o corpo anoréxicoo corpo anoréxico

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica Juliana Costa Ribeiro O corpo anoréxico O corpo anoréxico O corpo anoréxico O corpo anoréxico Dos abusos midiáticos às experiências de novos processos comunicativos São Paulo 2009 2009 2009 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica

Juliana Costa Ribeiro

O corpo anoréxicoO corpo anoréxicoO corpo anoréxicoO corpo anoréxico

Dos abusos midiáticos às experiências de novos processos comunicativos

São Paulo

2009200920092009

Page 2: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

II

Juliana Costa Ribeiro

O corpo anoréxicoO corpo anoréxicoO corpo anoréxicoO corpo anoréxico

Dos abusos midiáticos às experiências de novos processos comunicativos

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de

MESTRE em Comunicação e Semiótica,

sob orientação da Profª Doutora Christine

Greiner.

São Paulo

2009

Page 3: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

III

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________

____________________________________________________

____________________________________________________

Page 4: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

IV

Dedico essa dissertação à minha irmã Letícia

que durante a adolescência sofreu com transtornos alimentares

e a Juliana Maia (in memoriun)

colega da faculdade vítima de anorexia.

Page 5: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

V

Agradecimentos

Aos meus pais, Leonor e Marco Polo, pelo incentivo e por acreditarem;

À Angel Vianna, pela grande mestra e amiga que é;

À Christine Greiner, pela generosidade, cuidado e orientação;

À Helena Katz e Rosane Precisosa, pela leitura e comentários generosos a respeito do

trabalho;

Aos professores Amálio Pinheiro e Jorge Albuquerque pelos ensinamentos;

À todos os professores do Programa de Comunicação e Semiótica;

À todos os colegas e amigos que participaram desse processo;

Em especial à Lilá, Anabel, Analu e Anastácia, pela confiança de dedicação.

Page 6: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

VI

Resumo

O aumento dos casos de distúrbio alimentar nas últimas décadas vem atraindo a

atenção de estudiosos do corpo em diversas áreas de conhecimento. Atualmente, a mídia e a moda enfatizam a necessidade de a mulher ter um corpo magro e jovem. Associam a esse padrão estético a felicidade, a riqueza, a saúde e o sucesso. A exigência do corpo magro é mais presente em grupos sociais que vivem conectados às informações que circulam em larga escala pelo mundo. O medo da rejeição é normalmente apontado como causa imediata para essa ação radical. Nesta pesquisa, o objetivo principal é analisar como se dão os processos de comunicação do corpo anoréxico com o seu ambiente e as possíveis modificações, ao vivenciar práticas corporais como a técnica Vianna. Trabalharemos com a hipótese de que pessoas com anorexia vivem sob o paradigma da dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o controle da primeira sobre o segundo. Para entender o sintoma da distorção dos mapas corporais no cérebro, analisamos os estudos do neurocientista António Damásio (1995) e o conceito de mente entranhada dos americanos Lakoff e Johnson (1999). Apresentamos, em seguida, dados históricos acerca de um surto de anorexia ocorrido na Idade Média, hoje conhecido por anorexia santa, e a anorexia nervosa da atualidade, a fim de discorrer sobre a dualidade mente/corpo espírito/matéria presente nos dois casos. Para tanto, discutiremos também o fenômeno dos abusos midiáticos em anúncios publicitários, jornais, livros, televisão e internet, ao qual é atribuída uma relação de causalidade com a anorexia nervosa contemporânea. Como fundamentação teórica, estudamos as pesquisas de Katz e Greiner (2005) sobre o corpomídia, que propõe o corpo como mídia primária da comunicação; a de Gail Weiss (1999), acerca da formulação de imagens corporais; a de Paul Churchland (2004), que mapeou as diversas modalidades de dualismos cartesianos; e as pesquisas teóricas das brasileiras Letícia Teixeira (2008) e Neide Neves (2008) sobre a técnica Vianna, que ajudou a esclarecer a proposição de que uma abordagem a partir do corpo pode ajudar uma anoréxica a dissolver essa dicotomia mente/corpo. Para o corpus da pesquisa, selecionamos dois grupos de pessoas para observação. O primeiro é composto por pessoas que já tiveram anorexia e conseguiram reverter o quadro e o segundo, por pessoas que estão anoréxicas atualmente e que, além do acompanhamento médico, praticam a técnica Vianna. O trabalho de campo vem sendo realizado desde setembro de 2007. Como resultado, esta pesquisa propõe desviar o foco da discussão a respeito da anorexia, normalmente voltado para as pressões culturais ou para análises psicanalíticas, uma vez que analisa essa doença como resultado da radicalização da dualidade mente/corpo. Tal separação questiona a natureza do corpo como um corpomídia e, uma vez salientada de maneira abusiva pela mídia impressa e televisa, camufla o distúrbio como um fenômeno comunicacional de massa, dificultando ainda mais a compreensão e o tratamento de cada caso particular.

Palavras-chave: Anorexia, Corpomídia, Dualidade mente/corpo, técnica Vianna.

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VII

Abstract

The increasing number of eating disorders in the last decades calls the attention of

researchers concerned with body studies in several fields of knowledge. The media and the fashion world emphasize the need of a woman’s slim and young body, associated with happiness, wealth, health and success. There is more demand of a slim body among social groups connected with worldwide information. The fear of rejection is usually considered the immediate cause of such radical action. The main objective of this research work is to analyze how the communication processes between the anorectic body and the environment occur, and the possible changes after performing body practices, such as the Vianna’s technique. Our hypothesis is that anorectic people live under the mind/body duality paradigm, taking the control of the mind over the body to the last consequences. To understand the symptom of body maps distortion in the brain, we analyzed the works by the neuroscientist Damásio (1995), and the concept of embodied mind concept by Lakoff & Johnson (1999). Then we present historical data on an anorexia outbreak in the Middle Ages, known today as holy anorexia, and the current anorexia nervosa, so as to discuss the mind/body spirit/matter duality in both cases. So we will also discuss the phenomenon of media abuse in advertisements, newspapers, books, TV and Internet, considered to cause the contemporary anorexia nervosa. The theory adopted here is the research works by Katz & Greiner (2005) on the mediabody, which considers the body the primary communication media; by Gail Weiss (1999), on the formulation of body images; by Paul Churchland (2004), who mapped the several types of Cartesian dualisms; and the theoretical work by the Brazilian researchers Letícia Teixeira (2008) and Neide Neves (2008) on Vianna’s technique, who helped clarify the idea that an approach based on the body can help an anorectic person to undo the mind/body dichotomy. For the research corpus, we observed two groups of people. The first one is formed by people who had anorexia and recovered from it; the second, by anorectic people under medical treatment who perform Vianna’s technique. Field work is being carried out since September 2007. As an outcome, this work proposes changing the discussion focus on anorexia, usually concerned with cultural pressures on psychoanalytical analyses, once it considers this disease as result of a radicalization of the mind/body duality. This separation inquires body’s nature as a mediabody and, once abusively highlighted by press, it disguises the disorder as a communicational mass phenomenon, rendering the understanding and treatment in each particular case more complicating.

Key words: Anorexia, mediabody, mind/body duality, Vianna’s technique.

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VIII

SUMÁRIO

Introdução............................................................................................ 1

Distorções das imagens do corpo........................................................ 7

Da Idade Média à atualidade .............................................................. 26

Entranhando informações – técnica Vianna........................................ 52

Considerações finais............................................................................ 73

Referências.......................................................................................... 77

Page 9: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

1

Introdução

O aumento dos casos de distúrbio alimentar nas últimas décadas vem atraindo a

atenção de estudiosos do corpo em diversas áreas de conhecimento. Nesta pesquisa, temos

interesse em entender como se dão os processos de comunicação do corpo anoréxico com o

seu ambiente e as possíveis modificações dessas relações ao vivenciar práticas corporais.

Trabalharemos com a hipótese de que pessoas com anorexia vivem sob o paradigma da

dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o controle da primeira sobre o

segundo.

Houve um surto de anorexia em outro momento histórico e cultural: no fim da Idade

Média, as freiras adoeciam por praticarem jejuns prolongados, mas naquele contexto essa

ação era vista como virtude e essas mulheres eram canonizadas, justamente por esse feito.

Será estudado como a anorexia vem sendo tratada em diversas mídias, tais como anúncios

publicitários, livros, televisão e internet, como se dão os abusos midiáticos e as

consequências disso no modo como a doença é vista: os mitos que surgem a respeito dela,

as verdades e equívocos. Por fim, analisaremos como a técnica Vianna1 pode dar subsídios

para a pessoa experimentar diferentes estados corporais, criar diversas imagens do corpo,

favorecendo a produção de conhecimentos e construções simbólicas, trazendo assim

informações novas que podem reorganizar de maneira mais estável o corpo anoréxico.

Levaremos em consideração a complexidade e singularidade dos corpos, uma vez

que o risco da pesquisa é cair na armadilha de uma tentativa de “normalização”. Admitimos

1 Técnica desenvolvida pelos brasileiros Klauss e Angel Vianna desde a década de 60.

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2

que os corpos estão a todo instante se conectando e reconectando a informações de maneira

singular. Tal processo dinâmico sofre interferência de diversos fatores, como o ambiente

externo e a própria estrutura genética do corpo. Submetê-lo a uma nova informação pode

significar dar a ele uma possibilidade de conexão – ou seja, ao entrar em contato com algo

novo, é criada a possibilidade de desestabilizar padrões, gerando uma crise e uma tentativa

de nova organização. Há uma negociação entre as informações estáveis e as novas. Essa

conexão singular, uma vez ocorrida, terá graus de coesão. Quanto maior a coesão, mais

entranhada a informação estará na pessoa – ou seja, ela em algum nível vai alterar o modo

de pensar, sentir e agir no mundo, assim como a sua própria constituição quanto à

concentração de hormônios, tensões musculares e da pele, funcionamento dos órgãos, etc.

As fronteiras entre saúde e doença, no caso da anorexia, não são tão bem definidas.

Trata-se de uma patologia que tem como critérios diagnósticos a perda de peso e

manutenção abaixo do normal, por evitar alimentos que engordam e por vômitos

autoinduzidos, purgação autoinduzida, exercícios excessivos, uso de diuréticos; medo de

engordar; distorção da imagem corporal e amenorréia. Mas onde está o limite da dieta e

exercícios saudáveis e a dieta e exercícios doentios?

A definição de doença (do latim dolentia, padecimento) é o estado resultante da

consciência da perda da homeostasia de um organismo vivo, total ou parcial. Desse modo,

toda doença seria uma desordem momentânea ou permanente do organismo. O objetivo,

para a manutenção da vida, seria a volta a um estado “normal” ou “equilibrado”

homeostaticamente. Neste trabalho não utilizaremos esse pensamento sobre doença, pois

assim formulado cria uma dualidade saúde/doença, tornando-se conflitante com a hipótese

do trabalho. Além disso, a noção de tempo adotada aqui é a da irreversibilidade, ou seja,

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3

não é possível voltar a um estado anterior uma vez eliminada a doença. Esta pesquisa

pontua que a doença é um processo adaptativo do indivíduo e está constantemente sendo

atualizada. Não se atribui ao momento de tomada de consciência da perda do equilíbrio

interno a separação entre saúde e doença.

Atualmente, a mídia e a moda enfatizam a necessidade de a mulher ter um corpo

magro e jovem. Associam a esse padrão estético a felicidade, riqueza, bem-estar, saúde,

sucesso – ou seja, valor. No Brasil, cresce assustadoramente o número de pessoas que se

submetem a cirurgias para atingir tal padrão, buscando ser valorizadas quase

instantaneamente. Vende-se um sem-número de revistas semanais que exibem em suas

capas manchetes de dietas milagrosas (possibilidade de perder vários quilos em pouco

tempo) e fotos de mulheres jovens e magras. Tais dietas sequer levam em consideração a

massa corporal da pessoa que se submeterá a ela. Relacionam o número de quilos

emagrecidos exclusivamente à quantidade de alimentos ingeridos. Na verdade, o que está se

vendendo é a possibilidade rápida de ganhar valor, uma vez que atualmente jovialidade e

magreza são o padrão ideal de beleza e, como já foi dito, este está associado à felicidade e

ao sucesso.

Em 2006, num evento de moda em Madrid, na Espanha, modelos foram impedidas

de desfilar por estarem muito abaixo do peso. A organização do evento tinha como objetivo

chamar a atenção para o problema da anorexia. É claro que havia uma estratégia de

marketing na ação, mas a discussão ficou circulando na mídia, merecendo capas de revistas,

manchetes de jornal e reportagens de televisão. Pouco tempo depois, a modelo brasileira

Ana Carolina Reston Macan faleceu de anorexia, fato que aqueceu ainda mais as

discussões.

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4

Em fevereiro de 2007, foi a vez da Semana de Moda de Nova York se submeter às

regras de combate à anorexia, tentando forçar a indústria da moda a ter nova postura diante

da questão da magreza exigida das modelos. Proibiram que desfilassem modelos com uma

massa corporal inferior a 18, o que para uma modelo de 1,75 m de altura corresponde a 57

quilos. Atualmente, as modelos com essa altura pesam em média apenas 52 quilos.

Infelizmente, a maior potência da moda no mundo, Paris, não aderiu às regras,

enfraquecendo o movimento. O presidente da Federação Francesa de Estilistas, Didier

Grumbach, declarou-se contra a imposição de exigir o índice de massa corporal mínima de

18. Agindo assim, os organizadores de eventos internacionais de moda reafirmam o seu

poder e o direito dos estilistas de alta costura à criação das suas coleções conforme sua

vontade, com quem e para quem eles definirem.

Emagrecer até o limite da vida é o que muitas modelos fazem para se manterem no

mercado de trabalho. Corpos cada vez mais magros servem de “cabide” para as invenções

dos estilistas de alta costura. No mundo da moda, a competição entre manequins, e mesmo

modelos de fotografia e publicidade, é esmagadora. Para conseguir lugar em cada desfile,

em cada campanha publicitária, é preciso trabalhar incansavelmente, fazendo o porta-em-

porta dos castings. A regra é válida para todas, estrelas ou não. É isso que leva a maioria

das profissionais a dietas rigorosíssimas, principalmente pouco tempo antes de um desfile.

Mas não é só na moda que isso acontece. Bailarinas clássicas, por exemplo, também

são exigidas nesse sentido. Submetem-se a dietas rigorosas e mantêm-se abaixo do peso por

longos anos. Isso além de uma rotina de exercícios diários extenuantes. É possível

encontrar sintomas de anorexia em meninas de 8 e 9 anos nas escolas mais exigentes de

balé.

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5

Apesar de esses serem grupos de risco para tal doença, não é raro encontrar pessoas

que decidem reduzir sua alimentação ao máximo, desenvolvendo a anorexia, e que não

sofrem nenhuma pressão profissional para essa decisão. O medo da rejeição de seu grupo

social é normalmente uma das causas imediatas para essa ação radical. Evitam cada vez

mais dietas calóricas sem nenhuma preocupação com a nutrição do corpo. O único objetivo

é manter-se magra. Foi-se o tempo em que reis e rainhas, sentados em seus tronos, exibiam

seus corpos gordos, adornados por belas vestes e jóias. Nesse tempo, corpos gordos eram

sinônimo de riqueza, fartura e saúde. Ainda hoje há pessoas que associam gordura à saúde e

magreza à doença. A exigência do corpo magro é mais presente em grupos sociais que

vivem conectados às informações que circulam em larga escala pelo mundo.

Para esta pesquisa, selecionamos dois grupos de pessoas para observação. O

primeiro é composto por pessoas que já tiveram anorexia e conseguiram reverter o quadro;

e o segundo, por pessoas que estão anoréxicas atualmente e que, além do acompanhamento

médico, realizam um trabalho corporal, especificamente, a Técnica Vianna.

Formulamos as seguintes perguntas para nortear a pesquisa: pessoas com anorexia

vivem sob o paradigma da dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o

controle da primeira sobre o segundo? A anorexia pode ser entendida como uma metáfora

da separação mente/corpo? Vivenciar práticas corporais que estimulam a criação de novos

mapas corporais pode ajudar a mudar esse paradigma e reconectar essa separação fictícia

entre a mente e o corpo? Isso ajudará uma pessoa com anorexia a reverter o quadro?

O primeiro capítulo desta dissertação trata da distorção das imagens corporal que é

experimentada pelas anoréxicas. Estudaremos como é formada a imagem do corpo no

cérebro, como o fluxo de imagens se dá na mente, qual a diferença entre sentimento e

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6

emoção e como se dá uma doença somática, com relação aos mapas cerebrais do corpo.

Para isso, utilizamos os estudos do neurocientista português Antônio Damásio (1996) e o

conceito de metáfora e mente entranhada, dos americanos Lakoff e Johnson (1999).

O segundo capítulo apresenta dados históricos sobre a anorexia santa da Idade

Média e da anorexia nervosa dos dias atuais. Vamos analisar as semelhanças e diferenças

dessa patologia nas duas épocas. Trabalharemos com a hipótese de que na Idade Média as

freiras tentavam dominar a matéria pelo espírito, e hoje as pessoas tentam dominar o corpo

pela mente. Trataremos também dos casos das fraudes de fotos veiculadas na internet de

modelos anoréxicas, da atual moda nos EUA com relação à prática e comercialização do

jejum pela família Bragg, da campanha publicitária de Oliviero Toscani e da instalação

“Eres Lo Que Lees” de Guillermo Vargas Habacuc. Para tais análises, dialogaremos com a

pesquisa de Katz e Greiner (2005) sobre o corpomídia, que propõe o corpo como mídia

primária da comunicação, e a dos filósofos Gail Weiss (1999) e Paul Churchland (2004),

cujas pesquisas criam interlocuções o tempo todo com a neurociência e os estudos das

relações mente/corpo.

O terceiro capítulo discute como uma abordagem a partir do corpo pode ajudar uma

anoréxica a dissolver essa dicotomia mente/corpo. Falaremos como os trabalhos que visam

à experimentação de diferentes estados corporais e ao estímulo da atualização das imagens

do corpo podem ser uma saída eficiente no caso de doenças somáticas. Discorreremos sobre

a técnica Vianna e suas contribuições nos casos de pessoas com anorexia, partindo da

experiência prática e da pesquisa teórica das brasileiras Letícia Teixeira (2008) e Neide

Neves (2008), para falar sobre essa técnica.

Page 15: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

7

Distorções das imagens do corpo

Anorexia é uma patologia psicossomática que ocorre, na maioria das vezes, em

mulheres entre 10 e 30 anos. As pessoas passam a se submeter a dietas cada vez mais

rigorosas, têm medo de engordar e distorcem sua imagem corporal. Muitas vezes provocam

vômitos, tomam remédios como diuréticos e laxantes e fazem exercícios excessivos.

Pessoas com anorexia recusam-se a procurar um médico, pois, além de não se julgarem

doentes, neste caso “tratar-se” significa obrigatoriamente ganhar peso.

Outra doença que muitas vezes acompanha a anorexia é a bulimia. Pessoas

bulímicas comem compulsivamente enormes quantidades de alimento e, em seguida,

provocam vômitos até eliminar tudo o que tinha sido ingerido. Há uma discussão entre os

médicos se esta é realmente outra patologia ou se pode ser entendida como um

desdobramento da anorexia. O fato é que existem muitas bulímicas que nunca desenvolvem

anorexia, mas a grande maioria das anoréxicas passa por processos bulímicos, pois após

longo tempo com dietas muito restritas é praticamente inevitável sofrer eventos

compulsivos.

É possível comparar o comportamento de uma anoréxica com o de uma pessoa com

grave fobia, nesse caso, fobia ao alimento. Já o comportamento bulímico assemelha-se ao

de um vício, um desejo compulsivo. Pessoas com bulimia tendem a sentirem-se

envergonhados e completamente fora do controle, afastando-se das pessoas, inclusive as

mais próximas e se relacionando cada vez mais intensamente com a doença.

Há uma diferença marcante nos dois casos: a bulímica sabe que está doente, o que

nem sempre acontece com a anoréxica, principalmente no início do processo. O ato de

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8

vomitar todas as vezes que come é muito violento. O suco gástrico corrói o esôfago e a

faringe, destrói o esmalte dos dentes, e a força feita para expulsar o alimento pode até

estourar vasos sanguíneos dos olhos. A sensação de alívio após a purgação vem geralmente

acompanhada de um sentimento de culpa.

A anoréxica vai reduzindo a sua alimentação, acostumando-se com a fome e o seu

corpo vai emagrecendo como o desejado. No início, muitas pessoas elogiam a perda de

peso, o que incentiva ainda mais a redução das calorias diárias. O medo de engordar,

porém, faz com que a pessoa se torne obsessiva pela gordura e comece a se ver e se sentir

gorda devido à distorção dos mapas corporais que ela cria no cérebro. A pessoa passa a

instituir metas de emagrecimento incompatíveis com a vida. O corpo vai primeiro

queimando a gordura para gerar energia, depois as proteínas (musculatura) e por fim os

órgãos, levando-a à morte. Há uma dolorosa tentativa de regulação do corpo durante todo o

processo, como aparecimento de pelos finos por todo o corpo para a manutenção da

temperatura corporal, pressão baixa e supressão da menstruação.

Um sintoma importante da anorexia é a distorção da imagem do corpo. A pessoa, ao

olhar-se, não consegue enxergar sua magreza. Ao contrário, o que é visto por ela é um

corpo acima do peso, com muita gordura acumulada. Tanto ao olhar para o espelho quanto

ao se tocar, essa distorção é vivenciada. Por esse motivo, ao serem alertadas para sua falta

de peso discordam taxativamente. A imagem do seu corpo no cérebro está alterada

impossibilitando-a de entrar em contato com o que está se passando: corpo abaixo do peso

devido a pouca quantidade de gordura e massa muscular. Nesse processo há falha na

fidelidade do que é captado e o que surge na mente.

Page 17: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

9

http://duard.com.br/blog/fotos-anorexia-nervosa/anorexia-foto-capa/

Os estudos do neurocientista português Antônio Damásio (1995) ajudam a

compreender o funcionamento cerebral para a formação das imagens do corpo e dá pistas

de como pode ocorrer tal distorção. Essa experiência da anoréxica se ver e se sentir gorda é

o resultado da criação de mapas falsos. O medo exacerbado de engordar faz com que ela

distorça a imagem do próprio corpo no cérebro, que passa a oferecer a imagem de um corpo

gordo. Esse assunto será desenvolvido adiante.

O sistema nervoso é uma solução evolutiva que em nossa espécie atingiu alto grau

de especialização: está presente em todos os membros, tronco e na cabeça concentrou sua

maior parte. Regula o funcionamento dos outros sistemas, elabora informações do próprio

corpo e do ambiente em que está inserido. Esse gerenciamento do sistema nervoso dá

condições à espécie humana de criar estratégias de adaptação mais adequadas à

sobrevivência.

Page 18: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

10

Organismos complexos como os nossos fazem mais do que interagir,

fazem mais do que gerar respostas externas espontâneas ou reativas que

no seu conjunto são conhecidas como comportamento. Eles geram

também respostas internas, algumas das quais constituem imagens

(visuais, auditivas, somatossensoriais) que postulei como sendo a base

para a mente (DAMÁSIO, 1999, p. 114).

É com esse diferencial da espécie humana (a mente) que se tornou possível criar

imagens (visuais, sonoras, olfativas, entre outras) e manipulá-las no que conhecemos como

raciocínio, que altera o comportamento devido à capacidade de prever e planejar o futuro.

Portanto, nosso sistema nervoso é dotado da capacidade de manter muitos sistemas

funcionando coordenadamente, garantindo a sobrevivência (para isso está incluída não só a

manutenção interna do organismo, mas também a exploração do ambiente) e manipular

várias informações vindas dessa relação do corpo com o ambiente. Isso sem perder de vista

que esse sistema gerenciador é uma solução adaptativa e foi se especializando em co-

evolução tanto com o ambiente quanto com os outros sistemas que formam o corpo

humano.

Não existe nenhuma faculdade da razão completamente autônoma,

separada e independente de capacidades corporais tais como percepção e

movimento. A evidência mostra, ao contrário, uma visão evolutiva, na

qual a razão se utiliza e se desenvolve a partir dessas capacidades [...] a

razão é fundamentalmente entranhada. (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p.

17).2

2 “There is no such fully autonomous faculty of reason separate from and independent of bodily capacities such as perception and movement. The evidence supports, instead, an evolutionary view, in which reason uses and grows out of such bodily capacities […] reason is fundamentally embodied” (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 17).

Page 19: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

11

As consequências dessa nova forma de entender a razão são drásticas. O que Lakoff

e Johnson estão afirmando é que toda a construção subjetiva da mente é também a

construção do corpo. Tudo o que se passa na mente é físico e o que se passa no corpo é

pensamento. Não é que o corpo expressa o que se passa na mente – ele é composto pelas

informações mentais. Não é possível uma mente sem corpo e nem um corpo como o da

espécie humana sem mente. Interagimos no mundo de determinada forma porque temos

esse aparato biológico que nos permite decodificar a realidade à nossa maneira. Os

alicerces da mente estão na estrutura do corpo e essa relação imbricada constantemente

modifica o que se passa em ambos. Num depoimento durante uma aula de Técnica Vianna,

a aluna falou rapidamente sobre um aspecto importante do trabalho, que é justamente

trabalhar conscientemente o pensamento e o corpo sem separações.

Acho que nesse trabalho a gente lida com o pensamento junto com o

movimento. Na verdade é uma coisa só. Não há como separar o meu

corpo daquilo que sou e penso de mim e do mundo. Depois desse tempo

aqui acredito que é assim que forma um indivíduo que se move, que

pensa, que questiona. (Depoimento de Anabel3, 2008).

O modo como percebemos está intimamente ligado às imagens cerebrais. Uma

distorção nesse processo tem consequências nos sentimentos, pensamentos e ações. As

anoréxicas deformam as imagens que são construídas no cérebro a respeito do próprio

corpo. Há alterações principalmente quanto à forma e ao volume. Acaba prevalecendo o

mapa cerebral distorcido sobre o que de fato está se passando no corpo. O que impede essas

pessoas de entrar e contato com o próprio corpo? Por que aquilo que se passa na mente

3 Serão usados nomes fictícios para preservar a identidade das três pessoas estudadas: Anabel, Analu e Anastácia.

Page 20: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

12

prevalece, se um dos papéis do sistema nervoso é justamente informar o que se passa com a

pessoa, para que ela possa criar estratégias para sobreviver?

Vamos então entender como são criados os mapas que na anoréxica geram as

imagens distorcidas do corpo. Continuamos utilizando os estudos de Damásio para

compreender esse fenômeno. Primeiramente, vamos estudar como se forma a imagem de

um objeto que esteja no ambiente.

Ao ver um objeto, tem-se uma informação externa captada pela luz que entra nos

olhos, a mudança do corpo no momento do contato e o estado corporal da relação entre a

informação externa e a interna. O cérebro constrói simultaneamente um mapa para cada

situação e, de saída, são três: um trata da alteração do corpo para entrar em relação, outro é

sobre o contato com o objeto e o terceiro refere-se às mudanças do estado do corpo nesse

contato. Esses mapas constroem um padrão neural que é imagético. Esse processo é

ininterrupto no cérebro. Os mapas organizados em padrões neurais formam um relato sobre

tudo o que está acontecendo e como está sendo processado pelo organismo. Ao mesmo

tempo, cria-se um relato não-verbal que é um fluxo de imagens incontrolável, inconsciente

e incessante, e ocorre simultaneamente com os relatos dos objetos externos e as

experimentações do mundo.

À medida que o cérebro forma imagens de um objeto [...] e à medida que

as imagens do objeto afetam o estado do organismo, um outro nível de

estrutura cerebral cria um rápido relato não-verbal dos eventos que estão

ocorrendo nas diversas regiões cerebrais ativadas em decorrência da

interação entre objeto e organismo (DAMÁSIO, 1999, p. 220).

Page 21: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

13

Vemos assim que todo o processo é mediado e que não temos como capturar a

realidade, nem mesmo do nosso próprio corpo, de forma direta. A transformação da

mensagem captada pelos órgãos do sentido em fluxo de imagens e o relato não-verbal

oferecido pela mente afastam a possibilidade de apreensão direta do real. Não existe

onisciência nesse processo. Somos o próprio processo nos seus aspectos conscientes e

inconscientes. É importante ressaltar que, para Damásio, Lakoff e Johnson, assim como

outros neurocientistas, o inconsciente é cognitivo. É possível aprender com o relato

inconsciente, assim como acontece com a parte consciente, porém esse aprendizado pode

afetar os sentimentos, pensamentos e ações do indivíduo sem que ele tenha saiba disso.

As conexões na mente são feitas entre as novas experiências e esse fluxo imagético.

Isso significa que ao mesmo tempo em que vemos o objeto o imaginamos. “As imagens

que constituem essa narrativa são incorporadas ao fluxo de pensamentos. As imagens na

narrativa da consciência fluem como sombras, juntamente com as imagens do objeto para o

qual estão fornecendo um comentário não intencional, não solicitado” (DAMÁSIO, 1999,

p. 221). Aqui está uma chave para o fenômeno da distorção da imagem do corpo. Nas

anoréxicas, o que está sendo imaginado do próprio corpo prevalece e altera radicalmente

aquilo que está sendo captado pela visão. O corpo esquelético torna-se obeso por conta do

relato inconsciente que existe no processo da formação das imagens no cérebro. Isso ajuda

a explicar por que elas não têm acesso ao que de fato se passa no próprio corpo e, ao serem

alertadas da necessidade de engordar, não aceitam a recomendação.

A percepção do ambiente não é feita de maneira direta, como o senso comum pode

supor. Todo o organismo se altera ativamente para captar o que mais lhe for conveniente.

Há uma ação no ato de perceber.

Page 22: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

14

O organismo atua conscientemente sobre o meio ambiente (no princípio

foram as ações), de modo a poder propiciar as interações necessárias à

sobrevivência. Mas, para evitar o perigo e procurar de forma eficiente

alimento, sexo e abrigo, é necessário sentir o meio ambiente (cheirar,

saborear, tocar, ouvir, ver) para que se possam formular respostas

adequadas ao que foi sentido. A percepção é tanto atuar sobre o meio

ambiente como dele receber sinais. (DAMÁSIO, 1996, p. 256).

Outra chave importante é o fato de a percepção do ambiente não ser direta, e sim

haver um poder de decisão daquilo que será captado. Vemos o que queremos ver. O que

está sendo percebido pela anoréxica ao se ver? Todas elas apresentam uma preocupação

exacerbada com a quantidade de gordura corporal e passam a enxergar gordura onde não

existe. Outra aluna relatou que o trabalho da Técnica Vianna “te abre a percepção. Eu acho

que a gente fica um pouco mais perceptivo ao outro através da fala do outro, como aquele

corpo se relaciona. Eu acho que você ganha muito na observação dos seus parceiros, dos

seus próximos” (depoimento de Analu, 2008). Posteriormente, aprofundaremos a questão

da percepção..

É importante também levarmos em consideração outro fator: o corpo pode ser

observado como um objeto exterior (quando olhamos num espelho, por exemplo), ou por

meio da propriocepção (capacidade reconhecimento da posição próprio corpo no espaço e

de cada parte em relação às demais, tônus e movimentação, tudo sem o auxílio visual).

Essas informações vêm das fibras musculares (tendões e ligamentos), periósteo (membrana

que envolve o osso), pele e sistema vestibular (localizado no interior do ouvido) que nos

possibilita saber da posição do corpo e dá o equilíbrio.

Page 23: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

15

Todos nós temos uma noção do próprio corpo e da posição na qual ele se encontra

mas essa noção é parcial. Raramente nos preocupamos com a postura que assumimos,

exceto em momentos em que somos alertados para isso. Em sua pesquisa, Letícia Teixeira

(2008) explica que os exercícios propostos para levar a atenção ao corpo são de fácil

entendimento racional, mas de difícil assimilação efetiva. Isso é facilmente verificável

quando são propostos exercícios com a finalidade de pesquisar o tônus empregado para

executar algum movimento, o retorno de força do apoio utilizado por determinada parte do

corpo com uma superfície ou ainda a relação das partes do corpo, ou sua totalidade, com o

espaço. Trata-se de uma pesquisa de aprofundamento da propriocepção para adquirir essa

íntima relação do próprio corpo com o ambiente. Mesmo sem utilizar o nome

propriocepção no trabalho, a técnica Vianna desenvolve esse sentido para que a pessoa

tome consciência do próprio corpo. Esse assunto será desenvolvido mais detalhadamente no

terceiro capítulo.

Nas observações feitas com as anoréxicas, percebemos uma verdadeira adoração por

espelhos. Elas vigiam o próprio corpo a todo instante. Esse fato nos chamou a atenção não

por ser exclusivo desse grupo (a maioria das mulheres tem esse comportamento), mas

porque foram encontradas grandes dificuldades e rejeições dos exercícios propostos para

entrar em contato com o corpo por via proprioceptiva. A resistência inicial é observada em

outros grupos, mas nesta pesquisa as alunas eram muito agitadas (um dos sintomas da

doença) e não conseguiam manter a concentração, nem mesmo os olhos fechados quando

era solicitado. Isso nos fez pensar que talvez a forma como elas percebam o corpo seja

muito mais visual (como um objeto exterior que é captado pela visão da imagem refletida

no espelho) do que proprioceptiva (via tendões, ligamentos, periósteo). As anoréxicas

Page 24: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

16

estariam se afastando do próprio corpo, considerando-o exteriormente a elas e não como

algo realmente entranhado, vivido, experimentado? Outros relatos de aula dados após a

superação da dificuldade abordada acima foram que “se sentir é uma coisa que dá uma

âncora, um chão muito sólido”. (depoimento de Anabel, 2008). “É um privilégio a gente

poder se ouvir, se sentir, se perceber, se entender e isso eu acho que vai pela vida a fora, a

gente vai se descobrindo” (depoimento de Analu, 2008).

O fato é que a imagem do corpo da anoréxica é distorcida. Ao olhar-se, tocar-se e

perceber-se, as informações produzidas na mente não são fiéis ao que de fato se passa no

corpo e isso acontece de forma inconsciente. A anoréxica de fato não sabe que está pele e

osso. Mesmo sendo constantemente alertada sobre sua magreza, ela não consegue perceber

esse fato.

A pessoa com anorexia distorce tanto a imagem evocada do corpo quanto a imagem

criada no momento presente. Ao lembrar do próprio corpo, surgem imagens de uma pessoa

obesa. Há distorção principalmente no volume, peso e contorno de seu corpo. Essas

distorções são maiores quando essa pessoa faz algo que acredita atrapalhar seu intento de

emagrecer, como fazer menos exercícios por um dia, ingerir algum alimento que

consideram calórico; em casos muito graves, até beber água pode ser motivo para vivenciar

grandes alterações nas imagens corporais. “Água pesa muito! Cada copo pesa 200 a 300

gramas!”, revelou uma entrevistada numa primeira conversa. “Além disso, o estômago

estufa muito” (depoimento de Anastácia, 2008), continuou.

Ao lembrarmos de uma imagem qualquer, nosso cérebro trabalha tentando replicar a

experiência vivida no passado, tentando reproduzir padrões já experimentados. Não

conseguimos fazê-lo exatamente como a experiência e a reprodução da imagem evocada

Page 25: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

17

será muito ou pouco fiel, dependendo de como a imagem foi assimilada e como está sendo

lembrada.

É importante dizer que o cérebro não trabalha captando todos os aspectos da

imagem como um bloco indissociável. Há subsistemas responsáveis por aspectos

diferentes, tais como cor, volume, distância, forma, entre tantos outros. A sincronicidade

dos processamentos é que dá a sensação de unidade da imagem criada pela mente. Assim,

podemos alterar o volume, por exemplo, sem alterar a cor ou a distância.

Fatores emocionais podem provocar distorções. Não há como dissociar o que está

sendo visto das emoções produzidas nessa ação. Por exemplo, se um carro vem em alta

velocidade em nossa direção, há uma série de ajustes da retina para manter o foco do carro,

o sistema vestibular é ajustado para dar mais precisão à posição do próprio corpo, tudo ao

mesmo tempo da emoção de medo e a consequente reação do coração, intestino e pele,

entre outras vísceras, e do sistema músculo esquelético, que ativa o corpo para o

movimento. Isso tudo acontece antes de formulações da mente. Muito antes de termos uma

mente, nosso aparato biológico já nos dava subsídios para enfrentar situações de perigo.

Como explica Damásio:

Não há percepção pura de um objeto em um canal sensorial, por exemplo

a visão. As mudanças simultâneas [...] não são um acompanhamento

opcional. Para perceber um objeto, visualmente ou de algum outro modo,

o organismo requer tanto os sinais sensoriais especializados como os

sinais provenientes do ajustamento do corpo, que são necessários para a

ocorrência da percepção. (DAMÁSIO, 2000, p. 193).

Os processos regulatórios do organismo são comandados pelo cérebro e

independem da nossa vontade. Tais processos foram surgindo na evolução das espécies,

Page 26: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

18

muito antes de o organismo ter uma mente. As necessidades do organismo são detectadas e

os mecanismos de regulação acionados inconscientemente. Há um alto grau de estabilidade

e automatismo nesse processo, facilitando assim a sobrevivência.

Todas essas ações básicas para manter o equilíbrio interno do corpo criam mapas e

constroem padrões neurais que ocorrem em vários níveis no cérebro, em estruturas

responsáveis pela regulação do estado do corpo. Não temos consciência dele e não

conseguimos alterá-lo por uma decisão. Isso não significa que ele seja estático, que não se

altere. Apesar da alta estabilidade, ele é atualizado a todo momento.

Dependendo do grau do medo gerado na aproximação do carro, por exemplo, a

possibilidade de distorções nas imagens mentais é grande. Isso pode fazer a pessoa ficar

paralisada diante do perigo ou despertar habilidades desconhecidas para se livrar dele.

Damásio finaliza dizendo que “não há como você evitar que seu organismo seja afetado,

sobretudo nos aspectos motor e emocional, pois isso está incluído em ter uma mente”

(DAMÁSIO, 2000, p. 193).

Um dos principais motivos de as anoréxicas não quererem ajuda médica e não se

considerarem doentes decorre do fato de vivenciarem as deformações de sua imagem

cotidianamente. Isso não é algo que se restringe à mente e ao cérebro: todo o corpo está

envolvido no processo. Elas realmente experimentam seus corpos inflando de um momento

para o outro. É despropositado ficar debatendo se isso realmente aconteceu ou não, porque

elas de fato vivenciam as deformações. Por isso é tão ineficiente alertá-las sobre sua

condição física, pois o que é vivido desmente tal fala. Há uma falha no processo entre o que

se passa na mente e o seu corpo. O fato é que essas distorções são imaginadas, mas têm

Page 27: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

19

existência corpórea. Não se trata de um pensamento vago sobre as mudanças do corpo. Elas

se sentem gordas e colocam a vida em risco para eliminar esse excesso.

Há uma diferença entre emoção e sentimento para Damásio. As emoções ocorrem

no teatro do corpo e os sentimentos ocorrem no teatro da mente. Nunca são dois teatros, é

um teatro só. Ou seja, as emoções são referentes às mudanças perceptíveis no corpo, e o

sentimento é um mapa neural referente à emoção. Essa divisão serve para detalhar melhor o

que ocorre, mas não pretende criar dualidades. Como Damásio diz, não são dois teatros. A

mente e o corpo emergem de uma só substância biológica.

A emoção é a paisagem do corpo e se faz presente a partir de uma ação que pode ser

visível ou invisível, mas mensurável por meio de aparelhos. Toda emoção visa direta ou

indiretamente à regulação da vida.

Damásio divide as emoções em três categorias: as de fundo, as primárias e as

sociais. A emoção de fundo é um estado corporal das regulações mais básicas do

organismo. É o que determina nosso bem-estar ou mal-estar. As emoções primárias são as

que geralmente vêm à cabeça quando pensamos no assunto: alegria, tristeza, surpresa,

raiva, entre outras. Estão presentes em todas as culturas e até em outras espécies. As

emoções sociais são mais complexas, pois envolvem um aprendizado e adequação a regras

do ambiente. São elas, entre outras, culpa, vergonha, indignação, inveja. Elas também não

são exclusividade dos seres humanos.

As emoções são, portanto, regulações inatas, sendo que algumas dependem em

algum grau de exposição ao ambiente. O medo, por exemplo, é uma emoção inata: nosso

aparato biológico responde a ameaças com essa emoção. No grupo estudado, o medo de

engordar é a emoção mais presente e evidente. A relação com a gordura, atribuindo a ela

Page 28: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

20

valor altamente negativo, é aprendida socialmente. Engordar está associado a desleixo,

descontrole, preguiça. Todas as entrevistadas (que estão atualmente com anorexia)

comentaram que parentes próximos (geralmente a própria mãe) tinham preocupações

exageradas com a alimentação com relação às calorias. A grande maioria foi educada

evitando comidas que pudessem engordar, preferindo sempre alimentos light. Houve

também relatos de algumas famílias que se preocupavam com alimentos saudáveis, como

verduras, legumes e poucas frituras, o que é muito saudável. Porém, na maior parte das

casas não havia distinção entre alimentos industrializados ou naturais. A escolha por comer

saladas, por exemplo, tinha relação exclusivamente com o baixo teor energético. As

escolhas sempre seguiam esse critério. Entre beber refrigerante com baixa caloria e tomar

um suco de fruta natural, a escolha sempre era pelo refrigerante (menos calórico). Os

critérios alimentares eram associados ao poder que o alimento tem de engordar, e não na

sua capacidade de nutrir. Expostas a esse ambiente social, essas pessoas foram

radicalizando a relação alimento/medo de engordar a ponto de passar a rejeitar a comida.

Não queremos aqui dizer que esse é o único ou principal fator que desencadeie o

processo de anorexia. Uma entrevistada, por exemplo, desenvolveu um rápido processo de

anorexia após o nascimento do primeiro filho. Na vontade de voltar ao corpo anterior à

gravidez, essa pessoa passou a restringir sua alimentação a níveis preocupantes. Sua rotina

era anotar tudo o que tinha ingerido durante o dia para que no seguinte ela diminuísse a

quantidade. Ela relatou que mesmo com o peso de quando tinha 12 anos de idade, ainda se

julgava gorda. Só se deu conta de que algo estava errado quando, numa festa infantil,

recusou brigadeiro com verdadeiro pavor. A partir desse momento foi voltando a aumentar

paulatinamente a sua alimentação.

Page 29: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

21

As emoções cujo desencadeamento é aparentemente misterioso não se

confinam às emoções sociais inatas. Existe uma outra classe de reações

cuja origem não é consciente, mas é formada pela aprendizagem durante o

desenvolvimento individual. Estou me referindo àquilo de que

aprendemos a gostar ou que passamos a detestar, distintamente, durante

uma longa experiência de percepção e emoção em relação a pessoas,

grupos, objetos, atividades e lugares. (DAMÁSIO, 2003, p. 57).

A emoção é, portanto, o conjunto das respostas químicas e neurais produzidas

quando o cérebro detecta um objeto ou acontecimento que pode ser real, lembrado ou

imaginado. Já há um repertório de respostas evolutivamente programadas e há outros que

vão sendo criados pela experiência individual com o ambiente. O resultado imediato é a

alteração temporária do estado do corpo e do estado das estruturas cerebrais que o

mapeiam.

Outra emoção muito citada nas entrevistas é a alegria de emagrecer. Para o nosso

grupo da pesquisa de campo, esse é o objetivo da vida. Não importa o quanto já se esteja

magra, o importante é perder peso, ilimitadamente. “Alguns dos objetos são

emocionalmente competentes por razões evolucionárias. Mas outros transformam-se em

estímulos emocionais competentes no curso da nossa experiência individual” (DAMÁSIO,

2003, p. 63).

Há, como já foi dito na introdução deste trabalho, uma supervalorização do corpo

magro na nossa cultura. Isso vai desde os núcleos familiares até a moda. É comum ouvir

crianças manifestarem o desejo de emagrecer. Nas últimas décadas, a indústria alimentícia

tem investido muito no mercado dos produtos com baixa caloria. Muitas propagandas são

Page 30: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

22

veiculadas em diversas mídias, incentivando o consumo desse tipo de alimento, sempre

com mulheres magras, sensuais, bem-sucedidas e felizes.

O sentimento é o mapa neural e em termos evolutivos só se tornou possível quando

os organismos começaram a organizar mapas cerebrais capazes de representar os estados do

corpo. Assim, os sentimentos dependem não apenas da presença de corpo e de um cérebro

capaz de representá-lo, mas também de existência prévia de dispositivos de regulação da

vida, que incluem os mecanismos de emoção. Não há sentimento sem emoção.

Para Damásio, o sentimento é mais do que uma representação de um estado

particular do corpo – ou seja, uma constatação consciente das mudanças fisiológicas

(alteração hormonal, cardíaca, etc.). “Um sentimento é uma percepção de um certo estado

do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela percepção

de um certo modo de pensar” (DAMÁSIO, 2003, p. 92).

Esse novo entendimento sobre o sentimento auxilia a compreensão da complexidade

do processo. Não se trata mais de fazer uma relação direta entre “uma coleção de

pensamentos, com certos temas ligados a um certo rótulo emocional” (DAMÁSIO, 2003, p.

92). Aquilo que desencadeia o sentimento (a emoção) está no corpo e não fora dele. Mas,

além disso, há uma ligação entre o sentimento e o objeto que deu origem à emoção e, por

consequência, ao sentimento. O processo espalha-se lateralmente, envolvendo todo o

conhecimento disponível daquele objeto e a situação em que está inserido, as emoções

passadas que tenham referência direta ou indiretamente a ele e as consequências de tudo

isso.

No depoimento de uma anoréxica relatando o que se passou após se alimentar,

percebemos exatamente esse processo:

Page 31: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

23

Eu me olho no espelho e vejo uma gordura na barriga, aqui no estômago,

ou na bunda. Isso me dá um nó no estômago. Meu coração dispara e fico

com muita raiva e nojo de mim. Para piorar, minha digestão é muitíssimo

rápida, porque em minutos a gordura vai aumentando, aumentando... Fico

com ódio de mim mesma; me sentindo suja. Sou uma fraca! (depoimento

de Anastácia, 2008).

Esse é um processo de retroalimentação: quanto mais aumentam a raiva e o nojo,

maior a distorção, que provoca mais raiva e nojo. “O objeto imediato do sentimento e o

mapa desse objeto podem influenciar-se mutuamente numa espécie de processo

reverberativo que não é possível encontrar na percepção de um objeto exterior ao corpo”

(DAMÁSIO, 2003, p. 99). Numa pessoa que não tenha a propensão a distorcer os mapas do

corpo, esse acesso de fúria até pode ocorrer ao perceber que engordou, mas a alteração

drástica do volume do corpo não será vivenciada. O sentimento não é, portanto, apenas uma

idéia do conjunto de alterações do corpo que chamamos de emoção. É um processo

dinâmico detonado pela emoção e pelo objeto exterior que iniciou o processo. “Aquilo de

que nos damos conta é uma série de transformações e, em alguns casos, uma luta aberta

entre as alterações do corpo iniciadas pela emoção e a resistência que o corpo oferece a

essas alterações” (DAMÁSIO, 2003, p. 92).

No funcionamento cerebral esperado, com o fluxo de imagens corporais, há uma

instabilidade adaptativa inerente que possibilita a vida. Como o corpo muda sua própria

constituição a cada respiração, alimentação, excreção, emoção, pensamento etc., o cérebro

opera nessa multiplicidade de imagens que chega até ele. Assim, a pessoa pode se adaptar a

diferentes situações, aumentando a possibilidade de sobrevivência.

Page 32: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

24

É esperado que o mapa cerebral produzido seja bastante próximo daquilo que ocorre

no corpo. Porém observamos que ele, em maior ou menor grau, sempre perde a fidelidade.

Isso acontece porque a atividade das regiões que executam o mapeamento modifica os

sinais que vêm do corpo, e assim o mapeamento do corpo e o estado do corpo deixam de

coincidir. Quando a transmissão de sinais perde muito a fidelidade, o mapa que é

desenhado no cérebro não relata o que está se passando no corpo. É o que Damásio chama

de mapas falsos, e que estão presentes nas doenças somáticas.

As distorções radicais do corpo ocorrem devido a essa falta de coincidência entre o

que ocorre no corpo e o que está sendo mapeado nas regiões somatossensitivas do cérebro.

Esse mapeamento ocorre a todo momento e relata todas as partes do corpo. Contudo, a

“nitidez” pode ser perdida por interferências de outras regiões cerebrais na transmissão dos

sinais do corpo para essas regiões somatossensitivas, ou com uma interferência direta na

atividade dessas regiões.

Em termos evolutivos, é possível que inicialmente o cérebro só produzisse mapas

verídicos do estado do corpo. Posteriormente, apareceram novas possibilidades. Mapas

falsos, por exemplo, que eliminem a dor, podem ser bastante úteis para a fuga de um ser

atacado por um predador. A criação de um mapa falso do corpo e, consequentemente, de

um sentimento que não reflete a emoção correspondente é extremamente rápida, o que não

aconteceria se o investimento fosse em modificar o estado do corpo. É a velocidade da

ordem de milissegundos ou menos contra alguns segundos, o que pode custar a vida do ser.

Porém, variações patológicas podem corromper esse valor e, ao que parece, é o caso das

doenças somáticas.

Page 33: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

25

Nesse tipo de doença, o paciente vivencia sintomas que exames clínicos não

conseguem detectar as causas. Cegueira, dores, desmaios, vertigens, mudez, entre outros,

são exemplos de sintomas que podem ser somáticos. O problema, no caso da anorexia, é a

falta de relação entre o que se passa no corpo de fato e o que a pessoa sente e vê. As

mudanças repentinas no volume do corpo são um sintoma cuja causa os exames clínicos

não detectam, como uma má formação cerebral ou incapacidade de criar mapas próximos à

sua realidade corpórea. Todavia, as distorções acontecem mesmo assim.

A decisão de restringir ao máximo a alimentação coloca em risco a sobrevivência da

pessoa, e isso é sinalizado pelo corpo. A palavra anorexia significa (an) falta de (orex)

apetite e não reflete a realidade vivida por essas pessoas. Elas se recusam a se alimentar e

sentem muita fome por causa da dieta rigorosa. Diz uma anoréxica em sua biografia:

Eu não sabia que a fome por comida, e os poderes revigorantes que ela

tem pudesse se tornar seu próprio oposto quando contrariada e se tornar

um tipo diferente de fome: uma fome pela própria fome, uma fome pelos

poderes debilitantes que a fome tem (HORNBACHER, 2006, p. 114).

As anoréxicas têm algumas características comuns de personalidade. São em geral

mulheres, perfeccionistas, exigentes consigo e com os outros, boas alunas e boas filhas,

agitadas e ansiosas. A decisão de parar de se alimentar é íntima e na maior parte das vezes

não é comunicada a ninguém. Passam a encarar o alimento como algo maléfico e o jejum

como maneira de manter o bem-estar.

Somente em 1980 a anorexia foi oficialmente reconhecida como uma patologia,

recebendo uma definição diagnóstica. Mas anteriormente já eram notificados casos de

jejuns prolongados, levando principalmente mulheres à morte. Assim como na atualidade,

Page 34: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

26

na fase final da Idade Média foi detectado um surto de anorexia entre freiras. Essas

mulheres, para alcançar a purificação e a santidade, restringiam ao máximo a própria

alimentação. O que hoje é encarado como um transtorno alimentar, na Idade Média era

visto como virtude. Esse assunto será abordado no próximo capítulo.

Page 35: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

27

Da Idade Média à atualidade

Historicamente, os jejuns autoimpostos estão presentes em diversas religiões, não

significando necessariamente um transtorno alimentar. No Egito antigo, por exemplo,

praticavam-se jejuns curtos (alguns dias) como procedimento de preparação do corpo para

receber visões sagradas. A abstinência alimentar era uma forma de purificação e devoção.

Nas filosofias e religiões orientais, o jejum prolongado era prática comum. Existiam

filosofias baseadas na busca do domínio das paixões para o alcance da perfeição divina,

como é o caso do Jainismo.

O objetivo do Jainismo é libertar a alma de seu aprisionamento corporal

por meio de extremo auto-controle e austeridade, em imitação a

Vardhhamana, seu fundador, que viveu na Índia no século VI a.C.

(WEINBERG, 2006, p. 22).

Essas filosofias e religiões orientais começaram a se difundir no Império Romano a

partir do século I d.C. e, junto com a criação de escolas filosóficas helenísticas baseadas

nos pensamentos de Pitágoras e Platão, criaram o ambiente em que surgiram as concepções

gnósticas. “O gnosticismo é a primeira tentativa de uma filosofia cristã: tentativa conduzida

sem rigor sistemático, com a mistura de elementos cristãos, místicos, neoplatônicos e

orientais” (WEINBERG, 2006, p. 22).

As diferentes escolas gnósticas têm como grandes temas a miséria do homem,

prisioneiro do seu corpo; a dualidade cósmica, mundo material ruim em contraposição a

um deus bom; apocalipse gnóstico, quando o mundo material sucumbiria e reinaria o

mundo divino. Assim é postulado que o corpo seja habitado por uma alma ou espírito,

Page 36: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

28

criando a dicotomia espírito e matéria. As formulações de que há algo que sobrevive à

matéria e a criação de um mundo divino servem para amenizar das angústias humanas a

respeito da morte, sendo bastante eficientes até os dias atuais.

É do pensamento gnóstico que surgiu alguns dos princípios fundamentais da religião

católica. Santo Agostinho (354-430) criou sua filosofia a serviço da teologia. Apesar de

muito influenciado por Platão, divergiu a respeito da tese platônica de que a alma foi

exilada de sua habitação verdadeira ao ocupar um corpo humano, postulando que Deus

criou todas as almas quando criou o ser humano. Para Platão, o corpo era um obstáculo para

a sua natureza racional e a realização da natureza humana não consistia em uma disciplina

racional da sensibilidade, mas na sua final supressão, na separação da alma do corpo, na

morte. Somente livrando-se do corpo porção racional, poderia viver em sua plenitude. Já

para Agostinho, o corpo era um instrumento para a expressão da alma. “O homem é, até

onde podemos ver, uma alma racional fazendo uso de um corpo mortal e material”

(AGOSTINHO apud COLLINSON, 2004, p. 53). A alma se utilizaria do corpo e do mundo

material para se desenvolver.

Para ele, havia duas formas de conhecer: o conhecimento sensorial (a mente

utilizando os sentidos corporais para obter conhecimento) e o conhecimento da mente por

ela mesma (uma espécie de iluminação, um conhecimento que se dá instantaneamente). “A

razão é a visão da mente, pela qual ela percebe a verdade em sim mesma, sem a

intermediação do corpo” (AGOSTINHO apud COLLINSON, 2004, p. 53). Tanto para

Platão como para Agostinho, a mente, na sua atividade mais elevada, tem acesso a um

conhecimento divino, potencialmente disponível a todas as mentes humanas.

Page 37: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

29

Este filósofo (Agostinho) distingue entre a natureza de entidades não

racionais, que simplesmente satisfazem suas propensões naturais, e – ao

lado destas – os seres racionais, para os quais a natureza tem uma

dualidade, dado que podem não somente alcançar as propensões naturais

como também possuem habilidade para escolher umas e reprimir outras.

(COLLINSON, 2004, p. 54).

Atribui-se à característica de ter mente e à capacidade de elaboração racional o lado

divino do ser humano, aquilo que o diferencia de todo o resto da natureza. Assim, postula-

se que o homem é um ser à imagem e semelhança de Deus, o seu criador, dando à nossa

espécie uma superioridade em relação às demais. Foram necessários 15 séculos para que

Darwin propusesse a Teoria da Evolução, derrubando essa hierarquia.

É criada uma ordem inicial, quando todos os seres planeta viviam em perfeita

comunhão, um paraíso que o homem, com sua ignorância, destruiu. A ordem posterior ao

paraíso é cheia de complexidade e morte. Os seres humanos seriam em princípio algo ruim,

deturpado, feio, destorcido e que participaria dessa desorganização. Assim foram criadas as

diversas religiões cuja tendência era que sempre se olhasse para um anterior original.

Os alicerces da religião católica são construídos nessa separação entre o divino,

belo, perfeito, justo, iluminado e o material, impuro, injusto, mau, das trevas. Ela foi

estruturada no Concílio de Nicéia, em 325 d.C., quando, por motivações políticas, é

postulado que Jesus foi um ser divino (da mesma “substância” de Deus) e não um mortal

como todos os outros humanos. Essa decisão tem por finalidade criar a figura de Cristo (do

grego Christós), que significa ungido. Assim foram conferidos a Jesus um prestígio e uma

autoridade cuja grandeza recaía sobre a própria Igreja Católica e assegurava seu poder, pois

Page 38: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

30

o Ser Divino, que veio à Terra para salvar a humanidade das mazelas mundanas, passa a ser

considerado o fundador dessa religião.

Esse Concílio foi organizado pelo Imperador Romano Constantino, que

estrategicamente fez do Cristianismo a religião oficial do Império. Na época havia muitas

religiões pagãs e, ao adotar uma religião monoteísta, criando o corpo de Cristo, o

Imperador tratou de organizar a instituição da igreja de forma hierárquica e patriarcal, de

modo que tivesse relação direta com a organização política do Império.

Tomando os cristãos sob sua proteção, ficou delimitado com clareza o campo

adversário. Criou-se uma separação entre o mundo do Império Romano ordenado e temente

a Deus e o mundo externo, o mundo dos erros, dos equívocos. Aquele que estivesse mais

próximo desse centro estaria mais imune aos pecados e deformações da periferia. A criação

desse centro de poder, a Igreja Católica, apaziguou essa idéia da destruição, do

envelhecimento, da morte e de todas as separações constituintes da vida da espécie humana,

que na sua enorme complexidade sempre conviveu com a consciência da perda. Todo poder

totalitário cria a ilusão de permanência.

O Imperador tratou de dar unidade a essa religião, visando a fortalecer seu governo.

No Concílio, composto por mais de 300 bispos, as decisões foram muito influenciadas por

Constantino, que perseguiu e exilou os que foram contrários a suas propostas. Com a

subida da Igreja ao poder, discussões doutrinárias passaram a ser tratadas como questões de

Estado. Essa ideologia cristã associada a um poder totalitário vigorou durante toda a Idade

Média, com a figura do senhor feudal.

Nos séculos XII e XIII foram feitas novas traduções adicionais da obra de Platão

que passaram a ser secretamente estudadas pelo clero. No século XV, como reação à

Page 39: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

31

Escolástica e a Aristóteles, um novo movimento neoplatônico ganhou força, especialmente

na Itália. Justamente nessa época de retomada dos estudos de Platão, no século XII,

começam a surgir casos de freiras jejuadoras que levaram seu intento até a morte. Muitas

delas foram canonizadas santas, pois, segundo a Igreja Católica, conseguiram libertar o

espírito da matéria. É o caso de Santa Clara de Assis (1193-1253), Santa Catarina de Siena

(1347-1380), Santa Maria Madalena de Pazzi (1566-1607), Santa Rosa de Lima (1586-

1617), Santa Verônica Giuliani (1660-1727), entre tantas outras. Para essas mulheres, “o

corpo é ao mesmo tempo o maior obstáculo, o maior inimigo e o meio de acompanhar o

Redentor: o corpo que é preciso vencer, o corpo vetor de um procedimento sacrificial”

(GÉLIS, 2008, p. 55).

A Igreja Católica, ao longo dos séculos, vem elegendo pessoas que após a morte são

canonizadas santas. Essa ação serve para diminuir a distância entre as pessoas comuns e o

divino, uma vez que o santo é sempre alguém que teve durante a vida uma conduta

exemplar e por mérito atingiu a perfeição. Na prática, o santo serve tanto como modelo de

comportamento e moral quanto como uma espécie de mensageiro de pedidos: ao invés de

endereçar a súplica diretamente a Deus, usa-se o santo como um intermediário nessa

relação. É o posto máximo que um ser humano pode atingir na hierarquia postulada pela

Igreja Católica.

O grande problema da época era distinguir entre as mulheres que realmente eram

santas das impostoras. Equipes médicas eram frequentemente solicitadas para dar seus

pareceres sobre cada caso. Era surpreendente e inexplicável o fato de as freiras passarem

tanto tempo sem dormir, ingerir alimentos, nem evacuar e ainda manter a disposição para o

trabalho, boa aparência ao invés de caírem prostradas ou doentes. Por esse milagre eram

Page 40: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

32

canonizadas. A maioria delas tinha grande poder político dentro da Igreja, apesar da

hierarquia patriarcal vigente.

Há documentos de freiras agindo dessa forma até o fim do século XV, quando a

Igreja começa a desestimular essa prática, devido ao grande número de freiras jejuadoras.

São criadas regras mais rígidas para a canonização e os jejuns autoimpostos começam a ser

considerados possessão do demônio e/ou bruxaria. É preciso ressaltar que o ascetismo das

freiras medievais é apenas um aspecto do modo de expressar seus ideais religiosos. O jejum

medieval é um símbolo dos valores coletivos, da elevação espiritual, da correção de caráter

perante Deus. Seus corpos materializavam o ideal de perfeição espiritual da época.

Com o Renascimento, novos pensamentos sobre a prática dos jejuns começaram a

surgir. As “doenças da alma” eram estudadas a partir de uma visão científica. A medicina

passou a pesquisar e a buscar explicações para a sobrevivência em condições de inanição.

Não havia mais a preocupação com o lado religioso dos jejuns, e o foco foi desviado para

os mecanismos do corpo, para manter-se funcionando com pouco alimento. Surgiram nessa

época os artistas da fome e os jejuns autoimpostos foram espetacularizados.

Kafka, em seu conto “Um artista da fome” (1922), fala sobre a vida de uma dessas

pessoas. Descreve as glórias de seus espetáculos, do grande interesse das multidões em sua

prática. Esse personagem despreza a conduta da sua assistência, que insiste em crer que é

um grande esforço se submeter àquela privação e se diverte com os que tentam achar algum

alimento escondido. Mas, com o passar do tempo, os espetáculos da fome foram perdendo

o interesse e esse artista resolve ir para um circo e realizar o maior jejum jamais feito. O

ponto alto do conto é o momento de sua morte, quando é encontrado encoberto pela palha,

numa jaula que todos consideravam vazia. O autor coloca na boca de seu personagem, o

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33

jejuador, a seguinte explicação para ter rejeitado a comida por toda a vida: “Eu não pude

encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria

feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo” (KAFKA, 2004, p. 35).

Recentemente, tivemos um caso de espetacularização da fome. O artista Guillermo

Vargas Habacuc, em maio de 2007, pegou um cachorro nas ruas de Nicarágua, amarrou-o

com uma corda e prendeu-o numa parede de uma galeria de arte na Bienal Costariquenha

de Artes Visuais (Bienarte). O título da obra era Eres Lo Que Lees e era a frase escrita com

ração para cães na parede onde o cachorro estava preso. A indicação do artista para que

ninguém alimentasse o animal fez com que ele falecesse de inanição dias depois.

http://guillermohabacucvargas.blogspot.com/

Seis trabalhos dessa bienal foram premiados seguindo os critérios de grande

qualidade e coerência entre a idéia e a execução. Entre os seis estava o de Guillermo, que

foi convidado a repetir o feito na Bienal Centroamericana Honduras 2008. Houve protestos

Page 42: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

34

e abaixo-assinados em todo o mundo contra a repetição do feito. Assim, o convite foi

revogado.

Surgiram duas discussões em torno da ação: uma questiona se a tortura de um cão

pode ser considerada arte; a outra defende o próprio cão, que teve seu direito à vida

violado. O artista, em entrevistas, contra-atacou, denunciando que todos os visitantes da

galeria observaram passivamente a agonia do cachorro sem libertá-lo, ou chamar alguma

autoridade para fazê-lo. Isso faz refletir sobre o grau de envolvimento de numa galeria de

arte, local destinado a observação de obras e performances. O acolhimento do sofrimento

do cão certamente seria diferente se ele estivesse num outro ambiente, como uma praça ou

via pública. Seu trabalho foi inspirado no caso de Natividad Canda, que em novembro de

2005 foi atacada durante 54 minutos por dois rottweillers ao entrar numa propriedade

privada para roubar. O dono da casa e o vigia presenciaram tudo sem socorrer Natividad,

que morreu no local.

Os casos das freiras jejuadoras são conhecidos hoje como anorexia santa. A prática

que foi motivo de santificação séculos atrás hoje em dia é considerada doença. Nas

biografias dessas freiras, é comum perceber o início do distúrbio alimentar como uma

tentativa de impor sua vontade frente a pressões da família (casamento indesejável ou

proibição de ingresso na vida religiosa).

Na Idade Média, havia uma divisão em classes que tinha relação direta com a

divisão da Igreja: o senhor feudal, o alto clero e a nobreza eram relacionados com o Céu; já

os camponeses e o baixo clero, com o Inferno. Essas posições eram bem definidas e não

havia mobilidade entre as classes sociais. O papel da mulher nesse ambiente era de se

tornar esposa daquele que o pai determinou ou ingressar na vida religiosa. A Igreja tinha o

Page 43: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

35

dever social de acolher as mulheres que não conseguiram se casar ou tornaram-se viúvas.

Jejuar rigorosamente e cortar os cabelos eram formas de poder. O texto do Processo de

Canonização de Santa Clara de Assis reúne depoimentos de pessoas que conviveram com

essa freira em casa e no mosteiro. Lá ficam claros os hábitos alimentares da freira:

Durante muito tempo, ficou três dias da semana sem comer coisa alguma,

nas segundas, quartas e sextas. Nos outros dias fazia tanta abstinência que

caiu em certa enfermidade, pelo que São Francisco, de acordo com o

Bispo de Assis, mandou-lhe que naqueles três dias comesse pelo menos

meio pãozinho por dia (Processo de Canonização, apud WEINBERG, p.

38).

Mas, como já foi dito, essas freiras jejuadoras eram vistas com desconfiança.

Catarina de Siena, aos 26 anos de idade, teve que dar explicações perante um religioso de

Florença sobre seus hábitos alimentares. Estavam suspeitando de simulação ou de

possessão do demônio. Em sua carta, Catarina tenta convencer as autoridades que sua

conduta é inspirada por Deus e mostra-se bastante submissa e resignada.

Aconselhando que eu peça especialmente a Deus que me faça comer mais;

e eu lhe respondo, meu Pai, e o asseguro em nome de Deus, que de todas

as formas possíveis eu tento fazê-lo e que me obrigo a ingerir algum

alimento [...]. Depois de haver feito todos os esforços que estão ao meu

alcance e examinando com cuidado esta imperfeição, pensei que Deus, em

sua bondade, me dava-a para corrigir-me do vício da gula. Agora não sei

que dieta devo tomar e lhe peço que ore à eterna Verdade e implore sua

graça, sempre e quando ela não vá contra sua hora e contra a salvação de

minha alma, para que me deixe comer algum alimento, se lhe agrada.

(Carta CCCXIII a um homem religioso de Florença, apud WEINBERG,

p. 44).

Page 44: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

36

Fingir submissão e cooperação é uma estratégia para driblar as imposições, tanto do

poder das autoridades eclesiásticas quanto os médicos atualmente. Há muitas semelhanças

de sintomas e comportamentos entre as freiras e as anoréxicas atuais, tais como: passar dias

em jejum, provocar vômitos quando forçadas a comer ou quando comiam demais, não se

veem como doentes, além de hiperatividade, desejo de reclusão, intransigência e

perfeccionismo.

A abstinência parcial ou total, episódica ou permanente, dá ao místico o

extraordinário sentimento de ser enfim senhor de seu corpo: o espírito

domina finalmente a carne. Há precisamente um “modo anoréxico de ser

no mundo”, com a esperança de escapar a este mundo. Uma sensação de

leveza e vivacidade invade todo o corpo: um estado de beatitude, um

sentimento de liberdade que os anoréxicos conhecem muito bem. (GÉLIS,

2008, p. 58).

As reações a respeito de jejuns tão prolongados e sacrificantes provocadas por

Catarina de Siena são comparáveis às que ocorrem hoje: admiração, reverência, receio,

desconfiança, raiva e invariavelmente a vontade de fazê-la se submeter à comida.

Entre todas as jovens que tentaram dar um sentido às suas vidas

dominando suas sensações (dor, cansaço, fome, desejo sexual) requer-se

toda a tenacidade, a vontade, a paixão e o carisma que Catarina aplicava

para conseguir o que buscava. Requer-se, sobretudo, e talvez seja essa a

vantagem de Catarina, que o corpo seja atravessado por um ideal.

(RAIMBAULT apud WEINBERG, p. 44).

É na fissura criada entre o que é real e busca incessante de um ideal que o distúrbio

se desenvolve. Se para as freiras o corpo era apenas um instrumento de purgação dos

pecados, algo que precisava ser depurado para alcançar um lugar perto de Deus após a

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37

morte; hoje o corpo é também um instrumento a ser modelado, de acordo com os desejos

estéticos das anoréxicas. Antes o ideal buscado era o da perfeição ética e moral; hoje, o da

perfeição estética.

O novo surto de anorexia é chamado de anorexia nervosa. Certamente, o cenário

cultural atual é bem diferente daquele da Idade Média, o que nos convida a desviar o foco

da discussão das pressões da mídia que exigem um corpo feminino magro ou das

exigências de algumas profissões como modelos e bailarinas. Não estamos assim afirmando

que esses fatores não são importantes atualmente para o desenvolvimento da doença.

Optamos por esse desvio de foco para tentarmos entender o que há de comum entre essas

duas épocas na tentativa de iluminar outros aspectos.

Nossa hipótese é que o desenvolvimento da anorexia pode ser entendido como uma

radicalização da tentativa de alcançar uma identidade que corporifique a dualidade

mente/corpo, espírito/matéria. Essas pessoas tratam não só o próprio corpo, mas todo

alimento (no caso das freiras abrange toda forma de matéria) como algo vil e impuro que

deve ser dominado pela mente ou pelo espírito.

Numa autobiografia de uma anoréxica e bulímica, ela nos diz que “essas

contradições começam a dividir a pessoa em duas. Corpo e mente se separam, e é nesta

fissura que um transtorno alimentar pode florescer” (HONBACHER, 2006, p. 13). As

santas buscavam elevar o seu espírito e se desvencilhar de todos os desejos do corpo, assim

como atualmente as anoréxicas têm como meta o domínio total do corpo pela mente. Esse

comportamento de controle do corpo está presente na nossa sociedade atual de outras

formas: cirurgias plásticas, remédios, cosméticos entre outros. A anorexia nesse contexto

social é apenas mais uma forma de domínio, talvez a mais radical.

Page 46: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

38

A busca de uma identidade (Santas para as freiras e “Anas” – denominação usada

entre as anoréxicas atuais) reduz a variedade de corpos a um único possível, e elas são esse

único possível. Aí reside seu poder. Poucas pessoas conseguem tamanho domínio do corpo

tanto entre as freiras da Idade Média como entre as anoréxicas atualmente. Na verdade,

muitos médicos defendem que não é possível escolher adquirir essa doença. Quem a

desenvolve, além de estar num ambiente propício a isso, provavelmente tem fatores

genéticos favoráveis ao aparecimento do distúrbio.

A anoréxica organiza o próprio pensamento a partir da dicotomia corpo x mente, e a

escolha é dominada por um modo de pensar que a impede de superar esse dualismo. Só

existem duas possibilidades: a de ter essa identidade ou não. Cria-se um pensamento

oposicional em que a opção por um dos dois elementos obrigatoriamente exclui o outro. Há

uma tendência à homogeneização das idéias e das possibilidades. Ela acredita nessa

redução e não analisa a variedade. A única possibilidade é não se alimentar. Não é

permitido viver num corpo gordo. Até porque a gordura se deposita nas partes do corpo de

forma descontrolada, imprevisível, e a anoréxica tem que estar no controle. A gordura

invade o corpo e se deposita onde ela quer, quase que por vontade própria. Não é possível

desejar engordar uma parte específica do corpo e não outra. A gordura segue uma lógica

inaceitável.

Há uma dificuldade nessas pessoas de lidar com a diversidade que afrouxa as

tendências de dominação. A palavra identidade tende mais ao poder. A complexidade supõe

a desarmonia ou crise. A anoréxica vai tentando eliminar as variações buscando o plano,

achatado e asséptico, que está presente tanto no seu físico quanto em suas idéias. A

identidade e oposição não são diferentes, pois quem se opõe ferrenhamente a uma

Page 47: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

39

identidade e se mantém na oposição cria outra identidade. Há casos de pessoas que eram

obesas antes de desenvolverem anorexia. É a oposição do mesmo problema: compulsão por

alimento e compulsão pela falta dele.

O transtorno é, no nível mais básico, uma porção de contradições mortais:

um desejo de poder que lhe tira todo o poder. Um gesto de força que lhe

despe de toda a força. Um desejo de provar que você não precisa de nada,

que você não tem fomes humanas, que se vira contra o próprio desejo e se

torna uma necessidade intensa pela fome em si. É uma tentativa de

encontrar uma identidade, mas acaba por lhe deixar sem qualquer senso

de si próprio. (HORNBACHER, 2006, p. 12).

A pesquisadora americana Gail Weiss afirma que “em vez de ver o anoréxico como

um sujeito incoerente ou contraditório, digo que ele é demasiado coerente,

psicologicamente e corporalmente dominado [...] pelo temor de engordar”4 (WEISS, 1999,

p. 54).

Levar ao extremo o controle da mente ou do espírito sobre o corpo, reduzindo-o a

algo homogêneo e plano, é caminhar para a morte. Não é possível atingir tal objetivo, pois

o corpo é sistêmico e complexo, e para sobreviver explora um ambiente também complexo.

Há desestabilizações necessárias para lidar com a diversidade do ambiente e garantir a

sobrevivência.

É preciso ressaltar que os momentos históricos estudados (atualidade e fim da Idade

Média) são períodos em que paradigmas foram e estão sendo quebrados. A transição da

estruturada Idade Média para o Renascimento trouxe um novo modo de entendimento do

4 “…rather than view the anorexic as an incoherent or contradictory subject, I am claming that she is too coherent, psychically and corporeally dominated (…) by “dread of getting fat”.

Page 48: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

40

mundo, assim como atualmente toda a ordem da Modernidade está sendo problematizada.

Os transtornos alimentares (anorexia e bulimia) são formas radicais de controle do corpo e

se desenvolvem em períodos de crise, quando a pessoa não está conseguindo lidar com as

mudanças e perdas.

Paul Churchland explica que existem algumas abordagens dualistas da mente “mas

todas elas concordam em que a natureza essencial da inteligência consciente está em algo

que é não-físico” (CHURCHLAND, 1998, p. 25-26). Assim sendo, a inteligência não

poderia ser explicada por processos neurofisiológicos, químicos, físicos etc.

Há duas correntes que trabalham com a concepção dualista: o dualismo de

substância e o de propriedade. O primeiro tem como hipótese que existem duas substâncias

distintas possíveis: uma seria a matéria, que tem como principal característica ocupar

espaço; já a segunda não teria dimensões ou localização espacial. Essa substância não-física

seria o que compõe a mente. De alguma forma, as duas substâncias interagiriam – ou seja, a

mente se conectaria e manipularia o corpo. Nessa concepção a pessoa seria, na realidade,

sua mente e não o seu corpo; na mente estariam a personalidade, o caráter, a inteligência e

sua interação com o corpo daria à pessoa a possibilidade de viver materialmente.

É a partir desses pressupostos que as grandes religiões que vigoram no planeta

ergueram suas concepções de transcendência. É bastante conveniente que, para diminuir a

agonia de ter consciência da morte, as pessoas se filiem a essa corrente teórica, pois se há

uma mente que não é matéria, há esperança de sobrevivência fora do corpo. Há uma clara

separação, inclusive hierárquica, entre as funções da mente e da matéria. Mas, para além

disso, na experiência individual do funcionamento da mente, o que se apreende são

pensamentos, desejos, raciocínios, sentimentos... Na introspecção não é revelado

Page 49: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

41

claramente o funcionamento do sistema nervoso com suas variações eletroquímicas. Isso

reforçaria a crença nessa teoria, de que a mente seria de outra natureza, não física.

No dualismo de propriedade não se cogita a existência de outra substância, mas

acredita-se que o cérebro possui um conjunto de propriedades único que geram a

inteligência consciente. É um modo de organização complexo onde emergem propriedades

com características singulares próprias daquele sistema. Estas só poderiam ser explicadas

com a criação de uma ciência diferente das ciências físicas habituais.

Nenhuma dessas teorias é muito aceita no meio científico atualmente. Isso porque

não há evidências da existência de uma outra substância que não seja física, com

propriedades diferentes das já conhecidas. Os argumentos não se sustentam. Além disso,

com o avanço das pesquisas sobre o cérebro, a mente vem, cada vez mais, sendo

desvendada a partir do próprio cérebro. Vem sendo constatado que a mente emerge em

tecido biológico, os neurônios. Porém, no senso comum e principalmente no seio das

religiões, a separação entre o espírito e a matéria é a hipótese que vigora.

Atualmente, o incentivo às práticas dos jejuns autoimpostos ganha configurações

condizentes com o momento atual. Nos Estados Unidos, um grande número de pessoas

passou a jejuar depois de ter contato com as propostas da Família Bragg. Os Bragg já

lançaram cerca de dez livros, todos recordes de vendas, sobre técnicas e benefícios de

jejuar. Essa família americana já conquistou o interesse de milhares de pessoas em várias

partes do mundo.

Os livros trazem uma metodologia desenvolvida para que a pessoa possa jejuar cada

vez por mais tempo. As estratégias de convencimento vão desde a importância de uma

reeducação alimentar (já que a maioria da população americana tem uma dieta rica em

Page 50: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

42

gorduras e proteínas) até argumentos espirituais, inclusive citando líderes religiosos que

faziam jejuns autoimpostos, tais como Jesus, o apóstolo Pedro, Elijah, Ezia, Esther, Job,

David, Hannah, Isaiah, Zachariash. Ressaltam a importância de alimentos orgânicos e

afirmam que jejuns prolongados ajudam a expelir os venenos acumulados no corpo devido

à ingestão de agrotóxicos. É notório o mal que pesticidas trazem à saúde. Há realmente

muitas pesquisas desenvolvidas em todo o mundo a esse respeito. Utilizando esse filão, os

Bragg afirmam que livre dessas impurezas (adquiridas nos alimentos, ar, água), é possível

viver 120 anos ou mais. As fotos sorridentes espalhadas por todo o livro tentam convencer

os mais afoitos por perder peso que os jejuns propostos são realmente eficazes e saudáveis.

O livro Water, the shocking truth (2004) é inteiramente dedicado à importância de

ingerir água destilada, prometendo mudanças significativas no funcionamento do coração,

circulação, digestão, metabolismo, absorção, evacuação, glândulas, músculos, sexo e

energia. Segundo a autora, Patrícia Bragg, é extremamente prejudicial o consumo de água

fluoretada. São indicados vários sites com matérias publicadas sobre o assunto, a maioria

escrita por eles mesmos. É proposto que a população se manifeste escrevendo para o

presidente, governadores, senadores etc., para protestar e pedir o fim da fluoretação da

água. Os e-mails devem ser mandados aos governantes com cópia para o Bragg Water

Book. É claro que eles são expostos no site dos Bragg como uma forma de legitimar e

fortalecer a crença de que é mais saudável ingerir água destilada.

É facilmente identificável a tentativa de manipulação para a venda de produtos

Bragg, livres de agentes tóxicos. No livro The Miracle of Fasting, é explicada a maneira

correta de entrar e sair dos jejuns e, obviamente, é necessário ingerir produtos Bragg. Há

inclusive uma pirâmide nutricional que tem no seu topo complexos vitamínicos Bragg.

Page 51: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

43

Sempre no final dos livros há todas as indicações de como adquirir os produtos, inclusive

com os preços e as formas de pagamento.

Nesse mesmo livro, há um capítulo dedicado à mente humana. Logo abaixo do

título, há o desenho de um cérebro dividido frenologicamente, com as indicações de

algumas possíveis regiões responsáveis pela visão, audição, área motora das pernas, tronco,

braço, pescoço, face. O capítulo inicia dizendo que assim como no cristianismo Deus é

representado pela trindade – Pai, Filho e Espírito Santo –, o homem é dividido em corpo,

mente e espírito. Para os Bragg, a mente deve controlar o corpo e a si mesma, para eliminar

maus pensamentos e sentimentos:

O viciado em drogas é o exemplo mais radical de um corpo que subjuga a

mente! Por isso o mundo é tão cheio de viciados. O intenso desejo

corporal pela droga leva a mente a comandar o corpo a cometer crimes

violentos por dinheiro, para que o corpo sacie seu desejo por drogas. Por

isso o mundo está repleto de viciados. (BRAGG, s/d, p. 205).

Seguindo essa lógica, é urgente que o corpo seja dominado, pois é por causa dele

que a violência cresce no mundo! Levando em consideração teorias não-dualistas que

acreditam que não existe outra coisa que não seja corpo, a dominação do corpo é a própria

dominação do indivíduo. Os Bragg incentivam a permanente vigilância do corpo pela

mente e afirmam que a prática do jejum tem efeitos milagrosos para o bem-estar físico,

mental e espiritual.

Vemos aqui que os jejuns autoimpostos atualmente estão sendo comercializados.

Abriu-se um novo formato de incentivo a essa prática de forma bastante condizente com a

organização sócio-político-econômica atual. Assim como a Igreja, na Idade Média, aceitava

Page 52: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

44

e enaltecia o hábito de jejuar rigorosamente das freiras, caracterizando-as como santas –

pois esse procedimento conferia poder individual a elas, o que glorificava a própria Igreja –

hoje as regras e valores fazem com que a prática seja incentivada para gerar lucros.

Não há consenso entre os médicos de que qualquer pessoa possa adquirir anorexia.

Há os que afirmam que há fatores genéticos envolvidos nessa questão. De qualquer forma,

as idéias da família Bragg prestam um desserviço à sociedade, veiculando informações

falsas e perigosas à saúde, ao estimular a prática de jejuns.

Na internet também há veiculação de informações falsas sobre o assunto. Sites

publicam fotos alteradas digitalmente de modelos, fazendo com que os corpos fiquem

muitíssimo mais magros. Forma-se uma imagem errônea de que as anoréxicas exibem

corpos muito distantes dos que convivemos cotidianamente.

É notório que modelos fazem parte do grupo de risco para o desenvolvimento da

doença. Há pressões de mercado para que mantenham seu corpo magro. A grande maioria

adota uma dieta hipocalórica que perdura ao longo da carreira. Nenhuma delas apresenta

aspecto doentio ou magreza cadavérica como é amplamente divulgado nas fotos que

circulam pela internet sobre anoréxicas.

Encontramos exemplos de distorções em fotos de modelos famosas no site

http://www.e-farsas.com/artigo.php?id=10 (acesso em 20/09/08).

Fotos alteradas digitalmente

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Fotos sem alteração

No primeiro grupo de fotos, as alteradas digitalmente são chocantes. Exibem corpos

deformados a tal ponto que já não são sinônimos de beleza, como é esperado de modelos.

Agora, observando-se atentamente os corpos das fotos sem alterações, estes também são

extremamente magros, bem abaixo do peso. Há uma idéia errônea que as anoréxicas são

necessariamente o extremo da magreza, exibindo corpos deformados. Isso não é verdade. A

grande maioria está sim muito magra, mas não distante do corpo das modelos dessas fotos

Page 54: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

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sem alteração digital. Claro que, em momentos de crise aguda, antes de internações,

geralmente o corpo está muito debilitado e magro, mas muitas anoréxicas passam

despercebidas de seu distúrbio, sendo classificadas pelos amigos e desavisados apenas

como magrinhas.

Observando o ensaio fotográfico da modelo brasileira Ana Carolina Reston Macan,

que faleceu de anorexia, em novembro de 2006, aos 21 anos, ratificamos o que foi dito

acima. As fotos a seguir foram tiradas uma semana antes de Carolina ser internada com

complicações devido à doença. Seu corpo, magro, parece saudável, não seguindo o

estereótipo do corpo anoréxico amplamente divulgado. A modelo foi internada em outubro

daquele ano com infecção urinária, o quadro progrediu para insuficiência renal e, por fim,

infecção generalizada. Além da bactéria que provocou a infecção inicial, havia fungos no

pulmão. Como seu sistema imunológico estava enfraquecido, nada fez efeito para combater

a bactéria.

http://www.caras.com.br/edicoes/681/textos/3971/ (acesso em: 15/08/08).

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47

Em 2007, o publicitário Oliviero Toscani, famoso por suas campanhas publicitárias

polêmicas, lançou um novo trabalho para a grife de moda No-l-ita, contra a anorexia.

Responsável, nos anos 90, pelas campanhas da United Colors of Benetton, Toscani

promoveu uma ruptura na fórmula tradicional de publicidade, que une o produto a

romantismo, sensualidade, sucesso e felicidade. Ao contrário, esse publicitário criou

imagens que questionaram e promoveram discussões sobre grandes temas como raça, vida,

morte, homossexualismo, sexo, religião, entre outros. A postura da empresa Benetton em

relação a esse novo tipo de publicidade também foi deslocada: ela deixou de ser uma

empresa querendo vender seu produto e passou a ocupar o lugar de grande patrocinadora

das discussões propostas nas campanhas. A marca da empresa passou a ser associada às

causas e não a seus produtos.

Na nova campanha publicitária de Oliviero Toscani, o mesmo artifício foi utilizado:

a associação da marca de roupa No-l-ita à campanha contra a anorexia. A polêmica gira

justamente na promiscuidade do interesse privado em uma causa pública. É indiscutível a

importância da ampla discussão sobre a anorexia, mas quando isso é associado a fins

lucrativos, passa a ser questionável.

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http://www2.nolita.it/noanorexia/indexEng.htm

A repercussão foi grande em torno da veiculação das fotos da modelo francesa

Isabelle Caro, em 24/09/07, em jornais e ruas italianas no momento em que acontecia a

Semana de Moda de Milão, dividindo opiniões.

“A campanha de Toscani com a menina anoréxica é uma verdadeira

violência visual e a mercantilização de um problema social”, declarou

Alberto Contri, presidente da associação Publicidade Progresso.

“Instrumentalizar um problema sério como a anorexia para vender

roupas? Não sei como isso pode ser aceito ou, pior, como pode ser

apoiado”, acrescenta Contri a respeito da campanha que recebeu o aval do

Ministério da Saúde italiano. Mario Boselli, presidente da Câmara de

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49

Moda Italiana, também critica a escolha de Toscani: “Não me entusiasma

o uso da desgraça alheia para fins publicitários”, afirmou Boselli. Por sua

vez, a ministra Emma Bonino, responsável por assuntos de comércio

exterior, apoiou a iniciativa: “Parabéns, Toscani, sua campanha é muito

eficaz”, afirmou a ministra.

(http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u331540.shtml, acesso

em: 20/09/08).

Em declaração à mídia local, Toscani disse:

Há anos me ocupo do problema da anorexia. Quem são os responsáveis?

No geral, os meios de comunicação, a televisão, a moda. Parece muito

interessante que uma marca de moda entenda o fenômeno, tome

consciência de seu papel e patrocine a campanha. Como sempre, faço um

trabalho de repórter, testemunho o tempo em que

vivo.(http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u330969.shtml,

acesso em: 20/09/08).

Quatro dias depois do início da campanha, a prefeita de Milão, Letizia Moratti, deu

ordens para retirar dos espaços outdoors de responsabilidade da prefeitura as fotos de

Toscani. Em seguida o IAP, órgão privado que regula o setor de publicidade na Itália,

decidiu proibir a veiculação da campanha. Afinal, aquele corpo exposto ataca diretamente

os interesses comerciais da alta costura. Não é economicamente interessante que o assunto

seja discutido justamente quando desfiles estão acontecendo e negócios sendo fechados.

Os tratamentos da anorexia estão normalmente baseados na compreensão de uma

doença que se inscreve num corpo, com causas biológicas e/ou psicológicas, não

conseguindo superar essa dualidade mente/corpo. Há uma inabilidade dos médicos em

ensinar às pacientes como superar essa dicotomia. É que a medicina também trabalha

Page 58: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

50

promovendo o domínio do corpo, não pelo espírito ou pela mente, mas por remédios,

mostrando-se assim tão ineficiente diante dessa doença. Mais uma vez, a necessidade do

mercado em que o consumo de remédios movimente a indústria farmacêutica prevalece.

A legislação portuguesa define medicamento como

Toda a substância ou associação de substâncias apresentada como

possuindo propriedades curativas ou preventivas de doenças em seres

humanos ou dos seus sintomas ou que possa ser utilizada ou administrada

no ser humano com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou,

exercendo uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica, a

restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas. (http://como-

emagrecer.com/)

É facilmente identificável o pensamento de correção e eliminação de um mal

presente na definição. O corpo é tratado como se não tivesse competência para agir e suprir

suas necessidades. Há uma cultura da anestesia e da imobilidade: se a criança corre todo o

tempo há remédio para aquietá-la; se o adolescente dorme demais deve tomar estimulantes;

para tristeza, antidepressivos; para fome, inibidores de apetite...

Não há mais estímulo à experimentação o corpo. Nos grandes centros, os espaços

físicos mais utilizados cotidianamente, como os próprios apartamentos, são reduzidos e

objetos como controles remotos, carros, elevadores vão diminuindo o leque de movimentos

cotidianos. A relação entre corpo vigoroso e sobrevivência está totalmente abalada pelas

tecnologias atuais, que tendem a diminuir a importância dos movimentos e a supervalorizar

o trabalho mental. Assim é possível que, por exemplo, uma pessoa passe oito horas por dia

sentada digitando sem ter a menor lembrança de como está se comportando durante esse

tempo. Voltaremos a esse assunto no terceiro capítulo.

Page 59: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

51

A respeito da anorexia, não se trata apenas de fazer um corpo voltar a ganhar peso,

ou que a pessoa entenda que a gordura é necessária, tampouco eliminar uma doença

instalada num corpo, fazendo-o voltar à ordem. Não é possível tratar o corpo como uma

tábula rasa onde uma doença se inscreve. Não há uma ordem anterior para onde voltar.

Após a “cura” tudo está modificado.

Essa ideia de volta a um estado perfeito anterior foi herdada da religião católica, que

se baseia no pecado original. Trata o ser humano como alguém que rompeu essa ordem e

que precisa viver num constante estado de autopunição e de medo. É nessa lógica de

pensamento que se explicam os males, as doenças, as pestes, o sofrimento, etc. O ser

humano seria sempre alguém que destruiu esse período paradisíaco e precisa sofrer por

isso.

Para tal enfermidade, é necessário trabalhar as conexões entre o corpo e a mente,

para que a doente se depare com a diversidade existente em si, promovendo assim a

integração dessa pessoa que se encontra achatada. “Eu me sentia vazia. Eu me sentia

bidimensional, frente e verso” (HORNBACHER, 2006, p. 238). É preciso dar condições

para que o corpo experimente novas possibilidades, novas significações. No caminho para a

vida a anoréxica, não deve abandonar (nem seria possível) o que já foi experimentado, nem

tentar retroceder a doença e atingir um estágio anterior a ela.

É a educação da sensibilidade que faz com que se torne possível

desenvolver potencialidades para além da doença, desejos e necessidades

da própria pessoa. Esse material que a gente pode aproveitar e fecundar.

Aquela limitação, aquela dificuldade, o que a gente pode fazer emergir

dali. Que aquela pessoa procure se superar, que ela consiga ver e sentir

que é possível. É possível esse eterno conhecimento do corpo, é possível

Page 60: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

52

mesmo, apesar de toda dificuldade, criar essa cumplicidade para que

juntos a gente descobre novos caminhos. (depoimento de Lilá, em 2008).

Esta dificuldade de superar o dualismo é observada na maneira como a pessoa age.

Compreende-se mentalmente que a divisão é inútil, mas não se consegue praticar. Essa

informação está entranhada na pessoa. Isso porque ela acreditou que a mente pode e deve

dominar o corpo o que acaba virando um emparedamento.

Um terrível paradoxo estava comandando a minha vida: o meu modo de

auto-regulação era a autodestruição. Para abrir mão de um transtorno

alimentar muito antigo, que se desenvolveu precisamente no mesmo ritmo

da sua personalidade, o seu intelecto, o seu corpo, a sua própria

identidade, [...] você precisa abrir mão de alguns comportamentos tão

velhos que já são quase instintos primitivos. Eu tive que abrir mão do

único modo consagrado de lidar com o mundo que eu conhecia, voltando-

me, em vez disso, para coisas que não haviam sido testadas nem provadas,

coisas incertas. (HORNBACHER, 2006, p. 226).

Gaill Weiss propõe que um tratamento mais eficiente deva começar pelo corpo,

fazendo com que as anoréxicas vivenciem novos estados corporais e criem múltiplos mapas

do próprio corpo.

Para se chegar num “entendimento entranhado” da anorexia [...] é

necessário começar pelas dimensões vividas, corpóreas deles, em vez de

começar pelos diagnósticos médicos, cognitivos ou mesmo culturais. Isso

envolve focarmos menos nas contradições culturais e corpóreas que

aparecem nessa doença em particular, contradições que são bem aparentes

não apenas para os que veem de fora, mas para a própria anoréxica,

embora com a necessidade de responder corporalmente a essas

Page 61: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

53

contradições através da criação de imagens corporais múltiplas. (WEISS,

1999, p. 55-56)5.

Esse novo surto de anorexia iniciou-se nas classes mais ricas das sociedades

européias, onde a criação de identidades serviu de alicerce para o modo de vida durante

toda a modernidade. Com o passar dos anos, a anorexia foi se disseminando pelo resto no

mundo, atualmente atingindo inclusive classes pobres. Cybelle Weinberg, citando uma

pesquisa de Morande, nos diz:

estas enfermidades seguem um canal epistemológico tal qual a moda;

iniciam-se nos países ricos, “centros da moda”, e se estendem entre as

classes sociais altas, para logo, em dez anos, alcançar e afetar a população

como um todo (MORANDE apud WEINBERG 2006, p. 102).

5 “To arrive at an “embodied understanding” of anorexia […] requires beginning with their lived, bodily dimensions rather than with a medical, cognitive, or even cultural diagnosis dimensions rather than with a medical, cognitive, or even cultural and of them. And, I am arguing, this involves focusing less on the cultural and bodily contradictions that appear in this particular disease, contradictions that are all too apparent not only to outside but often to the anorexic herself, but on the need to respond corporeally to these contradictions through the creation of multiple body image […]”.

Page 62: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

54

Entranhando informações –técnica Vianna

Seguindo a proposta de Gail Weiss (1999), de que deve ser mais eficaz para a

anorexia uma abordagem a partir do corpo, levantamos a hipótese de que práticas de

movimento que estimulam a criação de novas imagens do corpo podem ajudar a aproximar

a realidade corpórea da anoréxica do seu fluxo de imagens, diminuindo as distorções

imagéticas que a pessoa produz.

Não estamos dizendo que todo e qualquer exercício físico é benéfico nesse caso. As

anoréxicas costumam praticar atividades físicas durante horas para perderem peso, mas

trabalham o corpo sem afetar consistentemente sua imagem corporal. Sua preocupação está

em gastar calorias e não em provocar alterações no modo de perceber e lidar com o próprio

corpo. Por isso, descartamos de imediato todos os exercícios que utilizem o sistema

nervoso meramente para comandar as ações dos membros, tronco e cabeça, sem nenhuma

preocupação a respeito das transformações ocorridas ao realizar esses movimentos.

No século passado, alguns pesquisadores corporais se interessaram pelas

possibilidades de reabilitação e melhoria da qualidade de vida por meio do movimento

corporal. Diferentemente da abordagem da fisioterapia, que propõe uma execução

meramente mecânica dos exercícios, esses profissionais, além de estudarem o

funcionamento do corpo segundo a anatomia, fisiologia e cinesiologia, perceberam que ao

levar a atenção para a execução do movimento há uma alteração no modo como

percebemos o próprio corpo e como fazemos uso dele. Essas pessoas criaram técnicas

Page 63: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

55

especificamente para essa finalidade. Entre elas estão a eutonia6, técnica de Feldenkrais7,

técnica de Alexander8, pilates9, GDS10, Bartenieff11. Esses criadores foram normalmente

pessoas ligadas à dança que tiveram algum problema de saúde durante a vida, minimizado

por meio de exercícios desenvolvidos pelos próprios. Assim, dedicaram-se à pesquisa e

sistematização de suas técnicas terapêuticas para beneficiar àqueles que se submetessem a

ela.

Foi escolhido para esta pesquisa o trabalho do casal brasileiro Angel e Klauss

Vianna, que, diferentemente dos citados acima, não foi criado com uma finalidade

terapêutica ou de reabilitação, e sim com uma finalidade artística. No entanto, após anos de

experiências, os desdobramentos dessa prática de trabalho atingiram outras áreas de

conhecimento, como a da saúde e da educação e, no caso específico da anorexia, têm-se

mostrado bastante eficientes.

6 Criada pela alemã Gerda Alexander (1908-1998), a eutonia é uma prática corporal que visa ao equilíbrio do tônus muscular (capacidade das fibras musculares modificarem sua elasticidade), aprendendo a movimentar-se dosando o gasto de energia segundo a necessidade do momento. 7 Técnica criada por Morse Feldenkrais (1904-1984) para flexibilização dos hábitos de postura, de movimento e de percepção. Criou inúmeras sequências que desenvolvem uma forma de pensamento cinestésico, aguça as capacidades de percepção e controle dos movimentos. A atenção consciente é levada ao pano de fundo proprioceptivo das ações utilizando a imaginação, o movimento, a orientação espacial, as sensações de esforço, de forma e de volume (http://www.incorporando.net/feldenkrais.htm). 8 Frederick Matthias Alexander (1869-1955) criou esta técnica que pretende, através de movimentos que estimulam a auto-observação, melhorar nosso desempenho diário pela redução da tensão, da rigidez e da energia gasta desnecessariamente na execução de atividades cotidianas (http://www.ceta.com.br/tecnica.htm). 9 Método criado por Joseph Pilates (1880-1967), também conhecido por contrologia, é um sistema de exercícios que visa a trabalhar o corpo uniformemente, corrigir a postura, desenvolver a vitalidade física, aprimorar a conexão mente-corpo. 10 Método criado por Godeliève Denys-Struyf, que trabalhou com o conceito de “cadeias musculares”, integrando o funcionamento do corpo e suas conexões com o comportamento psicológico. É um método de leitura da postura, dos gestos e formas do corpo, que utiliza o movimento como princípio para a reeducação dos mesmos. 11 Irmgard Bartenieff (1900-1981), discípula de Rudolf Laban, criou, a partir do Sistema Laban, os Bartenieff Fundamentals, sequência de exercícios com finalidade terapêutica.

Page 64: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

56

Angel e Klauss Vianna começaram a dançar balé na escola de Carlos Leite, no fim

dos anos 40, em Belo Horizonte. Na década de 50, iniciam uma pesquisa de movimentos

corporais. A princípio a finalidade era entender a estrutura do corpo para melhorar o

desempenho deles próprios e seus alunos na dança.

A busca de Angel pelo conhecimento formal do corpo, em um primeiro

momento, não veio pela via intelectual e nem acadêmica, ou seja, pelo

ambiente das áreas [...] que abrangem o conhecimento categorizado para a

compreensão do corpo. A via curiosa que a levou à necessidade de

entendê-lo, apreendê-lo e trazê-lo para seu mundo foi a artística, tanto da

dança quanto da escultura. (TEIXEIRA, 2008, p. 10).

No período de 1955 até 1962, abriram uma escola de dança, a Escola Klauss

Vianna, onde puderam ampliar a pesquisa. O casal, que tinha formação em balé, passou a

estudar anatomia, fisiologia e cinesiologia, o que era uma grande novidade para a época. O

interesse por essa abordagem de corpo (da área da saúde) serviu como parâmetro, mas

nunca foi encarada como representação universal. A importância de vivenciar tudo o que

era aprendido no próprio corpo sempre foi o principal aspecto do trabalho. Isso possibilitou

reconhecer a singularidade de cada corpo dentro dessa representação universal do atlas

anatômico.

Nessa época, foi criado o Ballet Klauss Vianna e as coreografias desse grupo eram

inovadoras, sendo na época chamado pela crítica de dança de vanguarda, hoje categorizada

como dança moderna. Em 1963 e 1964, os Vianna moraram em Salvador, onde trabalharam

na UFBA dando aulas de balé e estudaram dança moderna e o sistema Laban, com Rolf

Gelewski. Nos anos seguintes, no Rio de Janeiro, a pesquisa corporal foi levada também

para o teatro, no trabalho com atores. Foi um marco definitivo, pois o casal amplia a

Page 65: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

57

pesquisa e passa a trabalhar com todo o tipo de pessoas, das mais diversas profissões, com

ou sem pretensões artísticas. Em 1975 abriram a escola Centro de Pesquisa Corporal Arte e

Educação. Nos anos 80, Klauss se mudou para São Paulo e Angel Vianna, no Rio de

Janeiro, fundou a Escola Angel Vianna, e em 2001, a Faculdade Angel Vianna.

Paralelamente, desde a década de 50, Angel foi solicitada para trabalhar com

pessoas portadoras de deficiência. Na época não existiam profissionais das áreas de

fisioterapia. Com sua filosofia de vida inclusiva, desde essa época até a atualidade, é

comum, em suas salas de aula, ter algumas pessoas deficientes ou com lesões trabalhando

junto com as outras pessoas.

Foi em 1992, com a criação do curso técnico em Recuperação Motora e Terapia

através da Dança, que Angel começou a formar pessoas especializadas no trabalho

terapêutico. Elas passaram a atuar em diversos locais, tais como Hospital Sarah Kubitschek,

Funlar, Hospital Nise da Silveira, Hospital Pedro II, entre outros. Recentemente, em 2007,

a Faculdade Angel Vianna criou a Pós-graduação Lato Sensu em Terapia através do

Movimento. Corpo e Subjetivação, dando prosseguimento a essa formação.

A pesquisa dos Vianna, que passou por vários momentos históricos, tanto no teatro

quanto na dança, assumiu diferentes nomes em sua trajetória. Há quase duas décadas existe

em São Paulo um movimento para nomear esse trabalho como “técnica Klauss Vianna”. No

Rio de Janeiro, os discípulos de Angel Vianna preferem chamá-lo de “conscientização do

movimento e jogos corporais”, que é o nome adotado pela própria. Sem nos aprofundarmos

nessa questão, adotamos aqui o nome de técnica Vianna, entendendo que se trata de uma

pesquisa elaborada pelo casal Vianna. Nomeando dessa forma, pretendemos dar crédito a

Klauss e Angel pelo trabalho que foi elaborado, desenvolvido e executado em conjunto,

Page 66: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

58

sem privilegiar nenhuma das partes. Levantamos a hipótese de que a técnica Vianna, assim

como outras abordagens corporais que priorizam a pesquisa da percepção do movimento no

corpo, pode ser eficiente para a transformação do corpo anoréxico, ajudando a diminuir a

distorção das imagens do corpo no cérebro, aproximando a realidade corpórea.

A pesquisa de campo iniciou-se em setembro de 2007. O grupo era composto de três

jovens com diagnóstico de anorexia: Analu, Anabel e Anastácia. As aulas tinham a duração

de uma hora, duas vezes na semana, e foram ministradas por Lila Santos. Ficamos com a

função de assistente. Todas as alunas estavam em tratamento psiquiátrico, psicológico e

nutricional. Nessa aplicação prática não buscamos uma mostra quantitativa, nem temos a

pretensão de obter resultados como fim da doença ou permanência dela. O intuito dessa

ação foi observar as modificações de cada aluna na relação com o seu próprio corpo e nas

suas relações sociais. Como não é possível ter acesso direto aos mapas cerebrais, buscamos

indícios, pelo relato, para identificar o que está ou não se modificando na imagem que as

alunas estão formando de si mesmas.

Os três primeiro meses foram os de maior resistência ao trabalho, com muitas faltas

e reclamações. As propostas não eram bem aceitas e executadas displicentemente. Ao

encerrarmos as atividades por causa das festas de fim de ano, não sabíamos se haveria

interesse, por parte das alunas, em dar continuidade às aulas no ano seguinte. Retomamos

após a semana do carnaval, em meados de fevereiro. Anastácia estava, naquele momento,

internada num hospital. Analu e Anabel voltaram, mas sem muito entusiasmo. Duas

semanas após o reinício das aulas, a aluna teve alta do hospital e, obrigada pelos pais,

voltou a nossa sala de aula.

Page 67: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

59

Eu ficava toda doída. Não podia deitar no chão que eu sentia o meu osso e

tudo doía. Aí quando eu ia fazer eu pensava “Vou esquecer que esse osso

existe”. Vou deitar aqui um pouquinho, não quero sentir nada, não quero

ter tato. Porque é uma coisa louca ficar aqui sentindo aquele osso o tempo

inteiro. Que sofrimento. (depoimento de Anastácia, 2008).

Foi no começo de abril que de fato o trabalho começou a ser executado com alguma

qualidade pelas meninas. Para a professora, “o desafio foi acrescentar informação na

riqueza daqueles corpos – que tinha muita riqueza mesmo – alguma coisa de informação

nova. Até porque ninguém informava alguma novidade com relação ao corpo” (depoimento

de Lila, 2008). Até então, apenas o desconforto de sentir o próprio corpo era percebido e

relatado. Havia muita inibição para realizar exercícios que propusessem alguma interação

entre elas, e as improvisações do fim da aula eram constantemente rejeitadas.

Analu começou a aceitar e entregar o apoio dos ossos no chão. Superar esse

primeiro momento foi um start para que as outras alunas, ouvindo relatos do prazer das

novas descobertas, acalmassem e começassem suas próprias pesquisas. “Era muito estranha

aquela informação. Então eu acho que esse é o lugar do se pertencer, do encarnar. Eu acho

que aqui nos aproximamos disso que é ser o que você é. Você espreguiça, você move”

(depoimento de Analu, 2008). Foi nesse momento que Analu levou sua atenção ao próprio

corpo, constituído por ossos, músculos, vísceras, etc. Foi quando ela mudou seu ponto de

vista, que sempre havia sido mais exterior (pele, cabelo, maquiagem, roupas, acessórios,

desejos, fantasias) para começar a explorar o que se passava da pele para dentro.

É difícil termos consciência da existência física, estarmos presentes:

vivemos muito em relação ao passado, ou nos sonhos em relação ao

Page 68: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

60

futuro, mas somos incapazes de viver o momento presente a nível físico

(VIANNA, 2005, p. 136).

É primordial que a atenção do aluno seja direcionada ao próprio corpo. Somente

assim é possível romper os automatismos (executar os movimentos sempre da mesma

maneira) e iniciar uma pesquisa de novas possibilidades. Outro fator importante para um

bom resultado dos exercícios é encontrar o prazer de se mover. Assim, as informações

novas são bem-vindas e podem ser assimiladas ao repertório daquele corpo com maior

facilidade.

A atenção focada e a habilidade de produzir conscientemente a intenção

de estar presente resultam no estado de presença, prontidão e

disponibilidade... [...]. O desenvolvimento da disponibilidade do corpo e

da atenção ao desenrolar do movimento, através de instruções específicas,

o predispõe para “ler” os impulsos internos e externos e o aparecimento

da novidade. (NEVES, 2005, p. 95).

A técnica Vianna propõe uma pesquisa do caminho percorrido no interior do corpo

para o desempenho de movimentos simples, executados cotidianamente, mas que

normalmente são feitos de forma apenas funcional (para atingir um objetivo externo) e

nunca com consciência de todo o percurso até o movimento ser visível às outras pessoas.

“Não decore passos, aprenda um caminho” é uma frase muito conhecida de Klauss Vianna.

“Não se pensa o movimento pela sua forma espacial, ou melhor, o desenho espacial é

consequência do caminho que esse movimento traça internamente, no corpo” (NEVES,

2008, p. 58). A criatividade é fundamental no processo.

Page 69: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

61

Durante esse ano de aulas (setembro de 2007 a setembro de 2008), as alunas foram

aprendendo primeiramente a se perceber enquanto uma complexa organização de sistemas

interligados, aproximando-se do que é mais físico e palpável de sua existência: os ossos,

músculos, articulações, vísceras, pele.

Eu não sabia que tinha osso, não sabia que tinha articulação, não sabia que

eu tinha músculo. Saber a gente sabe porque a gente estuda biologia, mas

eu não sabia como era essa engrenagem. Nunca tinha parado para

perceber e viver essa engrenagem (depoimento de Analu, 2008).

Ao vivenciar a técnica, as alunas foram reconhecendo em si a própria história de

vida inscrita nos seus corpos por meio das tensões, imobilidades, elasticidade, diferenças

entre os lados direito e esquerdo, etc. Aceitar limites, destensionar, redirecionar os ossos é

um trabalho que leva tempo, atenção e paciência. “A primeira aula que eu peguei no meu

pé e eu comecei a ver que o pé não respondia, que ele estava ali travado, que ele não ia. Eu

chorava. Como estava o meu corpo impregnado por tudo o que eu tinha vivido!”

(depoimento de Anastácia, 2008). Deparar-se com a imobilidade das articulações do pé

devido a tensões causadas por sapatos de salto fez com que Anastácia começasse a prestar

mais atenção nas consequências das suas ações cotidianas. A grande tensão da musculatura

naquela região prejudicava o apoio total dos pés no chão, o que gerava uma instabilidade

em todo o corpo. Esse fato nunca tinha sido percebido por ela. A lordose lombar também

estava acentuada por causa dos sapatos. Uma vez percebidas as consequências de sua ação,

coube à aluna decidir sobre uma mudança ou não no seu modo de calçar.

A partir do momento em que as meninas entenderam que o corpo tem memória, que

ele carrega tudo o que foi vivido, elas começaram modestamente a estabelecer uma nova

Page 70: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

62

relação com elas mesmas. A própria nutricionista comentou, em agosto de 2008, que as três

estavam mais atentas e curiosas a respeito do que cada alimento podia contribuir para a

nutrição do corpo. Perguntas sobre a importância das vitaminas, da proteína e até da

gordura começaram a surgir. Tornaram-se menos frequentes os questionamentos sobre o

valor calórico dos alimentos.

A investigação do corpo levou o casal Vianna a perceber que essa conscientização

tinha reverberações profundas na maneira de a pessoa perceber e agir consigo própria, com

o outro e em seu ambiente. Entender a própria estrutura óssea, o volume que ocupa no

espaço, a pele que liga a pessoa ao ambiente faz com que sejam exploradas novas

possibilidades de ser e estar no mundo. “Eu sentia, quando começava a falar do osso, da

articulação e tal e eu ia pesquisando no meu corpo e tendo novas percepções dele, era como

se eu começasse... Como se eu estivesse descendo uns degraus e aterrissando em mim.”

(depoimento de Analu, 2008).

A sala de aula se transformou num grande laboratório. Um local onde havia a

autorização de se pesquisar novas sensações, expressar novas emoções e sentimentos,

arriscar novos movimentos e novas relações interpessoais. A improvisação tornou-se o

momento da aula utilizado para criar, organizar as novas informações adquiridas durante a

aula e, também, um momento de experimentação estética.

A noção que construímos do nosso próprio corpo é de funcionalidade. Não somos

educados a entender primeiramente a estrutura; a função acaba imperando. Ao pensarmos

“mão” imediatamente, ligamos a tudo o que sabemos que ela pode realizar. Ao

pesquisarmos a estrutura óssea da mão, suas articulações e a pele, não evidenciamos

primeiramente sua função. Sua estrutura deriva posteriormente sua função. Isso abre a

Page 71: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

63

possibilidade de inventarmos novas utilidades para essa estrutura que denominamos “mão”.

Essa é a lógica de organização da técnica Vianna, que deixa para um segundo momento a

função, estudando profundamente primeiro a estrutura. Esse pensamento está presente

também na Teoria da Evolução das Espécies, de Darwin: não é possível pensar como é que

vai nascer uma mão num animal. A estrutura existente é que derivará a função, mas tudo

em coevolução com o ambiente em que a estrutura está inserida.

Tocar o próprio corpo, sentir o próprio peso, aprofundar a percepção das suas

particularidades, identificar tensões e impedimentos de movimentos devido a sua própria

história de vida é uma experiência particular, que independe de comparações ou

explicações. Cada uma em seu tempo, as alunas foram entendendo que elas eram o próprio

corpo e que havia uma grande riqueza de sensações, emoções, pensamentos, formas de

viver a própria vida que poderiam ser exploradas. Ficou entendido que, mesmo passando

por um mesmo problema, a anorexia, cada uma era singular. Os rótulos e generalizações

perderam força e cada uma pode experimentar a liberdade de se recriar, reinventar-se.

Esse contato, essa possibilidade de chegar de me tocar, essa cumplicidade,

esse lado humano que a gente desenvolve muito aqui, de ver a pessoa e

não a doença, mas o que a pessoa que está ali escondida pode trazer.

Porque todo mundo pode viajar junto mesmo. Poder se surpreender com o

que de repente a gente nem esperava. Valorizar os pequenos ganhos e

através dessa valorização dos pequenos ganhos a gente vai acreditando

que é possível (depoimento de Analu, 2008).

Os estudos das ciências cognitivas ajudam a entender por que esse tipo de trabalho

corporal é uma experiência radical para construções simbólicas. Como vimos no primeiro

capítulo, a consciência opera por um relato de imagens formadas das informações mais

Page 72: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

64

estáveis vindas de experiências corporais. Já no inconsciente – que, segundo as pesquisas

dos neurocientistas que embasam este trabalho, é cognitivo – estão as imagens que não

ganharam estabilidade. A formulação de pensamentos se dá transferindo informações de

um domínio para outro de cérebro e no trânsito com todos os sistemas e terminações

nervosas e sensitivas do corpo. “A instigação é o tempo todo o que você vai fazer de você.

De você, com você, para você” (depoimento de Lila, 2008). A prática corporal trabalha

justamente com o movimento do corpo para a produção de múltiplas imagens, promovendo

a experimentação de diversos estados corporais.

O que eu mais aprendi foi aprender a lidar com a minha diferença, a

respeitar a minha diferença e ver que cada um tinha a sua diferença. Ver

que é possível, apesar dessa diferença. Aqui eu tenho esse espaço para

continuar, para ir e para me sentir de alguma forma respeitada e

aprendendo a lidar comigo. Eu acho que o trabalho de consciência tem um

papel fundamental nisso. Estou aprendendo a lidar com essa dificuldade

de certa forma e com o meu próprio corpo. Acho que foi o que me ajudou

a romper barreiras, a lidar com essas minhas dificuldades todas internas e

de ver que eu tinha uma vontade muito grande de me expressar

(depoimento de Anabel, 2008).

Por tratar um mesmo corpo de formas absolutamente distintas, promove drásticas

alterações desses estados corporais durante seu fazer, cria ignições diferentes e o indivíduo

passa a gerar novas conexões, atingindo nos níveis conscientes e inconscientes. “O mental

se tornou muito no cérebro e acho que esse trabalho mostra sim, como a Juliana falou uma

vez, que o mental está no corpo todo” (depoimento de Anastácia, 2008). Assim, é possível

dissertar sobre a experiência vivenciada por um corpo em alguns aspectos, justamente por

ela criar conceitos, mas as informações menos estáveis que vão para o inconsciente ganham

Page 73: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

65

visualidade física, mas não há como ser verbalizado. Daí a importância da improvisação, no

trabalho, quando as meninas se movimentam, dando expressão ao que sentem, mas não

conseguem verbalizar.

É o exercício de pensar, de criar. Então você vai se inventando, se sente

apto a isso. É difícil, não é fácil. Se permitir pensar, questionar, criar. O

principal do trabalho é a possibilidade de gerar pensamento,

questionamento, através do movimento (depoimento de Analu, 2008).

Das vivências no mundo e dos relatos imagéticos inconscientes, poucos resíduos

ganham estabilidade, são categorizados e conectados à memória. Ela funciona em rede e

não de forma cumulativa. Para ir para a memória, a informação tem que ter estabilidade

suficiente para ser categorizada. Ao entrar na rede da memória, a nova informação

desestabiliza as conexões existentes para criar novas. Quanto maior o número de novas

conexões, maior a estabilidade. É um processo dinâmico e ininterrupto.

Para Damásio:

As imagens que constituem a base da “corrente mental” são imagens de

acontecimentos corporais, seja de acontecimentos que têm lugar na

profundidade do corpo ou numa sonda especializada, próxima da

superfície do corpo. O fundamento dessas imagens é uma série de mapas

cerebrais, ou seja, uma coleção de padrões de atividades ou inatividade

neural em certas regiões sensitivas. Esses mapas neurais representam, da

forma mais abrangente possível, a estrutura e o estado do nosso corpo em

todo e qualquer momento [...]. Parte daquilo que acaba sendo mapeado

nas regiões sensitivas do nosso cérebro e que emerge na nossa mente sob

forma de uma idéia tem a sua origem em estruturas do corpo que se

encontram num determinado estado e em determinadas circunstâncias.

(DAMÁSIO, 2003, p. 208-209).

Page 74: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

66

A técnica Vianna dá subsídios para que se criem ignições diferentes, gerando novas

conexões, atingindo níveis conscientes e inconscientes. Um corpo traz em si as conexões

feitas durante a vida até aquele momento. Elas determinam não só os pensamentos, mas os

sentimentos, sua fisicalidade e o modo de agir. “Nós somos seres inteligentes como um

todo. Nosso corpo também reage de uma forma inteligente” (depoimento Anabel, 2008).

Não há como separar o corpo de todas as experiências cotidianas. Mover-se não pode ser

encarado como um evento isolado. O corpo traz consigo seu passado e explicita suas

construções simbólicas do mundo e toda sua história.

Acho que só quando a gente tem a possibilidade de tocar a gente mesmo,

de perceber as limitações da gente, de perceber o que é o nosso corpo, a

história que ele carrega: o pé que é duro, o corpo que não responde muitas

coisas que a gente quer (depoimento de Anastácia, 2008).

Essa prática aumenta a rede de conexões entre o corpo, em constante modificação, e

as imagens do corpo, uma vez que mapeia e inter-relaciona os diversos sistemas e órgãos

corporais, aumentando seu repertório de ações, emoções e possibilidades de existir no

mundo.

Um corpo inteligente é um corpo que consegue adaptar-se aos mais

diversos estímulos e necessidades, ao mesmo tempo em que não se prende

a nenhuma receita ou fórmula preestabelecida, orientando-se pelas mais

diferentes emoções e pela percepção consciente dessas sensações.

(VIANNA, 2005, p. 126).

Filosoficamente, esse trabalho opera sem promover dualidades, visando à integração

desde estruturas mínimas do corpo com todos os órgão e sistemas, criando inter-relações.

As referências anatômicas e fisiológicas são bem-vindas, mas tratadas apenas como

Page 75: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

67

referências e não como modelos absolutos. Essa reconstrução e remapeamento, um

constante reinventar-se, está no fluxo da vida e, ao vivenciar tais experiências, é inevitável

que o indivíduo perceba que cada pessoa é singular. Nas propostas de movimento, a pessoa

é convidada a levar sua atenção aos acionamentos internos necessários ao movimento.

Antes do ato de mover-se (que é perceptível aos olhos), vários acionamentos internos

ocorrem.

Não é alguém que chega e fala “Faça assim”. Eu sou responsável pelo

meu movimento. Você tem uma ideia, uma orientação. Eu mesma vou

tendo um pouco mais de autoconsciência, de percepção própria. Eu me

responsabilizo pelo seu corpo, por como estou percebendo, de como estou

naquele dia (depoimento de Analu, 2008).

A técnica Vianna, como é ensinada no Rio de Janeiro por Angel Vianna, tem como

foco três elementos básicos: ossos, articulações e pele. Os exercícios são sempre

direcionados de modo a evidenciar um ou mais desses elementos.

Entendendo que os ossos são a parte mais sólida do corpo e que nos dão forma e

estrutura, Angel Vianna investiga-os através do campo visual e tátil. Primeiramente, ela

pede para o aluno tocar o corpo na região onde está o osso a ser trabalhado, reconhecendo

seu formato e função. Em seguida, é oferecido um osso humano para que os alunos o

toquem, sentindo sua forma, peso, volume e textura. São propostos exercícios de

sensibilização e movimento relacionados ao osso estudado. É comum nesse momento a

utilização de materiais como bambus, bolas de espuma, bola de tênis entre outros, para

facilitar o trabalho. “É a relação estabelecida pelo contato do osso com um objeto, seja ele

consistente ou maleável, que a pele do osso (periósteo) é estimulada, tanto pela ativação do

apoio ósseo quanto pelo próprio atrito provocado pelo contato” (TEIXEIRA, 2008, p. 25).

Page 76: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

68

O apoio no objeto provoca uma readaptação dos tendões, ligamentos e da musculatura

tônica (pequenos músculos responsáveis pela estabilidade óssea), causando um pequeno

estiramento dos mesmos. É importante ressaltar que os materiais são sempre colocados

próximos a uma articulação (conexão de dois ou mais ossos). Ao retirar o objeto, é

conquistado um espaço articular mais amplo, aumentando a amplitude de movimentos e

possibilitando a reorganização do corpo a partir daquela articulação.

Os exercícios que propiciam a conscientização da estrutura óssea são

particularmente importantes no processo. Por serem a parte mais consistente do corpo, os

ossos, com seu volume, forma e peso, quando conscientizados dão ao indivíduo noção de

estrutura e sustentação. Na pesquisa de campo, foi essencial a conscientização da estrutura

óssea. Em muitos momentos foi relatada a falta de percepção do peso do próprio corpo,

apesar de haver muitas reclamações de sentir incômodo do contato de alguns ossos com o

chão.

O reconhecimento da constituição física indica para cada um a existência

própria de algumas particularidades, potencialidades, facilidades e

dificuldades. Processa-se na descoberta do que cada um tem de peculiar,

como: traços (fino, grosso, leve, marcado etc.); dimensões (estrutura larga

ou pequena, membros superiores e inferiores desproporcionais ao

tronco/quadril etc.); tipos (biótipos relacionado com a cultura, raça e

gênero) e outros detalhes corporais diferenciados. (TEIXEIRA, 2008, p.

12).

É a partir da articulação que a função de todo o sistema músculo-esquelético é

evidenciada. As articulações orientam as direções ósseas. São trabalhadas como dobradiças

que ligam as diversas partes do corpo. É a partir do trabalho das articulações que

Page 77: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

69

pesquisamos o movimento, e não como ênfase na musculatura. Procedendo assim,

conseguimos aliviar as tensões desnecessárias dos músculos em cada movimento e, com o

aprofundamento da pesquisa, é possível ativar musculaturas auxiliares e profundas,

distribuindo a força exercida anteriormente apenas pelos grandes músculos. Segundo Angel

Vianna:

Trata-se de adquirir a sensação de que são os ossos que se movem no

espaço. Os músculos não devem encarcerar os ossos, mas serem seus

servidores. O domínio das articulações dá sempre uma impressão de

extremo desafogo. (O Estado, 23/02/87).

Há ênfase também na estimulação da pele. Trata-se de um órgão vital que reveste

todo o corpo, que possui função protetora e de trocar informações. É por meio dela que

fazemos as trocas de informação entre o meio interno e externo. Ela ainda é reguladora de

tensões: ao relaxar as várias camadas da pele que envolve os músculos, vísceras e ossos,

abre-se espaço para destensionar os mesmos. Neste trabalho, todo o tecido conjuntivo é

considerado pele, tais como as fáscias e o periósteo. Ele aumenta a consciência da pele e do

músculo por meio da expansão dos ossos. Mover-se passa a ser vivenciar a ação das

articulações e fazer a pele espreguiçar pela direção do osso.

O toque da pele no chão, roupa, objetos ou outra pessoa é estimulado para que

aflorem sensações, desejos, inquietações etc. Assim, o aprendizado de si pela sensibilização

da pele ocorre na relação entre o interno e o externo. É na experiência e exploração de

possibilidades do corpo que são rompidos os automatismos (tendência a repetição dos

mesmos caminhos para execução do movimento). Certamente, criar novos modos de

perceber-se e mover-se cria novas redes neuronais . “Eu gosto muito nesse trabalho é dessa

Page 78: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

70

coisa da realidade do corpo: a pele, o volume, que já te dá uma noção de extensão, o osso,

essa coisa concreta que a gente tem” (depoimento de Lila, 2008).

A aula é dividida em três momentos: chegada, pesquisa no espaço e criação. A

chegada é a tomada de consciência do seu estado corporal atual através de caminhadas,

sentir o peso do próprio corpo no chão, espreguiçar, entre outros. Logo após, propõe-se

uma “lubrificação” articular: mover o corpo levando a atenção às articulações que se

dobram, liberando assim o líquido sinovial. Essa ação provoca um aquecimento de todo o

sistema motor. A palavra “aquecimento” aqui é usada mais como uma alteração de tônus,

deixando o corpo mais disponível à ação, do que simplesmente a sensação de calor. Em

seguida, é proposto exercício para a ampliação consciente dos espaços internos, como

descrito anteriormente.

Sempre atentas às sensações internas conquistadas e que vão sempre transformando,

cada pessoa é convidada a se relacionar com o espaço. Nos próximos exercícios, a

consciência interna e externa são plenamente trabalhadas. Se no primeiro momento da aula

a pessoa explora principalmente seu interior, percebendo que vive um processo singular, na

pesquisa no espaço prioriza-se a relação com o ambiente social, sem perder de vista seu

processo singular e respeitando o processo das outras pessoas. Justamente por perceber suas

facilidades e dificuldades, por entender que elas existem devido a toda sua história pessoal

e à história de seus antepassados, há no aluno uma compreensão e um respeito pelo tempo e

o processo de seus colegas.

No fim da aula, propõe-se que a pessoa se mova com alta qualidade motora e

perceptiva. É o momento de criação e exploração de possibilidades corporais. Pela ação,

pelo movimento é que se organiza um corpo munido da percepção em seus três níveis

Page 79: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

71

conhecidos: interocepção, propriocepção e exterocepção.12 A partir dessas experiências em

sala de aula, a pessoa integra sua realidade pessoal coma realidade social. Segundo Jorge

Vieira:

Normalmente os sistemas psicossociais têm sido encarados segundo

parâmetros de natureza social. Mas acreditamos ser inescapável analisá-lo

tanto do ponto de vista do indivíduo e de sua psique, assim como a partir

da base biológica e genética do mesmo. Ou seja, entendemos que deva

haver uma conexão entre a genética, o psiquismo e as condições

“externas” sociais. (VIEIRA, 2007, p. 107-108).

O mapeamento e a pesquisa das particularidades do próprio corpo – como tamanho,

volume, diferenças entre os lados direito/esquerdo, posicionamentos ósseos, tensões,

potencialidades, facilidades, dificuldades – vão criando fortes conexões com estruturas

corporais que muitas vezes a pessoa só conhecia por desenhos nos atlas anatômicos, ou

talvez desconhecesse completamente. Como nos explica Letícia Teixeira:

A introdução dos dados anatômicos possibilita a assimilação da

informação refletida, debatida, sentida e memorizada simultaneamente.

[...] No momento da pesquisa do movimento, o corpo assimilará as

respostas vindas do foco de atenção para outras partes que, a princípio,

não estavam sendo associadas, informando que o corpo não é separado e

nem dissociado entre si. Este é o grande diferencial para o estudo da

representação do corpo. A singularidade não é universal; por isso é

preciso sinalizá-la enquanto estudada, sentida, manipulada e vivida

(TEIXEIRA, 2008, p. 12).

12 Interocepção – é bastante interna, visceral. Só temos consciência dela quando sentimos dor em algum órgão, como dores de cabeça, cólicas etc. Propriocepção – está no nível ósseo, muscular e articular e nos informa a postura do corpo e seus movimentos, mesmo de olhos fechados. Exterocepção – são os órgãos do sentido (visão, audição, olfato, paladar e o sentido tátil) que nos colocam em contato direto com o mundo e nos informam das modificações que ocorrem no ambiente (ALMEIDA, 2004, p. 24-26).

Page 80: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

72

Muitos exercícios são executados com a pessoa deitada para que o apoio do chão

evidencie a ação gravitacional, e de olhos fechados, aumentando a concentração e

possibilitando a percepção dos encaixes ósseos, dos acionamentos musculares, de

sensações, de tensões e das mudanças de estados corporais. Ao experimentar o movimento,

não há como dissociar corpo e mente, emoção e razão, corpo e ambiente.

Comecei a duvidar um pouco mais de algumas coisas, brincar um pouco

mais, ficar um pouco mais flexível com algumas coisas. E ao mesmo

tempo em que isso acontecia comecei a ter uma dimensão maior das

coisas. Isso foi me acalmando de certa forma (depoimento de Anabel,

2008).

A investigação de si mesmo não retira a pessoa de seu lugar na sociedade. Os papéis

sociais continuam existindo e sendo cumpridos cotidianamente. No entanto, permitir-se

experimentar outros movimentos e paulatinamente ir compreendendo a riqueza de

possibilidades do corpo inaugura na pessoa o desejo e a curiosidade de explorar o novo.

Assim, os mesmos papéis sociais são ressignificados, deixando de ser uma identidade

monolítica: a mãe, a filha, a estudante, a profissional, etc.

[...] mas vejo muito esse aspecto de como eu pude me fortalecer. Você vai

percebendo suas características, vai percebendo que todas as pessoas são

especiais, que todas as pessoas são diferentes e precisam ser diferentes.

Não são diferentes porque tem alguma coisa errada... (depoimento de

Anabel, 2008).

Durante o processo foi criada a possibilidade de ampliar as discussões a respeito do

corpo. Não se conversava durante as aulas sobre perda ou ganho de peso, nem a respeito da

eficiência do tratamento. Os exercícios, como já foi explicado, focavam os elementos

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básicos (ossos, articulações e pele) e as discussões passavam pelas sensações, descobertas,

emoções, prazeres, desconfortos das atividades. “Porque aqui eu fui vista como pessoa e

não como uma doença. Não só a parte. Não é só tomar remédio e engordar” (depoimento de

Anastácia).

A anorexia é uma doença que pode reaparecer a qualquer momento da vida de quem

já viveu esse processo. As aulas de técnica Vianna serviram como um despertar de

possibilidades para a vida das alunas: “É uma linha que te leva para uma bifurcação que

acontecem milhões de coisas e você sente que esse lugar é um lugar que te atravessa, te

leva para o que é você” (depoimento de Analu, 2008). “Como se esse trabalho fosse me

apresentando a mim mesma através desse contato paulatino que eu fui tendo comigo, com

essas sensações, com o meu corpo” (depoimento de Anabel, 2008).

Os trabalhos corporais ajudaram a um começo de desvio de foco das suas

preocupações com relação à comida e promoveram um despertar de novos interesses pela

própria vida. É uma pesquisa que coloca o praticante muito próximo do que temos de mais

concreto no corpo. Isso provoca inevitavelmente a pessoa a pensar no que ela é, o que

pretende fazer com isso que ela é, o que realmente interessa na própria vida. Por isso

acreditamos na integração mente/corpo, pois, como é dito nos depoimentos, o trabalho

corporal teve implicações no modo como a pessoa passou a se relacionar consigo e com o

mundo.

Voltando à hipótese de que pessoas com anorexia vivem sob o paradigma da

dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o controle da primeira sobre o

segundo, percebemos, durante os trabalhos práticos, que o aumento da propriocepção das

alunas colocou em xeque a forma como elas estavam lidando com o próprio corpo, gerando

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74

uma crise. O primeiro movimento foi de fuga, de tentar livrar-se do trabalho, seja faltando,

negando-se a perceber, dormindo durante a aula, reclamando. Com o passar do tempo, as

primeiras resistências foram sendo superadas e os exercícios começaram a fazer sentido

para o grupo. Esse foi o momento em que a atenção se voltou para o próprio corpo. O

momento em que a mente se preocupou inteiramente do que se passava em partes

específicas do corpo. Quanto mais elas “aterrissavam” mais era compreendido que o corpo

e a mente são partes da mesma unidade: a própria pessoa.

Segundo Lakoff e Johnson, os conceitos que criamos são moldados pelo nosso

aparato biológico que transforma as mensagens vindas do exterior. Dão o exemplo das

cores, que são variações das ondas eletromagnéticas, que não existem na realidade

enquanto cores, mas são assim traduzidas em nosso corpo. O mesmo vale para as noções de

espaço, que só são possíveis devido a nossa simetria, se levarmos em consideração a direita

e esquerda do nosso corpo, e a assimetria com relação a outros pontos de referência (acima

do umbigo e abaixo dele, por exemplo). Assim construímos os conceitos de alto, baixo,

perto longe, atrás, à frente. Criamos, a partir do nosso aparato biológico, referenciais

espaciais que determinam nossa orientação com relação a nós mesmos e com relação a um

objeto exterior.

Nosso aprendizado cognitivo do que é real começa e depende

primordialmente do nosso aparato sensório-motor, que nos habilita a

perceber, mover e manipular e das estruturas do nosso cérebro, que vem

sendo moldadas tanto pela evolução quanto pela experiência13. (LAKOFF;

JOHNSON, 1999, p. 17).

13 “Our sense of what is real begins with and depends crucially upon our bodies, especially our sensorimotor apparatus, which enables us to perceive, move, and manipulate, and the detailed structures of our brains, which have been shaped by both evolution and experience” (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 17).

Page 83: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

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Nosso corpo não é apenas um coadjuvante no processo do conhecimento. É nele e

por ele que é criada toda nossa conceituação do mundo. Quando as alunas foram

convidadas a levar sua atenção aos próprios ossos, articulações e pele, aprimorando sua

propriocepção, alguns conceitos foram desestabilizados. É justamente no momento em que

a pessoa sai de uma metaestabilidade para entrar numa crise que é possível mudar padrões

de comportamento.

A proposta de fazer um trabalho corporal com finalidades terapêuticas no caso da

anorexia serviu para que as meninas questionassem a forma como estavam levando as

próprias vidas. As questões levantadas durante o ano de pesquisa prática não foram

relacionadas exatamente à anorexia, mas com a vida de maneira mais geral. Acreditamos

ser esse um passo importante para o fim do processo anoréxico.

Page 84: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

76

Considerações finais

É curioso como essa busca por identidade pode fazer sentido a pessoas emersas em

culturas que se organizaram a partir de outras estruturas, como na América Latina, local

onde as misturas se deram em alto grau, criando complexidades e variedades de

possibilidades. Nesse local não faz sentido tentar localizar as origens identitárias, sendo

mais interessante observar como cada conjunto se intercomunica, criando diversidade. Por

fatores históricos, essa região forçou a inter-relação de pessoas de toda parte do mundo

num curto período. Colonizadores, colonizados, invasores e nativos tiveram que conviver

com a superabundância de informações. As relações, na maioria das vezes, não eram

amistosas, e sim de dominação, mas para que pudesse sobreviver, começaram a se inter-

relacionar.

É realmente necessário ter falta de apetite pela vida para conseguir manter valores

que buscam uma unidade em países onde não há identidade possível. Não se trata apenas de

emagrecer o corpo, padronizando-o; há uma ideologia nesse ato, uma tendência à

homogeneização das ideias. Se acreditarmos na necessidade de uma atribuição ontológica

européia de um ser, com as noções de unidade, identidade e essência, o resto é o não-ser

(matéria, existência e diversidade). Seguindo esse pensamento, na América Latina, onde

tudo veio de outro lugar, seríamos uma cópia piorada ou secundária de algo que foi feito

melhor no local de origem. A única opção que restaria era a busca da exclusão da

multiplicidade que nós somos. É difícil pensar a América Latina, mais especificamente o

Brasil, nesses termos.

Page 85: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

77

A anoréxica não consegue ter um pensamento múltiplo, que seria um pensar

democrático. Ao contrário, ela é dominada por um modo de pensar que a impede de superar

esse dualismo. Não se trata apenas de admitir a diferença. O importante é a inclusão dessa

diversidade no corpo, na sociedade, na conduta e nos objetos, de tal maneira que você não

consegue mais distinguir como diversa aquela coisa que é outra, e não consegue também

ver naquilo algo uno, separado. Não é nem o heterogêneo, nem o uno, é híbrido.

O corpo como uma expressão dos desejos de libertação da matéria em busca da

pureza, do etéreo, inserido num país como o Brasil, cheio de cheiros, cores, curvas e

sabores, torna-se uma escolha absolutamente restritiva. É preciso resistir à culinária tão

sofisticada, fechar os olhos para o gingado exuberante das mulatas, recusar-se a passar o

fim de semana conversando diante de uma mesa repleta de guloseimas, ou a ir a um

churrasco no quintal do vizinho. Caso decida ir à igreja, a anoréxica terá que ignorar os

anjos e santos barrocos, todos gordos e corados, que deixam de lado o ar etéreo esperado de

seres em contato com o divino. As anoréxicas brasileiras devem inclusive ter problemas em

pronunciar palavras como “bunda” ou “bochecha”, por terem uma sonoridade e forma de

pronunciar que revelam seu volume e tamanho.

Falta, para a saúde dessas meninas, mudar o paradigma da dualidade mente/corpo

no qual alicerçaram suas vidas. É preciso digerir antropofagicamente tal dualidade, como

diriam Oswald de Andrade e Haroldo de Campos, transformando o sistema de conceitos.

Em seu artigo “Da razão antropofágica: a Europa sob o signo da devoração”, Haroldo fala

sobre a razão antropofágica, que é uma razão de assimilar o outro. Digerir

antropofagicamente a dualidade é a ação de cruzar as informações do divido com o

profano, da mente com o corpo, do etéreo com o material. Os brasileiros são peritos nessa

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78

tradução, devido à superabundância de informações vindas de todos os lugares do mundo.

Sabem mastigar o que vem de fora e cuspir algo novo. É uma tarefa de grande

complexidade. Criou-se a capacidade de sempre agregar algo a mais e não de desprezar,

eliminar. A mescla dissipa a superioridade de cada parte isolada.

A mistura está já de partida nos corpos brasileiros: nas articulações, no modo de

andar, requebrar, gesticular, nas expressões faciais. Assumir essa mestiçagem e toda sua

complexidade de relações destrói qualquer tentativa de dualidade. O brasileiro tornou-se

um “tradutor/devorador: descentrado, excêntrico” (CAMPOS, 1981, p. 18).

A razão antropofágica é uma metáfora do canibalismo antropofágico dos índios, que

literalmente comiam os guerreiros das outras tribos, para incorporar sua valentia. Essa

metáfora acabou servindo para muitos autores e críticos, ensaístas latinos, para perceber

que esse era um elemento constitutivo de nossa cultura. Ainda que de alguma maneira esse

inimigo, opositor, fosse exterminado, ele não era eliminado totalmente, mas passava por

esse processo de incorporação. Não se recusa o que é de fora; pelo contrário, aceita-se e

assimila-se. Para culturas que cultivam as dualidades, é dificilmente suportável uma

combinação de pluralidades, porque acaba com qualquer possibilidade de apontar o

idêntico.

Nessa relação entre matéria e espírito, corpo e mente o concreto, material, baixo é

considerado pior do que é alto, mental e espiritual. Então, para a anoréxica, corporificar

elementos concretos e materiais torna-se uma dificuldade, uma deturpação que deve ser

eliminada, abortada, vomitada para atingir a plenitude do etéreo. A todo momento, ela

incorpora elementos fictícios ao próprio corpo; vive uma alucinação, um corpo que tenta

existir apenas em sua mente e isso rege todo seu modo de estar no mundo.

Page 87: O corpo anoréxicoO corpo anoréxico

79

Faz-se necessário que essa pessoa entre em contato com o próprio corpo, mapeando-

o através de experiências físicas, sensoriais, mentais e criativas, reinventando-se e diluindo

essa dicotomia entranhada.“No final, o que aprendi foi que cada um tem a sua dança

própria, tem a sua expressão própria. Isso que mudou o meu olhar e acho que vai mudar

para sempre. É uma semente que não tem mais como perder” (depoimento de Anabel,

2008).

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