bertonha, joao fabio - russia ascensao e queda de um imperio

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RÚSSIA

ASCENSÃO E QUEDA DE UM IMPÉRIO

UMA HISTÓRIA GEOPOLÍTICA E MILITAR DA

RÚSSIA, DOS CZARES AO SÉCULO XXI

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João Fábio Bertonha4

Visite nossos sites na Internetwww.jurua.com.br e

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ISBN: 978-85-362-

Av. Munhoz da Rocha, 143 – Juvevê – Fone: (41) 3352-3900Fax: (41) 3252-1311 – CEP: 80.035-000 – Curitiba – Paraná – Brasil

Bertonha, João Fábio.B??? Rússia: ascensão e queda de um império./ João Fábio

Bertonha./ Curitiba: Juruá, 2009.180 p.

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João Fábio Bertonha

RÚSSIA

ASCENSÃO E QUEDA DE UM IMPÉRIO

UMA HISTÓRIA GEOPOLÍTICA E MILITAR DA

RÚSSIA, DOS CZARES AO SÉCULO XXI

CuritibaJuruá Editora

2009

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Para meus filhos: Isabela e Bruno.

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AAAAGRADECIMENTOSGRADECIMENTOSGRADECIMENTOSGRADECIMENTOS

Apesar da decisão de escrever o presente livro ser relati-vamente recente, meu interesse pela história russa e, especialmen-te, pelos seus aspectos geopolíticos e militares, tem, pelo menos,uns dez anos. Nesse longo período, aproveitei todas as oportunida-des que tive para, mesmo no meio de outras pesquisas, aprofundarmeus conhecimentos a respeito desse tópico.

Nesse esforço, inúmeras instituições, no Brasil e no exte-rior, me forneceram a infraestrutura necessária para tanto e seriacansativo mencionar a todas aqui. Do mesmo modo, um levanta-mento de todos os amigos e colegas com quem debati e discuti ostemas presentes neste livro seria quase impossível. Desta forma,me limito a agradecer as pessoas diretamente envolvidas na reda-ção e na formatação do presente trabalho.

Em primeiro lugar, agradeço aos meus alunos dos cursosde História Contemporânea I e II da Universidade Estadual deMaringá (UEM) entre 1999 e 2007, os quais serviram de “cobaia”para algumas das teorias e ideias desenvolvidas aqui. Tambémmeus orientandos de graduação e mestrado se dispuseram a ler,mesmo quando trabalhando com temas totalmente diversos, a pri-meira versão, assim como os alunos e colegas do “Laboratório deEstudos do Tempo Presente” da UEM, trazendo colaborações parao aprimoramento do texto.

Um agradecimento especial, também, aos EmbaixadoresJerônimo Moscardo (Presidente da Funag) e Carlos HenriqueCardim (Diretor do Instituto de Pesquisa em Relações Internacio-nais), pelo convite para participar da II CNPEI (Seminários prepa-ratórios: Rússia), em 28.06.2007. Neste evento, no Palácio Itama-raty, no Rio de Janeiro, pude aprofundar várias das reflexões men-cionadas neste texto, além de conhecer vários dos autores citados.Foi uma oportunidade única, que só posso agradecer.

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Sidnei Munhoz, meu contínuo interlocutor no campo dahistória contemporânea e das relações internacionais e meu amigo,foi um leitor especialmente atento, colaborando imensamente paraa melhoria do texto, pelo que muito lhe agradeço.

Sidnei também me colocou em contato com os ex-diplo-matas e especialistas em relações internacionais russos Alexandere Elena Zhebit, atualmente no Rio de Janeiro. Estes, com os seusamplos conhecimentos da história e da inserção internacional daRússia, fizeram uma leitura incrivelmente minuciosa do primeiromanuscrito, me ajudando a localizar erros, corrigindo imprecisõese me impedindo de cometer erros interpretativos que seriam quaseinevitáveis para um não russo.

Eles também me indicaram bibliografia e me chamaram aatenção para a necessidade de compreender os diferentes momen-tos da inserção internacional da Rússia, ressaltando as continui-dades, mas sem esquecer as mudanças. Do mesmo modo, me aler-taram como é possível e necessário utilizar o pensamento geopolí-tico e estratégico para compreender a história russa, mas ressal-tando o fato que ele não pode ser superestimado e nem colocadocomo fator explicativo único para essa história. Enfim, apesar deestar claro que não absorvi todas as críticas deles e que a respon-sabilidade por esta versão final é minha, ela ficou muito melhorque as iniciais graças ao seu empenho, pelo que lhes sou imensa-mente grato Alexander também aceitou escrever uma apresentaçãopara este livro, o que muito me honra.

Por fim, a meus filhos Isabela e Bruno e, como sempre, àLuciane, sem os quais não saberia mais viver e que têm toda a pa-ciência com minhas contínuas viagens e com minhas horas no es-critório. Este livro, como todos os outros, é para vocês.

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PPPPREFÁCIOREFÁCIOREFÁCIOREFÁCIO

O tema de impérios é um dos tópicos mais fascinantes etambém recorrentes na literatura especial histórica, política e cul-tural. Autores de diferentes matizes, correntes e escolas científicasvêm analisando com curiosidade e perplexidade o enigma de impé-rios. Desde os clássicos, como Tucídides e Ibn Khaldun, até osautores contemporâneos, como Raymond Aron e Paul Kennedy, onascer e o ocaso dos impérios provocam um inelutável ímpeto deolhar por detrás dos bastidores da intrigante e mística vida de umimpério, como quem que quisesse saber algo íntimo e picante sobrea vida de uma personalidade importante, de uma figura públicacuja vida privada está escondida de um olhar particular.

Desde o Império Romano até o chamado império ameri-cano, o veredicto dos estudiosos para com os impérios não é muitodiferente. Tout empire périra! (Todo império perecerá!) Assim sedenomina a obra de Jean-Baptiste Duroselle, que se dedica ao es-tudo da política internacional em que impérios ocupam um lugarde destaque. Eles não são eternos, eles nascem e morrem e suasascensões, declínios e sucessões se entrelaçam intimamente comdestinos heróicos ou humilhantes, triunfantes ou tristes dos seusfeitores – povos e comunidades, governos e governantes, famílias eindivíduos, homens e mulheres. O tema fascina Raymond Aron emseu République Impériale. Les États-Unis dans le monde (1945-1972). É ele quem sabiamente distingue o imperialismo clássico deum comportamento imperial, a diplomacia imperialista da diplo-macia imperial. O mesmo assunto cativou Immanuel Wallerstein(O declínio do império americano) e Emmanuel Todd (Depois doImpério): para os dois os Estados Unidos da América, um impériouniversal, segue o caminho de todo e qualquer império conhecidona história.

Todavia, o interesse do público ao tema dos impérios nun-ca se extingue. Todo mundo sabe que, mesmo que os impérios so-

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mem, os ímpetos, as saudades, os costumes e as práticas imperiais,vestidas em trajes pós-imperiais ou neo-imperiais persistem du-rante anos, décadas ou mesmo séculos. Nesta ordem de livros seencaixa o ensaio de João Fábio Bertonha, que persegue o objetivode submeter a história russa a este exame imperial, perpassando ocontexto do Império Russo, da União Soviética e mesmo da Rússiapós-soviética, como diz o título “Rússia: Ascensão e Queda de umImpério. Uma história geopolítica e militar da Rússia, dos czaresao século XXI”.

O nome “império” cabe à história russa como luva, nãoapenas porque a Rússia já era um grande império, uma potênciamundial, mas também em virtude de sua imensidão territorialatual, sua infinidade eurasiática e não menos pela razão de suahistória de superpotência comunista no decorrer da Guerra Fria.Porém, a História da Rússia deixará de ser compreendida se o im-pério russo for dissociado da “ideia russa” ou se ela for relegadaao segundo plano. Os acontecimentos como a defesa das terrasrussas contra a invasão das ordens livônicas, o apaziguamento dosinvasores tártaro-mongóis, numa combinação genial do militar ediplomata Alexandre Nevskyi, a reunificação das terras russas naépoca do Ivã Kalitá, a batalha de Kulikovo em 1380 moldam amatriz da política do Estado de Moscou e posteriormente do Impé-rio Russo. “O estado de Moscou iniciou a sua ascensão no séculoXVI sob a pressão do jugo externo e se estruturou e se expandiudurante todo esse período na luta pela sobrevivência no oeste, nosul e no sudeste”, escreve Vassilyi Klutchevsky. A “sobrevivência”significa a consolidação da unidade nacional frente à expansão daLivônia e da Polônia no oeste, a disseminação da fé ortodoxa nosudeste, a luta contra a invasão otomana no sul.

A “ideia russa” perpassa a história russa mediante a per-cepção de um caráter singular da Rússia, herdeira do legado doImpério Romano oriental. Diz a carta do Czar Ivã III, o Grande:“.... as duas Romas caíram, a Terceira está em pé e a Quarta nãohaverá...”. Passados os anos dolorosos da época de Smuta, o rei-nado do Czar Alexei Mikhailovich marca uma evolução da Rússiaem direção a um maior poder, através da reserva de uma seguran-ça maior, sobretudo territorial, o que não exclui a diplomacia, ocomércio ou simples expansão natural, como aconteceu no caso da

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Sibéria Ocidental e Oriental, criando um caminho que será traça-do pelo Pedro I, pela Catarina II, pelo novo imperialismo do sé-culo XIX, que provocou a guerra russo-japonesa de 1904-1905 eparcialmente a Grande Guerra.

Respeitando as noções da geopolítica tão fortemente rela-cionadas pelo autor à história russa e aceitando a relevância dageopolítica para esta história, vimos sustentar a ideia de que a suafunção não pode ser superestimada nem mesmo em relação à his-tória russa. O espaço da Rússia, como diz o próprio autor, criou-sedevido à expansão natural e aos descobrimentos territoriais e ma-rítimos, incluindo o Alaska e o sudoeste da Califórnia. A posterior“corrida imperialista” da segunda metade o século XIX se encaixano perfil imperial de maneira parcial, movida pelo fortalecimentode segurança em relação ao Império Otomano, pelos interesseseconômicos na Ásia Central e no Tibet e pela consolidação territo-rial e pela política de desenvolvimento do espaço russo através do“imperialismo ferroviário”. Portanto, as razões, levantadas porSerguei Iulievich Witte, para justificar a construção da Transsibe-riana, são de natureza econômica e desenvolvimentista. Ele, o pri-meiro ministro do governo de Nicolau II, chama a obtenção dasconcessões de produção madeireira na Coreia, de “aventura deBezobrazov e Cia.”, provocando a reação dos japoneses, incenti-vados pelos britânicos.

As nuances que distinguem o “imperialismo soviético” doimperialismo russo não são tão distintos, pelo contrário, têm muitoem comum. Pode-se interpretar o imperialismo soviético como ocaso clássico de expansionismo. Do ponto de vista realista, a ocupa-ção da Europa Oriental em 1944-1945 deveria ser uma ação impe-rialista da imposição de domínio direto sobre a parte da Europapela União Soviética. No entanto, se olharmos a presença militarsoviética como garantia de segurança, a manutenção das forçasarmadas na Polônia, RDA, Tchecoslováquia, Hungria, no âmbitodo Tratado de Varsóvia, tem uma razão e surge como uma reação,durante a Guerra Fria, ao desafio estratégico ocidental. As inter-venções na Hungria (1956) e na Tchecoslováquia (1968) se encai-xam no confronto bipolar na Europa. A intervenção no Afeganistão(1979) visa à estabilidade política de um país sacudido pelo con-flito intestina nos anos 70, um fator de preocupação para a lide-

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rança do partido comunista soviético que tomou a decisão de con-sequências sérias, senão fatais, para os destinos da União Soviéti-ca, provocando um substancial declínio do poder.

Havia uma diferença entre o império russo e o regime daépoca comunista? O messianismo comunista mesclou-se fortementecom a ideia russa durante o stalinismo, só olhar como foramamarguradas as relações entre a União Soviética e a China, quan-do a última declarou a pretensão de liderar o movimento comunistainternacional nos anos 50. Na Rússia de hoje vem se travando umdebate em torno das similitudes e das diferenças entre um império euma federação, nos moldes de uma diferenciação entre a UniãoSoviética e a Rússia pós-comunista. Pode-se depreender desse de-bate que a Rússia pós-comunista tem traços de semelhança com oimpério russo como a União Soviética também teve. Porém, o fede-ralismo, que não deve ser confundido com imperialismo e que pos-sui estruturas semelhantes e usa mecanismos parecidos, é um ins-trumento político cuja sintonização com os interesses dos sujeitosjurídicos da federação passa por dificuldades nos domínios jurídi-co, político, econômico, cultural e de segurança da nova Rússia. Asensação de que a dissolução da União Soviética foi uma “tragé-dia” tornou-se um chavão, usado tanto por políticos quanto porleigos. Um saudosismo pelos velhos bons tempos está presente nosprogramas de alguns partidos. As expressões de nacionalismoétnico são banidas e rotuladas ilegítimas não apenas porque asecessão é proibida pela constituição russa, mas também porque ofantasma da implosão soviética continua assombrando a opiniãopública nacional. As guerras da Chechênia são tidas como a ma-nutenção da integridade territorial e a defesa da soberania russa,ou seja, o fantasma que paira é sempre o mesmo: segurança nacio-nal. Quer a expansão da OTAN nos anos 90 e 2000, quer o enfra-quecimento do regime de não proliferação e de controle aos ar-mamentos nucleares, quer a agressão da Geórgia contra a Os-siêtia do Sul, tudo encontra a sua explicação dentro do contextoda segurança. Enfim, é a essência da história russa, que perdeudurante as Guerras Mundiais e em consequência das perseguiçõesdezenas de milhões de pessoas.

Em todas as perguntas onde aparece a comparação, a po-lítica da Rússia, interna ou externa, é vista sob a suspeita de impe-

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rialismo. Será que é uma maldição da política do Império ou umavisão de qualquer potência regional ou mundial que é avaliadacom suspeita, tremor e apreensão pelos atores internacionais inse-guros ou agressivos. Em que a União Soviética e os Estados Uni-dos eram diferentes, na época da Guerra Fria, se olharmos paraeles através do prisma da análise imperial?

O livro de João Fábio Bertonha abrange um grande lapsode tempo, ou seja, vários séculos. Se a história do Império Russodos séculos XVI-XIX oferece fundamentos e opiniões assentadas econsolidadas, escrever sobre a história soviética, sobretudo militar,não é fácil, até é uma tarefa ingrata, porque a história da UniãoSoviética ainda está em formação, os documentos vêm sendo“abertos” e descobertos, disputas entre as escolas historiográficasvelhas e novas de historiografia ficam pegando fogo. Portanto, asreferências às fontes ocidentais, sobre os quais o presente livroestá majoritariamente baseado, com a ênfase sobre a obra, aliás,seminal de Paul Kennedy “Ascensão e queda das grandes potên-cias”, ajudam a construir uma versão da história soviética que, noentanto, estará paulatinamente corrigida. A história da Revoluçãode 1917 e da Guerra Civil já teve várias contribuições que reuni-ram a documentação do movimento “branco” e novos arquivos daRússia. A história militar da Guerra Pátria (1941-1945) está emprocesso de reconstrução, com muitas “manchas brancas” apare-cendo. A Época da Estagnação continua desafiando historiadores,a Perestroika ainda não se livrou de nexos ideológicos, enquanto aavaliação do governo de Yeltsin fica sendo pintada em cores cinzae preta. O livro nos aproxima às colocações de várias perguntasque precisam ser respondidas.

As referências ao papel das forças armadas do Império daRússia na Primeira Guerra, da URSS na Segunda Guerra e daRússia Soviética e da Rússia nos conflitos pós-Segunda GuerraMundial permitem focar sobre as razões que não evidenciam oimperialismo, mas testemunham as manifestações de patriotismo,dedicação e abnegação da população russa, soviética e novamenterussa em confrontos com agressores, nos quais foram decididos osdestinos da Rússia, como a Guerra Patriótica de 1812, a humi-lhante paz de Brest-Litovsk, a invasão nazista de 22.06.1941 e avitória sobre o nazismo em 09.05.1945.

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Os últimos capítulos do livro situam a Rússia dentro doscontextos políticos, econômicos, militares transformacionistas queacompanham a transição da Rússia no mundo de hoje em funçãoda globalização, da interdependência, da regionalização, da pro-liferação das novas ameaças, da exacerbação dos problemas glo-bais que a humanidade enfrenta, das novas crises que se vislum-bram nos horizontes futuras.

Entendo que situar a Rússia, mesmo em casos aparente-mente simples, é complicado. Lembremos as palavras de Bis-marck: “A Rússia nunca é tão forte ou tão fraca quanto parece”.Não importa qual é o grau de ruptura que a Rússia já enfrentouou poderá enfrentar no decorrer de sua história, o que une o povorusso e os povos da Rússia é sua cultura, sua crença milenar, suaexperiência histórica trágica e educadora, que se resume em taispalavras como “resistência a tribulações”, “paciência” e “fé”.

O livro de João Fábio Bertonha é maduro, sólido, basea-do em fontes sérias e fidedignas e apresentará aos leitores do pú-blico geral e especializado um relato consequente, estruturadosobre a história contemporânea e militar, sobre a trajetória daRússia nesta história.

Prof. Dr. Alexander Zhebit

CFCH/UFRJ

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SSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................19

Capítulo 1 – A formação territorial e a expansão imperialista russa até aPrimeira Guerra Mundial ..........................................................23

As origens da Rússia.........................................................................................23Da Moscóvia à Rússia Imperial........................................................................25Pedro, o Grande, e a busca da modernidade.....................................................28As guerras napoleônicas ...................................................................................30O expansionismo russo na Europa e na Ásia no século XIX............................31A guerra da Crimeia (1854-1856) ....................................................................35O conflito com o Japão (1904-1905) ................................................................37

Capítulo 2 – Economia e Política no Século XIX Russo.................................39A Rússia em 1815.............................................................................................39Uma grande potência? ......................................................................................40A revolução militar do século XIX...................................................................41A Rússia e as mudanças econômicas e militares do século XIX ......................42A Rússia em 1914: o colosso com pés de barro ...............................................47

Capítulo 3 – A Rússia na Primeira Guerra Mundial.....................................53A Rússia e a política de poder européia entre os séculos XIX e XX................53A Rússia na guerra: mobilização e operações de guerra – 1914-1915 .............55A ofensiva Brusilov e o colapso do Exército russo – 1916-1917 .....................57A Rússia na Primeira Guerra Mundial: uma avaliação.....................................62

Capítulo 4 – A União Soviética.........................................................................69Perdas territoriais e guerra civil – 1917-1920...................................................69Reconstrução do poder industrial e militar – 1921-1941..................................72A URSS na Segunda Guerra Mundial ..............................................................78A vitória soviética na Segunda Guerra Mundial...............................................84

Capítulo 5 – A União Soviética na Guerra Fria..............................................91A nova paisagem geopolítica: EUA e URSS entre 1945 e 1950 ......................91A URSS na Guerra Fria: Cerco geopolítico e expansionismo..........................94

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A corrida armamentista e o complexo industrial militar soviético ...................97A decadência econômica e as reformas de Gorbachev ...................................107

Capítulo 6 – O colapso de um Império: a Rússia nos anos 90.....................111O fracasso da política de reformas e o fim da URSS......................................111Perdas territoriais e decadência imperial ........................................................117Declínio econômico........................................................................................120Colapso militar ...............................................................................................123

Capítulo 7 – A Rússia de Putin e além...........................................................127Política: a volta do autoritarismo....................................................................127Recuperação e (ir)relevância econômica ........................................................131Problemas sociais e crise demográfica ...........................................................134O poder militar russo no início do século XXI ...............................................136A desintegração da Federação Russa? ............................................................142

Capítulo 8 – A Rússia e o mundo no século XXI...........................................147A política externa russa: o “exterior próximo” ...............................................147A Rússia e o mundo........................................................................................158

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................163

REFERÊNCIAS ................................................................................................171

SOBRE O AUTOR ...........................................................................................177

ÍNDICE ALFABÉTICO....................................................................................179

MapasMapa 1 – Expansão russa no século XVI ........................................................26Mapa 2 – Expansão do Império russo no Cáucaso (1763-1914) .....................32Mapa 3 – Expansão do Império russo na Sibéria e Ásia Central (1689-

1914)................................................................................................33Mapa 4 – Regiões industriais e rede ferroviária na Rússia europeia no

início do século XX .........................................................................45Mapa 5 – A Rússia na Primeira Guerra Mundial.............................................61Mapa 6 – Ofensivas do Exército Vermelho em 1942-1945.............................82Mapa 7 – Os blocos soviético e ocidental nos anos 40 e 50 e a crise

cubana de 1962 ................................................................................95Mapa 8 – Etnias na URSS na década de 1980 ...............................................113Mapa 9 – Os Estados sucessores da URSS....................................................117

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IIIINTRODUÇÃONTRODUÇÃONTRODUÇÃONTRODUÇÃO

Primeira cena, 1999: Cem mil soldados russos, apoiadospor aviões, helicópteros de ataque, blindados e artilharia pesada,reduzem a cinzas a pequena república separatista da Chechênia.Aparentemente, os russos demonstraram o enorme poder de fogo desuas Forças Armadas.

Segunda cena, 2005: Começam manobras militares entrea China e a Rússia na região do Pacífico. Aparentemente, Moscoue Pequim se unem para desafiar a grande superpotência norte--americana.

Terceira cena, 2007: Irritado pela instalação de mísseisantibalísticos norte-americanos na República Tcheca e Polônia, ogoverno russo ameaça denunciar os tratados de desarmamento naEuropa assinados nos anos 90. Aparentemente, o fantasma da Guer-ra Fria está de volta.

Esses três “aparentemente” nos parágrafos de cima não sãoocasionais. De fato, longe de demonstrar a força e o poder da Rús-sia, a campanha da Chechênia e as bravatas russas sobre a sua ca-pacidade de enfrentar os Estados Unidos são, na verdade, menosprova de força e mais da fraqueza da Rússia atual.

Realmente, para qualquer um que estude a história mun-dial nos últimos séculos e, mais especialmente, tenha acompanha-do o noticiário internacional nas décadas posteriores à SegundaGuerra Mundial, a referência à Rússia ou à União Soviética seriaquase obrigatória. Todas as outras potências – seja ela a França doséculo XVIII, a Inglaterra do século XIX ou os Estados Unidos noséculo XX – não podiam ignorar a opinião de Moscou e, na épocada Guerra Fria, todos sabiam, ao acompanhar o noticiário na TVou através dos jornais, que o ponto de vista do Kremlin seria sem-pre mencionado, logo depois, ou mesmo antes, do da Casa Branca.

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Hoje, contudo, a situação mudou radicalmente. A Rússiacontinua a ser uma grande potência e os sinais de sua recuperaçãosão evidentes, mas não é mais nem sombra do que foi. A voz dogoverno russo está crescendo, mas ainda não tem o eco de décadasatrás. Como é possível tal situação quando, meros quinze anosatrás, o poder russo ainda atemorizava o mundo?

Na verdade, o processo de ascensão e queda das grandespotências não é nada novo na História. Antigos países que domina-ram a política mundial e eram grandes potências militares (como aInglaterra, a Espanha e a França) hoje foram reduzidos a potênciasde segunda categoria, enquanto outros, como os Estados Unidos,ascenderam. Mesmo em termos econômicos, a situação nunca é está-vel e países antes ricos, como a Argentina e o Uruguai, são atual-mente pobres, enquanto a China cresce em ritmo acelerado. Enfim,a oscilação das nações no ranking de riqueza, poder e influêncianão é nenhuma novidade.

No caso russo, o que impressiona e causa interesse é a ve-locidade com que o processo aconteceu. Além disso, o colapso doImpério russo nos interessa especialmente por estar ocorrendo emnosso tempo, gerando efeitos e problemas com que teremos queconviver durante os próximos anos, senão décadas. Sendo assim,compreender o processo de ascensão e queda do Império russo pa-rece uma necessidade.

Nesse sentido, esse livro tem o objetivo de ser uma introdu-ção a esta temática, utilizando a história russa para compreender osdilemas da Rússia contemporânea. Ele não se pretende, contudo, umahistória completa da sociedade ou do povo russos. Se quiséssemosescrever tal história, várias questões abordadas apenas lateralmentenesse livro, como a questão agrária na Rússia, a história do Partidobolchevique e da ideologia comunista, as lutas sociais no períodoczarista e outras deveriam ser aprofundadas, o que não é o caso.

Realmente, é importante deixar claro que não pretendoabordar em detalhes certos tópicos da história russa (especialmenteno período soviético), como o regime stalinista, a ideologia leni-nista e as diversas revoluções de 1917, entre outros, sobre os quaisjá existe uma bibliografia considerável em português. Qualquerleitor pode encontrar, sem dificuldades, nesta bibliografia, materialpara aprofundamento a respeito desses assuntos, o que me exime de

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abordá-los além do mínimo necessário para o desenvolvimento domeu argumento.

Do mesmo modo, outros tópicos mais gerais, como as ori-gens das duas guerras mundiais ou os dilemas do mundo globaliza-do, também serão vistos apenas para dar o contexto preciso da atua-ção russa no mundo, sem o exame de todos os desdobramentos edebates que deles fazem parte.

Em resumo, este é um livro com um foco bastante preciso,ou seja, a inserção internacional da Rússia nos últimos séculos, comênfase na sua história militar e geopolítica, partindo da época dosczares e chegando ao momento atual, no início do século XXI. Aquestão da formação territorial da Rússia e a ida e vinda das suasfronteiras será especialmente trabalhada, assim como o relaciona-mento do Estado russo com o resto do mundo e as guerras em que opaís se envolveu nos últimos séculos.

Nesse sentido, o primeiro capítulo apresentará um panoramageral da formação da Moscóvia imperial e do Estado imperial russo eda sua expansão em direção à Ásia e à Europa, desde a época moder-na até o início da Primeira Guerra Mundial. Os principais conflitosem que o Estado russo se envolveu nesse processo, como as guerrasnapoleônicas e as da Crimeia e do Japão, também serão apresentados.Teremos, assim, o pano de fundo factual a partir do qual poderemoscompreender os dilemas estratégicos e militares com que a Rússia sedefrontava entre fins do século XIX e inícios do século XX. No ca-pítulo segundo, tais dilemas serão explorados em profundidade, en-quanto o terceiro estudará o momento em que a Rússia imperial foirealmente colocada à prova, ou seja, a Primeira Guerra Mundial.

Os capítulos seguintes abordarão a formação da União So-viética, a sua participação na Segunda Guerra Mundial e o conflitocom os Estados Unidos durante a Guerra Fria, focalizando especial-mente os problemas geopolíticos e militares enfrentados pelos sovié-ticos. Por fim, analisar-se-á o colapso do sistema soviético, com oconsequente retorno do Estado russo ao cenário internacional.

Os dois últimos capítulos se concentram justamente nessanova Rússia e procuram fazer um diagnóstico dos seus atuais ele-mentos de poder e das suas condições econômicas, militares e es-tratégicas neste século XXI. As perspectivas de atuação geopolítica

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da Rússia e sua inserção dentro do sistema de grandes potênciasatual serão especialmente enfocadas.

Percebe-se, assim, que a densidade do texto aumenta àmedida que nos aproximamos do momento atual, com mais espaçosendo dedicado, por exemplo, aos últimos dez anos da história rus-sa do que às centenas do período czarista. Tal opção nos parececonveniente para um trabalho que não se pretende um grande trata-do geral sobre a História russa, mas que procura utilizar elementosdesta História para explicar os dilemas e problemas da Rússia hoje.

Cumpre ressaltar, ainda, uma vez que este é um livro vol-tado centralmente a um público sem muita familiaridade com ahistória russa, ou seja, o brasileiro. Assim, certas referências ouinformações históricas que seriam absolutamente desnecessáriaspara um público russo ou mesmo europeu terão que ser, aqui,acrescentadas. Do mesmo modo, este é um livro que se pretendevoltado ao público não especializado ou que se inicia no estudo daHistória das Relações Internacionais.

O próprio formato do texto, corrido, sem notas e remeten-do à bibliografia final para a fonte das informações utilizadas nomesmo, indica esse seu caráter mais geral e o esforço para atingirum público mais amplo. Realmente, não faria realmente sentido emsobrecarregar um livro como este com uma imensa massa de refe-rências ou notas que dificultariam a sua leitura.

Além disso, como este é um trabalho que utiliza larga-mente fontes estatísticas e factuais de domínio público e/ou vincu-ladas pela mídia – escrita, televisiva e no espaço virtual – nos anosrecentes, nem sempre foi possível ou necessário citar a origem dasinformações. Apenas quando foi completamente inevitável, paraevitar o plágio, citar o autor de alguma opinião ou dado, isso foifeito. E, mesmo assim, preferiu-se, nesses casos, utilizar o sistemaautor-data, que permite uma maior fluidez do texto.

Enfim, o objetivo deste livro é entender como e porque aRússia cresceu a ponto de se tornar um grande Império, as razõesda sua decadência e o impacto tanto dessa ascensão quanto dessaqueda dentro da história das relações internacionais, nos últimosséculos, o que é uma tarefa essencial para quem quer compreendernão apenas a Rússia, como o próprio mundo em que vivemos.

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Capítulo 1

A A A A FORMAÇÃO TERRITORIAL E AFORMAÇÃO TERRITORIAL E AFORMAÇÃO TERRITORIAL E AFORMAÇÃO TERRITORIAL E A

EXPANSÃO IMPERIALISTA RUSSAEXPANSÃO IMPERIALISTA RUSSAEXPANSÃO IMPERIALISTA RUSSAEXPANSÃO IMPERIALISTA RUSSA

ATÉ A ATÉ A ATÉ A ATÉ A PPPPRIMEIRA RIMEIRA RIMEIRA RIMEIRA GGGGUERRA UERRA UERRA UERRA MMMMUNDIALUNDIALUNDIALUNDIAL

AS ORIGENS DA RÚSSIA

Não existe um consenso sobre as origens das várias tribose grupos que compartilhavam a língua e a cultura eslava. O que éconhecido é que, por volta de 800 anos antes de Cristo, tribos esla-vas habitavam a região que agora é a Rússia central (que eles co-nheciam como Rus), disputando território, por séculos, com outrastribos que também haviam se instalado na região, assim como cominvasores vindos das profundezas da Ásia.

Por volta de 200 d.C., tribos germânicas, como os godos, ede origem asiática, como os hunos, controlaram o território eslavo.A partir do momento em que as primeiras adentraram o ImpérioRomano e as segundas foram derrotadas por este, os eslavos se ex-pandiram pela região que hoje é a Europa Oriental. Conflitos doseslavos, divididos em vários reinos e grupos, com tribos asiáticas,como os avaros, e com o Império bizantino marcaram os séculosseguintes.

Por volta do século 9 d.C., guerreiros e mercadores escan-dinavos, os vikings, atingiram o território dos eslavos e consegui-ram criar um Estado, conhecido como o da Rússia de Kiev, com

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sede justamente nesta cidade. Sob a liderança de vários reis, essereino tornou-se, por volta de 1030, o maior Estado em área territo-rial da Europa, submetendo a maioria dos povos eslavos e mesmoalgumas tribos de outras origens.

Em 988, um importante acontecimento marcou a históriado povo russo: a conversão ao Cristianismo. Antes pagãos, os esla-vos foram progressivamente se convertendo e, nesse ano, o Cristia-nismo foi oficialmente adotado como religião oficial pelo PríncipeVladimir, do Reino da Rússia de Kiev.

No entanto, enquanto poloneses, croatas e outros eslavosse tornaram católicos romanos, sérvios, búlgaros e russos se torna-ram, depois do cisma de 1054, católicos ortodoxos, mais próximoda herança bizantina. Os bizantinos, aliás, foram especialmenteimportantes na formação cultural, linguística e religiosa dos eslavosdo oriente, entre os quais os russos. Cristalizou-se, nesses anos,assim, uma divisão cultural e religiosa dentro do mundo eslavo (esobretudo dentro do mundo cristão) que marcaria a história dessespovos nos séculos futuros.

Nos dois séculos seguintes, o que ficou conhecido como o“primeiro Império russo” dividiu-se novamente em vários principa-dos, o que enfraqueceu o poder do reino frente aos muitos inimigosnas fronteiras. Em 1223, começaram as invasões dos tártaro--mongóis, que subjugaram o território russo. Algumas décadas de-pois, eles se retiraram e retornaram às estepes. Mas mantiveramexpedições punitivas e exigências de tributos por outros duzentos ecinquenta anos, marcando profundamente a cultura e a maneira dever o mundo dos russos.

Os tártaro-mongóis foram realmente brutais na sua domi-nação da Rússia, assim como de outros povos. Cidades inteiras,como Moscou e Kiev, foram destruídas e saques e pilhagens eramcomuns. Ao norte, protegido pela geografia, um dos principadosrussos, o de Novgorod, conseguiu escapar das invasões mongóis,mas teve que repelir também ataques dos suecos e dos cavaleirosteutônicos.

Por volta do século XIV, à medida que o poder mongol en-fraquecia, começava a ascensão do Estado que seria a verdadeiraorigem do Império russo, a Moscóvia.

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DA MOSCÓVIA À RÚSSIA IMPERIAL

O Grão-Ducado de Moscou, ou Moscóvia (denominaçãodada ao Estado russo em documentos estrangeiros dos séculosXVI-XVII), como o próprio nome indica, tinha a sua origem e oseu centro na cidade de Moscou. Entre os séculos XIII e XVI, oprestígio e a influência desse novo Estado não cessaram de crescer,assim como o seu território, à medida que ele ia anexando os vizi-nhos. Apenas entre 1359 e 1425, o território da Moscóvia foi mul-tiplicado por oito.

Nos anos seguintes, no reinado de Ivan III, o Grande(1462-1505), esse processo de engrandecimento continuou. Durantemais de quarenta anos, o Estado moscovita foi capaz não apenas dereunir força militar suficiente para se livrar da suserania dos tárta-ros, como multiplicou a área sob o seu domínio em mais quatrovezes. Por intimidação, submissão voluntária ou conquista, o domí-nio moscovita continuou a crescer.

Foi no reinado de Ivã IV, o Terrível (1547-1584), contu-do, que a expansão territorial foi mais marcante. As conquistas nooeste, onde os russos enfrentaram povos militarmente mais fortes,como os suecos e poloneses, foram menos importantes, mas fo-ram largamente compensadas pelos substanciais ganhos no leste.Ali, aproveitando-se da fraqueza dos Estados tártaros remanes-centes (a maioria convertida, nos séculos anteriores, ao islamis-mo), houve substancial expansão, com a conquista da bacia doVolga e penetração na Sibéria. Os russos agora comandavam po-vos que não eram etnicamente russos e nem sequer eslavos, for-mando um verdadeiro Império, com cerca de doze milhões dehabitantes.

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Mapa 1 – Expansão russa no século XVI

Fonte: Channon e Hudson (1996), p. 39.

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No reinado de Ivã IV, os russos viveram um regime deopressão e violência. Na verdade, o poder dentro do Estado mosco-vita sempre foi concentrado nas mãos do rei, mas Ivã IV levou issoao limite. Como reflexo disso, quando de sua coroação, em 1547,ele assumiu o título de czar (uma derivação de “César”), como sinalde sua determinação em exercer o poder autocraticamente. O títulofoi, a partir daí, utilizado pelos soberanos moscovitas.

Na primeira metade do século XVII, os ganhos e perdasterritoriais russas seguiram um padrão mais ou menos igual. Quan-do enfrentavam exércitos mais poderosos e bem armados, como ospoloneses e suecos, os russos cediam e tiveram perdas substanciaisno Báltico e em outros locais. Por todo esse século, a fronteira oci-dental russa ia e voltava conforme a sorte das armas, mas sem ga-nhos realmente marcantes.

Já na Sibéria, os exércitos do czar e as expedições organi-zadas pelos ricos mercadores em busca de peles e outros artigosagiam numa área escassamente povoada e controlada por tribos ereinos militarmente fracos, muitos dos quais desconheciam as ar-mas de fogo. Vários rios, além disso, forneciam canais seguros decomunicação militar e comércio. Dessa forma, o território russo foisendo continuamente ampliado para leste.

Assim, o poder russo foi lentamente absorvendo o territó-rio a leste dos montes Urais. Já em 1581-82 a cidadela de Isker, naSibéria Ocidental, foi ocupada. Em 1632, o posto avançado deYakutsk foi fundado, seguido por Okhotsk em 1649 e Irkutsk em1652 e com exploradores russos atingindo os Oceanos Pacífico eÁrtico. Na mesma época, assim, em que espanhóis, portugueses,ingleses e franceses criavam e ampliavam seus Impérios na Améri-ca, os russos construíam o seu na Ásia.

É verdade que boa parte desse território era controlado ape-nas informalmente pelo czar. As pequenas guarnições de soldadosrussos e de cossacos não conseguiam, efetivamente, manter total do-mínio das populações conquistadas, especialmente num território tãovasto. Mas tal expansão territorial representou, com certeza, um ele-mento chave para a potência russa de então e também para o futuro.

Na segunda metade do século XVII, a nova dinastia reinan-te, os Romanov (que ficaria no poder de 1613 até 1917), procurou

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recuperar as perdas nas fronteiras ocidentais, continuar a expansãopara o leste e para o sul e modernizar o Estado e as Forças Armadas.O auge desse processo, contudo, ocorreu no reinado de Pedro, oGrande, entre 1682 e 1725.

PEDRO, O GRANDE, E A BUSCA DA MODERNIDADE

O reinado de Pedro, o Grande, foi marcado por guerras in-cessantes. No leste, os cossacos, os comerciantes e os soldados rus-sos continuaram a expansão e, em 1716, foi fundada a cidade deOmsk, no coração da Sibéria. Os russos também se apossaram dapenínsula de Kamtchatka e das ilhas Curilas, já no Oceano Pacífico.No sul, as tropas do czar travaram uma série de guerras com o Im-pério turco-otomano, procurando um acesso para o mar Negro. Nofinal, os turcos conseguiram impedir momentaneamente a expansãorussa, mas o Império turco-otomano estava claramente na defensivafrente aos russos nesse período.

Foi no Ocidente, contudo, que as vitórias de Pedro forammais relevantes. Depois de uma longa guerra, de mais de vinteanos (1700-1721), chamada a Grande Guerra do Norte, com aSuécia (na qual os russos tiveram grandes vitórias, como na Ba-talha de Poltava, em 1709, e na da Península de Hango, esta na-val, em 1714), a Rússia conquistou uma saída para o mar Báltico.Mais importante do que isso, contudo, foi a fundação de umanova capital nas terras conquistadas, São Petersburgo, em 1703, eo reconhecimento, dada essa vitória, da Rússia como grande po-tência pelos demais países europeus. A adoção do título “Impera-dor” (que acabou por se confundir com o de “czar”, apesar distoser, tecnicamente, incorreto) por parte de Pedro, em 1721, e aadoção do termo “Império russo” (no lugar de Moscóvia) paradesignar o Estado, a partir de então, também refletem o novostatus internacional que se pretendia para a Rússia.

Esse período também foi de intensa modernização e oci-dentalização. Pedro procurou aproximar o Estado e a cultura russados padrões ocidentais, modernizando a estrutura política e esti-mulando a indústria e o comércio. As Forças Armadas tambémreceberam melhorias, incluindo o recrutamento em bases perma-

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nentes, o que permitiu, aliás, as suas vitórias militares. No entanto,a sua ênfase no poder absoluto do soberano e do Estado e as própriasresistências das elites russas tornaram esse processo de moderniza-ção e liberalização bastante limitado.

Os sucessores de Pedro, entre 1725 e 1789, conseguiramamplos ganhos territoriais em todas as direções. No leste, na penín-sula de Kamtchatka, a base naval de Petropavlovsky foi fundadaem 1740 e o domínio russo cresceu na direção do mar de Aral e daÁsia Central. O processo de expansão atingiu, por fim, a América,ou seja, o Alasca, que começou a ser explorado por caçadores depeles nesses anos.

No reinado de Catarina II, a Grande, entre 1762 e 1796, aomesmo tempo em que a expansão prosseguia no sul, em detrimentodos turcos, e no leste, houve avanços substanciais também no oeste.O Estado polonês sofreu três partilhas entre a Rússia, a Áustria e aPrússia, em 1772, 1793 e 1795, e cessou de existir. O Império russoavançou suas fronteiras para o Ocidente, absorvendo o que hoje é aBielo-Rússia, a parte ocidental da Ucrânia e áreas no Báltico. Pelaprimeira vez na história, se excluirmos a Suécia, o Estado russotinha fronteiras com as potências ocidentais.

Para explicar essa tendência expansionista russa na épo-ca czarista, temos que levar em conta não apenas os aspectos geo-políticos e a ideologia imperialista russa, inegável e que conside-rava direito e dever da Rússia se expandir pelo mundo. Tambémeram relevantes as ambições dos mais diversos monarcas, queambicionavam os ganhos políticos e econômicos de uma expan-são contínua, e a busca de outras vantagens econômicas. A buscade segurança frente a outros Estados e a própria prática da mo-narquia de distribuir terras e servos aos nobres como forma degarantir a sua lealdade também davam impulso a essa expansão.

Em resumo, a busca do Estado russo pelo controle demais território na época moderna não era nada excepcional, comose a Rússia fosse o único país que buscasse expandir sua baseterritorial. Essa expansão das fronteiras era um processo quasenatural, muitas vezes impulsionado pelo Estado e, frequente-mente, posto em movimento pela iniciativa de comerciantes, ca-çadores e outros. Havia interesses econômicos, de segurança,políticos e vários outros atuando, junto com as ambições geopo-

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líticas e estratégicas, para fazer da Rússia uma nação expansio-nista.

Claro que o expansionismo russo na época moderna tinhaespecificidades, como o fato de ele se concentrar em áreas contí-guas ao território já conquistado (com os russos ausentes, assim, dacorrida colonial na América, com exceção do Alasca e da Califór-nia, e das lutas pelo comércio dos produtos tropicais na Ásia eÁfrica) e do papel menor (ainda que importante, especialmente nocaso da Sibéria) de uma burguesia comercial na sua consecução.Ainda assim, estava, de uma forma ou outra, inserido num mo-mento maior da história europeia.

AS GUERRAS NAPOLEÔNICAS

Os exércitos russos, como visto, já estavam atuando nasguerras europeias desde o século XVIII. Neste século, os russosderrotaram suecos, turcos e poloneses em várias guerras e, em1760, na Guerra dos Sete anos, chegaram a ocupar temporaria-mente Berlim, surpreendendo os europeus pela persistência e com-batividade das suas tropas. Foi no ciclo de guerras gerado pela Re-volução Francesa e por Napoleão Bonaparte entre 1789 e 1815,contudo, que a Rússia ascendeu definitivamente ao papel de grandepotência europeia.

Já em 1798-1799, um corpo de dezoito mil soldados rus-sos, liderados pelo general Aleksandr Suvorov, apoiou os austríacoscontra os franceses no norte da Itália. Nos anos seguintes, exércitosrussos participaram das batalhas de Austerlitz e Friedland contra ossoldados de Napoleão, tendo perdas tão grandes que levaram o czara fazer a paz de Tilsit com a França, em 1807.

Cinco anos depois, contudo, as tensões entre os dois paí-ses levaram à invasão da Rússia pelo “Grande Exército” de Na-poleão, com 550.000 homens. Mesmo derrotados em Borodino,os russos não se renderam e resistiram até que a fome, o frio e afalta de suprimentos dizimaram os franceses e seus aliados. Em1813-1814, fazendo parte da VI Coalizão Antinapoleônica, os

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soldados do exército russo chegaram até Paris, que foi ocupadapor eles, em 1814.

Vários elementos colaboraram para salvar a Rússia da con-quista francesa, permitindo a sua recuperação militar. Em primeirolugar, a invasão conseguiu criar um clima patriótico e mobilizar aomenos parte da população russa para uma guerra de guerrilhas contraos franceses, repetindo o cenário desastroso que eles enfrentaram naEspanha entre 1808 e 1813. Depois, os franceses tiveram que lidarcom o clima inclemente, a imensidão do país, a distância que separa-va a Europa do núcleo do poder russo em Moscou (o que lhe davauma certa invulnerabilidade) e, especialmente, as dificuldades paraabastecer as tropas francesas no imenso espaço do Império.

A firmeza e a paciência da liderança russa, especialmenteo general Kutuzov e o czar Alexandre I, que souberam explorar asfraquezas francesas no campo de batalha, recuando para o interiordo espaço russo quando necessário e recusando as ofertas de pazfeitas por Napoleão, também foram fundamentais para a vitória.

De qualquer modo, a entrada de um exército russo em Pa-ris foi, com certeza, um símbolo da ascensão russa ao status de po-tência mundial, potência esta que continuou a se expandir nas dé-cadas seguintes.

O EXPANSIONISMO RUSSO NA EUROPA ENA ÁSIA NO SÉCULO XIX

Ainda que as fronteiras do Império russo estivessem seaproximando da região desde o século XVI, foi apenas no final dosséculos XVIII e XIX que a área entre os mares Negro e Cáspio foiincorporada. Tanto através da submissão voluntária, como pelaconquista dos pequenos Estados das montanhas, a fronteira foi sen-do levada para o sul. Uma longa série de guerras com a Pérsia ecom o Império turco, especialmente entre 1783 e 1878, tambémtrouxe novos territórios. Na segunda metade do século XIX, a Rús-sia controlava quase toda a região do Cáucaso e seus povos, queincluíam cristãos, como os armênios e os georgianos, e muçulma-nos, como os chechenos e os azeris.

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Mapa 2 – Expansão do Império russo no Cáucaso (1763-1914)

Fonte: Channon e Hudson (1996), p. 73.

No decorrer do século XIX, o Império russo também com-pletou a conquista da Ásia Central. Os antigos povos de origemtártara, persa ou turca da região (como os cazaques, os uzbeques, osturcomenos e outros) tiveram que aceitar a soberania russa e, deforma gradual, mas persistente, a fronteira foi sendo levada para osul. Ao fazê-lo, os russos compensavam suas dificuldades, desde aguerra da Crimeia, em se expandir na direção da Europa e amplia-

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vam seu cacife, ao se mostrarem um Império em crescimento,frente aos outros poderes europeus, especialmente a Inglaterra.

Mapa 3 – Expansão do Império russo naSibéria e Ásia Central (1689-1914)

Fonte: Channon e Hudson (1996), p. 55.

No final do século, realmente, os russos estavam se apro-ximando da Índia, que era, então, a colônia mais importante do Im-pério britânico. Tal situação era extremamente preocupante para

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Londres, o que levou a uma crescente tensão com os russos na região.A situação poderia ter degenerado em guerra entre as duas potências,mas tanto o Império russo como a Inglaterra, no final do século XIXe início do século XX, não desejavam, especialmente para poderemunir forças frente à Alemanha no cenário europeu, entrar em conflitono coração da Ásia, o que levou à assinatura de acordos disciplinan-do a conquista da região em 1907 e ao estabelecimento do Afega-nistão como “estado tampão” entre os dois Impérios.

Para explicar essa tendência expansionista russa no séculoXIX, temos que recordar que vários dos elementos atuantes nosséculos anteriores, já mencionados, e que instigavam o expansio-nismo, ainda estavam atuando, como os interesses econômicos, abusca de segurança frente às outras potências etc. A ideologia impe-rialista russa, que justificava e defendia o direito da Rússia de ab-sorver cada vez mais territórios, também era um elemento de conti-nuidade frente ao período anterior.

Na “corrida imperialista” do século XIX, contudo, entra-vam em jogo outros elementos. Nesse momento, as colônias adqui-riram, para as potências europeias, uma importância ainda maior,servindo não só para o comércio e para o abastecimento da Europade produtos tropicais (como havia sido nos séculos anteriores),como também para fornecer matérias-primas e consumir os pro-dutos produzidos nas crescentemente industrializadas metrópoleseuropeias. Os interesses econômicos, apesar de não exclusivos,deram um novo formato ao imperialismo do século XIX.

Além disso, houve uma mudança substancial na mentali-dade das elites europeias nesse período. Dispor de colônias não eramais simplesmente uma questão de escolha, mas algo fundamentalpara demonstrar vitalidade e força. Em um momento em que o na-cionalismo exacerbado se tornava, por diversas razões, uma dasbases da política europeia, não dispor de colônias e de forças mili-tares poderosas era um sinal de fracasso nacional. Adquirir um Im-pério e conseguir desfrutá-lo e protegê-lo não era nenhuma desonra.Pelo contrário, era uma prova de vitalidade e força nacional e amaioria das nações europeias se lançou neste desafio.

Assim, apesar das especificidades russas, a serem vistas aseguir, não se pode dizer que o Império russo fosse muito diferentedas outras nações europeias, quando o assunto era a expansão impe-

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rial. Interesses econômicos, busca de segurança e desenvolvimentoe ideologia imperial (ou pensamento geopolítico) se articulavampara fortalecer ambições de expansão externa que já vinham, narealidade, desde a época das Grandes Navegações.

De qualquer forma, as conquistas territoriais russas, no de-correr do século XIX, mesmo não tendo chegado à Índia, foramsubstanciais, ampliando ainda mais o já imenso território do Impé-rio e compensando a desistência em prosseguir a colonização daAmérica do Norte, corporificada na venda do Alasca aos EstadosUnidos em 1867.

Cumpre ressaltar, por fim, uma especificidade do imperia-lismo russo dentro do panorama imperial europeu do século XIX.Enquanto os países da Europa Ocidental criavam colônias de além--mar, mantidas em contato com a metrópole através da força naval, osrussos optaram por uma política de crescimento em território contí-guo ao que eles já possuíam, na Ásia e na Europa. Os novos territó-rios e povos incorporados à Rússia tinham, na maior parte dos casos,menos direitos do que os russos étnicos e eram tratados quase comocolônias, mas a própria proximidade territorial implicava numa mistu-ra entre russos e não russos muito superior a que teria acontecido sesuas colônias estivessem em outro continente. Centro e periferia aoinvés de metrópoles e colônias como na Europa ocidental.

Portanto, a própria incorporação de territórios contíguos im-plicava na criação de um tipo de relacionamento entre dominantes edominados diferente daquele criado pelos europeus ocidentais nassuas colônias além-mar. Um sistema imperial bastante parecido, nesseponto, com o dos norte-americanos, que se expandiram pela Américado Norte por todo o século XIX, com a diferença que os novos Esta-dos dos Estados Unidos recebiam direitos iguais aos dos 13 originais.De qualquer modo, a formação particular do Império russo teve impli-cações futuras quando da descolonização dos Impérios europeus.

A GUERRA DA CRIMEIA (1854-1856)

As origens da Guerra da Crimeia estão justamente nessapolítica expansionista russa na direção da Ásia e da Europa. Comovisto, os russos estavam pressionando fortemente o enfraquecido

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Império turco-otomano e anexando territórios tanto na Europa comona Ásia. Há certa controvérsia se a Rússia czarista queria destruir oImpério turco e se apossar diretamente dos estreitos que ligam o marMediterrâneo ao Negro ou se ela ambicionava unicamente o seucontrole indireto. De qualquer forma, essa posse daria à Rússia umasaída para o mar aberto e uma imensa influência na bacia do Medi-terrâneo. O problema é que tal ambição era inaceitável para as po-tências ocidentais, especialmente a França e a Inglaterra.

Em 1853, após uma série de motivações casuais, russos eturcos entraram em guerra novamente e a marinha turca foi destruí-da pela russa. Franceses e ingleses intervieram então, enviando umaexpedição para Sebastopol, base da frota russa do mar Negro, napenínsula da Crimeia.

Ainda que a expedição franco-britânica à Crimeia tenhatido imensos problemas na sua organização e sistema logístico,sofrendo imensas perdas, ela foi capaz de derrotar as igualmenteincompetentes forças do czar, revelando as suas muitas debilidades.Os exércitos e frotas russas estavam espalhados dentro do territóriodo Império ou vigiando as muitas fronteiras e povos conquistados,sendo impossível reuni-los para um ataque conjunto aos invasores.Havia imensos problemas para abastecer as tropas em luta e muitosdos soldados recrutados para a guerra não tinham treinamento ade-quado (KENNEDY, 1989, p. 170-175).

Além disso, alguns líderes militares russos eram poucocompetentes e o armamento das tropas, como veremos a seguir,estava claramente ultrapassado. Estas eram características antigasdas Forças Armadas russas, mas sempre compensadas pela massanumérica. Agora, pela primeira vez, a superioridade numérica russanão compensou a sua inferioridade em armamentos e o Estado rus-so revelou-se incapaz de sustentar uma luta prolongada. Não sur-preende, assim, que, em 1856, com o Império claramente na defen-siva, o governo do czar Alexandre II tenha sido obrigado a ceder.

A Guerra da Crimeia trouxe, assim, perdas territoriais eproblemas econômicos à Rússia, além de quase meio milhão demortes. Mais importante do que tudo, entretanto, foi a demonstra-ção da crescente fraqueza econômica e militar russa frente ao Oci-dente, o que levou, como veremos no capítulo seguinte, a tentativasde mudanças econômicas e sociais dentro do país.

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Também a guerra russo-japonesa de 1904-1905 seguiu pa-drões semelhantes, tendo suas origens na permanente política deexpansão do Império russo e deixando claras as debilidades e pro-blemas deste Império na virada dos séculos XIX e XX.

O CONFLITO COM O JAPÃO (1904-1905)

A Rússia, no início do século XX, continuava a sua políticaexpansionista no Oriente, voltada agora à China, à Manchúria e àCoreia. De um lado, acreditava-se que não haveria rival para o poderrusso nessa região, longe das preocupações dos europeus, e que seriapossível ampliar o poder do Império sem grandes dificuldades. Deoutro, havia ali interesses econômicos russos muito precisos, voltadosaos recursos naturais dessas regiões. O problema é que as ambiçõesda Rússia se chocaram com as de outra potência, o Japão, o qual tam-bém desejava controlar a região oriental da China e a Coreia.

Em 1904, o Japão, preocupado com o crescimento do podernaval russo na região e com a finalização da ferrovia trans-siberiana(que visava, de um lado, a integração e o desenvolvimento econômicosiberiano, mas que também tinha um interesse estratégico em ampliara capacidade logística das tropas russas na fronteira com a China)atacou as instalações navais de Port Arthur. As forças terrestres enavais russas, pegas de surpresa e com uma oficialidade incompetenteno comando, foram, apesar de numerosas, derrotadas rapidamente.Vários cruzadores e encouraçados russos foram afundados e PortArthur foi cercado, rendendo-se em janeiro de 1905.

Em um supremo esforço, a frota russa do mar Báltico deua volta ao mundo para enfrentar os japoneses. Partindo da Europaem outubro de 1904, seus cerca de cinquenta navios, dos quais oitoencouraçados modernos, deram a volta pela África do Sul e peloÍndico, atingindo a região do conflito em maio de 1905. Apesar doesforço, tudo o que a esquadra russa – mal comandada e com tri-pulação grandemente inexperiente – conseguiu foi ser completa-mente destruída na batalha de Tsushima, em 27.05.1905. A Rússiaperdeu sua condição de grande potência marítima e o Império teveque aceitar a derrota e ceder territórios e áreas de influência ao Ja-pão, numa outra indicação das suas dificuldades nessa virada dosséculos XIX para o XX, as quais exploraremos melhor a seguir.

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Capítulo 2

EEEECONOMIA E CONOMIA E CONOMIA E CONOMIA E PPPPOLÍTICA NOOLÍTICA NOOLÍTICA NOOLÍTICA NO

SSSSÉCULO ÉCULO ÉCULO ÉCULO XIX RXIX RXIX RXIX RUUUUSSSSSOSOSOSO

A RÚSSIA EM 1815

Ao final das guerras napoleônicas, em 1815, a Rússia eraindubitavelmente um ator de importância nas relações internacio-nais europeias. Seu território era imenso e superava largamente ode qualquer país do Ocidente. Sua agricultura havia conhecido pro-gressos e, sob estímulo estatal e atendendo as demandas militares, aindústria tinha se desenvolvido para fornecer armas, munição, uni-formes e outros artigos.

Sua população também era expressiva e, tanto por anexa-ções como por crescimento natural, estava em rápido desenvolvi-mento. Em 1815, o Império contava com cinquenta e um milhõesde habitantes, tendo superado a França como país mais populoso daEuropa. Esse crescimento continuou nos anos seguintes. Isso signi-ficava ampla disponibilidade de recrutas para as Forças Armadas ede mão de obra para a economia.

Dada essa disponibilidade de homens e a ênfase das despe-sas estatais nas forças militares (cerca de quatro quintos do orça-mento nacional), o Exército russo era imenso. Realmente, comquase oitocentos mil homens em 1815, era simplesmente tãogrande que era considerado tão imbatível em terra quanto a mari-nha britânica o era no mar. Além disso, o soldado russo era reco-

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nhecidamente pouco exigente e capaz de suportar as maiores pri-vações, o que dava aos seus generais uma grande força militar. OImpério era visto como um colosso a ser temido (KENNEDY,1989, p. 168-176).

UMA GRANDE POTÊNCIA?

No entanto, a Rússia estava longe de ser uma potência real-mente dominante e, mesmo que as pessoas que viviam naquelemomento não pudessem saber, estava em lenta decadência. Seuterritório era amplo, mas grandemente desabitado e sem boas viasde comunicação, o que, muitas vezes, era mais um problema doque uma vantagem. Sua população era numerosa, mas menos ins-truída e mais pobre do que no resto da Europa e, muitas vezes,hostil ao domínio do Império, o que obrigava os militares russos adesviarem parte substancial dos seus soldados para missões depolícia interna.

Em termos econômicos, progressos estavam a ocorrer,com crescimento na produção de ferro, tecidos e agrícola, mas emritmo inferior ao do Ocidente. Basta recordar, a propósito, que se aprodução de ferro duplicou na Rússia nas primeiras décadas doséculo XIX, ela aumentou trinta vezes na Grã-Bretanha, o que indi-ca como os russos ainda viviam num país arcaico, com a produçãoagrícola limitada pela servidão dos camponeses, uma indústria pe-quena, um sistema financeiro e de administração pública atrasados,com relação à Europa ocidental, e pouco eficientes e um regimepolítico autocrático.

Em termos militares, o mesmo poderia ser dito. Haviaenormes problemas de abastecimento, a maioria dos oficiais eraincompetente e a capacidade russa em desenvolver armas tecnolo-gicamente avançadas era pequena. Os russos, além disso, eram umapotência terrestre, com presença nula nos grandes oceanos e comuma marinha de guerra pequena (cerca de 1/5 da britânica em1815) e isolada nos mares gelados e no Negro. Além disso, as mu-danças no panorama tecnológico mundial iam na direção contráriaàs condições russas.

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A REVOLUÇÃO MILITAR DO SÉCULO XIX

No período da Idade Moderna, quando a tecnologia militarse desenvolvia lentamente, ainda era possível copiar a experiênciaestrangeira e superar países com Forças Armadas melhores atravésdo peso dos números. No século XIX, tal possibilidade diminuiubastante, o que deixou evidente todas as vantagens e desvantagensda Rússia como grande potência.

Na primeira metade do século XIX, contudo, tal situaçãoainda não era tão clara e a pressão para reformas e mudanças erapequena. Assim, o sistema político e a sociedade russa oscila-ram, nas primeiras décadas desse século, entre tímidas tentativasde reformas e liberalização e ondas reacionárias. Camponesesempobrecidos e nacionalistas poloneses fizeram vários levantes,reprimidos com rigor, e a maior parte do poder efetivo continua-va nas mãos do czar e da nobreza. A economia também continua-va a ser gerida e pensada com os padrões dos séculos anteriores,sem muita preocupação com as intensas mudanças que já varriama Europa Ocidental e os Estados Unidos. O grande problema,para os russos, era que uma revolução econômica e militar estavaem curso nesse período, que eles podiam tentar ignorar, mas nãosem consequências.

Realmente, no período da Idade Moderna, entre os sé-culos XVI e XVIII, as Forças Armadas europeias, que haviamabsorvido e desenvolvido a tecnologia das armas de fogo, esta-vam ligeiramente à frente, em termos tecnológicos, dos seus ri-vais de fora da Europa. Entre os Estados europeus, contudo, nãohavia um diferencial tecnológico expressivo e as armas que equi-pavam espanhóis ou franceses, nas guerras do século XVII, nãoeram muito diferentes.

Nessa época, o que levava à vitória ou à derrota, no con-fronto entre os Estados europeus, era o fator financeiro. A produçãode armas e a manutenção dos Exércitos consumiam enormes somasde dinheiro e o vencedor normalmente era aquele que conseguialevantar mais recursos para manter suas forças em campo e/ou tinhamais homens e recursos para gastar. A Rússia estava bem nestesquesitos e era, portanto, uma grande potência.

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Com a Revolução Industrial, a partir do final do séculoXVIII, os recursos financeiros continuaram importantes, mas asForças Armadas foram lentamente ficando dependentes das novasfábricas que se espalhavam por boa parte do mundo. Estas novasindústrias produziam armamento cada vez mais desenvolvido tec-nologicamente, como navios movidos a vapor, canhões mais rápi-dos e precisos, a metralhadora (a partir do final do século XIX) eoutros, e em larga escala, o que permitia criar Exércitos e Marinhascada vez maiores e mais poderosos e recuperar as perdas em ritmoacelerado.

A RÚSSIA E AS MUDANÇAS ECONÔMICAS EMILITARES DO SÉCULO XIX

No caso russo, apesar de uma experiência de ocidentaliza-ção já ter se iniciado com Pedro, o Grande, o primeiro sinal de alerta,como visto no capítulo anterior, foi a Guerra da Crimeia. Nesta,quando os numerosos navios de madeira e vela russos tentaram en-frentar os navios de ferro e movidos a vapor dos franceses e ingleses(muitos deles com novidades bélicas, como granadas de fragmenta-ção para seus canhões e foguetes), foi um fracasso. Do mesmomodo, massas de soldados russos armados com fuzis de pederneira(com alcance de 200 metros) foram dizimadas pelos soldados alia-dos, que tinham fuzis modernos capazes de atirar a mil metros. Alémdisso, à medida que a guerra prosseguia e os estoques de armas esuprimentos russos se esgotavam, franceses e ingleses não apenasconseguiam produzir os seus em massa, repondo as perdas, comotinham navios a vapor para levá-los a Crimeia com rapidez.

Assim, os russos foram derrotados pela sua dificuldade emse adaptar ao mundo moderno nos mais diferentes aspectos, mas,especialmente, pela nova tecnologia ocidental. Ficou mais do queclaro, que, se a Rússia quisesse continuar a ser uma potência euro-peia, reformas teriam que ser implementadas. Esse foi o grandedesafio do Estado russo, a partir de então.

Esse novo contexto gerou um grande desafio aos Estadose às Forças Armadas de boa parte do mundo, nessa época, e não

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apenas à Rússia. Realmente, se agora o que representava a dife-rença entre um Exército poderoso e um fraco, entre conquistar eser conquistado, era uma capacidade industrial desenvolvida,conseguir essa capacidade tornou-se algo vital para todos os Es-tados. Não é à toa, assim, que muitos países, como a Áustria, aItália e outros, e não só a Rússia, tenham se lançado, entre fins doséculo XIX e inícios do século XX, em um frenético esforço paraconverter suas economias e suas forças militares para o novo pa-drão que ia se impondo.

Os resultados obtidos pelos vários países nesse esforço va-riaram muito. O Reino Unido, berço da Revolução Industrial egrande potência dominante na primeira metade do século XIX, en-fraqueceu em termos relativos, mas continuou importante. Já osEstados Unidos e a Alemanha cresceram em ritmo acelerado e sedestacaram no cenário econômico e industrial mundial, com a Ale-manha também se preocupando em criar um Exército e uma Mari-nha de peso.

No caso russo, a tentativa de adaptação ao novo con-texto também ocorreu. A servidão foi abolida em toda a Rússiaem 1861 (ainda que a maioria dos camponeses continuasse emextrema pobreza e sofrendo a exploração dos senhores de terras)e o Estado iniciou um programa de estímulo ao desenvolvimentoindustrial.

Tal programa foi conduzido de uma forma totalmenteautoritária, coerente com o caráter do Estado russo de então. Ocampo foi penalizado, com os recursos dos impostos sendo canali-zados para a indústria e as cidades. Os trabalhadores, rurais e urba-nos foram submetidos à intensa exploração e verdadeiramente san-grados por impostos e salários baixos, com todo descontentamentosendo imediatamente reprimido.

Além disso, o caráter instrumental do programa de moder-nização russo fica claro quando se verificam os setores beneficia-dos, ou seja, a indústria pesada (aço, carvão) e as ferrovias, enfim,aqueles necessários ao poder militar. Em resumo, as reformas rus-sas visavam claramente à recuperação do poder do Estado e não amelhora do nível de vida da população ou a transformação do Esta-do para um padrão mais democrático. A ambição dos czares era

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uma Rússia poderosa e temida e não democrática, equitativa e comalto nível de vida para a população. Tanto que, em 1913, apenas154 milhões de rublos foram destinados pelo Estado à saúde e edu-cação, enquanto 970 milhões foram absorvidos pelas Forças Arma-das (KENNEDY, 1989, p. 230).

Os resultados desse esforço foram bastante positivos, sepensarmos apenas no crescimento econômico e industrial. A popu-lação urbana passou de 3,6% para 7% da população, entre 1890 e1913, e a rede ferroviária (essencial para os movimentos militares)cresceu de mil e quinhentos quilômetros, em 1860, para trinta milem 1890 e setenta e cinco mil em 1914, incluindo a Trans--siberiana, que permitia a ligação com a Sibéria. Também foramlançadas medidas para tentar modernizar a agricultura.

No campo industrial, o crescimento atingiu uma média de5% ao ano, entre 1860 e 1914. A produção de carvão cresceu deseis milhões de toneladas, em 1890, para trinta e seis, em 1914.Nesse ano, a Rússia, com seus grandes campos na região de Baku,era o segundo maior produtor de petróleo do mundo. Em 1914, oImpério russo tinha se tornado a quarta potência industrial do mun-do, com destaque para a indústria do aço, a petrolífera e do carvão.Um grande complexo metalúrgico havia surgido na Ucrânia, a in-dústria têxtil era forte em Moscou e São Petersburgo e a Polôniahavia se tornado um polo industrial. A economia russa ainda eramuito dependente de capitais e maquinaria avançada da Europa(sendo que parte substancial da indústria russa estava sob controlede investidores estrangeiros) e o povo russo era pouco beneficiadopelo crescimento econômico, mas a Rússia se tornou autossuficienteem vários dos principais produtos industriais, especialmente aque-les necessários para o abastecimento militar (KENNEDY, 1989,p. 226-235).

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Mapa 4 – Regiões industriais e rede ferroviária na Rússiaeuropeia no início do século XX

Fonte: Channon e Hudson (1996), p. 85.

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Também as Forças Armadas sofreram reformulações, aomenos em alguns pontos. O Exército passou a selecionar os seussoldados a partir do recrutamento universal. A Marinha russa, porsua vez, que havia crescido bastante nos reinados de Pedro, oGrande, e Catarina II, mas decaído depois, foi reconstruída.

Os russos, além disso, ao mesmo tempo em que procura-vam melhorar a qualidade das suas Forças Armadas, continuavama investir e a confiar nos números. Em 1880, os russos tinhamquase 800 mil homens no Exército, número este ampliado para1,4 milhão em 1914, com cinco milhões nas reservas imediatas(KENNEDY, 1989, p. 200). Em todos esses anos, o Império ja-mais deixou de ter a maior Força Armada da Europa, ao menosnumericamente.

Os números brutos também continuavam a beneficiar osrussos em outros aspectos. A sua base territorial era imensa, supe-rando mais de vinte milhões de quilômetros quadrados e represen-tando dezenas de vezes a área de seus oponentes, como a Alemanhaou a Áustria. Sua população também continuava a crescer em ritmoacelerado, atingindo 116 milhões em 1890, 135 milhões em 1900 e175 milhões em 1914, sendo, neste último ano, quase três vezes aalemã, quatro vezes e meia a francesa e cinco vezes a italiana. Pa-recia um reservatório sem fim de homens e recursos (KENNEDY,1989, p. 195).

Em resumo, a Rússia, até 1914, havia feito esforços imen-sos para modernizar a sua economia e as suas Forças Armadas e aimpressão geral dos que viviam naquela época é que tais esforçoshaviam sido bem-sucedidos, havendo razões para temer o “colossorusso”, que parecia estar voltando ao seu período de glória pós-der-rota de Napoleão, em 1815.

Essa avaliação do renovado poder russo era realmenteforte nesses anos iniciais do século XX. Neste contexto, poucosduvidavam que Estados Unidos e Rússia seriam duas superpotên-cias do futuro. Os primeiros devido ao seu amplo território, popula-ção e, especialmente, poder econômico e a segunda a partir da suamassa de terra e gente e suas imensas forças militares. Um indicati-vo de como as pessoas viam os acontecimentos, e que explica aansiedade francesa, por exemplo, para conseguir a aliança de Mos-cou contra Berlim.

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A RÚSSIA EM 1914: O COLOSSO COM PÉS DE BARRO

Apesar desses imensos progressos, a Rússia ainda tinhaproblemas se ela queria realmente competir com os Estados avan-çados da Europa Ocidental. Ainda em 1914, ela era uma sociedadeessencialmente agrícola e com uma agricultura atrasada e poucoprodutiva. O povo russo tinha níveis de alfabetização, expectativade vida e bem-estar social bem abaixo dos da Europa Ocidental, oque estimulava um crescente descontentamento social, corporifica-do na Revolução de 1905.

Essa situação era um claro reflexo, cumpre ressaltar no-vamente, da opção russa por uma modernização apenas parcial. Aselites russas (e também as de outras sociedades em busca de mo-dernização na mesma época, como a Turquia e o Egito) imagina-vam que, absorvendo a tecnologia e os sistemas de produção oci-dentais, poderiam manter a força política e militar da sua nação semalterar os princípios autoritários e arcaicos que a geriam. O proble-ma é que a modernização ao estilo ocidental implicava, também,uma burocracia eficiente, um governo competente, uma populaçãominimamente educada, a participação das massas na política e aliberdade de pensamento e atividade empresarial.

O grande dilema é que, para o governo dos czares, tais li-berdades seriam impensáveis, enquanto a educação primária era atémesmo desestimulada, de modo a não colocar “ideias” na grandemassa de camponeses. Assim, algumas das alterações ambicionadaspelo governo do Império na sua estrutura econômica e militar nãoderam certo simplesmente por falta de mudanças mais amplas nasociedade.

Nesse ponto, o contraste com o Japão da era Meiji é signifi-cativo. O governo de Tóquio também empreendeu, mais ou menos àmesma época, um programa de modernização industrial e militarbancado em boa medida pelo Estado. Contudo, houve uma aberturamaior para a educação de massas, o sistema político ocidental e odesenvolvimento científico. O Japão, com certeza, não se tornou umpaís ocidental, mas seu processo de modernização, mais completo,permitiu que ele adquirisse o poder econômico e militar com o qualderrotou a Rússia em 1905 e se tornou uma potência imperialista.

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Além disso, apesar dos imensos avanços em termos abso-lutos, em termos relativos os competidores da Rússia, estavamcrescendo com mais vigor e em ritmo mais acelerado formandouma base econômica e industrial mais sólida e desenvolvida. Bastarecordar aqui, como, se foi uma imensa conquista russa ampliar oseu Produto Interno Bruto de dez bilhões de dólares, em 1830, paravinte e um bilhões, em 1890, essa conquista perde vigor quandorecordamos que, no mesmo período, a Alemanha fez seu PIB cres-cer de 7,2 para 26,4 bilhões e a Grã-Bretanha de 8,2 para 29,4 bi-lhões (KENNEDY, 1989, p. 169).

Em todos os outros setores, a mesma situação se repete.No caso da rede ferroviária, o aumento da malha foi imenso, mas agrandeza do país a deixava muito aquém das necessidades e bemlonge da densidade ferroviária da Inglaterra ou da Alemanha. Naindústria do aço, a produção russa cresceu de 950 mil para 4,8 mi-lhões de toneladas/ano entre 1890 e 1913, mas só a norte-americanacresceu de 9,3 para 31,8 milhões, e a alemã de 4,1 para 17,6 mi-lhões no mesmo período (KENNEDY, 1989, p. 197).

Além disso, os números relativos à evolução do PIB percapita (ou seja, a riqueza dividida pelo número de habitantes) indi-cam outro problema do crescimento russo. No período entre 1830 a1890, a renda per capita russa praticamente estagnou, oscilandoentre 170 e 182 dólares, enquanto a inglesa subiu de 346 para 785,a alemã de 245 para 537 e a francesa de 264 para 515 dólares(KENNEDY, 1989, p. 169).

Os russos sempre haviam sido os mais pobres, em ter-mos relativos, da Europa, mas agora a distância estava aumentan-do em ritmo acelerado, o que indica como, em geral, o cresci-mento da economia russa no século XIX ocorria essencialmentepelo aumento da população e não por inovações tecnológicas oucrescimento da produtividade, como era na Europa Ocidental e nosEstados Unidos, em plena era industrial. Assim, a base de riquezada potência russa estava perdendo importância, apesar de ainda serenorme.

As Forças Armadas também continuavam com problemasimensos. A Marinha estava dividida em várias frotas, incapazes dese concentrarem, e não dispunha de bons portos fora dos mares

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gelados, além de ser claramente inferior, em números e qualidade,às ocidentais. Já no Exército, a oficialidade, apesar de não ser, pro-vavelmente, tão corrupta e incompetente como a historiografiamarxista afirmou posteriormente, era claramente menos eficientedo que a alemã ou a francesa, enquanto seus soldados, apesar dedisciplinados e valentes, sofriam com a falta de recursos, uma dis-ciplina brutal, métodos arcaicos de instrução e, especialmente, como analfabetismo.

O analfabetismo, que atingia parte substancial dos campo-neses recrutados, realmente prejudicava muito o treinamento militarde homens que não conseguiam sequer ler suas ordens ou os manuaisde manutenção do pouco equipamento mecanizado disponível. Asinstruções, as ordens, os procedimentos de limpeza e conservaçãodas armas e outros tinham que ser aprendidos de cor, com perda deeficiência (KENNEDY, 1989, p. 232-234).

Além disso, como acontecia com toda a sociedade e a eco-nomia russas, as Forças Armadas tentavam resolver os problemasoriundos da baixa qualidade do potencial humano, da sua poucacriatividade e flexibilidade, da escassa mecanização dos serviços edo próprio gigantismo do país usando mais homens para fazer omesmo serviço. Assim, enquanto nos Exércitos alemão e francês,havia um homem nos serviços de retaguarda para cada dois na linhade frente, a proporção russa era de dois ou três na retaguarda paraum combatente, o que indica desperdício de potencial humano(JUKES, 1979, p. 79).

O próprio tamanho das Forças Armadas e do país, aliás,era um peso para sua eficiência, pois pulverizava seus recursos eimpunha problemas imensos no campo do abastecimento e organi-zação. Realmente, enquanto todos os outros países se esforçavampara fazer o máximo com os recrutas de que dispunham, o proble-ma russo era o excesso de contingente disponível. Nem a sua buro-cracia nem o seu sistema ferroviário podiam suportar o esforço derecrutar todos os seus súditos em idade militar, tanto que, na práti-ca, só eram convocados, anualmente, um em cada três. Essa peque-na porcentagem permitia aos russos manter o seu imenso exércitode tempo de paz, mas, em comparação, suas reservas treinadas (oshomens que deixavam todo ano as fileiras e iam para a reserva)

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eram bem menores do que, por exemplo, na Alemanha, o que seriafonte de dificuldades, por exemplo, durante a Primeira GuerraMundial (KENNEDY, 1989, p. 232-234).

Havia também outros problemas, como a questão étnica.Dentro da imensa população que estava submetida ao czar, partesubstancial era de não russos e mesmo de não eslavos, que não seidentificavam completamente com o Estado. No ocidente, haviabálticos, finlandeses, romenos, bielo-russos e ucranianos, estes doisúltimos de etnia eslava e próximos culturalmente dos russos. NoCáucaso, georgianos, armênios e um sem número de povos muçul-manos. Na bacia do Volga, muçulmanos tártaros e, na Sibéria, váriospovos asiáticos.

Na Ásia Central, por sua vez, havia muçulmanos de línguaturca e cultura persa, administrados por Moscou num esquema pra-ticamente colonial. Um problema de falta de homogeneidade relati-vamente comum a todos os Estados do mundo nessa época, masmuito potencializado no caso russo pelos números envolvidos. Cin-quenta por cento da população do Império, efetivamente, não era deetnia russa.

A maneira encontrada pelo Estado czarista para lidar como problema, tipicamente russa, foi a cooptação e a repressão, apli-cadas em graus variáveis conforme o período e o governante nopoder. A certos povos, como os habitantes da Sibéria, da Ásia Cen-tral ou os finlandeses, foi concedida isenção do serviço militar, oque diminuía o potencial militar do Império, mas aliviava as ten-sões. Também se permitia algum grau de liberdade cultural para ospovos conquistados, abria-se certo espaço de atuação para as eliteslocais dentro do sistema político imperial e se exigia lealdade àcoroa e ao czar e não ao Estado russo.

Ao mesmo tempo, colonos de etnia russa foram estimula-dos a povoar as terras virgens da Sibéria (para onde um milhão depessoas se transferiu, apenas entre 1896 e 1905) e também as per-tencentes a povos conquistados, como o Turquestão. O Império,além disso, lançou uma política de russificação, de forma a ampliaro controle do Estado sobre as populações conquistadas. Tal políticateve certo grau de sucesso, mas também trouxe tensões que, nomomento certo, podiam explodir, como explodiram.

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O sistema de recrutamento russo também prejudicava oesforço do país para formar uma grande reserva. Não apenasmuitas etnias e grupos eram isentos do serviço militar, como osistema não recrutava os melhores e mais aptos, mas especial-mente os incapazes de se livrar dele. Os mais ricos, os arrimos defamília e outras categorias eram isentos e essas isenções eramtantas que muitos homens fisicamente inaptos eram incorporados,o que prejudicava a eficiência do Exército. Também inexistia umcadastro geral dos possíveis recrutas, com a exceção dos que ha-viam passado pelas fileiras, o que facilitava ainda mais as evasõese dificultava a formação de reservas para tempo de guerra (JUKES,1979, p. 79-80).

Realmente, o princípio moderno da “nação em armas”,com a responsabilidade da defesa nacional repartida por todos osseus cidadãos, era visto com enorme desconfiança pelas suas eli-tes, que suspeitavam da ideia de armar o povo e que tendiam a vernos soldados mera carne para ser consumida, e não cidadãos aserem instruídos e armados da melhor forma possível.

Enfim, a Rússia na virada do século XIX para o séculoXX talvez parecesse mais forte do que efetivamente era. Com suaênfase nas Forças Armadas, o progresso econômico e o simplespeso populacional e territorial, a Rússia era poderosa e temê-laseria algo lógico. Mas sua modernização econômica e militartinha sido precária, instrumental e elementos fundamentais para oprogresso em longo prazo – como o nível de instrução e riquezade sua população ou um sistema político menos corrupto, buro-crático e desigual – não tinham sido tocados, o que seria trágicono futuro.

Nesse ponto, uma comparação com os Estados Unidos ésignificativa. Durante o século XIX, num crescimento essencial-mente conduzido pelas forças do mercado capitalista, com apenas oapoio do Estado, a economia americana cresceu em níveis impres-sionantes, tanto na agricultura como na indústria. Em 1914, a eco-nomia norte-americana já era a maior do mundo, sendo equivalenteà soma das economias britânica, francesa, alemã e russa e sendomais de cinco vezes esta última. Os Estados Unidos eram, de longe,a maior potência econômica e industrial do mundo e todos perce-biam isso.

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No entanto, ninguém temia, naqueles anos, os EstadosUnidos. Isolados no continente americano, com pouco interesse napolítica europeia e Forças Armadas extremamente reduzidas (com aexceção da Marinha), os norte-americanos eram muito menos as-sustadores do que a Rússia, que tinha um Exército dez vezes maior.Os norte-americanos eram muito mais ricos, consumiam mais aço eenergia e tinham uma sociedade muito mais dinâmica e moderna, oque seria relevante em longo prazo, mas parecia pouco importanteno curto, o que explica porque a Europa olhava e temia Moscou,mas não Washington, nessa época. Em alguns momentos, a imagemimportava mais do que a realidade.

Em resumo, os esforços russos, apesar de imensos, foraminsuficientes frente ao obtido pelos rivais. É um fato que o simplespeso dos números de um Estado tão populoso e vasto assustava,mas a guerra da Crimeia já indicava que a situação russa não eraexatamente positiva e o conflito com o Japão apenas confirmou quea corrida estava sendo perdida. Foi na Primeira Guerra Mundial,contudo, que os dilemas russos se tornaram mais evidentes.

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Capítulo 3

A RA RA RA RÚSSIA NA ÚSSIA NA ÚSSIA NA ÚSSIA NA PPPPRIMEIRARIMEIRARIMEIRARIMEIRA

GGGGUERRA UERRA UERRA UERRA MMMMUNDIALUNDIALUNDIALUNDIAL

A RÚSSIA E A POLÍTICA DE PODER EUROPÉIAENTRE OS SÉCULOS XIX E XX

Na primeira metade do século XIX, as relações internacio-nais no continente europeu eram relativamente estáveis, com os prin-cipais atores se preocupando mais com a ordem interna e com o res-surgimento da França do que com outra coisa. Nesse contexto, a Rús-sia era claramente uma das principais forças da política europeia e suapreocupação central era manter a ordem conservadora no conti-nente. O czar se aliou aos soberanos da Prússia e da Áustria na“Santa Aliança”, cujo objetivo central era impedir quaisquer movi-mentos revolucionários de atingir o poder no continente e vigiar aFrança. Assim, exércitos russos colaboraram para sufocar revoluções,por exemplo, na Áustria, em 1848, e a Rússia era vista, com razão,como uma força totalmente reacionária e imensamente poderosa.

Na segunda metade do século XIX, contudo, a situaçãomudou radicalmente e, de uma forma lenta, mas contínua, as ten-sões entre os países europeus cresceram, com o afirmar-se das dis-putas nacionalistas e por colônias fora da Europa e um crescentemilitarismo. Esse coquetel de nacionalismo exacerbado, disputascoloniais e militarismo formava a base do relacionamento entre ospaíses europeus na virada dos séculos XIX e XX, gerando grande

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tensão entre as grandes potências, que temiam ficar sozinhas numagrande guerra, o que significaria derrota certa. Uma das maneirasencontradas para tentar resolver esse temor foi a construção de alian-ças, que acabaram formando dois grandes blocos.

Alianças não eram, na verdade, novidade no cenário euro-peu. Essas alianças do início do século XX, contudo, tinham umaparticularidade: eram fixas. Antes, os europeus faziam e desfaziamsuas alianças conforme os acontecimentos, sempre tentando impe-dir que o país mais forte dominasse os outros. Um método talvezpouco leal, mas que impedia que blocos rivais se formassem e queo ódio entre eles crescesse, pois os inimigos de hoje podiam ser osamigos de amanhã. No início do século XX, essa flexibilidade sefoi e até a Inglaterra, uma das maiores defensoras dessa política detodos contra todos para impedir o mais forte de triunfar, acabou porse unir definitivamente à França contra a Alemanha depois que estacomeçou a construir uma grande Marinha de guerra, a qual poderiaameaçar o Império britânico.

Nesse contexto, a Rússia oscilou entre os dois blocos. Porum lado, ela tinha rivalidades ideológicas com a França (preferindo oconservadorismo de alemães e austríacos) e geopolíticas com a In-glaterra na Ásia e no Mediterrâneo. Suas relações com a Alemanhatambém eram reforçadas pelos laços de parentesco entre suas famíliasreais. Por outro lado, austríacos e russos disputavam áreas de influên-cia nos Bálcãs e os franceses eram grandes investidores na economiarussa. Assim, havia potencial para a Rússia se aliar a qualquer um doslados, mas problemas circunstanciais e o crescente poderio alemãoacabaram por levar o Império à aliança com Inglaterra e França.

A Rússia, evidentemente, não foi simplesmente uma víti-ma inocente nesse jogo entre as grandes potências. Ela tambémtinha ambições imperialistas e elas não eram pequenas. O Impériodos czares ambicionava, como já indicado no capítulo anterior, asua transformação numa potência global. Para tanto, seria necessá-rio que a Rússia dispusesse de uma imensa força naval e controlas-se as “saídas” para os mares quentes no Mediterrâneo, no Pacífico eno Atlântico. Depois, era imperativo evitar que os países inimigosconseguissem cercar o Império, pelo que os Bálcãs, áreas da Chinae do Oriente Médio deviam ser ou incorporados ao Império ou co-locados sob hegemonia russa.

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Esses objetivos implicavam a conquista (direta ou indireta)da Pérsia e a recuperação do perdido para os japoneses no Oriente,expulsando-os da China e da Coreia. O objetivo prioritário, con-tudo, era a conquista dos estreitos que ligavam o mar Negro aoMediterrâneo e a eliminação da Turquia como potência regional.No limite, Istambul deveria ser conquistada e transformada em“Czargrad”, marcando a transformação da Rússia numa verdadeirapotência mundial. Simbolicamente, essa conquista também signifi-caria a retomada de Constantinopla pelos cristãos ortodoxos, vin-gando a derrota de 1453.

É discutível se todos esses objetivos estavam claramentena agenda russa e se eles poderiam ser realmente atingidos, aindamais porque a Inglaterra e a França, mesmo sendo suas aliadas,dificilmente permitiriam tal crescimento do poder russo. Mas nãoresta dúvida que os principais empecilhos aos sonhos russos eram aÁustria-Hungria e a Alemanha, o que a aproximou do bloco rival.

De qualquer forma, o resultado dessa política de aliançasfoi um continente dividido em dois blocos rivais em contínua ten-são um contra o outro. Uma simples fagulha poderia incendiar todoo edifício. E esta fagulha ocorreu em 1914, quando o Arquiduqueaustríaco Francisco Ferdinando foi assassinado por um sérvio. AÁustria ameaçou a Sérvia, que recebeu o apoio da Rússia. Em pou-co tempo, a Alemanha apoiava a Áustria e a França ameaçava aAlemanha. Todas as antigas tensões, todos os planos de guerra vie-ram à tona e a máquina da morte se colocou em movimento, sendoimpossível pará-la. A simples morte de um Arquiduque austríaconão deveria abalar o mundo, mas acabou levando, no contextomencionado acima, à Primeira Guerra Mundial, na qual os destinosda Rússia foram lançados.

A RÚSSIA NA GUERRA: MOBILIZAÇÃO EOPERAÇÕES DE GUERRA – 1914-1915

Logo após a declaração de guerra russa ao Império austro--húngaro (e a alemã à Rússia), em agosto de 1914, o Império come-çou, como todos os seus aliados e inimigos, a mobilizar os seusrecursos para o conflito. A falta de infraestrutura ferroviária e as

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distâncias faziam a mobilização russa inevitavelmente mais lentado que nos outros países. Os reservistas franceses e alemães, porexemplo, tinham que viajar, no máximo, oitenta quilômetros atéseus pontos de reunião, enquanto os russos tinham que viajar, emmédia, 1.100 quilômetros para se reunir às suas unidades. O analfa-betismo também atrapalhava os planos russos, como indicado nocapítulo anterior, pois a maioria dos recrutas era incapaz até mesmode ler suas ordens de movimento ou bilhetes ferroviários (KEEGAN,1978, p. 42).

Tal a situação russa que, enquanto franceses e alemãescalculavam necessitar de quinze dias para completar a mobilizaçãode suas tropas, os russos estimavam em quarenta dias o tempo mí-nimo necessário para tanto e, mesmo então, não mais do que umafração dos três milhões de homens a serem inicialmente convoca-dos estaria em suas posições.

Os alemães contavam, aliás, com essa lentidão russa paravencer a guerra. A ideia alemã, dentro do famoso Plano Schlieffen,era mobilizar rapidamente suas tropas e desferir um violento golpena França, enquanto forças secundárias conteriam os russos, aindase mobilizando, na fronteira oriental. Com o colapso francês, todosos recursos alemães seriam transferidos para o leste antes mesmode a Rússia completar a sua mobilização, garantindo a sua derrota ea hegemonia alemã na Europa.

Os russos contavam com a resistência francesa para tertempo de reunir os seus imensos recursos e então avançar pelo ter-ritório alemão, vencendo toda a resistência pelo simples peso dosnúmeros. O coração do dispositivo militar russo era o saliente po-lonês, onde, já antes da guerra, dois quintos do Exército estavamestacionados, A partir dali, os russos, continuamente reforçados porsuas reservas e aproveitando-se da concentração alemã no Ociden-te, poderiam ameaçar tanto a Prússia Oriental como a Galícia aus-tríaca.

Com os franceses profundamente engajados contra osalemães e suplicando por ajuda, os russos optaram por atacar mes-mo antes que sua mobilização fosse completada. Já em agosto de1914, os russos pressionaram, com imensa superioridade numérica,em direção de Konigsberg. Os alemães recuaram, mas, melhorequipados e comandados e aproveitando-se das falhas de planeja-

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mento dos generais russos e do terreno, conseguiram deter a ofen-siva russa e, nas batalhas de Tannenberg e dos Lagos Masurianos,em, respectivamente, agosto e setembro de 1914, forçaram-lhes arecuar, com imensas perdas.

Ao sul do saliente polonês, a ofensiva russa foi muito maisbem-sucedida. Desfrutando novamente de superioridade numéricasobre um inimigo militarmente inferior, os austro-húngaros, os rus-sos tinham, por volta de setembro, matado, ferido ou capturadomais de 400 mil soldados inimigos e ameaçavam avançar pela pla-nície húngara. Apenas o auxílio alemão salvou os austro-húngarosdo colapso.

Por todo o ano de 1915, o choque dos Exércitos alemães,russos e austríacos continuou na frente oriental, sangrando a todos.Nesse ano, o Alto Comando alemão decidiu-se a dar um golpe de-cisivo na Rússia, incapacitando suas tropas o suficiente para que aAlemanha pudesse concentrar suas forças contra a França e paramostrar a força alemã aos países neutros. Frente ao poderio alemão,os russos foram colocados na defensiva e sofreram algumas derro-tas de peso. De fato, em 1915, o Exército russo sofreu a grandederrota de Gorlice-Tarnow e teve suas tropas expulsas do salientepolonês. Dezenas de divisões russas foram destruídas e soldadosalemães entraram em Varsóvia, Vilna, Brest e Kovno.

As perdas russas, além disso, continuavam a aumentar.Duzentos e cinquenta mil homens mortos em Tannenberg, ummilhão nas batalhas nos Cárpatos em 1914-1915 e mais 400 milquando os alemães atacaram o bolsão polonês. Mesmo assim, osrussos, convocando as suas imensas reservas, conseguiram sefortalecer o suficiente para partir novamente para a ofensiva em1916 (KENNEDY, 1989, p. 256).

A OFENSIVA BRUSILOV E O COLAPSO DOEXÉRCITO RUSSO – 1916-1917

Neste ano, com os alemães engajados no Ocidente, osrussos tiveram tempo para absorver novos recrutas e armas e pre-parar uma nova ofensiva geral. Em maio, os planos ainda esta-

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vam sendo elaborados quando os italianos, na guerra desde o anoanterior e não conseguindo conter o ataque geral desfechado poraustro-húngaros e alemães no Trentino, pediram ajuda aos russos.Estes lançaram, então, o único dos grupos de Exército que tinhaos preparativos de ataque adiantados, o do general Brusilov, aoataque, no que ficou conhecido como “Ofensiva Brusilov”.

As tropas russas atacaram, assim, em 04.06.1916, conse-guindo um grande avanço e ameaçando destruir as Forças Armadasda Áustria-Hungria. Mais de 1,5 milhão de alemães e, especial-mente, austro-húngaros foram mortos, feridos ou capturados entrejunho e agosto de 1916 e vinte mil quilômetros quadrados de terri-tório conquistados, naquele que foi um imenso sucesso das tropasczaristas.

Tropas alemãs foram rapidamente transferidas, contudo,da frente ocidental e soldados austríacos voltaram da Itália, permi-tindo aos germânicos restaurar o equilíbrio. Em setembro de 1916,finalmente, com a entrada da Romênia na guerra, os russos tiveramque transferir recursos para apoiar o novo, e fraco, aliado e a frentede combate novamente se estabilizou.

A “Ofensiva Brusilov” praticamente destruiu o que restavado moral dos soldados austro-húngaros e permitiu à França e Itáliarespirarem, pois obrigou a Alemanha e a Áustria-Hungria a suspen-derem suas ofensivas em Verdun e na Itália. Mas o fracasso daofensiva em destruir ao menos o inimigo mais fraco, a Áustria--Hungria, e as perdas imensas de homens, na faixa de 1,5 milhão desoldados, e material levaram o moral do Exército russo ao nívelmais baixo até então.

Com o fim do ano de 1916 e o início de 1917, o Exércitorusso estava realmente começando a entrar em colapso. Nesse mo-mento, os russos já contabilizavam cerca de 1,8 milhão de mortos,2,7 milhões de feridos e 3,6 milhões de prisioneiros de guerra oudesaparecidos (KENNEDY, 1989, p. 256-257). Nesse ano, o czarconvocou recrutas de segunda categoria e arrimos de família, o quepermitiu preencher os claros nas fileiras, mas gerou mais descon-tentamento.

O moral dos soldados estava abatido pela disciplina brutal,escassez de comida, roupas e equipamentos, perdas imensas de

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vidas e um crescente sentimento de que as batalhas sem fim, e aprópria guerra, não tinham sentido. Também dentro da Rússia, ascondições de vida deterioravam-se rapidamente, com desabasteci-mento generalizado de alimentos, remédios e combustíveis, e odescontentamento crescia. Em fevereiro de 1917, depois da Revo-lução de Fevereiro, o Czar abdicou do trono e um governo provisó-rio assumiu o poder, mantendo a Rússia na guerra.

Assim, uma nova ofensiva foi lançada, em junho de 1917,com resultados desastrosos. Mesmo com algum sucesso inicial, osExércitos russos se mostraram tão pouco dispostos à luta que for-mações militares inteiras simplesmente se dissolveram. Isso ajudoua eliminar o apoio popular ao governo provisório. Em outubro de1917, finalmente, os bolcheviques, sob a chefia de Lênin, assumi-ram o poder.

A Revolução de outubro de 1917 foi um marco funda-mental na história do século XX e, para alguns historiadores, overdadeiro início deste século. Não obstante, não é este o espaçopara uma apresentação em detalhes do acontecido então, tantopela disponibilidade dessa informação em um sem número delivros e artigos, como pelo próprio enfoque deste livro. Cumpreressaltar, contudo, que dificilmente os bolcheviques teriam tidocondições de se apossar do poder sem que os traumas da guerrativessem abalado definitivamente os pilares do Estado e da socie-dade czaristas.

Tal afirmação não significa compartilhar certas análises,como as de Richard Pipes (1997), que afirmam que os bolcheviquesnão tinham nenhuma representatividade dentro da sociedade russaem 1917 e que a Revolução de Outubro de 1917 não passou de umgolpe de Estado. No entanto, sem a guerra, a hipótese de Lênin edos bolcheviques chegarem ao poder seria no mínimo remota. Overdadeiro mérito destes talvez tenha sido, como indicam Hobs-bawm (1997, p. 61-89) e Ferro (1974), entre outros, o de reconhe-cer e atender as demandas sociais (paz, pão e terra) libertadas pelaguerra e pelo colapso do Estado czarista e se apresentarem como ogrande instrumento, aos olhos da população, para que elas fossematendidas.

De qualquer modo, o importante a ressaltar, dentro dosobjetivos deste livro, é que Lênin foi o primeiro a reconhecer

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que a paz era necessária tanto para que os bolcheviques se man-tivessem no poder, como para tentar salvar o que restava da so-ciedade e do Estado russos. Impedir um colapso total da Rússiaera um pré-requisito para que os sonhos revolucionários bolche-viques pudessem ser postos em prática. Natural, pois, que, logoapós chegarem ao Kremlin, eles tenham pedido um armistícioaos alemães.

Esse armistício praticamente encerrou a participação russana Primeira Guerra Mundial. Os Exércitos russos entraram quaseque em total colapso e a maior parte dos soldados ou voltou paracasa ou se incorporou aos Exércitos das várias facções que lutavampelo poder dentro da Rússia. Tanto que, quando os alemães resolve-ram, finalmente, romper o armistício e avançar pelo território russo,não encontraram quase nenhuma resistência e, em uma semana,avançaram mais de 250 quilômetros.

Os bolcheviques não apenas temiam esse avanço alemãocomo podiam perder a sua base popular de sustentação caso nãoacabassem de uma vez com a guerra. Os alemães, conscientesdessa situação, exigiram o máximo para assinar a paz e o governode Lênin foi obrigado a aceitar. Em 3 de março de 1918, foi fir-mado o Tratado de Brest-Litovsky. A Polônia, boa parte da Bie-lo-Rússia, os países bálticos e alguns distritos do Cáucaso passa-ram ao controle alemão e turco, e Moscou teve que reconhecer asindependências da Ucrânia e da Finlândia, além de pagar repara-ções de guerra aos alemães. Mais de 780 mil quilômetros quadra-dos do antigo território imperial foram cedidos à Alemanha eseus aliados, incluindo um terço da sua população e recursos in-dustriais. A guerra terminava, assim, de forma desastrosa para aRússia.

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Mapa 5 – A Rússia na Primeira Guerra Mundial

Fonte: Channon e Hudson (1996), p. 91.

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A RÚSSIA NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL:UMA AVALIAÇÃO

Uma avaliação da participação russa na primeira guerramundial requer que separemos os anos iniciais dos finais. Nos doisprimeiros anos da guerra, efetivamente, o desempenho russo nocampo de batalha foi bastante razoável, apesar de não corresponderà imagem do “rolo compressor” russo de antes da guerra. Quandoda mobilização geral, em 1914, um ardor patriótico tomou conta dopaís (como, de resto, de todos os beligerantes) e a maior parte doscamponeses se apresentou, obedientemente, às suas unidades. Hou-ve vários distúrbios durante a mobilização, mas, em geral, foramcausados por homens em marcha para se unir às fileiras do Exérci-to, e não por uma recusa à guerra. Simpatia pela causa sérvia, des-confiança da Alemanha e fatalismo provavelmente explicam isto.

Os soldados russos lutaram, em 1914 e 1915, com a bravu-ra e mesmo resignação de sempre e conseguiram vitórias sobre osturcos e os austro-húngaros na maior parte do tempo. Contra osalemães, mais bem equipados e treinados, os fracassos superaramgrandemente os êxitos. Mas os russos, mesmo derrotados continua-mente, lutaram com bravura e vontade.

Já nos dois anos finais, a degradação do Exército, especial-mente em termos morais, foi intensa, quase inacreditável. Efetiva-mente, com o passar do tempo, as derrotas contínuas e as imensasperdas e sofrimentos na frente de batalha, o moral dos soldados eseu desejo de lutar caiu, como visto, em ritmo acelerado. Logo,soldados das guarnições do interior e da linha de frente começarama recusar ordens de seus oficiais e a aderir a grupos revolucionários.

Também houve deserções em massa, reduzindo unidadesmilitares inteiras a meras marcas no mapa. O quadro só piorou nosmeses a seguir, e o Exército russo se reduziu a uma multidão can-sada, maltrapilha e faminta, que não obedecia a ninguém e que sópensava em voltar para casa. Restava apenas um espectro do “rolocompressor” que havia assustado a Europa.

Na verdade, como ressaltam historiadores como JohnKeegan (2000) e Paul Kennedy (1989, p. 249-266), todos os Exér-citos envolvidos no conflito foram, em menor ou maior grau, afeta-

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dos pela indisciplina, pela desmoralização e por um crescente de-sejo de paz, especialmente nos anos finais da guerra. Houve, porexemplo, grandes motins no Exército francês em 1917 e, no mes-mo ano, o Exército italiano quase se dissolveu após a derrota emCaporetto. Mas apenas o russo teve a sua coesão e disciplina aba-ladas a ponto de chegar ao colapso e à desagregação.

Para explicar isso, devemos recordar como as tropas russasforam especialmente afetadas pela guerra, pelas derrotas constantese pelos problemas de abastecimento e, também, as próprias caracte-rísticas da sociedade russa de então. O Alto-Comando russo, porexemplo, não dedicou grande esforço a explicar aos soldados asrazões por que eles lutavam, como fizeram ingleses ou alemães.

Afinal, considerava-se que os soldados-camponeses ti-nham a obrigação de lutar e morrer pelo czar e pela pátria e que nãofaria sentido explicar para eles porque eles deviam fazer isto. Osimples ato de convencer os soldados da razão da luta pareceria,provavelmente, um total absurdo para a alta oficialidade, quasetoda ela originária da nobreza. Confiava-se na repressão pura paramanter a moral do Exército e controlar a propaganda antibélica erevolucionária que circulava pelas fileiras, o que se revelou insufi-ciente.

Já em 1915 e 1916, os comandantes russos se inquietaramcom a crescente agitação e descontentamento das tropas, mas oproblema estava sob controle, com o soldado russo ainda lutandocom suas tradicionais docilidade e abnegação. Mas em 1917, quan-do o Estado czarista começou a perder o controle dos aconteci-mentos e a economia e a sociedade russas começavam a se esface-lar sob o impacto da guerra e de tudo o que ela trouxe (inflação,carência de alimentos e outros produtos básicos etc.), o sentimentoantiguerra cresceu não apenas no interior do país, mas também en-tre as tropas, tanto as da linha de frente como as estacionadas nointerior do país, ajudando a levar ao colapso o Exército e o Estadorussos. Nesse contexto, nada mais natural que os soldados da guar-nição de Petrogrado, que somavam centenas de milhares de ho-mens, tenham sido protagonistas ativos dos movimentos revolucio-nários de 1917.

Na verdade, o Estado e os militares russos, assim como to-dos os outros países, entraram na Primeira Guerra Mundial confian-

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tes de que seria uma guerra rápida e na qual os enormes recursosmilitares russos dariam a vitória a Moscou em pouco tempo. Quan-do, contudo, a guerra rápida que todos imaginavam se converteunuma guerra de posições e de atrito entre dois grandes blocos, asituação se modificou. A vitória iria pertencer aquele lado que fossecapaz de mobilizar mais homens e equipamento militar para supe-rar o adversário.

Nos dois primeiros anos da guerra, franceses e russos arca-ram com o peso principal de conter a máquina de guerra alemã.Lutaram bem, mas, por volta de 1917, os recursos de ambos estavamquase no limite. A Batalha de Verdun e as ofensivas de Nivelle na-quele ano tinham levado o Exército francês a beira do esgotamento,enquanto a ofensiva Brusilov, apesar de ter praticamente destruídoo Exército austro-húngaro, tinha desgastado ainda mais as reservasde armas, homens e recursos da Rússia. Também a Itália estava emsituação de quase colapso, como já mencionado, após a batalha deCaporetto, também em 1917, enquanto a Inglaterra estava em me-lhor situação, mas próxima do esgotamento.

Quando, porém, os Estados Unidos entraram na guerra e amobilização dos imensos recursos econômicos e industriais dosAliados se fez sentir, a balança se alterou. Recursos financeiros eeconômicos britânicos e, especialmente, norte-americanos, susten-taram a França e a Itália, enquanto um número crescente de solda-dos oriundos dos Estados Unidos começou a chegar ao continenteeuropeu. Mais que tudo, a adesão norte-americana representou umaimensa esperança e reforçou a moral dos Aliados, enquanto ajudavaa solapar a alemã. Isso desequilibrou a balança a tal ponto que,mesmo com a rendição russa em 1917 e a transferência de tropasalemãs para o teatro ocidental, a Alemanha não pôde suportar apressão, rendendo-se em 1918.

É perceptível, assim, como, em 1917, Itália, Áustria--Hungria, França e Rússia estavam numa corrida em direção aocolapso. Graças a sua maior coesão nacional e à ajuda dos seusaliados mais ricos e poderosos (Alemanha de um lado e Reino Uni-do/Estados Unidos de outro), os três primeiros países conseguiramao menos manter a luta até o final. Já a Rússia, além de exposta aosataques do poderoso Exército alemão na imensa fronteira comum,estava praticamente isolada de seus aliados pelo território turco e

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alemão e sem poder, assim, receber suprimentos, alimentos e ar-mas, o que acelerou o seu colapso.

Isso não significa dizer que o Exército russo não foi capazde se aperfeiçoar no decorrer da guerra. Houve, com o passar dotempo, melhoras no sistema de abastecimento militar e no treina-mento dos recrutas. As tropas começaram a receber armas e supri-mentos com maior regularidade e os jovens conscritos passavammais tempo treinando na retaguarda, ou em setores calmos da fren-te, antes de entrar em ação. Foram, porém, melhoras pontuais numsistema grande e pouco ágil e incapaz de gerar a força militar ne-cessária para vencer os alemães.

Do mesmo modo, o desempenho russo na “guerra de pro-dução” e na mobilização de sua sociedade para a guerra não foicompletamente ineficaz. Através de um esforço imenso da sua in-dústria e da requisição da mão de obra dos camponeses, a produçãode armas e munições cresceu exponencialmente, assim como a deaço, carvão e de todos os outros produtos necessários para subsidiara indústria de guerra.

Esses avanços não conseguiam, contudo, atender às neces-sidades crescentes. A produção de metralhadoras, por exemplo,cresceu de trezentas e cinquenta mensais, em 1915, para mil pormês em 1916, mas, mesmo assim, calcula-se que os Exércitos rus-sos recebiam apenas uma de cada seis metralhadoras de que neces-sitavam desesperadamente para contrabalançar o poder de fogoalemão (JUKES, 1979, p. 85).

A produção de munição para fuzis e metralhadoras, apesarde também crescer muito, também nunca conseguiu atender as ne-cessidades da frente de combate. As dificuldades de distribuição etransporte apenas pioravam o quadro, pois, muitas vezes, as armase a munição produzidas não chegavam à linha de frente, ou chega-vam apenas quando não eram mais necessárias.

Mas a escassez mais séria era de armas individuais. A pro-dução de fuzis, por exemplo, oscilou entre setenta e cento e dez milmensais, contra uma necessidade de duzentos mil ao mês apenaspara compensar os desperdícios e perdas, sem contar a necessidadede equipar os novos homens que eram chamados às fileiras. Asarmas compradas no exterior e as capturadas, especialmente dos

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austríacos, apenas aliviavam a situação. Assim, muitos dos reforçosrussos que chegavam à linha de frente vinham desarmados e, mui-tas vezes, recebiam ordens de se equiparem com as armas dos com-panheiros mortos. Até machados foram distribuídos em algumasunidades, dada a falta de fuzis (JUKES, 1979, p. 85-86).

Assim, a distância, em termos de poder de fogo, mobilida-de e treinamento, entre os soldados alemães e os russos, já grandeno início da guerra, só cresceu no decorrer do tempo, levando aderrotas contínuas. Os alemães, na verdade, só não destruíram anteso Estado e as Forças Armadas russas devido à sua concentração deforças no Ocidente, enfrentando franceses, belgas, britânicos e,posteriormente, os norte-americanos.

De fato, raramente os russos desfrutaram, a não ser local-mente, de superioridade técnica ou qualitativa. A artilharia alemã,por exemplo, era geralmente superior à russa e seus canhões, commaior alcance e mais numerosos, despejavam continuamente chu-vas de projéteis sobre a infantaria russa que avançava. Os alemãestambém tinham superioridade aérea, o que permitia que seus aviõesde observação dominassem o campo, dando aos comandantes ale-mães uma boa visão dos movimentos russos. Cabia aos soldadosrussos usar o seu número e o seu sangue para vencer a disciplina eos explosivos dos alemães.

Outro problema russo é que o seu estoque de recrutas dis-poníveis para fazer essa guerra de homens contra material foi dimi-nuindo com o tempo, o que é inacreditável quando se recorda dapopulação do país. Para explicar isso, devemos recordar como osistema de recrutamento militar russo pré-guerra, como já indicado,não recrutava e treinava todos os homens em idade militar e que,portanto, depois que as poucas reservas treinadas já haviam sidochamadas, tudo o que restava eram recrutas que nunca haviam vistoum fuzil e que eram jogados na luta mesmo antes de poderem ad-quirir alguma experiência.

O fato dos russos isentarem do serviço militar em tempode paz (ou permitirem menor tempo nas fileiras) os poucos jovenscom instrução superior e de pouco se preocuparem com o treina-mento de cabos e sargentos também foi desastroso durante a guerra,pois impediu a formação de uma reserva de oficiais e de suboficiaisnecessária para sustentar a expansão maciça dos efetivos. Assim,

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uma companhia do Exército russo tinha, durante o conflito, umamédia de dois sargentos e cabos, frente a doze no Exército alemão(JUKES, 1979, p. 82), o que prejudicava a coesão e o comando dasunidades. Novamente, as características aristocráticas da sociedaderussa foram desastrosas para suas Forças Armadas.

Dessa forma, em 1916-1917, o Exército russo já estavachegando ao limite do seu potencial humano e, em outubro de1916, para perdas mensais de 300 mil homens, havia apenas 1,4milhão de recrutas disponíveis para convocar e, mesmo assim,chamando reservistas de segunda classe e homens que só deveriamser chamados em 1919. Em outros termos, haveria apenas cincomeses de reservas disponíveis em 1916 e, a partir de então, os efe-tivos tenderiam a declinar. Se recordarmos que, nesse final de1916, quase quinze milhões de homens (20% de toda populaçãomasculina) já haviam sido chamados pelo Exército, não fica difícilnotar como o Império russo desperdiçou seu potencial humano,que, mesmo sendo imenso, começou a escassear (JUKES, 1979,p. 147-149).

Em resumo, as grandes melhoras na estrutura militar russae o imenso esforço do Império no decorrer da guerra produziramresultados, mas não o suficiente para conseguir compensar as suasfalhas e virar a sorte da guerra. Além disso, as estruturas sociais,políticas e econômicas russas revelaram-se ainda mais incapazes deenfrentar as transformações da guerra do que a dos italianos ouaustro-húngaros, o que se revelou fatal. Com o seu colapso, e aRevolução, abriu-se uma nova fase na história russa, e o seu papelno mundo modificou-se profundamente.

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Capítulo 4

A UA UA UA UNIÃO NIÃO NIÃO NIÃO SSSSOVIÉTICAOVIÉTICAOVIÉTICAOVIÉTICA

PERDAS TERRITORIAIS E GUERRA CIVIL – 1917-1920

Entre 1917 e 1922, a Rússia esteve mergulhada em umasangrenta guerra civil entre os bolcheviques e vários Exércitosantibolcheviques, chamados de “brancos”. O território russo pre-senciou também um colapso do poder central, com várias regiõesproclamando a independência. A Ucrânia, a Sibéria e várias outrasáreas se tornaram campo de batalha, com consequente colapso daagricultura e fome generalizada.

Ainda em 1918, começaram várias intervenções estrangei-ras na Guerra Civil. Tropas japonesas e estadunidenses desembar-caram em Vladivostok e inglesas em Murmansk, enquanto contin-gentes anglo-canadenses ocuparam partes do Cáucaso e soldadosfranceses entraram em Archangelsky e Odessa. Os alemães forne-ceram armas para algumas das facções envolvidas na luta e forçasde outros países também atuaram, além de mercenários de váriostipos. Esses soldados foram retirados com o fim da Guerra Civil,mas, enquanto puderam, forneceram ajuda técnica e política às for-ças que se opunham à Revolução.

Em 1922, por fim, os bolcheviques venceram definitiva-mente o conflito e consolidaram-se no poder. Sua vitória pode serexplicada, em primeiro lugar, pela sua excelente organização e te-nacidade, a qual permitiu a construção de um organismo militar, oExército Vermelho, capaz de triunfar sobre os Exércitos brancos.Criado em abril de 1918, sob a liderança de Leon Trotsky, esse

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exército, formado a partir do recrutamento de camponeses e traba-lhadores, absorveu dezenas de milhares de oficiais do antigo Exér-cito czarista. Para garantir a sua lealdade, oficiais políticos, do Par-tido Comunista, foram colocados dentro da estrutura militar, umaprática que atravessou, com diferentes gradações, a era soviética.

Também contou, para a vitória bolchevique, a sua capaci-dade em mobilizar a sociedade para a guerra, reprimindo implaca-velmente toda a oposição interna. Foi o chamado “comunismo deguerra”, através do qual todos os recursos humanos e materiais dasregiões sob controle bolchevique foram canalizados, sem levar emconsideração os custos, para a vitória na guerra. Também de sumaimportância foi a habilidade da sua liderança em reconhecer exata-mente o que os camponeses russos queriam naqueles anos – a terra– permitindo a reforma agrária. Esta, em princípio, era contrária aosideais comunistas pregados pelo bolchevismo, mas foi efetivadapor puro cálculo estratégico. Isso permitiu a Lênin se manter nopoder (HOBSBAWM, 1997, p. 61-89).

Essa vitória, contudo, não mudava fatos objetivos. A novaRússia, pós-czarismo, era uma mera sombra do que havia sido e seupotencial para exercer uma efetiva influência na geopolítica mundialtinha sido grandemente reduzido. Ela exercia, agora, uma enormeatração para os revolucionários do mundo por ter se tornado o pri-meiro Estado comunista da História, mas esse fato também atraiapara a Rússia o ódio dos anticomunistas e, de qualquer forma, oselementos de poder que Moscou dispunha, nesses anos, para exer-cer influência na política internacional, haviam diminuído muito.

Em termos geopolíticos, a nova Rússia bolchevique ten-tou recuperar um pouco do que a velha Rússia havia perdido. Otratado de Brest-Litovsky, que cedia à Alemanha, como visto,alguns dos territórios mais ricos do antigo Império, perdeu valida-de com a derrota alemã, em novembro de 1918. Mas várias anti-gas províncias haviam proclamado, no decorrer da Guerra Civil, asua independência e recuperá-las se tornou prioridade do governobolchevique.

Durante boa parte da Guerra Civil, efetivamente, os adep-tos de Lênin não controlavam mais do que uma parcela do antigoterritório imperial, mais ou menos aquela que formava o antigoprincipado de Moscóvia. Com as vitórias militares sobre os Exér-

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citos brancos, o poder de Moscou se ampliou para incluir a Sibériae outras regiões de língua russa.

Para reincorporar outras províncias desgarradas, os bol-cheviques aceitaram, ao menos em teoria, o princípio da autonomiadas nacionalidades e se proclamaram como os defensores não ape-nas dos russos, mas de todas as nacionalidades oprimidas do antigoImpério, o que lhes trouxe, sem dúvida, o seu apoio. Também utili-zaram, quando possível e necessário, a força militar. Com isso, aUcrânia, a Bielo-Rússia e os antigos territórios imperiais da ÁsiaCentral e do Cáucaso foram reincorporados ao Estado como unida-des federadas (as repúblicas socialistas soviéticas), mas que, naprática, eram controladas pelo governo central.

A Polônia, a Finlândia e os países bálticos se mantiveramfora da nova união e outros territórios (como a Bessarábia e a Ucrâniaocidental) foram perdidos, mas o grosso do antigo território imperialvoltou à órbita de Moscou, o que foi notável. De fato, enquanto anti-gos Impérios multinacionais como o austro-húngaro e o turco--otomano entraram em colapso, em 1918, sob o impacto da derrota edas reivindicações nacionalistas, os bolcheviques foram capazes,combinando a força e alguma cooptação, de reverter o quadro.

É verdade que boa parte das tensões nacionais ficaramapenas adormecidas, indo explodir décadas depois. Também é ver-dade que a reconstrução do antigo espaço russo foi facilitada porelementos outros além dos méritos e ações dos bolcheviques, comoa ainda pouco desenvolvida consciência nacional de cazaques, aze-ris e outros povos. Não obstante, o trabalho realizado por esses pararecuperar a antiga base territorial do Império foi notável. Em 1922,finalmente, refletindo essa nova realidade, a Rússia bolcheviquemudou de nome, passando a se chamar União das Repúblicas So-cialistas Soviéticas (URSS).

Continuando a análise da situação da Rússia imediata-mente após a tomada do poder pelos bolcheviques, devemos recor-dar as perdas demográficas. Durante a guerra, estas não haviamsido muito maiores, proporcionalmente, à média dos beligeranteseuropeus. A Rússia, contudo, vivenciou, como visto, uma grandeguerra civil entre 1917 e 1920 e a fome e a guerra continuaram aceifar vidas na Rússia bem depois do fim dos combates no resto daEuropa. A população russa, ou soviética, declinou de 171 milhões,

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em 1914, para 132 milhões, em 1921, e o dreno demográfico naRússia europeia foi ainda maior. Uma parte dessa diminuição éexplicável pela perda, já mencionada, de territórios do antigo Impé-rio, mas isso não diminui a magnitude das perdas demográficasrussas entre 1914 e 1920 (KENNEDY, 1989, p. 309).

No que se refere ao poder econômico, a situação era decaos. Muitas fábricas, fazendas e ferrovias foram destruídas nosanos de hostilidades, com o quase colapso da economia. Em 1920,a indústria fabricava apenas 13% do que havia produzido em 1913.O comércio exterior estava reduzido a zero, a agricultura estava emruínas e havia fome generalizada. (KENNEDY, 1989, p. 309). O“comunismo de guerra” implantado por Lênin, entre 1918 e 1921,havia sido capaz, ao mobilizar e militarizar a sociedade, de garantira vitória na guerra civil, mas não mais do que isso. Assim, apesardo sucesso em recuperar quase todo o seu antigo território e re-construir o Estado, a Rússia, agora União Soviética, estava numasituação no mínimo delicada. Se ela queria garantir a sua segurançae significar algo para o mundo, sua economia e sua sociedade teriamque ser reconstruídas, e com urgência.

RECONSTRUÇÃO DO PODER INDUSTRIAL EMILITAR – 1921-1941

Em 1921, o governo de Lênin, com o poder consolidado etendo que lidar com uma situação de fome e carência alimentargeneralizada, abandonou o “comunismo de guerra”. No seu lugar,foi implantada a NEP (Nova Política Econômica), que representouuma tentativa do governo soviético em estabelecer um compromis-so entre a doutrina comunista e a realidade do país. Dentro da NEP,estabeleceu-se, na União Soviética, um sistema econômico misto,em que a grande indústria ficava sob controle do Estado, enquantoàs pequenas empresas urbanas e às propriedades rurais era dado odireito de produzir e comerciar livremente seus produtos.

O resultado da NEP foi a recuperação econômica daURSS. Em 1928, a produção de cereais e o rebanho bovino esta-vam praticamente nos níveis de 1913 e a superfície plantada haviapassado de setenta e sete milhões de hectares em 1922 para cento e

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treze nesse ano, superando os cento e cinco milhões de antes daguerra. A produção industrial também se recuperou e, pela simplesreconstrução das fábricas, ferrovias e usinas herdadas do czarismo eda época da guerra, ela também voltou aos níveis de 1913, já em1928 (KENNEDY, 1989, p. 310).

Apesar desses bons resultados, a NEP tinha, aos olhos doscomunistas, dois grandes problemas. O primeiro era que mantinha apropriedade privada dentro de um projeto de sociedade que preten-dia aboli-la. E, em segundo, ela não permitiria uma industrializaçãomaciça do país, o que, de forma coerente com a história russa desdeo século XIX e com a própria ideologia marxista, era visto comofundamental para preservar a segurança e garantir a prosperidadedo novo Estado. Essa situação levou a intensas discussões dentrodo Partido Comunista da União Soviética (PCUS), sucessor do bol-chevismo, sobre o que fazer.

Em 1924, além disso, com a morte de Lênin, abriu-se umadura luta pelo poder dentro da União Soviética, a qual terminoucom a vitória da ala de Stalin, defensora de uma industrializaçãomaciça, a qualquer custo, do país. Esta consolidou seu domínioespecialmente a partir de 1929 e, a partir de então, a URSS entrounum programa maciço de coletivização da terra, industrialização ereforço ainda maior do poder do Estado.

A coletivização da terra foi imposta a ferro e fogo sobre oscamponeses. As pequenas propriedades oriundas da reforma agráriaforam confiscadas e grandes propriedades coletivas foram forma-das. Num período curto, de apenas alguns anos, quase todos oscamponeses se tornaram empregados do Estado. Houve resistêncianesse processo, o que levou a brutal repressão e à queda da produ-ção agrícola. Em 1941, a produção de alimentos, apesar dos pro-gressos na mecanização, ainda era menor do que a de 1928 e houvenovos surtos de fome no país, em 1932 e 1933. A prioridade abso-luta ao desenvolvimento industrial, tanto para investimentos doEstado como para alocação de mão de obra, também é um fatorexplicativo importante para compreendermos os problemas agríco-las soviéticos nesses anos.

O desenvolvimento da indústria se tornou realmente a baseda política econômica do Estado, com todos os recursos sendo ca-nalizados para ela. Milhões de camponeses foram expulsos de suas

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terras e encaminhados para as fábricas. O consumo privado foi re-duzido a níveis baixíssimos, quase de subsistência, e, com isso, aURSS foi capaz de destinar quase 25% do PIB ao investimentoindustrial e ainda transferir recursos consideráveis às Forças Arma-das, à educação e ao complexo científico-tecnológico.

Mesmo tendo sido obtidos a um custo humano imenso ecom graves danos ao sistema agrícola, os resultados desse esforçoforam impressionantes. As antigas áreas industriais de Leningrado,Moscou e outras foram ampliadas, enquanto novas plantas industriaisforam fundadas nos Urais, no Volga e em outras áreas. Apenas entre1928 e 1940, recorrendo novamente aos números levantados pelohistoriador Paul Kennedy, o número de pessoas empregadas na agri-cultura caiu de 71% para 51% do total. No mesmo período, o númerode engenheiros formados por ano passou de quarenta e sete mil paraduzentos e oitenta e nove mil, a produção de carvão e de aço aumen-tou quatro vezes, a de eletricidade sete, a de máquinas-operatrizesvinte e a de tratores, quarenta vezes (KENNEDY, 1989, p. 311-312).

Claro que, por trás desse crescimento, havia ainda muitasdeficiências. A produção agrícola e de bens de consumo era inferioràs necessidades e mesmo as imensas melhoras no sistema de trans-portes ainda eram insuficientes para as necessidades do país. Ogigantismo das fábricas e o planejamento centralizado levavam aimenso desperdício de matérias-primas e mão de obra e a poucaflexibilidade. Mesmo assim, a população soviética chegou aos 180milhões em 1938 e, entre 1929 e 1938, a parcela soviética na pro-dução manufatureira mundial passou de cinco para dezoito porcento, a segunda do mundo, atrás apenas da americana. Os comu-nistas haviam sido bem-sucedidos onde os czares haviam falhado(KENNEDY, 1989, p. 311-312 e 197-198).

Essa corrida soviética à industrialização é um processointeressante na medida em que indica a adaptação da doutrina co-munista às condições do país. Nas obras de Marx, Engels e outrosclássicos comunistas, imaginava-se que a Revolução se daria empaíses industrialmente avançados, como a Alemanha e a Inglaterra,e não num país ainda atrasado como a Rússia. Os próprios bolche-viques reconheciam essa situação e é compreensível que, por váriosanos após 1917, Lênin tenha contado com uma revolta proletária naAlemanha para sustentar e manter a Revolução na URSS.

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Quando essa revolta não se deu e os comunistas russos seviram isolados e hostilizados pelo resto do mundo, voltou-se aovelho dilema do século XIX: a industrialização pesada era necessá-ria para o poder nacional e o crescimento da sua economia, mascomo fazê-la numa nação de agricultores?. A resposta soviética nãofoi muito diferente da dos czares, utilizando sem reservas o que opaís tinha (ou seja, amplos recursos naturais e reservas imensas demão de obra) para atingir seus objetivos. De modo análogo aos go-vernos czaristas, além disso, o projeto industrial soviético privilegi-ava a indústria pesada (aço, carvão, eletricidade) e militar, e não osbens de consumo para a sua população.

As diferenças entre os dois momentos, contudo, tambémsão grandes. O programa industrial do governo soviético não seesqueceu de aspectos como a alfabetização maciça do povo, o in-vestimento em ciência e tecnologia e alguns benefícios, mesmo quemínimos, aos operários das cidades, como alimentação e moradiasubsidiadas. Isto, mais as novas perspectivas e carreiras abertas aosmiseráveis camponeses russos (agora convertidos em operários nascidades), deu alguma legitimidade e popularidade ao projeto. Alémdisso, o grau de controle que o Estado soviético tinha sobre a socie-dade, através de um uso irrestrito da repressão, permitia uma liber-dade na exploração dos recursos e das vidas dos habitantes do paísque nem mesmo os czares podiam ter imaginado.

Nunca será demais, de qualquer forma, ressaltar a magni-tude da repressão do período de Stalin. Qualquer oposição aos pla-nos do governo, tentativas de discutir alternativas ou de questionaro poder supremo de Stalin eram imediatamente silenciadas. Prati-camente toda a “velha guarda” bolchevique que havia feito a Re-volução (incluindo Trotski, Bukharin, Kamenev, Zinoviev e outros)foi executada, assim como parte substancial do partido e da cúpuladas Forças Armadas.

As estatísticas a respeito são vagas e confusas, mas os nú-meros mais aceitos atualmente indicam que cerca de dez milhões dehomens e mulheres foram presos (muitos das quais enviados paracampos de trabalho forçado) e alguns milhões mortos entre 1930 e1941. Outros quatorze milhões de camponeses, mais ou menos, mor-reram no processo de coletivização do campo e industrialização. Aviolência e a repressão tinham sido armas do governo de Moscou

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desde a época dos czares e também no período de Lênin, mas nuncaforam usadas com tamanha ferocidade como na época de Stalin.

Esse sistema repressivo também permitiu a eliminação detodas as potenciais ameaças à lealdade dos soviéticos ao Estado. Opensamento independente, as artes e a literatura foram rigidamentecontroladas e a religião (em especial, a Igreja Ortodoxa russa) foicolocada na ilegalidade, sobrevivendo na clandestinidade.

No que se refere às nacionalidades, conforme indicamDawischa e Parrott (1994, p. 8-13), houve alterações substanciaisna política do Kremlin, entre os anos 1920 e 30, com oscilação en-tre cooptação e repressão. Na década de 20, apesar da mão fortecontra quaisquer separatismos, os comunistas procuraram ser maistolerantes com os grupos minoritários, permitindo a sua autonomiae a participação de pessoal local na administração do partido e doEstado. Procurou-se até mesmo criar uma expressão formal dessaautonomia, através da criação de várias “repúblicas independentes”dentro da URSS, o que teria implicações decisivas décadas depoisao criar as bases formais para futuros movimentos nacionalistas.Ainda assim, foi um arranjo funcional, que manteve o problema dasnacionalidades relativamente sob controle nessa década.

Já no período de Stalin, o pêndulo oscilou para a repressão.O nacionalismo russo se tornou um elemento chave para a política defortalecimento do Estado na era stalinista e, sendo assim, a política da“russificação” aplicada pelo regime czarista especialmente a partir dasegunda metade do século XIX, retornou com força ainda maior. Asnacionalidades minoritárias da URSS perderam a pouca autonomiaque ainda tinham e a mão pesada de Moscou foi utilizada para baniras manifestações culturais independentes dos povos minoritários egarantir a sua russificação e total submissão ao poder central.

Apesar de, nesse processo, a cultura russa ser promovidacomo superior, o que estava em jogo, na verdade, era o desejo doregime de garantir a total submissão dos povos e partes da sociedadesoviética ao poder central e não, obrigatoriamente, uma crença nasuperioridade da cultura russa sobre as outras. Tanto que o próprioStalin era georgiano e muitos dos que puseram em prática a persegui-ção aos grupos minoritários eram ucranianos, armênios ou azeris.

De qualquer modo, o impacto militar e geopolítico desseprocesso de fortalecimento da economia e do Estado soviéticos foi

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grande. A criação de uma estrutura estatal tão monolítica e, especial-mente, de uma base industrial tão poderosa serviu para criar umpoder militar de primeira magnitude. Por todo o período entre guer-ras, a URSS dedicou parte substancial do seu orçamento à defesa eeste só cresceu à medida que a tensão internacional aumentava,especialmente depois da ascensão de Hitler ao poder em 1933. Real-mente, os soviéticos estavam gastando cerca de 16% do orçamentonacional com a defesa em 1937 e esse número cresceu para 32%em 1940 (KENNEDY, 1989, p. 315).

O estabelecimento, já nos anos 20, de várias escolas mili-tares, permitiu o surgimento de uma nova geração de oficiais, maisligados à ideologia comunista e profissionalizados. Graças aos en-sinamentos alemães, fruto de uma colaboração entre os dois paísesque abordarei a seguir, os soviéticos se tornaram, nos anos 1930,entusiastas da guerra moderna, incluindo o uso de formações blin-dadas e aviação.

Com o aumento da produção industrial, além disso, a URSSfoi capaz de produzir quantidades imensas de tanques e aviões paraequipar as unidades formadas no novo modelo. No final da décadade 1930, quase vinte e cinco mil tanques estavam em operação noExército da União Soviética, cuja indústria produzia dez mil aviõespor ano para a sua Força Aérea. Fuzis, peças de artilharia e muniçãoagora existiam em abundância e, em fins da década de 30, váriosmilhões de homens vestiam o uniforme do Exército Vermelho.

A estrutura militar soviética continuava, contudo, com vá-rios problemas. Muitos desses tanques e aviões eram obsoletos e,apesar do enorme esforço na educação, continuavam a faltar ho-mens preparados para tripular adequadamente todos esses veículose comandar as tropas. Os expurgos de Stalin no corpo de oficiais apartir de 1937, movidos por sua desconfiança de tudo e todos quepudesse ameaçar seu poder e que atingiu 90% dos generais e 80%dos coronéis, acentuaram ainda mais essa falta de pessoal habilita-do nas Forças Armadas (KENNEDY, 1989, p. 332-315).

Pior ainda: eles atingiram especialmente os oficiais maisbrilhantes, como Tukachevski, entusiastas da guerra moderna, oque deixou o Exército nas mãos de homens de competência, na suamaioria, duvidosa. Um resultado disso foi o desmantelamento doscorpos blindados que estavam sendo criados, nos moldes alemães, e

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a distribuição dos tanques pelas divisões de infantaria, com resulta-dos desastrosos quando da guerra.

Em resumo, os soviéticos continuavam enfatizando aquantidade e produzindo volumes inacreditáveis (o que era viávelnuma economia dirigida) de armamentos. Mas a sofisticação tec-nológica destes armamentos era, em comparação com os exércitosocidentais e sempre pensando em linhas gerais, menor e isso afeta-va a eficiência das Forças Armadas como um todo. Mesmo assim,era uma força considerável e apenas uma nova guerra iria dizer seos esforços soviéticos para diminuir a distância econômica e militarque os separava do Ocidente tinham sido realmente bem-sucedidos.Como aconteceu com os czares, em 1914, a hora da verdade sovié-tica também veio, em 1941, quando as tropas nazistas invadiram aURSS.

A URSS NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

O Estado soviético passou por um período de relativo iso-lamento durante as primeiras décadas de sua existência. A naciona-lização das indústrias estrangeiras, a recusa em pagar a dívida ex-terna contraída pelo Império czarista, a lembrança da intervençãoestrangeira antibolchevique durante a Guerra Civil e, acima detudo, a desconfiança das potências capitalistas frente ao primeiroEstado comunista do mundo contribuíram para que as relações deMoscou com a França, a Inglaterra e os Estados Unidos permane-cessem frias. Nesses anos, a obsessão de Moscou era por sua segu-rança frente ao que parecia ser uma aliança mundial contra a URSS.

Curiosamente, o país com que a União Soviética mantevemelhores relações na década de 1920 foi a Alemanha, devido à des-confiança recíproca frente à Polônia e, especialmente, ao isola-mento compartilhado por ambos os países no cenário internacionalpós-Primeira Guerra Mundial. Sendo assim, consolidou-se um flu-xo comercial entre os dois países, além de renúncia mútua às inde-nizações de guerra. Também se criaram laços militares, com osalemães treinando os soviéticos na guerra moderna e desenvolven-do armas em território russo, o que lhes permitia escapar das limi-tações do Tratado de Versalhes.

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Na década seguinte, com a ascensão do nazismo ao poder naAlemanha, em 1933, a situação se alterou e as relações entre Moscoue Berlim se tornaram mais frias. Para fazer frente à ameaça nazista,Stalin procurou romper o isolamento soviético e assinou tratados decooperação e assistência com vários países europeus, além de acelerara preparação militar. Em 1939, contudo, dada a resistência dos gover-nos de Paris e Londres em assinar um acordo de cooperação comMoscou e os interesses comuns, especialmente no tocante à Polônia,soviéticos e nazistas assinaram um tratado. Este deu carta branca paraHitler atacar a Polônia e a Europa Ocidental sem se preocupar comsua fronteira oriental e, como recompensa, a União Soviética pôdeanexar os países bálticos e partes da Polônia.

Esse tratado, contudo, dificilmente poderia ter durado eter-namente. Para Stalin, ele tinha o objetivo de recuperar os territóriosperdidos do antigo Império russo e obter mais tempo para reforçar asforças militares nacionais e barganhar com os alemães e os aliadosocidentais a melhor oferta para entrar na guerra. Para Hitler, ele foium mero expediente para conquistar a Europa Ocidental sem maioresproblemas. Assim que se tornou claro, com a queda da França em1940, que a Europa Ocidental estava sob controle, ele imediatamenteordenou o início os preparativos para invadir a URSS.

Para o antigo Império alemão de antes da Primeira GuerraMundial, a Europa Oriental e a Rússia eram territórios que deveriamfazer parte de um futuro espaço, dominado pela Alemanha. Osnazistas, contudo, valorizavam ainda mais o domínio desse territó-rio, pois, segundo as suas crenças, seria ali que o povo alemãoencontraria o “Lebensraum” (espaço vital) para sobreviver.

Para completar, os nazistas consideravam os comunistas, aolado dos judeus, como seus inimigos mais perigosos e era justamentenaquela região que se localizava o único Estado comunista do mun-do, a União Soviética. Destruir a União Soviética era, pois, algo fun-damental não só para dominar o local onde deveria surgir o Impérionazista, como para esmagar a grande ideologia inimiga. Não é umacaso, portanto, que a Alemanha nazista tenha sido sempre tão obce-cada com a União Soviética e invadido o país assim que teve oportu-nidade. Alegações de que o ataque alemão foi uma operação preven-tiva contra um possível ataque soviético à Alemanha têm sido rejei-tada, com razão, pela maioria dos historiadores, como indicam, porexemplo, John Keegan (1974) e David Glantz (2001).

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A invasão foi precedida da conquista da península Balcâ-nica pelas tropas alemãs, garantindo o controle quase que completodo continente europeu e a segurança do flanco sul. Ao mesmo tem-po, ao norte, os soviéticos, interessados em territórios que melhora-riam seu perímetro defensivo, invadiram a pequena Finlândia emfins de 1939. Favorecidos pelo terreno, pelo moral elevado e peloinverno, os finlandeses foram capazes de repelir ondas e ondas deinvasores. Apenas com uma concentração imensa de homens eequipamentos (incluindo 1,2 milhão de soldados, dos quais uns 200mil foram mortos) o Exército Vermelho foi capaz de fazer os fin-landeses capitularem, em março de 1940, sendo estes obrigados aceder os territórios ambicionados pela URSS.

Essa invasão reforçou, nas mentes da liderança nazista, amá impressão que eles tinham dos soldados soviéticos e a ideia deque eles eram apenas números, que uma força mais bem treinada eequipada seria capaz de derrotar rapidamente, repetindo Tan-nenberg e outras batalhas da Primeira Guerra (CONDON, 1975).

Se os alemães tivessem prestado atenção, contudo, à cam-panha vitoriosa do general Zhukov contra o Japão em 1939 (quandoos japoneses tiveram que abandonar a Mongólia Exterior, após per-derem dezenas de milhares de homens), eles teriam percebido que oExército Vermelho não era tão fraco assim e que havia núcleos deimensa perícia e capacidade no seu interior. No entanto, as dificul-dades soviéticas para submeter a Finlândia foram reais e não apenasincentivaram os planos agressivos dos nazistas, como forçaram aprópria cúpula soviética a reconhecer seus problemas e buscar so-luções (KENNEDY, 1989, p. 315).

Assim, o Exército soviético foi reorganizado. A praxe co-munista de colocar um comissário político ao lado de cada oficialpara vigiar suas ações, que já vinha sendo suavizada nos anos 30,foi, na prática, eliminada, o que permitiu maior autonomia dos co-mandantes das Forças Armadas no tocante às decisões militares.Muitos oficiais ainda aprisionados ou banidos durante os expurgosforam reintegrados e se emitiram novos regulamentos para o trei-namento das tropas. As formações blindadas foram reconstruídas eprocurou-se sanar as deficiências de equipamento e organizaçãoidentificadas na Finlândia. Nem tudo pôde ser aprimorado, contu-do, nos poucos meses que separam o fim da guerra no Ártico da

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invasão nazista, mas as sementes do novo já estavam sendo planta-das (KEEGAN, 1974, p. 23).

Em 22.06.1941, finalmente, os Exércitos do Eixo cruzarama fronteira russa do mar Báltico ao mar Negro. Eram cerca de 160divisões alemãs, com outras 40 fornecidas por seus aliados finlande-ses, romenos, húngaros e outros. No total, contando as forças deapoio mais as aéreas, entre três e quatro milhões de homens, os quaisrepresentavam o grosso dos efetivos militares totais do Eixo. A estesse opunham cerca de 170 divisões soviéticas aquarteladas nas cir-cunscrições ocidentais, totalizando cerca de 2,7 milhões de homens.Em todo o território da URSS, as forças militares soviéticas conta-vam, então, com cerca de cinco milhões de soldados, número esteque dobrou até o dia primeiro de julho, com a mobilização geral.

Os eixos do ataque alemão eram Leningrado no norte,Smolensk e Moscou no centro e a Ucrânia no sul. O objetivo eradestruir todas as Forças Armadas e o próprio Estado soviético, coma criação de um imenso Império alemão na Rússia europeia e a ex-pulsão dos remanescentes para a Sibéria.

Stalin tinha sido advertido da invasão, mas, não acreditan-do, ou não querendo acreditar na mesma, impediu medidas preven-tivas. Pegos de surpresa e ainda com sérios problemas de liderançae treinamento, os exércitos soviéticos sofreram pesadamente nasprimeiras semanas da invasão, enquanto sua força aérea, após per-der 1.200 aparelhos apenas nas primeiras nove horas, foi pratica-mente destruída. Os países bálticos, a Ucrânia e a Bielo-Rússia caí-ram nas mãos dos nazistas e, por volta de outubro, eles se aproxi-mavam do coração da Rússia, ou seja, Moscou.

O desempenho do Exército Vermelho foi realmente la-mentável nas primeiras semanas da invasão e de três a quatro mi-lhões de soldados foram mortos, feridos ou capturados apenas em1941. Oito mil aviões e dezessete mil tanques foram perdidos e asáreas industriais e agrícolas mais ricas do país caíram nas mãos doinvasor. A produção de alimentos caiu pela metade e a de aço, ferroe carvão em três quartos, enquanto a de alumínio, cobre e manga-nês (todos suprimentos vitais para a indústria bélica) se reduziu emdois terços (OVERY, 1995, p. 182-183). No final de 1941, pareciaque 1917 iria se repetir e que as Forças Armadas soviéticas, e aprópria URSS, iriam se desfazer.

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Mapa 6 – Ofensivas do Exército Vermelho em 1942-1945

Fonte: Channon e Hudson (1996), p. 123.

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Não foi, contudo, o que ocorreu. O inverno e o excessivoalongamento das linhas de suprimento alemãs deram aos soviéticos otempo necessário para eles se recuperarem e eles então conseguiramnão apenas contra-atacar na região de Moscou, já em 1941, comoresistir às ofensivas alemãs na direção do Cáucaso, em 1942 e 1943.Datam dessa época batalhas famosas, como Stalingrado ou Kursk,nas quais as forças soviéticas demonstraram grande criatividade ehabilidade táticas, envolvendo os exércitos nazistas e os obrigando arecuar com grandes perdas. A partir desse ano, finalmente, e semquerer entrar em detalhes sobre acontecimentos conhecidos, os exér-citos soviéticos expulsaram os alemães do antigo território russo eavançaram pela Europa Oriental, chegando a Berlim em 1945.

Essa guerra entre alemães e soviéticos foi muito diferentedaquela ocorrida no ocidente europeu. Em primeiro lugar, porque,como visto, os alemães não conseguiram derrotar a URSS da ma-neira como haviam feito com todos os outros países europeus. Atática da Blitzkrieg e a capacidade militar alemã causaram grandesperdas aos soviéticos e, como visto, territórios imensos caíram sobcontrole nazista. No entanto, o enorme território da URSS, o climainóspito, os seus imensos recursos econômicos e militares e a con-tínua resistência impediram os militares alemães de ocupar rapida-mente o país, prolongando uma guerra que deveria, no pensamentodos planejadores nazistas, ser curta.

O próprio caráter da guerra foi diferente na assim chamada“frente oriental”. No ocidente europeu, a disputa era basicamente porpoder e áreas de influência. O mesmo ocorria na frente oriental, masexistia também o conflito entre duas maneiras de ver o mundo (na-zismo e comunismo) que, apesar de terem pontos em comum, seodiavam mutuamente. Além disso, enquanto os povos da EuropaOcidental eram vistos pelos nazistas como “raças aceitáveis”, ospovos eslavos do Oriente eram considerados, dentro do mundo dasideias nazistas, subumanos a serem tratados com selvageria e despre-zo. Tanto que milhões de prisioneiros de guerra soviéticos aprisiona-dos pelos nazistas morreram no cativeiro, de maus-tratos, fome edoenças, enquanto o tratamento destinado aos prisioneiros norte--americanos ou ingleses foi muito mais correto. Não é à toa, assim,que a guerra na Europa oriental tenha sido muito mais violenta, bru-tal e sanguinária e que cerca de vinte e sete milhões de soviéticos,civis e militares, tenham perdido a vida na luta contra o nazismo.

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A VITÓRIA SOVIÉTICA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

De qualquer modo, o mais importante a destacar é que,apesar das perdas imensas, a União Soviética venceu onde o Impé-rio dos czares havia falhado, para admiração dos alemães e, prova-velmente, de muitos russos. Muitas pessoas tendem a explicar istopelo clima russo e pelo seu território imenso, que tornariam a Rús-sia inconquistável. Ora, não resta dúvida que o clima inclemente eas distâncias enormes ajudaram a desgastar os alemães, permitindoaos soviéticos sobreviverem ao ataque nazista em 1941. Mas espa-ço e clima deram à URSS apenas tempo e, se os soviéticos não ti-vessem tido vontade e capacidade de resistir aos alemães, um pou-co mais de tempo poderia ter sido inútil.

Para explicar a determinação soviética em resistir, temosque recordar que o sistema repressivo soviético permitia um grau decontrole sobre a população e sobre as Forças Armadas muito maiordo que na época dos czares. Especialmente nos momentos de deses-pero de 1941, quando os alemães pareciam invencíveis, os oficiais dapolícia política, a NKVD, agiram para conter o derrotismo, fuzilandodesertores e reprimindo os dissidentes. Nos anos seguintes, a mãopesada também foi largamente utilizada para manter a disciplina nasForças Armadas e em toda a sociedade soviética.

A repressão, contudo, não é o único elemento a ser levadoem conta para explicar a determinação soviética. O desejo de de-fender o Estado socialista e suas conquistas (que, apesar do preçoalto que estava sendo pago, eram evidentes), com certeza, motivoumuitos soviéticos. Também o racismo nazista ajudou a aumentar aresistência contra os ocupantes e a sabotar o esforço de guerra ale-mão. Afinal, dentro dos projetos de Hitler, os únicos destinos pos-síveis para os povos eslavos eram a escravidão e o extermínio. Se,para muitos ucranianos ou georgianos, teria sido aceitável ser sú-dito do Kaiser alemão ao invés do Czar russo, essa opção, no con-texto da Segunda Guerra Mundial, não existia mais.

Assim, depois de um primeiro momento em que muitosucranianos ou caucasianos viram nos alemães aqueles que os liberta-riam da tirania de Stalin, os povos da URSS aprenderam que escra-vidão e morte eram as únicas alternativas à resistência, o que a esti-mulou e ajudou a manter a moral do povo e das Forças Armadas.

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Na verdade, talvez seja possível dizer, até mesmo, que ti-vemos, no início, uma guerra do regime soviético contra os nazistas,a qual se transformou em uma guerra patriótica e popular, do povorusso contra seus ocupantes. A produção crescente da indústria béli-ca, as vitórias do exército e a crença numa vitória final sobre os na-zistas e seus satélites teriam sido efetivamente impossíveis apenascom repressão e controle e, na verdade, essas foram, com exceção dealguns momentos críticos em 1941, relaxados durante a guerra. Opovo soviético percebeu o destino que o aguardava nas mãos dosnazistas e lutou para defender a sua independência e as suas vidas.

Assim, movidos por uma ideia fixa de resistir a qualquerpreço e com uma disciplina brutal dentro das fileiras, os soldadossoviéticos lutavam com muito mais vontade do que seus pais eavós haviam feito nas divisões do Czar. Depois das rendições emmassa no início do conflito, as Forças Armadas soviéticas nãoesmoreceram nunca, mesmo com as baixas imensas, na sua de-terminação em derrotar Hitler, o que espantou os generais alemãesque haviam visto os desmoralizados soldados russos fugirem paracasa em 1917.

Também contou, para a derrota alemã na frente oriental,evidentemente, a colaboração dos norte-americanos e ingleses que,além de fornecerem suprimentos em momentos cruciais, combate-ram os alemães na Europa Ocidental e lançaram ondas de bombar-deiros sobre a Alemanha, ajudando a drenar os recursos do Reich.Também os militares alemães, proibidos por Hitler de recuar e compouca autonomia operacional, tiveram responsabilidade na sua pró-pria derrota ao cometer erros táticos e subestimar o inimigo. Porfim, a decisão japonesa de não atacar a URSS a partir do Orientedeu, obviamente, um maior fôlego aos soviéticos, permitindo con-centrar todos os seus recursos na luta contra a Alemanha.

Tudo isso, contudo, seria inútil sem que a antiga Rússia ti-vesse passado pela maciça industrialização mencionada antes. Afi-nal, de que adiantaria o espaço infinito e as imensas reservas dehomens dispostos a resistir se estes homens não tivessem o materialadequado para lutar? A Rússia podia ser mesmo inconquistável,mas, como o czar tinha aprendido em 1914-1917, isso não signifi-cava que ela não podia ser derrotada. Talvez os nazistas não pudes-sem chegar até Vladivostok, na costa do Pacífico, mas poderiam,talvez, conquistar a Rússia Europeia, o que significaria, de qualquer

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forma, a derrota da URSS e a possível dissolução do espaço rus-so/soviético.

Outro fator que aumentou a importância da força indus-trial para a sobrevivência do Estado soviético foi a própria evolu-ção da tecnologia militar nos anos 20 e 30 do século XX, os quaistornaram as Forças Armadas das grandes potências ainda maisdependentes da capacidade produtiva dos seus países. A ciência ea tecnologia estavam transformando os sistemas de armamentosde forma cada vez mais acelerada, realmente, nesses anos entre asduas grandes guerras. Os aviões de caça se tornavam maiores,mais rápidos e mais bem armados do que nunca, assim como osbombardeiros. Os grandes encouraçados eram mais rápidos, ti-nham mais blindagem e melhor defesa antiaérea do que aqueles deuma geração antes.

O mesmo ocorria com os tanques, os canhões, os subma-rinos e vários outros armamentos, que também eram afetados pe-las modificações nos equipamentos elétricos, de comunicações eoutros. Todo esse processo tornava a tecnologia um fator chavepara a eficiência de qualquer força militar. Os louros da vitória de-pendiam cada vez mais da tecnologia, da ciência e da produção emmassa e são estes os fatores chave para entender a vitória aliada naSegunda Grande Guerra, assim como a capacidade soviética dederrotar a máquina militar nazista.

De fato, o poder industrial soviético era, agora, substanciale, aplicado completamente no esforço de guerra, permitiu ao Exér-cito Vermelho recompor suas perdas e se reforçar continuamente.Apesar das imensas baixas provocadas pela invasão alemã, os sovié-ticos traziam sempre mais e mais homens do interior da Eurásia, eestes homens desfrutavam de uma crescente superioridade em tan-ques, artilharia e aviões.

Foi fundamental para a vitória, de fato, a transferência,para as profundezas da Ásia, a salvo das incursões alemãs, de mi-lhares de grandes fábricas e a construção de outras tantas, as quaisproduziram aço, produtos químicos, carvão, munição, petróleo earmas. Apenas entre julho e dezembro de 1941, mais de mil e qui-nhentas fábricas foram removidas, junto com dezesseis milhões deoperários, engenheiros e suas famílias, em 1,5 milhão de vagõesferroviários, para além dos montes Urais (OVERY, 1995, p. 181-

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-183). Demorou algum tempo para que essas fábricas voltassem aproduzir, mas, quando o fizeram, permitiram que o Exército Ver-melho recebesse armas e suprimentos em quantidade crescente.

Os soldados alemães eram, em geral, mais bem treinados econtavam com um material militar superior, produzido segundouma longa tradição industrial que enfatizava a qualidade. Já o mate-rial soviético era de qualidade inferior (ainda que contando comalgum equipamento realmente excepcional, como os tanques T-34,os lançadores múltiplos de foguetes Katyushka e outros) e produzi-do sem maiores requintes.

Mas era justamente essa simplicidade que permitia que elefosse produzido de uma forma padronizada e rápida. Em 1943, porexemplo, seguindo os cálculos de Richard Overy (1995, p. 182), aeconomia alemã produziu trinta milhões de toneladas de aço e, tra-balhando-o, entregou dezessete mil tanques e vinte e sete mil ca-nhões aos seus militares. Já a URSS, mesmo tendo produzido ape-nas oito milhões de toneladas de aço, produziu vinte e quatro miltanques e quarenta e oito mil canhões, o que indica a capacidadesoviética em fazer mais com menos.

O sistema de produção militar soviético, assim, enfatizava arapidez, a simplicidade e a velocidade de produção. Isso permitia afabricação, em enormes números, de tanques, aviões, peças de artilha-ria e outros armamentos relativamente pouco sofisticados, mas ro-bustos e eficientes. Os norte-americanos também foram mestres nessetipo de produção em série e padronizada de armamentos.

Seria um erro dizer que, durante a guerra, os soviéticosnão aprenderam nada em termos de técnica militar. Pelo contrário.As forças de terra e ar fizeram, das derrotas de 1941, quando quasetoda a força blindada e a aviação do país foram destruídas, a opor-tunidade para reconstruí-las da base. As unidades blindadas foramreorganizadas e melhores equipamentos (como os tanques T34 eKV1, sistemas de rádiocomunicação e motores diesel) introduzidos.Sua doutrina operacional também foi atualizada para seguir o mol-de da Blitzkrieg e os serviços de apoio e manutenção dos blindadosaperfeiçoados.

Já a força aérea refinou e melhorou as técnicas daLuftwaffe, aprendendo a concentrar seus aparelhos em exércitosaéreos e a usar o radar. Novos aviões, de produção simples, mas

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muito eficientes, como os aviões de ataque IL-2 e os caças Yak-9,Lagg-3 e La-5, foram produzidos em massa e incorporados àsfileiras. A partir de 1943, as forças blindadas e aéreas soviéticasoperavam de forma eficiente e nem se pareciam com suas prede-cessoras de 1941.

É verdade que os exércitos soviéticos não superaram al-guns defeitos antigos, como a pouca flexibilidade de comando emotorização, o que os fazia ainda grandemente dependentes da fer-rovia e das carroças. Os soldados soviéticos também dispunham demenos alimentos e comodidades (sendo famosa, no fim da guerra, aansiedade dos soldados do Exército Vermelho para conseguir reló-gios, roupas íntimas e outros itens de consumo) do que seus equi-valentes alemães, para não falar dos norte-americanos. Mas, mesmocom todas essas carências, as melhoras foram substanciais, tantoque, enquanto, em 1941-1942, seis ou sete tanques soviéticos eramperdidos para cada alemão, a proporção havia caído para um em1944 (OVERY, 1995, p. 211-214).

Não obstante essa melhora qualitativa, contudo, o que real-mente deu a vitória à URSS foi a massa numérica. No início de1945, por exemplo, a Primeira Frente (termo utilizado pelos russospara designar um grupo de Exércitos) Russo-Branca e a PrimeiraFrente Ucraniana reuniram 2,2 milhões de homens, 6.400 tanques e46.000 canhões e morteiros para a conquista da Polônia.

Tal tropa tinha recebido 120 mil vagões de suprimentos etinha estoques de quatro milhões de projéteis de artilharia, além deampla disponibilidade de combustível. Os alemães, do grupo deExércitos “A”, contavam com apenas 400 mil homens, 1.150 tan-ques e 4.100 peças de artilharia, com poucos suprimentos. Segundoobservadores, o dilúvio de fogo projetado pelos Exércitos soviéti-cos sobre os alemães na batalha que se seguiu seria inigualável semo uso de armas nucleares (ZIEMKE, 1975, p. 22-23).

Na conquista de Berlim, em 1945, por sua vez, os soviéti-cos reuniram 2,5 milhões de homens, 7.500 aviões, mais de 40 milpeças de artilharia e morteiros e 6.200 tanques, frente a uns 300 milsoldados alemães. Em alguns momentos, assim, as tropas nazistassimplesmente se dissolveram frente a ataques sem fim de tanquese mais tanques, precedidos de um dilúvio de obuses de artilharia(ZIEMKE, 1975, p. 71).

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Tal superioridade material foi menos expressiva, mas jápresente, entre 1941-1943, quando a economia soviética se recupe-rava da invasão e das imensas perdas econômicas e militares, mas,entre 1944 e 1945, foi esmagadora. Não surpreende, assim, que,dos 13,6 milhões de alemães mortos, feridos ou aprisionados du-rante a guerra, 10 milhões o tenham sido na frente oriental. Se, al-guma vez, a imagem do “rolo compressor” russo esteve perto darealidade, foi na frente oriental, nesses dois anos.

Assim, saíram das fábricas russas, durante a guerra, uns200 mil canhões e morteiros médios e pesados, 160 mil aviões e100 mil tanques (MANDEL, 1989, p. 72; KENNEDY, 1989, p.339-341). Como eles praticamente não lutaram nos oceanos, suaprodução de navios e submarinos foi pequena, mas ninguém, entretodos os beligerantes, conseguiu produzir mais artilharia e blinda-dos. Se examinarmos o conjunto da produção militar, apenas osEstados Unidos foram capazes de fabricar mais material militar doque a União Soviética durante a guerra.

Deve ser ressaltada, contudo, a imensa diferença entre osistema de produção estadunidense e soviético. Os norte-america-nos, utilizando uma capacidade industrial imensa, conseguiram nãoapenas produzir material militar em escala inacreditável e abastecerseus soldados com todos os recursos e amenidades possíveis, comoo nível de vida médio dos civis norte-americanos melhorou subs-tancialmente durante o conflito. Já os soviéticos, com recursos infi-nitamente menores, sujeitaram seus soldados e operários a um pa-drão de vida quase de subsistência. Em locais como Magnitogorsk,Sverdlovsk ou Chelyabinsk, centros da produção de aço e militarnos montes Urais, milhões de jovens, idosos e mulheres trabalha-vam horas sem fim com alimentos racionados e vigilância contínua.O que era inimaginável para os padrões ocidentais era realidade naURSS (OVERY, 1995, p. 184-190).

Também o simples número de mortos no conflito – seis aoito milhões de civis mortos pelos alemães, uns dez milhões de civisvitimados pela fome, excesso de trabalho e doenças e mais sete mi-lhões de soldados, totalizando 25 a 27 milhões, apesar das estatísti-cas variarem – seria inaceitável em uma democracia ocidental. Talenormidade de baixas reflete não apenas a brutalidade nazista naURSS, mas também o tipo de economia de guerra ali construído e o

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próprio estilo de guerra conduzido pelos soviéticos, usando a quanti-dade para superar a qualidade e trocando vidas pela vitória.

Poderíamos dizer que essa foi uma maneira de fazer a guer-ra de um Estado ditatorial e, apesar de tudo, ainda subdesenvolvido,que usou, e pôde usar, vidas sem problemas para atingir seus objeti-vos. Mas foi também uma maneira tipicamente russa de agir, pois,afinal de contas, a própria Alemanha nazista foi incapaz de exigirsacrifícios semelhantes de sua população e de seus militares. Issopara não mencionar os Estados Unidos ou as outras democraciasocidentais envolvidas, que tinham que fornecer, aos seus soldados,confortos inimagináveis para os soviéticos e preocupar-se semprecom o número de baixas, sob pena de perder sustentação interna.Estas eram preocupações praticamente inexistentes na cúpula sovié-tica, o que revela o que ainda havia de tipicamente “russo” nelas.

Também o resgate, até certo nível, do antigo nacionalismorusso, é um indicativo da força das velhas tradições russas no novoEstado soviético. Realmente, Stalin, para mobilizar a população eevitar atritos com as potências capitalistas aliadas, esqueceu os ve-lhos slogans da união do proletariado mundial contra o capitalismoe proclamou a guerra como mais um capítulo da luta dos povoseslavos contra os germânicos. Em boa medida, mera propagandapara consumo imediato, mas também um sinal da força do nacio-nalismo russo dentro da União Soviética. O mesmo pode ser ditodo esforço soviético, nesse período, em recuperar áreas do antigoImpério do czar que haviam ficado independentes, como os paísesbálticos, o leste da Polônia e áreas da Finlândia.

Enfim, o que fica evidente é que a União Soviética de Sta-lin não havia rompido totalmente com algumas das tradições doantigo Império e que continuava a seguir alguns dos padrões decomportamento e padrões mentais de antes da Revolução. Isso nãosignifica, contudo, que nada havia mudado. A sociedade soviéticaera, em todos os aspectos, diferente da que a havia precedido. Tantoque, em 1945, ela havia vencido uma das maiores máquinas milita-res da História e atingido o sonho czarista de elevar a Rússia à po-sição de superpotência global. O preço havia sido inacreditável,mas Moscou, finalmente, era a capital de uma superpotência.

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Capítulo 5

A UA UA UA UNIÃO NIÃO NIÃO NIÃO SSSSOVIÉTICA NA OVIÉTICA NA OVIÉTICA NA OVIÉTICA NA GGGGUERRA UERRA UERRA UERRA FFFFRIARIARIARIA

A NOVA PAISAGEM GEOPOLÍTICA: EUA E URSSENTRE 1945 E 1950

O final da Segunda Guerra Mundial foi um momento detotal redefinição da paisagem estratégica global. A Alemanha, aItália e o Japão haviam sido derrotados, com destruição quase com-pleta dos seus aparatos econômicos e militares e ocupação por partedos vencedores. A França e a China estavam do lado vitorioso, masestavam profundamente feridas pelos anos de conflito e luta contrao inimigo. Mesmo a Grã-Bretanha, apesar do seu desempenho ex-cepcional na derrota de Hitler, estava completamente exaurida emtermos econômicos e dependente da ajuda norte-americana. A erada Europa como senhora do planeta havia chegado ao fim e ummundo bipolar se formou, com duas potências participantes dacultura europeia, mas fora do continente, se tornando as únicas aserem levadas em conta nos assuntos globais: os Estados Unidos ea União Soviética. A era das “superpotências” havia chegado.

Os Estados Unidos eram, com certeza, a verdadeira super-potência. Durante a guerra, a economia estadunidense se desenvol-veu enormemente, sendo capaz não apenas de abastecer e armarsuas próprias Forças Armadas e a dos Aliados, como a populaçãocivil. Suas perdas em vidas haviam sido pequenas, na faixa de tre-zentos mil homens e, de todas as populações envolvidas no confli-to, a norte-americana foi a única que testemunhou uma melhoria noseu nível de vida durante a guerra e a sua sociedade era bem mais

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rica em 1945 do que havia sido em 1941. Em um mundo devastadoe empobrecido pela guerra, os Estados Unidos eram a grande exce-ção, produzindo, em 1945, 50% do PIB mundial e controlando 2/3das reservas de ouro e metade do transporte marítimo do mundo.

Esse vigor econômico se refletiu no poderio militar. Em1945, cerca de doze milhões de homens pertenciam às Forças Arma-das dos EUA, dos quais 7,5 milhões estavam no exterior. Apesardesse número, como seria de se esperar, diminuir rapidamentenos anos imediatamente posteriores ao fim da guerra, os norte--americanos ainda tinham 1,4 milhão de soldados por volta de 1950(KENNEDY, 1989, p. 343).

Além disso, a Marinha dos Estados Unidos dominava to-dos os oceanos, sua Força Aérea exercia um controle quase totaldos céus e sua rede de bases aéreas e navais se espalhava por todo omundo. Para completar, ao menos por alguns anos, Washingtondispunha do monopólio da bomba atômica. O mundo todo sentia opoder e a riqueza da América e a única área fora da influência ame-ricana era a dominada pela outra grande vencedora da SegundaGuerra Mundial, ou seja, a União Soviética.

A URSS saiu da guerra desfrutando de aparatos de podermuito maiores do que ela dispunha em 1941. A destruição da Ale-manha permitiu à União Soviética não apenas recuperar quase todoo território perdido pelo antigo Império czarista na Primeira GuerraMundial (como os Estados bálticos e partes da Romênia, Polônia eFinlândia), como anexar outros, como o extremo leste da Alemanhae a Rutênia. Mais importante que isso, foi instalada, ao redor doterritório soviético, uma série de Estados aliados (Polônia, Alema-nha oriental, Hungria, Tchecoslováquia, Romênia, Coreia do Norteetc.), os quais não apenas protegiam o próprio território soviéticocomo romperam com o isolamento de Moscou de antes de 1941. AURSS agora controlava um grande Império na Europa e no Oriente.

As Forças Armadas também continuavam substanciais.Boa parte dos quase 12 milhões de homens e mulheres que compu-nham o Exército Vermelho (rebatizado de Exército soviético em1946) ao fim da guerra foi mandada para casa, mas, mesmo assim,os soviéticos ainda dispunham, no final da década de 1940, de qua-tro milhões de homens em armas, vinte e cinco mil tanques e deze-nove mil aviões. Novos sistemas de armas – como o formidável

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caça a jato Mig 15 – foram desenvolvidos e uma força aérea estraté-gica, nos moldes da norte-americana, foi criada. Por fim, os soviéti-cos logo conseguiram, como veremos em detalhes a seguir, fabricara bomba atômica (KENNEDY, 1989, p. 346-348).

Em outros aspectos, a situação soviética era bem menosimpressionante, formando um contraste notável com a prosperidadedos Estados Unidos. Os prejuízos humanos da guerra haviam sido,como visto, imensos e, como a maioria dos mortos eram homens,houve desequilíbrio entre os sexos, com queda da natalidade e maio-res problemas ainda para repor o dreno demográfico. O prejuízomaterial nas áreas ocupadas pelos nazistas e os causados pela guer-ra em geral eram quase além da imaginação, com perdas acentua-das na agricultura, pecuária, moradias, meios de transporte etc. AURSS era um gigante militar, mas economicamente pobre.

Na verdade, a situação da União Soviética, no final da dé-cada de 40 e início da década de 50, era tão desastrosa que a levoua uma política externa relativamente comedida, com a recusa aapoiar ações comunistas mais ostensivas em países já definidoscomo do campo ocidental (como a Grécia e a Itália) e ao envolvi-mento direto na guerra civil chinesa. Até a insistência em manterligados a ela os países do Leste europeu se devia mais a uma buscade segurança e de recursos para financiar a reconstrução nacionaldo que sintoma de uma nação imperialista em busca de expansão.

Nesse contexto, a resposta do regime de Stalin foi a voltaaos programas pré-guerra de industrialização maciça e de cresci-mento econômico forçado baseado nos próprios recursos nacionais.Novamente, privilegiaram-se os bens de produção – carvão, indús-tria pesada, eletricidade, cimento, aço – em detrimento dos bens deconsumo e da agricultura. O padrão de vida dos soviéticos mante-ve-se achatado, mas, em poucos anos, a indústria pesada russa vol-tava aos níveis de produção de 1940, reconstruía-se o sistema detransportes etc. Em 1950, a URSS era a segunda economia domundo, atrás apenas da estadunidense.

É notável, na realidade, que a URSS tenha conseguidomanter e aperfeiçoar seu aparato militar e recuperar a sua base in-dustrial nas condições catastróficas em que estava a sua economia.Para tanto, contou a ainda maior ênfase do regime na disciplinainterna e no conformismo, que se corporificavam na repressão ime-

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diata e plena a qualquer dissidência. Também foi importante o fatoque o sistema soviético era extremamente eficiente quando se trata-va da ampliação quantitativa da produção industrial, especialmentea relacionada à indústria pesada.

Por volta de 1950, assim, a União Soviética já tinha restau-rado, se não o nível de vida de seu povo, ao menos os elementosbásicos do poder nacional. Os Estados Unidos eram muito maisricos e sua população, na média, vivia melhor do que no espaçosoviético. Mas Moscou tinha se recuperado em termos estratégicose militares e estava em condições, agora, de desafiar o poder dosEstados Unidos. Primeiro, nas suas fronteiras e, depois, no mundo.

A URSS NA GUERRA FRIA: CERCO GEOPOLÍTICO EEXPANSIONISMO

Durante o século XIX, havia várias pessoas que imagina-vam que o mundo seria dividido em duas ou três superpotências e aúnica certeza era que os Estados Unidos e a Rússia seriam duasdelas. Como, após a Segunda Guerra Mundial, o poder militar eestratégico de soviéticos e norte-americanos estava há anos luz dosseus rivais, parecia que as previsões haviam se confirmado.

Nesse cenário, imaginar que os dois superpoderes iamcompetir entre si pela hegemonia mundial era algo perfeitamenterazoável. O que nenhum profeta do passado poderia imaginar,contudo, era a maneira como essa competição se deu. Em primeirolugar, não foi possível, devido à ameaça de aniquilação mútua noholocausto nuclear, aos dois superestados resolverem suas disputasda maneira clássica, ou seja, pela guerra. Com isso, eles combatiamum ao outro através do apoio aos aliados no Terceiro Mundo e seameaçavam mutuamente, mas não puderam se enfrentar numa ba-talha definitiva, a qual teria destruído a ambos, e ao mundo.

Outro elemento diferente, como bem ressaltou Eric Hobs-bawm (1997, p. 223-252), foi a presença da ideologia. É verdadeque, em muitos momentos, soviéticos e norte-americanos usavaminstrumentalmente a defesa da democracia ou do socialismo comosimples arma retórica para uma disputa pelo domínio do planeta.

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Mas o fato de cada lado ter um padrão ideológico universal (capi-talismo e comunismo) que se excluíam deu uma força inédita àideologia como motor das relações internacionais. O mundo eraretratado como uma arena onde o bem e o mal combatiam e essaretórica ideológica, entre altos e baixos, deu um caráter inédito àGuerra Fria.

Dentro desse contexto maior, é possível reconhecer váriosmomentos e particularidades. Nos anos 1950, os focos de tensãoentre Washington e Moscou eram a Europa e o Extremo Oriente.Foram os anos da Guerra da Coreia (1950-1953), da Revoluçãocomunista na China e das manobras para redefinir geopoliticamenteo continente europeu, as quais incluíram momentos particularmentetensos, como a primeira crise de Berlim de 1948-1949.

Mapa 7 – Os blocos soviético e ocidental nosanos 40 e 50 e a crise cubana de 1962

Fonte: Channon e Hudson (1996), p. 126-127.

Com a pacificação da península coreana e a divisão da Euro-pa em duas áreas claras de influência, essas duas regiões entraramnum momento de relativa estabilidade, apesar da tensão entre osdois lados se manter. Realmente, ambos os blocos acumularamquantidades enormes de armamentos nas fronteiras entre as duasAlemanhas e as duas Coreias e a possibilidade de conflito estavasempre presente, mas a estabilidade acabou por se consolidar, entreidas e vindas, até o colapso do bloco do Leste, já nos anos 1990.

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Assim, no decorrer dos anos 1960 e 70, a tensão entreWashington e Moscou acabou por se transferir ao Terceiro Mundo.À medida que os antigos impérios coloniais europeus se desagrega-vam, abria-se espaço para as superpotências, que procuravam con-seguir amigos e aliados entre os novos Estados. Além disso, dada apresença do fator ideológico e até emocional na disputa entre osdois lados, qualquer conflito ou questão, mesmo nas regiões maisremotas do globo, se tornava de vital importância, o que levou aoenvolvimento dos dois blocos em áreas e regiões de pouco ou ne-nhum interesse estratégico ou geopolítico.

Foi assim que os norte-americanos financiaram e apoiaraminúmeras ditaduras na África, Ásia e América Latina, intervierammilitarmente no Vietnã etc. Também os soviéticos conseguiram,através do fornecimento de armas e recursos financeiros, aliados eamigos em vários países da África, América Latina e Ásia. Nosanos 1970, os soviéticos apoiavam ou subsidiavam a economia e asForças Armadas de Cuba, Etiópia, Angola, Egito, Vietnã e outrospaíses.

Em alguns poucos casos, os soviéticos intervieram direta-mente, com suas próprias tropas, para manter ou aumentar a áreasob o seu controle ou, ainda, para resolver problemas localizadosque poderiam desestabilizar a região inteira. Foi o que aconteceu naAlemanha oriental, em 1953, na Hungria, em 1956, na Tchecoslo-váquia em 1968, na Polônia, de forma indireta, em 1981 e, especial-mente, no Afeganistão, em 1979, iniciando uma longa e custosaguerra que só terminaria em 1988.

Essa expansão das superpotências pelo mundo não signifi-cou que, por exemplo, a Síria ou Moçambique (países alinhadoscom Moscou na maior parte da Guerra Fria) tenham sido incorpo-radas pelo Império soviético. As novas nações do Terceiro Mundonormalmente mantinham laços com uma ou outra superpotênciasem sujeição completa a esta, já que sempre podiam, se fosse deseu interesse, mudar de lado. Foi o que ocorreu, por exemplo, como Egito e a Somália nos anos 70. Na prática, os EUA podiam contarapenas com meia dúzia de aliados realmente fiéis (a Europa ociden-tal, o Japão, a Austrália, a Nova Zelândia, a Coreia do Sul e Israel),enquanto a URSS tinha sob controle absoluto apenas a Europa orien-tal, com a exceção da Iugoslávia e da Albânia.

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É importante notar também que, com o tempo, a divisãodo mundo em dois grandes blocos foi se tornando menos evidente.A Europa ocidental e o Japão recuperaram as suas economias ecomeçaram a contar mais no cenário internacional, enquanto a Chi-na, apesar de comunista, rompeu seus laços com Moscou, o quecriou uma nova realidade estratégica na Ásia.

Ainda assim, podemos sem dúvida afirmar que, em linhasgerais, o período de quase cinquenta anos entre o fim da SegundaGuerra Mundial e o fim da URSS foi caracterizado pela divisão domundo em dois grandes blocos e a intensa competição entre ambos.Também podemos afirmar que a URSS, num primeiro momento,viu-se reduzida ao território sob sua influência ao fim da SegundaGuerra Mundial e que os Estados Unidos tentaram, através da suapolítica de contenção, mantê-la nesses limites. Fica claro tambémcomo, grosso modo, a partir dos anos 60, a URSS foi capaz deromper esse cerco e ampliar a sua esfera de influência no mundo.Se isso trouxe algum benefício econômico ou social para a UniãoSoviética, é discutível, mas, para os antigos defensores da ideia deque cabia a Moscou gerir os destinos do mundo, parecia que o ca-minho estava correto.

A CORRIDA ARMAMENTISTA E O COMPLEXOINDUSTRIAL MILITAR SOVIÉTICO

Nesse contexto de intensa competição entre as duas super-potências, um elemento chave foi a corrida armamentista que, entrealtos e baixos, atravessou todo o período que se estende do final dadécada de 1940 até o colapso da URSS em 1991. Essa corrida foi,antes de tudo, uma corrida nuclear, de acúmulo de ogivas nuclearese vetores de lançamento.

Foi a corrida nuclear que marcou, realmente, a GuerraFria no campo dos armamentos. Os norte-americanos tiveram omonopólio da bomba atômica até 1949. Nesse ano, a União Sovié-tica explodiu seu primeiro engenho nuclear e, em 1953, sua pri-meira bomba de hidrogênio. Já em fins dos anos 40, os soviéticoscomeçaram a construir bombardeiros de longo alcance e, na dé-

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cada seguinte, mísseis balísticos de alcance médio e, depois, osintercontinentais. Mais tarde, desenvolveram também, sempre emparalelo com os norte-americanos, submarinos lançadores de mís-seis balísticos e armas nucleares táticas. A URSS estava, assim,plenamente integrada à lógica da Guerra Fria, acreditando que aúnica proteção contra um inimigo possuidor de armas nuclearesera dispor de um potencial nuclear equivalente, e, se possível,superior.

Não deixa de ser impressionante como um país empo-brecido e destruído pela guerra tenha conseguido, em apenasquatro anos, romper o monopólio nuclear estadunidense e come-çar a construção do seu próprio arsenal. O papel da espionagem eda cópia pura e simples não podem ser ignorados e a mídia, atéhoje, revela esquemas e escândalos envolvendo físicos, militarese outras personalidades que colaboraram, seja por motivos ideo-lógicos seja por outras razões, com Moscou e mantiveram os so-viéticos muito bem informados sobre o projeto Manhattan e osprogressos técnicos ocidentais no campo nuclear. Mas, sem umaestrutura técnica e científica adequada para analisar, reproduzir eprocessar estas informações, elas teriam sido de muito pouca uti-lidade.

Na verdade, como ressaltado por David Holloway (1997),o projeto da bomba atômica era um que o sistema stalinista era ca-paz de dar conta, pois envolvia a alocação maciça de recursos nadireção de um objetivo delimitado, sem medir gastos ou sacrifícios.Assim, boa parte do trabalho de mineração e construção necessáriopara as primeiras fábricas e usinas foi feita por trabalho forçado, aomesmo tempo em que as demandas da economia civil foram sacri-ficadas para fornecer a eletricidade ou as matérias-primas necessá-rias à produção nuclear. Recursos financeiros também não forampoupados e os cientistas soviéticos, apesar de vigiados pelo sistemarepressivo, trabalhavam com entusiasmo e convictos de que seupaís precisava de um arsenal nuclear para se manter o equilíbriocom os Estados Unidos.

De qualquer modo, o resultado de décadas de acúmulo dearmamento nuclear é que, em meados dos anos 1980, as duas su-perpotências dispunham da capacidade de destruírem todo o planetadezenas de vezes. Apenas a URSS dispunha de cerca de 1.400 mís-

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seis balísticos intercontinentais, alguns capazes de levar dez ogivas,uns mil mísseis com base em submarinos e algumas centenas debombardeiros capazes de carregar armas nucleares. Isso sem contardezenas de milhares de armas nucleares táticas (desde mísseis decurto alcance até projéteis de artilharia nucleares), para uso nocampo de batalha (CASTORIADIS, 1982, p. 81-90).

Calcula-se que, nos anos 1980, os soviéticos tinham maisde vinte mil ogivas nucleares, sendo superados apenas pelos norte--americanos, com suas vinte e seis mil. Em poder bruto de destrui-ção medido em megatons, o arsenal de Moscou era superior ao deWashington, sendo capaz de destruir qualquer nação do mundo 35vezes, frente a “apenas” 28 dos Estados Unidos. Estes dados sãoquestionáveis, pois interessava tanto a Moscou como ao Pentágonoexagerar, por interesses próprios, o poder nuclear soviético. Dequalquer modo, fica claro como a URSS havia se tornado uma po-tência nuclear de primeira grandeza.

Nesse contexto, o cenário estratégico se modificou pro-fundamente. Nem norte-americanos nem soviéticos podiam recuar,em caso de guerra, para seus núcleos na América do Norte ou nocentro da Eurásia e, como haviam feito antes, desfrutar da proteçãoestratégica oferecida pelo Oceano Pacífico e Atlântico ou pelasgrandes massas de terra da Rússia para se mobilizarem. Uma guerranuclear seria a destruição de ambos, o que tornou a corrida nuclearum claro contrassenso.

A corrida nuclear não significou, contudo, que as forçasconvencionais fossem eclipsadas. Tanto os Estados Unidos como aUnião Soviética entraram realmente numa corrida para acúmulo dearmas convencionais nesses anos. Apenas entre 1948 e 1970, asdespesas militares dos EUA foram multiplicadas por oito vezes,enquanto as soviéticas cresceram quase seis. Os norte-americanosse preocuparam em manter seu domínio aéreo e naval no mundo, aomesmo tempo em que procuravam maneiras de anular a imensasuperioridade numérica dos soviéticos em terra (KENNEDY, 1989,p. 367).

Moscou, num primeiro momento, teve como prioridadegarantir que suas forças de terra na Europa fossem esmagadora-mente superiores às do Ocidente. Isso foi obtido não apenas atravésda massa numérica, como também pela reorganização e reforma

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das Forças Armadas, especialmente depois da morte de Stalin em1953. O poder aéreo também recebeu maciços investimentos, aumen-tando a capacidade ofensiva dos soviéticos.

A partir dos anos 1960 e 70, a URSS procurou desenvol-ver também uma poderosa esquadra. Durante as guerras mundiais,e mesmo antes, a marinha russa havia realizado pouco e a maioriado seu pessoal havia lutado em terra. Nos anos 1950, ela não foiprioridade nos planos do Kremlin, o que só se alterou à medida quefoi ficando claro como a URSS ficaria em séria desvantagem notabuleiro de poder mundial se não tivesse uma marinha forte, capazde desafiar os Estados Unidos e o Ocidente. O resultado foi umaexpansão maciça da Marinha vermelha, com cruzadores, destroie-res, submarinos e mesmo porta-aviões (ainda que inferiores emcapacidade aos norte-americanos) sendo construídos em massa.Também foram estabelecidas bases navais fora da URSS, na Áfri-ca, Ásia e América Latina.

Por volta dos anos 1980, estava claro como ainda levariamuito tempo para o Kremlin poder desafiar o domínio ocidental nosoceanos, especialmente frente às forças tarefa de porta-aviões dosEstados Unidos. Suas bases navais ainda eram poucas e com limi-tações, sua capacidade de projetar poder além oceano era imensa-mente reduzida dada a falta de fuzileiros navais, navios de reabas-tecimento e porta-aviões nucleares. Mas sua imensa força de sub-marinos e seus bombardeiros de ataque, como os Tu-22 (Backfire),eram uma ameaça, em caso de guerra, às ligações marítimas daEuropa com a América e forças navais soviéticas eram agora vistasno Mediterrâneo, no Caribe e no Pacífico, assustando os norte--americanos e levando o poder de Moscou a locais onde os czaresnunca teriam sonhado.

De qualquer forma, por qualquer critério concebível, osnúmeros sobre a força militar soviética eram impressionantes. Em1984, segundo dados do Pentágono, a URSS tinha cinco milhões desoldados (somando os da ativa e os imediatamente mobilizáveis),cinquenta mil tanques, setenta mil blindados, cinquenta e quatromil peças de artilharia, duzentos e quarenta navios, trezentos sub-marinos de ataque, quatro mil helicópteros e, espalhados por diver-sas forças, cerca de oito mil aviões, além da mais densa rede dedefesa aérea do mundo.

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Novamente, tais dados são questionáveis, dado o interessedo complexo industrial militar norte-americano em exagerar a forçasoviética para exigir maiores orçamentos. No entanto, exageros àparte, fica claro como era uma força militar imensa, com ramifica-ções em todos os continentes, superior, ao menos em números, àamericana e que dava à URSS o status de superpotência.

Inútil ressaltar como o poder militar soviético também ti-nha fraquezas (como a crescente proporção de recrutas muçulma-nos oriundos da Ásia Central, menos educados e confiáveis do queos eslavos, ou uma doutrina militar rígida e pouco flexível) e queseu poder era sempre exagerado pelo Pentágono com vistas à ob-tenção de mais verbas. Era, porém, por qualquer critério de avalia-ção, uma força impressionante, cuja manutenção e ampliação suga-va uma quantidade tão grande de recursos do Estado (Cerca de 15--20% do PIB – ainda que as fontes e os cálculos variem enorme-mente, segundo os critérios utilizados – contra 5% do dos EUA)que não é difícil atribuir a esse dreno parte considerável de respon-sabilidade no processo de esclerose política e econômica que fez aURSS desaparecer em 1991.

Na verdade, seria um erro dizer que o armamentismo exa-gerado foi a única causa do colapso soviético. Durante os anos1950, por exemplo, os gastos militares foram superiores, em termosproporcionais, aos da década de 1980, mas isso não era problema,já que o poder militar ainda era pouco dependente da tecnologia e aeconomia crescia em ritmo acelerado, sendo capaz de manter a má-quina militar (SEGRILO, 2000).

Não obstante, se analisarmos o problema em linhas gerais,não resta dúvida que o esforço de manutenção militar foi prejudicialpara a União Soviética. Centenas de bilhões de dólares anuais, mi-lhares de fábricas e parte substancial da mão de obra especializadado país eram bombeados continuamente para o sistema militar eisso drenou a economia soviética, especialmente a partir do momentoem que ela perdeu dinamismo e eficiência, a um ponto tal que elacomeçou a implodir.

A potência rival da URSS, os Estados Unidos, tambémteve problemas para manter gastos militares crescentes e criou umcomplexo industrial militar que, ainda hoje, custa muito à socie-dade norte-americana. Os EUA sobreviveram, porém, ao embate e

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se tornaram a única superpotência do mundo. A URSS, contudo,desapareceu. Por que essa diferença de destinos? Um fator chavea considerar é a geopolítica, que ajuda a explicar a necessidadesoviética de ter forças militares sempre maiores e, com isso, o seudeclínio.

A situação geopolítica de URSS e EUA era, de fato, muitodiferente. Os EUA estavam isolados na América do Norte, comlivre acesso aos oceanos e dois países amigos e fracos nas frontei-ras (Canadá e México). Já a URSS herdou os problemas geopolíti-cos da antiga Rússia e estava isolada e bloqueada por seus inimi-gos. Suas quatro frotas navais (Ártico, Pacífico, Negro e Báltico)estavam impedidas de atingir o oceano aberto por países da OTANou por aliados dos EUA e, portanto, isoladas; suas fronteiras eramlongas e inseguras e, por todos os lados, os soviéticos viam pro-blemas e inimigos. Associando-se essa situação de cerco à memóriahistórica de invasões sem fim ao seu território (mongóis, franceses,alemães) e a ideia de que uma força militar poderosa era essencialpara deter os inimigos da revolução comunista, não surpreende averdadeira fobia russa/soviética por segurança e a maneira com aqual eles investiam sempre mais recursos do país na defesa.

A falta de aliados de peso também enfraqueceu a posiçãogeopolítica soviética. Desde o rompimento de Moscou com a Chinanos anos 1950, e a aproximação desta com os Estados Unidos, nosanos 70, os soviéticos tinham que enfrentar um poderoso rival como qual compartilhavam longas fronteiras. O Japão e a Europa Oci-dental também estavam do lado dos EUA, dividindo os custos nãoapenas econômicos, como também militares da corrida com o blococomunista.

Realmente, em 1985, os países europeus da aliança militarocidental, a OTAN, respondiam pela maior parte dos soldados, tan-ques e peças de artilharia destinados a enfrentar uma possível inva-são do Exército soviético, além de contribuírem substancialmenteem termos de aviões, navios e submarinos. Aos norte-americanos,cabia complementar o poder europeu, especialmente em termosaéreos e navais e, em caso de guerra, suplementá-lo.

Já os aliados de Moscou na Europa Oriental, que forma-vam o Pacto de Varsóvia, não apenas eram dependentes, em boamedida, dos recursos econômicos e naturais da URSS, como eram

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vistos com desconfiança pela liderança soviética. Tchecos, polone-ses ou romenos eram apenas um complemento aos Exércitos sovié-ticos estacionados na Europa e cabia às Forças Armadas soviéticasgarantir a superioridade do Pacto de Varsóvia frente à OTAN, oque exigia ainda mais delas. Apenas os alemães-orientais, prova-velmente, eram vistos como aliados confiáveis e eficientes.

Além disso, é impossível esquecer que, no final da Segun-da Guerra, os EUA montaram toda uma rede de organismos degestão global (ONU, FMI, Banco Mundial etc.) que espelhavam omodelo norte-americano. A URSS teve que agir politicamente,portanto, em um mundo onde as regras eram estadunidenses, o queinevitavelmente afetava a sua capacidade de atuação enquanto po-tência.

A URSS teve que enfrentar, assim, uma situação geopolí-tica desfavorável e uma corrida armamentista com um rival muitomais desenvolvido, o Ocidente. Enfrentar esses problemas exigiamais recursos para os militares e uma economia forte e avançada osuficiente para sustentar essa escalada. Infelizmente para Moscou,não era este o caso da União Soviética nas últimas décadas de suaexistência.

É notável, realmente, que uma estrutura econômica tãocheia de problemas, a serem vistos em detalhes a seguir, tenhasido capaz de sustentar um poder militar tão substancial como omencionado acima. Em boa medida, isso acontecia pelo fato dossoviéticos, como visto, privilegiarem a defesa nacional em detri-mento dos outros setores da sua sociedade. Mas também contou,com certeza, o fato de o sistema militar soviético ter aquilo quefaltava para que o resto do aparato produtivo da URSS pudessefuncionar com eficiência, ou seja, um competidor.

Realmente, as fábricas de aviões ou tanques, dirigidaspelos militares, tinham que se preocupar continuamente com oque o “outro lado” estava fazendo e isso era um estímulo contí-nuo para que elas aperfeiçoassem continuamente seus produtos eexigissem o mesmo das indústrias e usinas que os abasteciam.Natural, pois, que os únicos setores realmente eficientes da socie-dade soviética tenham sido justamente os submetidos à competi-ção externa, como as forças militares, o sistema aeroespacial e asequipes olímpicas.

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Assim, a sociedade soviética viu-se dividida entre umametade “civil” cheia de problemas e uma metade “militar” maiseficiente e capaz. Dizer que essas duas metades eram quase in-comunicáveis, como sugeria Castoriadis (1982, p. 108-110), seriaum erro, já que ambas estavam associadas e que alguns proble-mas (desperdício de matérias-primas e mão de obra, excesso deburocracia etc.) eram comuns a ambas. Mas o sistema militar, atépor questão de sobrevivência do Estado, recebia o melhor que opaís podia oferecer e funcionava com mais eficiência do que oresto.

A estrutura militar soviética nos anos pós-Segunda GuerraMundial continuou, de qualquer forma, a refletir a mentalidademilitar dos soviéticos e, na verdade, dos russos. Em primeiro lugar,a preocupação central dos militares era a proteção da Pátria-mãe, oque se refletia na manutenção de uma imensa massa de divisões aolongo das fronteiras com o Ocidente, China e países muçulmanos enuma rede de defesa aérea extremamente densa. Também tipica-mente soviético e/ou russo era a presença de uma imensa força pa-ramilitar para, junto com a polícia política, vigiar os próprios cida-dãos do país, além do pouco cuidado dedicado, com a exceção doperíodo mais recente, ao poder naval.

Abrindo um parêntese, é interessante observar como sepode aprender muito sobre a estrutura social e as pretensões inter-nacionais de um país através do estudo de suas Forças Armadas.Nos países do Terceiro Mundo, por exemplo, as Forças Armadassão prioritariamente destinadas a garantir a ordem social e o poderdo Estado, pelo que são basicamente forças de terra equipadas commaterial obsoleto, suficiente apenas para realizar atividades de po-lícia interna e, em alguns poucos casos, intervenções externas emnível regional. As forças aéreas e navais são pequenas e o controlecivil sobre os militares é geralmente baixo. Isso reflete o baixo ní-vel das pretensões internacionais e a ordem social injusta dessespaíses, que necessitam de repressão contínua para manter suas socie-dades funcionando.

Também o caso das superpotências na época da GuerraFria é bastante exemplar desse inter-relacionamento das caracte-rísticas de cada sociedade e de suas pretensões internacionais coma estrutura de suas Forças Armadas. Os Estados Unidos, por

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exemplo, confiavam a defesa do seu território a uma “Guarda Na-cional” grandemente centrada nos Estados e mantinham suas For-ças Armadas concentradas na tarefa de projeção de poder interna-cional. A superioridade da Marinha e da Força Aérea em relaçãoao Exército na distribuição de homens e recursos e a própria ma-nutenção de um Corpo de Fuzileiros Navais com centenas de mi-lhares de homens, forças aéreas e navais próprias e independênciaoperacional refletem essa centralidade da capacidade de projeçãode poder nas Forças Armadas estadunidenses no período da Guer-ra Fria e mesmo hoje.

Já a União Soviética dividia as suas Forças Armadas emcinco forças independentes: o Exército, a Marinha, a Força Aérea,a Força de Foguetes Estratégicos (tropa especial para cuidar dosmísseis balísticos nucleares), a Força de Defesa Aérea – encarre-gada do controle de milhares de aviões, radares e baterias de mís-seis antiaéreos com o objetivo exclusivo de proteger o territórionacional – e a Força de Guarda-Fronteiras. Havia também forças deparaquedistas e tropas especiais (os spetsnaz) numerosas, eficien-tes e consideradas politicamente confiáveis, mas relativamentepoucos fuzileiros navais. Por fim, havia uma imensa força de vi-gilância interna altamente militarizada, o que refletia as priorida-des estratégicas soviéticas e sua necessidade de controle de suaprópria sociedade.

Também a própria doutrina militar soviética, especial-mente as das forças terrestres, refletia essa relação do pensamentoestratégico com a história e a cultura locais. Ela enfatizava a pri-mazia da ofensiva como forma de conduzir a guerra, o que impli-cava em leveza e simplicidade da retaguarda e da logística, poderde fogo, velocidade, surpresa e tomada de iniciativa. Vítima devárias agressões de surpresa ao longo da história e com um terri-tório vasto e sem grandes obstáculos naturais, o que tornava im-possível a criação de defesas estáticas, não surpreende que aURSS tenha desenvolvido tal doutrina como forma de preveniroutras invasões e/ou derrotar os inimigos do país no seu próprioterritório.

Outro elemento claramente russo/soviético em termos mi-litares era a sua ênfase na quantidade como forma de superar aqualidade. Seria um erro dizer que o armamento produzido na

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URSS era, em termos tecnológicos, totalmente inferior ao do Oci-dente. Aviões como os das séries Mig e Sukhoi, por exemplo, riva-lizavam de perto com os mais modernos caças norte-americanos ecertos tanques e submarinos eram de primeira qualidade. O que sepode afirmar é que, em linhas gerais e excluindo-se as exceções depraxe, o armamento ocidental era mais sofisticado (incorporandoavanços da microeletrônica e da informática) e capaz de superar osoviético.

Para as Forças Armadas, contudo, essa discrepância nãoera realmente um problema. Sacrificando-se os refinamentos tec-nológicos, mas produzindo material funcional e eficiente, era pos-sível dar, aos seus soldados, instrumentos adequados de combatesem despender recursos excessivos. E essa economia de recursos esimplicidade de produção permitia a fabricação de material bélicoem ritmo muito mais acelerado, de forma a gerar o surplus quan-titativo que deveria eliminar quaisquer vantagens qualitativas dosocidentais. Assim, o que adiantaria se um tanque norte-americanoera superior a um soviético se o primeiro iria enfrentar, em bata-lha, não um, mas três ou quatro dos segundos? A massa numéricafaria a balança virar.

Nunca saberemos, na verdade, quem venceria esta bata-lha entre qualidade e quantidade, especialmente depois dos anos1980, quando os norte-americanos se lançaram numa verdadeirabatalha para eclipsar tecnologicamente os soviéticos. Para boaparte dos analistas militares, contudo, as probabilidades maioreseram de vitória soviética numa possível invasão da Europa, comos tanques com a estrela vermelha chegando a Bonn, Paris e tal-vez além.

Tal poder, contudo, só podia ser mantido enquanto hou-vesse homens disponíveis para atender às imensas necessidades dosmilitares e, especialmente, enquanto a economia soviética fossecapaz de sustentar a máquina militar e suas demandas sem fim.Com o tempo, isso se tornou impossível e a economia soviéticarevelou-se sem condições, a partir dos anos 70, de manter a escala-da e superar o desafio tecnológico estadunidense, além de se reve-lar claramente inferior ao Ocidente em quase todos os aspectos.Essa situação levou ao esforço de reformas e, indiretamente, ao fimda URSS.

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A DECADÊNCIA ECONÔMICA E ASREFORMAS DE GORBACHEV

No período 1960-1985, a agricultura continuou a ser,como sempre havia sido desde a fundação da URSS, a área maisdébil da economia soviética. Mesmo com grandes investimentosem capital e força de trabalho, a URSS sempre teve grandes difi-culdades para alimentar sua população, sendo obrigada a importartrigo, milho e outros gêneros. As razões para esse fracasso eram,essencialmente, a burocracia, o centralismo, a falta de responsabili-dade e iniciativa dos camponeses e outros fatores que geravam ine-ficiência e desperdício, além da contínua transferência dos recursosdo campo para outras áreas.

Com relação à indústria, a situação era de estagnação. De-pois de um período de expansão notável, dos anos 1940 aos 60 (nacasa dos 400%), a taxa de crescimento da produção industrial, e daeconomia como um todo, declinou continuamente. Além disso,apesar da economia soviética superar a norte-americana, por exem-plo, em aço, ferro, cimento e outros produtos, ela era incapaz deproduzir chips, computadores, robôs e outros produtos da era pós--industrial.

Assim, vista em seu conjunto, a economia soviética viven-ciou uma queda constante da sua taxa de crescimento, que se tornouinsuficiente para acompanhar o da Europa, Japão e Estados Unidos,o que provocou um declínio da parcela soviética na economia mun-dial. Essa, já nos anos 1970, dependia da exportação de petróleo egás para comprar, no mercado internacional, os artigos de consumoe maquinário de que necessitava. Lentamente, a URSS ia se tornan-do um produtor de energia para economias mais desenvolvidas etambém para seus aliados do Leste Europeu.

Assim, o mesmo sistema que havia conseguido industriali-zar o país nos anos 1930, vencer a guerra contra Hitler nos 1940 erestaurar a infraestrutura básica da nação nos 50, se revelou inca-paz, no período posterior, de se adaptar às demandas da economiamoderna e acabou por estagnar. A revolução tecnológica e gerencialda terceira Revolução Industrial, com seus princípios de especiali-zação flexível da cadeia produtiva e uso intensivo de tecnologia, se

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revelou incompatível com a estrutura vertical e autoritária da URSS(HOBSBAWM, 1997, p. 447-482; GORENDER, 1992).

Como indicam os trabalhos de Alec Nove (1963 e 1989),depois aprofundados por outros historiadores e economistas, comoÂngelo Segrillo (2000), Eric Hobsbawm (1997, p. 447-482), JacobGorender (1992), entre tantos outros, ela funcionava muito bem,realmente, quando se tratava de produzir bens de caráter e qualida-de prédeterminados pelo planejamento central, mas dispunha depoucos mecanismos para se adaptar a quaisquer preferências dosconsumidores e/ou absorver inovações e métodos novos de produ-ção. E, mesmo quando se conseguia produzir o necessário, o siste-ma de distribuição e os serviços, apesar de melhorarem muito entre1940 e 1970, continuavam ruins.

O sistema produtivo soviético sempre se baseou, de fato,no uso intensivo de energia (petróleo, eletricidade), matérias-pri-mas (carvão, ferro, cobre etc.) e mão de obra para produzir bens decapital. O planejamento era totalmente centralizado e conduzidopor uma imensa burocracia, enquanto o uso de tecnologia avançadanão só era considerado um desperdício como perigoso, na medidaem que o livre acesso à informação, base do desenvolvimento cien-tífico, podia diminuir o controle do Estado sobre a sociedade. Sehavia necessidade de aumentar a produção, utilizava-se mais ener-gia, mais matéria-prima e mais trabalhadores.

Ao menos no tocante à indústria pesada, esse método serevelou um grande sucesso, enquanto havia energia, matérias--primas e força de trabalho disponível. Quando esses elementospassaram a se tornar menos abundantes e a população soviéticacomeçou a demandar produtos de consumo melhores e em quanti-dade maior, o sistema se revelou ineficiente e as taxas de expansãoda economia como um todo inevitavelmente caíram.

Podemos, assim, resumir sem dificuldades os dilemas daURSS na década de 1980. Na época de Stalin e no imediato pós--guerra, eles utilizaram os imensos recursos do país para cons-truir uma imensa indústria pesada e toda uma infraestrutura eco-nômica. Utilizando tal infraestrutura, o regime soviético foi capazde levar a Rússia ao mundo industrial e moderno, além de permi-tir a manutenção de um poder militar de primeira grandeza e deum Império.

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Com o tempo, contudo, a disponibilidade de mão de obra,energia e matérias-primas declinou e a estrutura econômica e a bu-rocracia foram incapazes de assimilar tecnologia e técnicas de ge-renciamento modernas tanto para compensar essa queda como paraintroduzir a URSS no novo mundo da robótica, da biotecnologia eda informática. Para se ter uma ideia do atraso soviético, basta re-cordar como a produção de um automóvel na URSS consumia, de-vido à falta de tecnologia moderna, um volume de horas de traba-lho, matérias-primas e energia muito maior do que no Ocidente, ecom o produto final muito inferior em conforto e eficiência energé-tica. O número de computadores pessoais também era muito redu-zido em comparação ao mundo ocidental, o que indica o grau dedificuldade do sistema soviético para se adaptar ao mundo da Ter-ceira Revolução Industrial.

Além disso, com o afrouxamento da ditadura depois damorte de Stalin em 1953 e do XX Congresso do PCUS, em 1956, euma população mais educada e mais exigente, a concentração ab-soluta de recursos nos investimentos e nas Forças Armadas não eramais possível. Isso diminuía ainda mais as possibilidades de que ocrescimento extensivo da economia e do poder militar, pela simplesadição de mais fábricas, usinas, tanques e navios, continuasse noritmo anterior. Para completar o quadro, os soviéticos estavam sen-do eclipsados, em termos de tecnologia militar, pelos norte--americanos, o que abalava, potencialmente, a sua posição de su-perpotência.

As respostas possíveis dos dirigentes soviéticos eramaceitar a situação e a lenta decadência (como havia acontecido nogoverno Brejnev), restaurar o controle do Estado sobre a populaçãoque havia na época de Stalin e reprimir as suas demandas por qua-lidade de vida (o que liberaria novos recursos para manter a corridacom o Ocidente) ou procurar reformar o sistema por dentro. Essefoi um debate que marcou vários anos da história soviética, desdeos anos 1970, no mínimo, e que acabou com a vitória da terceiraalternativa a partir da ascensão ao poder de Mikhail Gorbachev, em1985.

Gorbachev não pretendia, com certeza, eliminar o comu-nismo da URSS. Sua pretensão inicial era introduzir certos meca-nismos na esclerosada sociedade russa que permitissem a ela conti-

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nuar na posição de superpotência e, ao mesmo tempo, dessem umnovo dinamismo a sua estrutura econômica e ao sistema político.

Assim, em termos políticos, lançou-se uma política (glas-nost – transparência) que pretendia aproximar o povo do Estado edar uma nova legitimidade ao Partido Comunista. A censura foiabrandada, estimulou-se a livre expressão das ideias e a um graumínimo de autonomia local. Ao mesmo tempo, na economia, dentroda perestroika (reestruturação) procurou-se descentralizar o plane-jamento, dar alguma margem para a flutuação dos preços e saláriose incentivar a iniciativa individual de camponeses e dirigentes defábricas. A ideia, com esses mecanismos, era manter o predomíniodo Partido Comunista na sociedade e Estado soviéticos e do Estadona economia, mas flexibilizá-los, de forma a permitir que a econo-mia crescesse, que tecnologia de ponta fosse incorporada ao siste-ma produtivo e que a população soviética se sentisse reconhecidano Estado.

O sistema militar também teria que se adaptar a nova era ese basear na qualidade e na tecnologia. Cortes foram feitos na má-quina militar e a ideia era que a URSS deveria ter Forças Armadasainda imensas, mas mais baseadas na tecnologia e menos na massabruta, e altamente custosa, de soldados e equipamentos.

Para tanto, era fundamental que os imensos recursos desti-nados aos militares fossem direcionados para a produção civil. Domesmo modo, uma diminuição das tensões com o Ocidente serianecessária, tanto para permitir o corte no orçamento da defesacomo para indicar ao mundo que uma nova era havia se iniciado nobloco oriental. Tudo isso foi feito, trazendo imensa popularidadepara Gorbachev no mundo nos anos 1980. Infelizmente para ele epara a URSS, a tentativa de reformar o sistema falhou, com o con-sequente colapso do Império.

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Capítulo 6

O O O O COLAPSO DE UM COLAPSO DE UM COLAPSO DE UM COLAPSO DE UM IIIIMPÉRIOMPÉRIOMPÉRIOMPÉRIO: : : : AAAA

RRRRÚSSIA NOS ANOS ÚSSIA NOS ANOS ÚSSIA NOS ANOS ÚSSIA NOS ANOS 90909090

O FRACASSO DA POLÍTICA DE REFORMAS EO FIM DA URSS

Apesar de todas as esperanças que Gorbachev levantou emtodo o mundo e, especialmente, na antiga URSS, suas reformas serevelaram um fracasso. Não é verdade que tal fracasso estivesse pre-visto desde o início, mas é possível admitir que as reformas enfrenta-ram entraves imensos e que a sua incapacidade de reformar o sistemasem destruí-lo pode ter sido lamentável, mas não inesperada paraqualquer um que conhecesse os meandros da sociedade soviética.

O primeiro elemento que explica o colapso das reformasfoi a pura e simples inércia da população. Depois de décadas acos-tumados com o sistema (que, apesar de tudo, fornecia um mínimo atodos e não exigia muito em termos de dedicação e empenho),muitos soviéticos não queriam realmente mudá-lo e viam com des-confiança qualquer movimento nesse sentido.

O segundo problema era que havia ideias muito divergen-tes sobre o que fazer exatamente ou como reformar a economiasoviética. No caso da reforma política, a agenda, apesar de não tersido aplicada na sua totalidade, era mais clara e simples, incluindoabolição da censura, criação de um Estado de direito etc. Mas re-formar uma economia dirigida sem transformá-la em capitalismoera algo nunca antes tentado e ninguém sabia muito bem como pro-

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ceder além do básico. Remendos iam sendo colocados na velhaestrutura e uns sobre os outros, mais prejudicando o funcionamentoda economia do que a revigorando.

Além disso, numa sociedade com a tradição autoritária daRússia/União Soviética, toda e qualquer tentativa de reformar asociedade só podia vir de cima, através do partido e do Estado, lide-rados pelo Kremlin. Mas, para boa parte da máquina do Estado e dopartido, quaisquer mudanças significariam perda de poder e privi-légios, pelo que eles tenderam a sabotar as tentativas de mudança.

Para reunir forças contra isto, Gorbachev confiava na mo-bilização do povo e do partido através da glasnost. O problema éque essa mobilização enfraquecia a única coisa que fazia a socieda-de e a economia soviéticas funcionarem, ou seja, justamente o po-der central. E, à medida que o poder começou a enfraquecer, toda amáquina da sociedade soviética foi parando, sem que nenhuma alter-nativa estivesse pronta para funcionar no seu lugar (HOBSBAWM,1997, p. 447-482).

Assim, a medida que a política da glasnost fazia as pessoasmais livres, mas, ao mesmo tempo, menos dispostas a obedecer aordens, as chances da reestruturação econômica, a perestroika, fun-cionar diminuíam, pois as ordens do comando central nesse sentidopassaram a ser ignoradas. Junto com o autoritarismo, a autoridadetambém ia desaparecendo e, sem ela, o velho sistema parou de fun-cionar sem que um novo estivesse em vias de nascimento.

Logo, a falta de legitimidade da autoridade central aca-bou por se espalhar por outras áreas da sociedade e administrado-res de fábricas e fazendas e dirigentes partidários locais começa-ram a aumentar cada vez mais a sua autonomia, enquanto os re-formistas em Moscou tentavam decidir o que fazer. Por fim, odesmonte da autoridade central trouxe de volta a tona o problemadas nacionalidades, que deixou o ambiente político ainda maistenso e diminuiu ainda mais as chances das reformas econômicasfuncionarem. Caos político, inércia e, depois, decadência econô-mica e reivindicações nacionalistas, assim, se autoalimentavam,levando a sociedade soviética ao esgotamento e à descrença deque o comunismo pudesse ser reformado.

A questão das nacionalidades se tornou, nesse contexto,um problema chave. Como visto, a URSS havia herdado os domí-

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nios do antigo Império czarista e sufocado as nacionalidades mino-ritárias no período de Stalin, mas, pós-1956, alguma autonomiacultural e possibilidades de autogoverno foram concedidas aos gru-pos minoritários, ao mesmo tempo em que se ampliou a política decooptação das elites locais para atuação na administração e no par-tido em nível local. Poucos não russos e, especialmente, não esla-vos, podiam ambicionar ascender para os altos escalões do governocentral e este desencorajava excessos nacionalistas, mas tal arranjo,associado à pronta repressão em caso de deslealdade, manteve oproblema nacional razoavelmente sob controle nas três décadasentre a morte de Stalin e a ascensão de Gorbachev (DEWISCHA,1994, especialmente p. 13-17).

No entanto, isso não significa que o problema nacionalfosse inexistente. Ao menos em termos jurídicos, havia autonomiaterritorial para as quinze repúblicas e as muitas regiões e áreas autô-nomas dentro delas e queixas pelo tratamento diferenciado para osnão russos eram frequentes na sociedade soviética. O potencial paraproblemas nacionalistas, assim, estava embutido no sistema e, paraalguns observadores do período, as chances do Império soviéticocair sob o peso da revolta dos povos dominados eram altas, assimcomo a revolta dos africanos ou asiáticos havia destruído o Impériobritânico ou o francês.

Mapa 8 – Etnias na URSS na década de 1980

Fonte: Channon e Hudson (1996), p. 130-131.

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Isso é até possível. No entanto, com a exceção dos paísesbálticos, ninguém pensava seriamente em separatismo antes de1988 ou 1989. Os movimentos nacionalistas nas mais variadas re-giões queriam mais autonomia de Moscou, mas apoiavam Gorba-chev contra a burocracia do partido e estariam satisfeitos com isso,sem pensar em deixar a URSS. A partir do momento em que a criseeconômica alimentou o descontentamento social e o caos político evice-versa, contudo, configurou-se uma situação de “salve-se quempuder” que alimentou a ideia de independência nas mais diversasrepúblicas. Mas esta ainda era minoritária no final da década de1980.

Ainda em 1989, o poder comunista deixou de existir naPolônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária e AlemanhaOriental, sem que sequer um tiro fosse disparado, com exceção docaso romeno. No ano seguinte, os dois Estados comunistas inde-pendentes da Europa oriental – Iugoslávia e Albânia – também dei-xaram de ser comunistas. O Império soviético no leste europeu, tãoduramente conquistado durante a Segunda Guerra Mundial, haviadesabado.

Em última instância, a única coisa que mantinha esses Es-tados associados a Moscou era simplesmente o medo de uma inter-venção militar nos moldes das que haviam ocorrido na AlemanhaOriental, Hungria, Tchecoslováquia e outros lugares. Quando Gor-bachev deixou claro que não moveria tropas para reprimir revoltasna Europa Oriental e as manifestações de rua explodiram, os regi-mes comunistas, que já há muito haviam perdido a sua legitimidadefrente à população, simplesmente aceitaram o inevitável e se dis-solveram.

No mesmo ano, a onda de reivindicações democráticas eliberais atingiu outros países comunistas, como a China. Observan-do o exemplo soviético, contudo, os chineses reprimiram dura-mente uma manifestação de estudantes na Praça Tiennamen. Ocusto em vidas foi enorme e a opinião pública mundial ficou horro-rizada, mas manteve-se a estabilidade e a autoridade do partido e doEstado sobre a população, permitindo à China continuar a sua polí-tica de liberalização econômica.

O caso da China realmente é notável, pois representauma quase inversão do acontecido na URSS. Aqui, como visto, a

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combinação de abertura política e econômica esvaziou o poder doEstado e a sua capacidade para gerir as reformas, o que levou àaceleração da crise. Na China, desde 1979, a abertura econômicaao capitalismo ocorre concomitantemente à concentração do po-der político nas mãos do Partido Comunista. Isso permite o apro-fundamento das reformas e a geração de riqueza e prosperidadesuficientes para reforçar ainda mais a legitimidade do Estado e dopartido como condutores da sociedade. Já em 1979-1990, era essaa política seguida pelo Partido Comunista chinês, que os aconte-cimentos da Praça da Paz Celestial apenas reforçaram. A lição daURSS foi aprendida pelos outros Estados comunistas (ou comu-nistas ao menos no nome) que ainda existem no mundo.

De qualquer forma, por volta de 1990, já era evidenteque as reformas de Gorbachev estavam definitivamente falidas. Aeconomia, que ele havia tentado reformar, estava praticamenteem colapso e a instabilidade política era crescente. Por fim, acapacidade soviética para agir como superpotência estava reduzi-da a quase zero, com Moscou tendo que aceitar a perda da suaárea de controle exclusivo no leste europeu, a unificação alemã ea intervenção norte-americana no Oriente Médio sem poder semanifestar.

O problema das nacionalidades também continuava a seagravar à medida que o sistema político e a estrutura econômica sedesagregavam. Desde os princípios da URSS, e, especialmente,depois do fim do stalinismo, as grandes forças – o Partido, a políciasecreta (KGB), os Ministérios unificados e as Forças Armadas –que mantinham o país unido eram contrabalançadas por líderespartidários e dirigentes de empresas locais. Nos últimos tempos dogoverno Gorbachev, contudo, essas forças que garantiam a uniãopraticamente se dissolveram, restando apenas os poderes locaispara garantir a sobrevivência e a ordem.

A situação chegou a tal ponto que praticamente todas asregiões e repúblicas do país tiveram que começar a cuidar de simesmas para tentar sobreviver ao caos. Repúblicas onde os senti-mentos nacionalistas sempre haviam sido fortes – como nos paísesbálticos e a Geórgia – encabeçavam a lista dos candidatos à inde-pendência, mas logo até Ucrânia, Uzbequistão e outras repúblicasonde a tradição secessionista era relativamente pequena começaram

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a proclamar seus desejos de independência. Ao mesmo tempo, Bó-ris Yeltsin, Presidente da República Socialista Federativa SoviéticaRussa (RSFSR), começou a investir no nacionalismo russo comoforma de ampliar seu poder, o que enfraqueceu ainda mais o gover-no central e foi desastroso para a URSS.

Ainda havia, contudo, alguma chance de manter a unidade.Os três países bálticos provavelmente se destacariam da URSS,mas, ainda em março de 1991, 76% dos eleitores soviéticos vota-ram pela manutenção da União e Gorbachev conseguia articular umacordo nesse sentido com a maioria das repúblicas, que previa acriação de uma verdadeira federação das repúblicas soviéticas, maspreservaria a unidade.

Para os conservadores, contudo, não só esse acordo erainaceitável como parecia que a única coisa que poderia impedir ocolapso do país era o retorno à situação pré-1985. Eles tentaramtomar o poder em agosto de 1991, mas a resistência de parte dapopulação e dos partidários de Bóris Yeltsin os forçaram a recuar.Na confusão que se seguiu, Yeltsin aproveitou para apropriar-se,em nome da Rússia, dos bens e direitos da URSS, além dos poderesde Gorbachev.

A Rússia agora surgia, ou ressurgia, dentro do antigo espa-ço soviético e a mobilização do nacionalismo russo por Yeltsincomeçou a assustar as outras repúblicas. Afinal, antes, a Rússiaapesar de ser, de longe, a maior das repúblicas soviéticas estavasubordinada ao poder central como todas as outras. Agora, a novaRússia de Yeltsin insinuava a necessidade de rever as fronteirasentre as antigas partes da URSS, assim como as relações econômi-cas e militares entre elas. Isso deu ainda mais força às pressões porindependência que, agora, circulavam por toda a URSS. Entreagosto e setembro de 1991, quase todas as ex-repúblicas, inclusiveas eslavas, como a Ucrânia e a Bielo-Rússia, proclamaram a inde-pendência.

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Mapa 9 – Os Estados sucessores da URSS

Fonte: Channon e Hudson (1996), p. 132-133.

Tentou-se manter uma aparência de união através da cria-ção da “Comunidade dos Estados Independentes” (CEI), mas eraalgo apenas teórico e sem valor. Como um símbolo disto, os JogosOlímpicos de 1992 foram os últimos em que participou uma equi-pe unida da ex-URSS. Para todos os efeitos práticos, a FederaçãoRussa se tornava a sucessora da União Soviética. Simbolizandoisto, Gorbachev renunciou formalmente ao cargo de presidente daURSS, em 25.12.1991 e, na mesma noite, a bandeira da Rússiasubstituiu a vermelha com a foice e o martelo no Kremlin. Umaera havia terminado.

PERDAS TERRITORIAIS E DECADÊNCIA IMPERIAL

A magnitude das perdas geopolíticas russas com o fim daUnião Soviética é simplesmente inacreditável. A Rússia teve umaqueda de prestígio, poder e território tão acentuada que só poderiaser explicada por uma derrota total em uma grande guerra, com odetalhe que esta não ocorreu.

Primeiramente, Moscou perdeu, mesmo tendo herdadoboa parte dos símbolos de poder da antiga URSS (como a cadeira

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no Conselho de Segurança da ONU, a rede de Embaixadas etc.),parte substancial do seu prestígio e status internacionais. Naguerra do Golfo, em 1990-1991, e na invasão do Iraque, em 2003,a Rússia foi praticamente uma expectadora. Ela também foi obri-gada a aceitar o rompimento norte-americano do tratado antimís-seis balísticos em 2001 e testemunhar o ataque da OTAN a umavelha aliada, a Sérvia, em 1999. Enfim, humilhações sem fimpara um povo e um Estado que, poucos anos antes, eram temidose respeitados.

Depois, as antigas áreas de influência soviéticas na Améri-ca Latina, África ou Oriente Médio foram simplesmente perdidas.Afinal, o que mantinha países como Cuba, Vietnã ou Síria associa-dos a URSS era a imensa ajuda financeira e militar, além do apoiodiplomático e estratégico, que Moscou transferia a eles. Como anova Rússia não tinha condições de continuar essa política, essasáreas de influência foram perdidas.

Também os antigos países da Europa Oriental que eramaliados da URSS e formavam uma rede de proteção ao próprio ter-ritório soviético deixaram de obedecer às ordens de Moscou e setornaram Estados soberanos. Para complicar ainda mais a situação,não apenas a Alemanha se reunificou, como todos esses ex-aliadossoviéticos caíram na esfera de influência do Ocidente, incorpo-rando-se, ou procurando incorporar-se, à OTAN e à União Euro-peia. O antigo Império na Europa oriental foi, assim, definitiva-mente perdido.

Depois, como visto, o próprio território soviético foi reta-lhado. Não apenas as velhas conquistas do Império czarista no sé-culo XIX (como o Cáucaso e a Ásia Central) foram perdidas, comoaté mesmo a Ucrânia e a Bielo-Rússia, nações eslavas associadas aMoscou havia centenas de anos, adquiriram independência. Essadesintegração territorial (e a posterior migração, muitas vezes for-çada, de muitos russos de outras repúblicas para a Federação daRússia) humilhou profundamente os russos.

Essas últimas perdas, e, especialmente, a da Ucrânia foramas mais graves. Não apenas áreas industriais e agrícolas imensa-mente ricas foram perdidas, como, sem os mais de cinquenta mi-lhões de ucranianos a seu lado, a Rússia era privada de uma partesubstancial da sua força demográfica.

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Em 1992, as fronteiras russas haviam regredido de formarealmente substancial. No Cáucaso, elas estão hoje mais ou menosonde estavam no início do século XIX, enquanto, na Ásia Central,voltou-se a meados daquele século. Na fronteira europeia, a perdafoi ainda mais dramática, com a Rússia retornando às fronteiras daépoca de Ivã, o Terrível, no século XVI. Quatrocentos anos de ex-pansionismo russo foram suprimidos da História.

Efetivamente, com a independência das repúblicas soviéti-cas, o território sob controle direto de Moscou caiu de 22,4 para 17milhões de km², ou seja, quase um quarto. As perdas populacionaisforam ainda maiores, na faixa de cinquenta por cento, ou seja, de290 milhões para meros 150 milhões. A Rússia perdeu 24% do seuterritório, metade da sua população e parte substancial dos seusrecursos econômicos e militares.

Uma comparação com o antigo Império czarista deixa ain-da mais a mostra a situação desastrosa da nova Rússia, em termosgeopolíticos. Conforme os dados levantados por André Gerrits(2006, p. 175), o Império czarista controlava, em 17% da área,9,8% da população e 9,4% do PIB do planeta, enquanto a Rússia,em 1999, estava reduzida a apenas 13% da área, 2,5% da populaçãoe 1,6% do PIB mundial.

Para piorar, com a independência das antigas repúblicas,boa parte da rede de proteção que protegia o núcleo russo do Im-pério se dissolveu. A Rússia se viu, e vê, assim, com suas frontei-ras expostas, enfrentando uma OTAN em processo de expansãono Ocidente, um ressurgir do mundo muçulmano no front sul euma China em crescimento no Oriente. A sensação de “cerco” e osentimento de perigo que isso traz, como indica Spitzcovsky(2005), é inevitável.

Realmente, a destruição da URSS provocou, em termosgeopolíticos, a reversão de séculos de crescimento territorial russo e,como demonstra o caso da Chechênia e de outras regiões autônomasda Federação Russa, a serem vistos em detalhes no capítulo seguinte,esse processo de contração talvez ainda não tenha chegado ao seufinal. O mundo, que havia se acostumado a ver uma única entidadepolítica dominar o imenso espaço entre a Polônia e o Japão e entre ooceano Ártico e as fronteiras da Índia, testemunhou o surgimento deuma vasta zona de instabilidade, conflitos e problemas.

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DECLÍNIO ECONÔMICO

Em termos econômicos, o colapso vivenciado pela Rússiaapós o final da URSS é de uma escala sem precedentes nos tem-pos modernos. Com o fim do planejamento centralizado e a inca-pacidade, como visto, da perestroika em estruturar um sistemaeconômico alternativo, o PIB coletivo das repúblicas soviéticasencolheu, segundo os dados dos organismos internacionais, 2%em 1990 e 17% em 1991. Já o PIB russo diminuiu 20% em 1992 eoutro tanto em 1993. Outras ex-repúblicas soviéticas tiveram re-duções ainda maiores.

Com o passar do tempo, houve alguma melhora da situa-ção econômica, mas não expressiva. Em 1994, 1995 e 1996, o PIBrusso diminuiu “apenas”, respectivamente, 12, 4 e 3% e houve atéum pequeno crescimento, de 0,3% do PIB, em 1997. Surgiram gru-pos de pequenos empreendedores e uma classe média. Mas, já em1998, com a crise do rublo motivada, em essência, pelos problemasfiscais russos, a crise retornou.

Com esses índices, a economia russa reduziu-se pelametade no decorrer dos anos 90. Em 1999, ela tinha se reduzido a1/10 da economia estadunidense e 1/5 da chinesa. No mesmo ano,sua renda per capita era cerca de cinco vezes menor do que a mé-dia dos sete países mais industrializados do mundo. Se, nos anos1980, a economia soviética ainda era, apesar de decadente, a se-gunda do mundo, em 1994 ela já estava praticamente no patamarda brasileira.

Para explicar essa situação, temos que recordar como todoo sistema soviético era baseado não apenas, como visto, no plane-jamento centralizado, como numa divisão geográfica da produção.Assim, a Alemanha Oriental fornecia equipamentos óticos e deprecisão, a Rússia abastecia a todos de petróleo e gás etc. Quandoas partes desse sistema perderam a capacidade de se comunicar,devido ao fim do comando centralizado e as independências dosvários países, o colapso era inevitável.

Além disso, contou, especialmente no caso da Rússia, ailusão da transição rápida e indolor ao capitalismo. Realmente, ofim do comunismo fez com que as lideranças dos países herdeiros

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da URSS e, especialmente, a Rússia de Bóris Yeltsin, esquecessemquaisquer pretensões a reformar o antigo sistema e/ou buscar novasalternativas. O capitalismo (ou a “economia de mercado”) parecia aúnica saída e vendeu-se a ideia de que uma economia moderna ejusta estava ao alcance, bastando adotar algumas políticas “corre-tas”, como privatização acelerada das propriedades do Estado, des-regulamentação dos mercados e dos preços etc. Feito isso, as difi-culdades desapareceriam e os ex-soviéticos poderiam fazer parte domundo desenvolvido.

No caso russo, isso se corporificou na “terapia de choque”,implantada entre 1992 e 1993. Foi um modelo ultraliberal que dei-xou os preços flutuarem livremente, iniciou um processo radical deprivatizações, abriu o mercado de trabalho e soltou todas as amar-ras para que as “forças de mercado” pudessem agir, na esperançaque elas, sozinhas, pudessem destruir o antigo sistema e formaroutro.

O problema é que a Rússia nunca foi realmente capitalistaem sua história. Na época dos czares, como visto, ela era um Esta-do quase feudal com ilhas de industrialização estimuladas pelo Es-tado. Na época soviética, industrializou-se o país, mas pela mãoautoritária do Estado. Assim, não havia, ali, uma tradição culturalcapitalista e as “forças do mercado” existentes na Rússia eram pe-quenas, para dizer o mínimo.

Depois, sem a presença do Estado para regulamentar eorganizar a privatização, ela logo se converteu em selvageria.Rapidamente, a maior parte das empresas estatais privatizadasforam fechadas e aquelas realmente rentáveis, ou seja, as ligadasà produção e exportação de petróleo e minérios, foram apropria-das por aqueles que tinham os contatos necessários para tanto nacúpula do governo, como os membros da velha burocracia, oupelas máfias. Formou-se uma pequena elite, conhecida como os“oligarcas”, incrivelmente ricos e que adoravam, e adoram, es-banjar dinheiro em Paris ou Nova York enquanto muitos russosmorriam de fome.

Na realidade, já na época da URSS havia redes informais,muitas vezes ligadas ao mercado negro, de abastecimento e servi-ços. Quando a perestroika abriu mais o sistema, esses arranjos in-formais para agilizar o sistema (e a corrupção) se espalharam, ca-

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minhando para a formação de máfias, no sentido criminoso do ter-mo, propriamente ditas. Na Rússia dos anos 1990, tráfico de dro-gas, armas e mulheres, pagamento de propinas e proteção e outrasatividades ilegais se tornaram comuns, enquanto parte substancialdo sistema financeiro estava sob controle das máfias.

Num outro resultado prático dessa política econômica, asfilas, típicas da realidade soviética, desapareceram e melhorousubstancialmente a oferta de produtos aos consumidores russos.Mas os preços cresceram muito mais do que os salários, gerandouma queda acentuada do padrão de vida da população. Em 1992,um pão podia custar 2% do salário mínimo.

Também o desemprego, desconhecido na ex-URSS, ex-plodiu. Ainda em 1992, pela primeira vez desde 1945, o número demortos superou o de nascimentos na Rússia, o que indica a gravi-dade da crise social. Entre 1994 e 2000, houve alguma pequenamelhora nas condições sociais, mas a população russa, com a exce-ção de uma minoria que se beneficiou com a transição, formandouma nova classe alta e média, ainda convivia com níveis de pobrezae desigualdade social inéditos há muitas décadas.

Nesse contexto, o Estado perdeu o controle dos aconteci-mentos. Ministérios, agências, governos regionais e prefeituras co-meçaram a agir por conta própria, se articulando com empresasprivadas, oligarcas ou máfias locais. O próprio governo Yeltsin serevelou, apesar do autoritarismo frente à oposição, débil, corrupto efortemente dependente, especialmente depois da reeleição em 1996,do apoio dos oligarcas. Uma verdadeira privatização do próprioEstado, que acentuou o caráter de “salve-se quem puder” do novocapitalismo russo.

Além disso, como seria de se esperar nessa situação decolapso econômico, a capacidade financeira do Estado desabou.Para piorar, com o Estado, e Bóris Yeltsin, sob influência dosoligarcas, cobrar impostos se tornou impossível. Em 1998, osimpostos representavam apenas 8% do PIB russo, o que fez comque a infraestrutura de produção, ciência e tecnologia, cultural eeducacional do país se desintegrasse. Também as verbas para osmilitares foram cortadas na carne, o que abalou ainda mais, aolado da decadência econômica pura e simples, a posição interna-cional da Rússia.

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COLAPSO MILITAR

Com o fim da União Soviética, as Forças Armadas – que jávinham sendo contidas em sua voracidade de recursos desde a ascen-são de Mikhail Gorbachev no Kremlin em 1985 – se desagregaram.Uma parte razoável dos seus estoques de armas acabou por ser des-truída e/ou desviada. Assim, conflitos e tensões dentro do antigoImpério foram alimentados por armas e equipamentos desviados dosquartéis do antigo Exército comunista, enquanto Rússia, Ucrânia eoutros Estados sucessores da URSS invadiram o mercado mundial dearmamentos em busca de divisas. Nunca foi tão fácil adquirir fuzisKalashnikov, tanques T72 ou caças Mig quanto nos anos 1990.

De qualquer modo, após várias disputas entre os Estadossucessores da URSS pelo espólio militar soviético, como a que divi-diu a Ucrânia e a Rússia pela posse dos navios da frota do mar Ne-gro, a maior parte dos ex-Estados soviéticos se desfez de quase todasas armas que haviam herdado, vendendo-as no mercado internacio-nal ou transferindo-as para a Rússia, que ficou com quase toda a Ma-rinha de guerra e a maior parte das forças aérea e terrestres.

Hoje, os Exércitos cazaque ou uzbeque são forças emi-nentemente policiais, sem grande poder ofensivo. Sob pressão in-ternacional, Cazaquistão, Bielo-Rússia e Ucrânia também abrirammão das armas nucleares instaladas em seus territórios, as quaisforam removidas para a Rússia. O grosso da herança militar sovié-tica, assim, foi herdada pela Rússia. Mesmo assim, a situação mili-tar russa estava muito longe de ser satisfatória.

Antes de qualquer coisa, a simples dissolução do espaço so-viético representou um imenso problema para os militares russos.Muitas unidades industriais, bases aéreas e navais, depósitos e linhasde suprimento, sem contar minas de urânio, centrais nucleares e redesde radares e defesa aérea estavam agora no exterior, enquanto a perdade uma centena de milhões de habitantes significava que o número deconscritos em potencial diminuiu fortemente. Os jovens ucranianosou uzbeques iriam agora servir nos seus novos Exércitos e não maisnas forças unificadas da Rússia, como havia sido há séculos.

O fim da URSS também apresentou outros problemas paraos militares. As fronteiras do sul, do oeste e do leste estão agora ex-

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postas à influência geopolítica e a possíveis, ainda que pouco prová-veis, invasões por parte do Ocidente, da China e do mundo islâmico.O acesso da Marinha russa aos mares, já complicado na era czaristaou na época da URSS, foi ainda mais restringido pela perda de boaparte da costa dos mares Báltico, Negro e Cáspio, com portos chavecomo Tallinn, Riga ou Odessa sendo agora estrangeiros.

Depois, com o colapso das finanças do Estado russo e daprópria economia russa, as Forças Armadas passaram a enfrentarrestrições nunca antes vistas. Em meados dos anos 1990, o orça-mento militar russo era de aproximadamente US$ 20 bilhões eequivalia a cerca de 3-4% do PIB. Se lembrarmos que o orçamentomilitar oficial da URSS em 1988 equivalia a cerca de 33 bilhões dedólares, poderíamos imaginar que a disponibilidade de recursos nãotinha declinado tanto.

No entanto, isso não corresponde à realidade. Na antigaURSS, os valores gastos na estrutura militar estavam embutidosnum sem número de rubricas do orçamento e muitas despesas nemsequer eram contabilizadas. Alguns cálculos (CASTORIADIS, 1982,p. 160-178) indicam que os gastos reais podiam atingir até dez ve-zes aquele número em 1988. Assim, a diminuição do orçamentomilitar real foi imensa.

Em termos comparativos, a situação fica ainda mais dra-mática. Nos anos 90, o orçamento militar russo equivalia a apenas1/12 do norte-americano. Estavam longe os dias em que a URSSgastava 15-20% do PIB (e um PIB substancialmente maior) no seusistema militar, os orçamentos militares de Washington e Moscouse equivaliam e quase 10% da força de trabalho do país estava en-volvida na produção militar.

Esses recursos eram, de qualquer forma, completamenteinsuficientes para manter em funcionamento mesmo uma pequenaparte da herança militar recebida pela Rússia. A prioridade na dis-tribuição dos escassos recursos passou a ser o pagamento de pessoal,enquanto as somas destinadas a treinamento, equipamento e pes-quisa caíram significativamente. Também se decidiu priorizar aForça de Foguetes Estratégicos, o coração do poder nuclear russo,e, em menor escala, o sistema de defesa aérea. Escolhas lógicas,pois preservavam a base do poder internacional da nova Rússia eseu espaço aéreo.

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Ainda seguindo este raciocínio de preservar os elementoscentrais do poder internacional da Rússia, a força de bombardeirosestratégica russa foi menos afetada pelos cortes dos anos 90, enquantoas unidades de transporte aéreo ou de caça sofreram mais cortes. Já aMarinha e, especialmente, o Exército ficaram quase a míngua.

Assim, para conseguir fazer frente a esta nova situação, oscortes dentro das Forças Armadas foram impressionantes. Segundo oscálculos de Stephen Meyer (1995, p. 324), o efetivo das Forças Arma-das caiu de 5 milhões em 1985 para cerca de 2,5 milhões em 1994,enquanto, no mesmo período, o número de tanques caiu de cinquentapara dezenove mil e o de peças de artilharia de cinquenta e quatropara dezoito mil. Os quase setecentos mil homens instalados naEuropa Oriental, nos países bálticos e na Ucrânia foram trazidos devolta à Rússia e a produção de novos tanques e aviões caiu pratica-mente a zero. Sem receber do Estado, boa parte da indústria bélicafaliu ou teve que recorrer ao mercado externo para sobreviver.

Na Marinha, praticamente não houve novas construçõesnavais entre 1991 e 1995 e o número de navios e submarinos dis-poníveis para uso caiu, segundo a imprensa internacional, de cercade seiscentos em 1985 para noventa e cinco em 2000, dos quais boaparte não tinha condições de deixar os portos. Bases navais, subma-rinos e navios enferrujando formavam o cenário mais comum nascidades portuárias russas na década de 90. A Marinha russa voltoua ser uma força essencialmente defensiva, sem pretender mais dis-putar com a Marinha norte-americana o domínio dos mares.

Também o arsenal nuclear russo, mesmo sendo prioritáriona estrutura de defesa nacional e, ainda, o segundo mais poderoso domundo, sofreu imensos cortes. O arsenal norte-americano tambémfoi extremamente reduzido, mas proporcionalmente menos do que orusso. Washington, além disso, continuou a investir no seu sistemade comando e controle e na atualização tecnológica das suas armasnucleares, o que não foi o caso dos russos. Muitas pessoas temiam,inclusive, que o sistema nuclear russo se desagregasse, com a conse-quente venda ou desvio de ogivas nucleares para países do TerceiroMundo ou para terroristas, o que, até agora, não aconteceu.

Mesmo com esses cortes, as Forças Armadas russas nãotinham os recursos para funcionar efetivamente. Alimentar, equi-par, treinar e abrigar tantos soldados se revelou tarefa impossível

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para o novo Estado. Para piorar, a conscrição obrigatória parou defornecer os soldados necessários para o funcionamento das váriasArmas. Não apenas porque, graças à queda da natalidade na Rússia,os homens jovens estavam se tornando raros, como porque a maio-ria dos disponíveis passou a usar de todos os meios para fugir doalistamento. Novamente, essa situação afetou mais a Marinha e oExército e um pouco menos a Força Aérea e as forças estratégicas.

A diminuição quantitativa das Forças Armadas não seriaum problema se tivesse sido acompanhada por melhoria no equi-pamento e nos padrões de treinamento e manutenção. Mas a quali-dade desabou juntamente com a quantidade e, em meados dos anos1990, inúmeros tanques, veículos blindados e canhões simples-mente enferrujavam em velhos quartéis, sem poderem ser utilizadospor falta de manutenção e peças de reposição.

O treinamento geral das tropas também teve seus padrõesradicalmente diminuídos. Os pilotos da Força Aérea soviética trei-navam cerca de 150 horas por ano, frente a 200 dos pilotos ociden-tais. Em 1995, os pilotos russos treinavam apenas vinte horas porano, e o seu número ainda caía. Manobras e exercícios em nível deregimento ou divisão quase desapareceram. Os acidentes com ossubmarinos Kursk, no mar de Barents em 2000 (TRUSCOTT, 2003)e AS-28, no Pacífico em 2005, são indícios indicativos da quedados padrões de manutenção e treinamento dos marinheiros russos.

A prova final da decadência militar do antigo Impériorusso/soviético foi a Chechênia. Em 1994, soldados jovens, compouco treinamento ou preparo, foram lançados contra os guerrilhei-ros chechenos. Unidades se recusavam a combater e só a massa deartilharia e tanques permitiu aos russos conquistar a província, in-cluindo sua capital, Grozny.

Em 1999, apesar de atuarem com mais eficiência, os mili-tares russos novamente tiveram que recorrer à política da terra arra-sada e à extrema brutalidade para subjugar os rebeldes. Uma re-volta que, nos tempos da URSS e da KGB, os militares soviéticosteriam conseguido eliminar com muito mais eficiência se revelouuma tarefa quase sobre-humana para seus sucessores. Dizer issonão significa superestimar a força e as capacidades do antigo siste-ma de segurança soviético, mas indica o grau de decadência dosistema militar russo na década de 90.

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Capítulo 7

A RA RA RA RÚSSIA DE ÚSSIA DE ÚSSIA DE ÚSSIA DE PPPPUTIN E ALÉMUTIN E ALÉMUTIN E ALÉMUTIN E ALÉM

POLÍTICA: A VOLTA DO AUTORITARISMO

Em fins de 1999, Bóris Yeltsin renunciou à presidência daRússia, assumida interinamente por Vladimir Putin, um ex-coronelda KGB e então primeiro-ministro, depois confirmado no cargo poreleições em 2000 e 2004. A renúncia de Yeltsin representou o últimoato de alguém que, tendo surgido no cenário político russo como umaparente paladino das reformas democráticas, se revelou, como vistono capítulo anterior, bem pouco democrata. Ele governou comenormes poderes (ainda que legais, já que concedidos pela Constitui-ção russa de 1993), tolerou muito mal a oposição, fez, no mínimo,vistas grossas à corrupção generalizada e às máfias e se aliou com os“oligarcas” que dominaram a economia e a sociedade russas desde ofim do comunismo para se manter no poder a qualquer custo.

Seu substituto, Putin, foi, no início do seu mandato, umagrande incógnita. Inicialmente, ele foi apresentado como duro, in-flexível, mas democrata, pronto a dar um golpe de morte na corrup-ção e na desordem que imperavam na Rússia. Alguns analistas oconsideravam uma simples continuidade da era Yeltsin. Já outros oviam como um líder autoritário, pronto a restaurar um regime deforça (ainda que não certamente comunista) na Rússia, nos moldesda União Soviética que ele havia servido.

Essa incógnita, num certo sentido, ainda continua. Putinquer fortalecer o Estado e consolidar o sistema democrático russoou suas ações objetivam apenas o primeiro objetivo, com o segundo

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sendo simplesmente uma cobertura? Ao passar por cima das leis einvadir jornais da oposição ligados aos “oligarcas”, por exemplo,ele está apenas combatendo os inimigos da democracia ou agindode forma autoritária, na melhor das tradições russas?

As informações disponíveis indicam que a segunda opçãoparece a mais correta. O governo de Putin tem trabalhado com afin-co para controlar a mídia e a oposição e submeter o Judiciário russoao seu controle. As eleições de 2007, quando seu partido conseguiu64% dos votos, mas sob uma torrente de denúncias de fraude, tam-bém indicam seu pequeno apreço pela democracia, a não ser noaspecto formal. O mesmo pode ser dito da fácil eleição de DmitriMedvedev, apoiado por Putin, em 2008. A eleição de Medvedev, ede Putin para primeiro-ministro, aliás, também nos permite afirmarque a “era Putin”, com mais ou menos mudanças, continua na Rús-sia e vai prosseguir ainda por alguns anos.

Em resumo, sua defesa da “lei e da ordem” parece signifi-car essencialmente ordem, com ou sem lei. Além disso, os rumoresde que ele está combatendo os “oligarcas” apenas para criar umanova geração deles, sob seu controle, reforça a impressão de quemuita coisa não mudou na Rússia dos anos 1990 para cá.

Além disso, essa busca pela ordem parece não implicar nocombate à grande praga que, desde o fim da URSS, está corroendoo Estado russo por dentro, ou seja, a corrupção. Esta não era desco-nhecida nas décadas finais da União Soviética, mas se desenvolveua tal ponto que começa a fazer a própria legitimidade do Estado serquestionada, além de abalar profundamente a sua eficiência. Dadosde ONGs internacionais de 2005 diziam que o total gasto com cor-rupção e suborno na Rússia equivalia a duas vezes e meia a arreca-dação do Estado. Segundo estas mesmas fontes, os cidadãos russospagavam três bilhões de dólares por ano em suborno, enquanto asempresas russas pagavam cerca de cem vezes esse valor. Elas tam-bém afirmavam que a situação estava piorando ainda mais no go-verno de Putin.

Tal situação viria não de um estímulo de Putin à corrup-ção, mas do simples fato que a sua visão de fortalecimento do Esta-do não implica combate à corrupção. Pior, ao colocar restriçõespara a atuação da mídia independente, do Judiciário e da oposiçãopolítica, seu governo elimina os elementos chave de qualquer com-

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bate à corrupção, cuja eliminação da vida dos russos levará, se éque é possível, anos de trabalho determinado.

De qualquer modo, a única coisa que está perfeitamenteclara é que Putin busca a centralização do poder. Uma reforma po-lítica, promulgada já em 2000, permitiu um controle muito maiordo Kremlin sobre as repúblicas e regiões da Rússia. Ele tambémprocurou cercear o poder dos “oligarcas” via cooptação e repressãoe reforçar o poder do Estado dentro da sociedade, inclusive peloreforço dos antigos órgãos de segurança e inteligência.

Essa política, junto com a “mão firme” frente aos chechenose a melhoria das condições econômicas, é fundamental para explicara popularidade de Putin e suas vitórias eleitorais. Dada a desordem ea anarquia que tomaram o país nos anos Yeltsin, é natural que muitosrussos tenham visto com bons olhos uma política de “Estado Forte”.Contou também, provavelmente, o tradicional respeito russo pelaordem e pela autoridade, adquirido e fortalecido por séculos de auto-ritarismo czarista e por décadas de regime soviético.

A pergunta que fica é se a Rússia, com ou sem Putin, estácaminhando na direção da democracia ocidental, com instituiçõeseficazes e dotadas de legitimidade. Evidentemente, não se podesaber a evolução política do país nas próximas décadas, mas, mes-mo no curto prazo, ela é uma incógnita.

Há uma grande corrente de opinião na Rússia que identifi-ca a democracia com a anarquia da era Yeltsin e que acredita quediminuir o espaço público e as liberdades democráticas é algo per-feitamente aceitável em nome da ordem. Para essa corrente, o “Es-tado forte” faz parte da alma russa e é a única solução para o paístanto em curto quanto em longo prazo.

Para outra parte da população, contudo, a noção de Estadode direito, a defesa dos direitos humanos e do Império da lei se tor-naram fundamentais. Seria um erro imaginar que os russos, pornunca terem vivido numa democracia, teriam nos seus genes umarejeição natural a ela. A experiência democrática pós-1991, apesardos seus limites óbvios, indica claramente como ao menos algunsdos princípios do Estado de direito estão se fixando na Rússia e quequaisquer tentativas de criar uma ditadura seriam rejeitadas por boaparte da população (COLIN, 2007, p. 78-94).

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Uma comparação com outros Estados oriundos da ex--URSS é, nesse sentido, significativa. Na “Revolução das Rosas”georgiana de 2003 e na “Revolução Laranja” ucraniana de 2004 seidentificam os sintomas de regimes autoritários debilitados e, tal-vez, os sinais de amadurecimento de democracias incipientes. Já naBielo-Rússia e em várias repúblicas da Ásia Central, o autoritaris-mo continua a ser a tônica, com a existência, inclusive, de verdadei-ras ditaduras personalistas. A Rússia parece estar num meio termo,o que indica tanto a força como a fraqueza da democracia no país.

Assim, se é possível arriscarmos alguma previsão para ofuturo político da Rússia, creio que ela ficará num meio-termo entreas várias possibilidades acima mencionadas. Apesar da existência,no país, de setores desejosos da volta do comunismo ao estilo stali-nista, de nostálgicos do czarismo e mesmo neonazistas (numa in-versão curiosa da história, já que o nazismo foi sempre o maiorinimigo não apenas do comunismo, mas também da nação russa),uma restauração da União Soviética ou da monarquia czarista ou aformação de um Estado ultranacionalista ou quase fascista é quaseimpensável.

Também as chances de uma ditadura militar na Rússia nospróximos anos, apesar de não inexistentes, são relativamente pe-quenas, apesar da imensa humilhação e sofrimentos impostos aosmilitares. Antes de qualquer coisa, porque os próprios militares,apesar de sua relação muita vezes tensa com o poder civil, não es-tão dispostos a assumir diretamente as rédeas do poder. Além disso,a Rússia ainda preserva parte da estrutura de poder oriunda da ex--URSS, o que ajuda a inibir aventuras por parte dos militares.

Na estrutura de poder soviética, efetivamente, o podermilitar e político estava dividido entre os militares, o PartidoComunista e a KGB, sendo que estas últimas organizações tam-bém dispunham de Forças Armadas próprias, o que permitia queos três polos se vigiassem e disputassem continuamente o poder.Na Rússia de hoje, ao lado dos militares, há várias outras organi-zações armadas, como as forças do Ministério do Interior, da FSB(agência de inteligência sucessora da KGB) e outras, as quaisdispõem de centenas de milhares de homens em armas, às vezescom unidades blindadas e aéreas próprias, e todas competindopor recursos, poder e prestígio. Em tal cenário, que não mudará,

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provavelmente, nos próximos anos, qualquer golpe de Estado deuma das forças enfrentaria oposição das outras, o que mantémalguma estabilidade.

Apesar disso, a formação de uma democracia cem porcento ao estilo ocidental também é pouco provável. A história re-cente da Rússia e suas tradições de séculos indicam que o cenáriomais realista é a manutenção do sistema democrático, mas limitadopor uma forte ingerência do poder estatal tanto na economia comona sociedade civil russas. Essa recuperação do poder do Estadopoderia significar uma recuperação também da capacidade russa eminfluenciar a política internacional, mas ela esbarra, contudo, naquestão central que é a economia.

RECUPERAÇÃO E (IR)RELEVÂNCIA ECONÔMICA

Depois do cataclismo econômico dos anos 1990, que cul-minou na crise de 1998, a economia russa voltou a crescer nos úl-timos anos. Em primeiro lugar, porque a perda do valor do rubloprovocou uma queda das importações, o que fez ressurgir uma in-dústria de bens de consumo. O aumento dos preços do gás natural edo petróleo, principais produtos de exportação da Rússia, no mer-cado internacional também ajudou a balança comercial russa, quecomeçou a registrar crescentes superávits.

Dados de instituições internacionais indicam, por exemplo,que, em 2007, US$ 220 bilhões foram arrecadados com a venda dopetróleo, gás e derivados (60% das exportações) e que, nos oitoanos de governo Putin, quase US$ 1 trilhão em produtos petrolífe-ros foram exportados. É verdade que o governo russo utilizou-se deum truque inteligente – um fundo que retém, desde 2004, 80% detodos os petrodólares obtidos acima de US$ 27 em cada barril –para evitar que esta avalanche de dinheiro gerasse inflação, o que éum mérito dele. Mas a abundância petrolífera, dificilmente, poderiaser considerada uma conquista do governo Putin.

De qualquer modo, entre 2000 e 2005, a economia russacresceu cerca de 6% ao ano, levando a aumentos nos investimentose no consumo interno. Reformas no sistema de impostos e raciona-

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lização dos gastos públicos também permitiram superávit fiscal emelhoria nas condições financeiras do Estado.

Mesmo assim, a Rússia hoje dificilmente poderia ser cha-mada de potência econômica. Neste início de milênio, ela respondepor apenas 1% do PIB mundial e é a 16ª economia do globo. Mes-mo que ela continue crescendo esses 6% ao ano por vinte anos, elaterá apenas recuperado o perdido na década de 1990. Décadas decrescimento contínuo seriam necessárias para recolocar a Rússiaentre as grandes economias mundiais e saber se esse crescimentocontínuo factível é a grande questão.

Realmente, para os anos a seguir, otimistas e pessimistastêm vários argumentos para se sentirem animados ou deprimidoscom as perspectivas russas, sendo todos eles claramente do tipo“copo meio cheio, como meio vazio”, dependendo do lado em quese está, como veremos nos parágrafos a seguir.

A Rússia ainda é, por exemplo, um verdadeiro reservatóriode recursos naturais, incluindo petróleo em abundância, metais emadeira. Contudo, não apenas boa parte das minas e campos petro-líferos russos está obsoleta e/ou se esgotando devido aos escassosinvestimentos, como poucas grandes economias modernas conse-guem se sustentar apenas com a exportação de recursos naturais.Exportar petróleo pode ter ampliado substancialmente a influênciade Moscou na economia mundial nos últimos anos, mas dificil-mente poderá ser a solução efetiva para todos os problemas nacio-nais. Um pequeno país do Golfo Pérsico pode se manter apenasvendendo petróleo, mas não um gigante como a Rússia. O choqueeconômico sentido pela Rússia em fins de 2008 e início de 2009com a queda dos preços internacionais do petróleo é outro indicati-vo neste sentido.

Apesar do colapso dos anos 1990, e da baixa produtivida-de, a Rússia ainda é uma grande produtora de carvão, aço, cimentoe outros produtos industriais pesados, o que poderia ser um ele-mento a seu favor. No entanto, esses ramos industriais são dos me-nos dinâmicos no comércio internacional, enquanto a capacidade daindústria russa para competir no mercado mundial de informática,biotecnologia, robótica e outros produtos da era da informação évirtualmente nula, o que dá prognósticos pouco róseos para o futurodo país (COLIN, 2007, p. 100-101).

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O mesmo pode ser dito da sua infraestrutura. Toda a he-rança soviética em termos de ferrovias, rodovias, oleodutos etc. estáse deteriorando rápido pela falta de investimentos, enquanto amesma carência de recursos impede a construção de um sistematelefônico, de redes de informática e outros sistemas necessáriospara uma moderna economia. A situação tende a melhorar, prova-velmente, com o passar dos anos, mas ainda é crítica e serão neces-sárias décadas para a Rússia atingir, se atingir, os níveis de sofisti-cação tecnológica do Ocidente ou da Ásia.

A população russa ainda é relativamente grande, instruídae bem formada, ao mesmo tempo em que a proporção de engenhei-ros, médicos e outros profissionais qualificados no conjunto da po-pulação está bem acima da média mundial. Mas sua produtividadeainda é muito baixa e levará tempo para atingir os padrões do Oci-dente. Além disso, com a redução drástica nos investimentos doEstado nas Universidades e no sistema público de ensino, a tendên-cia a curto e médio prazo é que a disponibilidade de cientistas etécnicos e a média educacional da população declinem.

A cultura do mercado capitalista também está lentamentese difundindo dentro da sociedade russa, enquanto o poder do Esta-do está sendo, ao menos parcialmente, restaurado. No entanto, boaparte do sistema capitalista russo ainda é permeado pelo crime e aeficiência e imparcialidade do Estado ainda são questionáveis.

Na verdade, conforme textos recentes de Lenina Pomeranz(2007, item III), o governo russo estaria consciente dos riscos dedepender excessivamente do petróleo e reservando recursos orça-mentários para, aproveitando a mão de obra qualificada do país,criar centros de alta tecnologia que serviriam como base para atransição russa para uma economia do conhecimento. Um projetorazoável, sendo duvidoso, contudo, se ele será bem-sucedido.

Em resumo, as perspectivas em curto prazo para a econo-mia russa parecem razoáveis, especialmente quando confrontadascom a catástrofe dos anos 1990. A médio e longo prazos, a situaçãoparece bem menos confortável, especialmente depois que as heran-ças positivas da era soviética (especialmente o complexo científico,o sistema educacional e a infraestrutura) se degradarem e se os pre-ços do petróleo continuarem a cair. Na melhor das hipóteses, ocrescimento econômico russo continuará nos níveis atuais, o que

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será muito positivo, mas insuficiente para que a Rússia recupere aposição de segunda economia do mundo que ela já teve. Se tal re-cuperação se der, salvo imprevistos, será seguramente na segundametade do século XXI e não no futuro previsível.

PROBLEMAS SOCIAIS E CRISE DEMOGRÁFICA

O mesmo pode ser dito das condições sociais. Depois daqueda acentuada dos anos 1990, parece estar havendo alguma recu-peração, ainda que leve, nos anos recentes, mas insuficiente paratransformar a Rússia num país realmente rico.

Algumas estatísticas divulgadas pela mídia internacionalindicam claramente essa situação. A renda média dos russos cres-ceu dez vezes desde 1999, mas isso significa apenas US$ 500. Opaís já conta com 130 mil milionários e cinquenta e três russos temuma fortuna pessoal acima de US$ 1 bilhão, mas muitos milhõesainda vivem com alguns dólares ao dia. A classe média se expandiude 10% da população nos anos 90 para 25% em 2007, mas muitolonge ainda dos 60% da Europa Ocidental. A pobreza extrema foierradicada, mas a diferença entre os dez por cento mais ricos e osdez por cento mais pobres da população já está em 25 vezes. A re-gião de Moscou é riquíssima, mas o interior não está tão bem. En-fim, o copo está meio cheio ou meio vazio, dependendo do lado quese olha.

É razoável acreditar que, se o crescimento econômicoprosseguir e o Estado recuperar capacidade de investimento e tivervontade política de atuar socialmente, haverá melhorias nos índicessociais. Mas a desigualdade entre ricos e pobres, a pobreza, o alcoo-lismo, a criminalidade e outros problemas sociais graves parecemter chegado para ficar e, na hipótese da Rússia conseguir atingirpadrões de desenvolvimento humano similares aos do Ocidente,recuperando o perdido depois da queda da URSS e indo além, serátarefa para décadas.

Como efeito óbvio dessa contínua degradação das condi-ções sociais, a Rússia enfrenta hoje um grande problema demográ-fico. A expectativa de vida caiu na Rússia desde 1991, especial-mente entre os homens, devido ao colapso do sistema de saúde pú-

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blica, pobreza, alcoolismo e violência. Em 1991, um homem sovié-tico poderia esperar viver 63 anos, o que se reduziu hoje para cercade 58 anos. Entre as mulheres, a redução foi menos acentuada – de74 para 72 anos – mas é uma expectativa de vida mais baixa do quea de 1965. Alguns analistas dizem que, dada a carência de preven-ção e poucas possibilidades de tratamento, uma epidemia de AIDSserá altamente provável na Rússia nas próximas décadas, o quedeverá aumentar ainda mais a mortalidade no país.

Para piorar, os russos não se sentem confortáveis ou emcondições para terem filhos. Nesse contexto, a natalidade, já emqueda nas décadas finais do regime soviético, despencou aindamais. A mortalidade infantil, em crescimento, também ajuda a di-minuir a população infantil russa. Em 2001, segundo algumas esta-tísticas divulgadas pela mídia, havia 171 mortes para cada 100 nas-cimentos e, na década de 1990, a população russa diminuiu em 2milhões de pessoas, mesmo com muitos refugiados de etnia russase transferindo para o país de outras repúblicas ex-soviéticas.

As tendências demográficas, evidentemente, não podemser previstas em longo prazo, mas as estimativas, hoje, são de que apopulação russa está diminuindo em cerca de 650 mil pessoas porano e que, em 2015, os russos seriam apenas 136,9 milhões, frentea 143 milhões hoje. Em 2025, poderiam ser apenas 119 milhões,entre os quais muitos idosos.

Redução demográfica e envelhecimento populacional nãosão exclusividade russa. Vários países da Europa Ocidental, do ex--bloco do Leste e o Japão compartilham a mesma situação. O pro-blema russo é que essa redução está se dando num ritmo muitoacelerado, diminuindo radicalmente a disponibilidade de mão deobra para a economia e as Forças Armadas.

Além disso, ela se dá ao mesmo tempo em que os rivais daRússia aumentam sua população. Realmente, seja pelo crescimentonatural (caso da China ou dos países muçulmanos) ou pela imigra-ção (como os Estados Unidos), os vizinhos e rivais da Rússia estãocrescendo. Mesmo a União Europeia, apesar de demograficamentedeclinante, pode compensar isso, ao menos um pouco, incorporan-do novos países a seu bloco.

Em resumo, apesar de ser difícil prever o futuro, nota-seque os vizinhos da Rússia estão numa melhor condição demográfi-

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ca do que ela. Uma novidade para um país que sempre venceu seusrivais pela quantidade, inclusive de homens, e que assusta os estra-tegistas russos, que se perguntam quando os prolíficos muçulmanosou os numerosos chineses irão demandar territórios da agora poucopopulosa Rússia. A contínua decadência militar apenas acentuaesse temor.

O PODER MILITAR RUSSO NO INÍCIO DO SÉCULO XXI

Apesar de toda a decadência sofrida na década de 90,como visto no capítulo anterior, a Rússia ainda tem elementos depoder em suas mãos que, com certeza, a qualificam como uma po-tência militar em termos globais. Mais questionável é se essa forçamilitar se manterá nos próximos anos e décadas.

O poder nuclear russo ainda é realmente substancial, commilhares de ogivas nucleares e veículos de lançamento. Mísseisnovos têm sido instalados e novas tecnologias vêm sendo desen-volvidas, enquanto o sistema de comando e controle russo aindafunciona. Em qualquer futuro previsível, é difícil imaginar que aRússia perca a sua posição de segunda potência nuclear do mundo.

Além disso, apenas aproveitando as sobras do antigo Im-pério soviético, a Rússia é, sem dúvidas, uma potência militar deprimeira classe em termos convencionais. Ela não tem mais ascentenas de submarinos e navios da era soviética, mas as poucasdezenas remanescentes tornam a Marinha a segunda do mundo.Milhares de aviões e helicópteros ainda estão disponíveis e apenasos bombardeiros Blackjack e Backfire, os caças Mig e os tanquesT80 remanescentes já deixam a Rússia numa posição confortável sea questão fosse simplesmente contar equipamentos e homens. Afi-nal, mesmo hoje, a Rússia tem mais homens em armas, tanques ouaviões do que a Alemanha ou a França.

Ela também conserva, ainda, um grande complexo indus-trial militar, que, através de exportações para todo o mundo, temconseguido manter-se ao menos parcialmente.

O grande problema é que esses homens e materiais estãodentro de uma estrutura militar extremamente falha e com proble-

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mas de comando, treinamento e manutenção. Afinal, mil tanquesativos e operacionais são uma coisa, enquanto os mesmos mil tan-ques enferrujando em bases militares perdidas não significam nadaalém de números no papel. Além disso, o que é talvez ainda pior,nada garante que a Rússia vai ter condições de manter esses ele-mentos de poder remanescentes nos próximos anos.

Realmente, o sistema militar continua envelhecendo e osrussos têm sido incapazes de reformá-lo e/ou mantê-lo. No camponuclear, por exemplo, a quantidade de mísseis, submarinos e ogivasque se tornam obsoletos ou não operacionais aumenta numa pro-porção maior do que a capacidade que o país tem de substituí-los.Alguns analistas calculavam, em meados do ano 2000, que apenas800 ogivas nucleares russas eram realmente operacionais, frente amais de 6.000 no papel.

Isso parece ser verdade, tanto que Moscou tem aceitadosem problemas assinar vários acordos de redução de armas nuclea-res com Washington, pois eles permitem que a Rússia reduza seuarsenal a níveis realistas sem perder prestígio internacional, já queo mesmo será feito pelos norte-americanos. Assim, a princípio,pelos acordos mais recentes, EUA e Rússia deverão reduzir, cadaum, as suas armas estratégicas nucleares ao patamar de 1.700 a2.200 ogivas estratégicas, além do arsenal de armas nucleares táti-cas. Fica o questionamento, contudo, se mesmo esse número redu-zido de ogivas pode ser mantido pelos limitados recursos do Estadorusso de hoje.

Um estudo feito pelos cientistas políticos norte-americanosKeir Lieber e Daryl Press (2006) chegou a afirmar que os EstadosUnidos teriam condições, se quisessem, de destruir a Rússia numprimeiro ataque nuclear. Para eles, a Rússia só voltaria a ter capaci-dade nuclear efetiva (ou seja, capaz de garantir a destruição mútuade qualquer atacante), em 15 ou 20 anos, quando sua força deveriase estabilizar em torno de 150 mísseis de longo alcance e cinco aoito submarinos. Conclusão questionável, mas que indica a queponto as coisas chegaram.

Os russos também não têm conseguido acompanhar os re-centes avanços norte-americanos na área (que tornaram o seu arse-nal menor, mas mais letal) e faltam recursos mesmo para descon-taminar e eliminar os equipamentos nucleares obsoletos, o que dei-

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xa submarinos desativados, mas com carga nuclear intacta, enfer-rujando nos portos árticos e vagões carregados de lixo nuclear va-gando sem destino pelo território russo. Isso sem mencionar, claro,os riscos de venda de equipamentos e ogivas nucleares a terroristasou outros países interessados neste tipo de armamento.

Também no campo convencional, os problemas dos milita-res russos são grandes. Enquanto na época soviética, praticamentetodos os jovens aptos em idade militar eram incorporados às ForçasArmadas, a porcentagem, agora, caiu para cerca de um entre dez.Não há recursos para manter e treinar todos os jovens disponíveis e,numa sociedade permeada pela corrupção, é rotineiro, segundo amídia russa, conseguir a isenção via pagamento, que variava de1.500 dólares no interior a 5.000 dólares em Moscou em 2005.Tudo isso prejudica o preparo dos militares para o combate e aformação de reservas treinadas.

Há também uma relação de desconfiança e incompreensãomútua entre militares e civis e, apesar de alguns esforços para reor-ganizar o sistema militar russo, fundindo algumas estruturas (comofoi feito com a Defesa Aérea e a Força Aérea em 1998), cortandoonde possível e lançado um programa amplo de reforma militar em2003, os resultados, até agora, são pequenos. Também se procurouprofissionalizar ao menos parte da tropa, mas, como indicam Zolo-ratev (2007) e Betz e Volkov (2003), a falta de recursos tem difi-cultado quaisquer esforços para sanar os problemas dos militares.

O dinheiro é, realmente, o problema central. Neste iníciode milênio, o orçamento militar de Moscou, apesar de estar emforte crescimento frente aos anos 90, está em apenas 40-50 bilhõesde dólares por ano, uns 3% do PIB e o equivalente a 5% do norte--americano. Apenas esse dado já indica a situação de completa faltade recursos entre os militares russos, recursos estes ainda mais san-grados, atualmente, pela guerra da Chechênia.

O Presidente Putin, decidido restaurar ao menos uma partedo orgulho nacional russo, aumentou as verbas destinadas aos mi-litares e planejou-se a criação de ao menos alguns núcleos de ex-celência na Força Aérea, em algumas unidades de submarinos etc.A situação melhorou substancialmente, sem dúvida, frente aos anos90 e a recuperação do poder militar tem trazido um novo orgulho edinamismo à Rússia. Mas a falta de recursos tão amplos como na

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era soviética e a necessidade de concentrar investimentos nas forçasnucleares têm dificultado esses planos. Efetivamente, uma partesubstancial dos recursos nacionais empregados na defesa estão sen-do utilizados para manter a Força de Foguetes Estratégicos e tudoparece indicar que isso vai prosseguir nos próximos anos, com in-vestimentos planejados em novos mísseis Topol M e reforço naaviação estratégica.

O poder nuclear é realmente o último grande trunfo nasmãos da Rússia para reclamar o status de grande potência militar.Natural, pois, que a possibilidade dos norte-americanos construíremum escudo espacial incomode Moscou. Tal escudo, a princípio,parece ser inviável tecnicamente, mas, se funcionasse, consolidariaainda mais a supremacia militar norte-americana e teria o potencialde reduzir a Rússia (assim como outros países, como a China) àcategoria de potência militar irrelevante. No entanto, nem Chinanem Rússia têm condições de impedir os desejos de Washington enem de criar algo para se contrapor ao projeto estadunidense. Aproposta feita por Putin, anos atrás, convidando os europeus oci-dentais a financiarem um escudo russo-europeu, demonstra (se nãofoi apenas uma jogada de marketing) ou a ingenuidade ou o deses-pero dos russos. O mesmo pode ser dito da reação irritada de Mos-cou em 2007-08 com a decisão americana de instalar mísseis anti-balísticos na República Tcheca e Polônia.

Em 2000, o governo Putin também modificou a doutrinade segurança nacional russa. Ao contrário dos documentos anterio-res, que asseguravam que Moscou só recorreria ao seu arsenal nu-clear quando a existência do Estado estivesse ameaçada, a novaversão indicava que armas nucleares poderiam ser usadas em casode agressão armada. Um endurecimento, mas também uma provade fraqueza, pois o arsenal atômico se tornou o principal elementode poder russo, o que indica como a sua conservação será a priori-dade número um dos militares e políticos russos nos anos a seguir.

O quadro militar mundial, assim, é bem diferente do daépoca da Guerra Fria. Ao invés de dois gigantes militares mais oumenos equivalentes, temos uma superpotência que atingiu um está-gio de quase onipotência militar, os Estados Unidos. Estes, sozi-nhos, gastam mais com defesa do que todos os outros países domundo juntos, dominam todos os oceanos, têm bases espalhadas

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em cada um dos continentes e são os únicos a terem capacidade deintervenção global, além de serem a maior potência nuclear rema-nescente e estarem na liderança nas novas tecnologias militares.

Além dos norte-americanos, todas as outras nações domundo procuram manter estruturas militares, mas a esmagadoramaioria delas nem sequer cogita a hipótese de utilizá-las em com-bate. Certos países, como a Índia e a China, aproveitam o cresci-mento econômico para reforçarem seu poderio. Outros, como aFrança e a Inglaterra, tentam manter ao menos alguma capacidadede ação internacional, mas com dificuldades. Já a Rússia não estánem numa situação de acomodação e fortalecimento como as pri-meiras nem em uma de alguma relevância militar, mas com poucaspossibilidades de crescimento, como as segundas. A realidade russaé de fraqueza relativa e decadência continuada.

A Rússia enfrenta, assim, um dilema. Moscou ainda man-tém cerca de 1,2-1,5 milhão de homens em armas (sem contar cen-tenas de milhares em outras forças de defesa interna) e seu imensoarsenal nuclear. O problema é que não há recursos financeiros paramanter todas essas forças de forma eficiente e, como se insiste namanutenção de mais homens em uniforme do que seria possívelfinanceiramente, o treinamento e até a sobrevivência material des-ses homens fica comprometida.

Uma solução para esse problema seria reconhecer a situa-ção russa, concentrar o Exército na repressão às ameaças internas,reduzir a Marinha a uma mera força de defesa costeira e/ou de in-tervenção nas regiões próximas à Federação russa, a Força Aérea àsunidades de proteção do território nacional e o poder nuclear a al-gumas dúzias de mísseis, apenas para manter o status de potêncianuclear, a espera de dias melhores.

Nesse cenário, o país ficaria com forças militares menores,mas mais eficientes e condizentes com a sua situação atual. Se ler-mos os documentos do Ministério da Defesa russa, essa é, em teo-ria, a opção de Moscou para os anos a seguir, a qual reconhece acontração da Rússia de superpotência a poder militar regional. Naprática, contudo, essa alternativa tem se revelado problemática,tanto, como já indicado, pela ausência de recursos financeiros paraprofissionalizar as tropas e dotá-las de tecnologia de ponta, comopelo fato que seguir essa linha seria abandonar a velha tradição

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russa de confiar nos números e admitir realmente a decadência dopoder nacional e, portanto, pouco aceitável politicamente.

Outra opção é deixar as coisas como estão, o que significamanter uma imensa força militar no papel, para fins de prestígiointernacional, mas que, na prática, é menos efetiva do que parece.Alguns analistas consideram, inclusive, que das dezenas de divisõesexistentes hoje no papel, não mais que uma ou duas seriam plena-mente utilizáveis em caso de crise séria.

Dessa forma, a Rússia tem pouca ou nenhuma capacidadede projeção de poder além oceano e, mesmo nas suas fronteiras, talcapacidade é limitada. Ela tem, dessa forma, que assistir calada, porexemplo, às ingerências ocidentais na antiga Europa do leste ou naUcrânia. O que ela poderia fazer, caso fosse decidida uma respostamilitar, além de disparar seu arsenal nuclear, frente à imensa supe-rioridade convencional dos Aliados ocidentais, agora reforçadospelos antigos aliados de Moscou no Pacto de Varsóvia?

Evidentemente, não se pode saber o que ocorrerá nos pró-ximos anos. Se a economia russa continuar a crescer e o Estadocontar com mais recursos financeiros, é provável que a estruturamilitar se recupere, mas é simplesmente impossível que a Rússiaconsiga, no futuro previsível, recuperar a posição de superpotênciamilitar que ela tinha durante a Guerra Fria. Num futuro próximo, atendência é que a Rússia continue a ser a segunda potência militar enuclear do mundo, mas num patamar distante do norte-americano.Além disso, é provável que a situação, ao menos em alguns ramosmilitares menos prioritários (como o Exército) deve ainda piorarpor mais algum tempo antes de melhorar.

Realmente, às Forças Armadas russas falta, como já indica-do, a condição financeira não apenas para adquirir toda a parafernáliatecnológica da guerra contemporânea (computadores, munições deprecisão, sistemas modernos de reconhecimento e comunicações),como até para manter o que foi herdado. Afinal de contas, os aviões,navios, mísseis e tanques herdados da URSS irão inevitavelmente sedesgastar com o decorrer do tempo e não estão sendo substituídos natotalidade e muito menos com material mais moderno.

Basta recordar, a propósito, como, nos anos 80, as forçasblindadas soviéticas, por exemplo, incorporavam cerca de dois mil

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tanques por ano às suas unidades, complementando ou substituindoos mais velhos, enquanto apenas algumas dezenas foram adquiridosem 1994 e quase nada hoje. O mesmo se repete frente a aviões,mísseis antiaéreos e outros sistemas de armas, que são vendidos aoexterior, mas não às forças nacionais.

Como já indicado, nos últimos anos, dada a melhoria daeconomia, o orçamento militar russo tem crescido bastante e maisaquisições são previsíveis nos próximos anos, mas num patamarainda relativamente pequeno. Ou seja, a situação está bem melhordo que na década de 90, mas longe de ser tranquila.

Em resumo, a recuperação da força militar russa ainda éincerta. Ninguém pode, com certeza, invadir ou conquistar a Rússiae ela tende a continuar a segunda potência militar do mundo aindapor muito tempo. Seu complexo industrial-militar ainda é o impres-sionante e alguns armamentos russos, como o caça Sukhoi-35 e oprojetado PAK FA, estão entre os primeiros do mundo. Ainda as-sim, perto do imenso poder militar desfrutado na época da UniãoSoviética, não há como não perceber a decadência relativa. Tal de-cadência militar ajuda a solapar, claro, a sua relevância no cenáriointernacional do século XXI.

A DESINTEGRAÇÃO DA FEDERAÇÃO RUSSA?

Outro grande problema enfrentado pela Rússia de hoje éque as mesmas forças que levaram à formação de uma série de Es-tados independentes no território da ex-URSS podem muito bemainda estar ativas, o que poderia levar a uma desagregação da pró-pria Federação russa.

Na década de 1990, essas forças pareciam extremamentepoderosas. Várias das regiões e repúblicas que formavam a Federa-ção russa, inclusive algumas habitadas pela etnia russa, começarama exigir autonomia ou independência e vários dos povos que acompunham começaram a entrar em conflito tanto com o governocentral como com etnias rivais. Em 1990, o Tatarstão (região nocentro do país habitada por muçulmanos sunitas de origem turca) ea região de população mongol de Tuva, na Sibéria meridional, pro-clamaram a independência. Na mesma época, a Chechênia também

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o fez, mas, ao contrário das primeiras, não recuou, o que levou aação russa em 1994 e novamente em 1999, com a destruição quaseque completa da província rebelde e o ataque indiscriminado, pelasforças de segurança russas, aos civis.

É complicado, na verdade, comparar os dois lados em con-flito. Ao menos uma parte dos abusos (estupros, execuções sumá-rias etc.) dos soldados e oficiais russos contra a população civilchechena tem sido investigada e alguns culpados têm sido punidos,mas, segundo as agências de direitos humanos internacionais, elesainda são generalizados e, claro, condenáveis. Já os rebeldes che-chenos partiram realmente para atos terroristas, como provam, entreoutros acontecimentos, as explosões no metrô em Moscou em 2002e o sequestro de crianças e pais na escola de Beslan em 2004. Dequalquer forma, o que fica claro é que se formou uma “cultura deódio” entre os dois povos que leva a tristes acontecimentos, comoos mencionados acima, e deixa pouca margem para negociações.

Há uma longa história de conflitos entre o governo deMoscou e a Chechênia desde que os soldados czaristas conquista-ram o país em 1859. Na época de Stalin, por exemplo, centenas demilhares de chechenos e outros povos caucasianos foram deporta-dos para o Cazaquistão, sob a acusação de terem colaborado com osalemães. Há, assim, uma resistência de longo prazo dos chechenoscontra a dominação russa e é compreensível que, assim que a URSSse dissolveu, eles tenham proclamado a independência.

Os interesses russos na Chechênia são vários e não é este,certamente, o espaço para uma discussão ampla sobre o conflito.Há um interesse econômico claro, por parte da Rússia, em manter ocontrole sobre os vários oleodutos que cruzam o território cheche-no. Geopoliticamente, a região também é estratégica. Tambémconta o interesse dos políticos russos em obter prestígio, comoaconteceu com Putin em 1999, atendendo a expectativa de boaparte dos russos de se sentirem parte de uma nação ainda poderosa.

Também é relevante recordar, se queremos realmentecompreender as razões da determinação russa em manter o controleda região, como o combate aos chechenos serve para dar um exem-plo para todas as outras repúblicas que queiram deixar a Federação.É questionável se as ações russas na região estão realmente refor-çando o edifício da Federação russa, pois ódios intensos estão sen-

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do gerados nesse conflito sem fim e isso pode ter reflexos no longoprazo. Por agora, contudo, a lição parece ter sido aprendida e pou-cas regiões russas falam hoje em independência plena, o que nãosignifica dizer que tal pretensão não possa voltar a ser colocada namesa, ao menos para alguns dos povos que compõem a Rússia dehoje, no futuro.

Efetivamente, uma combinação de recuperação do podercentral, ameaças de repressão (e o exemplo da Chechênia com cer-teza ajudou, como já indicado acima, a reforçar isto), concessão deautonomia e cooptação tem ajudado a conter as forças desagregado-ras. Além disso, o bom momento econômico ajuda a aliviar pres-sões e canalizar apoios e subvenções aos descontentes. Resta saberse tal situação poderá prosseguir nos anos a seguir.

O problema russo, na realidade, é que as forças internas(e externas) que desejam que o país continue a se fragmentarcontinuam muito fortes. Elas não devem ser superestimadas, pois,afinal, muitas das minorias têm pouco interesse em independên-cia e estão felizes em viver sob a soberania russa e, por agora,elas estão dormentes. O grave é que elas podem ressurgir e/ouserem potencializadas no caso do poder central enfraquecer (ou,no outro extremo, se fortalecer em excesso) novamente ou docenário social e econômico indicar ser melhor a separação do quecontinuar na União.

Isso realmente é um dado interessante. Dado o grau deconsciência nacional desfrutado por, por exemplo, os norte-ameri-canos hoje, é difícil imaginar um cenário em que o Delaware ou oNebraska quisessem deixar os Estados Unidos. Impossível, não é,mas seria necessária uma verdadeira catástrofe social, política oueconômica para esse cenário se concretizar. No caso russo, comtantas divisões étnicas, territoriais e outras já presentes, muito me-nos seria necessário para desencadear o processo.

A Rússia, hoje, compreende, de fato, numa área de dezes-sete milhões de quilômetros quadrados, vinte e uma repúblicas edezenas de regiões autônomas, além de outros tipos de organizaçãoterritorial. É um sistema complexo e que pode tanto diminuir, porconceder alguma autonomia, como ampliar (ao fornecer os contor-nos territoriais para movimentos separatistas) as forças de implosãodo espaço russo.

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Nesse espaço, a etnia russa (ou seja, os eslavos de fala rus-sa e religião cristã ortodoxa) é totalmente majoritária (120 milhõesem 143 milhões de habitantes, ou seja, 82%). Na verdade, ao per-mitir a independência do antigo Império, os russos passaram a des-frutar de um índice de superioridade demográfica (4/1) sobre asetnias minoritárias que eles não tinham há séculos.

O problema é que essas etnias não apenas são numerosas,atingindo mais de uma centena, como algumas delas têm popula-ções razoáveis, como os tártaros (5 milhões), os udmurti (1,3 mi-lhão), os ossétios, os buriatis, os cossacos e outras. Para piorar, vá-rias dessas etnias minoritárias ocupam áreas próprias, o que permiteuma maior visibilidade e coesão a elas. Há também, especialmenteno Cáucaso e em algumas regiões do Volga, uma forte minoria mu-çulmana (segundo diversas estatísticas, de doze a vinte milhões depessoas, de vários grupos e etnias), a qual mantém relações tensascom a maioria russa. Num certo sentido, portanto, o problema dasrelações entre o grupo étnico e cultural dominante da nova Rússia,ou seja, o russo, e as minorias continua muito semelhante ao queera na época do czarismo e na era soviética.

Em resumo, o fato é que o processo de desagregação do anti-go Império russo pode não ter terminado com o fim da União Soviéti-ca. No Cáucaso, em várias regiões da Ásia e no Ártico, os russosainda são vistos como conquistadores, ali instalados para saquearemos recursos locais em prol de Moscou. Muitos caucasianos ou tárta-ros, apesar de viverem na Rússia e falarem russo, não se consideramrussos e não são vistos como tal por estes. Por agora, eles podemmuito considerar adequado ou razoável continuarem sob o controlede Moscou, mas é impossível dizer se isso será eterno.

Na hipótese de total desagregação e da redução do territó-rio russo às áreas habitadas pelos russos propriamente ditos, o con-trole de Moscou se reduziria à Rússia europeia e a uma faixa naSibéria, mais ou menos na altura da ferrovia Transiberiana. O recuogeopolítico da Rússia pós-1990, que a levou 300 ou 400 anos nopassado, pode muito bem continuar. Talvez isso fosse até positivopara a Rússia ao eliminar atritos e problemas, mas suas ações no“exterior próximo” indicam que a ideia de perder ainda mais terri-tório e influência é inaceitável para seus líderes e para a esmagado-ra maioria do seu povo.

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Capítulo 8

A RA RA RA RÚSSIA E O MUNDOÚSSIA E O MUNDOÚSSIA E O MUNDOÚSSIA E O MUNDO

NO SÉCULO NO SÉCULO NO SÉCULO NO SÉCULO XXIXXIXXIXXI

A POLÍTICA EXTERNA RUSSA: O “EXTERIOR PRÓXIMO”

Já no governo de Bóris Yeltsin, ficou claro como o gover-no russo considerava as antigas repúblicas soviéticas como sua áreaespecial e exclusiva de influência e tal percepção não parece ter semodificado. Moscou não tem mais pretensões de disputar o domíniodo mundo com os Estados Unidos e parece ter aceitado, ainda quenão com satisfação, que os antigos membros do Pacto de Varsóvia seincorporem à OTAN e à União Europeia. Já o antigo espaço soviéti-co – ou seja, o Cáucaso, a Ásia Central e as repúblicas ocidentaisda ex-URSS – é visto, tanto por razões de segurança como pelas deprestígio, como uma “reserva de caça” russa, destinada a girar emtorno de Moscou, que tem trabalhado para garantir esse controlenos últimos anos.

Exatamente até onde vão – ou até onde irão, nas décadas aseguir – as pretensões de Moscou, é difícil dizer, especialmenteporque essa política de priorizar o “exterior próximo” serve deguarda-chuva para as mais diversas correntes geopolíticas e políti-cas russas, que as concebem de forma diversa. Para algumas forçaspolíticas e intelectuais russas, o ideal seria a reconstrução do antigoespaço soviético, incluindo todas as antigas quinze repúblicas. Nacio-nalistas radicais próximos do fascismo, como Vladimir Jirinovsky,sonhavam, ou sonham, até mesmo com a reincorporação de provín-

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cias imperiais há muito perdidas, como a Finlândia, a Polônia e oAlasca, o que seria guerra certa com a União Europeia e os EstadosUnidos.

Para outras correntes, a separação das repúblicas muçul-manas foi uma benção, aliviando as pressões econômicas e demo-gráficas dos muçulmanos contra a Rússia. Para essa corrente, omáximo com que a Rússia devia sonhar seria com a incorporaçãoda Ucrânia, da Bielo-Rússia e do norte do Cazaquistão ao seu ter-ritório, que reuniria a parte mais rica e etnicamente eslava do antigoImpério soviético. Eventualmente, outros Estados cristãos ortodo-xos, como a Geórgia e a Armênia, poderiam aderir, mas o funda-mental seria a reconstrução do “núcleo eslavo” original da Rússia.

É difícil imaginar se esses sonhos são factíveis e/ou se elesseriam aceitos pela comunidade internacional. Tudo dependerá,provavelmente, da evolução política dentro da Rússia, assim comodos desejos de ucranianos, bielo-russos e de outros povos de seunirem à Rússia. Os bielo-russos parecem mais simpáticos à ideia,como comprova o acordo de união Rússia–Bielo-Rússia de 1997,enquanto os ucranianos, como demonstraram as eleições de 2004,estão claramente divididos entre a adesão à União Europeia e oreforço dos vínculos com a Rússia, que poderia levar a uma unifi-cação.

Se a Rússia voltar a se tornar forte e rica, talvez o apelopara a união (seja formal, seja em termos de maior integração) setorne irresistível para Minsk e Kiev e estas voltarão a se ver comopartes de uma cultura russa maior. Em caso contrário, talvez a ideiade adesão à União Europeia domine e, nesse caso, a ideia de queucranianos e bielo-russos são aparentados cultural e linguistica-mente aos russos, mas não mais do que isso, será inevitavelmenteresgatada. Enfim, apenas hipóteses para uma história ainda a serescrita.

O que é certo é que, com a Ucrânia e a Bielo-Rússia no-vamente a seu lado, Moscou teria fortalecida a sua pretensão devoltar a ser uma potência euro-asiática, já que elas forneceriam umreforço econômico, militar e, especialmente, demográfico funda-mental para contrabalançar a ascensão chinesa e muçulmana. Semelas, as pretensões de reconstrução da potência russa cairiam dra-maticamente. Natural, pois, como, para os russos, uma adesão

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ucraniana à OTAN e a União Europeia seria extremamente malvista, para dizer o mínimo.

Mesmo sem esse reforço dos “irmãos eslavos”, contudo, éevidente como, no momento presente, a Rússia se esforça paramanter influência no que era o antigo espaço soviético. E isso nãoexclusivamente por considerações geopolíticas ou imperialistas(apesar de elas, como visto, existirem), mas também por razões desegurança, pelo desejo de manter vínculos econômicos vitais etc.

A única possível exceção são os países bálticos, cujosvínculos com o Ocidente cresceram a tal ponto que já os excluiu,praticamente, da esfera de influência russa. Também podem serconsideradas praticamente perdidas as antigas nações do Pacto deVarsóvia, cada vez mais integradas à União Europeia e à OTAN.Mas, no resto do antigo espaço soviético, e, especialmente, noCáucaso e na Ásia Central, o esforço russo para manter sua influênciaé intenso.

A Ásia central e o Cáucaso formam hoje uma das áreasmais geopoliticamente disputadas do mundo. A leste, está a potên-cia ascendente chinesa, a qual procura ampliar seus laços com oCazaquistão, a Quirquízia e outras ex-repúblicas soviéticas quesão agora suas vizinhas. Ao norte, está a ex-potência dominante, aRússia, enquanto ao sul está o Irã, que tenta utilizar seus vínculosculturais e religiosos com ao menos alguns dos povos da Ásia Cen-tral (como os tadjiques, que falam persa) para ampliar sua influência.

O mesmo instrumento está sendo usado pela Turquia, a tra-dicional inimiga da Rússia, cujos vínculos culturais e linguísticos,especialmente com azeris, cazaques, turcomenos e uzbeques sãomuito fortes, levando alguns turcos a sonharem com um novo “Impé-rio turco” surgindo na região. Por fim, ao lado desses vizinhos pode-rosos, está o poder econômico e militar dos Estados Unidos, tambémprocurando influência, se não dominação, sobre a região.

Em boa medida, essa parte do globo, que reúne povos dasmais variadas origens e religiões, tem tanta importância estratégicasimplesmente pela sua localização, nas fronteiras entre a Europa e aÁsia, entre o cristianismo, o Islã e o mundo oriental. Foi essa loca-lização que levou ao “Grande Jogo” (termo cunhado pelo escritorbritânico Rudyard Kipling) entre russos e britânicos no final do

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século XIX, quando as duas potências disputaram, como visto, ocontrole do então Turquestão e dos caminhos para a Índia.

A comparação, contudo, não é perfeita. No século XIX,apenas duas potências disputavam a região e o grande prêmio, di-reta ou indiretamente, era o controle da Índia. Além disso, a com-petição aconteceu, então, a partir do expansionismo dos Impériosbritânico e russo na região. Hoje, ela ocorre essencialmente pelocolapso desse Império e a disputa é, principalmente, pelos recursosnaturais desses países, como metais ferrosos, ouro e, acima de tudo,petróleo e gás natural (ASIA CENTRALE, 1996)

Realmente, a maioria das oito ex-repúblicas soviéticas doCáucaso e da Ásia central dispõe de imensas reservas de petróleo egás natural ou, no mínimo, controlam os territórios por onde os oleo-dutos e gasodutos devem passar para levar esses produtos ao mercadoglobal. Controlar tais fontes de energia e seu transporte é controlar aregião e suas riquezas, pelo que não surpreende o quanto as grandespotências e as multinacionais do petróleo estejam divergindo em tor-no de questões que deveriam ser, essencialmente, técnicas, como otraçado dos novos gasodutos e oleodutos a serem construídos.

Há muitos projetos para a construção de caminhos alterna-tivos aos atuais, que levariam óleo e gás para portos na Turquia, Irãou mesmo à China, os quais enfrentam forte oposição de Moscou.Isso não é inesperado, já que, até o presente momento, a maiorparte das vias de comunicação passa, como herança da era soviéti-ca, pelo território russo, o que dá à Rússia o virtual controle daeconomia e da riqueza da região. É um elemento de poder chaveque os dirigentes russos não querem, claro, perder.

No entanto, não apenas as ex-repúblicas soviéticas da re-gião têm interesse em fugir da dependência russa, como os paísespróximos a elas (como o Irã, a Turquia e o Paquistão), as grandesmultinacionais do petróleo e seus países de origem as apóiam nessapretensão. Isso indica como, a médio e longo prazo, os oleodutos egasodutos que passam pela Rússia continuarão a ser importantes,mas que os dias de hegemonia russa sobre esses recursos estãocontados.

Além desse controle econômico dos recursos naturais, aFederação russa recorre, no seu esforço para influenciar suas anti-gas repúblicas irmãs, a outras armas, como as populações russófo-

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nas, a influência militar e os vínculos culturais e econômicos rema-nescentes da era soviética.

O primeiro elemento são as populações russas instaladas emoutros países. Na época do Império e no período soviético, era praxe,como visto, a transferência populacional dentro do imenso espaçorusso/soviético, normalmente sob estímulo e controle do Estado.Ucranianos ou bielo-russos eram enviados para trabalhar nas fábricasou administrar províncias na Ásia Central. Povos inteiros foram de-portados, especialmente na época de Stalin, por serem consideradosrebeldes, o que levou muitos bálticos ou chechenos para a Sibéria. OKremlin também promovia a migração de eslavos e, especialmente,de russos, para regiões rebeldes, de forma a reforçar a sua lealdadepela diluição dos autóctones num mar de russos emigrados.

Esse processo secular de transferência de russos étnicos daRússia para a sua periferia não russa terminou por volta dos anos1960 do século XX, quando a corrente se inverteu. Mesmo assim,como resultado de tal processo, vinte e cinco milhões de russosvivem hoje fora da Rússia, apesar de muitos estarem se transferindode volta ao território da Federação.

A maioria está na Ucrânia oriental, na península da Cri-meia, no norte do Cazaquistão e nos países bálticos, mas eles for-mam parcela representativa da população em quase todas as ex--repúblicas soviéticas. Antes membros de uma minoria privilegia-da, agora são vistos e tratados, muitas vezes, como cidadãos desegunda classe. Especialmente nos países bálticos, há toda umahostilidade contra eles, com governos e grupos procurando negar-lhes direitos de cidadania e instando-os a emigrarem. Os conflitosde 2007 em torno do monumento ao soldado desconhecido soviéti-co em Tallin indicam claramente como estas tensões estão latentes.

Esses russos muitas vezes já estão fora do hoje territóriorusso há gerações, sendo descendentes de colonos enviados peloantigo Império ou pela União Soviética. Especialmente nos paísesdo ocidente, como os bálticos, houve casamentos mistos, o quetorna ainda mais difícil definir quem é quem. No caso dos russostransferidos para as regiões muçulmanas, a mistura populacional foimenos forte, mas também ocorreu.

A Federação russa, enquanto Estado, tem o direito e, pro-vavelmente, o dever de proteger as populações russas que vivem no

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exterior, ainda mais quando muitos dos novos Estados estão negan-do a elas os direitos civis e políticos mais básicos, senão claramentediscriminatórios. Mas não há dúvida que essa defesa também é umargumento que Moscou pode utilizar para interferir nos assuntosinternos de seus vizinhos.

Do mesmo modo, muitos desses russos do exterior, incomo-dados com a sua nova situação, gostariam de ver suas regiões de voltaao controle russo ou, ao menos, com fortes vínculos com Moscou. Oleste da Ucrânia, por exemplo, habitado centralmente por russos étni-cos e com laços econômicos ainda fortes com a Rússia, apoiou o can-didato Viktor Yanukovich (defensor de laços maiores com a Rússia)nas eleições de 2004. Claro que a minoria russa está defendendo,acima de tudo, seus próprios interesses e direitos (não sendo, portan-to, mera executantes de ordens de Moscou). Ainda assim, essesacontecimentos na Ucrânia em 2004 indicam como a população derussos étnicos vivendo fora da Rússia, apesar de tudo, é um elementode poder nas mãos do Kremlin para influenciar os vizinhos.

O poder militar também é instrumento de primeira grande-za. Quando do fim da URSS, a maioria das unidades remanescentessoviéticas acabou por se colocar sob o comando de Moscou. Hou-ve, contudo, um grande debate entre alguns dos Estados sucessoressobre como fazer a partilha da herança soviética. Na Ucrânia, porexemplo, como mencionado anteriormente, houve um áspero de-bate entre Moscou e Kiev, no início dos anos 90, a respeito dequem herdaria a poderosa frota do mar Negro e o arsenal nuclearem solo ucraniano, com vitória de Moscou, que conseguiu manter ocontrole da frota e das bases na península da Crimeia.

A maior parte dos Estados sucessores absorveu homens eequipamentos da antiga URSS nos seus novos Exércitos, mas elesherdaram apenas pedaços de uma máquina que era muito maior ecujos principais centros de produção e desenvolvimento militar,além das principais bases, estavam em território hoje russo. A maiorparte da oficialidade e do pessoal treinado para operar as bases e acadeia de comando e controle também era russa e voltou para casa.Assim, os novos Estados se viram sem condições de manter umaforça militar capaz de cumprir funções mínimas, como guarda dasfronteiras e manutenção da ordem interna. Os russos se oferecerampara, com suas unidades, preencher o vácuo, o que foi aceito pelamaioria das repúblicas.

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Assim, ainda hoje, há soldados russos, em números variá-veis, na Moldávia, no Turcomenistão, no Uzbequistão, na Quirquí-zia e em outros locais, além de algumas unidades na Ucrânia e naBielo-Rússia. Eles guardam as fronteiras com a China ou com oAfeganistão, protegem os governos de guerrilheiros e, às vezes, seenvolvem nas disputas locais. Dessa forma, os russos contam comum elemento de importância para manter sua influência em váriosdas antigas repúblicas soviéticas.

Os russos também contam com o fato de que vários dessesEstados que surgiram em 1990/1991 surgiram, como visto, numa“onda” de proclamações de independência sem que, muitas vezes,as próprias elites e povos locais as quisessem. Assim, enquanto osbálticos queriam há muito a independência e se prepararam para elae os armênios e georgianos têm ao menos algum tipo de consciên-cia nacional há séculos, muitas das ex-repúblicas soviéticas estãolonge de ser Estados-nação consolidados, ficando numa dependên-cia até psicológica de Moscou, que conta com essa dependênciapara influir nas mesmas.

A mesma dependência existe em termos econômicos. Amaior parte das ex-repúblicas soviéticas, especialmente as ociden-tais, precisa ainda hoje do petróleo e do gás russos para se mante-rem. A arma energética é, assim, de suma importância para manteralguns dos ex-membros da União Soviética na dependência deMoscou, como exemplos recentes na Ucrânia, na Bielo-Rússia e naGeórgia podem demonstrar.

Além disso, devido ao isolamento geográfico de várias de-las e da herança de superespecialização da era soviética, o mercadorusso ainda é importante para ao menos algumas delas. O Uzbequis-tão, por exemplo, é um dos maiores produtores mundiais de algodão,pois era esse o seu papel dentro da divisão de trabalho soviética. Po-deria ser um grande participante no comércio mundial, mas aindadepende do maquinário agrícola, do mercado e das vias de comuni-cação russas, o que ajuda a aumentar a influência do Kremlin.

Os laços culturais também são fundamentais. Realmente,depois de séculos sob controle russo, muitas das ex-repúblicasmantém vínculos estreitos com o universo russo. Boa parte das pes-soas que vivem em algumas das repúblicas do Cáucaso ou na ÁsiaCentral, por exemplo, apesar da língua e da origem turca, falam

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russo como segunda língua e foram educadas no sistema escolarsoviético. Ainda há laços de parentesco e outros que atravessamfronteiras e facilitam o papel de “irmão maior” da Rússia.

Curiosamente, nem sempre as linhas de ação russa seguemlinhas étnicas ou religiosas claras. Na Armênia, há um intenso con-flito, encerrado oficialmente em 1994, mas ainda latente, com oAzerbaijão pelo controle da região de Nagorno-Karabakh. Os rus-sos apoiaram, na maior parte do tempo, os armênios cristãos contraos muçulmanos azeris, mas, quando do envolvimento russo, porexemplo, na guerra entre o governo da Geórgia e os rebeldes daAbcásia e da Ossétia do sul, foram estes últimos que manifestaraminteresse em se colocar sob a proteção de Moscou e mesmo emaderir à Federação russa, abandonando a Geórgia.

O curioso é que os abcásios são muçulmanos sunitas, en-quanto a Geórgia compartilha a fé cristã ortodoxa dos russos, sendoa Geórgia, inclusive, o único país que aderiu voluntariamente aoImpério russo, ainda no início do século XIX, como forma de seproteger dos muçulmanos do Império turco-otomano. Mesmo as-sim, em alguns momentos, os russos se opuseram aos georgianos,pois outras questões, estratégicas e políticas, também estavam emjogo e rápida guerra entre os dois países, em 2008, vencida pelaRússia, é apenas mais uma confirmação desta hostilidade.

Os casos da Geórgia e da Armênia indicam, de qualquerforma, como o potencial de novas mudanças de fronteiras e confli-tos étnicos é imenso no ex-espaço soviético, e não apenas na Fede-ração russa. Todas as ex-repúblicas soviéticas do Cáucaso, porexemplo, têm, em seu território, minorias étnicas que recusam ocontrole do governo central. Algo natural devido à arbitrariedadecom que as fronteiras entre as repúblicas soviéticas foram traçadase as migrações no seu interior, mas que, agora, com o interesse emvários dos novos Estados em se tornarem Estados-nação homogê-neos, é fonte de conflito e instabilidade.

Enfim, o que parece evidente é que, nesse cenário de ins-tabilidade em que vive hoje o território ex-soviético, os russos con-tinuam uma força importante e ativa, mas é questionável se elesserão capazes de reconstruir o antigo espaço soviético ao seu redor.

Vale ressaltar que essa reconstrução não precisaria se dar,obrigatoriamente, pela anexação territorial. Para alguns geopolíti-

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cos russos, como visto, apenas isso seria aceitável. Para muitosoutros analistas e políticos russos, contudo, uma integração nosmoldes da União Europeia, por exemplo, seria algo perfeitamenteadequado para os interesses econômicos e de segurança da Federa-ção russa num mundo globalizado e interdependente como este doséculo XXI.

É uma hipótese perfeitamente válida e vem sendo perse-guida em iniciativas como a formação da “Comunidade Econômicada Eurásia” (visando aumentar os vínculos econômicos e comerciaisentre os países da Ásia Central e a Rússia) em 2000 e da “Comuni-dade de Estados Independentes”, que surgiu logo após, como jámencionado, o colapso da URSS, mas a própria forma como o espa-ço pós-soviético se construiu oferece dificuldades para esse tipo deprojeto.

Realmente, esse espaço se constituiu, não esqueçamos, so-bre as ruínas da URSS, a qual se formou, por sua vez, sob o territó-rio do antigo Império russo. Dessa forma, alguns dos dilemas eproblemas que se apresentam para Moscou hoje são, portanto, pa-recidos com os que afetaram o Kremlin na era soviética e na épocados czares.

O primeiro problema é que esse espaço só fez algum sen-tido, no decorrer de séculos de história, a partir de um centro depoder, a Rússia. Realmente, a única coisa que reunia as populaçõesasiática da Sibéria com os países bálticos cristãos e com a Quirquí-zia muçulmana é o fato de estes povos e países terem sido parte doImpério russo.

A Rússia, com seu amplo território e ampla população,servia, assim, de centro para áreas periféricas que, sem ele, mante-riam, provavelmente, laços tênues ou inexistentes entre si. SemMoscou, Riga e Tashkent estariam tão distantes como Paris e LaPaz. Assim, o espaço pós-soviético, como foi no passado, não podeexistir sem um núcleo russo forte. O problema é que não apenasesse núcleo se enfraqueceu, como que seus séculos de dominaçãogeraram temor na antiga periferia, o que dificulta a sua reconstru-ção, informal ou não.

Quando a Rússia criou, já em 1991, a CEI, alguns analistasfizeram a suposição de que poderia se constituir, ali, mais um bloco

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econômico e político mundial, nos moldes da União Europeia ou doMercosul. Dadas as reservas das partes componentes frente ao “ir-mão maior” russo, é evidente, contudo, que esse bloco ou seria algono papel, como é hoje, ou só poderia se constituir a partir da sub-missão da periferia ao núcleo russo. Uma relação equitativa entre,digamos, a gigantesca Rússia, a Armênia e o Tadjiquistão só podiaser mera ficção.

A União Europeia, por exemplo, se sustenta no equilíbrioentre alguns polos maiores (Alemanha, França, Grã-Bretanha), norespeito aos países menores e numa certa uniformidade cultural,política e econômica. Já o antigo Império russo ou a URSS, na suaimensa heterogeneidade, só se mantinha pelo predomínio de um gi-gante. Assim, qualquer ideia de comparar a CEI ou qualquer outrobloco organizado por Moscou à União Europeia seria ilógica. Todoe qualquer espaço que se formar ao redor da Rússia será, provavel-mente, dominado por ela, o que ajuda a manter longe alguns poten-ciais candidatos a uma maior integração.

Outro problema enfrentado pelos russos para manter seuantigo espaço é que a desintegração territorial e o enfraquecimentodo centro russo levam inevitavelmente a uma “fuga” das repúblicasem relação a outros espaços e blocos. Como já indicado anterior-mente, os países bálticos já gravitam na órbita ocidental, enquantovários dos novos Estados caucasianos reforçam seus laços com aTurquia e alguns dos da Ásia central olham para a China com inte-resse. A Rússia ainda disputa estes espaços, mas o simples fato defazê-lo, quando, poucos anos atrás, eles eram território sob controledireto de Moscou, indica as dificuldades russas para conservar esseseu “exterior próximo” como sua área de influência exclusiva.

Além disso, com o tempo, a maior parte dos elementos depoder que a Rússia utiliza para manter sua influência no antigo impé-rio tende a enfraquecer. Vínculos econômicos e comerciais outrosserão estabelecidos, seja com o mundo islâmico, seja com a Europa,até como forma de contrabalançar a atração russa, como demonstra ojá citado caso dos oleodutos e gasodutos que estão sendo construídose a crescente presença de produtos turcos e iranianos nos mercadosdesses países.

O mesmo ocorrerá, inevitavelmente, no tocante aos vín-culos culturais, como demonstra a decisão, por vários dos Estados

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da Ásia Central e do Cáucaso, em meados da década de 1990, deabandonar o alfabeto cirílico em favor do latino como forma deafirmar a sua independência cultural frente a Moscou. As identida-des nacionais também tenderão a crescer se e quando a construçãodos novos Estados se completar.

As populações russas no antigo território soviético tam-bém tendem a perder expressão nos próximos anos. Em primeirolugar, porque sua natalidade é bastante inferior a dos cazaques,uzbeques ou turcomenos. E, em segundo, porque muitos russosétnicos estão optando por voltar ao território da Federação Russa,onde se sentem mais seguros. Apenas entre 1993 e 1994, doismilhões o fizeram. Dificilmente as antigas repúblicas soviéticasvão se tornar etnicamente homogêneas, mas a diversidade, ou, aomenos, a presença russa, tende a diminuir com o tempo, o queretira de Moscou um dos seus principais argumentos para atuarnelas.

A influência militar russa no seu “exterior próximo” tam-bém deverá diminuir no futuro, quando as forças militares dos no-vos Estados da Ásia central e do Cáucaso estiverem plenamenteoperacionais. Essa influência nunca cairá a zero mesmo que todasas tropas russas voltem para casa, já que, pela própria geografia, odeslocamento de tropas entre a Rússia e seus vizinhos é muito sim-ples. A força militar russa, além disso, pode ser incapaz de enfren-tar os norte-americanos ou europeus, mas é avassaladora para ospadrões dos seus vizinhos, como demonstra a facilidade com queela derrotou a Geórgia em 2008. Mas ela pode cair bastante se amaioria das unidades russas saírem de onde estão hoje e/ou paísescomo Geórgia ou Casaquistão reforçarem seus laços militares como Ocidente ou a China.

Enfim, parece razoável acreditar, a luz dos acontecimentos,que a Rússia será, sempre, uma força de primeira grandeza, e prova-velmente a dominante, dentro do antigo espaço soviético. Tambémnão é impossível que ela consiga, em médio ou longo prazo, absor-ver a Bielo-Rússia, a Ucrânia e parte do Cazaquistão no seu territórioe manter sua influência sobre boa parte das outras repúblicas. Umareconstrução do Império soviético ou russo ou mesmo a formação deum grande bloco de nações ao redor da Rússia, nos moldes da UniãoEuropeia, contudo, parece bem pouco provável.

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A RÚSSIA E O MUNDO

Em longo prazo, já excluída a hipótese de Moscou voltar aliderar um Império próprio e autônomo ao seu redor, se isolando,duas parecem ser as possibilidades da Rússia dentro da geopolíticainternacional. A primeira seria a formação de uma aliança com aChina e a Índia para contrabalançar o poder ocidental, e, especial-mente, norte-americano no mundo. A segunda seria uma firme alian-ça da Rússia com o mundo ocidental, de forma a reunir forças contraa ascensão chinesa e o Islã.

Uma relação íntima com a Índia não é impossível. Aindana época da União Soviética, Moscou estabeleceu um eixo estraté-gico com Nova Déli. Os indianos precisavam do apoio soviéticopara contrabalançar a aliança entre o Paquistão e a China e a URSSdependia da Índia para conter a presença chinesa e norte-americanana Ásia do sul. Hoje, a Rússia não pode mais vender armas a preçossubsidiados para os indianos, como na época da União Soviética,mas Moscou continua a ser o principal fornecedor de armas e equi-pamentos para Nova Déli, incluindo caças Mig-29 e Su-30, subma-rinos da classe Kilo e tecnologia militar avançada.

Assim, apesar das relações da Índia com os Estados Uni-dos e a China terem melhorado nos últimos anos, inclusive nocampo nuclear, o eixo Moscou-Nova Déli continua ativo, com osdois parceiros desconfiados do crescente poder chinês, incomoda-dos com a influência dos Estados Unidos no mundo e assustadoscom um possível crescimento do islamismo na região. A Índia, as-sim, é um aliado da Rússia, mas apenas enquanto seus interessesforem comuns e apenas no tocante a estes interesses.

Com relação à China, há um histórico de rivalidade entreos dois povos e muitos russos acreditam que suas províncias orien-tais são vulneráveis ou a um ataque militar ou a simples infiltraçãode milhões de chineses pelas fronteiras. Mesmo assim, por váriasvezes, nos últimos anos, Moscou e Pequim têm feito declaraçõesconjuntas sobre como os grandes gigantes asiáticos deveriam seunir para formar um bloco capaz de fazer frente ao poder norte-americano. Em 2005, aconteceram mesmo grandes manobras mili-tares, as maiores já realizadas por chineses e soviéticos desde o fimda URSS, entre os dois países, na região do Oceano Pacífico.

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Retórica à parte, tal situação seria muito improvável. Difi-cilmente poderíamos imaginar uma aliança da China com a Rússiafrente aos Estados Unidos. Em primeiro lugar, porque tanto Pequimquanto Moscou necessitam dos capitais, do mercado e da tecnologia deWashington para manter seu crescimento econômico. Sendo assim, asligações de cada um deles com Washington é muito mais fundamen-tal do que uma aliança com o vizinho. Do mesmo modo, uma avalia-ção realista indica como mesmo a soma das economias e das forçasmilitares dos dois países não reuniria uma força capaz de desafiar opoder global dos Estados Unidos, o que dificilmente pode estimularos defensores de tal aliança em Pequim e em Moscou.

Por fim, apesar dos russos não apreciarem (para dizer omínimo) a expansão da influência norte-americana no seu ex--Império e dos chineses se irritarem com a presença do poder deWashington no Oriente, as rivalidades potenciais russo-chinesas (naÁsia Central, nas fronteiras siberianas e no Pacífico) estão longe deser irrelevantes e dificilmente indicam que um acordo de coopera-ção íntima seria possível. Pode haver cooperação em assuntos co-merciais, econômicos, ecológicos e outros, mas uma parceria es-tratégica efetiva, em oposição ao Ocidente, parece improvável. Paraalguns russos, a oposição – ao menos, verbal – do governo Putin aoOcidente é um erro, já que o verdadeiro perigo à segurança nacio-nal russa seria mesmo a China.

Na verdade, no único momento neste século em que chine-ses e os então soviéticos estiveram unidos em oposição aos EUA(os anos 50), o fizeram apenas em nome da solidariedade ideológi-ca. Quando tal solidariedade se rompeu com a decadência do stali-nismo na União Soviética e a China hesitou em continuar como o“primo pobre” de um bloco que os soviéticos dominavam em todosos sentidos, a aliança se desagregou e chineses e soviéticos tiveramsérios conflitos até recentemente.

Se esse bloco tentasse se rearticular hoje, não só não have-ria nenhuma grande solidariedade ideológica a reuni-los, como osseus interesses econômicos e estratégicos continuariam, como vis-to, a separá-los. Se tal aliança, além disso, se repetisse hoje, o“primo pobre” dessa vez seria a Rússia e é difícil acreditar que elaaceitasse, como a China não aceitou nos anos 50, tal papel. Umprognóstico difícil, pois, para uma aliança que, se implementada,

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poderia efetivamente atrapalhar um pouco o domínio global dosEstados Unidos e reforçar o poder russo, mas que não é provávelem curto prazo, a não ser em nível de discurso.

A segunda possibilidade seria uma aliança firme e total como mundo ocidental. A Rússia imaginava, no início da década de1990, que, com o fim da Guerra Fria, o Ocidente (e, especialmente,os Estados Unidos), a trataria como uma parceira na gerência dosassuntos mundiais, apoiando-a no seu esforço de reconstrução eco-nômica e permitindo que ela exercesse a sua hegemonia no seu “ex-terior próximo”. O Ocidente procurou efetivamente ser compreensi-vo com a Rússia e aplacar seus medos e inseguranças. Foi estabele-cida uma parceria entre a OTAN e a Rússia; empréstimos e recursosdo FMI foram aprovados quando da crise russa de 1998 etc.

No entanto, o Ocidente não tratou a Rússia tão bem comoela esperava. Os maciços investimentos e ajuda econômica nãovieram e o Ocidente não hesitou em avançar na antiga esfera deinfluência russa. Efetivamente, como já observado, Estados Unidose União Europeia consolidaram a sua influência na Europa Orientale no Báltico, enquanto os Estados Unidos ampliaram enormementea sua força na Ásia Central e no Cáucaso, especialmente depois de2001, incluindo o estabelecimento de bases militares. Em 2005,uma viagem do Presidente Bush à Europa incluiu escalas na Letô-nia e na Geórgia, num sinal de aumento da influência norte-americana na região.

A expansão da União Europeia pelo Leste europeu nãoentusiasma Moscou, mas incomoda menos, tanto porque abre novasoportunidades econômicas, como porque, ao menos atualmente, aUnião Europeia tem ambições de hegemonia política muito limita-das. Já a expansão da OTAN e do poder norte-americano pela suaantiga área de influência irritou e irrita bastante os russos, o quelevou, por exemplo, à irada reação de Moscou frente ao desejo dosEstados Unidos em instalar mísseis e radares na República Tchecae na Polônia em 2007 e 2008.

No lugar dessa expansão, a Rússia propunha o aumentodas funções da CSCE (Conferência de Segurança e CooperaçãoEuropeia) ou em seu direito de veto numa OTAN ampliada, o queos aliados ocidentais obviamente negaram. Tal situação tem deixa-do os russos incomodados com o Ocidente, mas a possibilidade de

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um rompimento completo de Moscou com Bruxelas e Washingtonparece remota, e isso por vários motivos.

Em primeiro lugar, a Rússia ainda depende da tecnologia,investimentos e comércio com os ocidentais. Em segundo, ela nãodispõe dos recursos econômicos e militares para formar efetiva-mente um polo rival de poder. Finalmente, mesmo tendo de reagir àpressão geopolítica ocidental, Moscou ainda mantém preocupaçõesmais imediatas, como o fundamentalismo islâmico e o terrorismonas fronteiras do sul e a ascensão chinesa no Oriente, as quais le-vam a uma aproximação com o Ocidente. Enfim, não há sinais vi-síveis de um rompimento de Moscou com Washington e com aUnião Europeia (ainda que as tensões tenham crescido nos últimosanos), mas a ideia da Rússia se tornar um país plenamente ocidentalainda está no terreno das hipóteses.

Na análise dessa hipótese, um exercício de futurologia po-deria ser interessante. Um cenário possível para o futuro da Federa-ção russa no mundo seria a sua incorporação completa ao Ocidente,o que poderia implicar na sua adesão à União Europeia. Mas seriaela uma candidata a tal? A questão divide os russos e não se cogi-tou ainda numa candidatura russa à UE, mas ela não é impossívelnas décadas seguintes. Mesmo supondo que essa candidatura semanifeste, contudo, creio ser difícil a aceitação da Rússia na UniãoEuropeia. E isso pelo próprio gigantismo desta.

Realmente, um gigante territorial do porte da Rússia, com150 milhões de habitantes, grandes forças militares e economia recu-perada seria tão poderoso que sua presença no seio da União Euro-peia destruiria todos os equilíbrios internos e a deixaria sob virtualcontrole de Moscou. Além disso, as fronteiras europeias se estende-riam até o Pacífico e, provavelmente, caso a Rússia absorvesse asáreas de população russa do Cazaquistão, até a Ásia Central.

Assim, é improvável que a Rússia se una à União Euro-peia, mas elas, provavelmente, formarão algum tipo de associaçãomais estreita, ampliando os laços políticos (que vem se solidifican-do desde os tratados de cooperação assinados nos anos 90) e eco-nômicos, também crescentes.

Cumpre ressaltar, a propósito, como, nos últimos anos, acoesão entre os dois polos centrais do mundo ocidental (a Europa e

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os Estados Unidos) tem enfraquecido, com críticas sem fim sendodirigidas a um lado pelo outro. Dada essa contínua fratura, surge opensamento de que surgirão dois “Ocidentes”, com perspectivas eideias diferentes e, potencialmente, em conflito. Se essa hipótese serevelar real, surgiria a pergunta sobre qual dos dois “Ocidentes”seria o aliado preferencial da Rússia.

Dada a proximidade geográfica, os vínculos econômicos ea relativa falta de contradições insuperáveis (ao menos, no mo-mento atual) entre Bruxelas e Moscou, seria mais razoável acreditarque Moscou se inclinaria mais para a Europa do que para os Esta-dos Unidos. Acredito, contudo, que esta é uma falsa questão e quehá mais unindo do que separando os dois lados do Atlântico. Àmedida que o poder chinês e o indiano crescerem, além disso, atendência de reaproximação dos dois polos crescerá, pela simplesnecessidade de compensação. Portanto, ao menos no futuro previsí-vel, esse tipo de opção “entre Ocidentes” não estará na lista de op-ções de Moscou e de nenhum outro país.

A partir do exposto, os cenários possíveis sobre as futurasalianças estratégicas de Moscou são óbvios. Os menos prováveis, ameu ver, seriam uma grande aliança entre chineses, indianos e rus-sos para combater o Ocidente ou uma intensa rivalidade entre aEuropa, os Estados Unidos e a Rússia, com os Estados do LesteEuropeu servindo como peões de batalha. Mais prováveis parecemser a criação de um polo de cooperação entre Moscou e Bruxelasservindo de ponte entre a Europa e o dinâmico Leste Asiático ouuma aliança entre a Europa, os Estados Unidos e a Rússia para en-frentar os gigantes asiáticos emergentes (China e Índia) ou o Islã.

As possibilidades, enfim, são muitas, sendo apenas razoá-vel acreditar que a Rússia, se não voltará mais a se tornar uma su-perpotência no futuro previsível, dificilmente poderá ser completa-mente ignorada nos jogos de poder do século XXI. Como sempretem sido há séculos, a Rússia é e continua a ser, em que pesem seusimensos problemas atuais, uma grande potência, por todos os crité-rios tradicionalmente utilizados para classificar um país como tal.

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CCCCONSIDERAÇÕES FINAISONSIDERAÇÕES FINAISONSIDERAÇÕES FINAISONSIDERAÇÕES FINAIS

No imaginário de alguns povos ao redor do mundo, écomum a sensação que alguns de seus vizinhos, especialmente osmuito extensos territorialmente, são expansionistas, prontos aavançar sobre suas fronteiras, numa fome de terras e poder quenunca teria fim. Muitos sul-americanos pensam isso a respeito doBrasil e alguns círculos bolivianos ou peruanos se assustam, atéhoje, com a ideia de que Brasília, inevitavelmente, tentará conse-guir um litoral no Pacífico. Alguns mexicanos e canadenses pen-sam o mesmo com relação aos norte-americanos, que estariam aespreita do momento de anexar o México ou o Canadá ao seuterritório.

Mitologias à parte, é verdade que alguns Estados forammais bem-sucedidos do que outros, no decorrer da História, emsua expansão territorial. Com uma simples calculadora e algunsdados estatísticos à mão, é possível calcular que os Estados Unidoscresceram 100 km2 por dia entre 1790 e 1890, enquanto o Brasilse expandiu à razão de 34,7 km2 por dia entre 1500 e 1904. Ex-plicar isto requer que recordemos como a expansão territorialsempre fez parte da psiquê dos norte-americanos e também dosluso-brasileiros e, especialmente, que eles tiveram melhores con-dições geográficas para crescerem territorialmente do que outrospovos.

Na verdade, a maior parte dos Estados que hoje controlamextensas áreas territoriais só o fizeram, normalmente, por consegui-rem anexar áreas grandemente despovoadas e/ou habitadas por po-vos militarmente inferiores. Assim, os Estados Unidos, o Canadá, aArgentina, o Brasil e a Austrália só são territorialmente extensosdevido aos desertos, quentes ou frios, e à floresta que ocupam partesubstancial dos seus territórios. Assim, por exemplo, o fato da jo-vem nação norte-americana não encontrar rivais de peso ao se ex-pandir pelo continente colaborou para seu crescimento territorial, o

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que teria sido bem diferente se, por exemplo, as colônias espanho-las na Califórnia tivessem dado origem a um polo de poder indus-trial e político antes da anexação desta pelos EUA.

A Rússia também cresceu, em essência, através da absor-ção dos grandes desertos gelados e quentes da Ásia, na Sibéria, nocírculo polar ártico e no Turquestão. A Rússia, contudo, não se li-mitou a absorver áreas desérticas e pouco povoadas, mas tambémanexou vizinhos de culturas e raças diferente, colocando-os emposição subalterna, mas não os eliminando fisicamente na sua qua-se totalidade como fizeram os argentinos na Patagônia ou os norte--americanos nas grandes planícies da América do Norte.

Esse Império, de qualquer forma, cresceu sem cessar porséculos, como uma mancha de óleo se espalhando pela Ásia eEuropa (só entre 1761 e 1865, o território russo cresceu 48 km2 aodia), e, nesse crescimento, ele provocou, nos seus vizinhos, umasensação de ameaça, de um desejo de expansão eterno e quase in-controlável, gerando toda uma mitologia a respeito.

Faz parte da mesma, por exemplo, o fictício testamentodo czar Pedro, o Grande, no qual ele instava seus sucessores abuscarem os mares quentes ou a existência de um relatório (oMemorando Kotchubey de 1829), o qual, apresentado ao czar Ni-colau I, no mesmo ano, teria definido a política russa para a Ásiapor todo o século XIX e além (PIACENTINI, 1996). Também oesforço russo em direção aos estreitos turcos e ao Oceano Índico,supostamente eterno, seria um sinal do coerente e contínuo desejoexpansionista russo.

Na verdade, é sempre complicado propor que certos paísesseguem tendências “inatas” ou “naturais”, como se os países fos-sem seres vivos, autônomos. Realmente, foi o positivismo do sé-culo XIX que criou a ideia de que a política externa estaria separa-da da interna e que os países teriam, se não fossem mal influencia-dos, objetivos permanentes e comportamentos naturais determina-dos pela geografia e pela natureza. Na realidade, os interesses per-manentes de um país são historicamente datados – o objetivo nacio-nal só existe a partir da concepção momentânea que uma nação,suas elites e seu povo, tem de si e de seu papel no mundo – e seusobjetivos internacionais, assim, podem variar substancialmentesegundo cada período histórico.

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Ao analisarmos a história da Rússia, esse tipo de cuidadodeve estar presente. Devemos, antes de tudo, abandonar a ideia deque o imperialismo e o expansionismo sejam traços permanentes dapsiquê e da história russa e que, portanto, tanto fazia que o paísestivesse sob o comando dos czares, dos líderes do PCUS ou dosatuais governantes russos, já que tudo o que movia, move e moveráeternamente os russos seria a ambição imperialista, que nunca sealteraria ao longo dos séculos.

Esse tipo de visão tem algum tipo de apelo para o leitorcomum, mas não se sustenta na realidade. A história russa é cheiade rupturas (sendo 1917 e 1991 das mais significativas) e a inser-ção internacional do país variou muito conforme o grupo que es-tava no poder, com suas perspectivas e concepções de mundo pró-prias. Suas decisões de política externa com certeza refletiam es-sas perspectivas e a realidade do mundo no momento em que elesviviam, e não eram mero reflexo de um impulso imperialista eter-no e imutável.

Além disso, apesar da relevância do pensamento geopolíti-co na história da formação do espaço russo, o seu papel não podeser superestimado. Como demonstrado ao longo desse livro, as ra-zões que levaram os russos a se expandir pela Eurásia variarammuito no decorrer do tempo, numa combinação de elementos ideo-lógicos, de interesses econômicos e de busca de segurança frenteaos vizinhos. Tal combinação não é a mesma nos séculos XVIII, noXX ou no XXI. Assim, como ressaltou, com razão, Alexander Zhe-bit (1995, 2004 e 2006, entre outros), a expansão russa não derivoude um “gene imperialista” eterno impresso no coração do Estadorusso, mas de uma combinação de fatores que não são apenas geo-políticos e que não está ausente em outros Estados.

Do mesmo modo, está correto Roberto Colin (2007, p. 10)quando este menciona que, desde a Guerra Fria, a Rússia foi demo-nizada e transformada em uma rival do Ocidente – e eterna expan-sionista –, não importando se ela estivesse sob o domínio dos cza-res, dos comunistas ou da atual liderança, formando um mito deagressividade eterna que não corresponde à realidade.

Ainda assim, a geografia, os traços culturais presentes naselites dominantes e outros elementos permitem que identifiquemostendências dentro da ação internacional de determinados Estados.

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Não no sentido de leis imutáveis que nunca podem ser quebradas,mas no de padrões que, dentro de determinados limites e de balizastemporais precisas, permitem que compreendamos o “estilo” de umdeterminado Estado e povo na sua relação com os outros.

No caso russo, isso é visível. Desde a formação do Estadorusso há séculos, certos fundamentos fundadores da cultura russa –como a herança bizantina – permanecem e alguns problemas e tópi-cos se repetem, ao mesmo tempo em que tradições e padrões foramsendo criados. Claro que há sempre especificidades em cada épocae os contornos em que eles se aplicam no mundo real se alteramcontinuamente, mas, em geral, eles estão presentes na história dopaís desde o tempo dos czares. A questão da geopolítica e da inser-ção internacional da Rússia, com certeza, é um desses tópicos.

Dessa forma, apesar de não ser correto, como visto, super-estimar a geopolítica e ver a Rússia como o país imperialista porexcelência, não resta dúvida que a geopolítica (e o impulso imperial)tem um papel na definição da política externa russa e analisar astradições geopolíticas russas, portanto, é compreender um poucomais a Rússia atual.

Assim, o debate geopolítico na Rússia é influenciado porfatores geográficos e históricos que podem ser abordados de formasdiferentes conforme a época, mas que sempre acabam por reapare-cer. A imensidão do território russo, a ausência de fronteiras natu-rais que o definam, a experiência histórica de invasões que destruí-ram o país (como a mongol, a francesa, a alemã e outras) e as ten-dências imperiais de parte das elites russas são apenas alguns deles.Também certos dilemas e questões sempre acabam por reaparecer,seja na Rússia de Pedro, o Grande, na de Stalin ou na de Putin.

O primeiro dilema russo é a sua identidade. O que, afinalde contas, é um russo e o que a Rússia? Até onde vão as suas fron-teiras e quem deve ser considerado como membro da nação russa?Desde os inícios do Estado imperial russo essa questão se colocou eapresenta-se ainda com mais força agora, com o colapso da UniãoSoviética. Afinal, não é por acaso que, na língua russa, existamduas palavras para designar “russo”, ou seja, Russkyi (russo étnico)e Rossyanin (nascido na Rússia e que ali vive, mas que é, ou não,russo étnico), o que indica a confusão que se estabelece quando setenta definir o que é um “russo”.

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Em boa medida, tal situação tem a sua origem na própriaformação do Estado russo. Enquanto ingleses ou franceses primeiroformaram seus Estados-nação para depois formarem seus Impérios, aRússia sempre se definiu como um, reunindo os mais diversos povose nações dentro de uma estrutura imperial. Os seus súditos deviam asua lealdade não a um Estado-nação, mas a instituições outras, comoa Monarquia e o czar. Nunca houve uma Rússia fora do Império russoe isso afeta a sua autoidentidade até hoje (COLIN, 2007, p. 16-28;DEWISCHA, 1994, p. 23-34 e 57-69; ZUBELZÚ, 2007).

Até como subproduto lógico desse debate, aparece outro,já presente séculos atrás e ainda atual, sobre o papel da Rússia nomundo. Por séculos, três grandes escolas geopolíticas (repletas denuances e subdivisões internas – ZHEBIT, 2003 e 2006) têm domi-nado o debate dentro da Rússia e, mesmo hoje, com gradações, elascontinuam presentes.

A primeira é a “europeísta” ou “ocidentalista”. Para esta,dominante, por exemplo, nas épocas de Pedro, o Grande e de Gor-bachev, a Rússia é, acima de tudo, uma nação europeia e ocidental,ainda que atrasada. Seu objetivo de longo prazo deveria ser o derecuperar o terreno perdido e se modernizar em todos os aspectos (esempre com a Europa e os EUA como modelo), para poder, no fu-turo, assumir seu lugar de direito como uma grande potência oci-dental, ao lado de Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e outras.

A segunda é a “pan-eslava” ou “eurasiana nacionalista”.Para esta, a Rússia não é europeia nem asiática, mas algo particular,resultado da fusão do mundo europeu com a cultura dos estepes daÁsia e a tradição bizantina. Assim, a Rússia deveria se orgulhar deser um país europeu, branco e cristão, mas não deveria se sentirocidental e nem procurar se integrar ao Ocidente, sob pena de per-der a sua própria identidade. Proteger esse mundo particular, queincluiria os irmãos eslavos da Ucrânia e da Bielo-Rússia, das amea-ças do Ocidente, do Islã e da China seria a função da Rússia.

A terceira é a “euro-asiática” ou “eurasiana internaciona-lista”. Esta corrente concorda com a anterior sobre que a Rússiaforma uma civilização à parte, mas acredita que a saída para prote-ger o mundo eurasiano das potências oceânicas (leia-se Ocidente e,hoje, Estados Unidos), seria uma aliança com outras potências daEurásia, como a Índia, a China e, talvez, a Alemanha. O seu objeti-

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vo seria manter os norte-americanos longe da Ásia e, ao mesmotempo, combater o mundo muçulmano.

Todas essas teorias e os debates que as acompanham têmorigens longínquas. As duas últimas, por exemplo, estão ligadas àantiga convicção ortodoxa de que Moscou seria a Terceira – depoisde Roma e Bizâncio – Roma, encarregada de unificar e salvar omundo. Elas aparecem e reaparecem segundo os interesses e jogosde poder de cada momento e, em muitos casos, não passam de co-bertura para objetivos políticos e econômicos mais imediatos. Noentanto, talvez seja um erro acreditar que elas são apenas mistifica-ções. Mesmo que seus mitos e justificativas estejam no campo damitologia, e não da História, não resta dúvida que elas identificammuito bem os dilemas da Rússia no decorrer da sua longa história etambém nos dias de hoje.

Realmente, a encruzilhada russa hoje ainda reflete muitoessas questões. Numa primeira hipótese, ela redefinirá a sua identi-dade como um Estado-nação “normal”, ainda que imenso. Nessecenário, ela talvez aceite que outros povos abandonem a Federaçãorussa e passará a se considerar um país ocidental, ainda que dotadode uma cultura própria. Numa segunda, ela continuará a se vercomo um Estado que só faz sentido dentro de um destino imperial eprocurará recuperar o seu antigo território perdido e firmar aliançasque a permitam manter sua independência e capacidade de controledos seus vizinhos.

Evidentemente, a resolução de todos esses dilemas não éalgo meramente intelectual ou teórico. Como já indicado no decor-rer do texto, a decisão dos russos em se definirem como ocidentaisou asiáticos vai depender de fatores objetivos, como a sua recupe-ração econômica e militar, o jogo político interno russo, a formaçãode vínculos econômicos com a Ásia, com o Ocidente etc. Tambémestarão em jogo elementos além do seu controle, como a redistri-buição do poder mundial com a ascensão da China, as ambiçõesdesta na Ásia, o posicionamento dos europeus e dos norte-ame-ricanos frente a Moscou e outros.

Como esclarecido nos capítulos anteriores, ainda há muitadúvida na Rússia sobre os caminhos a seguir. Também o própriocenário internacional nos próximos anos e décadas é incerto (neo--hegemonia norte-americana? Um mundo multipolar? Um novo

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cenário mundial sem grandes potências?) e previsões são, assim,difíceis. Mas, ainda que os sinais atuais que emanam de Moscousejam contraditórios e que o futuro (da Rússia e do mundo) seja umlivro aberto, acredito que o futuro mais provável para a Rússia seráa sua redefinição como um Estado-nação moderno e a sua integra-ção no Ocidente, ainda que como um parceiro à parte, sem incorpo-ração à União Europeia ou à OTAN.

A Rússia tentará, com certeza, manter seu poder e influên-cia frente a seus vizinhos e suas fronteiras ainda poderão sofreralterações, para trás ou para frente, conforme os acontecimentos.Ela tentará também, sempre, ressaltar a sua independência e as suasespecificidades. Mas a possibilidade eurasiana parece pequenadentro do atual cenário internacional. Afinal, uma Rússia isoladaseria muito fraca para ser um polo geopolítico autônomo e umaaliada com a China e a Índia seria apenas um “primo pobre” frenteaos gigantes asiáticos.

De qualquer forma, se a transformação da Rússia num paísocidental, pacífico e próspero ainda está no terreno das especula-ções, nada nos impede de desejar que este seja o seu futuro real.Afinal, um país que viveu sob o domínio dos czares e depois doscomissários soviéticos; que passou por várias guerras, incluindoduas mundiais e uma civil; que construiu e reconstruiu a sua socie-dade e a sua economia várias vezes e que perdeu dezenas e dezenasde milhões de homens em morte violenta talvez precise, e mereça,um pouco de paz.

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NotaIncluem-se nesta listagem os textos utilizados, direta ou

indiretamente, na redação do presente livro, com a exceção dasfontes jornalísticas e de Internet. Evidentemente, a bibliografia dis-ponível sobre alguns dos temas correlatos (como a Revolução de1917 e a Segunda Guerra Mundial) é muito mais numerosa e não seesgota nessa lista.

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SSSSOBRE O AUTOROBRE O AUTOROBRE O AUTOROBRE O AUTOR

João Fábio Bertonha é Doutor em História pela Universida-de Estadual de Campinas e Professor de História na UniversidadeEstadual de Maringá/PR, onde também atua no Mestrado em Histó-ria. É pesquisador do CNPq, com bolsa produtividade, desde 2006.Foi bolsista de doutorado sanduíche do Ministério das relações ex-teriores italiano e da CAPES na Itália em 1995/1996 e, nos anosposteriores, pesquisador visitante na Inglaterra, França, Bélgica,Argentina e Uruguai. Em 2000 e, novamente, em 2008, foi pesqui-sador em universidades canadenses, como bolsista do InternationalCouncil for Canadian Studies.

Em 2008, recebeu também uma Grant da Universidade deMinnesota, para pesquisa de curta duração no seu centro de estudosde imigração. Também foi selecionado para cursos na área de polí-tica internacional e defesa pela Embaixada dos Estados Unidos em2007 e 2008, além de ter sido convidado, nestes mesmos anos, peloMinistério das Relações Exteriores do Brasil para vários eventos naárea de política internacional.

Em janeiro e fevereiro de 2009, foi bolsista da FundaciónCarolina, do governo espanhol, para pesquisa sobre o fascismointernacional durante a Guerra Civil Espanhola em Madrid e, emfevereiro e março deste mesmo ano, frequentou, em Washington, ocurso “Estrategia y politica de Defensa” do Center for HemisfericDefense Studies, como bolsista do Departamento de Defesa dosEstados Unidos.

Fez pesquisas e visitas curtas e participou de Congressos noBrasil, Inglaterra, Itália, Estados Unidos, Argentina, Holanda, Ale-manha, Chile e Paraguai e outros países e publicou dezenas de arti-gos sobre fascismo, antifascismo, relações internacionais e imigra-ção italiana em revistas universitárias do Brasil, Estados Unidos,

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Canadá, Argentina e Itália. Também é palestrante e colunista habi-tual em revistas, jornais e sites da Internet, escrevendo sobre temasda atualidade e relações internacionais. Assessor da Fapesp, daFundação Araucária e de outras revistas e instituições acadêmicas,foi também editor da revista “Diálogos”, do Departamento de His-tória da UEM e orientou vários trabalhos de iniciação científica eMestrado.

Seus principais focos de interesse são: movimentos fascis-tas, antifascismo, integralismo, imigração italiana, geopolítica con-temporânea, estratégia, história militar, relações internacionais,história da Itália e história dos Estados Unidos e do Canadá.

Publicou Sob a sombra de Mussolini: os italianos de SãoPaulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: Anna-Blume, 1999; Fascismo, Nazismo e Integralismo. São Paulo: Áti-ca, 2000; A Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Saraiva, 2001;O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre:Edipucrs, 2001; A Imigração Italiana no Brasil. São Paulo: Sa-raiva, 2004; A Emigração italiana no Brasil (1925), de UmbertoSala, Maringá: Eduem, 2005 (tradutor e apresentador do texto);Os italianos. São Paulo: Contexto, 2005; Geopolítica e relaçõesinternacionais na virada do século XXI: uma história do tempopresente. Maringá: Eduem, 2006; e Sobre a direita – estudos so-bre o fascismo, o nazismo e o integralismo. Maringá: Eduem,2008.

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Esta obra foi impressa em oficinas próprias,utilizando moderno sistema de impressão.

Ela é fruto do trabalho das seguintes pessoas:

Professores revisores: Acabamento:Adão Lenartovicz Afonso P. T. NetoDagoberto Grohs Drechsel Anderson A. Marques

Bibiane A. RodriguesEditoração: Carlos A. P. TeixeiraElisabeth Padilha Emerson L. dos SantosEmanuelle Milek Estela R. Oliveira

Francielen F. de OliveiraÍndices: Luana S. OliveiraEmilio Sabatovski Lucia H. RodriguesIara P. Fontoura Luciana de MeloTania Saiki Luzia Gomes Pereira

Maria José V. RochaImpressão: Maurício MicalichechenDorival Carvalho Nádia SabatovskiMarcelo Schwb Ralden C. da LuzWillian A. Rodrigues Sueli de Oliveira

Terezinha F. Oliveira

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