benjamin - o conceito de crítica de arte no romantismo alemão

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Walter Benjamin – O conceito de crítica de arte no romantismo alemão BENJAMIN, W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002. INTRODUÇÃO: I. DELIMITAÇÃO DA QUESTÃO: Por “primeiro romantismo” entenda-se: Schlegel e Novalis (em especial Schlegel). Irei apenas abordar o conceito de crítica em seu sentido específico, circunscrito ao domínio da arte, sem suas implicações propriamente filosóficas (Kant). Schlegel é importante pois nele toda sua arte e teoria da arte estão submetidas a pressupostos gnosiológicos (Erkenntnistheorie: teoria do conhecimento), aos quais se submete toda a arte primeiro romântica. Estudar-se-á o conceito de crítica (de arte) nesse primeiro romantismo. II. AS FONTES: Usar-se-á como fonte primária as obras de Fr. Schlegel em especial as Athenäum, anteriores às Lições Windiscmann, porque estas últimas já representam um período posterior de suas análises. As primeiras obras expressam a “palavra final” da Escola sobre o tema da crítica de arte e sobre a própria arte (p. 20). Como fonte secundária: as obras de Fichte (Wissenchaftslehre - Doutrina- da-ciência); as de Novalis, as de A. Schlegel e as de Fr. Schlegel posteriores às Athenäum. PRIMEIRA PARTE: I. REFLEXÃO E POSIÇÃO EM FICHTE A reflexão: o pensamento refletindo a si mesmo. Em Fichte o movimento do “pensamento na autoconsciência refletindo a si mesmo é finito, esbarra na posição. Com Kant, deu-se primeiramente (ao menos de maneira enfática) a possibilidade de o pensar se dar unicamente na forma de uma “intuição intelectual”, ao mesmo tempo de sua impossibilidade no campo da experiência. Em Fichte a tentativa de esboçar a possibilidade de um conhecimento imediato já aprece no Conceito de doutrina-da-ciência, 1794. Lá ele diz que a doutrina-da-ciência é uma ciência porque

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Page 1: Benjamin - O conceito de crítica de arte no romantismo alemão

Walter Benjamin – O conceito de crítica de arte no romantismo alemãoBENJAMIN, W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio

Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002.

INTRODUÇÃO:I. DELIMITAÇÃO DA QUESTÃO:

Por “primeiro romantismo” entenda-se: Schlegel e Novalis (em especial Schlegel).Irei apenas abordar o conceito de crítica em seu sentido específico, circunscrito ao domínio da arte, sem suas implicações propriamente filosóficas (Kant).Schlegel é importante pois nele toda sua arte e teoria da arte estão submetidas a pressupostos gnosiológicos (Erkenntnistheorie: teoria do conhecimento), aos quais se submete toda a arte primeiro romântica.Estudar-se-á o conceito de crítica (de arte) nesse primeiro romantismo.

II. AS FONTES:Usar-se-á como fonte primária as obras de Fr. Schlegel em especial as Athenäum, anteriores às Lições Windiscmann, porque estas últimas já representam um período posterior de suas análises. As primeiras obras expressam a “palavra final” da Escola sobre o tema da crítica de arte e sobre a própria arte (p. 20).Como fonte secundária: as obras de Fichte (Wissenchaftslehre - Doutrina-da-ciência); as de Novalis, as de A. Schlegel e as de Fr. Schlegel posteriores às Athenäum.

PRIMEIRA PARTE:I. REFLEXÃO E POSIÇÃO EM FICHTEA reflexão: o pensamento refletindo a si mesmo. Em Fichte o movimento do “pensamento

na autoconsciência refletindo a si mesmo é finito, esbarra na posição.Com Kant, deu-se primeiramente (ao menos de maneira enfática) a possibilidade de o pensar

se dar unicamente na forma de uma “intuição intelectual”, ao mesmo tempo de sua impossibilidade no campo da experiência.

Em Fichte a tentativa de esboçar a possibilidade de um conhecimento imediato já aprece no Conceito de doutrina-da-ciência, 1794. Lá ele diz que a doutrina-da-ciência é uma ciência porque necessita de uma “ação da inteligência” “ação esta que é anterior a tudo o que se objetiva no espírito e que constitui sua forma pura” (p. 29). Essa ação necessária da inteligência é, para ele, em-si uma forma. E deve ser apreendida como conteúdo de uma nova forma: “a forma do saber ou da consciência” (p. 29). Esse giro da forma sobre ela própria é justamente a reflexão. Assim, Fichte diz: “A ação da liberdade, pela qual a forma torna-se forma da forma, como seu conteúdo, e retorna para si mesma, chama-se reflexão” (apud p. 29).

Reflexão é a ação de tornar a forma da inteligência (necessária) o conteúdo de uma nova forma, a forma do saber ou da consciência (p. 29).

O “sujeito absoluto” é uma necessidade transcendental, e portanto um requisito formal, da filosofia de Fichte. Seu conhecimento deve ser imediato.

A teoria do conhecimento de Fichte é de um ”formalismo místico radical” (p. 30). Ela possui uma profunda afinidade com a teoria do conhecimento do primeiro romantismo: “A ela os primeiros românticos ligaram-se firmemente e a desenvolveram para além das sugestões de Fichte, que, por sua vez, em seus escritos posteriores, fundou a imediatez do conhecimento sobre a sua natureza intuitiva” (p. 30).

Mas para os românticos, estava em jogo a infinitude desse processo da reflexão.Imediatez e infinitude do conhecimento são ambos contemplados pela reflexão, motivo pelo

qual os primeiros românticos assentaram sua teoria do conhecimento sobre ela.Refletir e reflexão (perspectiva teórica – primeiros românticos).Pôr e posição (perspectiva prática – Fichte). Posição é a ação de pôr.

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Para Fichte, a tarefa da filosofia é pôr (investigar) quais os pressupostos de todo conhecimento possível.

A forma garante a toda ciência que de seu princípio ou proposição fundamental (garante de certeza a toda essa ciência) se encadeie com as outras proposições dessa ciência, proposições posteriores e que dependem daquele princípio. A forma é, portanto, garante da unidade sistêmica de uma ciência.

Conteúdo: princípio.Forma: sistematicidade.Somente a doutrina-da-ciência pode fundar-se em si mesma, não havendo para ela outros

pressupostos, sob pena de recair numa regressão ao infinito. Ela é a única ciência radical, pois é fundada unicamente sobre si mesma. Por isso ela é radicalmente reflexionante.

A doutrina-da-ciência não tem nenhum critério objetivo, pois se dá unicamente de acordo com a liberdade subjetiva, já que é radicalmente reflexionante.

Forma e conteúdo na doutrina-da-ciência são correspondentes indissolúveis.O salto idealista de Fichte consiste em conceber um sujeito que não surge mediante uma

representação, mas que se põe a si próprio. E o objeto é igualmente posto por esse sujeito. “Se a certeza primeira é incondicionada e imediata, o seu pôr em ato deve também ser

originariamente imediato, isto é, não pode ser uma consciência empírica purificada mediante uma abstração, mas uma consciência imediata, uma intuição intelectual, o que exigirá de cada um o pôr em ato dessa intuição.”(http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2009_mes/2009.mes.Francisco_Prata_Gaspar.pdf)

Tatsache: fato. Afeito à consciência empírica, portanto posterior à doutrina-da-ciência.Tathandlung: estado-de-ação. Este sim próprio da intuição, do agir.Fichte: “se a filosofia parte do fato (Tatsache), ela se situa em meio ao ser e a finitude, e lhe

será difícil encontrar um caminho para o infinito e o supra-sensível” Zweite Einleitung, SW, I, p. 468, (276).

Fichte diz que “uma atividade que retorna a si mesma (egoidade, subjetividade), é o caráter do ser racional” Naturrechts, SW III, p. 17, (33). Egoidade, a exacerbação da autonomia kantiana.

O Sujeito absoluto é a unidade apodítica entre sujeito e objeto dada pelo estado-de-ação (Tathandlung). Trata-se da relação de igualdade entre Eu e Eu que resulta no Eu sou.

À intuição do estado-de-ação, Fichte chamará intuição intelectual (que não é sensível).Fichte: “trata-se de uma consciência particular e, na verdade, imediata, portanto uma

intuição, e no entanto não uma intuição sensível, que se dirige a algo material consistente, mas a intuição da mera atividade, que não é nada de fixo e estável, mas um ir contínuo, não um ser, mas uma vida” Zweite Einleitung, SW, I, o. 465, (274)

Eu sou como estado-de-ação (Tathandlung), e não como fato (Tatsache).O Eu é para-si. A reflexão em Fichte é a forma autóctone da posição (do Eu que é para-si enquanto ele se

põe) infinita.“Nesse estar-consciente-de-si, no qual intuição e pensar, sujeito e objeto coincidem, a

reflexão, sem ser eliminada, é banida, aprisionada e despida de sua infinitude” (p. 33).

Fichte temia a infinitude pois deixaria o pensar sem fundamento e inibiria qualquer possibilidade de uma consciência efetiva.

Os românticos se unem a Fichte no que tange à imediatez da reflexão, mas separam-se dele no que tange à sua infinitude.

II. O SIGNIFICADO DA REFLEXÃO NOS PRIMEIROS ROMÂNTICOSOs primeiros românticos não temem a cadeia infinita da reflexão que Fichte havia

condenado supondo que ela iria inibir toda a tarefa de uma doutrina-da-ciência. A infinitude contemplada por Schlegel possibilita uma conexão múltipla com todas as esferas do todo.

“Mediação por imediatez” (p. 35).

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A forma do pensar é o pensar do pensar. Nesse giro, o segundo pensar se torna conteúdo e o primeiro pensar se torna forma. Trata-se de uma tarefa da intuição intelectual. Por ele se situar a priori com relação a todo posterior conhecimento possível, é a base de formação de um sistema.

Os românticos não possuem, ao contrário de Fichte, a necessidade de um sustentáculo ontológico dado pela posição originária do Eu enquanto para-si: “Enquanto Fichte pensa poder transferir a reflexão para a posição-originária, para o ser-originário, suprime-se para os românticos aquela determinação ontológica singular localizada na posição. O pensamento romântico supera ser e posição na reflexão” (p. 36).

O Eu em Fichte pressupõe sempre uma posição. Já para os primeiros românticos, a consciência não é o Eu, mas si-mesmo, simples pensar.

Fichte absolutiza a consciência no Eu (posição), dizendo que fora dele pensar conduziria unicamente ao vazio. “Logo, ele conhece apenas um caso de utilização frutífera da reflexão: aquele da intuição intelectual” (p. 37).

O pôr, em Fichte, antecede a reflexão.Os românticos abrem a consciência e o pensar ao infinito, levando a cabo a tarefa da

reflexão, não apenas constrita ao caso da intuição intelectual de Fichte.A partir do terceiro grau da reflexão, a fundação do Eu (sujeito absoluto) se decompõe numa

ambiguidade peculiar (p. 38): “A reflexão estende-se sem limites e o pensamento formado na reflexão torna-se pensamento sem forma, o qual se dirige para o absoluto” (p. 38).

Em Schlegel há uma oposição entre a reflexão absoluta e a reflexão originária de Fichte: “Schlegel vê, imediatamente e sem que ele considere necessário apoiar-se numa prova, desdobrar-se na reflexão até atingir a mais elevada clareza no absoluto” (p. 39).

Schlegel contrapõe-se também a Kant, para quem apenas a intuição permitiria um conhecimento imediato (tese em que Fichte igualmente se assentou). Há, para Schlegel, também um pensar imediato, com o qual é possível penetrar o absoluto.

“Esse Eu-originário [em Schlegel] é o absoluto, a essência da reflexão infinitamente realizada” (p. 42).

A limitação do Eu em Fichte é dada pelo não-Eu de forma inconsciente. Para os primeiros românticos, apenas uma ação consciente (por meio da vontade, diz Schlegel) pode limitar o Eu, e sempre de modo apenas relativo.

O absoluto de Schlegel é como o medium-da-reflexão (Reflexionsmedium): “A reflexão constitui o absoluto e ela o constitui como um médium” (p. 43).

“Schlegel [...] depositou uma grande importância na conexão uniforme e constante no absoluto ou no sistema, ambos interpretados conforme a conexão do real não na sua substância (que é em toda parte a mesma), mas nos graus de seu desdobrar manifesto” (p. 43).

À essa ação de multiplicação e de potenciação do Eu, Novalis chamou justamente romantizar.

“No sentido primeiro romântico, o ponto central da reflexão é a arte e não o Eu” (p. 46).“A reflexão livre-do-Eu é uma reflexão no absoluto da arte” (p. 46).O pensar do pensar era para Fichte a posição originária do Eu, “célula originária do conceito

intelectual do mundo” (p. 46). Schlegel interpretou a forma “pensar do pensar” como “a forma estética, como a célula originária da ideia de arte” (p. 46).

III. SISTEMA E CONCEITO