bem viver e propriedade: o problema da diferenciaÇÃo entre os xikrin-mebÊngÔkre (kayapó)

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MANA 20(1): 95-124, 2014 BEM VIVER E PROPRIEDADE: O PROBLEMA DA DIFERENCIAÇÃO ENTRE OS XIKRIN-MEBÊNGÔKRE (KAYAPÓ) Cesar Gordon Prólogo Nas sociedades ocidentais contemporâneas, a relação entre bem viver e propriedade é muitas vezes tida como autoevidente. Parece não haver gran‑ des discordâncias nas concepções correntes sobre sociedade e economia de que o bem viver depende fundamentalmente de certos tipos de propriedade ou, em última instância, de determinados padrões mínimos de renda que garantiriam a propriedade de bens tidos como fundamentais (Knight 1971; Canto 1985; Norton 1998; Frey 2002). A expansão quase ilimitada e global do consumo parece ser o resultado lógico e a realização prática dessa premissa. Não apenas o bem viver, mas também a própria felicidade e a dignidade humana são vistas como dependentes da propriedade de um conjunto de bens que garantiriam a autonomia econômica, ajudando a constituir as pes‑ soas e as subjetividades em nossas sociedades de consumo (Miller 1987). Mas quando voltamos os olhos para o mundo indígena, especificamente na direção das sociedades indígenas das terras baixas sul‑americanas, o que ocorre com essa equação? É possível detectar ali noções equivalentes ou análogas às de propriedade e bem viver? E se a resposta for positiva, de que maneira essas noções, ou suas equivalentes, poderiam estar articuladas na imaginação conceitual, moral e nas práticas indígenas? Estas são questões complexas e difíceis, e não serão certamente resol‑ vidas aqui. O presente artigo é apenas uma primeira tentativa de refletir sobre propriedade e bem viver em um contexto etnográfico específico, a saber, aquele dos Xikrin do Cateté, grupo Mebêngôkre (Kayapó), da Ama‑ zônia brasileira. Na primeira parte do artigo, dedico‑me a esclarecer o uso que faço da noção um tanto vaga de “bem viver ” desde o ponto de vista da etnografia mebêngôkre. Sugiro que ela pode ser expressa por um conceito que carrega, ao mesmo tempo, dimensões éticas e estéticas: o conceito de belo ou bom (mejx), termo que já foi descrito por diferentes etnógrafos (Turner *

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Nas sociedades ocidentais contemporâneas, a relação entre bem viver epropriedade é muitas vezes tida como autoevidente. Parece não haver grandesdiscordâncias nas concepções correntes sobre sociedade e economia deque o bem viver depende fundamentalmente de certos tipos de propriedadeou, em última instância, de determinados padrões mínimos de renda quegarantiriam a propriedade de bens tidos como fundamentais (Knight 1971;Canto 1985; Norton 1998; Frey 2002).

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MANA 20(1): 95-124, 2014BEM VIVER E PROPRIEDADE: O PROBLEMA DA DIFERENCIAO ENTREOS XIKRIN-MEBNGKRE (KAYAP) Cesar GordonPrlogoNassociedadesocidentaiscontemporneas,arelaoentrebemvivere propriedade muitas vezes tida como autoevidente. Parece no haver gran-des discordncias nas concepes correntes sobre sociedade e economia de que o bem viver depende fundamentalmente de certos tipos de propriedade ou, em ltima instncia, de determinados padres mnimos de renda que garantiriam a propriedade de bens tidos como fundamentais (Knight 1971; Canto 1985; Norton 1998; Frey 2002). A expanso quase ilimitada e global do consumo parece ser o resultado lgico e a realizao prtica dessa premissa. No apenas o bem viver, mas tambm a prpria felicidade e a dignidade humana so vistas como dependentes da propriedade de um conjunto de bens que garantiriam a autonomia econmica, ajudando a constituir as pes-soas e as subjetividades em nossas sociedades de consumo (Miller 1987). Mas quando voltamos os olhos para o mundo indgena, especificamente na direo das sociedades indgenas das terras baixas sul-americanas, o que ocorrecomessaequao?possveldetectaralinoesequivalentesou anlogas s de propriedade e bem viver? E se a resposta for positiva, de que maneira essas noes, ou suas equivalentes, poderiam estar articuladas na imaginao conceitual, moral e nas prticas indgenas? Estas so questes complexas e difceis, e no sero certamente resol-vidasaqui.Opresenteartigoapenasumaprimeiratentativaderefletir sobrepropriedadeebemviveremumcontextoetnogrficoespecfico,a saber, aquele dos Xikrin do Catet, grupo Mebngkre (Kayap), da Ama-znia brasileira. Na primeira parte do artigo, dedico-me a esclarecer o uso que fao da noo um tanto vaga de bem viver desde o ponto de vista da etnografia mebngkre. Sugiro que ela pode ser expressa por um conceito que carrega, ao mesmo tempo, dimenses ticas e estticas: o conceito de belo ou bom (mejx), termo que j foi descrito por diferentes etngrafos (Turner *BEM VIVER E PROPRIEDADE 961984; Lea 1986, 2012), e do qual eu mesmo j tratei em outra ocasio (Gordon 2011),masquejulgooportunoretomaraqui,juntamentecomoutrasno-es,igualmentepresentesnasformulaesxikrinrelacionadasaobem viver,como,porexemplo,vergonhaourespeito(piam)eentendimento (kuma). Pretendo sustentar que noes de bem viver devem ser articuladas com um problema indgena filosfico e existencial de magnitude, a saber, a questo da diferenciao. Colocado de maneira brusca, e como argumento polmico a defender no restante do artigo, eu diria que uma das definies do viver bem no mundo social mebngkre manter, em todos os nveis da vida social, um determinado quociente de diferenciao, ou ainda, o que a mesma coisa, no cair em um estado geral de indiferenciao. Nasegundaparte,tentorelacionarestaformulaocomaideiade propriedade, ou de algo que, no contexto social xikrin-mebngkre, guarde analogia ou funcione como equivalente da noo de propriedade.1 Sugiro que,nocasomebngkre,atarefadeencontrarconceitoequivalente propriedade de algum modo facilitada. Isto porque sabemos da existncia de um conjunto de prerrogativas rituais, expresso pelos termos nekrjx ou kukrdj, que faz parte de acervos familiares e pessoais, como muito bem descreveu Vanessa Lea (1986, 2012), autora que considerou pela primeira vez tais bens como um tipo de riqueza da sociedade kayap. A hiptese a ser avanada que bem viver est associado com o problema da diferen-ciao, e que esta, por sua vez, em um plano sociolgico geral, vincula-se questo da propriedade (especificamente quando se trata da propriedade cerimonial), uma vez que podemos entender o sistema ritual como o meca-nismo bsico, em nvel coletivo, de diferenciao na sociedade mebngkre. Assim, o estabelecimento de um sistema de repartio de propriedade, de tipo totmico, seria um importante mecanismo para evitar crises de indife-renciao e, portanto, garantir o bem viver. Por fim, na ltima parte, guisa de concluso, sugiro que o sistema ritual mebngkre passou por mudanas importantes que, de certa maneira, deslocaramumtipodediferenciaototmicaequiestatutrianadireo de um tipo de diferenciao mais marcadamente hierrquica, na qual h margemparaodesenvolvimentoderelaesrivalitriasnointeriordas comunidades e entre elas. Este ltimo tipo de diferenciao j foi descrito eanalisadopelosantroplogosqueestudaramosgruposmebngkre,e podeserexpressopelaoposionativaentrebelosoudonosdenomes e prerrogativas rituais (me mejx) versus comuns ou desprovidos de bens cerimoniais de valor (me kakrit) (cf Turner 1984; Lea 1986; Verswijver 1992). Essa mudana parece resultar naquilo que estou chamando de crise ritual, a saber, um processo cismogentico (Bateson 1958) de acelerao das di-BEM VIVER E PROPRIEDADE 97nmicas rivalitrias, e de incapacidade crescente de diferenciao, levando todo o sistema a um vis cada vez mais centrfugo, nos termos de Fausto (2001), e marcado por um carter agonstico, expresso pelo que os etngrafos chamaram de faccionalismo mebngkre. Bem viver e o problema da diferenciao entre os MebngkreAntes de passar analise do material etnogrfico, e sem qualquer preten-so de traar uma genealogia do conceito de bem viver (ou wellbeing) na antropologia de maneira geral,2 cabe um breve comentrio que nos ajude a situar o problema desde a perspectiva da etnologia indgena amaznica. Luisa Elvira Belande (2001), por exemplo, explorou de forma interessante a centralidade das noes de buena vida e vivir bien na constituio comunitria dos ndios Airo Pai, falantes de lngua tukano ocidental, habi-tantes do norte do Peru. Mais recentemente, Vanessa Grotti (2007) abordou o conceito de wellbeing em trabalho sobre os Trio e os Wayana da Guiana. A autora demonstra que o conceito se situa no campo de um conjunto de fenmenosediscursosindgenasjtematizadospordiversosetnlogos americanistas, cujas anlises foram classificadas por Eduardo Viveiros de Castro (1996) sob o rtulo de economia moral da intimidade. De fato, a noo de bem viver tem forte ressonncia com a ideia de convivialidade, tal como aparece mais claramente formulada por Joanna Overing, em especial na coletnea organizada junto com Alan Passes (Overing & Passes 2000). Rejeitandoaschamadasgrandesnarrativasmodernistassobrea sociedade(2000:1),OveringePassessugeremqueomundoindgena amaznico deve ser compreendido a partir do idioma da convivialidade, o qual, segundo eles, define um modo de socialidade amaznico (2000:xiii). Aconvivialidadeamaznicaconsiste,paraosautores,emelementosque podem ser encontrados na tradio ocidental crist tomista (amizade, liber-dade nas relaes pessoais, ausncia de coero, igualitarismo), somados a elementos mais propriamente nativos (mas que certamente se encontram tambm em variantes do romantismo ocidental), como a busca por tranquili-dade, moral alta, afetividade desenvolvida, uma metafsica da conexo entre humanos e no humanos, nfase no parentesco, na partilha e na ddiva [...] uma propenso para a informalidade [...] e uma intensa valorizao tica e esttica da sociabilidade (2000:xiii-xiv).Assim,poderamosconcluirque,naAmazniaindgena,acondio de viver bem estaria relacionada a uma esttica e a uma moralidade que valorizamossentimentosdepertena,asrelaesdecuidadocotidiano BEM VIVER E PROPRIEDADE 98entre parentes, os afetos familiares, a comensalidade, a partilha, a ddiva, a afabilidade, o suporte emocional, a compaixo e a liberdade pessoal. Uma esttica e uma tica estreitamente associadas ao fluxo da vida cotidiana e aouniversodoparentescoprximoedaconvivnciantimadogrupode cognatos.Um dos argumentos centrais de Overing e Passes consiste em opor este estado de convivialidade a uma viso jural ou estrutural do mundo ama-znico. Segundo os autores, os povos indgenas estariam pouco preocupados com o aspecto formal ou institucional da vida social, tendo pouco a dizer sobre papis, status, grupos corporados ou hierarquias (2000:2). Eles estariam mais propensos a buscar uma vida feliz e psicologicamente confortvel a partir da convivncia cotidiana do que em construir estruturas sociais (2000). Nesse sentido, fica clara a crtica de Overing e Passes a uma antropologia conven-cional, por assim dizer, seja em sua verso funcionalista ou estruturalista. como se o pensamento sociolgico e o estruturalista no estivessem aptos a compreender a sociabilidade amerndia, uma vez que esta no se pauta pela formao de estruturas societrias, e sim pela constituio de um universo social mais ou menos indiferenciado, liso, igualitrio, uniforme, baseado na esttica e na tica da convivialidade. Overing e Passes apontam, alm disso, para uma suposta incompatibilidade entre o desejo de viver bem e os mecanismos de estruturao e diferenciao social. Nos limites deste artigo eu no pretendo discutir em todos os detalhes o mrito do modelo de Overing e Passes, bem como sua dependncia a uma tradio de pensamento ocidental to antiga quanto as grandes narrativas modernas,aindaqueremodeladapelasinflunciasnewageeps-mo-dernas;nemtampoucosuainaplicabilidadeavastasreasetnogrficas amaznicas, como o Alto Xingu (Franchetto & Heckeberger 2001), o Brasil Central (Maybury-Lewis 1979), o Noroeste Amaznico (Hugh-Jones 1993; Lasmar2002),porexemplo.3Omodelonoparecegeneralizvelquando samos de comunidades pequenas, atomizadas, territorialmente dispersas paraumcenriodeunidadessociolgicasmaiores,territorialmentemais estabilizadas, onde h, por exemplo, grandes aldeias com populao maior que mil habitantes. De maneira mais particular, todavia, quero sugerir que setomamosaideiadevidaboaecorretanosentidoque,pensoeu,lhes doosXikrin,asproposiesdeOveringePassesnosoplenamente sustentveis.Muitopelocontrrio,umaanlisedomaterialetnogrfico mebngkre permite inferir que, exatamente ao contrrio do que afirmam aqueles autores, no h qualquer incompatibilidade entre o desejo de viver bem e os mecanismos sociolgicos (estruturais) de diferenciao social, pois estes ltimos so a condio de possibilidade do primeiro. BEM VIVER E PROPRIEDADE 99Os Xikrin so cerca de 900 pessoas que habitam a regio da bacia do rio Itacainas, no sudeste do Par, Brasil. So um dos grupos falantes de lngua mebngkre (ou kayap setentrional), pertencente famlia lingus-tica j. Eles compartilham com os demais Mebngkre, alm da lngua, uma mesma origem histrica e um conjunto de caractersticas socioculturais bem conhecidas na literatura etnogrfica (cf., por exemplo, Turner 1966; Vidal 1977; Lea 1986; Verswijver 1992). Tomados em conjunto, os Mebngkre somam hoje aproximadamente 10 mil ndios vivendo em diversas aldeias, emumamploterritrionosestadosdoPareMatoGrosso.Cadaaldeia constitui um universo poltico e territorial relativamente autnomo, mas h entreelasprofundasconexesdevriasordens(lingusticas,histricase socioculturais) que indicam a necessidade de pens-las, no isoladamente, porm compondo um nico regime relacional mebngkre.4O que podemos dizer das ideias de bem viver entre os Xikrin e Mebn-gkre afinal? A princpio, aparentemente contrariando o que acabo de dizer, o discurso dos Xikrin sobre o que ou deveria ser uma boa vida apresenta uma srie de elementos comuns aos de outros povos indgenas (e no indgenas), evocando as figuras da socialidade amaznica desenhadas por Overing e Passes. Aqui tambm, como em qualquer lugar, enfatiza-se a importncia da harmonia e da paz no interior das aldeias e entre as diferentes aldeias mebngkrecomoumfatorparaobem-estar.OsXikrincostumamdizer queviverbemviversembrigas,semviolncia,comfartura,semdoen-as, fazendo muitas festas grandes, contando com a participao de todos, enfim, em uma situao harmnica, equilibrada e estruturada que agrada e deixa as pessoas felizes (me m kinh, kam me kuni kinh). Na situao de insularidade dentro do Estado nacional brasileiro, viver bem tambm est relacionadoautonomiacomunitriaeaumacertaseguranajurdico--institucional, que envolve a demarcao e a proteo do territrio indgena, mnimo controle sobre os processos polticos decisrios que afetam a vida na aldeia, entre outros. Porm, essas apreciaes iniciais, muito gerais, apenas aparentemente ecoam a viso projetada por Overing e Passes. Na realidade, elas no esgotam o problema e no delimitam completamente o campo do bem viver entre os Xikrin. preciso, portanto, analisar mais detidamente os dados etnogrficos, enfocando a questo a partir de algumas categorias--chave pelas quais os Xikrin a expressam. No existindo um termo especfico para exprimi-las, as noes de bem viver para os Xikrin so normalmente verbalizadas pelo uso da palavra me-bngkre mejx, como nas expresses kam mejx, mejx o ari ba, mejx kumrenx, com o significado prximo de ficar bem, estar bem, muito bom/bem, respectivamente. O campo semntico desta palavra recobre uma srie de BEM VIVER E PROPRIEDADE 100atributos que poderamos traduzir por bom, bem, belo, bonito, correto, per-feito, timo. A palavra tem largussimo uso no discurso indgena cotidiano, qualificando desde coisas fsicas (objetos e corpos) a coisas mais abstratas (nomes,pessoas,situaes),eexprimindotantovaloresestticosquanto ticos e morais. Em sntese, mejx designa valores essenciais para os Xikrin. Produzirouobtercoisas,pessoas,comunidadese,enfim,umavidamejx parece ser a finalidade ltima da ao xikrin, manifestando-se nas esferas individual e coletiva. Um ponto importante a observar, e eu voltarei a isto adiante, que a obteno (individual ou coletiva) desta qualidade ou deste estado mejx est, em certo plano, intrinsecamente relacionada ao domnio ritual,edependedemaneirafundamentaldapropriedadeedocontrole sobre determinados objetos e direitos cerimoniais, dentre os quais nomes, adornos, papis rituais e prerrogativas.Em outro trabalho, analisei mais detidamente o conceito de mejx entre os Xikrin, procurando discernir seus atributos, tanto no que diz respeito sua aplicao a objetos e pessoas quanto a seu componente mais imaterial, por assim dizer, em que ressalta sua vinculao aos domnios sociolgicos ecosmolgicos(Gordon2011).Semretomarosdetalhesdoargumento, gostariadedestacarumelementoformalfundamentalparaadefinio xikrin de mejx. que, replicados em planos e nveis diferentes, notamos a presena dos mesmos princpios ou critrios de reconhecimento da beleza e da correo, assim como um belo objeto (um adorno, por exemplo), um belo corpo e uma bela festa so, igualmente, o resultado harmnico da produo de alinhamentos e separaes, aproximaes e afastamentos diferenciais dos elementos que compem a unidade em questo, uns em relao aos outros (Gordon 2011:221). O ordenamento e a estruturao espao-temporal dos bens cerimoniais que compem uma determinada ao ou fase ritual, por exemplo, so fatores constitutivos da beleza da cerimnia, da mesma forma que a sequncia, a ordemeoespaamentoentrediferentesconjuntosdeplumaspodemser fatoresconstitutivosdabelezaedacorreodeumcocar.Oparalelismo formal estende-se constituio das prprias pessoas, uma vez que sua be-leza depende do agenciamento diferencial de relaes sociais distintas, isto , da ao diferencial, em diferentes etapas do ciclo de vida da pessoa, de determinados parentes, como os pais (genitores), os pais classificatrios ou putativos, os parentes cruzados tios maternos ou avs (nominadores) e os amigos formais (relao especial, que j foi considerada nas etnografias como uma espcie de relao de compadrio).Desta forma, implcita noo xikrin do belo e do bom parece haver uma determinada ideia de diferenciao. O belo, em seus vrios planos de BEM VIVER E PROPRIEDADE 101realizao, depende da diferena ou, em outras palavras, de uma certa estru-turao posicional de elementos diferenciais. E se minha anlise procede, notvel o paralelismo destas concepes xikrin com os modelos da lingustica e da antropologia estrutural de matriz saussuriana e lvi-straussiana. Todavia, se isto nos esclarece acerca do sentido da categoria mejx, nada nos diz diretamente sobre as concepes do bem viver, que so geralmente expressas por aquele termo. Para tentar demonstrar mais claramente a cone-xo, precisaremos nos acercar das concepes do bem viver indiretamente, por meio do exame do seu contrrio. Podemos nos perguntar, por exemplo, o que representaria uma vida ruim (punure) em contraste com o bem viver. precisamente a, penso eu, que a questo da diferenciao reaparece de forma muito significativa. Vejamos como.DoquepossoextrairdosdiscursosdeumapartedosXikrincom quem convivi mais proximamente, haveria, segundo eles, um conjunto de elementos negativos, destrutivos e limitadores do bem viver. Em primeiro lugar,seguramente,aviolncia.Aviolnciapodeserumaforaexterior, que aparece de maneira imprevisvel, como nos casos de ataques e agres-ses cometidos contra eles por inimigos. Felizmente, dizem os Xikrin, essa umadimensoquepertencecadavezmaisaopassado,hajavistaque, desde os contatos permanentes com a sociedade brasileira, as relaes com os estrangeiros, indgenas ou no, vm se desenvolvendo quase sempre em uma chave pacfica. Mas h tambm a possibilidade de um outro tipo de violncia, que muito os preocupa: a violncia interna, surgida das tenses no seio da comunidade. De fato, uma das caractersticas reconhecidas nos grupos mebngkre aquilo que alguns antroplogos apontaram como seu pronunciado fac-cionalismo(Bamberger1979).Desdeosprimeirosrelatosacercadesses ndios, ainda no sculo XIX, as dissenses internas, os conflitos e as disputas faccionais, as divises violentas das comunidades, as inimizades e os dios fratricidas foram uma constante. Os Mebngkre viveram perodos de inten-sas rivalidades que, em geral, comearam no interior das aldeias, causaram cises, e se perpetuaram em guerras intercomunitrias (Turner 1966; Vidal 1977; Verswjiver 1992; Fisher 2000). Entre meados do sculo XIX e incio do XX, at o perodo imediatamente anterior ao processo de pacificao por rgos do Estado brasileiro, que ocorreu na dcada de 1950, diversos grupos mebngkre experimentaram guerras do tipo blood feud. Noinciodosculopassado,porexemplo,osKayapMekrnotire separaram-se dos Kayap Gorotire e, a partir da, os dois grupos passaram por uma sequncia de cismas internos (Verswjiver 1992). Por volta dos anos 1910, iniciaram-se tambm os conflitos entre os Xikrin e os Kayap Gorotire, BEM VIVER E PROPRIEDADE 102conflitosqueseestenderampordcadas,causandoinmerasmortesde ambos os lados. Em seguida, ocorreu um processo semelhante, porm no seio da prpria comunidade Xikrin, resultando na separao do grupo do Bacaj (que foi habitar as margens do rio Bacaj, prximo ao que hoje o municpio de Altamira) do grupo do Catet (Vidal 1977; Fisher 2000). Neste ltimogrupo,fortesrivalidadesentrepaiefilhopelocomandodaaldeia resultaram em uma ciso em 1962. Mais recentemente, a rivalidade entre dois irmos, filhos do velho chefe, e posteriormente entre os filhos dos filhos (que tambm disputavam prestgio e a liderana da comunidade) resultou em nova ciso da aldeia do Catet em 1993 (Gordon 2006:163).5No passado, os Mebngkre chegaram a elaborar um mecanismo ri-tual para tentar resolver os conflitos internos, que funcionava quase como instrumento proto-jurdico, como foi o caso do duelo coletivo formalizado denominado aben tak (baterem-se uns contra os outros), em que os derro-tados reconheciam a superioridade dos vencedores, encerrando as queixas (Turner 1966). No entanto, conforme registram as etnografias, esse instru-mento nem sempre era eficaz, muitas vezes provocando o efeito contrrio deacirramentodastenses,efuncionandocomocombustveldoconflito (Turner1996;Verswjiver1992).Hoje,cisescontinuamaocorrer,como testemunhaaproliferaosemprecrescentedenovasaldeias,aindaque osconflitosviolentostenhamdiminudoconsideravelmente,substitudos por solues que assumem um carter mais poltico do que belicoso. Mas o espectro dessa violncia interna continua vivo. Ela no mais atinge neces-sariamente a comunidade por inteiro, mas pode manifestar-se em termos de relaes individualizadas e pessoais.Tradicionalmente, as disputas internas giravam em torno de acusaes de feitiaria, relaes extraconjugais, roubos, disputas por direitos e prer-rogativas, ou ainda por quaisquer outros eventos de forte carga emocional, uma vez que eles fomentavam ressentimentos e desejos de vingana. Muito embora o ethos guerreiro e a belicosidade expressos pelo termo kr seja um valor entre os Mebngkre (Verswjiver 1992), sua positividade situa--se primordialmente no plano das relaes com o universo social externo ao domnio comunitrio aldeo, posto que neste ltimo deve imperar a lgica dadomesticidade,qualidadesimtricaecomplementarbelicosidade,e que designada pelo termo uab (Gordon s/d).Em todo caso, invariavelmente, os conflitos so entendidos pelos Xikrin como efeito de fatores tais como a avareza ( dj), o cime e a inveja (djpnhin) e as rivalidades (aben o kur, aben m kr, isto , odiar-se mutuamente, ser tomado de ira mtua). Tanto a avareza quanto o cime e a inveja podem ser pensados como fenmenos resultantes de processos de indiferenciao, BEM VIVER E PROPRIEDADE 103no sentido de instaurarem uma relao de tipo mimtico (Girard 1972) entre os envolvidos, fazendo desaparecer a distncia que garantia a complemen-taridade entre os termos. Sem a distncia, os termos passam a se chocar uns com os outros na disputa pela mesma posio, substituindo assim a comple-mentaridadepelarivalidade,semelhanadasnarrativasdosgmeosSol (myt) e Lua (myturwa). No mito, a separao de sol e lua garante o equilbrio csmico, ao passo que seu encontro acarreta rivalidades mimticas cujo re-sultado violncia, luta ou assassinato (Lukesch 1976:27-33). A reduo da distncia entre os astros simboliza o processo de indiferenciao instaurado pelo mimetismo de apropriao: passa-se a desejar as mesmas coisas que o outro; passa-se a desejar ocupar o lugar do outro. E a perda da diferena leva a uma espcie de relao especular, com emergncia de duplos idnticos. Talvez seja por esta razo que a gemelaridade possui conotaes negativas entre os Xikrin. Para eles, os gmeos idnticos so sinais de mau agouro, associados a animais como cachorro, cobra e larvas de inseto.6Diferena e distncia so, portanto, correlativas. Neste ponto, devemos entrar em consideraes sobre o bem viver, que se articulam com outro conjunto de categorias cruciais, notadamente as noes que implicam distncia, como vergonha, respeito, juzo e entendimento. De fato, consenso entre os Xikrin que no se pode viver bem quando no h o devido respeito e no se cumprem as regras mnimas de convivncia social, expressas pelo termo piam. A palavra, normalmente glosada por vergonha ou respeito, tem uma impor-tncia fundamental na socialidade mebngkre, definindo o que prprio das relaes sociais entre humanos e sendo o operador por excelncia de distncia social (veja-se a boa anlise comparativa de Coelho de Souza 2002:497-513). A ausncia de piam a marca inconfundvel da indiferenciao, ca-racterstica de um mundo social bestial, onde no se distinguem as relaes deparentesco,ondetudomisturadoeconfuso,comoemumbandode porcos do mato ou em uma matilha de ces. No universo mebngkre, vale o que Coelho de Souza descreveu tambm para os outros J setentrionais: Todas as relaes caracterizadas por uma diferena, sexual, geracional ou etria seriam assim, em alguma medida, marcadas por pim [...] (Coelho deSouza2002:500,nfaseminha).Adistnciafundamental,tantono plano das relaes de pessoa a pessoa, quanto nas relaes entre grupos ou unidades coletivas, como associaes masculinas.7 Note-se en passant que quando os Xikrin tecem avaliaes morais negativas a respeito dos brancos, ou de estrangeiros em geral, costumam destacar que seu carter monstruoso deriva, em boa parte, da falta de vergonha. Afaltadevergonhaederespeitotambmestassociadaaumadi-mensodramticadaindiferenciao:oproblemadoincesto.OsXikrin, BEM VIVER E PROPRIEDADE 104at onde pude saber, no costumam falar regularmente (ou abertamente) de incesto. Tambm no h no corpus narrativo mebngkre uma profuso de mitos sobre este tema, ainda que haja alguns significativos. No entanto, as referncias mticas permitem sugerir que o incesto pensado como um retorno indiferenciao no humana e bestial (Wilbert 1978). Os mitos que falam de incesto contam como os incestuosos transformam-se em animais inclusive animais considerados como a prpria peste ou veculo de morte (caso das garas), e provocam cataclismos csmicos (Lukesch 1976). Alguns informantes associaram o incesto ao nascimento de gmeos, o que parece fazer muito sentido, se levarmos em conta as observaes que tecemos acima.A vergonha e o respeito associam-se complementarmente noo mais positiva de entendimento ou de compreenso, expressa pelo verbo me-bngkre ma (ou mari). O verbo ma denota qualidades fsicas e mentais ou morais, podendo ser traduzido por ouvir, escutar, atender, entender, lembrar, pensar. A palavra kuma, composta pelo verbo flexionado no acusativo (ku), designa a faculdade de pensar racionalmente ou reflexivamente, de modo a seguir os preceitos ditados pelo piam. A falta de conscincia reflexiva, isto , a incapacidade de ouvir, entender e lembrar (kuma kt, em que kt a partcula de negao), e a ausncia da vergonha (piam kt) so fenmenos interligados, e ambos podem ser equacionados ao problema da indiferen-ciao e, consequentemente, da violncia.Os Xikrin dizem que uma pessoa excessivamente feroz ou tomada de fria incontrolvel incapaz de ouvir os parentes (me inhbikwa mari kt). Ela perde a capacidade de entendimento e raciocnio. Nesses casos, tal pessoa dita sur-da (no escuta, surdo, traduo da expresso a ma kre kt que significa literalmente sem ouvido). Nesse estado, como se seu corpo fosse um corpo no humano, como se a pessoa atingisse um estado de indiferenciao corporal absoluta: no sentindo dor, fome, sede, medo, piedade, compaixo, no mais se desviando dos obstculos na mata, andando sempre em frente, em linha reta, atravessando cipoal, galhos, espinhos. Ela se torna ento um grande perigo, um matador incapaz de discernir (o certo do errado, o parente de um no parente, o amigo de um inimigo etc.). A violncia mais perigosa o resultado de uma completa indiferenciao, ao mesmo tempo interna e externa. Assim, no universo mebngkre no existe incompatibilidade entre o viver bem e os mecanismos de estruturao e diferenciao social. Muito pelo contrrio, a estruturao diferenciante a garantia mesma da possibili-dade da boa vida. Por conseguinte, a indiferenciao o problema de fundo. Esta vista pelos Xikrin como inimiga do bem viver. Contra seus efeitos, os ndios empreendem esforos simblicos e prticos e engendram uma srie de mecanismos de ordem tica, psicolgica e sociolgica.BEM VIVER E PROPRIEDADE 105O tema da indiferenciao, que aqui evoco por meio do material xikrin e mebngkre, poderia, com toda certeza, ser analisado em termos compa-rativos e tericos mais abrangentes. Evoquemos, por exemplo, a discusso de Lvi-Strauss sobre o tema dos gmeos em Histoire de lynx (1991). Ali, aps uma breve recenso das mitologias de gmeos em diversas tradies culturais, Lvi-Strauss sugere que a simbologia indgena dos gmeos jamais vindicaumaidentidadequenosejainstveleprovisria(aidentidade no pode durar, diz ele). Para Lvi-Strauss, isto sugere que o pensamento amerndio atribui simetria um valor negativo, malfico mesmo (1991:305). Daafamosanoododualismoemperptuodesequilbrio(1991:311) que,segundooantroplogofrancs,marcariaafilosofiasocialindgena, com reflexos na ideologia e na organizao social.Lvi-Strauss restringiu-se dimenso filosfica e sociolgica do pro-blema, e no abordou sua dimenso tica e existencial. O material xikrin, como venho tentando argumentar, permite iluminar este ltimo aspecto. Podemossuspeitarqueasimetrianadamaissejadoqueumsmbolo daindiferenciao.SeadicionarmosaoargumentodeLvi-Straussas hipteses de Girard (1972) acerca das crises mimticas ou crises de indi-ferenciao, torna-se possvel passar do plano lgico-cognitivo ao plano tico-existencial. Segundo Girard, o espelhamento dualista ou simtrico, do tipo apontado por Lvi-Strauss na passagem mencionada espelhamento que expresso pelas figuras de duplos e gmeos, por exemplo uma representao transcultural contundente de crises de indiferenciao, ou seja,desituaesepidmicas,violentasefortementedestrutivas(hipo-tticas ou mesmo histricas) de mimese rivalitria.8 A simetria manifesta nasimbologiagemelar,nofimdascontas,aexpressodadissoluo completadasdiferenas,nodeumpontodevistameramentelgico, masconcreto,tendoadimensodeumproblemaexistencial.Trata-se de um espelhamento infernal que s pode conduzir ao enfrentamento, violncia, desordem, enfim, morte individual e coletiva. Assim, no apenas por uma questo cognitiva, terica ou esttica que os ndios rejei-tam a simetria gemelar, mas porque ela o smbolo de tudo aquilo que os impede de viver bem.Assim, em todos os nveis de anlise, por trs de distintos planos de discurso, aes e ideias xikrin sobre o bem viver, um mesmo tema parece pulsar insistentemente, e este tema diz respeito ao problema da diferencia-o. Para dizer de um modo um tanto brusco, o bem viver, no universo xikrin e mebngkre, est essencialmente vinculado ao sucesso ou ao fracasso da coletividade em evitar processos de indiferenciao, associados, no pensa-mento indgena, ao cime, s rivalidades, violncia e morte.BEM VIVER E PROPRIEDADE 106Ritual e totemismo como mecanismos de diferenciaoNo plano das relaes interpessoais, a indiferenciao geradora de crises mimticas e violncia, impeditivas do viver bem evitada por meio de instrumentos ticos ou morais, como as noes de vergonha, respeito e enten-dimento. Mas haveria tambm entre os Xikrin e Mebngkre procedimentos que visam garantir uma determinada estrutura relacional diferenciante em nvel coletivo ou sociolgico mais abrangente? Quais so eles? E qual a re-lao entre tais processos e a noo de propriedade entre os Mebngkre? Quero sugerir que esses procedimentos compreendem fundamental-mente o domnio ritual. Por domnio ritual entendo no apenas o conjunto de performances, festas e ritos que compem a vida cerimonial, mas tambm o sistema de repartio e transmisso de conjuntos de nomes, prerrogativas, direitos, regalias e objetos de valor (nkrjx ou kukrdj), que foram des-critos como preciosidades (valuables) por Turner (1991) e riqueza por Lea (1986). De fato, todos os grupos mebngkre possuem tradicionalmente conjuntosdebenssimblicosecerimoniaisquefuncionamcomosignos distintivosdeindivduosougruposfamiliares.Nomesenkrjxsopro-priedade ou direitos de determinadas pessoas e famlias e so transmitidos intergeracionalmente, na forma de herana, de indivduo a indivduo, por meio de uma regra fixa de relao entre determinados parentes cruzados. Esse mecanismo de transmisso muito bem documentado na etnografia, bastando aqui rememor-lo rapidamente. Um menino recebe nomes e nkrjx de um ou mais parentes masculinos da categoria ngt que inclui as posi-es genealgicas MB, MF, FF etc. Uma menina recebe nomes e nkrjx de uma ou mais parentes do sexo feminino, da categoria kwatyj que inclui FZ, MM, FM etc. Em relao a esses parentes, ego de ambos os sexos (isto , o indivduo que recebe a herana) est na categoria tbdjw. Oobjetivoimediatodasmaisimportantescerimniasmebngkre atribuir s crianas, publica e coletivamente, os bens cerimoniais herdados deseusparentes.Duranteasperformances,ascrianashomenageadas exibem sua regalia na praa da aldeia e danam junto com os nominadores que lhes transmitiram os bens. Com isso, torna-se pblico o fato de que, do-ravante, essas crianas tambm so legtimas donas desses bens, adquirindo, portanto, o direito de transmiti-los, elas mesmas, quando forem adultas, aos seus prprios sobrinhos e netos. Os rituais so, por conseguinte, o contexto propcio para que a coletividade saiba quem quem em termos de bens e itens de alto valor cultural. As festas so o momento em que as prerroga-tivas cerimoniais das crianas devem aparecer diante de todos, devem ser mostradas (o ami rint, em que ami partcula reflexiva, e rint um verbo BEM VIVER E PROPRIEDADE 107com sentidodeaparecerou revelar). Findo o ritual, ascrianas sotidas por pessoas sociais mais plenas, ou belas, conforme a categorizao ind-gena expressa na palavra mejx. Exatamente por isso, as crianas honradas duranteosrituaisdenominam-semereremejx,expressoquedenotaum sentido prximo de aqueles a quem se d/outorga a beleza, aqueles que se tornam belos. Entre os Xikrin, as prprias performances rituais podem ser denominadas mereremejx. Emsntese,osrituaisfornecemoquadrosocialparaqueosobjetos cerimoniais sejam visualizados e explicitados diante de toda a comunidade enquanto emblemas de determinadas pessoas e famlias. As performances rituais, elas mesmas, podem ser vistas como um ordenamento temporal e espacialdediferentesbenscerimoniais(Fisher2003).Defato,acorreta distribuio de conjuntos de adornos, papis e cantos durante a festa seu aparecimento no meio do ptio da aldeia em sequncia correta, e na correta disposio ou posicionamento indica harmonia, simetria e beleza. Num certo sentido, conforme mencionei anteriormente, isso que faz a cerimnia ser bela e, em ltima instncia, faz a prpria coletividade ser bela, correta e completa. No por outra razo que os rituais mebngkre evocam sempre a imagem de uma totalidade social.Foi a etnloga Vanessa Lea (1986) quem pela primeira vez deu o devi-do destaque ao aspecto diferenciante dos bens cerimoniais entre os grupos mebngkre. Lea fez uma pesquisa detalhada sobre os conjuntos de nomes e prerrogativas e os descreveu como a riqueza ou a propriedade de unidades matrilineares que ela designou pelo termo Casa ou Matricasa (ver, p.ex., Lea2012).Elainspirava-senanoodesocitmaisonelaboradapor Lvi-Strauss, embora tenha empregado o termo de forma diferente daquela do antroplogo francs, para quem o termo aplicava-se antes a sociedades cogn-ticas ou a sociedades sem um princpio exclusivo de descendncia unilinear (ver Gordon 2006:369; Gordon 1996). Os meus prprios dados entre os Xikrin contradizem a nfase de Lea na noo de Casa enquanto unidade matrilinear, e parecem sugerir que deveramos nos manter mais prximos da elaborao do conceito de maison por Lvi-Strauss, em que a propriedade cerimonial est vinculada a famlias cognticas e pode ser transmitida estrategicamente, seja pelo lado materno, seja pelo lado paterno. Porm uma discusso pormenori-zada deste ponto no necessria para os objetivos deste artigo. preciso insistir, por outro lado, na importncia fundamental da dimen-so diferenciante do sistema, destacada por Lea. Em suas palavras: Nomes e nekretx (sic) constituem a essncia ancestral [...] que compe a identidade distintiva de cada Casa (Lea 2012:98). Mais do que isso. De acordo com as mulheres da aldeia Metyktire com quem Lea trabalhou: Qualquer aldeia BEM VIVER E PROPRIEDADE 108mbngokreespecficaumaversoparcialdeumaaldeiaidealondea totalidade das matricasas forma um nico crculo (:121). Isto significa que oprottipoidealdeumaaldeiambngokrepensado,aomododeum sistema estruturalista, como um conjunto finito de unidades diferenciadas e, portanto, diferenciantes, que se definem pela propriedade de determinados bens cerimoniais distintivos.Essesistemaapresentafeiesclaramentetotmicas.Aquitiles-clarecer de forma breve meu uso da noo de totemismo. Digo isso porque oclssicotermoganhourecentementenovodestaqueantropolgicona formulao de Philippe Descola (2005). Para este autor, o totemismo visto primordialmentecomoummododeidentificaoentrehumanoseno humanos. Ele uma das transformaes dos quatro esquemas relacionais possveis de objetificao da natureza naturalismo, totemismo, animismo e analogismo que, segundo Descola, se apoiam na percepo universal de uma dupla dimenso ontolgica: intencionalidade (ou interioridade) e fisicalidade (ou corporalidade). De maneira bastante simplificada por mim aqui, o totemismo , na verso de Descola, o modo de objetificao em que um mesmo tipo de fisicalidade e interioridade considerado como particular a determinados conjuntos de seres humanos e no humanos, que se consti-tuem, ento, em grupos totmicos especficos. Em suma, os grupos totmicos so formados por seres humanos e no humanos que compartilham, nesta concepo, uma mesma fisicalidade e uma mesma interioridade.Conquanto engenhoso e elegante, o modelo de Descola resulta na obli-terao de um aspecto a meu ver fundamental de uma outra definio cle-bre do totemismo, dada por Lvi-Strauss (1962) h cerca de cinquenta anos. Como se sabe, Lvi-Strauss dissolveu o que qualificou de iluso totmica nostermosformaisestruturalistas.Eleanalisouofenmenoenquantoum mecanismo lgico de diferenciao e classificao, que se obtinha por meio da projeo no eixo das relaes sociais humanas de diferenas significativas percebidas no plano das espcies naturais. O totemismo era basicamente uma operaomental,ummododerelacionarsriesderelaesdediferenas. Embora considerasse as implicaes sociolgicas dessa operao a saber, garantir a existncia de unidades sociais bsicas que pudessem engajar-se em trocas matrimoniais Lvi-Strauss no percebeu uma funo sociopoltica importantssima do totemismo. Acredito que tal funo permite situ-lo dento de um quadro mais vasto de interditos comuns s sociedades no modernas, tal como sugeriu Girard (2007:20). Este ltimo autor parece-me convincente ao demonstrar que a funo dos interditos, tais como os interditos totmicos e outros interditos de natureza sexual, seria a de repartir previamente todos os objetos desejveis, de modo a prevenir as rivalidades mimticas. BEM VIVER E PROPRIEDADE 109O argumento me parece importante. Ao estabelecer uma diviso prvia dos recursos simblicos disponveis e desejveis, o totemismo no se limita a uma operao mental, ou a um jogo lgico e intelectual de diferenciao. Ao contrrio, ele tem uma finalidade prtica crucial e intrinsecamente asso-ciada dimenso existencial e ao bem viver. Se Girard est certo, uma insti-tuio tal como o totemismo visa impedir as rivalidades internas, a cobia, as disputas por recursos simblicos, ao efetivar sua repartio prvia, e conferir aos grupos ou unidades sociais relevantes uma forma de propriedade cujo carter distintivo relativamente estvel e mais ou menos fixo. O totemismo forneceria, assim, um esquema global, cuja finalidade anloga tica das relaes interpessoais, qual seja: evitar o desencadeamento de processos de indiferenciao e rivalidades mimticas no seio da comunidade. Eis a, nesse sistema de tipo totmico, a possibilidade da existncia de propriedades diferenciais capazes de se harmonizarem sistemicamente em um todo formado de partes distintas e complementares. Ora, isso me pare-ce perfeitamente coerente com o sistema de bens cerimoniais mbngokre descrito por Vanessa Lea. Cada grupo (seja matricasa ou famlia cogntica) dispe, idealmente, de seu prprio acervo de nomes, bens e recursos, que podem ser, no mximo, trocados ou articulados uns aos outros por meio de procedimentos rituais e formais, e eventualmente, por aliana matrimonial, mas que devem, no fim das contas, permanecer distintos, como forma de impedir as disputas e os processos mimticos disruptivos.Como no poderia deixar de ser, a fundamentao cosmolgica ou reli-giosa desse sistema estabelecida no plano mtico. Alguns conhecidos mitos de origem mebngkre narram o surgimento desse sistema de tipo totmico. Por exemplo, o mito da Grande Ave Predadora (kti) explica o surgimento de toda a diversidade de pssaros e de todos os tipos de adorno plumrio (nkrjx) que caracterizam as diferenas atuais. Outro exemplo o mito da aquisio dos grandes nomes cerimoniais provenientes do mundo aqutico (Lukesch 1968; Wilbert 1978; Lea 1986). Todas essas narrativas encaixam-se na famosa frmula lvi-straussiana da passagem do contnuo ao discreto, do indiferenciado ao diferenciado. Mas elas se encaixam tambm na frmula girardiana do sacrif-cio. Girard pretendeu mostrar, precisamente, o modo como o sacrifcio capaz de realizar a passagem do indiferenciado ao diferenciado por meio de uma separao bsica e estruturante: a oposio entre vtima e coletivo vitimrio. O sacrifcio instaura uma violncia reparadora e estruturante (a violncia de todos contra um), quando antes havia uma violncia indistinta e indiferenciada (a violncia de todos contra todos, tpica das crises mimticas agudas). Conforme bem observou Girard em dois artigos instigantes (1976, 1977), nos quais reanalisou alguns mitos estudados por Lvi-Strauss em Le tote-BEM VIVER E PROPRIEDADE 110misme aujourdhui (1962), a passagem do contnuo ao discreto se faz, nessas narrativas, invariavelmente ao modo de uma eliminao radical e violenta de um personagem por uma coletividade, uma espcie de imolao ou preda-o fundadora. O fato de que a passagem do indiferenciado ao diferenciado expressava-se sempre na forma de uma imolao foi rejeitado pela anlise estrutural, que recodificou esse elemento narrativo crucial em termos de uma necessidade lgico-formal ou topolgica: reduzir o excesso de significante, empobrecer o contnuo, criar espaos vazios para que o pensamento possa operarasignificao.Lvi-Strausstomouospersonagensmticosapenas em sua dimenso geomtrica ou topolgica, como fragmentos annimos que ocupam certa posio no espao (Girard 2002:17), desprezando todo o seu contedo narrativo e dramtico.Mas no caso dos mitos mebngkre, por exemplo, o drama vitimrio tambm est expresso claramente em vrios mitos: ele ocorre pela destrui-o do grande Gavio Real e a criao dos adornos plumrios; pelo ataque sociedadedosPeixeseacapturadosgrandesnomescerimoniais;pelo assassinato da Mulher Jaguar e o roubo do fogo marcando a transio do cru ao cozido. A ordem cultural totmica diferenciada instaura-se, portanto, na sequncia de um tipo de imolao original que a tradio etnolgica tem glosado pelo termo predao (Viveiros de Castro 1993) que j , ela mesma, a instaurao de uma primeira diferena fundante entre uma coletividade e uma vtima.9Se os mitos falam desta instaurao, os rituais fazem a mesma coisa no plano da ao, e promovem a rememorao do drama mtico que criou a diferenciao. Promovem-na por meio da reencenao dos eventos que teriam dado curso passagem do indiferenciado ao diferenciado. Assim, o ritual, embora reencene a indiferenciao e o estado transformacional ou metamrfico,noofazpornostalgia(conformeimaginouLvi-Strauss), mas porque precisa reencenar tambm todos os momentos do processo que culminoucomofimdoindiferenciadoeainstauraodaordemcultural composta por diferenas de tipo totmico.10 Por conseguinte, a metamorfose ritual, que poderamos colocar no plano das indiferenciaes, ou da represen-tao do indiferenciado (e por isso nele se nota a presena de tantas figuras monstruosas, como mscaras, homens-pssaro, homens-jaguar), serve, em ltima instncia, para reafirmar, no palco do processo social, as diferenas. Se a metamorfose ritual evoca a indiferenciao (entre homens e animais, entre mito e histria etc.), esta s pode ser temporria e circunscrita a um contexto espao-temporal controlado, cujo objetivo ltimo precisamente a reafirmao de uma diferenciao global entre todos esses termos, e de uma segmentao no seio da comunidade capaz de garantir que a vida no BEM VIVER E PROPRIEDADE 111caia naquele estado limite da indiferenciao, ou pelo menos no se apro-xime perigosamente dele, estado este que ameaa o bem viver no plano de coletividadeinteira,equeno significaoutra coisa,emltimainstncia, do que a prpria morte. Histria e crise do sistema ritualAt aqui vim descrevendo de que forma as noes de bem viver entre os XikrinMebngkreestovinculadasaumadeterminadaticaindgena que parece ver na indiferenciao um smbolo de perigo, ameaa e morte, e prope como resoluo teraputica sua eliminao pelo estabelecimento da diferenciao ao modo de um sistema estrutural. Tentei demonstrar que, no plano sociolgico mais amplo, esta tica parece se realizar idealmente no estabelecimento de um sistema de propriedade de tipo totmico, delimitan-do o domnio ritual e projetando a ideia da sociedade como uma totalidade formadadeunidadesdistintasecomplementares,relativamenteestveis e discretas, de maneira a impedir a ecloso das rivalidades e das disputas mimticas de tipo aquisitivo. Porm, neste ponto as coisas se complexificam, uma vez que toda uma dimenso importante dos processos de diferenciao ritual, tratada por mim em outros trabalhos (Gordon 2006, 2010a, 2010b), ainda no foi mencionada nesteartigo.Refiro-meaumoutrotipodediferenciao,quechameide hierrquica, igualmente presente no sistema ritual mebngokre, mas que desenha uma paisagem muito mais dinmica, como si ser sempre que os esforos humanos de constituir o bem viver se defrontam com a histria. Este modo de diferenciao caracteriza-se precisamente por seu carter aquisitivo e por seu aspecto mimtico, contrariando o modelo de tipo totmico tal como descrito por Vanessa Lea. Com efeito, as melhores etnografias dos grupos mebngkre sempre registraram um tipo de diviso interna de prestgio e valor social, expressa muitas vezes de modo explcito no discurso dos ndios, entre pessoas ditas bonitas (me mejx) detentoras de bens cerimoniais e de condies sociais emateriaiscapazesdegarantirarealizaoderituaisepessoasditas comuns (me kakrit), ou sem beleza, seja porque no possuam um conjunto significativo de bens cerimoniais, seja porque no conseguiam arcar com os custos materiais da produo dos rituais. A dimenso hierrquica da socialidade mebngkre j havia sido es-tudadaporTerenceTurner(1984),aindaquesuaabordagemnotivesse focalizado uma economia poltica dos bens simblicos, e sim uma economia BEM VIVER E PROPRIEDADE 112poltica de pessoas (Gordon 2006, cap. 2). Turner descreveu a sociedade mebngkre como uma ordem poltica baseada em uma estrutura hierrquica de relaes de explorao da produo social ele sugeria uma explorao dos mais jovens pelos mais velhos e das mulheres pelos homens gerando uma distribuio assimtrica de valor social (Turner 1991:2). Porm, a noo de uma assimetria baseada em bens cerimoniais j estava de alguma forma contida, em germe, na prpria etnografia de Vanessa Lea (1986). Eu mesmo apontei a ambivalncia das concluses desta autora (Gordon 2006:93). Mesmo sem ter tirado as devidas implicaes dos dados por ela apresentados, Lea percebeu en passant, j no final de sua etnografia, que os bens cerimoniais no eram apenas emblemas das Casas, mas haviam se tornado uma fonte de prestgio para seus detentores (Lea 1986:341). Era exa-tamente por esta razo que sua etnografia falava tanto de disputas, roubos, e conflitos em torno dos nomes e nekrjx, bem como da grande preocupao de famlias e indivduos de no perder alguns de seus bens. Curiosamente, Lea falava tambm de bens cerimoniais que poderiam se desvalorizar em virtude da sua excessiva circulao, sendo desprezados pelos donos originais (porquealgumabandonariaumemblemadistintivodasuaCasa?);ou, ao contrrio, valorizar-se em funo da sua raridade e exclusividade. Todo esse cenrio de disputas, aquisies, muitas vezes agnicas e quase obses-sivas, assim como um jogo complicado de valorizao e desvalorizao, de concentraoedisperso,jestavamuitodistantedomodelototmico de repartio prvia e harmnica da propriedade cerimonial. J estvamos no reino delicado do desejo mimtico (Girard 1961).Quando realizei minha pesquisa de campo com os Xikrin, embora no dispusesse das ferramentas conceituais proporcionadas pela teoria mimtica, procurei extrair todas as consequncias analticas desse cenrio. Parecia-me, claramente, que os aspectos totmicos do sistema ritual descritos por Lea eram, quela altura, menos visveis ou menos operativos entre os prprios Metyktire (comunidade mebngkre em que Lea fez sua pesquisa) e em especial entre os Xikrin. Meu esforo ento foi o de demonstrar a existncia do componente hierrquico e fortemente rivalitrio na sociedade mebngkre, que se expres-sava por meio do sistema cerimonial, mas tambm atravs de processos de incorporao de bens e objetos oriundos de outras sociedades, incluindo-se a sociedade no indgena, tais como as mercadorias e o dinheiro. A tnica do argumento era a de que havia entre os Xikrin uma busca por distintividade (Gordon 2006). Este modo de diferenciao hierrquica resultava na tentativa de magnificao de determinadas famlias e lderes polticos ou chefes, em termos de maior beleza e maior capacidade de agenciar objetos de valor provenientes do exterior, como mercadorias e dinheiro. A busca por distinti-BEM VIVER E PROPRIEDADE 113vidade atrelava-se a um impulso aquisitivo, ou seja, passava pela tentativa de adquirir e concentrar recursos simblicos, rituais, monetrios etc. Ao invs de repartir o campo da propriedade em elementos estveis e fixos de maneira a evitar as rivalidades, o sistema que eu descrevi em Economia sel-vagem (2006) permitia o acmulo, e gerava disputas mimticas incessantes no apenas no interior de cada comunidade ou aldeia, mas tambm entre elas, num jogo constante de indiferenciao e novas tentativas de diferenciao. No caso dos bens industriais, o consumo crescente que resultava desse jogo me levou a denominar a relao dos Xikrin com eles em termos de uma espcie de inflao indgena (Gordon 2010a). Creio ter sido capaz de explicar que tanto os bens e os valores provenientes do mundo dos brancos quanto os bens cerimoniais tradicionais funcionavam segundo uma mesma lgica: uma complexa economia poltica, uma busca por distintividade, cujo efeito no era mais o estabelecimento de diferenas esquistatutrias, e sim diferenas hierrquicas, de valor social, prestgio e poder um cenrio mais mimtico (no sentido girardiano) do que totmico. A anlise histrica e comparativa entre as diversas aldeias mebngkre e os Xikrin me permitiu mostrar que esse processo estava operando provavel-mente desde antes do contato definitivo dos ndios com os brancos, e acabou impelindo os primeiros a intensificar as relaes com estes ltimos em busca de objetos capazes de funcionar como propriedade diferenciante.Mas havia um aspecto paradoxal em todo esse processo. Inicialmente incorporados pelos Xikrin dentro do sistema de bens cerimoniais, os objetos provenientesdomundodosbrancos,tantoporsuaqualidadequantopor sua quantidade, acabaram transbordando esse sistema. E mais do que isso, o incremento dos objetos industrializados na sociedade Xikrin, de maneira geral, veio a facilitar ou a democratizar o acesso s condies materiais de produo dos rituais. Em meio a um contexto mimtico generalizado, isto teve o efeito de acelerar todo o mecanismo ritual, posto que muito mais pes-soas puderam realizar as cerimnias de confirmao ritual, o que resultou em uma espcie de vulgarizao da beleza cerimonial, e concorreu para o progressivo apagamento do rendimento sociolgico da prpria distino entre belos e comuns. Com isso, surgiu uma espcie de consumo diferen-cial (ou consumo de luxo) de bens industrializados, como um mecanismo substitutivo de produzir a diferenciao hierrquica. A diferena entre ricos e pobres tornara-se mais presente no discurso xikrin do que a diferena entrebelosecomuns.Semdvida,aprimeiraeraumatransformao da segunda. Mas a transformao tinha efeitos no sistema como um todo.O que estava por trs do consumo inflacionrio era, no fim das contas, um processo em que o ritual, apesar de cada vez mais acionado (e por esta mesmarazo),mostrava-secadavezmenosaptoadiferenciar.Eusugeri BEM VIVER E PROPRIEDADE 114que, naquela altura, havia um esgotamento do sistema ritual para produzir asdiferenas,nosdetipototmico,mastambmdetipohierrquico. E que estas ltimas haviam se deslocado para um campo extrarritual, ou que ns chamaramos de econmico, ainda que suas razes fossem o domnio ritual. Ocorre que, fora do sistema ritual, o consumo distintivo e a riqueza estavam ainda mais facilmente sujeitos s presses mimticas, adquirindo assimumadimensoincremental,evocando,emtermoscaricatos,uma corrida de gato e rato. Os chefes e as famlias importantes (gente tradicio-nalmente bonita) procuravam apropriar-se de mais bens industrializados e dinheiro, e os no chefes imitavam-nos, pressionando pela comunizao, o que premia os chefes a procurar novos nichos de consumo cada vez mais exclusivos e quantidades de dinheiro, e assim sucessivamente.Havia ali, portanto, todos os sintomas de uma crise de indiferenciao, uma crise do ritual, a qual os Xikrin procuravam resolver pela absoro cada vez mais rpida, e em quantidades cada vez maiores, de recursos provenien-tes do exterior. A escalada mimtica e a busca agnica por distintividade requeriamdosescadavezmaioresdeobjetosextrarrituais:mercadorias, bens industrializados e dinheiro. Esta me parecia a razo da natureza in-flacionria do consumo xikrin. Naquelaocasio,diantedessecenrio,cabiaperguntar-lhesdireta-mente sobre o bem viver. Teria ele se transformado, no fim das contas, nessa corridaaceleradaaoconsumo,cujoefeitoeraumaexpansodoimpulso mimtico de dentro para fora? Afinal, um modo radical de criar a diferena interna assemelhar-se cada vez mais aos brancos (mas com isso reduzindo a diferena externa). De qualquer modo, os Xikrin no tinham ainda uma resposta inequvoca sobre o que estava a ocorrer. Mas, certamente, ainda que alguns considerassem os benefcios de uma vida mais parecida com a dos brancos, que muitas vezes parecem fazer a figura do modelo a ser imitado, havia um indisfarvel mal-estar que me foi dado a notar. Ele era expresso de maneira um tanto oblqua pelo temor de virar branco. Era como se os Xikrin tivessem intuitivamente percebido que custa de diferenciarem-se umdosoutros,acabaram caindo,paradoxalmente,nolabirinto mimtico, colocando em risco de fracasso seu modelo de bem viver.Caminhando para a concluso, valeria a pena questionar mais a fundo este gigantesco descompasso de um sistema voltado produo da diferenciao tornar-se incapaz de faz-lo, resultando, contraditoriamente, em uma situao decrescenteindiferenciao.Nohaviamaisummecanismodiferenciante totmico-ritual plenamente operativo, de sorte que a dimenso hierrquica e rivalitria do sistema, desdobrando-se na histria, permitiu a irrupo de algo muito prximo de uma crise mimtica na sociedade xikrin e mebngkre. BEM VIVER E PROPRIEDADE 115Mas qual seria, afinal, a natureza do sistema totmico que lemos na etnografia de Vanessa Lea e que parece to consistente com as noes xikrin de bem viver que discuti nas primeiras partes deste texto? Teria Lea descrito o sistema de Casas ou matricasas com base em uma perspectiva puramente normativa? Teriam as mulheres metyktire relatado a Lea um modelo ideal do que deveria ser, e no do que efetivamente se passava na vida real? Estas so perguntas que no tenho como responder decisivamente nesta altura. Porm, como exerccio intelectual, creio ser cabvel aventar uma hiptese. Uma hiptese de cunho histrico. Talvez a progressiva crise de indiferenciao que acometeu os Mebn-gkre como um todo, e se mostrou de forma aguda entre os Xikrin, possa serexplicadasepostularmosaexistnciahistricadeumamplosistema totmico, mas que teria entrado em colapso em algum momento da histria mebngkre, resultando no aparecimento de um sistema ritual imperfeito, por assim dizer, posto que permitia o acmulo de propriedade e a consequen-te transformao dos emblemas totmicos em fonte de prestgio e riqueza. possvel supor que no momento em que os grupos mebngkre foram pela primeira vez contatados, na segunda metade do sculo XIX, esse sistema j estivesse entrando em decadncia, e que, na poca em que os antroplogos comearam a realizar suas pesquisas com esses grupos, nos anos 1960, dele restassem apenas fragmentos parciais na forma dos conjuntos de nomes e prerrogativas, tais como registrados por Lea. possvel tambm supor que esses conjuntos de bens cerimoniais te-nham constitudo no passado um sistema totmico mais geral de repartio global de todos os recursos materiais e simblicos, provavelmente associado a trocas matrimoniais, capaz de sustentar a existncia de aldeias maiores e mais densamente povoadas, s quais os Mebngkre muitas vezes fazem meno de terem existido no passado. verdade que nenhum antroplogo o descreveu, e quem chegou mais perto disso foi Vanessa Lea, como vimos. Mas h alguns indcios de que, eventualmente, a retomada de extensas pesquisas histricas e comparativas com os diversos grupos da famlia lingustica J possa confirmar. No custa lembrar de forma breve a hiptese de Nimuendaju (1946:90) sobre os grupos de praa Timbira, que eram sociedades cerimo-niais do mesmo tipo que certas sociedades cerimoniais existentes entre os Mebngkre. Para Nimuendaju, esses grupos corresponderiam a uma antiga organizao clnica que teria perdido a regularidade genealgica. Um outro indcio, embora tnue, a existncia de certos nomes anti-gos mebngkre, atualmente pouco usados, ou que aparecem apenas em personagensmticos,masquecorrespondemexatamenteaosnomesdas metadessazonaisTimbira. Porexemplo:osnomesmebngkreWakme BEM VIVER E PROPRIEDADE 116(no mais em uso e s referido em narrativas mticas) e Ktm (ainda em uso, mas muito raro) correspondem fielmente s metades sazonais Timbira Wakmej e Katamj. As categorias de nomes Bep, Katm, Wakme, Tkk poderiam, ento, ser nomes totmicos ao modo australiano, uma vez que eles se subdividem de acordo com partes de animais correspondentes (ver Lea 1986, para uma descrio detalhada dos nomes mebngkre). Alguns xikrin diziam que a pessoa com o nome de uma parte de animal ou planta possua, no passado, o direito de propriedade e gozo relativo da parte do animal ou da planta indicada em seu nome.No se pode desconsiderar tambm o impacto das frentes de expanso colonial no territrio historicamente ocupado pelos Mebngkre, processo que resultou em perdas demogrficas considerveis, implicando, ademais, sucessivas mudanas territoriais, decomposio e recomposio de aldeias, separaes, maior isolamento etc. As retrospectivas histricas de Verswijver (1992) e de Fisher (2000) so exemplares em mostrar a enorme mobilidade e a complexidade das decomposies e recomposies das aldeias mebn-gkredesdemeadosdosculoXIXatoperododapacificao.Enfim, toda uma srie de descontinuidades importantes pode ter concorrido para o colapso do sistema, na medida em que se alteraram consideravelmente as condies de reproduo social. Desmoronando, o sistema totmico teria fornecido a ocasio para que alguns indivduos se tornassem uma espcie de repositrios de conhecimentos, acumulando bens cerimoniais que de outra forma, na falta de condies ideais de transmisso, teriam se perdido. Mas na tentativa de salv-los, podem ter introduzido uma nova lgica apropriativa e cumulativa. As divises e as disperses aldes teriam permitido tambm que os bens totmicos pudessem transferir-se de uma famlia para outra por meio de estratgias e negociaes ad hoc. Anovasituaoteriaabertoapossibilidadedemagnificaopessoal, por meio da propriedade ou do controle de recursos simblicos e materiais cobiados, e da prpria necessidade de lideranas firmes e valentes em tempos conturbados. Os bens cerimoniais, mesmo sendo transmitidos segundo uma regra de parentesco fixa, passaram a ser acumulados e disputados, visto que haviam perdido, em ltima instncia, suas referncias totmicas inequvocas. Finalmente, as novas condies teriam liberado os mecanismos mimticos e rivalitrios, cujo efeito foi visto desde o final do sculo XIX, na progressiva segmentao da sociedade, na proliferao de aldeias e no conhecido facciona-lismo mebngkre. As constantes cises que se seguiram, sempre em virtude de rivalidades internas, do aumento das acusaes de feitiaria, das disputas por mulheres, e a busca de grandeza, prestgio ou beleza geraram inimizades mtuas e guerras intestinas, to marcantes na histria recente desses grupos.BEM VIVER E PROPRIEDADE 117Talhiptesetemobenefciodeexplicaroaspectocentrfugodadi-nmica social mebngkre nos ltimos cem anos, ainda em outro sentido. Pois diante da falncia de um sistema de repartio totmica cujo objetivo fixar a propriedade dos recursos desejveis e impedir a ecloso da mimese apropriativa, uma soluo possvel a de multiplicar a gama de objetos de-sejveis, reduzindo, assim, os efeitos perniciosos da inveja e das disputas. Talvez no tenha sido por outro motivo que, desde meados do sculo XIX, os grupos mebngkre tenham se lanado ao encalo de outros povos indgenas e dos brancos, na tentativa de incrementar seu acervo de bens culturais. Em suma, o colapso do sistema totmico de diferenciao explicaria de uma s vez as duas grandes linhas de ao histrica dos Mebngkre at o perodo imediatamente anterior pacificao: de um lado, o aumento das guerras internas (isto , entre grupos mebngkre), por causa da ecloso das riva-lidades mimticas e das crises de indiferenciao, que resultavam, repito, eminveja,cobia,conflitopormulheres,acusaesdefeitiariaetc.;de outro, o aumento dos contatos externos, quase sempre blicos, com outros grupos indgenas e com os brancos, na busca desesperada por multiplicar os objetos desejveis, como forma de aliviar a dinmica mimtica interna. O processo de pacificao parece ter atenuado os conflitos, e no de es-tranhar que isto tenha se dado pela promessa dos rgos indigenistas brasileiros de promover uma multiplicao quase milagrosa de objetos. Se, por um lado, isto resolveu temporariamente os conflitos externos, por outro, no foi suficiente para aplacar totalmente as rivalidades internas, que persistiram, embora em uma chave menos violenta. Os Mebngkre logo comeariam a perceber que existiam outros meios mais eficazes de operar no mundo dos brancos, como atravs da poltica e da economia. Mas isso j outra parte da histria. De todo modo, devemos concluir, e no precisamos levar muito adiante nossas conjecturas. Independentemente de ter existido na histria ou apenas na imaginao moral dos Mebngkre, o fato que a ausncia de um efetivo sistema de tipo totmico parece ter tornado mais distante seu ideal de bem viver. Pelo menos por algum tempo. Pois a histria est aberta ao futuro, e cabe aos Mebngkre encontrar novos modos de vida boa e bela. Recebido em 17 de abril de 2013Aprovado em 16 de setembro de 2013CesarGordonprofessordoProgramadePs-GraduaoemSociologiae Antropologia, IFCS/UFRJ. E-mail: BEM VIVER E PROPRIEDADE 118Notas* Uma primeira verso deste texto foi apresentada no Seminrio (Im)proper re-lations: ownership and wellbeing in Amazonia, ocorrido em abril de 2010, no Museu Nacional da UFRJ, Rio de Janeiro, coordenado por Carlos Fausto, Marc Brightman e Vanessa Grotti. Agradeo a eles pelo convite e pelos comentrios generosos que muito ajudaram a aperfeioar o texto. Agradeo ainda pelos comentrios de Aparecida Vilaa, Marcela Coelho de Souza, Oiara Bonilla, Susana Viegas, Fernando Santos-Granero, e Pedro Niemeyer Cesarino. Carlos Fausto e Luiz Costa fizeram uma leitura atenta e generosa do texto original, contribuindo diretamente para sua forma final. Quaisquer erros reparados no artigo permanecem sendo de minha exclusiva responsabilidade.1 Neste artigo no se faz uma discusso terica, desde a perspectiva da antropolo-gia, do conceito de propriedade, bem como dos limites de sua aplicao transcultural. Sobreoassunto,veja-se,porexemplo,Hann(1998,2007)evonBenda-Beckman (2006). O uso que fao do termo neste artigo o uso lexicalizado trivial: bens sobre os quais se exerce algum direito de posse, usufruto ou transferncia. Veja-se, no entanto, Gordon (2006) para uma anlise mais pormenorizada das equivalncias e diferenas entre as categorias mebngkre nkrjx e kukrdj e a noo de propriedade. 2 Para isso, veja-se Jimenez (2007); Matthews & Izquierdo (2009).3 A suposta rejeio indgena sociologia (Overing & Passes 2000:1), isto , a normas e a divises internas, enfim, a estruturas, no deixa de evocar, por analogia, outra clebre viso romntica das sociedades amerndias, a saber, a de Pierre Clas-tres (1974), para quem a filosofia social indgena seria teleologicamente avessa ao Estado. A diferena que se para Clastres, como bom herdeiro da tradio francesa, a sociedade aparece como a instncia totalizante ( ela a causa final, que se ope e barra a emergncia do Estado), para Overing, nem isso mais existe: a sociedade no uma entidade transcendente ou englobante, e a coletividade s emerge como produto da interao intersubjetiva de sujeitos autnomos (autonomous selves). Entendoqueseriainteressanteinvestigarmaisdetidamenteassemelhanaseas diferenas entre estes dois modelos fortemente ideolgicos de descrio das socie-dades indgenas Clastres e Overing bem como sua profunda insero em duas modalidades nacionais a francesa e a britnica de pensamento social (veja-se Himmelfarb 2005). Mas certamente isso escapa aos limites deste artigo.4 Apesar de os termos Mebngkre e Kayap serem tratados indiferenciadamen-te na literatura antropolgica, eu os tenho utilizado da seguinte forma: o primeiro termo indica genericamente os grupos falantes da mesma lngua e que compem esse universo sociocultural mebengokre mais amplo, incluindo-se os Xikrin e todos os demais subgrupos kayap; o segundo denota qualquer grupo mebngkre que no seja identificado como xikrin, por exemplo, os Kayap-Gorotire, Kubenkrkenh, MekrnotiouMetyktire.Umaconvenoadicional:desdemeadosdadcadade 1920, os Xikrin encontram-se divididos em dois blocos, denominados Xikrin do Ca-BEM VIVER E PROPRIEDADE 119tet e Xikrin do Bacaj, em referncia aos rios prximos do lugar onde construram suas aldeias. Por simplificao, venho utilizando o termo Xikrin referindo-me, em princpio,aosXikrindoCatet,ondeminhapesquisafoirealizada,salvoquando anotado em contrrio.5 Os mebngkre tambm se envolveram em guerras externas, isto , contra populaes distintas lingustica e culturamente, fossem outros povos indgenas, fos-sem no indgenas. Gustaaf Verswjiver mostra de maneira acurada como as guerras internaseexternaspodemservistascomomodalidadesdiferentes,envolvendo objetivos e mtodos distintos. Para uma viso mais completa do belicismo mebn-gkre, veja-se Verswjiver (1992). Para um excelente relato histrico sobre os Xikrin, especialmente sobre o grupo do Bacaj, veja-se Fisher (2000).6Afraseemlnguamebngkremefoiditacomokrabiponekammejxkt (onde kabipo gmeo; ne partcula estativa; kam preposio; mejx bom; kt negativa) ou krabipo kam punure (gmeos resulta em coisa ruim). Sobre a associao com os animais, alguns xikrin afirmaram que uma mulher grvida no deve assistir ao acasalamento de um casal de ces, pois isso aumentaria as chances de que ela prpria gerasse gmeos em uma gravidez futura. Alguns mitos de origem dos brancos e dos ndios juruna (Yudja) os descrevem como filhos gmeos mltiplos de uma mulher que copulou com uma cobra, com um lagarto, ou lagarta, a depender das diferentes verses da narrativa (Wilbert 1978:152-154; Turner 1988:205).7 Prossegue Coelho de Souza (2002:501-2): Os Kayap se referem explicita-mente ao pim [sic] entre casas dos homens como contribuindo para a paz da comu-nidade, uma vantagem das aldeias com duas casas dos homens (Turner 1966:43-4). Por outro lado, uma vez que esta paz seja rompida, e as disputas cheguem a ponto de eclodir num enfrentamento fsico, sob a forma ritualizada dos duelos formais que podem envolver toda a comunidade, o efeito do piaam [sic] exigir uma separao ainda mais drstica das partes envolvidas: Os Kayap dizem que os derrotados vo emboraporquesentemmuitavergonha(piam)depermanecernamesmaaldeia junto com as pessoas que os venceram na luta (Bamberger 1979:139).8Veja-seemespecialadiscussoqueesteautorfaz,noscaptulosIIeIII (1972:349-403), acerca da simetria, da indiferenciao e do espelhamento dos per-sonagens das tragdias gregas.9 Um conjunto de questes que me pareceria interessante aproximar da presente discusso foi explorado recentemente por Fausto (2008), em artigo em que discute as noes de dono e maestria na Amaznia indgena. A ideia de magnificao, por exemplo, sugere tambm, ainda que por outras vias, uma tenso entre processos de diferenciao e indiferenciao. Fausto argumenta de modo interessante (2008:334) que a pessoa magnificada de um chefe ou de um mestre projeta simultaneamente duas figuras sociais: de um lado, uma entidade de tipo mitolgico ou monstruoso (um incorporador de diferenas, por assim dizer, e cuja magnificao precisamente a expresso dessa condensao), e que se apresenta como singularidade; e de ou-BEM VIVER E PROPRIEDADE 120tro, o bando, que se apresenta como coletivo indiferenciado que a ele se contrape. curioso notar que estas duas figuras o coletivo indiferenciado e (supostamente) passivo, e o dono enquanto singularidade magnificada so anlogas s figuras do esquema sacrificial tal como postulado por Girard (1972), ainda que em sentido inverso: para este ltimo, a coletividade que toma a forma ativa de agente sacrifi-cador, enquanto a figura singular aparecer inicialmente em seu carter de monstro (indiferenciao interna a si mesmo) e, finalmente, como vtima do ato sacrificial.10 No final das Mitolgicas (Lhomme nu, 1971), Lvi-Strauss faz, de maneira sutil, uma de suas raras crticas valorativas ao pensamento indgena; crtica, qui, anloga que ele fazia prpria filosofia francesa, e em especial metafsica de HenriBergson.Acrticaapareceembutidanafamosadistinoentreritoemito. Este ltimo, para Lvi-Strauss, encarnava um princpio de diferenciao, idntico na linguagem e no pensamento, estando na base de toda simbolizao. J o ritual, para o antroplogo francs, expressaria uma tentativa de restabelecer uma imediao indiferenciada entre o homem e o mundo, desfazendo assim a obra da linguagem. No af de afastar todo o espectro religioso, mstico e metafsico da anlise antropolgica estruturalista, e de exaltar a linguagem, Lvi-Strauss acabou recaindo no dualismo bergsoniano, mas pela sua outra ponta e, assim fazendo, no pde perceber nem todas as propriedades do rito, nem todas as propriedades do mito. Lvi-Strauss assimilou tudo o que no era linguagem ao cerne do comportamento ritual-religioso, escante-ando o rito do mbito do interesse da anlise estruturalista. Paralelamente, mesmo reconhecendo as representaes mticas do indiferenciado que insistiam em pulsar, Lvi-Strauss se esforou por purificar o mito, postulando-o como o prprio proces-so de simbolizao tornado visvel. Fazendo uma pequena caricatura do dualismo lvi-straussiano, como se o mito fosse o heri porque capaz de desfazer a dose de indiferenciado inicialmente presente a ttulo de representao do real (e assim o mito uma espcie de espelho do pensamento humano em operao no seu af de criar o inteligvel); j o rito, este o vilo, porque procederia de maneira inversa, juntando as figuras previamente separadas pela linguagem para produzir monstros indiferenciados, em sua nostalgia de reconexo, ou de re-ligao, com a realidade. Creio que as observaes de Girard (1976, 1977), ao postular que tanto o rito quanto o mito fazem a mesma coisa, expressando ambos, a eliminao do indiferenciado, permitem-nos escapar do dualismo e do paradoxo lvi-straussiano.BEM VIVER E PROPRIEDADE 121Referncias bibliogrcasBAMBERGER, Joan. 1979. Exit and voice in Central Brazil: the politics of fight in Kayap Society. In: D. Maybury-Lewis(org.),Dialecticalsocieties: theGandBororoofCentralBrazil. 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Esta, por sua vez, vincula-se questodapropriedade(emespecial a propriedade cerimonial), uma vez que osistemaritualdeveservistocomoo mecanismo bsico, em nvel coletivo, de diferenciao. O estabelecimento de um sistema de repartio de propriedade de tipototmicoserviriaparaevitarcrises de indiferenciao e, portanto, garantir obemviver.Sugere-sequeosistema ritual mebngkre passou por mudanas histricasimportantesquedeslocaram umtipodediferenciaototmicana direodeumtipodediferenciao hierrquica, na qual h margem para o desenvolvimento de relaes rivalitrias no interior das comunidades e entre elas.Palavras-chave Amaznia, Propriedade, Bem-viver, Diferenciao, Ritual.AbstractThe article reflects on property and well-beingamongtheXikrin-mebngkre (Kayap)Indians.Itarguesthatthese notions must be articulated with a wider probleminIndigenousphilosophyand existence:differentiation.Itproposes that one of the definitions of well-being intheMebngkresocialworldisthe maintenance,inalllevels,ofacertain coefficientofdifference.Difference,in turn, is linked to the notion of property (particularly ceremonial property), since theritualsystemisabasic,collective mechanismofdifferentiation.Thees-tablishment of a totemic-type system of dividing property served to avoid crises ofindifferentiation,therebyensuring well-being. It is suggested that the Me-bngkre ritual system underwent impor-tant historical changes that have shifted a totemic-type differentiation towards a hierarchical-type differentiation, within whichrivalriescanemergebothinthe heart of communities and between them.KeywordsAmazonia,Property,Well-being, Differentiation, Ritual.