benjamin - experiência e pobreza

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Experiência e pobreza Em nossos livros de leitura havia a parábola de um ve- lho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a che- gada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmi- tidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que cres- ciamos: "Ele é muito jovem, em breve poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em his- tórias; muitas vezes como narrativas de países longinquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos di- zem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, Ii- dar com a juventude invocando sua experiência? Não, está claro que as ações da experiência estão em bai- xa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, se podia notar que os com-

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Walter Benjamin - Experiência e pobreza.

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  • Experincia e pobreza

    Em nossos livros de leitura havia a parbola de um ve-lho que no momento da morte revela a seus filhos a existncia de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas no descobrem qualquer vestgio do tesouro. Com a che-gada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na regio. S ento compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experincia: a felicidade no est no ouro, mas no trabalho. Tais experincias nos foram transmi-tidas, de modo benevolente ou ameaador, medida que cres-ciamos: "Ele muito jovem, em breve poder compreender". Ou: "Um dia ainda compreender". Sabia-se exatamente o significado da experincia: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provrbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em his-trias; muitas vezes como narrativas de pases longinquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histrias como elas devem ser contadas? Que moribundos di-zem hoje palavras to durveis que possam ser transmitidas como um anel, de gerao em gerao? Quem ajudado, hoje, por um provrbio oportuno? Quem tentar, sequer, Ii-dar com a juventude invocando sua experincia?

    No, est claro que as aes da experincia esto em bai-xa, e isso numa gerao que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terrveis experincias da histria. Talvez isso no seja to estranho como parece. Na poca, j se podia notar que os com-

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    batentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experincias comunicveis, e no mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literrio nos dez anos seguintes no continham experincias transmissveis de boca em boca. No, o fenmeno no estranho. Porque nunca houve experincias mais radicalmente desmoralizadas que a experincia estratgica pela guerra de trincheiras, a experin-cia econmica pela inflao, a experincia do corpo pela fome, a experincia moral pelos governantes. Uma gerao que ain-da fora escola num bonde puxado por cavalos viu-se aban-donada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de foras de cor-rentes e exploses destruidoras, estava o frgil e minsculo corpo humano.

    Uma nova forma de misria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da tcnica, sobrepondo-se ao homem. A an-gustiante riqueza de idias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovao da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolstica e do espiritualismo, o reverso dessa misria. Porque no uma renovao autntica que est em jogo, e sim uma galvanizao. Pensemos nos esplndidos qua-dros de Ensor, nos quais uma grande fantasmagoria enche as ruas das metrpoles: pequeno-burgueses com fantasias carna-valescas, mscaras disformes brancas de farinha, coroas de folha de estanho, rodopiam imprevisivelmente ao longo das ruas. Esses quadros so talvez a cpia da Renascena terrivel e catica na qual tantos depositam suas esperanas. Aqui se; revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experincias [ apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente' um rosto, nitido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimnio cultural, se a expe-rincia no mais o vincula a ns? A horrivel mixrdia de esti-los e concepes do mundo do sculo passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experincia nos subtraida, hipcrita ou sorrateiramente, que hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, prefervel confessar que essa pobreza de experincia no mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbrie.

    Barbrie? Sim. Respondemos afirmativamente para in-

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    troduzir um conceito novo e positivo de barbrie. Pois o que resulta para o brbaro dessa pobreza de experincia? Ela o impele a partir para a frente, a comear de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sem-pre existiram homens implacveis que operaram a partir de uma tbula rasa. Queriam uma prancheta: foram construto-res. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa nica certeza - penso, logo existo - e dela partiu. Tambm Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da f-sica, xceto por um nico problema - uma pequena discre-pncia entre as equaes de Newton e as observaes astron-micas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupao de comear do principio quando se inspiravam na matemtica e reconstruam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereomtricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. Pois as figuras de Klee so por assim dizer dese-nhadas na prancheta, e, assim como num bom automvel a prpria carroceria obedece necessidade interna do motor, a expresso fisionmica dessas figuras obedece ao que est den-tro. Ao que est dentro, e no interioridade: por isso que elas so brbaras.

    Algumas das melhores cabeas j comearam a ajustar-se a essas coisas. Sua caracterstica uma desiluso radical com o sculo e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse sculo. Pouco importa se o poeta Bert Brecht afirmando que o co-munismo no a repartio mais justa da riqueza, mas da pobreza, ou se o precursor da moderna arquitetura, Adolf Loos, afirmando: "S escrevo para pessoas dotadas de uma sensibilidade moderna... No escrevo para os nostlgicos da Renascena ou do Rococ". Tanto um pintor complexo como Paul Klee quanto um arquiteto programtico como Loos rejei-tam a imagem do homem tradicional, solene, nobre, ador-nado com todas as oferendas do passado, para dirigir-se ao contemporneo nu, deitado como um recm-nascido nas fral-das sujas de nossa poca. Ningum o saudou to alegre e riso-nhamente como Paul Scheerbart. Ele escreveu romances que de longe se parecem com os de Jlio Verne, mas ao contrrio de Verne, que se limita a catapultar interminavelmente no espao, nos veiculos mais fantsticos, pequenos rentiers in-

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    gleses ou franceses, Scheerbart se interessa pela questo de como nossos telesc6pios, avies e foguetes transformam os ho-mens antigos em criaturas inteiramente novas, dignas de se-rem vistas e amadas. De resto, essas criaturas tambm falam uma lingua inteiramente nova. Decisiva, nessa linguagem, a dimenso arbitrria e construtiva, em contraste com a dimen-so orgnica. ~esse o aspecto inconfundvel na linguagem dos homens de Scheerbart, ou melhor, da sua "gente"; pois tal linguagem recusa qualquer semelhana com o humano, prin-cipio fundamental do humanismo. Mesmo em seus nomes pr6prios: os personagens do seu livro, intitulado Lesabndio, segundo o nome do seu her6i, chamam-se Peka, Labu, Sofanti e outros do mesmo gnero. Tambm os russos do aos seus filhos nomes "desumanizados": so nomes como Outubro, aludindo Revoluo, ou Pjatiletka, aludindo ao Plano Qin-qenal, ou Aviachim, aludindo a uma companhia de aviao. Nenhuma renovao tcnica da lingua, mas sua mobilizao a servio da luta ou do trabalho e, em todo caso, a servio da transformao da realidade, e no da sua descrio.

    Mas, para voltarmos a Scheerbart: ele atribui a maior importncia tarefa de hospedar sua "gente", e os co-cida-dos, modelados sua imagem, em acomodaes adequadas sua condio social, em casas de vidro, ajustveis e m6veis, tais como as construdas, no meio tempo, por Loos e Le Cor-busier. No por acaso que o vidro um material to duro e to liso, no qual nada se fixa. tambm um material frio e s6brio. As coisas de vidro no tm nenhuma aura. O vidro em geral o inimigo do mistrio. ~tambm o inimigo da pro-priedade. O grande romancista Andr Gide disse certa vez: cada coisa que possuo se torna opaca para mim. Ser que homens como Scheerbart sonham com edificios de vidro, por-que professam uma nova pobreza? Mas uma comparao tal-vez seja aqui mais til que qualquer teoria. Se entrarmos num quarto burgus dos anos oitenta, apesar de todo o "acon-chego" que ele irradia, talvez a impresso mais forte que ele produz se exprima na frase: "No tens nada a fazer aqui". No temos nada a fazer ali porque no h nesse espao um nico ponto em que seu habitante no tivesse deixado seus vestigios. Esses vestigios so os bibels sobre as prateleiras, as franjas ao p das poltronas, as cortinas transparentes atrs das janelas, o guarda-fogo diante da lareira. Uma bela frase

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    de Brecht pode ajudar-nos a compreender o que est em jogo: "Apaguem os rastros!", diz o estribilho do primeiro poema da Cartilha para os citadinos. Essa atitude a oposta da que determinada pelo hbito, num salo burgus. Nele, o "inte-rior" obriga o habitante a adquirir o mximo possvel de h-bitos, que se ajustam melhor a esse interior que a ele prprio. Isso pode ser compreendido por qualquer pessoa que se lem-bra ainda da indignao grotesca que acometia o ocupante desses espaos de pelcia quando algum objeto da sua casa se quebrava. Mesmo seu modo de encolerizar-se - e essa emo-o, que comea a extinguir-se, era manipulada com grande virtuosismo - era antes de mais nada a reao de um homem cujos "vestgios sobre a terra" estavam sendo abolidos. Tudo isso foi eliminado por Scheerbart com seu vidro e pelo Bau haus com seu ao: eles criaram espaos em que difcil deixar rastros. "Pelo que foi dito", explicou Scheerbart h vinte anos, "podemos falar de uma cultura de vidro. O novo am-biente de vidro muilar completamente os homens. Deve-se apenas esperar que a nova cultura de vidro no encontre mui-tos adversrios."

    Pobreza de experincia: no se deve imaginar que os ho-mens aspirem a novas experincias. No, eles aspiram a liber-tar-se de toda experincia, aspiram a um mundo em que pos-sam ostentar to pura e to claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles so ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles "devoraram" tudo, a "cultura" e os "homens", e ficaram saciados e exaustos. "Vocs esto todos to cansados - e tudo porque no concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absoluta-mente grandioso." Ao cansao segue-se o sonho, e no raro que o sonho compense a tristeza e o desnimo do dia, reali-zando a existncia inteiramente simples e absolutamente gran-diosa que no pode ser realizada durante o dia, por falta de foras. A existncia do camundongo Mickey um desses so-nhos do homem contemporneo. uma existncia cheia de milagres, que no somente superam os milagres tcnicos como zombam deles. Pois o mais extraordinrio neles que todos, sem qualquer improvisadamente, saem do corpo do camun-dongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos mveis mais cotidianos, das rvores, nuvens e lagos. A natureza e a

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    tcnica, o primitivismo e o conforto se unificam completa-mente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicaes infinitas da vida diria e que vem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminvel pers-pectiva de meios, surge uma existncia que se basta a si mesma, em cada episdio, do modo mais simples e mais c-modo, e na qual um automvel no pesa mais que um chapu de palha, e uma fruta na rvore se arredonda como a gndola de um balo.

    Podemos agora tomar distncia para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peas do patrimnio humano, tivemos que empenh-las mui-tas vezes a um centsimo do seu valor para recebermos em troca a moeda mida do "atual". A crise econmica est diante da porta, atrs dela est uma sombra, a prxima guer-ra. A tenacidade hoje privilgio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus no so mais humanos que os ou-tros; na maioria brbaros, mas no no bom sentido. Porm os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. So solidrios dos homens que fizeram do novo uma coisa essen-cialmente sua, com lucidez e capacidade de renncia. Em seus edifcios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessrio, para sobreviver cultura. E o que mais impor-tante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som brbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivduo dar um pouco de humanidade quela massa, que um dia talvez retri-bua com juros e com os juros dos juros.

    1933