berenstein corpo e cidade

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    143rev. ufmg, belo horizonte, v.19, n.1 e 2, p.142-155, jan./dez. 2012

    fabiana dultra britto

    Professora Adjunta da Escola de Dana/Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    Coordenadora do grupo de pesquisa LABZAT e da plataforma CORPOCIDADE

    paola berenstein jacques

    Professora Associada da Faculdade de Arquitetura/Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    Coordenadora do grupo de pesquisa Laboratrio Urbano, pesquisadora CNPq

    CORPO&CIDADECoimplicaes em processo

    Recentemente, tericos de vrios campos do conhecimento tm voltado a tratar

    da questo do corpo em suas diferentes reas. Muitas vezes, eles o fazem de

    maneiras bem distintas, quase opostas, em que o corpo considerado desde uma

    forma de cristalizao at uma possibilidade de resistncia ao processo de espetacu-larizao contempornea e, em particular, ao processo de globalizao da economia.

    Ana Clara Torres Ribeiro1nos chama a ateno para uma crise do sujeito corpori-

    ficado diante do mundo da hegemonia do capital financeiro, em simbiose com as

    disputas de capital simblico. Esta viso se caracteriza por nveis crescentes de abs-

    trao e pelo predomnio de leituras reducionistas do espao pblico, que tendem a

    substituir a co-presena por representaes programadas, repetitivas e petrificadas

    da experincia urbana. precisamente nestas circunstncias que a valorizao do

    sujeito corporificado adquire ainda maior relevncia. O estudo das relaes entre

    corpo e cidade pode, efetivamente, ajudar-nos a compreender os processos urbanos

    contemporneos e, por meio do estudo dos usos urbanos do corpo ordinrio, vivido,

    cotidiano2, mostrar-nos alguns caminhos alternativos ao processo de espetaculari-

    zao das cidades contemporneas3. Na lgica espetacular atual, os projetos urbanos

    hegemnicos buscam transformar espaos pbicos em cenrios desencarnados, em

    fachadas sem corpo: pura imagem publicitria. As cidades cenogrficas so espaos

    1 Debates realizados nos

    Seminrios Cidade & Cultura:

    Rebatimentos sobre o Espao

    Pblico Contemporneo

    (2010-2012) e nos Encontros

    Corpocidade (2010).

    2 Referimo-nos ao corpo

    daqueles cuja atividade pbli-

    ca cotidiana implica o uso e

    a experimentao da cidade

    e, desse modo, constitui-se

    como uma possibilidade de

    resistncia espetaculariza-

    o adotada como lgica de

    organizao da espacialidade

    e dinmica social urbana,

    atribuindo ao corpo funode mercadoria, imagem ou

    simulacro. E referimo-nos ao

    espetculo nos termos usa-

    dos por Guy Debord (1997) e

    pelos demais situacionistas

    (JACQUES, 2003).

    3 Ver, entre outros, o artigo

    Espetacularizao Urbana

    Contempornea(JACQUES;

    FERNANDES, 2004).

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    corresponde a diferentes memrias urbanas que se instauram no corpo como

    registro de experincias corporais da cidade, uma espcie de grafia da cidade

    vivida que fica inscrita, mas que, ao mesmo tempo, configura o corpo de quem

    a experimenta.

    Buscamos incorporar a ideia de corpografia tanto na histria das cidades

    e do urbanismo como no pensamento urbanstico contemporneo, isto , das

    memrias urbanas no visveis nas representaes imagticas de cidades, mas

    inscritas nos corpos daqueles que a experimentam. Assim, buscamos uma

    noo processual, baseada nos processos relacionais entre carne e pedra, entre

    corpo e cidade, entre dana e arquitetura, e no somente nas configuraes

    espaciais resultantes desses processos.

    Dana & Arquitetura

    Sabe-se que o dilogo entre o campo da Dana e o da Arquitetura no re-

    cente, embora ainda pouco explorado no Brasil5. A maioria dos exemplos

    de aproximao entre esses dois campos, contudo, acontece pela iniciativa da

    Dana. Apesar de deixarem entrever uma prtica tipicamente descompassada

    de seus discursos afirmadores de interdisciplinaridade, quando analisadas em

    suas denominaes e formataes, h hierarquizao ou sujeio de uma rea

    pela outra. Muitas vezes camuflado de boa f auto-afirmativa, esse tipo de mo-

    vimento aproximativo s cumpre somar uma coisa outra, ao tratar aspectos

    de uma rea como se fossem elementos intrnsecos da outra, como nos cls-

    sicos casos em que se trata a arquitetura como cenrio da dana ou em que se

    trata a dana como justificadora de estruturas arquitetnicas.

    No se pretende aqui enveredar pela anlise detalhada desses exemplos

    e de outros tantos casos de iniciativas de entrecruzamento dos dois campos,

    mas apenas valermo-nos de tais antecedentes para focalizar na citada tendn-

    cia hierarquizao e sujeio entre os dois campos. Ela servir como par-

    metro para refletir acerca de padres relacionais habitualmente praticados em

    discursos e comportamentos interdisciplinares, bem como para propor um

    outro registro de enquadramento para a investigao das possibilidades de ar-

    ticulao entre Dana e Arquitetura: um caminho que permita conduzir suas

    questes especficas por caminhos de construo argumentativa, abertos por

    discusses compartilhadas.

    5 No que se refere ao campo do

    urbanismo, isto acontece ora em

    debates tericos abrigados em

    publicaes, tais como a revista

    Nouvelles de Danse(2000), ora em

    propostas estticas baseadas na co-

    laborao de arquitetos em projetos

    coreogrficos, como nos projetos

    do coregrafo belga Frdric Fla-

    mand (ex-membro da companhia

    PlanK, depois da Chaleroy Danse e,

    atualmente, do Ballet National de

    Marseille); ou, ainda, em festivais de

    dana que tematizam a arquitetura

    das cidades como espao de apre-

    sentao para dana, tais como a

    Bienal de Santos SESC ou o projeto

    Danas na Cidade(Lisboa), atual-

    mente denominadoAlkantara.

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    As noes genricas de corpoe de espaocostumam ser alvo dos propsi-

    tos associativos entre Dana e Arquitetura, provavelmente pela anteriorida-

    de que sugerem aos ideais de caracterizao das coisas pelas suas unidades

    mnimas, vigentes no imaginrio do senso comum (e, at mesmo, do co-

    nhecimento especializado). Tudo indica, contudo, que as articulaes entre

    Dana e Arquitetura podem ser bem mais complexas em seus procedimentose propsitos; e bem mais consequentes, em seus efeitos e derivaes, do que

    prope o primarismo dessas generalidades. No apenas pelo que suas respec-

    tivas especificidades sugerem como vias de interlocuo entre os campos a que

    pertencem, mas, antes e sobretudo, pela possibilidade do exerccio associativo

    dada sua natureza processual para promover a expanso de um campo no

    outro. a temporalidade que articula corpo e espao, instaurando movimento.

    E parece ser esta a chave do raciocnio para compreender e analisar seus mo-

    dos relacionais e a configurao de suas resultantes cooperativas: ambincias6

    e corporalidades.

    Todo relacionamento instaura-se a partir de pontos de conexo advindos

    de algum tipo de similiaridade reconhecida entre as diferentes propriedades

    dos termos relacionados. So, portanto, as propriedades distintivas das coisas

    que estabelecem as suas condies conectivas e, consequentemente, de rela-

    cionamento com outras. Conhec-las, muito embora permita deduzir possibi-

    6 A noo de ambincia aqui

    adotada refere-se qualificao dosambientes resultante de seus usos

    pelos habitantes e parte dos estudos

    desenvolvidos por pesquisadores do

    Centre de recherche sur lespace sonore

    et lenvironnement urbain (CRES-

    SON), que faz parte da UMR 1563

    Ambiances architecturales & urbaines

    do Centre national de recherche scien-

    tifique(CNRS), apesar de ser um

    pouco distinta daquela adotada por

    estes ltimos. Os pesquisadores do

    CRESSON trabalham com a noode ambincia h bastante tempo e

    j produziram diversas publicaes

    sobre o tema, dentre as quais cita-

    mos a mais recente, organizada pelo

    criador desta noo, Jean Franois

    Augoyard (2010). Para mais infor-

    maes, remetemos tambm ao site

    do Rseau International Ambiances

    (2012), rede internacional de pesqui-

    sadores que tratam da questo.

    arquivo pblico da cidade de belo horizonte/ascom

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    luciano bata

    lidades de conexo, no suficiente para explicar seus procedimentos relacio-

    nais e tampouco para prever o grau de sucesso deles a ressonncia de seus

    efeitos. Porque os relacionamentos no so a simples soma de configuraes,

    tal como sugerem as somas algbricas e as equaes matemticas, as quais

    so desprovidas de tempo e de espao(FLUSSER, 2007, p. 26). Os relaciona-

    mentos soprocessose, como tais, no ocorrem no vcuo, mas engendram-sepela ao da temporalidade que ininterrupta e promove modificaes irrever-

    sveis nos estados das coisas.

    Em sendo oprocessoum fenmeno que descreve a ocorrncia simultnea e

    contnua de muitas relaes de diferentes naturezas e escalas de tempo, salvo

    em condies modelares, no h como identificar seu comeo ou seu fim

    visto que no descrevem trajetriasde um ponto a outro ou sequer distin-

    guir precisamente quais os termos nele envolvidos. Essa lgica processualde

    compreenso das dinmicas relacionais contradiz as ideias de origem ma-

    triz, influncia, identidade e genealogia to em voga nos atuais discursos de

    interpretao historiogrfica e crtica da cultura e da arte7, e to imprprias

    compreenso de sistemas complexos no-lineares, como o so a prpria vida,

    a construo da histria e a produo de ideias.

    Importa, pois, destacar esse sentido de continuidade expresso no modo

    relacional de existncia das coisas, para diferenci-lo do sentido apriorstico

    7 Para uma introduo did-

    tica aos principais argumentos

    atualmente em voga nos discursos

    interpretativos da cultura acadmi-

    cos ou no frente ao processo de

    globalizao, remetemos ao estudo

    de Moacir dos Anjos (2005), Local/

    Global: arte em trnsito, integrante

    da excelente coleo Arte +, dirigida

    por Glria Ferreira e publicada pela

    Jorge Zahar Editor (RJ).

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    ou essencialista que costuma embasar os argumentos e pro-

    cedimentos meramente acasaladores de ideias, pessoas e situ-

    aes. Importa diferenciar o pressuposto que define as coisas

    como entidades dadas daquele que as considera como siste-

    mas dinmicos um pressuposto coevolutivo, entendido aqui

    como coimplicao: a noo de que todas as coisas existentes

    so correlatas, em alguma medida, porque partilham as mes-

    mas condies de existncia e, assim, afetam-se mutuamen-

    te8.

    Ao reconhecer o carter genuinamente criativodos rela-

    cionamentos porque configurador de estruturas chega-se

    a um sentido de continuidadetotalmente avesso ao de que a

    matria no se conserva. Tal carter afeito noo dinmicade reorganizao contnua das configuraes existentes pela

    ao dos relacionamentos que se estabelecem contra a noo

    conservacionista de preservao da dita identidade das coi-

    sas em si dado com outras em seu ambiente de existncia9,

    criando assim outras ambincias, conforme sugerimos adian-

    te.

    O bilogo Richard Dawkins (1991) prope pensar as coisas

    existentes como designs evolutivos, ou seja, como configuraes

    resultantes das snteses transitrias alcanadas pelo modo

    como se articulam funo e formato de cada coisa, conforme

    relacionam-se com outras, ao longo do tempo de sua existn-

    cia. O designdas coisas seria, ento, simultaneamente causa e

    efeito da configurao (tambm transitria) do seu ambiente

    de existncia, o qual se livra do seu sentido meramente topo-

    grfico para adquirir importncia codeterminante tanto dascondies de historicidade como das prprias corporalidades.

    Nesta perspectiva, possvel pensar o debate entre Dana

    e Arquitetura no como um encontro de campos disciplinares

    distintos, mas como um processo de construo de uma zona

    de transitividadeentre os campos. Tal zona baseia-se na coope-

    rao entre as condies relacionais de cada campo e na busca

    de conexes que mobilizem experincias reorganizativas de

    8 A dinmica de coimplicao entre corpo e ambiente,

    nos termos processuais que apresentaremos aqui, foi

    originalmente formulada no artigo Corpo e Ambiente,

    publicado em Cadernos do PPGAU (BRITTO; JACQUES,

    2008) e foi articulada, juntamente com o sentido de

    coplasticidade, s discusses empreendidas ao longo

    da realizao da pesquisa PIRVE Laseptisation des am-

    biances pietonnes au XXIe sicle: entre passivit et plasticitdes corps en marche. A pesquisa foi realizada entre 2009 e

    2010 nas cidades de Salvador/BR, Montreal/CA e Greno-

    ble/FR por uma equipe multidisciplinar da qual tomamos

    parte, sob a coordenao de Rachel Thomas CRESSON/

    CNRS.

    9 justamente pela plasticidade dos seus designsque

    as coisas buscam sua permannciano tempo aqui en-

    tendida na acepo dada pela Teoria Geral dos Sistemas,

    isto , no como o que se mantm e se preserva como

    imutvel, mas como aquilo que no cessa sua continui-

    dade de ao.

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    10 Tomamos aqui a

    definio de coerncia

    sugerida pelo filsofo Paul

    Thagard (2010) em seu livro

    Coherence in Thought and

    Action: a mxima satisfao

    de mltiplas restries.

    Esta ideia permite pensar a

    instaurao de coernciascomo uma resultante da

    reorganizao dos sistemas

    que, envolvidos em processo

    coevolutivo, precisam satis-

    fazer as mltiplas restries

    impostas pelas configura-

    es dos sistemas e sub-

    sistemas (ambientes) com

    que interagem, conforme

    proposto em Temporalidades

    em Dana: parmetros para

    uma histria contempornea(BRITTO, 2008).

    seus respectivos regimes de funcionamento e estados de equilbrio, de modo que

    favoream a produo de novos sentidos ao sistema que integram e a seus ambien-

    tes de existncia ou, como sugere o filsofo Paul Thagard (2000), a instaurao

    de coerncias10.

    Semelhante aos ns de trnsito das feiras medievais, formados pelo encontro

    das trajetrias dos grupos nmades de mercadores, cuja subsistncia advinha do

    sistema de troca dos seus produtos, esse campo de conectividade entre Dana e

    Arquitetura, paradoxalmente, tambm garante a continuidade de seus processos

    particulares de consolidao como campos disciplinares especficos.

    A Arquitetura, com seu forte teor de espacialidade, mostra-se ancorada por sli-

    da produo intelectual que lhe confere uma contextualizao amplamente referen-

    ciada, seja pelos discursos preservadores ou atualizadores. J a Dana, com seu forte

    teor de temporalidade, parece refm de discursos descontextualizadores cuja pre-teno sempre inaugural dificilmente favorece a consolidao de uma tradio

    terica. Certamente, no ser a simples permuta dos conceitos de tempo e espao de

    uma rea para outra que ajustar tal descompasso, pois as reas de conhecimento,

    tal como ambientes de existncia para os conceitos, constituem diferentes regimes

    de operao e validao conceitual, diferenciados justamente pelos processos de co-

    determinao adaptativa experimentados em cada contexto.

    O exerccio de articulao entre Dana e Arquitetura passa, necessariamente,

    pela desterritorializao de alguns dos conceitos mais caros s suas respectivas es-

    pecificidades como o so tempo e espao, corpo e ambiente. Desse modo, poder-

    se-o esboar novos modos relacionais, garantidores de novos nexos de sentido,

    tanto aos conceitos como s prprias reas de conhecimento aqui sugeridas: corpo-

    reidades e ambincias.

    Corpografias & Cenografias

    Ao buscarmos articular corpo e cidade (entendida como ambiente experimen-

    tado pelo corpo), dana e arquitetura, corporeidades e ambincias, partimos

    do princpio de que a cidade percebida pelo corpo como conjunto de condies

    interativas e o corpo expressa a sntese dessa interao, configurando uma corpogra-

    fiaurbana: uma espcie de cartografia corporal, em que no se distinguem o objeto

    cartografado e sua representao, tendo em vista o carter contnuo e recproco da

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    dinmica que os constitui. Esta uma ideia baseada no pressuposto de que a per-

    cepo corporal das cidades se d pela ao do corpo ambientada nelas e no como

    sua resultante (NO, 2004). Ela , portanto, a prpria experincia sensrio-motora11

    vivida no ambiente urbano que, por sua vez, constitui a percepo de cidade que os

    corpos dos seus habitantes estabilizam

    singularmente como corporalidade.

    As corpografias formulam-se como

    estados transitrios das corporalidades

    que o corpo processa, relacionando-se

    com tudo o que faz parte do seu am-

    biente de existncia: outros corpos, ob-

    jetos, ideias, lugares, situaes, enfim, a

    cidade, a qual pode ser entendida comoum conjunto de condies para essa di-

    nmica ocorrer. O ambiente (urbano,

    inclusive) no para o corpo meramen-

    te um espao fsico, disponvel para ser

    ocupado, mas um campo de processos

    que, instaurado pela prpria ao inte-

    rativa dos seus integrantes, produz con-

    figuraes de corporalidades e qualifica-

    es de ambientes: as ambincias.

    As corpografias permitem tanto

    compreender as configuraes de cor-

    poralidade em termos de memrias

    corporais resultantes da experincia de espacialidade, como compreender as confi-

    guraes de ambincias urbanas em termos de memrias espacializadas dos corpos

    que as experimentaram. Elas expressam o modo particular de cada corpo conduzira tessitura de sua rede de referncias informativas, a partir das quais o seu relacio-

    namento com o ambiente pode instaurar novas snteses de sentido que no apenas

    complexifiquem suas habilidades perceptivas e coadaptativas, mas que, simultane-

    amente, requalifiquem as condies interativas das ambincias geradas nesse pro-

    cesso.

    A cidade concebida enquanto um campo de processos atua no somente como

    um co-fator de configurao da corporalidade de seus habitantes mas, inclusive, como

    Ao articularmoscorpo e cidade,

    dana e arquitetura,corporeidades e

    ambincias, partimos

    do princpio de quea cidade percebidapelo corpo como

    conjunto de condiesinterativas e o corpoexpressa a sntese

    dessa interao,configurando umacorpografia urbana

    11 Ns nos distanciamos

    de formulaes comumente

    adotadas no campo da Arqui-

    tetura e do Urbanismo acer-

    ca da experincia corporal de

    espao e lugar, tais como no

    clssico livro Espao e lugar:a perspectiva da experincia,

    de Yi-Fu Tuan (1983), em que

    se compreende a experincia

    sensrio-motora como uma

    dentre as outras diferentes

    maneiras de experienciar

    os lugares ttil, visual,

    conceitual. Ao contrrio, ado-

    tamos aqui a compreenso

    da atividade sensrio-mo-

    tora como sendo uma ao

    perceptiva do corpo (NO,op. cit.), cuja ocorrncia

    engaja todos os sentidos de

    maneira integrada (DAM-

    SIO, 1996) e constitui a base

    dos processos de elaborao

    da estrutura conceitual de

    um organismo (LAKOFF;

    JOHNSON, 1999), conforme

    proposto por estudos

    desenvolvidos nos campos

    das cincias cognitivas e

    neurocincia.

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    12 O sentido de continuidade aqui atribudo co-

    implicao entre corpo e ambiente j foi apresentado

    nos artigos Corpo e ambiente: co-determinaes em

    processo(BRITTO, 2008) e Processo como lgica de

    composio na Dana e na Histria (BRITTO, 2009).

    13 A idealizao da Plataforma (2008-2012) deu-se ao

    longo do processo de preparao do evento Corpocidade:

    debates em esttica urbana 1, realizado em outubro de

    2008 pelo Programa de Ps-Graduao em Dana da

    UFBA, como primeira iniciativa de ao conjugada entre

    professores de Arquitetura e Urbanismo e Dana e Artes

    Visuais das Universidades Federais da Bahia e do Rio de

    Janeiro. Esta iniciativa tem como antecedente a experi-

    ncia de sala de aula compartilhada na disciplina Esttica

    Urbanae os projetos de pesquisa colaborativos, os quais

    instauraram afinidades tanto de postura crtica sobre o

    tema como de interesse por aes pblicas de articulao

    entre teoria e prtica no enfrentamento do problema

    da despolitizao da experincia pblica nas cidades

    contemporneas.

    14 Uma discusso mais aprofundada quanto aos

    efeitos de pacificao do espao pblico e esterilizao

    da esfera pblica nos contextos urbanos contemporneosencontra-se no artigo Notas sobre espao pblico e imagens

    da cidade(JACQUES, 2009).

    15 Neste campo de preocupao temtica e enfatizan-

    do os efeitos dessas transformaes urbansticas sobre

    as ambincias urbanas, desenvolveu-se a pesquisa A

    assepsia dos ambientes pedestres no Sc. XXI entre

    passividade e plasticidade do corpo em movimento

    (JACQUES, op. cit.).

    condio de continuidade das prprias corpografiasque contri-

    bui para formular12.

    justamente o interesse pelo estudo dessa dinmica de

    co-implicao entre corpo e cidade, expressa na ideia de cor-

    pografia, que tomamos por base para criar a Plataforma Cor-

    pocidade (2008-2012): uma base de mobilizao de ideias e

    pessoas, voltada para a realizao de aes pblicas como de-

    bates, prticas pedaggicas, artsticas e editoriais, capazes de

    problematizar as atuais condies de articulao entre corpo,

    cidade, arte, urbanismo, cultura e esfera pblica13.

    As transformaes urbansticas recentemente constata-

    das nas cidades contemporneas intensificaram questes j

    instauradas desde o incio do processo de modernizao dasgrandes capitais, no que concerne privatizao dos espaos

    pblicos, tornados uniformes em sua paisagem e segrega-

    trios em sua dinmica social14. Promovidas com justifica-

    tivas que vo desde as j clssicas preocupaes sanitaristas

    at preocupaes mais atuais relacionadas com segurana,

    sustentabilidade, acessibilidade e ecologia15 e que possuem

    profundas consequncias para as condies de sociabilidade e

    mesmo corporalidade de seus habitantes, tais transformaes

    demandam um esforo de reflexo crtica capaz de lidar com

    o problema das relaes entre corpo e cidade, de modo a sub-

    sidiar o necessrio redesenho de suas condies participativas

    na constituio da vida pblica.

    Esta espcie de cartografia corporal, as corpografias urba-

    nas, em que no se distinguem o objeto cartografado e sua

    representao, tendo em vista o carter contnuo e recprocoda dinmica que os constitui, pode ser vista como um discreto

    contraponto, ou desvio, atual espetacularizao das cidades

    contemporneas, entendida como um processo globalizado,

    produtor de grandiosas cenografias urbanas.

    Cabe, ento, diferenciar cartografia, coreografia e corpo-

    grafia. Uma cartografia urbana j um tipo de atualizao do

    projeto urbano, na medida em que descreve um mapa da cida-

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    de construda e, muitas vezes, j apropriada e modificada por seus usurios. Uma

    coreografia pode ser entendida tanto como um projeto de movimentao corporal

    ou seja, um projeto para o corpo (ou conjunto de corpos) realizar como um pro-

    jeto urbano, um desenho (ou notao), uma composio (ou roteiro). No momento

    da execuo de uma coreografia, da mesma forma como ocorre com a apropriao

    do espao urbano, que difere do que foi projetado, os corpos dos bailarinos tambm

    atualizam o projeto e realizam, ao executarem a dana, o que poderamos chamar

    de uma cartografia da coreografia.

    Diferentemente desses dois modos

    configurativos das relaes corpo-

    espao e corpo-cidade, em que esto

    claramente distintos o projeto e seu

    resultado, a corpografiaexpressa umadinmica de coimplicao contnua

    entre a ao do corpo e sua autocon-

    figurao. Portanto, ela no se con-

    funde nem com a cartografia nem

    com a coreografia e tampouco seria

    uma cartografia da coreografia (ou

    carto-coreografia que expressa a dan-

    a realizada), nem uma coreografia

    da cartografia (ou coreo-cartografia,

    que expressa um projeto de dana

    criado a partir de uma pr-existncia

    espacial).

    Essas corpografias explicitam os

    padres de motricidade e organiza-

    o corporal resultantes das experi-ncias interativas entre as condies

    biolgicas do corpo e as contextuais

    do ambiente, que podem ser carto-

    grafadas, mapeadas ou ilustradas,

    como alguns artistas e urbanistas j o fizeram, mas que no dependem de uma re-

    presentao grfica para tornarem-se visveis, pois a prpria manifestao dessas

    corporalidades que corresponde s corpografias.

    A experincia corporaldos praticantes

    ordinrios das cidades

    atualizam os projetosurbanos e o prpriourbanismo, por meioda prtica, vivncia

    ou experinciacotidiana dos espaos

    urbanos. A cidadedeixa de ser somente

    uma cenografianomomento em queela vivida e esta

    experinciainscreve-se no corpocomo padro de ao

    perceptiva

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    16 Uma descrio mais

    especfica desse processo

    pode ser encontrada no arti-

    go Espetacularizao Urbana

    Contempornea (JACQUES,2004).

    Diferentes experincias urbanas podem ser inscritas em um mesmo corpo e

    diferentes corpos podem experimentar uma mesma situao urbana, mas as cor-

    pografiassero sempre nicas (como so as experincias), e suas configuraes,

    sempre transitrias.

    As corpografias urbanas, que seriam estas cartografias da vida urbana inscritas

    no corpo do prprio habitante, revelam ou denunciam justamente o que o projeto

    urbano exclui, na medida em que expressam usos e experincias desconsideradas

    pelo projeto tradicional. Tais corpografias explicitam as microprticas cotidianas

    do espao vivido, as apropriaes diversas que qualificam o espao urbano, for-

    mulando, assim, ambincias. J as cenografias urbanas, por seu turno, tanto expli-

    citam como resultam do hoje hegemnico processo de espetacularizao urbana16

    e esto diretamente relacionadas a uma diminuio da experincia corporal das

    cidades enquanto prtica cotidiana, esttica e poltica da contemporaneidade.Os novos espaos pblicos contemporneos, cada vez mais privatizados e or-

    ganizados segundo a lgica do consumo, so restritivos sua apropriao cotidia-

    na pelos habitantes, promovendo a reduo da ao urbana, o condicionamento

    da experincia corporal pela espetacularizao das cidades que se tornam, assim,

    simples cenrios ou espaos desencarnados. O estudo das relaes entre corpo e

    cidade, entre corporalidade e ambincia, pode mostrar-nos alguns desvios desta

    lgica espetacular que concebe a cidade contempornea como uma simples ima-

    gem de marca ou logotipo, a que chamamos cenografias urbanas. So desvios que

    representam alternativas possveis ao espetculo urbano por meio da transforma-

    o das cenografias urbanaspela apropriao, ou seja, pelo uso e pela profanao

    (AGAMBEN, 2007) da cidade, seus espaos e edificaes. Trata-se de outra forma

    de apreenso urbana e, consequentemente, de reflexo crtica e de interveno na

    cidade contempornea.

    A cidade, ao ser praticada, deixa de ser cenrio e ganha corpo pelo uso coti-

    diano, tornando-se outrocorpo: uma alteridade com a qual o corpo do cidado serelaciona sob a mediao dos projetos e planejamentos urbanos que disciplinam

    essa dinmica relacional com regras segregatrias, baseadas em princpios de as-

    sepsia, acessibilidade, segurana e estetizao, e que apenas contribuem para a

    manuteno da dissociao entre corpo e cidade.

    A experincia corporal, sensrio-motora, dos praticantes ordinrios das cida-

    des, segundo Michel de Certeau (1994), ou os homens lentos, como diria Milton

    Santos (1996), atualizam os projetos urbanos e o prprio urbanismo, por meio

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    da prtica, vivncia ou experincia cotidiana dos espaos urbanos. Estas prticas

    cotidianas contrapem-se imobilidade sugerida pela lgica do espetculo, da

    imagem ou do logotipo em que se baseiam os projetos urbanos contemporneos.

    Os urbanistas indicam usos possveis para o espao projetado, mas so aqueles

    que o experimentam no cotidiano que os atualizam. So as apropriaes e impro-

    visaes feitas nos espaos que instauram dinmicas que legitimam ou no aquilo

    que foi projetado, isto , so essas experincias do espao que os reinventam. Para

    os praticantes ordinrios, a cidade deixa de ser somente uma cenografia no mo-

    mento em que ela vivida e esta experincia, pela constncia de prtica, inscreve-

    se no corpo como padro de ao perceptiva. Dessa forma, a cidade sobrevive e

    resiste espetacularizao no prprio corpo de quem a pratica, nas corpografias

    resultantes de sua experimentao, uma vez que essas corporalidades, por sua

    simples presena e existncia, denunciam a domesticao dos espaos e sua con-verso puramente cenogrfica17.

    As relaes perceptivas que se estabelecem com a cidade, as quais derivam

    das experincias sensrio-motoras dos espaos (espetaculares ou no) em suas

    diferentes temporalidades, formam, assim, um desvio hipertrofia da visualidade

    promovida pela cidade-logotipo ou pela cidade-outdoor, composta de cenrios es-

    petacularizados, desencarnados. Do ponto de vista do urbanismo, esta experincia

    da cidade, que se instaura no corpo, pode ser pensada como uma forma molecu-

    lar18de resistncia ao processo molar de espetacularizao urbana contempornea.

    O processo de espetacularizao est, portanto, diretamente relacionado do-

    mesticao da experincia urbana corporal, sensvel e perceptiva, na contempora-

    neidade. No urbanismo contemporneo, as relaes de coimplicao entre corpo

    e cidade so pouco exploradas ou at mesmo desprezadas. Tal distncia, ou desco-

    lamento, entre a prtica profissional urbanstica e a prpria experincia da cidade,

    tem se mostrado desastrosa para a constituio do espao urbano e sua esfera

    pblica. O estudo das corpografiasurbanas pode contribuir para a compreensodesse processo e auxiliar no questionamento crtico dos atuais projetos urbanos

    cenogrficos contemporneos, que vm sendo realizados no mundo inteiro, se-

    gundo uma mesma estratgia privatizadora, homogeneizadora e pacificadora dos

    espaos pblicos.

    Ao valorizar a experincia corporal da cidade, este estudo pode ajudar os urba-

    nistas a apreender corporalmente a cidade, tomando a dinmica interativa entre

    corpo e cidade como parmetro de articulao entre polticas pblicas e territrios

    17 As errncias, entendi-

    das aqui enquanto estmulo

    experincia corporal

    da cidade, encontram-se

    apresentadas e discutidas

    no captulo Elogio aos

    Errantes (JACQUES, 2006) e

    desenvolvidas no livro hom-

    nimo (JACQUES, 2012).

    18 Usamos aqui a distino

    entre molar e molecular

    proposta por Flix Guattari

    e Suely Rolnik (1986) em

    Micropoltica, Cartografias do

    Desejo.

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    urbanos, o que efetivamente poderia conduzir a uma reflexo e a uma prtica

    mais incorporada do urbanismo. Valorizar os processos de incorporao da ci-

    dade no corpo e do corpo na cidade e a experincia corporal da cidade como

    possibilidade de microrresistncias ou desvios da lgica espetacular parece ser

    um importante passo para se instaurar um debate que contribua para atualizar os

    modos de formulao da cidade, cultura e arte contemporneas, pelo redesenho

    de suas condies participativas na elaborao do espao pblico contemporneo.