu manejo do “diapasãolexical” do gênero. É, portanto, uma arena para a significação das palavras,o “atelier” social de sua “finalização”; sendo que o inacabamento do própriogênero implica que cada sujeito possa nele colocar algo de seu (Brait, 1996).

Destarte, graças aos gêneros de discursos mobilizados nas trocas ver-bais, afrontam-se a significação literal das palavras, a significação dessas

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palavras no gênero – estilhaçado entre suas variantes – e tomado no discur-so do outro, e, enfim, a significação dessas palavras para mim, eventual-mente emprestada de um outro gênero. Logo, a significação é um conflitode significações que mantém a palavra viva entre as palavras, que conservaregras a plasticidade das regras, que oferece à língua os recursos do gênerode discurso em que ela vive.

Nesse ponto, contudo, a precisão é necessária. O ponto de vista deBakhtin não é relativista. É histórico. Vê a diferenciação da significação nãoapenas no espaço da comunicação presente, mas no tempo, sob o ângulo deseu vir a ser, de seu desenvolvimento: “A vida da palavra é sua passagem deum locutor a um outro, de um contexto a um outro, de uma coletividade auma outra, de uma geração a uma outro” (Bakhtin, 1970, p. 279). Se inte-ressa-se pela polissemia da palavra é como reavaliação permanente de suaunicidade. Para ele, a significação real da palavra se libera de sua significa-ção literal no contato com a vida; mas, longe de anular essa significaçãoformal, ela a coloca em movimento, a deforma, a transforma, a povoa dereavaliações sucessivas no decorrer de uma evolução histórica da qual apalavra, finalmente, guarda a memória. Há uma história da significação daspalavras que se solta, passando de gêneros em gêneros, aumentando oudiminuindo seu raio de ação, retrabalhando suas vizinhanças, a fim de reto-mar a formulação de F. François (1998). Como Bakhtin, podemos dizerque a significação só é eterna enquanto evolução eterna da significação:“Há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis. No entanto,nem por isso a palavra deixa de ser una. Ela não se desagrega em tantaspalavras quantos forem os contextos nos quais ela pode se inserir (Bakhtin,1997, p. 106). Ela serve para falar de alguma coisa, serve a um tema e, logo,“a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema edilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma deuma nova significação, com uma estabilidade e uma identidade igualmenteprovisórias (Idem, p. 136).

Vygotski não chega até aí. De fato, nada contradiz em seu trabalho adescoberta bakhtiniana dos gêneros sociais do discurso. Mas ele pára noinício de uma possibilidade não realizada: uma concepção da significaçãocomo intersignificação, zona de interseção e de cruzamento. As palavrastambém têm suas zonas de desenvolvimento potencial. Parafraseando Wallon,

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poderíamos escrever: não há apropriação rigorosa e definitiva entre a pala-vra e o gênero de enunciados em que ela toma lugar. Diversos gêneros dediscurso podem então se recortar no seio da mesma palavra e até mesmo seencontrar em conflito (Wallon, 1971, pp. 288-9). É isso que mantém apalavra viva e confere um vir a ser possível à sua significação literal. Estanão se dissolve em nenhum dos contextos que atravessa. Ao contrário, elase refrata e, finalmente, pode se liberar deles. A significação da palavra podesair aumentada dessa liberação dos gêneros e das trocas verbais, elevada aum nível superior, sem ser possível, entretanto, evitar o risco de que elavolte rebaixada desses deslocamentos. A palavra, escreve Bakhtin, “não es-quece nunca seu trajeto, não pode se desembaraçar inteiramente dos con-textos concretos de que faz parte” (Bakhtin, 1970, p. 279).

Desse modo, o uso da palavra na atividade linguageira introduz o sujeitonos conflitos de significação de que a palavra é arena. Convoca o locutor paraa interferência dos discursos sociais, implica-o em pertencimentos simultâneose o expõe ao conjunto dos equívocos que a história deixou persistir. O sujeitose encontra dividido, preso na pluralidade dos mundos de significação, naintersecção dos quais, a fim de escapar de sua desarmonia, ele “joga” com unspara se libertar dos outros e vice-versa. Ao mesmo tempo, palavra neutra dalíngua, palavra impessoal dos gêneros sociais, palavra do interlocutor imedia-to; significação literal e significação superpovoada, a significação é polifônica.Sem poder se livrar disso – a não ser pela loucura –, o sujeito, noentrecruzamento dessas diferentes classes de significações, deve fazer ouvirsua voz, acrescentando, assim, às palavras do outro, às do gênero e às palavrasneutras do dicionário, a significação real da palavra para ele mesmo, na trocaverbal particular em que se encontra: o sentido de sua palavra para ele mesmonas palavras dos outros e na língua. Preso nas divisões sociais da siginificação,ele se expõe a colocar algo de seu na palavra.

GÊNEROS E INSTRUMENTOS

Vygotski não chega até essas conclusões. Duas conseqüências resultamdisso, a nosso ver. Ele não retira, de suas primeiras reflexões sobre a vida daspalavras e da dinâmica das significações, as conseqüências lógicas para sua

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concepção do instrumento. A significação, como vimos, é o objeto de umahibridificação social. É heterogênea e composta por diferentes elementos.Como instrumento psicológico comum, os gêneros de discurso pré-organi-zam as significações verbais, proto-significações simultaneamente alargadase estreitadas em um determinado meio sociodiscusivo. Formam passarelassociais entre significações literais e os modos de pensar e de agir nesse meio.Vygotski não define assim os instrumentos psicológicos. Os signos que eleintercala entre os sujeitos e que reencontra e segue no próprio sujeito nãosão “tomados” em gêneros sociais que asseguram o vir a ser conflitual dasignificação. A significação, na teoria dos instrumentos psicológicos, é bas-tante “amorfa”. Conforme indica o próprio autor, ela se encontra posta“entre parêntesis”, em seus primeiros trabalhos (Vygotski, 1968).2 Em Pen-samento e linguagem, não é mais o caso. A significação é vista em sua mobi-lidade e em seu dinamismo. Mas esse dinamismo, a nosso ver insuficiente-mente referido à intersiginificação social dos discursos e à polifonia dosambientes sociodiscursivos, não chega a renovar a abordagem dosinstrrumentos psicológicos, cuja vida ainda fica muito “a-social”. O concei-to de gênero proposto por Bakhtin parece poder nos ajudar a fazer essarenovação, na medida em que o gênero é um meio de ação para o sujeitodotado de uma vitalidade social interna.3

Esse ponto é importante, pois também nos leva a reconsiderar a aborda-gem dos instrumentos técnicos e não apenas dos psicológicos. Rabardelesforçou-se para desenvolver a problemática de Vygotski no domínio dosinstrumentos técnicos (1995). Ele mostra, em Les hommes et les technologies,a solidariedade teórica dos dois problemas. A nosso ver, não existem apenasgêneros de enunciados. Acreditamos poder postular que há, mais ampla-mente, gêneros sociais de atividades (Clot, 1999), que contêm não apenasgêneros de discurso, mas também gêneros de técnicas: estes fazem a ponteentre a operacionalidade formal e prescrita dos equipamentos materiais e osmodos de agir e de pensar de um meio social. Não constatamos apenas apresença de enunciados deslocados ou, ao contrário, acordados em um meiosocial, todavia também a de gestos e de atos materiais e corporais mal oubem-vindos. De modo geral, encontamos neles uma gama de atividadesimpostas, possíveis ou proibidas. As expectativas sociais de um gênero –freqüentemente subentendidas – dizem respeito tanto às atividades técni-

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cas e corporais quanto às atividades linguageiras. O gênero de atividadesrelacionado a uma situação e a um meio, estabiliza e retém – nunca deforma definitiva – os modos comuns de tomar as coisas e os homens. Sãoatividades pré-organizadas que autorizam e dão o tom para se agir nessemeio. Entre elas, o escopo normativo de um gênero técnico4 não é menordo que o de um gênero linguageiro. Além disso, os recursos que o gênerode atividades fornece aos sujeitos para controlarem seus atos dirigidos aosobjetos também não têm nada a dever aos que um gênero de discurso for-nece. Proto-significações e proto-operações são, aliás, freqüentementeentrelaçadas, formando a textura do gênero e de suas variantes.

Finalmente, por intermédio de seus “dizeres” e de seus “retoques” co-muns e graças também às regras implícitas que o tramam, um gênero socialde atividades retém a memória impessoal de um meio.5 Ele é, ao mesmotempo, o instrumento técnico e psicológico desse meio de vida. Pelo domí-nio do gênero próprio a uma situação, cada sujeito pode predizer – aomenos parcialmente – os resultados de sua ação, que ele antecipa com ogênero. O gênero o torna hábil. Mas também pode fazê-lo inábil, se estiverdesajustado e perder sua eficácia. Seguem-se então mal-entendidos na co-municação e fracasso na ação. Um retoque se impõe. Nessa perspectiva,pode-se considerar que a operacionalidade técnica não é mais constanteque a significação das palavras. Ela tem uma história, um vir a ser. Não éamorfa. Também não pode ser colocada entre parêntesis, assim como asignificação, e constitui, com esta, o sistema dos órgãos sociofuncionaispreexistentes à atividade pessoal. Luria, a quem se deve penetrantes estudossobre a questão dos órgãos funcionais da ação, pôde afirmar, por exemplo,que a significação das palavras “reflete os sons que a compõem. Esse é umoutro aspecto da transferência de sentido das palavras – transferênciasinestésica determinada por suas características sonoras. A maioria das pes-soas negligencia a ressonância das palavras para se ater apenas à sua signifi-cação convencional” (Luria, 1995, p. 252). Entretanto, a psicologia do tra-balho igualmente nos ensinou a considerar os ruídos que cercam as máqui-nas – sua ressonância – como índices de operacionalidade para os que seservem deles um determinado meio (Clot, 1998). Logo, a sonoridade daspalavras também pertence ao gênero de uma situação. Também tem suahistória, sua geografia, seus acentos.

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LEONTIEV INDO ALÉM DE VYGOTSKI?

Portanto, a nosso ver, Vygotsky não pôde levar tão longe quanto Bakhtina sua teoria da significação, o que implica, como primeira conseqüência,uma teoria instrumental inacabada. A segunda conseqüência talvez seja ade que, sem querer, ele tenha deixado a via aberta para uma interpretação“fria” da significação, reduzindo-a muito rapidamente a um patrimôniocristalizado a ser transmitido. Mais precisamente, a dissonância tão propí-cia à criação, que Bakhtin analisou, não se encontra na obra de Leontiev.Nesse ponto, Leontiev, além de não desenvolver as possibilidades contidasna herança de Vigotsky, também, em parte, as neutraliza. Voltaremos a isso,mostrando que, de um certo ponto de vista, Leontiev fica abaixo de Vygotskiem relação ao problema da significação. Mas, primeiro, queremos insistirainda sobre um outro aspecto, sustentando a tese de que ele vai além deVygotsky em relação ao problema da atividade. Mais especificamente, pare-ce-nos que ele soube retirar todas as conseqüências das últimas reflexões deVygotsky sobre as relações entre o pensamento e a atividade.

Vygotski nos deixa, no final de Pensamento e linguagem, com uma metá-fora meteorológica em que os elementos desfavoráveis se acumulam: “achuva, as nuvens e o vento” (Vygotski, 2001, p. 479). Se, como ele susten-ta, o pensamento é uma nuvem que deixa cair a chuva das palavras, issopode nos levar à idéia de que o que leva a pensar – o vento – não pode sercompreendido a partir do pensamento. Segundo Vygotski, o pensamentonão é a última instância no processo da existência humana. O pensamentonão nasce em um outro pensamento, mas nas nossas necessidades, nossosinteresses, nossos motivos: planos de fundo do pensamento. Assim, não secompreende o pensamento a partir dele mesmo, mas como um ato no mundoe sobre si. Um ato para viver:

Se separarmos o pensamento da vida, da dinâmica e das necessida-

des, se o privarmos de toda a realidade, fechar-se-ão diante de nós

todos os caminhos de descoberta e de explicação das propriedades.

Privaremos o pensamento de seu papel principal, que é o de deter-

minar nosso modo de viver e nosso comportamento, o de trans-

formar nossas ações, de orientá-las, de nos liberar da situação con-

creta. (Vygotski, 1994, p. 229).

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A nuvem do pensamento é deixada por Vygotsky aos ventos da ativi-dade, no que ela tem de mais vital. Conflitos, paixões e mobilização sub-jetiva “governam”-lhe o curso e lhe dão sua “causa profunda” (Vygotski,2001, p. 480).

Para sustentar essa concepão e a fim de testar a dependência dinâmicado intelecto e do afeto em relação aos movimentos da atividade, Vygotskiretomou, modificando-as, as experiências desenvolvidas por K. Kevwin sobreos processos de saturação no curso da atividade. Damos uma tarefa de dese-nho a uma criança. Quando a criança pára e manifesta abertamente signosde saturação e das reações afetivas negativas em relação ao trabalho, explicaVygotski, “tentamos levá-la a prosseguir em sua atividade, de modo a saberpor que meios seria possível obter isso dela” (Vygotski, 1994, p. 231). Po-deríamos, como nas mesmas experiências desenvolvidas com crianças defi-cientes, “renovar a situação”, trocando, de cada vez, os lápis por pincéis, opapel pelo quadro, os gizes negros por gizes de cor. Isso tudo para tornar asituação mais atraente e prolongar a atividade. Mas, para a criança “nor-mal”, explica Vygotski, isso não é necessário. É suficiente modificar o sen-tido da situação sem modificar nada dela. Na experiência, foi suficientepedir à criança que havia interropido o trabalho para mostrar a uma outracriança o modo como ela deveria fazer. Tornando-se a própria criança aexperimentadora e instrutora, ela continuou o trabalho precedente; mas asituação para ela tomara um sentido inteiramente novo. Então, tirou-se dacriança todo material que poderia fazer a situação atraente, até deixá-laapenas com “um miserável pedaço de lápis”. O resultado foi significativo:“O sentido da situação determinava totalmente, para a criança, a força danecessidade afetiva, independentemente do fato de que essa situação perdiaprogressivamente todas as propriedades atraentes vindas do material e desua manipulação direta” (Idem, pp. 231-2). Assim, conclui o autor, chega-mos a influenciar “do alto, por afetividade” o desenvolvimento da criança.O que não foi o caso com a criança deficiente.

Não acrescentaremos nada a essa análise, se interpretarmos essa meta-morfose do sentido como o produto de uma transformação da atividade dacriança, mesmo quando o objetivo da ação não é modificado. O desenhocontinua sendo o resultado a ser atingido, mas a criança está disposta aperseguir esse objetivo com um custo instrumental elevado (ela perde as

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vantagens de usar um material melhor), sob a influência de um novo moti-vo subjetivo, constituído como um eco ao pedido do adulto. O reconheci-mento de uma nova posição social e pessoal é subjetivamente vital para acriança. Impulsiona a criança a se sobrepujar. Observemos que esse sobre-pujar acontece quando a atividade da criança muda de direcionamento.Seu destinatário não é mais só o pesquisador, mas também outra criança,para quem ela se torna instrutora. Trata-se de uma outra atividade, mesmoque se realize na mesma ação de desenhar. A ocupação da criança obedece apré-ocupações diferentes – retomando uma formulação de Curie e Dupuy(1994) – e, desta forma, ela muda de sentido. A dialética entre ocupação epré-ocupação está no centro da experiência aqui relatada.

De fato, é a análise da atividade e, mais precisamente, do desenvolvi-mento e dos impedimentos dessa atividade que retém a atenção de Vygotskino final de sua vida. Leontiev retoma esse problema e, a nosso ver, inovanessa direção. Tomando a atividade como unidade de base, ele possibilitaum recentramento da pesquisa psicológica no problema do sentido e nãosimplesmente no da significação. Decerto, os elementos da conceitualizaçãodesse problema já estão presentes em Vygotski. Isso está particularmenteclaro em A teoria das emoções, obra na qual ele cita um texto de Brett, de1928, em que esse autor emprega a palavra sentido “para designar todaforma de relação entre uma determinada situação e outras situações, sejamelas rememoradas ou antecipadas” (Vygotski, 1998, p. 256). Leontiev con-centrará sua atenção nesse fenômeno (Leontiev, 1984, pp. 111-21). Paraele, o sentido coloca a consciência em relação com a vida. É uma relaçãoentre as incitações vitais que impulsionam o sujeito a agir e aquilo para oque sua ação imediata está conscientemente voltada. Uma relação instávelentre o vento e as nuvens. Não há, segundo Leontiev, coincidência entre oobjetivo imediato da ação do sujeito e o motivo que o incita a agir, mesmoinconsciente. Enquanto o objetivo da ação é a representação cognitiva doresultado a ser atingido – o que a planifica –, o motivo se refere ao que évital para o sujeito e suas pré-ocupações, é a acentuação subjetiva da ação. Adiscordância entre eles pode se revelar de tal modo que o sucesso no alcancede um objetivo pode ser vivido pelo sujeito como uma derrota psicológica.Sem perder sua eficácia intrínseca realizada, a ação pode perder ou não seusentido psíquico real.

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Essas “variações” sobre o sentido são um aporte muito original deLeontiev para a psicologia, pois, assim, ele aborda a atividade a partir dosconflitos internos que a animam e lhe garantem seu dinamismo. Dessemodo, na perseguição de um objetivo, uma ação pode se encontrar diantede resultados que se mostram mais vantajosos para o sujeito do que o mo-tivo inicial que o impulsionava a realizá-lo. Esse inesperado pode, então,tornar-se a fonte de uma outra mobilização psíquica, revalorizando o obje-tivo anteriormente perseguido, colocando-o a serviço de novas preocupa-ções. A atividade é, portanto, construtora de novos motivos que o sujeitodescobre depois da experiência – subjacentes a seu pensamento –, nascidosnão a partir dele mesmo, mas do real de sua atividade que, em parte, lheescapa. Como vemos, a atividade do sujeito no mundo mantém ou fechasuas possibilidades, oferece-lhe ou não ocasião de se liberar, não negandoseus laços, e sim por meio de sua renovação. Entre laços e desligamentos, osujeito se desfaz e refaz, ainda que não diretamente.

Todavia, para Leontiev, a atividade não é apenas uma relação entremobilização subjetiva e planificação cognitiva. Não é apenas um conjuntode motivos novos, que podem ser descobertos ou repelido pelo sujeito ouque ele pode redescobrir para seu corpo defensivo. Os objetivos seriamapenas “visões do espírito”, se não encontrassem, em técnicas de ações, eminstrumentos gerados, o modo de se realizarem e de também se transforma-rem. Na atividade, a ação e as operações que a tornam eficaz também bus-cam a eficiência: a economia dos meios a fim de se atingirem os objetivos éaí decisiva. Encontra-se aqui uma segunda fonte da disponibilidade psico-lógica. Depois do sentido, a eficiência – mesmo que Leontiev não empre-gue esse conceito – torna possível a liberação. Menos tempo para chegar aoobjetivo é a possibilidade de outros objetivos, além dos que se perseguia atéentão. Dito de outra forma, em nossas palavras, a eficiência da ação e seusentido são as fontes motoras do desenvolvimento das atividades (Clot,1998), abrindo, alternativamente, não uma, mas duas zonas de desenvolvi-mento potenciais de natureza diferente (Clot, 1997, p. 53).

A principal conseqüência que se pode tirar do trabalho de Leontievtalvez seja a que diz respeito às relações entre subjetividade e atividade: osujeito se libera das determinações de sua atividade, não as negando, maspor meio de sua reabertura. Ele é estruturalmente “deslocado”. É como se a

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subjetividade fosse “emprestada”. De fato, poderíamos dizer que ela vence aatividade graças às armas que empresta dela e, aperfeiçoando-as, obriga essamesma atividade a ir além dela mesma. Aliás, observando-se esse centro daação em que a última palavra não é jamais dita, podemos compreender porque G. Canguilhem pôde afirmar que a subjetividade é apenas a insatisfa-ção, acrescentando que isso talvez seja a própria vida.

Certamente, talvez estejamos, nesse ponto, mais além de Leontiev. En-tretanto, de qualquer modo, há em sua obra um autêntico descentramentoem relação a Vygotski. É muito real. A teoria da atividade sai daí enriquecida.A elaboração das questões do sentido, como componente interno da ativi-dade, assim como a abordagem original da dinâmica operatória, anteci-pam, a nosso ver, as tarefas que hoje são as nossas, em psicologia, quandovamos além da oposição muito desgastada entre psicologia cognitiva e psi-cologia clínica.

Para Leontiev, “o problema da formação e do desenvolvimento do pen-samento não pode ser inteiramente reduzido ao da aquisição dos conheci-mentos, dos saber-fazer e dos hábitos mentais. Uma relação, um sentido,não são coisas que se pode aprender” (Leontiev, 1984, p. 319). Leontievsabia, desde sua colaboração com Vygostki, do impacto da cultura e dassignificações sociais no funcionamento psíquico, contudo seu ponto de vis-ta era claro: “Em si mesmas, isto é, abstraídas das relações internas do siste-ma da atividade e da consciência, as significações e as operações que aí seencontram cristalizadas não são, de modo algum, o objeto da psicologia”(Idem, p. 158). Seguimo-lo sem hesitação nesse ponto, pensando tambémna formulação bakhtniana: “O sentido não pode ser dissolvido no concei-to” (Bakhtin, 1984, p. 382). Lembremos ainda, por sua clareza, esse texto:“O sentido não está de forma alguma contido em potência na significaçãoe só pode aparecer na consciência a partir da significação. O sentido é gera-do não pela significação, mas pela vida” (Idem, pp. 311-2). Há um radica-lismo do sentido pessoal em Leontiev, uma subjetividade agentiva que, aomesmo tempo, nunca volta as costas à eficácia da ação no mundo.

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LEONTIEV AQUÉM DE VYGOTSKI?

Entretanto, é essa radicalidade do sentido pessoal que gostaríamos dequestionar, para finalizar. De fato, talvez seja isso – a relação entre sentidoe significação – que faz Leontiev enfraquecer o poder da herança Vygotskiana.Aliás, sua abordagem da significação está muito afastada da polifoniabakhtiniana. Tentamos, mais acima, aproximar esta última da teoria da sig-nificação que Vygotski deixou inacabada. E como situar Leontiev? Para ele,a significação conserva e cristaliza a atividade passada. São os objetos queguardam neles mesmos a atividade das gerações precedentes.

O indivíduo encontra diante de si todo um oceano de riquezas

acumuladas ao longo dos séculos por inumeráveis gerações de ho-

mens, únicos seres sobre nosso planeta que são criadores. As gera-

ções desaparecem e se sucedem, mas o que criaram passa às se-

guintes que, por sua vez, multiplicam e aperfeiçoam a herança da

humanidade. (Leontiev, 1975, p. 56)

Cabe à atividade presente reanimar essas cristalizações sedimentadas,“requentá-las”, desenvolvendo para isso “uma atividade que reproduz ostraços essenciais da atividade incarnada, acumulada no próprio objeto”(Idem, p. 57).

Mediante uma atividade adequada, o sujeito se reapropria do patrimônioda espécie. Verdadeiro para o instrumento, esse processo também vale paraa língua: “Aprender uma língua não é outra coisa que aprender a efetuarcom palavras as operações que estão historicamente fixadas em suas signifi-cações” (Idem, p. 59). Essa atividade adequada constrói-se no homem e nacriança por meio da mediação de suas relações com outros homens. Asaquisições da humanidade não lhe são diretamente dadas, mas apenasofertadas. A fim de fazer delas “os órgãos de sua individualidade”, o sujeitodeve passar pela intermediação de outros homens. “É por meio desse pro-cesso que o homem faz a aprendizagem de uma atividade adequada. Portan-to, esse processo é, por sua função, um processo de educação” (Idem, p. 62).Como vemos, a significação, nesse quadro, parece ter perdido muito de seudinamismo próprio. Até parece não ter, enquanto tal, importância psicoló-gica direta. Seja veículo neutro de uma atividade a ser transmitida, seja

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objeto de educação, ela não é vista nem como meio nem como objeto deuma criação. Em uma curta passagem de Atividade, consciência, personali-dade, considerada testamento científico de sua obra, Leontiev exacerba apolarização entre sentido pessoal e significação social. O que não pode de-saparecer, afirma ele, “é a não-coincidência ininterruptamente renovadaentre os sentidos pessoais portadores de intencionalidade, da parcialidadeda consciência do sujeito, e as significações ‘indiferentes’, que são a únicaforma sob a qual eles podem se exprimir” (Leontiev, 1984, p. 172). É porisso que a consciência individual é “o teatro de um drama”: de um lado,sentidos que não podem “se exprimir” em significações adequadas; de ou-tro, significações desprovidas de seu fundamento vital e que, por essa razão,sofrem, às vezes, uma perda de credibilidade torturante para a consciênciado sujeito (Idem, p. 173). Podemos sempre pensar que há nesse texto umaespécie de confidência biográfica. Sem dúvida, não se vive sem preocupa-ções na União Soviética do meio dos anos 1970. Entretanto, a contradiçãonão é tão forte em relação ao resto da obra, a ponto de se negar o estatutocientífico desse trecho: “Do ponto de vista psicológico, o sentido não émais reduzível à significação do que as categorias éticas o são em relação àscategorias aritméticas” (Idem, p. 324).

Daí, porém, a significação, longe de ser o centro social de inter-signifi-cação que dela faz Bakhtin, torna-se “indiferente”. Em si mesma, não temmais nada de equívoco. Não oferece ao sujeito essa polifonia simbólica eessa polivalência instrumental que envolvem as palavras e os instrumentosdas ressonâncias sociais que aí se afrontam. Não convoca o sujeito para omeio dessas discordâncias criativas ou destrutivas com as quais ele podejogar para se deslocar, circular entre mundos. Em uma palavra, as significa-ções existentes não expõem o sujeito a colocar nelas algo de seu. E, certa-mente, também o social não desempenha nenhum papel na teoria da signi-ficação de Leontiev. Ao contrário. Não hesita em retirar, a partir daconstatação de que muitos homens estão hoje privados das significaçõesessenciais cristalizadas no patrimônio social, a conclusão de que “a unidadeda espécie humana parece não existir” (Leontiev, 1975, p. 65). Entretanto,é exatamente o social que fica “no exterior” das significações: os gênerossociais da atividade – para retomarmos o conceito que propusemos acima,a partir dos trabalhos de Balkhtin – em sua obra parecem necrosados. Eles

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parecem ter-se tornado moldes e ter perdido sua capilaridade, ou qualquerheterogeneidade motora. As significações parecem ser neutras, ao abrigodos conflitos sociais que todavia nelas se refratam, desvitalizadas, como se odesenvolvimento de seu objeto estivesse submetido a uma lógica apenasinterna. O inacabamento do mundo histórico-social de onde elas retiramsua criatividade parece ter perdido muito de seus direitos.

Ora, falar não é apenas desenvolver com as palavras as operações quehistoricamente se fixaram em suas significações, como propõe Leontiev. Ése iniciar nos subentendidos de um gênero de discurso e se confrontar comas variantes do gênero que despedaçam a significação de cada palavra nacomunicação verbal. Portanto, é também dividir-se e agir, mesmo incons-cientemente, na significação: sobre uma significação, por meio de uma outrasignificação. É, assim, se liberar das operações já fixadas, com a ajuda deoutras operações, por via de sua conversão. É tomar parte da dinâmica dassignificações entre os gêneros sociais e em cada um deles; é, finalmente,participar de uma história em que a última palavra não é jamais dita: ahistória da palavra na palavra, como afirma Bakhtin (1997, p. 195).

Lendo Leontiev atentamente, às vezes temos a impressão de que a signi-ficação não contém jogo social, que está fora-do-gênero, muito “fria”. En-contramos muito pouca história da palavra na palavra e também muitopouca história do conceito no conceito. Conseqüentemente, a significaçãonão coloca o sujeito à prova, no sentido preciso do termo: uma situação quenão dá todas as respostas às questões que levanta e que, portanto, remete osujeito a si mesmo, tanto ao que diz respeito aos recursos quanto aos obstá-culos de sua história e aos de seu meio. De algum modo, a seus multi-pertencimentos, parece de fato, ao contrário, que, entre as significações“frias” que povoam o patrimônio e as significações vivas que superpovoamas palavras do outro, as contradições são muito poderosas para que o sujeitobusque dar um sentido pessoal a essas interferências. Certamente, ele podeaí se perder, já que deve aí se arriscar. Mas, como escreve Vygotski, “ohomem está pleno, a cada minuto, de possibilidades não realizadas ( Vygotski,1994). Mesmo incluindo o sofrimento nessas possibilidades, o último atonão é jamais realizado.

De fato, talvez possamos dirigir a Leontiev as objeções formuladas porBakhtin em relação ao objetivismo abstrato de uma determinada Lingüísti-

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ca. Ela considera, segundo Bakhtin, que a língua se transmite e, “como umabola, salta de geração em geração”. Contudo, “a língua não se transmite, eladura e perdura na forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivídulosnão recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente decomuncação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corren-te é que sua consciência desperta e começa a operar” (Bakhtin, 1997, p.108). Caso contrário, tratamos da língua materna apenas como uma línguaestrangeira.6 Dito de outro modo, a língua vive no comércio entre os ho-mens. Estabiliza-se em gêneros de discurso, que retêm a memória das tro-cas verbais a fim de que elas possam prosseguir. É nesses quadros que seopera a transfiguração do dado em criado e vice-versa.

Na verdade, Leontiev admite que as significações levam uma vida du-pla. Mas é para insistir no fato de que, entrando na consciência, elas sesubjetivizam. Tornam-se meio de exercício para a subjetividade, não apenasobjeto de conhecimento. Sem perder sua natureza histórico-social, reiteraele (Leontiev, 1984, p. 162). Assim, a vida pessoal das significações é dupla,porém, como vimos, intencionalidade e indiferença sempre se confrontam.

Sua vida social é a fonte externa desse face-a-face íntimo. Ora, nessasegunda vida, as significações são mais cristalizadas que realmente vivas, ahistória social real quase não penetra nelas. As fronteiras entre as normas dosocial objetivado e as variações intersubjetivas do social não são objeto do“duro combate dialógico” tão caro a Bakhtin. A ausência do conceito degênero como sistema de variação na significação se faz cruelmente aí sentir,transformando, de algum modo, a vida social em língua estrangeira.

PARA CONCLUIR

Leontiev e Bakhtin não dialogaram. O primeiro morreu em 1979, nomesmo país em que o segundo desapareceu em 1975. Aparentemente,morreram na mesma cidade, em Moscou. Ainda menos que entre Vygotskie Bakhtin, parece não ter havido o menor laço oficial entre eles. Entretanto,é prazeroso imaginar uma discussão entre esses homens em torno dessafrase de Leontiev: “A ação nasce da comunicação entre atividades (Idem,1984, p. 119). Levada até o fim, essa reflexão com acentos “dialógicos”

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poderia levar Leontiev e Bakhtin ao caminho de significações menos “indi-ferentes”. Mas temos o direito de refazer a história? Podemos apenas so-nhar. Para chegar a esse ponto, conservemos a idéia de que, aos limitesatingidos por Vygotski, Leontiev provavelmente realiza um avanço no cam-po da teoria da atividade. Talvez, porém, isso tenha sido feito ao custo deuma estagnação na teoria da significação, restringindo a importância de suainovação. No final das contas, como se vê, se Bakhtin não é psicólogo – epor essa mesma razão –, ele pode muito bem nos ajudar a o sermos mais.

NOTAS

1 Liev Semionovitch Vigotski (1896-1936)2 Tal avaliação crítica foi formulada por Vygotsky, em um texto retomado no Tomo 1 da edição

russa das Obras completas. Tratam-se das notas tomadas por A. Leontiev, durante um semináriorealizado em Moscou, em 1933 ou 1934. Esse texto, inédito em francês, nos foi indicado por F.Sève, que fez uma tradução de trabalho. Nós lhe agradecemos. Essa passagem também foi co-mentada por J. Friedrich (1997) e J. Y. Rochex (1997).

3 Sobre o conceito de gênero, que Bakhtin sempre relaciona ao conceito de estilo, um levantamen-to do estado da arte da questão está em curso, feito com D. Faïta: Yves Clot e Daniel Faïta,Genres et styles en analyse du travail. Concepts et ,éthodes, Travailler, n. 4, pp. 7-42, 2000.

4 Ce concept recouvre également les techniques du corps dont M. Mauss (1950/1985) a si bienmarqué l’importance..

5 Podemos mencionar aqui o penetrante estudo de M. Halbwachs (1968) sobre a memória coleti-va dos músicos, sobretudo nas páginas 191-2.

6 Em que ela também deve tornar-se, de algum modo, para que o sujeito possa se apropriar dela defato. No ensino, ela é objeto da atividade e não apenas meio para agir no mundo e com os outros.

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Realismo grotescoEduardo Peñuela Cañizal

Já faz alguns anos que Julia Kristeva1 se referia a Bakhtin como um pen-sador que soube contrapor, em seus estudos de obras literárias, a lógica dalinguagem à lógica da ciência. E mesmo se afastando do rigor técnico doslingüistas, teve o mérito de manipular uma escrita impulsiva e, às vezes, pro-fética, para abordar, entre outras, questões atinentes à construção do relato eà carnavalização. Para o pensador russo era necessário, em sua visão dialógica,substituir a fragmentação estática dos textos, pressuposto seguido pelos estru-turalistas ortodoxos, por um modelo em que os construtos textuais somenteconquistam sua integridade social quando se elaboram com a colaboração deoutros construtos textuais. A base de tal princípio deve ser procurada noconceito de que a palavra, enquanto unidade lexemática de uma língua, nãoé nunca um signo em estado definitivo. Ao contrário, a palavra é uma encru-zilhada de superfícies textuais sobre a qual se instala um dialogismo em queinterferem diversas escritas: as do destinatário, da personagem e dos contex-tos atuais ou anteriores ao construto semiótico tomado como referência. Nessecruzamento, entram em jogo, portanto, três dimensões fundamentais: as dosujeito, as do receptor e a constituída pelo conjunto de textos exteriores emcujo âmbito o diálogo se desenvolve.

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Claro que, além disso, convém lembrar que, nesse processo, o status dapalavra situa o sujeito e o destinatário no eixo da horizontalidade, e que apalavra circula nos entremeios de um corpus de signos em que a diacronia e asincronia se relacionam constantemente. Vale dizer, por conseguinte, que,sendo a palavra uma encruzilhada de superfícies textuais, ela assume o papelde uma unidade mínima do texto e seu status, como acertadamente assinalaKristeva, funciona como mediador que vincula o construto dos signos de quese compõe com o entorno cultural e, através desse procedimento, incorporatambém a função de ser um elemento regulador responsável pela mutação dadiacronia em sincronia. Em outros termos, essa cadeia de operações implica,ainda que de maneira genérica, um conceito de cronotopia, pois, de um lado,o status da palavra se define nos eixos da horizontalidade e da verticalidade e,de outro, a mutação da diacronia em sincronia se realiza na dimensão datemporalidade. Daí que, para Bakhtin, a descrição do funcionamento de umtexto deva estar submetida a um procedimento translingüístico em que acorporalidade demarca os enunciados e a gestualidade a enunciação. No casodos textos visuais, esses dois componentes conferem ao carnaval histórico eao realismo grotesco, eixos em torno dos quais giram os processos decarnavalização, características muito singulares de que, embora de maneiramuito concisa, tratarei neste trabalho.

Para equacionar a questão, é necessário, desde já, esclarecer alguns pon-tos. No que diz respeito à metalinguagem, entendida geralmente como umcódigo ideológico ordenado segundo as normas da lógica do simbólico, nãoserá aqui utilizada na acepção de uma espécie de referência epistemológicadestinada a legitimar o resultado obtido, por meio da leitura, pelo destinatá-rio de um texto concreto. Creio que a metalinguagem tem também a impor-tante função de levar o leitor desse texto a lugares do enunciado e da enunciação,em que esse leitor se depara com sentidos que dificilmente são perceptíveis,máxime quando a opacidade e a ambivalência interpõem as ressonâncias2 ouvozes do texto entre os sujeitos do discurso em que as práticas textuais seinserem. Além disso, a metalinguagem arquitetada, com mais ou menos pre-cisão, a partir de uma interpretação parcial da mundividência de Bakhtin, meservirá, nesta ocasião, não só para conferir certo grau de consistência no queconcerne ao estabelecimento de unidades que me facilitarão a leitura de umpequeno corpus feito de imagens, mas também como instrumento que me

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permitirá abordar metodologicamente a questão da ressonância das lingua-gens não-verbais que se imbricam em discursos, nos quais relatos, gestos,fragmentos da corporalidade e objetos, por exemplo, se ajustam para formaruma obra. Por isso gostaria de advertir que essas ressonâncias, sempre presen-tes nos processos dialógicos, constituem, no fundo, as bases de mais umatentativa de ler as mensagens visuais sem me afastar do princípio acatadopelos principais estudiosos de Bakhtin quando coincidem em que o Gargântuado pensador russo é, ao final de contas, uma reescrita de Rabelais, ou seja, oeco de uma sonoridade entranhável que Bakhtin escuta e emprega, para usaruma expressão de Zavala, como “voz de apoio”.

Assim, para, de um lado, fazer mais acessíveis meus balbucios analíticose, de outro, pôr em funcionamento parcelas da metalinguagem tal comodefinida acima, vou iniciar meu despretensioso exercício de leitura valen-do-me de dois termos fundamentais: carnaval histórico e realismo grotesco.Ambos os termos, apesar das nuanças que os diferenciam, significam, nopensamento bakhtiniano,3 carnavalização, pois ambos se reportam aos pro-cessos subversores da ordem social, política ou artística. O primeiro man-tém uma relação estreita com as festividades das carnestolendas – levandoem conta todas as conotações que esta vetusta palavra preserva – e com suasdiversas modalidades transgressoras que se exibiam sem recato durante osdias em que seus rituais eram fixados em calendário. O segundo também étransgressor, mas suas formas subversivas possuíam uma acentuadaambivalência, o que fazia com que tanto os gestos quanto as atitudes gro-tescas tivessem um papel de destaque que, no caso das festividades coletivasdo carnaval histórico, se diluía ou naufragava no corpo amorfo das massasque se entregavam à alucinação da folia. Certamente por isso, Bakhtin jul-gava que o realismo grotesco, ao demarcar de maneira mais precisa os enun-ciados, representava com mais propriedade seu entendimento decarnavalização, pois propiciava as condições indispensáveis para que essesenunciados ressurgissem e, de algum modo, regenerassem a corporalidadeinforme dos rituais típicos do carnaval histórico.

Durante as celebrações do bicentenário da Revolução Francesa era fácilencontrar nas bancas de jornal de Paris uma série de cartões-postais alusivosao evento. Em virtude de seu evidente espírito sarcástico e das transgressõesque, no geral, apresentavam em desenhos que desafiavam a censura oficial,

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comprei alguns deles, pois via em suas cenas o lado oculto de sucessos aosquais, em outros tempos da minha vida, quando minha infância era subme-tida às imposições perversas da “má educação”, não tinha acesso. Reproduzi-rei, para ilustrar o que me parece ser a sutil diferença entre o carnaval históri-co e o realismo grotesco, apenas dois desses cartazes. No primeiro (Figura 1),o corpo social, feito da integração de vários corpos individuais, possui, vistoem conjunto, uma série de enunciados cujas fronteiras, no espaço sintáticodeste texto visual, se dissipam e projetam na atmosfera da composição gráficatraços de um construto informe que dilapida o sentido monológico. Emcontrapartida, no segundo dos cartões (Figura 2), demarcam-se mais nitida-mente os enunciados e os corpos nele representados aparecem mostrandocom clareza as individualidades corporais das personagens. Na cena, as lin-guagens dos objetos, dos gestos e das palavras estabelecem um diálogo emque o sistema verbal funciona como sistema interpretante, o que, no fundo,determina um rumo de leitura que leva ao monológico. E digo isso porque seo leitor se orienta pelo significado das palavras e sua atenção não se fixa, porexemplo, na linguagem dos gestos, as ambivalências do texto em questão sedesmancham e, desintegradas, cedem lugar aos imperativos semânticos que alinguagem verbal assume na moldura do balão.

Figura 1 Figura 2

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Por outro lado, admitindo que Bakhtin propõe uma semântica do cor-po, a primeira figura deixa em evidência que ao corpo biológico se sobre-põe uma somática política, pois a transgressão, salvo engano, não recai so-bre a anatomia das personagens que marcham, sob o ritmo do carnavalhistórico, exibindo a genitália livre das amarras do recato, mas sobre osvalores simbólicos que, numa cultura hierarquizada, ostentam as partesanatômica da corporalidade simbólica quando se estabelece, por exemplo,que o rei é a alma e a cabeça mística do governo e os braços seus ministros.A composição deste cartão significa, entre outras coisas, que a estruturavisual por meio da qual se representa a corporalidade instaura um enuncia-do central cuja finalidade pode ser a de desmiolar os sentidos emblemáticossobre os quais os valores da mistificação foram construídos. Desse processoemerge, sem dúvida, o riso carnavalesco e, o que me parece mais instigador,um enunciado em que o cronotopo predominante se define, embora possaparecer paradoxal, no tempo da aventura, pois tudo leva a crer que o tempoda liberação dos seres humanos não mantém, com a vida real desses seres,um vínculo particularizado ou autobiográfico, como deixa explícito Bakhtinquando, para ilustrar essa modalidade cronotópica, se refere ao romanceclássico grego e exemplifica sua forma paradigmática dizendo o seguinte:

Um par de jovens em idade de casamento. A origem deles é desco-

nhecida, misteriosa (nem sempre); tal coisa não ocorre em Tatius,

por exemplo. Eles são dotados de beleza rara. São também excepcio-

nalmente castos. Encontram-se inesperadamente; via de regra numa

festa solene. Apaixonando-se repentina e instantaneamente, de um

amor, como coisas do destino ou uma doença sem cura. Entretanto

o casamento entre eles não pode ser realizado. Encontram entraves

que retardam e impedem o enlace. Os apaixonados são separados,

procuram-se, encontram-se; novamente se perdem, novamente se en-

contram. São freqüentes os entraves e as aventuras dos apaixonados:

rapto da noiva na véspera do casamento, discordância dos pais (se

existem), que destinam outro noivo ou noiva aos apaixonados (pares

falsos), fuga dos namorados, uma viagem, tempestade no mar, nau-

frágio, salvação espetacular, ataque de piratas, cativeiro e prisão, aten-

tado contra a castidade do herói ou da heroína...4

Bakhtin grifa nesse fragmento um conjunto de palavras com as quais épossível montar frases e a partir delas articular sentidos arquetípicos em

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que vislumbro reminiscências de um enunciado mais primitivo com o qualos significados dessas frases estabelecem relações dialógicas, pois vistos noâmbito de um construto metafórico-metonímico, esses dois jovens repre-sentam, através de suas múltiplas peripécias, a história da humanidade emsua interminável travessia rumo aos reinos longínquos em que se imaginaque a liberdade afincou definitivamente suas raízes. Mas, apesar da variabi-lidade dos contratempos, esses dois jovens, em virtude da imutabilidadeque se depreende de uma repetição de entraves cuja finalidade parece ser ade manter o casal sempre no mesmo lugar e protegido das alterações dotempo, fica, na leitura, a sensação de que o drama dos heróis em questãonão se define na adversidade que constantemente os atinge em sua indivi-dualidade. Ao contrário, a desgraça desses dois protagonistas arraiga na re-ferência desse enunciado primitivo ao instante em que o animal humano,ao se separar do cosmos e transformar-se em partícula que gravita em tornode uma órbita imutável, perdeu em definitivo qualquer chance de conse-guir a liberdade. Talvez por isso, o riso que provoca o cartão seja o reversodesse momento do carnaval histórico que o cartão plasma de maneiracanônica. Quero dizer, com isso, que o enunciado central deste cartão nãoconfigura tão-somente a ressurreição de outro enunciado carnavalesco, comonos disse Bakhtin em várias passagens da sua obra, quando defende a idéiade que nenhum enunciado morre, já que, ao ser gerado, sempre terá seu diade renascimento. Mesmo contrariando esses pensamentos, deixo-me tentarpela interpretação de que as renovações que um enunciado sofre em suatrajetória talvez não sejam, simplesmente, indícios de regeneração, mas tam-bém, devido aos processos de repetição, constituam um sinal da nostalgiada pulsão de morte que acompanha, desde sempre, a caminhada do animalhumano e, conseqüentemente, a história desses dois jovens belos nos avataresde uma aventura que é feita de sucessos matricialmente idênticos.5 Vale, noentanto, se amarrar à expectativa de que a repetição dos entraves e contra-tempos tenha, ao final de contas, algum sentido.

No segundo cartão, a heterogeneidade do texto faz com que o diálogoentre elementos da linguagem verbal e da linguagem dos gestos seja maisdireto, o que, entre outras coisas, delimita um espaço de leitura em que osenunciados antecedentes se situam num tempo próximo ao dos aconteci-mentos que aqui se representam. Mas, de qualquer modo, o texto do balão,

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portador de um conteúdo autoritário, monopoliza as possibilidades do diá-logo e, em certa medida, reduz suas alternativas. Não fosse o significadodos objetos, o conteúdo se empobreceria já que a entonação da mensagemverbal não dá margem a ambigüidades e, conseqüentemente, as probabili-dades de réplica são mínimas. Considerando, entretanto, que a cena repre-sentada no cartão caracteriza a meu ver o realismo grotesco de que nos falaBakhtin, pois ela se centra em detalhes que acentuam, com mais intensida-de do que o carnaval histórico, particularidades concretas da anatomia cor-poral e relegam a somática política à função de pano de fundo.

Nessa perspectiva, a apresentação do corpo biológico assume um papelenuncivo, ao passo que a gestualidade que acompanha o lado grotesco dosenunciados corporais propriamente ditos, tem compromissos com aenunciação. Sendo assim, a linguagem gestual do cartão rompe com o tomautoritário da mensagem do balão, o que permite armar outras estratégiasde leitura e escutar, por exemplo, ressonâncias que sinestesicamente se plas-mam, por exemplo, nos gestos debochados da personagem, que encarna opapel do carrasco, e no gesto comedido que se manifesta na boca da perso-nagem que vai ser guilhotinada. Esses componentes gestuais atualizam umaentonação em que as possibilidades dialógicas ganham alternativas diferen-tes, pois, deste ponto de vista, é admissível que a entonação possa ser osuporte de processos através dos quais os signos do cartão criam uma at-mosfera metafórica em que circulam resíduos significacionais de enuncia-dos mais arcaicos. No cartão em questão, é possível associar o conteúdo dosobjetos que integram o construto visual da cena com as vozes que ecoamnos gestos das personagens e, a partir daí, perceber algo da ressonânciaresultante desse arranjo. É possível, diga-se de passagem, captar resquíciosdas metáforas que se formam no paradigma a que pertencem os objetoscomo penico e guilhotina. Unidas, as conotações de tais objetos remetem asignificados atinentes à esfera dos detritos e estes, transmutadas figurativa-mente suas significações, apontam para o domínio semântico da defecaçãoe dos excrementos, o que permite pensar, levando em conta a intromissãoda entonação gestual nesse contexto, na idéia de regeneração, isto é, numenunciado cujo compromisso com a carnavalização é patente e a relação docarnaval histórico com o realismo grotesco, apesar de ser sutil, transparecepela simples razão de que, em enunciados arcaicos, os excrementos possuem

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valores simbólicos que atuam na formação de metáforas semanticamenteatreladas aos sentidos de regeneração.

Convencido de que a carnavalização constitui um eixo semântico emtorno do qual se ordenam o carnaval histórico e o realismo grotesco, gosta-ria, agora, de trabalhar um pouco a hipótese de que a ressonância instituium espaço de interseção quando, com base no mencionado eixo semântico,as duas modalidades conjuntam seus traços diferenciais. Direta ou indireta-mente, muito tem se feito sobre este assunto, tomando como corpus deestudo os textos literários. Minha intenção, porém, é me liberar o quantome seja possível das características das manifestações verbais e me centrarnas particularidades de mensagens em que se imbricam signos de outrossistemas que não o das línguas naturais. Além disso, meu propósito não selimita à identificação dos meios expressivos que os construtos visuais utili-zam para configurar a ressonância e as vozes que, na acepção de Bakhtin,ecoam nos enunciados em que a ressonância está presente. Vou me servir,para tanto, de um corpus relativamente pequeno: de um número reduzidode cartuns em que o grotesco, o paródico e a intertextualidade conferemaos textos escolhidos um razoável grau de homogeneidade.

De início, destaco o princípio de que o realismo grotesco tem como pro-priedade fundante arremeter contra o discurso especular.6 Sua forçatransgressora é mais intensa quando o discurso que deve se refletir no espelhojá exibe aspectos da degeneração a que é submetida a linguagem cada vez queé utilizada para construir enunciados cuja estrutura obedece a formas consa-gradas pelo uso ou padronizadas segundo os moldes do agrado daqueles que,na dinâmica da cultura, ditam e preservam as normas imperativas do poderdominante e, com base nele, fabricam em série combinatórias signícas extre-mamente surradas. Assim, ao me colocar diante deste cartum de Caruso (Fi-gura 3), constato, logo no primeiro lance do meu olhar, que o texto plásticopode ser lido como uma composição em que o enunciado e alguns possíveisaspectos da enunciação foram dispostos tendo em mente uma tênue separa-ção entre essas duas instâncias. De um lado, o pintor dando os últimos reto-ques a um dos seus quadros colocado ao lado de outras obras do artista. Deoutro, em desenho que preserva as características do que se entende por umarepresentação realista, a figura de costas do próprio pintor olhando para MarieThérèse sentada sobre um banquinho e posando de modelo.

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Na descrição que acabo de fazer, tenho já um esboço de leitura em que, aodar relevância à linha que separa um instante da vida do artista – um instanteque me remete a elementos da enunciação – e aos quadros situados num cená-rio impreciso, fica a impressão de que estou lidando com uma obra monológica,com um texto, enfim, em que os componentes enuncivos e enunciativos secomunicam, como se comunicam duas pessoas ao falar de maneira unissonantesobre de um determinado tema. Mas o cartum me oferece, de imediato, apossibilidade de ampliar o alcance desse esboço, principalmente quando perce-bo que, mais do que um monólogo, o enunciado e a enunciação da composiçãode Caruso colocam no palco do desenho um diálogo através do qual não só seinstaura a “festividade” do carnaval histórico, senão também um tipo de ence-nação que, de algum modo, alude ao realismo grotesco. Assim, se fixo minhaatenção, constato sem grande dificuldade que o texto inteiro arremetetransgressoramente contra as analogias das imagens especulares e, em particu-lar, contra o princípio estético de que a representação de uma coisa deve manteruma estreita semelhança com a forma dessa coisa em seu habitat. Fica patenteque existe uma grande diferença entre a Marie Thérèse que posa de modelo7 ea Marie Thérèse plasmada nos quadros ou esculpida no mármore.

Figura 3. Picasso pintando Marie Thérèse.

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A ruptura necessária à implantação do dialógico se torna perceptível quandoo leitor do cartum se deixa envolver por essa atmosfera de ressonâncias quetoma conta da cena representada e arrasta a imaginação do seu sujeito atéesses recantos do espaço plástico em que o leitor descobre o realismo grotes-co, sem deixar de ser mágico. Surge, de repente, no instante em que esseleitor descobre, de um lado, que a imagem de Marie Thérèse refletida noespelho subverte os traços da Marie Thérèse que se olha no espelho e, deoutro, que a imagem da Marie Thérèse representada sonhando atualiza umarranjo cuja expressividade distorcida, usada como recurso grotesco, denunciaalgo do conteúdo onírico da personagem, por meio de um enunciado plástico-icônico em que uma parte do corpo – a metade superior do rosto da jovem –se faz metáfora de uma configuração fálica, como se evidencia mais claramenteno conjunto de vozes que perambulam pelas ressonâncias do cartum quedialoga intertextualmente8 com a reprodução da tela de Picasso (Figura 4), naqual se inspira a composição de Caruso:

Figura 4. O sonho, de Picasso, 1927.

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No caso dos textos visuais, a ressonância, em sua acepção fônica, se mani-festa de diversas maneiras e, com freqüência, não se faz perceptível aos leitoreseducados no exercício de lidar com textos verbais. Em virtude disso, as mensa-gens que não utilizam o sistema das línguas naturais se valem de determinadasgrafias para expressar a sonoridade. O cinema mudo oferece numerosos exem-plos desse procedimento e pode-se dizer que, em geral, todos os recursos desti-nados a provocar nos espectadores uma sensação sonora se atrelam à sinestesia,figura retórica que se ancora no princípio de atribuir sentido a partir do estabe-lecimento de correspondências entre perceptos que pertencem a domínios sen-síveis diferentes. O cheiro de uma fruta pode evocar o som de uma palavra earrancar da memória significados, vozes ouvidas em circunstâncias especiais dopassado. Mas, inserida no pensamento de Bakhtin, a ressonância significa mui-to mais do que isso. Entre outras coisas, ela significa possuir a capacidade dereceber e escutar essa espécie de sussurro entranhável que os enunciados produ-zem ao renascerem constantemente no seio da vida social e, além disso, a resso-nância conota, entendida como sinônimo de “voz”, os vínculos que os signosmantêm com enunciados latentes, enunciados soterrados pelas transformaçõesou enterrados por normas intransigentes, sejam elas políticas, estéticas ou deoutra ordem. A meu ver, a ressonância adquire sua plenitude quando nela seimbricam “vozes” que desmontam as estruturas monológicas, as falsas comodi-dades do hábito ou as mentes aquilosadas.

Nesta charge de Jaguar (Figura 5), os recursos gráficos utilizados pelocaricaturista para expressar a ressonância são, na instância denotada damensagem, facilmente perceptíveis, como se pode constatar no gesto dopacato senhor que bate, com uma vassoura, no teto do apartamento. Mas,detendo o olhar em alguns detalhes do cartão, o leitor se depara, de imedia-to, com detalhes em que o realismo grotesco se manifesta. De um lado, aose servir da vassoura, a personagem articula uma operação algorítmica, des-necessariamente complexa, tendo em vista os seus objetivos e, precisamen-te, em razão da inútil complexidade, o enunciado em que a operação seatualiza se torna, de algum modo, grotesco. De outro, ao transformar oGuernica em fonte da qual emana um barulho perturbador, o pacato perso-nagem cria, na instância da conotação, condições para que o leitor o consi-dere como a representação de uma pessoa amante das configurações espe-culares, isto é, uma pessoa que só encontra a tranqüilidade em ambientes

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que não são transgressores. Vale dizer, por conseguinte, que a charge colocao leitor diante da representação de um processo de carnavalização, de umprocesso em que o carnaval histórico e o realismo grotesco se ajustam.

Figura 5. Vernissage, Jaguar.

Por outro lado, levando-se em conta os princípios dialógicos e o papel daintertextualidade no renascimento de enunciados em momentos diferentesda história, a charge de Jaguar pode aumentar suas ressonâncias quando acomparo, por exemplo, com um cartum de Quino (Figura 6). Ao inter-relacionar esses dois textos, entro de pleno no que Bakhtin entende porcarnavalização discursiva, pois, nessa operação, faço com que o carnaval his-tórico e o realismo grotesco, frutos de uma estrutura em que entram em jogoformas das linguagens comprometidas com vários antagonismos – de um

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lado, na charge de Jaguar, o ruído, em sua acepção informática, se contrapõeao barulho provocado por uma obra de arte transgressora; de outro, no cartumde Quino, a correção da “subversão decorativa” do Guernica se transforma,segundo a visão da empregada, em uma arrumação – e criam uma ressonân-cia poética pautada numa ruptura da neutralidade dos sistemas comunicati-vos e, conseqüentemente, na instauração de uma polissemia em que vozesdiferentes e conflitantes rompem esse estado de pasmaceira social simboliza-da pelos gestos, ações e atitudes das personagens desses dois cartões.

Figura 6. Arrumação, de Quino.

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Em soma, se na leitura proposta, o realismo grotesco cria fortes víncu-los com o corpo simbólico e com o corpo biológico, parece-me legítimopensar que os resíduos que seus enunciados concretos deixam na cultura –e em especial nas obras de arte – sobredeterminam aspectos extremamenteinstigantes. Posso me referir, para terminar, ao resíduo que enigmaticamen-te aparece, a partir das vanguardas, em textos visuais que parecem ter sidoconstruídos com a intenção de encobrir os buracos que a prepotência e asnormas sociais do hábito criaram nos territórios do imaginário por ondecirculam, diariamente, as pupilas adormecidas da multidão de transeuntes.Tal gesto nasce, a meu ver, desses enunciados carnavalescos em que as per-sonagens defendem, em nome de uma possível salvação, a integridade deseus corpos, valendo-se do subterfúgio de proteger tudo quanto nesses cor-pos seja um orifício.

NOTAS

1 Julia Kristeva, Bakhtin, le mot, le dialogue et le roman, em Critique, Paris, Éditions de Minuit,n. 239, 1967, pp. 438-65.

2 Utilizo o termo ressonância, do qual falarei mais adiante, num sentido metafórico, ou seja, nosentido de uma espécie de metáfora conceitual em que a convivência de significados diferentes épossível. Claro que tal estratégia é premeditada e tem, sem dúvida, raízes no pensamento deBergson. Tenho a convicção de que uma configuração metafórica, como elemento dametalinguagem, pode funcionar como um instrumento capaz de fazer com que minhas intuiçõesalcancem, sem muitas palavras, horizontes mais amplos. A esse respeito é significativa, por exem-plo, a metáfora que arma Beth Brait quando, ao comentar uma página do jornal Folha de S.Paulo, diz: “É como se a página, como texto, piscasse o olho (direito?) para o leitor e mostrasse,quase gargalhando, a ironia dos fatos”. Cf. Beth Brait, Estilo, em Beth Brait (org.), Bakhtin:conceitos-chave, São Paulo, Contexto, 2005, p. 86. As duas metáforas que aí se imbricam infor-mam muito mais do que uma longa digressão sobre a questão abordada pela autora.

3 Seria irresponsabilidade da minha parte se no meu texto se infiltrasse a idéia de que sou um leitorassíduo da obra the Bakhtin. Devo confessar que, desde a década de 1980, leio fragmentaria-mente livros do pensador russo, mas nenhuma das minhas leituras representa, como seria domeu agrado, uma entrega total. Por isso, usando de cautela e assumindo de antemão os riscos,decidi tomar como referência central The Dialogic Imagination, 1981.

4 Mikhail Bakhtin, Questões de literatura e estética, São Paulo, Unesp, 1993, p. 214.5 Sabe-se que não há uma total concordância entre os conceitos de corpo manipulados por Bakhtin

e Freud. Mas isso não significa que, sobre este assunto, não existam coincidências entre os doisautores. Creio que os matizes de que se revestem as idéias de Freud a respeito da pulsão de morte –entendida às vezes como um sentimento de carência fundamental que o ser humano carrega apartir do instante em que a vida o separa do cosmos – têm a ver com as idéias de um enunciadomatricial, que, segundo Bakhtin, se regenera constantemente nas renovações porque tal enunciado

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passa em diferentes momentos da trajetória histórico-social da humanidade. Vale a pena, no quediz respeito ao corpo, à outridade e ao sujeito, ler com atenção obra de La Capra intituladaRethinking Intelectual History, 1983.

6 Quem, ao que me parece, formulou de maneira consistente esta particularidade foi Íris M.Zavala em La posmodernidad y Mijail Bajtín. Una poética dialógica, 1991, pp. 69-83.

7 No segundo volume da obra de Carsten-Peter Warnkle intitulada Pablo Picasso: 1881-1973,1995, p. 698, se reproduz uma foto de Marie Thérèse que, a meu ver, constitui uma etimologiaiconográfica usada por Caruso para representar a jovem que no cartum posa de modelo.

8 São muitos ainda os que utilizam intertextualidade como um sinônimo de dialogismo. Emboraexistam coincidências no conteúdo desses dois termos, é preciso observar que, no pensamento deBakhtin, dialogismo não significa exatamente que as materialidades das vozes que dialogamtenham de manter uma relação intertextual. Talvez o eixo semântico em torno do qual giramaspectos do dialogismo e da intertextualidade tenha suas referências mais precisas não só na obrade Julia Kristeva, mas nos conceitos com os quais Simon Dentith trabalha o universo do paródico.Cf. Parody, 2000, pp. 4-21.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. The Dialogic Imagination. Trad. Caryl Emerson e M. Holquist. Austin: Universityof Texas Press, 1981.

____. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. 3. ed. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1993.

BRAIT, Beth. Estilo. In: Brait, Beht (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005,pp. 78-102.

DENTITH, Simon. Parody. Londres: Routledge, 2000.

KRISTEVA, Julia. Bakhtin, le mot, le dialogue et le roman. Critique, Paris, Éditions de Minuit,1967, n. 239, pp. 438-65.

LA CAPRA, D. Rethinking Intelectual History. Itaca: Cornell, 1983.

WARNKLE, Carsten-Peter. Pablo Picasso: 1881-1973. Bruxelas, Taschen, 1995.

ZAVALA, Iris M. La posmodernidad y Mijail Bajtín. Una poética dialógica. Madrid: Editorial Espasa-Calpe, 1991.

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A organizadora

BETH BRAIT

Crítica, ensaísta, docente, orientadora e coordenadora do LAEL – Progra-ma de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem – daPUC/SP, é também docente e orientadora no Programa de Pós-Graduaçãoem Semiótica e Lingüística Geral da FFLCH/USP. Fez doutorado (1981) elivre-docência (1994) na USP, pós-doutorado na École des Hautes Étudesen Sciences Sociales – Paris/França e hoje é pesquisadora nível 1 do CNPq.Foi crítica militante de literatura no Jornal da Tarde e outros periódicospaulistas. Autora, co-autora e organizadora de diversas obras, entre elasBakhtin: conceitos-chave, publicada pela Contexto.

Os autoresCristovão Tezza

Romancista e professor do Departamento de Lingüística da UFPR. Dou-tor em Literatura Brasileira pela USP, é autor ou co-autor de diversasobras na área e também de livros didáticos.

Eduardo Peñuela CañizalPós-doutorado pela Stanford University, é professor titular da USP. Atual-mente coordena o Centro de Pesquisas em Poética da Imagem do Depar-tamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA da mesma universidade e édocente na Pós-Graduação em Comunicação da Unip. É também um dosvice-presidentes da International Association for Visual Semiotics e um doseditores da revista Significação. Tem vários livros publicados no Brasil e noexterior. Colabora, também, em periódicos nacionais e internacionais.

José Luiz FiorinProfessor associado do Departamento de Lingüística da FFLCH/USP. Além deinúmeros artigos em periódicos especializados e capítulos de livros, publi-cou, entre outros, Elementos de análise do discurso e organizou os livrosIntrodução à lingüística I: objetos teóricos e Introdução à lingüística II: princípiosde análise, todos pela Editora Contexto. Foi representante da área de Letrase Lingüística na Capes e membro do Conselho Deliberativo do CNPq.

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Maria do Rosário GregolinDoutora em Lingüística e Língua Portuguesa, professora do Departa-mento de Lingüística da Unesp, campus de Araraquara. Atua na gradua-ção e na pós-graduação em Letras. Coordenadora do Grupo de Estudosde Análise do Discurso de Araraquara (Geada). Tem como temas de suaspesquisas: a história e a epistemologia da análise do discurso, principal-mente a partir das obras de Foucault, Pêcheux e Bakhtin; a históriaconceitual da análise do discurso; a análise da produção de identidades namídia. É pesquisadora do CNPq.

Marilia AmorimPsicóloga pela UFRJ, com mestrado pela PUC/RJ na mesma área. Foi pro-fessora do Instituto de Psicologia da UFRJ, onde desenvolveu o progra-ma de Psicologia Escolar que prestava assessoria a escolas públicas ecomunitárias da região mais pobre da cidade. Em 1990, foi para Parisfazer o doutorado em Ciências da Educação na Universidade de Paris-8e, atualmente, é professora desta mesma universidade.

Norma DisciniÉ professora do Departamento de Lingüística, da FFLCH da USP. Pes-quisadora de Semiótica e da Análise do Discurso, é autora de O estilonos textos, obra que examina o estilo sob uma perspectiva discursiva.Dedica-se também à escrita de livros didáticos. Entre eles, lançou Acomunicação nos textos, obra que, voltada ao público universitário, ofe-rece apoio para leitura e produção de textos. Ambos os livros são pu-blicações da Editora Contexto.

Renata Coelho MarchezanÉ professora do Departamento de Lingüística da Unesp, campus deAraraquara. Mestre em Letras pela mesma universidade, e doutora emLingüística pela USP. Seus interesses de pesquisa e suas publicações situ-am-se nos domínios da semiótica e do pensamento bakhtiniano. Coor-dena projeto de pesquisa coletivo que se ocupa do estudo e caracteriza-ção do papel dos gêneros discursivos na organização e na prática dos

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discursos. Participa do Grupo CASA, que desenvolve vários projetos emsemiótica literária e publica os Cadernos de Semiótica Aplicada.

Sheila V. de Camargo GrilloProfessora, pesquisadora e orientadora na área de Filologia e LínguaPortuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, édoutora em Lingüística pela mesma universidade. Durante seudoutoramento, realizou estágio na Universidade de Paris X-Nanterre.Fez seu pós-doutoramento na Universidade de Paris X-Nanterre, atuan-do como pesquisadora associada no laboratório Modyco (Modèles,Dynamiques, Corpus) – CNRS-Paris X.

Yves ClotProfessor de Psicologia do CNAM (Conservatoire National des Arts et Métiers)de Paris, onde é responsável pela grupo de pesquisa do Laboratório de Psi-cologia do Trabalho. Sua filiação à tradição vigotskiana, em psicologia, otem levado a ser um dos maiores incentivadores da rede de relações cientí-ficas que se constrói em torno dessa tradição teórica na Europa, tendo, paraisso, uma estreita colaboração com Jean-Paul Bronckart e Bernard Schneuwly,da Universidade de Genebra. Desenvolve pesquisas bakhtinianas, conjun-tas com lingüistas, dentre os quais se destaca o Prof. Dr. Daniel Faïta (Gru-po ERGAPE - Institut de Formation de Maîtres de Marseille) e colabora naspesquisas desenvolvidas pelo Grupo LAF (Langage-Action-Formation), daUniversidade de Genebra, coordenado pelo Prof. Dr. Jean-Paul Bronckart.Sua relação com pesquisadores brasileiros está formalizada em AcordoInterinstitucional firmado entre o CNAM e a PUC/SP. Tem vários livros pu-blicados na França.

Os autores