belmonte, memÓria, cultura e turismo: numa … · (cultura), da universidade estadual de santa ......

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1 DURVAL PEREIRA DA FRANÇA FILHO BELMONTE, MEMÓRIA, CULTURA E TURISMO: numa (re)visão de Iararana de Sosígenes Costa Dissertação apresentada à Coordenação do Mestrado em Cultura & Turismo – Linha “A” (Cultura), da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC/Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Turismo Orientador: Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas. ILHÉUS – BAHIA 2003

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Page 1: BELMONTE, MEMÓRIA, CULTURA E TURISMO: numa … · (Cultura), da Universidade Estadual de Santa ... a flor azul, de pólen de ouro ... sustentabilidade das diversas formas de vida

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DURVAL PEREIRA DA FRANÇA FILHO

BELMONTE, MEMÓRIA, CULTURA E TURISMO: numa (re)visão de Iararana de Sosígenes Costa

Dissertação apresentada à Coordenação do Mestrado em Cultura & Turismo – Linha “A” (Cultura), da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC/Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Turismo Orientador: Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas.

ILHÉUS – BAHIA 2003

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DURVAL PEREIRA DA FRANÇA FILHO

BELMONTE, MEMÓRIA, CULTURA E TURISMO: numa (re)visão de Iararana de Sosígenes Costa

Dissertação apresentada à Coordenação do Mestrado em Cultura & Turismo – Linha “A” (Cultura), da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC/Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Turismo Orientador: Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas.

Ilhéus – BA, 19 de setembro de 2003.

Antonio Fernando Guerreiro de Freitas - DS UFBA/UESC (Orientador)

Antonio Albino Canelas Rubim - DS UFBA

Jorge de Souza Araújo - DS UESC

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DEDICATÓRIA

À minha esposa: Maria Lúcia Nonato França

Aos meus filhos: Cassius Marcelus, Lísia Cláudia e Lúcio Marcus Oliveira de Nonato

e França

Aos meus netos: Brunna Nonato França Rocha

Rafael Nonato França Tosto

Diogo Almeida Nonato França

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AGRADECIMENTOS

Deo, causa prima in luminibus intelligentiarum. Ao Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas, não somente pela

orientação segura para a elaboração deste trabalho, como também pelo incentivo,

pela confiança e pela amizade ao longo desses anos.

Ao Prof. Dr. Hélio Estrela Barroco, coordenador do Mestrado em Cultura &

Turismo, pelas informações técnicas.

Ao Prof. Dr. Jorge Souza Araújo, colega ontem, mestre amigo hoje, pelo

apoio, pelo incentivo e pela co-orientação extra-oficial.

Aos professores do mestrado em Cultura & Turismo, pelos ensinamentos e

pelo apoio recebidos.

Aos colegas do mestrado em Cultura & Turismo pelo convívio, pelo apoio e

pelo incentivo.

Aos funcionários da UESC, direta ou indiretamente ligados ao mestrado em

Cultura & Turismo, pelo atendimento e pela presteza.

Às famílias de origem italiana: Magnavita, Paternostro, Tedesco e Tosto,

pelos depoimentos prestados.

Aos amigos: Adriano Ferreira Tosto, Afrânio Benzaquém de Souza, Alberto

Magnavita, Alcides Costa Neto, Álvaro Nonato de Souza, Antônio Amorim Tolentino,

Carlos Luis Borges Ribeiro de Carvalho, Dária Maria Cardoso, Dissival Batista de

França (meu irmão), João Bartoli Schubach, José Alves dos Santos Filho, José

Frazão Araújo Souza, José Roberto Melo de Souza, Luis Carlos do Nascimento,

Manoel Costa Magnavita, Raimundo Antônio Tedesco e Sara Maria Brito Araújo,

pela contribuição e pelo material disponibilizado.

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NO JEQUITINHONHA

Desvaneceu-se a névoa. Ao sol a veia do rio é prata. O pássaro procura, tonto de luz, a sombra. Até clareia

o interior da brenha sempre escura.

Fulgor. Ar morno. Abelha na espessura a flor azul, de pólen de ouro cheia,

buscam rodando. A abóbada é tão pura! O vento gira músico e meneia

as frondes. Cresce a luz. Aumenta a gala. As bromélias desprendem cheiro brando,

brilhantes como fogos de Bengala.

E pelas ramas pêndulas, repletos de fruta, orvalho e mel, vão orquestrando

clarins as aves, crótalos os insetos.

(Sosígenes Costa,1924)

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SUMÁRIO

Resumo...................................................................................................................…x

Abstract...............................................................................................................…...xi

INTRODUÇÃO...........................................................................................................12

CAPÍTULO I – TURISMO, CULTURA & MEIO AMBIENTE......................................22

A viagem.....................................................................................................................22

Cultura & Turismo.......................................................................................................26

Equipamentos Turístico-Culturais..............................................................................31

Rio Jequitinhonha – Lugar de Memória......................................................................34

A Lavoura do Cacau...................................................................................................37

As Praias....................................................................................................................46

As Ilhas.......................................................................................................................48

Os Manguezais...........................................................................................................49

Bens Representativos do Patrimônio Arquitetônico-Cultural de Belmonte...............54

O Farol Belmonte.......................................................................................................57

Festejos Religiosos....................................................................................................60

Referências Bibliográficas..........................................................................................68

CAPÍTULO II – NOS ARCANOS DA MEMÓRIA.......................................................71

Belmonte na Colônia..................................................................................................71

Belmonte no Império..................................................................................................78

Belmonte na República..............................................................................................83

Canoeiros e Tropeiros................................................................................................85

Protestantismo...........................................................................................................86

Grêmio Literário Castro Alves....................................................................................89

Santa Casa de Misericórdia.......................................................................................90

Filarmônicas...............................................................................................................92

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Maçonaria...................................................................................................................94

A Literatura do Cacau.................................................................................................98

Sosígenes Costa........................................................................................................99

Múltiplo e Singular....................................................................................................105

Referências Bibliográficas........................................................................................110

CAPÍTULO III – IARARANA....................................................................................112

Quando Nasce o Brasil.............................................................................................112

Mito de Origem para o Cacau..................................................................................120

Tupã-Cavalo – o Colonizador Português.................................................................122

Origem do Cacau.....................................................................................................129

Transplante Cultural.................................................................................................132

Coronelismo.............................................................................................................136

Referências Bibliográficas........................................................................................141

CAPÍTULO IV - ARACANJUBA.............................................................................143

Migração Européia...................................................................................................143

A Italianidade dos Filhos da Imigração....................................................................145

“Palmatória do Mundo”.............................................................................................155

Teoria do Branqueamento........................................................................................157

Laços de Sangue......................................................................................................164

Referências Bibliográficas........................................................................................168

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................170 GLOSSÁRIO............................................................................................................175 BIBLIOGRAFIA........................................................................................................183

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURAS Figura 1 - Rio Jequitinhonha em Belmonte..............................................................36 Figura 2 - Aspecto de parte do manguezal de Belmonte.........................................50 Figura 3 - Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Belmonte..................................58 Figura 4 - Chafariz de Belmonte importado da Europa............................................59 Figura 5 - Farol de Belmonte em sua primeira instalação (12.10.1901)...................61 Figura 6 - Farol de Belmonte assentado em seu segundo sítio (01.05.1907)..........62 Figura 7 - Farol de Belmonte em 1960....................................................................63 Figura 8 - Farol de Belmonte na fase atual, no mesmo local para onde foi

transferido em 1907. Fotografia de 1999..............................................64 Figura 9 - Pouso de uma tropa................................................................................77 Figura 10 - Sosígenes Costa (1901-1968) quando saiu de Belmonte para Ilhéus............101 Figura 11 - Família Magnavita – Início do Século XX..............................................162

MAPAS Mapa 1 - Município de Belmonte próximo à sede....................................................37 Mapa 2 - Mapa do Sul da Bahia – Remanescentes da Mata Atlântica – 1960........42 Mapa 3 - Mapa do Sul da Bahia – Remanescentes da Mata Atlântica – 1974.........43 Mapa 4 - Mapa do Sul da Bahia – Remanescentes da Mata Atlântica – 1990.........44 Mapa 5 - Mapa da Itália (Campânia e Calábria)....................................................163

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QUADROS

Quadro 1 - População brasileira - 1872...................................................................81 Quadro 2 - População livre e escrava na Província da Bahia – 1872......................82

TABELAS Tabela 1 - Turistas segundo o local da entrevista. Belmonte, jan. 1999................55 Tabela 2 - Turistas segundo o país de residência permanente. Belmonte, jan. 1999 ..............................................................................................................56 Tabela 3 - Turistas segundo o estado de residência permanente. Belmonte, jan. 1999......................................................................................................56

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BELMONTE, MEMÓRIA, CULTURA E TURISMO: numa (re)visão de Iararana de Sosígenes Costa

Autor: Durval Pereira da França Filho

Orientador: Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas

RESUMO

Entendendo cultura como a lente pela qual se pode perceber a realidade, o presente trabalho procura salientar aspectos da memória, cultura e turismo em Belmonte, com ênfase aos princípios de desenvolvimento sustentável, evidenciando ainda que, em várias circunstâncias, o turismo pode significativamente contribuir para a conservação do meio ambiente e dos bens culturais. Contudo, é necessário o planejamento desse espaço, dos equipamentos e das atividades turísticas e uma tomada de consciência da população local a respeito do meio ambiente e dos bens culturais. A comunidade belmontense, situada na foz do Rio Jequitinhonha, surgiu de alguns aldeamentos de índios do grupo Kamakan catequizados no início do século XVIII. Com o desenvolvimento da vila e a expansão do cacau, foram incorporados colonos nacionais e estrangeiros, principalmente italianos. Nessa sociedade multirracial, estava presente o ideal de branqueamento, o que levou ao casamento de imigrantes brancos com filhos e filhas de fazendeiros locais. Nesse contexto, criou-se uma instabilidade social nos diversos setores da economia e da política, o que levou os fazendeiros (coronéis) a organizarem uma polícia particular para defender sua honra, sua família e sua propriedade – os jagunços clavinoteiros. Nessa sociedade competitiva e instável, a violência fazia parte do cotidiano, como uma necessidade imperiosa. Esses aspectos da memória e da cultura belmontenses foram percebidos e sintetizados por Sosígenes Costa, poeta belmontense ligado ao movimento modernista, que criou um mito de origem para o cacau do Sul da Bahia, através de Iararana, poema de caráter rapsódico da mesma linha de Macunaíma, de Mário de Andrade; Cobra Norato, de Raul Bopp, e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo. Aí, os seus personagens tipificam os colonizadores e seus descendentes mestiços. Tupã-Cavalo, figura mitológica que foge do Olimpo e se instala na foz do Jequitinhonha, simboliza o colonizador português, e Iararana, sua filha com a iara do rio, simboliza a nossa hibridez cultural e o mandonismo dos coronéis. No final do poema, acontece a vitória do filho da terra sobre o colonizador, procedimento antropofágico em que o poeta propõe o aproveitamento da cultura européia, no vínculo de sangue com o herói nativo que vai libertar a iara – símbolo das tradições culturais brasileiras. Ao analisar toda essa produção simbólica, o trabalho considera Belmonte ideal para o desenvolvimento de vários segmentos do turismo. Mas considera também como grande desafio dos gestores do turismo – público ou privado - tornar possível a utilização dos recursos do meio ambiente e da cultura urbana e evitar simultaneamente a sua degradação. Daí a importância de um planejamento eficiente e o desenvolvimento de ações básicas com vistas à sustentabilidade das diversas formas de vida. Palavras-chaves: Belmonte, cultura, sustentabilidade, turismo.

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BELMONTE, MEMORY, CULTURE AND TOURISM: in a (re)vision of Sosígenes Costa`s Iararana

Author: Durval Pereira da França Filho

Adviser: Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas

ABSTRACT

Understanding culture like a “glass” through which one can see reality, this work tries to show some aspects of Belmonte`s culture, memory and tourism, emphasizing the sustainable development principles, keeping in mind that in various circumstances, tourism can significantly contribute to environmental conservation and cultural assets. However, it is necessary to plan the space, equipment, tourists activities, as well as to have the population aware of the environmental values and cultural assets. The Belmontese community, located in the mouth of the Jequitinhonha river, arised from several Kamakan Indians villages catechized in the beginning of XVIII century. As the village development took place and the cocoa culture expanded, many national and foreign colonists arrived, specially the Italians. In that multiracial society, it was evident the whitening goal, which guided the white immigrants to marry the sons and daughters of the local farmers. In this context, arised a social instability in the various political-economical sectors of the community, responsible for the designing of a private police to defend their honor, family and properties – the so called “jagunços clavinoteiros”. In this competitive and unstable society violence was the rule. All theses remarks on Belmonte`s memory and culture were caughted and synthesized by Sosígenes Costa, a modernist poet who created a myth to the beginning of the cocoa culture in south of Bahia, through Iararana, a rhapsodical poem belonging to the same style of Macunaíma, written by Mário de Andrade; Cobra Norato, by Raul Bopp, and Martim Cererê by Cassiano Ricardo. In all this set, the personages typify the colonizer and their hybrids descendants. Tupã-Cavalo, a mythological figure who scapes from the Olympus and sets himself by the mouth of the Jequitinhonha river, symbolizes the Portuguese colonizer, and Iararana, his daughter, together the with river siren, symbolizes our cultural hybridity and mighty despotism of the farmers. At the end of the poem the victory of the native son over the colonizer take place, an anthropophagic procedure in which the poet proposes the use of the European culture in the blood-tie union with the native hero who is headed to free the river siren (iara) - symbol of the Brazilian cultural tradition. Analyzing all this symbolical production, this work regards Belmonte to be the right place for the development of many tourism segments. However, it also considers to be a great challenge to the tourism managers, in the public or private sphere, to make possible the use of environment and cultural resources, as well as to avoid its own degradation. That is why it is so important to plan efficiently and to develop some basic actions in order to maintain the many different forms of life. Key words: Belmonte, culture, sustainable development, tourism.

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INTRODUÇÃO

Ao se escolher “Belmonte, memória, cultura e turismo: numa (re)visão de

Iararana de Sosígenes Costa” como objeto de estudo, procurou-se fazer um apelo

histórico-cultural para o desenvolvimento do turismo, quando se anunciam

consideráveis mudanças para o turismo na Bahia, num processo de integração entre

turismo e cultura.

Iararana é um poema modernista, de caráter rapsódico, em que Sosígenes

Costa procura criar um mito de origem para o cacau da Bahia. O cenário é o Sul da

Bahia, principalmente Belmonte, cidade natal do poeta, à qual o poema é dedicado,

numa demonstração do seu apego sentimental. Contudo, além de Belmonte, o

poema gira em torno de Canavieiras, Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, região por

onde passaram e onde aportaram as caravelas de Cabral e onde moravam alguns

parentes do poeta.

O poema trata, de forma simbólica, da chegada dos colonizadores

portugueses, da origem e da expansão do cacau, da xenofobia presente no próprio

título – Iararana, a falsa iara, a iara mestiça - do meio ambiente regional, da

destruição da cultura indígena, do transplante cultural através da imigração

européia, da dominação dos descendentes dos colonizadores, e conclui de forma

apoteótica com a vitória da cultura nacional.

O trabalho está dividido em quatro capítulos.

No capítulo I, foi estudada a relação entre turismo, cultura e meio ambiente,

iniciando-se o capítulo com uma abordagem a respeito da viagem através dos

tempos e de como as pessoas viajavam em épocas remotas para lugares

desconhecidos, até mesmo por desígnios sobrenaturais, como o caso do patriarca

Abraão, mencionado na Bíblia, e a rapsódia de Ulisses, na Odisséia de Homero.

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Com o aumento das atividades comerciais, as grandes viagens se

intensificaram, primeiro através do Mediterrâneo e depois pelos grandes oceanos,

Pacífico e Atlântico, o que resultou na conquista de novas terras.

Hoje, viajar é algo simples porque, com o avanço da tecnologia, o planeta

todo se transformou numa aldeia global. A viagem já não é o resultado de

determinações sobrenaturais nem simplesmente imposta pela força do mercado,

embora, não se possa negar a sua importância no deslocamento das pessoas. A

viagem é também a ruptura com o cotidiano e a oportunidade de novas experiências

na relação com outras pessoas e com outras culturas. Nesse contexto, a importância

do turismo é altamente relevante, por tratar-se de um fenômeno dominante nas

sociedades modernas.

Daí, a importância de se estudar a cultura regional para entender os

processos pelos quais os agrupamentos humanos se formam, vivem e se modificam

sob o impacto das transformações físicas, mentais e psicossociais, presentes os

componentes geográficos, os costumes, as atividades e os estímulos da imaginação.

Cultura então é vista como a lente através da qual o homem percebe o mundo e

expressa seus sentimentos, conceito que vai contemplar o modo de viver de um

povo, associado às suas instituições, costumes, instrumentos etc.

De que maneira se pode estabelecer a relação entre memória, cultura e

turismo? Como a memória e a cultura podem ser evocadas como apelo turístico? A

partir desses questionamentos, procurou-se estabelecer uma argumentação a

respeito da relação entre memória, cultura e turismo com base no conceito

antropológico de cultura e tendo como justificativa a memória de Belmonte e seus

bens culturais.

Somente o homem é portador de cultura, somente ele a cria, possui e a

transmite, o que vai estabelecer uma íntima relação entre memória e cultura:

enquanto uma mantém vivas as marcas do homem em sua caminhada, a outra pode

estudá-las, analisá-las, interpretá-las e transmiti-las a outros povos ou a outras

gerações.

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No processo de colonização do Brasil, os europeus entendiam que estavam a

serviço de um poder divino para estabelecer a conquista e impor sua cultura, o que

significa o domínio de alguns homens sobre outros que foram sujeitados ou

adaptados a um padrão cultural tido como superior. Foi o que aconteceu com a

colonização portuguesa com referência aos povos indígenas.

Foram essas características do processo de aculturação que Sosígenes

Costa, o poeta belmontense, conseguiu sintetizar no poema modernista Iararana

(1933), salientando na figura de Tupã-Cavalo o colonizador português que investe

contra a cultura indígena, quando violenta sexualmente a iara do Jequitinhonha –

mito fluvial caboclo. O resultado é Iararana, hibridismo cultural que emerge em

momentos de transformação histórica (BHABHA, 1998) – a comunidade de

Belmonte e, por extensão, do Sul da Bahia.

Belmonte e sua cultura vistos a partir de uma (re)visão da obra sosigenesiana

é um apelo para que se desenvolva um turismo, em que a cultura não seja vista

simplesmente como um produto de mercado, mas como construção da imaginação,

como percepção das paisagens e do patrimônio cultural. Afinal de contas, a

percepção do turista é essencialmente cultural, mesmo que o enfoque seja

mercadológico.

O trabalho procura elencar os equipamentos culturais de Belmonte,

componentes simbólicos, representativos de um tempo, de um espaço, onde ações

humanas aconteceram e cujos vestígios ainda estão lá para serem revitalizados e

colocados à disposição da população (residente e visitante). Aí estão incluídos os

recursos da natureza: florestas, ilhas, praias, rios; e os da cultura: fazendas

representativas, espaços urbanos, patrimônio arquitetônico, filarmônicas e cultura

originária da imigração (gastronomia, música, língua).

O rio Jequitinhonha aparece em primeiro lugar, como local de memória, com

seu curso de águas, afluentes, ilhas, sítios onde se desenvolveram grandes e

pequenas fazendas de cacau repletas de lendas e tradições, no conflito com os

povos indígenas e com a força bruta da floresta.

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As praias e os manguezais aparecem a seguir no rol dos atrativos turístico-

culturais, os primeiros mais relacionados ao turismo de massa (sol, areia e mar) e os

segundos relacionados ao turismo ecológico e científico. No seu desenvolvimento, o

trabalho chama a atenção para o perigo de deterioração desses ecossistemas e dos

recursos costeiros e marinhos em função do desenvolvimento turístico e urbano,

caso não haja um planejamento por parte da administração pública e dos demais

gestores do turismo.

A noção moderna de patrimônio cultural não se restringe à arquitetura,

embora seja reconhecida como um dos pontos altos da realização humana; não

apenas as coisas tangíveis, mas também aquelas percebidas pelo espírito. Então, o

capítulo II trata da memória de Belmonte, de suas origens e de seu

desenvolvimento, da saga do cacau com seus coronéis e clavinoteiros, daquilo que

os registros, os documentos da administração pública e os acervos particulares

guardam dessa memória e dos equipamentos culturais.

O patrimônio arquitetônico-cultural de Belmonte revela aspectos históricos,

artísticos, religiosos e ecológicos que podem ser percebidos por viajantes e

pesquisadores. Nas ruas, praças e casarões, parece se ouvir o som dos

clavinoteiros ou os dobrados das filarmônicas, fantasmas que emergem para

alimentar a memória da cidade.

Assim, o capítulo II procura fazer uma incursão nos arcanos da memória

belmontense, em rápida análise a respeito da expansão européia que procurou

reordenar o mundo segundo os seus interesses. No processo de colonização, o

sistema de capitanias hereditárias fracassou, resultando apenas em algumas

povoações e vilas ao longo da costa.

Uma dessas povoações, na capitania de Porto Seguro, foi o resultado de um

antigo aldeamento de índios do grupo Kamakan, catequizados pelo padre José de

Araújo Ferraz. O povoado, que se chamava São Pedro do Rio Grande, tornou-se a

Freguesia de Nossa Senhora da Madre de Deus, em 1718 e Vila do Jequitinhonha

de Belmonte em 1764, em homenagem à Belmonte portuguesa, terra dos Cabral.

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Consta ainda da memória belmontense que os colonos da ex-capitania de

Porto Seguro, agora comarca – após sua incorporação à coroa, em 1761 -

continuaram desenvolvendo suas atividades agrícolas, com o plantio de cereais

(arroz, feijão e milho), cana-de-açúcar, mandioca e batata na região do baixo

Jequitinhonha. Também criavam galinhas, bois, ovelhas, porcos, e burros,

considerados animais mais úteis e rendosos.

Desde os primeiros anos da colonização que o movimento bandeirante seguiu

pelo rio Jequitinhonha, na exploração de riquezas minerais e na conquista dos

índios. Contra essas atividades mineradoras, a Coroa tomou providências no sentido

de que suas riquezas não se esvaíssem. A mineração particular foi proibida e

divisões militares foram colocadas para impedir os mais ousados. Nesse momento,

as terras da antiga capitania foram distribuídas pela Coroa, em forma de sesmarias,

para incrementar a colonização e o povoamento das áreas costeiras.

Em razão das pressões do governo contra os garimpeiros do vale do

Jequitinhonha, as atividades mineradoras foram diminuindo no transcorrer das

primeiras décadas do século XIX. Muitos que haviam saído de Belmonte retornaram

à vila e se dedicaram ao cultivo da terra, plantando cafeeiros e coqueiros, atividades

que não tiveram expressão econômica.

No período imperial, Belmonte vai se notabilizar com a expansão da lavoura

cacaueira, sendo portanto o terceiro município baiano a desenvolver essa cultura,

depois de Canavieiras e Ilhéus, de forma acentuada a partir de 1860, quando o

cacau se tornou a principal base de sustentação econômica. A expansão da lavoura

do cacau motivou, assim, uma grande migração de europeus e também de

brasileiros oriundos do sertão da Bahia e de Sergipe, o que contribuiu para acelerar

o desenvolvimento da vila e do município. A partir daí, acentuaram-se as relações

comerciais com a província de Minas Gerais, através do rio Jequitinhonha.

Também a extração de madeira de lei para exportação foi outra atividade

marcante que se desenvolveu nesse período, o que contribuiu para a degradação da

mata atlântica, nesse espaço como em outros tantos da costa brasileira.

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A proclamação da República vai encontrar Belmonte em franco

desenvolvimento: abertura de estradas que facilitaram as relações comerciais com a

província de Minas Gerais, navegação do Jequitinhonha, por meio de canoas e de

pequenos barcos, estação telegráfica e o Farol Atalaia, posteriormente denominado

Farol de Belmonte.

Em razão dessas atividades econômicas, políticas e culturais, a vila de

Belmonte foi elevada à categoria de cidade, em 23 de maio de 1891. Os coronéis

foram fortalecidos, a jagunçada organizada a serviço dos grupos dominantes.

Nesse final do século XIX, aconteceram movimentos culturais que

contribuíram para alterar as feições da cidade: surgem novas escolas, agremiações

literárias, jornais, Santa Casa de Misericórdia. O movimento protestante se torna

uma realidade, através de missionários norte-americanos e de fazendeiros que

vieram em busca de novos empreendimentos agrícolas no Brasil, para fugir dos

efeitos da Guerra Civil Americana (1861-1865) já que, com a Constituição Brasileira

de 24 de fevereiro de 1891, a Igreja Católica Romana deixava de ser a religião oficial

do Brasil.

As filarmônicas também ocupam posição de relevo, como parte do patrimônio

cultural belmontense. Embora nos estatutos dessas sociedades constasse que elas

não tinham cunho político, na realidade, cada uma delas estava a serviço de grupos

políticos dominantes, o que gerou grandes enfrentamentos nem sempre de caráter

cultural-recreativo.

O capítulo III procura mostrar como toda essa memória secular de Belmonte -

o rio Jequitinhonha, os índios, o garimpo, o folclore, a religiosidade, a saga do cacau

com seus coronéis e clavinoteiros - foi percebida e sintetizada por Sosígenes Costa,

o poeta belmontense, através do poema Iararana que, embora com alguns aspectos

diferenciais, situa-se na linha modernista-nacionalista de Macunaíma, de Mário de

Andrade (1928); Cobra Norato, de Raul Bopp (1928), e Martim Cererê, de Cassiano

Ricardo (1928).

Iararana é semelhante aos poemas mencionados, na busca da tradição

indígena para sua inspiração, na linguagem próxima à oralidade folclórica, como

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símbolo de libertação e pelo caráter antropofágico que o poema revela. Mas se

diferencia pelo seu anacronismo estilístico (embora discutível), porque enquanto

todos os poemas anteriores foram escritos em torno de 1928, na primeira fase do

Modernismo, chamada de stricto sensu ou primitivista (1922-1930), Sosígenes o

escreve já na segunda fase, mas com características do primitivismo.

Diferencia-se também pela liberdade que o poeta demonstra ao misturar em

seu poema mitologia grega com mitologia indígena, quando os poetas da primeira

fase modernista queriam destruir tudo que tivesse qualquer ligação com o

Parnasianismo ou se relacionasse à cultura da Antiguidade clássica, e também se

diferencia pelo caráter localista de que o poema se reveste – o locus de Iararana é

Belmonte e suas adjacências.

O poema mostra a chegada de um centauro que veio da Europa e adentrou

foz do Jequitinhonha, dominou a iara do rio e os caboclos do mato. Esse centauro,

chamado de Tupã-Cavalo, simboliza o conquistador europeu, o colonizador, o

violentador e dominador da cultura local.

Da relação forçada entre Tupã-Cavalo e a iara – símbolo da cultura indígena,

local – nasce Iararana, figura miscigenada, de natureza dominadora e violenta, que

tipifica os descendentes dos colonizadores primitivos, que vão constituir uma

sociedade aristocrática e dominadora plasmada às margens do rio Jequitinhonha –

os coronéis do cacau.

No capítulo IV, a análise recai sobre a figura de Aracanjuba, uma mulher loura

que Tupã-Cavalo traz da Europa quando foi levar o cacau para mostrar aos

poderosos de lá. É a representação simbólica da imigração européia em Belmonte –

principalmente de italianos – no final do século XIX e início do século XX, o que vai

resultar em um profundo processo de miscigenação biológica e cultural.

No final da narrativa, ocorre a destruição parcial da cultura européia,

dominadora – representada por Aracanjuba, Iararana e Tupã-Cavalo – por meio de

um descendente da iara com um índio aimoré. É o procedimento antropofágico, em

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que a cultura européia não é totalmente destruída, mas aproveitada num vínculo de

sangue com o herói nativo que liberta a iara da sua prisão.

Os principais objetivos neste trabalho são:

• Salientar a importância de se buscar o entendimento de aspectos

culturais do Sul da Bahia, que ainda não foram devidamente

estudados, através de acontecimentos, no município de Belmonte,

considerados relevantes para a memória coletiva regional.

• Sensibilizar as autoridades e o povo de Belmonte para a importância

da revitalização e da preservação de seu patrimônio histórico-cultural

como atrativo turístico no Sul da Bahia.

• Desenvolver a idéia da necessidade de planejamento dos espaços,

dos equipamentos e das atividades turísticas, e de uma tomada de

consciência da população local e dos visitantes a respeito do meio

ambiente e dos bens culturais.

O referencial teórico é onde a pesquisa se fundamenta, e constitui o universo

de princípios, categorias e conceitos, formando sistematicamente um conjunto

coerente, dentro do qual o trabalho vai se desenvolver. Como suporte para a

argumentação, foram utilizados embasamentos de teóricos que tratam do tema

focalizado, como orientação de caminhos de reflexão, e da metodologia da pesquisa

científica como um todo.

Esse posicionamento procurou enfocar aspectos do patrimônio cultural como

apelo turístico, no município de Belmonte, entendida a cultura no sentido

antropológico, como a lente pela qual se pode perceber a realidade. A pesquisa

procurou salientar o patrimônio cultural de Belmonte, com ênfase nos princípios de

desenvolvimento sustentável, que possam minimizar os impactos ambientais

negativos, procurando evidenciar de que forma, em circunstâncias diversas, o

turismo pode, significativamente, contribuir para a conservação do meio ambiente e

do patrimônio cultural.

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No contexto das transformações culturais pelas quais passou, o município de

Belmonte, como espaço natural que sofreu os efeitos de ações humanas, deve ser

entendido também como espaço cultural, lugar da cultura. Aí o termo cultura deverá

ser entendido como os produtos do sentir, do pensar e do agir humanos, desde os

antigos povos das florestas até os habitantes dos nossos dias. Esse espaço

territorializado, fruto da interação entre o homem e o meio ambiente, poderá ser

reconfigurado e ressignificado como espaço turístico-cultural.

Além do referencial teórico, foram trabalhados outros instrumentos que, no

caso, são também fundamentalmente bibliográficos. Levando em conta os aspectos

da pesquisa qualitativa, foram examinados dois trabalhos sobre a história de

Belmonte: Memória sobre o município de Belmonte, de Francisco Borges de Barros

(1916) e Belmonte e a sua história, de Afonso M. Monteiro (1918), que serviram de

base para a pesquisa.

Também foram levados em consideração os registros do naturalista alemão

Robert Avé-Lallemant, em Viagem pelo norte do Brasil no ano de 1859 (1961) e do

Capitão Durval Vieira de Aguiar em Província da Bahia (1979). Foram colhidos

alguns depoimentos de descendentes de italianos, a fim de estabelecer

comparações com a bibliografia que trata da imigração italiana no século XIX e

início do século XX.

A exegese que se procurou fazer do poema Iararana seguiu a ordem dos

capítulos ou cenas como se encontra no livro, embora em alguns momentos tenha

sido necessário retroceder ou avançar no texto, para estabelecer comparações entre

o que foi dito antes e o que foi dito depois, a fim de facilitar a compreensão da

mensagem. Quando se trata da utilização de citações diretas do poema, vai

aparecer no texto, entre parênteses, apenas o número da página. Ex.:

Eu te beijo, menino do céu (p. 105)

No final do trabalho, foi organizado um glossário visando esclarecer alguns

brasileirismos pouco comuns e idiomatismos do Sul da Bahia, particularmente da

região de Belmonte, empregados por Sosígenes Costa, em Iararana. A base para a

organização desse glossário foi o texto de José Paulo Paes, no final de Iararana.

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Contudo, foram cotejados os termos, alguns colocados em discordância, e

acrescentados outros, através do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio

Buarque de Holanda Ferreira, Grande Enciclopédia Delta Larousse, Dicionário do

Folclore Brasileiro (2001), de Câmara Cascudo, Dicionário Tupi-Português

Português-Tupi, de Octaviano Mello.

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CAPÍTULO I

TURISMO, CULTURA & MEIO AMBIENTE

Fala-me, ó Musa, do homem de talento multiforme que tanto vagueou após haver destruído a sagrada fortaleza de Tróia, viu numerosas cidades, conheceu a índole de homens vários, e muito sofreu sobre o mar quando buscava o meio pelo qual ele e os companheiros poderiam manter-se vivos e voltar à pátria (HOMERO – Odisséia).

A Viagem

O ato de se deslocar de um lugar para outro tem sido uma atividade milenar,

desde que o homem existe sobre a terra, por motivos os mais diversos. A história

dos homens está marcada pela busca do desconhecido, pela experiência, pela

surpresa da novidade, pela descoberta de diferentes formas de ser, de sentir, de

fazer ou de pensar.

Viajar, portanto, é ultrapassar fronteiras, vencer barreiras espaço-temporais,

dissolvendo-as ou recriando-as. Ao tempo em que se demarcam as diferenças,

singularidades ou alteridades, demarcam-se também “semelhanças, continuidades,

ressonâncias” (IANNI, 2000, p. 13).

Assim, viajante é aquele que, no processo de deslocamento no espaço,

encontra-se suspenso entre a partida e o regresso, referências basilares desse

deslocamento, dessa passagem. Aí, o indivíduo separa-se do meio familiar, para

depois ser reintegrado à sua família, em sua casa, em sua terra. Longe de ser

sofrimento, como em muitas circunstâncias no passado, hoje, a viagem se constitui

em excitação e prazer, dentro de uma autonomia liberta das imposições

sobrenaturais, mas como fruto da volição pessoal, pela determinação da vontade.

O viajante é alguém que penetra um território alheio. Em certos grupos

indígenas, os estrangeiros são considerados portadores de alguma ameaça e por

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isso não podem transitar livremente, antes dos ritos mágico-religiosos de purificação.

Como o espaço onde o viajante se desloca possui a peculiaridade de

descontinuidade, ou seja, “cada sítio, cada cultura, constitui um território particular”,

ele aí é um intermediário que “coloca em comunicação lugares que se encontram

separados pela distância e pelos hábitos culturais”. Diante dessa descontinuidade, o

viajante é alguém que aproxima unidades heterogêneas e interliga pontos

desconexos. Deslocar-se então significa tomar conhecimento daqueles que são

diferentes de nós, e nessa nítida separação entre o visitante, aquele que se move, e

os lugares visitados, o contraste se torna fonte de experiência e de conhecimento.

Nesse processo de interação, a troca de experiência é inevitável.

Com a mundialização da cultura, deslocar-se no espaço deixou de ser uma

aventura, para tornar-se habitual, tanto para os que viajam (turistas), como para os

que organizam as viagens (agentes), com a disponibilidade de todos os mecanismos

da modernidade-mundo. Já não se viaja para o desconhecido, pois o turista deve

possuir informações sobre o seu destino. A viagem deixa de ser um rito de

passagem, porque “o outro lado é parte integrante do imaginário daqueles que se

locomovem”. Por outro lado, os meios de comunicação contribuem para debilitar a

idéia de fronteiras entre as culturas e a realidade envolvente (ORTIZ, 2000).

Ao analisar a vida nas fronteiras dos locais da cultura, no contexto da

diáspora cultural e política, através dos grandes deslocamentos sociais, Homi

Bahbha (1998), citando Heidegger, concorda que uma fronteira não é o ponto onde

algo termina, mas é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.

Sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens... a ponte reúne enquanto passagem que atravessa (HEIDEGGER apud BHABHA, 1998).

É essa ponte que, com a visão dupla de migrante indiano muçulmano,

Salman Rushdie, em Os Versos Satânicos (2000), tenta construir para reunir os

extremos e conciliar os opostos, numa resposta para a vida. Através de uma alegoria

criada na era Thatcher, o autor reúne dois personagens, atores indianos, com

características que os opõem e os associam: Saladim Chamcha e Gibriel Farishta,

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que, ao caírem no solo da Inglaterra, se metamorfoseiam, um em diabo e outro em

anjo. A visão una e multiplicada de Rushdie transita entre o real e o fantástico, entre

o sagrado e o profano, entre o bem e o mal, entre os opostos complementares e

inconciliáveis da vida.

Na Antiguidade, as pessoas se deslocavam de um lugar para outro, para

lugares até mesmo desconhecidos, por desígnios sobrenaturais, segundo contam

os rapsodos, através da escrita trazida pelos fenícios, que uniam antigos poemas

transmitidos por via oral (Odisséia, Eneida). Segundo a Bíblia, o patriarca Abraão

saiu de sua terra, do meio de sua parentela, por determinação de Jeová, “e saiu sem

saber para onde ia”1. No final da Idade Média, a intensificação de atividades

comerciais foi responsável por grandes viagens, primeiro de caráter comercial, nas

proximidades do Mar Mediterrâneo, e depois através do Oceano Pacífico, o que

resultou na descoberta de novas terras.

Nos dias atuais, a distância já não é motivo de preocupações, porque o

espaço pode ser conquistado viajando-se de forma real, entre locais; nas asas da

imaginação, através da literatura, ou simplesmente de forma virtual, na tela de um

computador (BAUMAN, 1999). Hoje, a viagem não é simplesmente uma atividade

de lazer ou de ruptura com o cotidiano, mas também uma oportunidade de

experiência de conhecimento do outro, da natureza e de si mesmo (LABATE, 2000).

Em uma sociedade de consumo, como a nossa, em que todas as coisas , e

até mesmo as pessoas, podem ser transformadas em mercadoria, a satisfação do

consumidor não deve ser completa, porque sempre vai haver novas mercadorias

para se consumir e a criação de novas necessidades a serem satisfeitas. “O que

realmente conta é apenas a volatilidade, a temporalidade interna de todos os

compromissos”, a invenção das necessidades e a busca de sua satisfação num

processo de realimentação do sistema capitalista. Hoje existe toda uma rede de

bens e serviços para atrair o viajante, o turista, para estimular os seus desejos de

consumo, e transformá-lo em “uma criatura acentuadamente diferente dos

1 Uma referência ao deslocamento do principal patriarca dos judeus, Abraão, da cidade de Ur (Epístola aos Hebreus 11:8).

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consumidores de quaisquer outras sociedades até aqui” (BAUMAN, 1999, p. 88,

89).

Sendo o turista um consumidor em potencial, que procura emoções e

coleciona experiências, precisa ser mantido acordado, exposto às tentações do

mercado, para que sua capacidade de consumo esteja sempre aumentada e em

estado de constante insatisfação. Se o mercado seduz o consumidor é porque o

consumidor deseja ser seduzido, o que o torna uma pessoa sempre em movimento

e insatisfeita.

Não sendo apenas e simplesmente uma atividade de lazer ou de ruptura com

o cotidiano, a viagem pode ser também uma oportunidade de experiência de novos

conhecimentos do outro, da natureza e de si mesmo. Embora não se reduza ao

fenômeno turístico, é forma dominante nas sociedades modernas e, de modo

especial, nas pós-modernas, onde o turismo internacional faz parte do processo de

globalização.

Se o ato de viajar é uma constante no transcurso da história, o turismo, no

sentido moderno do termo, é um fenômeno recente, uma peculiaridade do século

XX, com todos os impactos no âmbito econômico, político, sócio-cultural, ambiental e

ecológico (THEOBALD, 2000), os quais podem ser de caráter positivo ou negativo.

Positivos quando revitalizam a cultura – as habilidades artesanais, a música, a

literatura, as tradições etc. – e favorecem o intercâmbio cultural entre diferentes

populações (COOPER et alii, 2000). Podem ser negativos quando os ritos, as artes,

o artesanato da população local são adulterados para efeito de comercialização, ou

apresentam uma visão limitada e distorcida de uma das populações.

No contexto da globalização, de um mundo em descontrole - em razão da

interferência do homem no ambiente - no capitalismo desorganizado, em que

sujeitos e objetos circulam numa escala cada vez maior, o tempo e o espaço são

separados, “desencaixados”, reduzidos a eventos deslocados das relações sociais.

Aí, as culturas são desterritorializadas, os sujeitos despojados de sua afetividade e

os objetos, de seu conteúdo simbólico e material, em que as imagens (do outro) são

apropriadas para o turismo com todos os riscos decorrentes (GIDDENS, 1991).

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Cultura & Turismo

Estudar a cultura regional é procurar entender os processos pelos quais os

agrupamentos humanos, em determinado espaço, se formam, vivem e se modificam

sob o impacto das transformações físicas, mentais e psicossociais. Nesse processo,

entre outros, estão presentes os componentes geográficos, os costumes, as

atividades e os estímulos da imaginação.

O ser humano vê o mundo através das lentes de sua cultura, o que permite

que cada um tenha uma percepção diferente da realidade que o cerca. Isto vai

marcar todo um comportamento, todo um modo de viver. Embora os homens

compartilhem atitudes e perspectivas comuns, a visão que cada um tem do mundo

é única. A cultura é também uma herança que se recebe ao nascer, por meio

de uma série de influências do grupo no qual está inserida. Quanto mais o indivíduo

se integra, mais hábitos adquire, capacitando-se como membro dessa sociedade,

agindo e atuando dentro dos padrões estabelecidos, que são justamente a cultura

(LARAIA, 1992).

Cultura é, então, a lente através da qual o homem pode ver o mundo e

expressar seus sentimentos. Homens de culturas diferentes percebem de formas

diferentes e, muitas vezes, terão percepções desencontradas dos objetos da

observação.

Nesse conceito antropológico, cultura vai além da inovação e da

diversificação das indústrias culturais, nos seus múltiplos ramos de atividade, para

contemplar o modo de viver de um povo e suas particularidades: instituições,

costumes, idéias, linguagem, instrumentos e sentimentos.

Como somente o homem é portador de cultura, somente ele a cria, possui e a

transmite, seja como modo de vida (sentido antropológico), seja como arte, produtos

e experiências culturais espiritualmente elevados - alta-cultura (FEATHERSTONE,

1995). Daí a íntima relação que se pode estabelecer entre memória e cultura:

enquanto uma mantém vivas as marcas do homem em sua caminhada, a outra pode

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estudá-las, analisá-las, interpretá-las e transmiti-las a outros povos ou a outras

gerações. Afinal de contas, o homem não é concebível sem a sua cultura

(AZEVEDO, 1964).

Ainda segundo Azevedo

cada povo tem o seu temperamento e o seu gênio próprio que, elaborados através de séculos, são o produto do meio físico, dos elementos raciais, e do processo de sua evolução social, e se manifestam tanto na sua história e nas suas instituições, quanto na sua língua e na sua literatura, nas suas obras de arte e de pensamento (Id. p. 45).

É o que Alfredo Bosi (1994) chama de “a possibilidade de enraizar no

passado a experiência atual de um grupo”, através das mediações simbólicas. “O

gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca, a fala que invoca” são

símbolos culturais que vinculam o presente “com o outrora-tornado-agora, laço da

comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustém a sua

identidade” (p. 15).

Ao analisar os conceitos de colônia, culto e cultura, Bosi nos remete à idéia

de colonização como “um projeto totalizante cujas forças motrizes poderão sempre

buscar-se no nível do colo: ocupar um novo chão, explorar os seus bens, submeter

os seus naturais” (Id. 15). Os agentes do processo não são simplesmente suportes

físicos de caráter econômico, mas crentes que trouxeram na memória “aqueles

mortos que não devem morrer”. O colonizador europeu trazia no arcabouço de sua

memória a certeza, a convicção de que estava a serviço de um poder divino

(representado pelo rei) para dominar e impor a sua cultura.

Esse processo de aculturação significava o domínio do homem sobre outros

homens, sujeitando-os ou adaptando-os a um padrão cultural considerado superior.

É aí que a ação colonizadora dialetiza as três ordens propostas por Bosi: do cultivo,

do culto e da cultura. A primeira, do cultivo, fundamenta-se no princípio básico do

domínio sobre a natureza para se desenvolver o processo do mercantilismo, em que

a economia colonial foi efeito e estímulo dos mercados metropolitanos.

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Nesse processo de dominação, também o cacau contribuiu para a eliminação

do índio e para a escravização do negro. Assim, analisando os aspectos gerais da

formação econômico-social do Brasil-Colônia, pode-se perceber que – mudando o

que deve ser mudado – as características no Sul da Bahia foram semelhantes ao

que Gilberto Freyre (1987) afirma quando diz que o açúcar eliminou o índio, através

das marchas colonizadoras.

Houve o predomínio dos latifundiários com interesses vinculados a grupos

mercantis europeus, com força produtiva também escrava, sendo a administração

pública local exercida pelas câmaras municipais formadas pelos “homens bons”, os

proprietários (coronéis), o que também representava um dos aspectos do poder que,

na esfera ideológica, era exercido pela Igreja.

A idéia de que o cacau eliminou o índio e escravizou o negro está presente

nas memórias dos viajantes, nos historiadores regionais e na ficção do cacau:

Adonias Filho, Afrânio Peixoto, Ciro de Matos, Jorge Amado, Sosígenes Costa etc.

Através desses autores, embora seguindo por caminhos diferentes, a História e a

Literatura se complementam, constroem o social e nos revelam como cultura

(SOUSA, 2001).

Quanto aos aspectos psicoculturais do passado brasileiro, enfocados por

grandes nomes como Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda, há que se levar

em conta que a idéia de cordialidade do escravo e a carência de orgulho do

português, despido de preconceitos, levaria a uma democracia racial, precisa ser

revista. Caso contrário, a violenta dominação do colonizador e sua imposição

cultural, seja nos engenhos de açúcar, no apresamento de índios, nas conquistas

dos bandeirantes ou no coronelismo do cacau sulbaiano, ficarão relativizadas e

minimizadas, o que vai levar a uma ideologia que privilegia o vencedor.

Seja pela ação ideológica da Igreja, seja pela dominação do colonizador,

uma cultura gestada em meio a um povo pobre e dominado, num processo de

simbiose cabocla, mulata ou cafuza, “foi prevalecendo em todos os campos da vida

material e simbólica... na comida, na roupa, na casa, na fala, no canto, na reza, na

festa...” (BOSI, 1994, p. 46).

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Sosígenes Costa, o poeta belmontense, consegue sintetizar esse processo de

aculturação no poema modernista Iararana2, em que a figura de Tupã-Cavalo3,

símbolo do colonizador português, investe contra as tradições indígenas, quando

violenta a iara do rio Jequitinhonha e se apodera simbolicamente de um mito fluvial

caboclo que representa a força do rio.

Dessa relação forçada, entre Tupã-Cavalo e a iara, da apropriação das

nossas matas, do estupro da cultura indígena nasceu Iararana, figura miscigenada,

símbolo da hibridação racial e cultural brasileira ou, como prefere Bosi, das culturas

brasileiras. De brancura araçuaba semelhante a uma taruíra (p.45), ou lagartixa

branca, Iararana puxa às suas origens européias, ao pai, não apenas na cor da

pele, mas no caráter cruel e violento: “danada de runhe” (p. 60). Nossa mestiçagem

aparece aí como resultado de uma limpeza étnica, de um estupro praticado contra a

cultura de povos considerados inferiores (no caso, os índios do Sul da Bahia). São

os “hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica”

(BHABHA, 1998, p. 19).

Assim, a comunidade belmontense é o resultado de um profundo processo

de miscigenação biológica e cultural, com a incorporação de diversas etnias

(COUTO, 1995). De início, o contato entre portugueses e índios, nos primeiros anos

da povoação, através do aldeamento dos kamakan pelo padre Ferraz. Depois, a

inclusão do elemento de origem africana nas atividades de subsistência, na

garimpagem de pedras preciosas, ao longo do rio Jequitinhonha, e na cultura do

cacau. A alma-avô que apareceu no mato explica:

Tudo isto que aqui vês dando flor e dando fruto fui eu que plantei com escravo nagô (p.99).

No momento atual, quando os bens simbólicos sãos transformados em

mercadorias e consumidos principalmente pelos meios de comunicação de massa, é

preciso que novas mercadorias sejam produzidas para a satisfação do consumidor.

2 Iararana (do tupi ig = água, iara = senhor, acrescido do sufixo rana = semelhante a) – Semelhante à senhora das águas. A iara ou mãe-dágua é uma criação do indianismo literário, segundo Câmara Cascudo (apud José Paulo Paes). 3 Tupã, na mitologia indígena, é uma divindade hostil, que aniquila a floresta com seus raios trovejantes (Id.).

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Contudo, essa satisfação nunca deverá ser completa, para que ele volte a consumir

sempre, alimentando e realimentando o mercado consumidor.

Como o turista é um consumidor em potencial, na busca de emoções e novas

experiências, os bens culturais – presentes aí os produtos do sentir, do pensar e

fazer humanos – as artes, a literatura, etc. se constituem em grandes atrativos

turísticos que, devidamente formatados, podem ser colocados à disposição do

público consumidor. Contudo, não se deve perder de vista os impactos negativos

decorrentes no âmbito econômico, político, sócio-cultural, ambiental e ecológico.

No contexto das teorias da cultura de consumo, Mike Featherstone (1995) entende

que o objetivo de toda produção é o consumo, em que os indivíduos maximizam a

satisfação de suas necessidades, através da aquisição de mercadorias em

expansão.

Embora o turismo tenha papel importante no desenvolvimento cultural das

comunidades, é preciso se desenvolver uma política que privilegie um turismo de

impacto sociocultural positivo, onde estejam incluídas claras noções relacionadas

com a educação ambiental, envolvendo aí os recursos da natureza e os bens

culturais. Assim, o patrimônio cultural poderá ser usado para estimular o turismo e o

turismo, por sua vez, poderá contribuir para a preservação dos bens culturais e da

natureza.

A despeito da possibilidade de grandes benefícios que o turismo pode

promover, o seu crescimento desordenado pode levar a resultados mais nocivos

que benéficos. Pode ter efeito inflacionário nas regiões receptivas; pode contribuir

para a elevação de preços, tanto para os turistas como para os moradores; pode

contribuir para a poluição das águas, etc. Do ponto de vista cultural, pode trazer

contribuição negativa para os usos e costumes locais, como alteração do artesanato

e do folclore para satisfazer os desejos dos turistas, além do incentivo à prostituição

infanto-juvenil, em muitos casos (IGNARRA, 1999).

“Belmonte: memória, cultura e turismo – numa (re)visão de Iararana de

Sosígenes Costa” é um apelo para o desenvolvimento de um turismo que perceba a

cultura não simplesmente como um produto de mercado, com motivação meramente

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materialista, mas também como o vivenciar na realidade das construções da

imaginação, com a sensibilidade voltada para os elementos visuais das paisagens e

dos bens culturais que estão situados além do cotidiano (TRIGO, 2000).

Equipamentos Turístico-Culturais

Como esse conceito antropológico de cultura ultrapassa a diversificação das

indústrias culturais, nos seus múltiplos ramos de atividade (WARNIER, 2000), vai

contemplar o modo de viver de um povo e suas particularidades, bem como

abranger objetos culturais aparentemente simples, mas de considerável “valor para o

conhecimento de pormenores de uma região, de uma época, de um estilo de vida”

(PELLEGRINI FILHO, 1997, p. 91);

Assim, a idéia de patrimônio cultural se amplia com os produtos do sentir, do

pensar e do fazer humanos, entendida assim como todo e qualquer artefato

humano com forte componente simbólico, representativo da coletividade, de um

espaço, de um tempo específico, que facilite a compreensão do processo histórico,

levando-se em conta tanto as ações das classes dominantes como das classes

excluídas do processo de dominação (Ibid.).

Ao tomarmos como objeto de estudo aspectos histórico-culturais do Sul da

Bahia, fazemo-lo como evocação turística para a cidade de Belmonte. Seguindo o

raciocínio de Pellegrini Filho (1997), no contexto das transformações culturais pelas

quais passou, o município de Belmonte, como espaço territorializado que sofreu os

efeitos de ações humanas, pode ser entendido também como espaço cultural, lugar

da cultura. Aí o termo cultura será entendido como os “produtos do sentir, do pensar

e do agir humanos” , desde os antigos povos das florestas, até os habitantes dos

nossos dias. Esse espaço poderá ser reconfigurado e re-significado como espaço

cultural ”para atividades turísticas que minimizem impactos ambientais e contribuam

para o desenvolvimento sustentado” (Ibid. p.10). A noção moderna de patrimônio

cultural, portanto, não se restringe à arquitetura, embora seja reconhecida como um

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dos pontos altos da realização humana; não apenas às coisas tangíveis, mas

também aquelas percebidas pelo espírito.

Aí podem ser relacionados: canoas para transporte de cacau, instrumentos de

pesca, arreios para tropas de animais, clavinotes4 antigos; fotografias documentais

(paisagens, eventos, pessoas); cultura originária da imigração (culinária, música),

religiosidade; jornais antigos; lendas, folclore e outras manifestações orais;

documentos da administração pública, documentos particulares, etc. Ao lado desses

bens, devem ser considerados também os bens imóveis, que formam o patrimônio

arquitetônico: igrejas, conjuntos residenciais, logradouros públicos, sedes de

fazendas – “interessando que sejam todos e cada um a seu modo representativos

da cultura em que estiveram ou estão inseridos” (Ibid.).

Para Trigo (2001), o turismo está intimamente associado à paisagem e ao

meio ambiente. E ao entrar em contato com a natureza e percorrer as diversas

paisagens, o ser humano interpreta o que viu através da cultura, por mais simples

que seja a descrição. A percepção do turista é essencialmente cultural, seja o

enfoque artístico, mercadológico ou científico.

Pela observação da natureza, também grandes obras de arte foram

realizadas, despertando o imaginário nos diversos campos da atividade humana,

seja na escultura, na pintura, na música ou na literatura.

A historia, a antropologia, a geografia, a cartografia e a sociologia são especialistas em descreverem os espaços culturais e naturais e por isso são ciências fundamentais para o Turismo [...]. A arte ajuda a ciência e a filosofia a melhor refletir sobre os amplos espaços do planeta. Florestas, desertos, geleiras, praias, montanhas, cavernas, lagos e rios, tudo tem o seu mistério guardado no inconsciente das culturas e civilizações e nem sempre a aridez da ciência consegue transmitir as sensações contidas nessa natureza tão cercada de mistérios no passado (TRIGO, 2000, p. 147).

É fato notadamente conhecido o significativo crescimento das atividades

turísticas, tanto em termos sociais como econômicos, já que o turismo é responsável

pela geração de 255 milhões de empregos, o equivalente a 10, 7% de toda a força

4 Pequena clavina, ou carabina, usada pela polícia particular dos coronéis.

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de trabalho no mundo, o que pode chegar 385 milhões de empregos dentro dos

próximos 3 anos, o que significa cerca de 11,1% de toda a força de trabalho do

planeta (THEOBALD, 2001; COOPER et al., 2001). O turismo também é o setor que

mais contribui para a economia mundial, com 10,2% do produto nacional bruto

mundial, sendo ainda o maior gerador de receitas de impostos (TRIGO, 2000;

VALLS, 1996). Além da força econômica mundial, o turismo representa também uma

grande contribuição em termos socioculturais, por tratar-se de um produto baseado

na produção e no consumo simultâneos.

Como a motivação básica das pessoas, em relação ao consumo, não é

simplesmente materialista, o olhar do turismo é direcionado para aspectos diversos

do campo ou da cidade, com a sensibilidade voltada para os elementos visuais das

paisagens e das culturas que estão situados além do cotidiano, fora do habitual.

Afinal de contas, “os motivos para viajar são muito variados e bastante influenciados

pela cultura e pelo imaginário do turista” (Ibid. p. 24).

Nos segmentos das tendências contemporâneas do turismo, é preciso ter

em mente dois aspectos extremamente relevantes: a satisfação do turista e o

desenvolvimento equilibrado no contexto da economia nacional, tanto no que se

refere aos atrativos da natureza, como aos bens culturais.. Tanto num caso como

em outro, é preciso se ressaltar a importância da preservação ativa, ou seja, o uso

equilibrado de atrativos da natureza e da cultura, minimizando-se os impactos

negativos (PELLEGRINI FILHO, 1997).

Falando sobre a percepção, as atitudes e os valores envolvidos nas relações

das pessoas com o meio ambiente, Yi-fu Tuan (1980) considera que na medida em

que a sociedade e a cultura evoluem com o tempo, podem mudar a atitude para com

o meio ambiente, ou seja, a herança biológica e a cultura interferem na preferência

ambiental de uma pessoa. É a topofilia, “o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou

ambiente físico”. Por outro lado, o meio ambiente também vai influenciar na

percepção da realidade, nas atitudes e valores e na visão do mundo.

Assim, as pessoas têm uma visão de mundo construída a partir dos

elementos do ambiente natural, refletindo os seus ritmos e suas limitações.

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Enquanto os ambientes urbanos estão diferenciados em céu e terra, com marcos

referenciais visíveis, por exemplo, a floresta não possui marcos visuais

diferenciados, porque todos os elementos visíveis estão próximos do observador.

Contudo, nesse ambiente fechado, seus habitantes têm suas referências e

conhecem em detalhes como a vida aí se desenvolve.

Nas antigas civilizações, no Egito, na Mesopotâmia, na Índia, na China as

águas dos grandes rios determinaram sua paisagem e sua economia, os rios

também funcionando como indicadores de direção. As águas, o céu, as planícies, o

vale foram elementos decisivos para a construção dos valores desses povos,

segundo Tuan, onde as idéias cosmológicas refletiam aspectos do seu meio

ambiente natural.

Rio Jequitinhonha – Lugar de Memória

Levando-se em conta a clássica afirmativa, atribuída a Heródoto, de que o

Egito é uma dádiva do Nilo, podemos afirmar que Belmonte também pode ser

considerada uma dádiva do Jequitinhonha, porque, em razão desse rio,

desenvolveu-se a vila, posteriormente cidade, e toda a cultura do cacau. O rio aí

funcionou não apenas como meio de comunicação, mas como lugar da riqueza, seja

pela exploração de ouro e pedras preciosas, no alto Jequitinhonha; seja pela lavoura

do cacau, no município de Belmonte.

O rio Jequitinhonha nasce na serra do Espinhaço, próximo às históricas

cidades de Serro e Diamantina, no estado de Minas Gerais. Cruza com a BR-116,

em Itaobim (MG) e a BR-101, em Itapebi (BA). Na divisa de Minas Gerais com a

Bahia se encontra o Salto Grande, ou Salto da Divisa e, após um percurso de

1.086 km (BARROS, 1916; MONTEIRO, 1918), deságua no Oceano Atlântico, em

cuja foz se encontra a cidade de Belmonte, na Bahia. No passado, elo de ligação,

meio de comunicação entre Bahia e Minas, o Jequitinhonha foi de grande

importância econômica como escoadouro de produtos. Hoje, representa a memória

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cultural de um passado grandioso, que pode ser re-significada para atividades

turísticas.

Na foz do rio Jequitinhonha, no Sul da Bahia, situa-se a cidade de Belmonte

(Fig. 1), antiga povoação onde, no começo do século XVIII, índios botocudos foram

aldeados e catequizados pelo padre jesuíta José de Araújo Ferraz, responsável pela

construção de uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Madre de Deus

(entre 1708 e 1712), ficando o povoado com o nome de São Pedro do Rio Grande,

segundo os memorialistas.

Na época do descobrimento, os nativos que ocupavam esse espaço - o vale

do Jequitinhonha - tiravam daí o sustento para as suas comunidades. As mulheres

plantavam, colhiam, teciam, cozinhavam e cuidavam das crianças. Os homens

caçavam, pescavam, construíam canoas e armas de guerra. Derrubavam o mato,

preparavam a terra para o plantio e cuidavam da segurança da aldeia. O

Jequitinhonha era o símbolo da vida, o lugar da subsistência.

No início do século XVIII, muitas bandeiras foram organizadas, a partir de

Belmonte, para exploração de pedras preciosas, o que trouxe benefícios

econômicos, no sentido de que muitas pessoas ficaram ricas nessa atividade.

Todavia, a vila sofreu um grande atraso, porque ficou esvaziada pela ausência de

homens que se infiltravam nos garimpos em busca de ouro e pedras preciosas, ao

longo do rio (BARROS, 1916).

Desde a sua nascente, o Jequitinhonha apresenta um grande número de

voltas que dão lugar a diversos sítios históricos, dos quais nomeamos alguns no

estado da Bahia, no antigo município de Belmonte, hoje Belmonte e Itapebi:

Engenho do Camilo, Coroa Grande, Sítio Monte Alegre, Engenho de Areia, Ibipura,

Diogo, Ingauíra, Boca do Ubu, Meroaba, Currais, Ipiranga, Bolandeira, Boca do

Córrego, Espinheira, Ponta Grossa, Coroa da Palha, Timiqui. Bacorinha, Ilha

Grande, Ilha do Chaves, Barreiras, Ilha das Pombas, São José do Falhado, Genebra

(antiga sesmaria do Gen. Pederneiras), Jacarandá, Oiteiro Feio, Coqueirinho,

Limoeiro, Pedra Branca (atual cidade de Itapebi), Maraú e Cachoeirinha. Alguns

desses sítios são ilhas que também estão mencionadas adiante (Mapa 1).

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Figura n.º 1

Vista aérea da cidade de Belmonte, destacando-se a Av. Rio-Mar e o farol

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MAPA n.º 1 – Município de Belmonte próximo à sede

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No chamado baixo Jequitinhonha, o grande rio recebe ainda as águas de

outros pequenos rios e riachos, tais como: Palmeiras, Jaqueira, Lapinha, S. José de

Cima, Cairi, Taquaras, Córrego do Jacarandá, Limoeiro, Timiqui, Ubu (seu maior

afluente em território baiano), Riacho Grande, Conceição, Riacho do Freire, Boquete

e Passaí (MONTEIRO, 1918).

Na divisa da Bahia com Minas, está a Cachoeira do Salto Grande, que desce

por um estreito canal e precipita suas águas em cinco níveis ou tombos de grande

beleza, próxima à cidade de Salto da Divisa. Além dessa, existem outras quedas

d’água menores, como: Araçazeiro, Cachoeira Seca, Cotinguiba, Escadinhas,

Gameleira, Gangorra, Guaribas, Italiano, Marimbondos.

A Lavoura do Cacau

Com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil e a conseqüente abertura dos

portos, a partir de 28 de janeiro de 1808, os produtos da terra não se limitaram,

como antes, ao exclusivo abastecimento do país, mas podiam ser exportados para

outros lugares. Mesmo assim, as atividades cacaueiras, no Sul da Bahia, tiveram um

desenvolvimento lento por um período de aproximadamente 50 anos. Somente a

partir de 1860 o cacau deixa os vales dos grandes rios e ganha o interior das matas,

ficando protegido das inundações. Novas espécies são introduzidas, o que

possibilitou sua expansão pelas encostas, e o cacau passa a ganhar relevância, em

termos econômicos, e se afirma como cultura predominante. Belmonte é assim o

terceiro município baiano a desenvolver a cultura do cacau, depois de Canavieiras e

Ilhéus (MONTEIRO, 1918).

O período de 1890 a 1930 é o mais grandioso, quando o cacau assume a

posição de principal produto de exportação da Bahia. Sosígenes Costa, o poeta de

Belmonte, assim o percebe:

O cacau agora era um deus na terra e só se falava em cacau, ninguém queria mais plantar mandioca

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no oiteiro da Conceição nem coco em Mogiquiçaba. O povo todo recebeu debaixo de festa o cavalo-do-mar aqui na roça (p. 86).

A expansão da lavoura cacaueira, no município de Belmonte, foi rápida, com

colheita farta e lucrativa, o que resultou no reflorescimento da vila e estimulou uma

grande migração, tanto de nordestinos como de europeus, principalmente italianos,

o que também contribuiu para consideráveis mudanças na sociedade, levando-se

em conta os aspectos econômicos, políticos e religiosos – a cultura em geral.

As sementes vieram de Ilhéus para a região do Poaçu, através dos

agricultores Pedro Seare e Belmiro Francisco de Lotero, e depois para os lugares

Franca e Ingauíra, por meio de Joaquim Silva e Manoel José de Bittencourt, e para o

Engenho, por meio de Eugênio Amorim. Esses foram os primeiros cacauicultores de

Belmonte, que fizeram pequenas plantações, a título de experiência. Posteriormente,

outras pessoas também se interessaram pelo cultivo do cacau, em vista do

acelerado desenvolvimento, principalmente às margens do Jequitinhonha.

Segundo Borges de Barros (1916), antigas fazendas de cacau, no município

de Belmonte, existiam registradas já em 1854, localizadas nos seguintes sítios:

Boca do Ubú, Córrego das Rãs, Escadinhas, Sapucaia, Cariri, Ilha do Peso,

Palmeiras, Araras, Marimbondos, Córrego Bananal, Córrego Curibas, Torcicolo,

Jaqueiras, Mundo Novo, Burgalhau, Gangorras, Ipibura, Gameleira, Boa Paz, Coroa

Grande, Outeiro Feio, Furado, Ventania, Cachoeira Seca, Poço do Meio, Quartéis

Velhos, Estreito, Jacobina, Cachoeirinha, Jacarandá, Alagoa dos Cocos, Riacho da

Conceição, Riacho Grande, Barra Velha, Pombas, Campo Seco, Corregozinho, Ubu

de Baixo, Ilha do França, Diogo, Ubu do Meio.

A fazenda As Pombas, em meados do século XIX, pertencia ao então

Coronel Inocêncio Veloso Pederneiras, preposto do presidente da Província da

Bahia, Cansação de Sinimbu, para obras de melhoramentos nos vales dos rios

Pardo e Jequitinhonha. “As Pombas chamam-se assim aquelas colinas florestais no

fundo do belo quadro. Imediatamente por trás delas, a segunda propriedade do meu

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companheiro, o Coronel Pederneiras, que é conhecida pelo nome de Genebra”

(AVÈ-LALLEMANT, 1961, p.116).

A fazenda Cachoeira Seca, que fica situada na divisa entre os municípios de

Belmonte e Canavieiras, foi adquirida em 1904 pelo Eng. Alberto César Navarro,

conforme Planta e Memorial Descritivo da medição e demarcação das referidas

terras, e, a partir de 1982, pertence a Rafael Tosto Filho, de família italiana.

Com o desenvolvimento da lavoura cacaueira e a migração de pessoas de

várias partes do Brasil e da Europa, criou-se uma instabilidade social nos diversos

setores da economia e da política, o que levou os fazendeiros (coronéis) a

organizarem uma polícia particular para defender sua honra, sua família e sua

propriedade – os clavinoteiros5.

A sociedade que se forma aí vai ter no Jequitinhonha o seu referencial,

pulsando no contexto das transformações materiais e culturais pelas quais passou o

rio, sob os efeitos de ações humanas, o que pode ser entendido também como

espaço cultural, lugar da cultura, entendido o termo como os “produtos do sentir, do

pensar e do agir humanos” (PELLEGRINI FILHO, 1997).

O rio Jequitinhonha, em cujas florestas habitavam os indígenas, filhos da

terra, era o lugar da subsistência; meio de comunicação, lugar da riqueza dos

diamantes e do cacau; espaço natural tornado espaço cultural, passa a perder as

características evidentes de seus aspectos histórico-culturais. Com a abertura de

estradas e a expansão da lavoura cacaueira, os indígenas são massacrados,

expulsos ou aculturados; a floresta é devastada e o rio perde sua vocação histórica

de meio de comunicação. Depois, o cacau perde o seu caráter de “fruto de ouro”

como o denominou Afrânio Peixoto, com as constantes crises, situação que chegou

ao ápice, nas últimas duas décadas, com a praga conhecida por vassoura-de-bruxa,

provocada pelo fungo Crinipellis perniciosa, endêmico da Amazônia.

5 Homens armados de clavinotes, a serviço dos coronéis.

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Mais do que um corpo de águas, o vale do baixo Jequitinhonha reúne

atributos ambientais ainda preservados, graças ao que restou da lavoura cacaueira

que aí foi implantada em meados do século XIX, e que depende de sombreamento

para a sua sobrevivência, o que, de certa forma, contribuiu para a preservação de

parte da Mata Atlântica.

Todavia, hoje, percebem-se impactos diferenciados de acordo com as formas

de uso da terra, motivados pela tendência de mudança para outras culturas, em

razão da atual crise do cacau, associadas a diferentes situações fundiárias e

diferentes níveis de fertilidade do solo. Salvador Trevisan (2000) percebe que é no

cacau onde mais se encontram fazendas sem mata e sem capoeira, enquanto que

nas áreas de diversificação agrícola não se encontram fazendas sem área de mata

e capoeira.

A zona da Mata Atlântica teve sua destruição iniciada com o ciclo do pau-

brasil, foi intensificada durante todo o período colonial para dar lugar a culturas

como a cana-de-açúcar, fumo e mandioca, e para suprir de madeiras e lenha os

engenhos e vilas.

No século XX, a despeito de sua expansão, pode-se analisar a cultura do

cacau em três momentos: 1) até 1960, antes da CEPLAC, quando as atividades

cacaueiras eram desenvolvidas de forma empírica, sendo a mata derrubada para o

plantio de cacau, com algumas árvores de maior porte sendo preservadas para o

sombreamento, que era completado com a plantação de árvores frutíferas e

bananeiras; 2) a partir da CEPLAC, quando foi incrementada a prática da cabruca

ou brocada6, que conservava a maior parte da mata, e 3) após a vassoura-de-bruxa,

quando muitas áreas, consideradas de segunda e de terceira categoria, foram

utilizadas para a introdução de novas culturas ou transformadas em pastagens para

a pecuária. Tudo isto aliado à abertura de estradas litorâneas, o que deu novo

alento à indústria madeireira, também contribuiu consideravelmente para a

destruição de boa parte das reservas de matas que ainda restavam (Mapas 2, 3,

4).

6 Derrubada do mato pequeno conservando as árvores grandes.

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Embora não haja uma clara preocupação com a questão ambiental, muitos

fazendeiros e trabalhadores rurais revelam alguma percepção no que se refere à

extração de madeira e suas conseqüências futuras. Também esses ruralistas

admitem que o sistema de cabruca é o melhor e necessário para o cultivo do cacau

e preservação da mata. Já a noção de reflorestamento está presente em apenas

50% dos proprietários, que replantam árvores novas ou deixam crescer as que

surgem espontaneamente (Id.).

Foi nesse espaço construído e ordenado que ocorreram as transformações

físicas, por conta dessa riqueza, a lavoura do cacau. Mas, a despeito da onda

transformadora das estruturas sociais, as marcas ficaram, vestígios do passado:

comportamentos, normas, posturas municipais – modos de viver, modos de fazer –

traços culturais. Ao se tentar perceber os vestígios dessas ações, procura-se

reconstruir um passado através de representações coletivas, que devem ser

preservadas, revitalizadas, re-significadas e colocadas à disposição da comunidade

belmontense e de seus visitantes.

Como o turismo contemporâneo está intimamente ligado à paisagem e ao

meio ambiente, é, portanto, um grande consumidor da natureza, e sua evolução,

nas últimas décadas, vem ocorrendo como conseqüência da busca do verde e da

fuga dos grandes conglomerados urbanos (RUSCHMANN, 1997). Aí, o meio

ambiente, o espaço natural se transforma em patrimônio cultural, com vistas ao

desenvolvimento sustentável da atividade turística. Considerando a tendência

moderna da interiorização territorial do fenômeno turístico, o município de Belmonte,

que integra a chamada Costa do Descobrimento, pode ser utilizado também para o

desenvolvimento de um turismo cultural urbano ou no espaço rural, onde o espaço

turístico é (re)criado como objeto de consumo, inclusive pelo seu valor simbólico

(CUNHA, 2001).

A partir dos anos 1980, a lavoura de cacau no vale do Jequitinhonha, como

em toda a região sulbaiana, tem sofrido os efeitos nocivos da vassoura-de-bruxa

(Crinipellis perniciosa), praga que vem provocando uma crise sem precedentes na

história da cacauicultura no Sul da Bahia. Assim, enquanto se aguarda a sua

recuperação e, a despeito dela, como saída para a crise e como forma alternativa de

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turismo, essas antigas fazendas de cacau poderão ser re-configuradas, dentro de

um leque de diferentes denominações: agroturismo, ecoturismo, turismo de

aventura, turismo cultural, turismo rural etc. Para tanto, é necessário o planejamento

desses espaços, dos equipamentos e das atividades turísticas para se evitar

possíveis danos sobre os meios visitados. Dentre os bens representativos da

cultura belmontense, no meio rural, podem ser destacadas antigas casas-sede, do

início do século XX, construídas nas seguintes fazendas: em Mogiquiçaba - Boa

Vista, São Francisco (casa com mirante), Conjunto Estrela do Sul e Humaitá

(estufa de cacau) - em Boca do Córrego.

Existe ainda uma Unidade de Conservação criada pelo Decreto Estadual n.

3.413/94, de 01 de setembro de 1994, a APA Santo Antônio, com área de 346 ha,

cerca de 2,5km após a sede do município, rumo sul, até a foz do rio João de Tiba,

que apresenta considerável diversidade de animais e vegetais.

As Praias

Embora seja incompleto qualquer inventário que se faça de recursos da

natureza, ao elencar aqueles que em Belmonte são considerados os mais

significativos, não se pode esquecer as praias, esses espaços que têm fascinado o

imaginário das pessoas ao longo dos tempos. No momento em que o turismo deixa

de estar simplesmente relacionado com sol, areia, mar e sexo, típicos do turismo de

massa, para dar lugar a equipamento, meio ambiente, entorno e acontecimento

(VALLS, 1996), a praia ainda é uma grande atração.

De modo geral, alguns ambientes naturais têm figurado de maneira

proeminente nos sonhos da humanidade de um mundo ideal: a floresta, o vale, a

ilha e, de forma especial, as orlas marítimas. Assim, as praias do “mar moreno” de

Belmonte em toda a sua extensão, com seu horizonte aberto para o mar, dão uma

sensação de segurança e, ao mesmo tempo, convidam à aventura.

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A Praia de Mogiquiçaba, onde se localiza uma antiga povoação de

pescadores, às margens da BA-001, encontra-se a 19 quilômetros de Belmonte, em

direção a Santa Cruz Cabrália, e é considerada ideal para a pesca esportiva. Na

linguagem indígena, Mogiquiçaba significa “pouso do rio das cobras”. Trata-se de um

dos litorais mais piscosos da região, com duas nascentes naturais, ricos

manguezais e com proximidade da Mata Atlântica.

A Praia do Rio Preto é deserta e sombreada por extensos coqueirais, em

frente a sítios particulares, e oferece boas condições para banho e caminhadas. A

Praia do Mangue Alto é propícia para banho e pesca de molinete, caminhadas e

prática do surf. Aí os visitantes podem observar a diversidade natural: brejo,

restinga, manguezais e coqueirais. A Praia do Pontal, ou Praia da Barra, situa-se na

foz do Jequitinhonha, onde ocorre o encontro do rio com o mar, com duas barras

formando uma ilha no meio, o que favorece o banho de mar e de rio. Essa ilha é

conhecida também como Praia do Meio e o acesso não é muito fácil. Um desafio

para quem gosta de aventuras. A Praia da Barra Nova é quase deserta e apresenta

uma bela paisagem em manguezais. É considerada boa para o banho no período

da maré baixa e adequada para a prática do surf, na maré alta. Também serve para

a prática da pesca de rede e de molinete, para captura do robalo e do camurim-açu.

A Praia do Peso, apesar de ser ideal para banho, é pouco freqüentada.

Belmonte é considerada a “capital do guaiamum”, porque o rio Jequitinhonha,

no período de cheias, transporta argila para as margens, o que vai proporcionar um

ambiente apropriado para o desenvolvimento desses caranguejos de coloração azul.

Na Praia da Costa, reta e extensa, encontra-se o Monumento ao Guaiamu, em

meio à extensão de areia repleta de coqueiros.

Segundo Margarita Barreto (1998), embora não haja um padrão universal

para determinar a capacidade de uma praia, o ideal seria 10m2 por pessoa, embora

em muitas praias este índice seja bem maior. Acredita-se que este seja o caso de

Belmonte. De qualquer forma, o planejamento de uma praia para o turismo envolve

a revisão de certos serviços considerados necessários: água, esgoto, energia

elétrica, telefone, sanitários, equipamentos desportivos, bem como serviços de

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vigilância, salvamento e primeiros socorros, estes considerados imprescindíveis. No

processo de urbanização, não se deve construir edifícios altos à beira mar nem

grandes construções que obstruam a passagem para praia nem contribuam para a

destruição da vegetação que impede o movimento da areia.

As Ilhas

Outro recurso natural que ocupa especial lugar na imaginação do homem e,

conseqüentemente, um fascínio especial sobre os turistas, é a ilha (SWARBROOKE,

2000; TUAN, 1980), seja por sua beleza natural, seja por seu isolamento geográfico,

o que pode melhor garantir a homogeneidade e preservação de suas culturas. A

ilha tem uma importância considerável por ocupar um lugar especial na imaginação

do homem. Simboliza um estado de inocência religiosa e de beatitude até, pelo seu

isolamento.

Os antigos gregos dependiam do mar e dos pequenos espaços de terra firme

e fértil para sua subsistência. Por isso, o mar, a terra fértil e as ilhas figuravam de

forma proeminente na sua imaginação. As ilhas eram as âncoras de segurança de

vida nas águas do oceano. A imaginação medieval colocou no Oceano Atlântico

grande número de ilhas, inclusive uma chamada Brasil. O cardeal Pierre d’Ailly

pensava que o Paraíso Terrestre estava localizado nas Ilhas da Fortuna em razão do

solo fértil e do clima excelente, e Ponce de Leon procurou a fonte da juventude na

Flórida, imaginando ser uma ilha. No final do século XV, a imaginação européia via o

Novo Mundo como um conjunto de ilhas-jardim. Talvez por força da imaginação, no

correr dos séculos, as ilhas tenham exercido, nos tempos modernos, tanto fascínio

para atrair os turistas (TUAN, 1980).

No contexto de Iararana , Sosígenes Costa, o poeta grego da Bahia, no dizer

de Gerana Damulakis (1996), utilizou-se da imagem de algumas ilhas do vale do

Jequitinhonha da Bahia para sua construção simbólica da saga do cacau. Dessas

podemos citar no município de Belmonte: Coroa do Capim, Coroa Grande, Coroa da

Palha, Genebra (ou Andorinhas), Ilha Grande (antigo QG de clavinoteiros), Maraú,

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Ilha do Albino, Ilha da Bacorinha, Ilha das Pombas, Ilha do Chaves, Ilha do Diogo,

Ilha do França, Ilha de Joaquim Gordo, Ilha do Maia, Ilha do Monte Alegre, Ilha dos

Coelhos, Ilha do Peso, Ilha do São Francisco, Ilha do Ubu, Ilha das Vacas e

Taquaras.

Aí, nesse espaço rural, pode se desenvolver uma considerável gama de

modalidades turísticas: agroturismo, ecoturismo, turismo de aventura, turismo

cultural, turismo rural, o que também poderá ser um agente motivador do trabalho

para as famílias originárias do campo. Por outro lado, especialmente nas antigas

fazendas, toda uma diversidade cultural poderá ser revitalizada para fins turísticos.

Essa memória do rio Jequitinhonha - os índios, o garimpo, o folclore, a religiosidade,

a saga do cacau com seus coronéis e clavinoteiros - forma um caldo cultural atrativo,

já que em Belmonte diversas ações humanas aconteceram, significados foram

construídos, os quais poderão ser expressos através de representações da

realidade daquilo que os registros da memória e os documentos, tanto particulares

como da administração pública, guardam desse passado secular.

Os Manguezais

Manguezais (Fig. 2) são o conjunto das comunidades vegetais costeiras,

típico das regiões tropicais e subtropicais, de clima quente. Desenvolvem-se nas

enseadas, estuários e lagunas de água salgada e tranqüila, avançando, às vezes,

pelas margens dos rios que deságuam no mar, até onde alcança a salinidade.

Apresentam flora e fauna típicas e são considerados os berçários dos mares porque

abrigam larvas de inúmeras espécies de peixes e crustáceos. Também

proporcionam a sobrevivência das comunidades humanas que vivem da venda e do

consumo de mariscos e pescados. Alimentam as áreas costeiras, fornecendo

nutrientes que vão fazer parte das cadeias alimentares, que resultam em peixes de

pequeno e grande porte utilizados na alimentação humana. Cerca de 70% da

população de peixes do mundo depende dos manguezais, podendo este índice

chegar a 97% em algumas regiões.

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FIGURA n.º 2

Aspecto de parte do manguezal de Belmonte

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O conjunto de manguezais, do Sul e extremo Sul da Bahia, localizado entre

os municípios de Valença e Mucuri, num total de aproximadamente 70 mil hectares,

representa mais de 80% das áreas de manguezais da Bahia. Desses, a maior parte

se encontra nos municípios de Canavieiras e Belmonte. É considerável o potencial

econômico desses ecossistemas, suas importância ecológica, turística, científica e

geomorfológica, além da contribuição direta para a manutenção de muitas famílias e

para a geração de receita e divisas para os municípios.

Conforme estudo realizado para a Secretaria de Turismo e Esporte da

Prefeitura Municipal de Canavieiras (1999), pelos biólogos Sara Maria Brito Araújo,

Anders Schmidt e Maurício Arantes, foram observados, nos manguezais dos

municípios de Belmonte e Canavieiras, os seguintes tipos de caranguejos, que são

os seres mais visíveis e os que maior interesse despertam:

• Guaiamum – Grande caranguejo de cor cinza-azulada que habita as

margens internas dos manguezais, em terra firme, em locas que podem

chegar até 9 metros de comprimento.

• Almofada – Pequeno caranguejo que vive somente sobre as árvores,

camuflando-se nas cascas e se alimentando de folhas. Suas pinças são

fracas, o que possibilita que ande até mesmo sobre o corpo humano sem

causar dano.

• Aratu – Caranguejo de exuberante colorido vermelho, negro e branco, que

costuma vagar pela lama na maré baixa, mas foge da água na maré alta,

escalando as árvores. Pode ser pescado com vara, amarrando folhas ou

carne na linha (sem anzol).

• Chama-maré – Pequeno caranguejo que cava buracos na lama ou na

areia. O macho apresenta uma das puãs desproporcionalmente maior do

que a outra. As fêmeas possuem as duas puãs pequenas. No período de

acasalamento, o macho executa uma coreografia com essa pinça para

atrair as fêmeas.

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• Siri-de-mangue – Como todos os siris, vive sempre dentro d’ água,

respirando como os peixes. É um carnívoro voraz, predador de pequenos

peixes, com dentes afiados em suas puãs.

• Caranguejo uçá – É o caranguejo mais utilizado na alimentação, sendo,

portanto, a espécie mais ameaçada. Sua cor varia de verde escuro ao

amarelo, confundindo-se com as folhas de mangue. Vive em tocas

cavadas na lama, saindo apenas para a reprodução ou para pegar folhas

de mangue, seu único alimento.

Para a conservação dos caranguejos nos manguezais, recomendam-se os

seguintes procedimentos para a sua captura: não capturar as fêmeas; 2) não

capturar caranguejos menores de 4,5 cm; 3)não capturar caranguejos no período de

andada; 4) não utilizar redes para captura. Levando-se em conta essas

recomendações, o envolvimento de pegadores de caranguejos na atividade de

ecoturismo possibilita interessante demonstração da arte de captura desses

crustáceos.

Também podem ser vistos outros bichos, como: ostras, lambretas e sururus,

moluscos utilizados na alimentação; gusanos, que perfuram a madeira; tamarus,

crustáceos que se assemelham ao camarão; garças (aves azuis e brancas), sabacus

(aves caçadoras noturnas) e guaxinins, mamíferos que se locomovem na lama e

capturam caranguejos.

Como os manguezais são áreas de preservação ambiental permanente,

nenhuma árvore deve ser cortada, nem a lama removida para facilitar o acesso ao

turista. Como o fundo dos manguezais é de lama, os transportes náuticos devem

transitar em baixa velocidade para evitar ondas impactantes, principalmente em

canais sinuosos.

Segundo o I Simpósio sobre Manguezais do Sul e Extremo Sul da Bahia

(1999), tem-se observado que a crescente ação antrópica sobre os manguezais

constitui um perigo eminente para a conservação desses ecossistemas. O êxodo

provocado pela agricultura regional nos últimos anos, a falta de consciência regional,

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a ausência de programas específicos para a preservação e controle exploratório, a

falta de estudos locais sobre suas potencialidades e de concessão de licenças para

o desenvolvimento de atividades sem os padrões exigidos pelo Estudo de Impacto

Ambiental, a omissão das políticas públicas municipais de zoneamento urbano são

fatores agravantes que conduzem uma boa parte de nossos manguezais a um

processo destrutivo que pode ser irreversível.

Embora o Sul da Bahia detenha um grande potencial de ofertas de recursos

da natureza para atividades ecológicas e turísticas, nos seus diversos segmentos,

detém, por outro lado, um complexo de problemas ambientais resultantes das

atividades que aí foram sendo desenvolvidas ao longo do tempo: extrativismo

vegetal, mineração, agropecuária, pesca predatória, reflorestamento (com a cultura

do cacau) e a expansão urbana. Todas estas atividades envolveram ações de

desmatamento e o uso inadequado dos solos e das águas, o que vem se refletindo

sob forma de impactos negativos nos ecossistemas regionais.

Até meados do século XIX, as modificações do sistema natural ocorreram

com baixa intensidade. A exploração desses ecossistemas estava relacionada com o

povoamento das áreas costeiras, onde as atividades econômicas se limitavam à

pesca nos estuários, praias e manguezais e ao extrativismo vegetal (madeira-de-lei,

piaçava e coco). Depois, o homem avançou um pouco para o interior, seguindo o

curso dos rios, onde desenvolveu culturas de subsistência: mandioca, cereais, café e

cana-de-açúcar.

A partir de 1860, intensifica-se a extração de madeiras nobres e expande-se a

plantação de cacau, situação que trouxe grandes modificações no sistema

ecológico, a partir de 1890, com a ocupação de novas extensões de terras para a

lavoura cacaueira e, paralelamente, com o desenvolvimento da pecuária bovina e

das culturas de subsistência nas áreas consideradas inaproveitáveis para o cacau

(BAHIA, PDRS – Sul da Bahia, 1997).

Falando sobre a necessária integração entre sociedade e natureza, Trevisan

(2000) procura destacar o inter-relacionamento existente entre os fatores antrópicos,

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bióticos e abióticos do meio ambiente. Nesse contexto, se a ação antrópica pode ser

benéfica ao ecossistema, também pode ser nociva pela degradação dos recursos

naturais, o que vai impedir ou reduzir o desenvolvimento de uma melhor qualidade

de vida humana.

Tomando como centro de suas reflexões as situações da região cacaueira do

Sul da Bahia, Trevisan, além dos riscos relacionados com os aspectos naturais do

meio ambiente, analisa os riscos sociais decorrentes do mau uso dos recursos da

natureza, o que pode prejudicar o desenvolvimento de uma gestão sustentável do

ecossistema como um todo.

Assim, como os ecossistemas e os recursos costeiros e marinhos podem se

deteriorar em função do desenvolvimento urbano e turístico, o desafio para os

gestores da administração pública é planejar e tornar possível o controle da

utilização dos recursos fornecidos pelo meio ambiente marinho. Então, os objetivos

do desenvolvimento poderão ser alcançados sem a simultânea degradação da

qualidade do meio ambiente e dos recursos naturais (CAVALCANTI, 1997).

Bens Representativos do Patrimônio Arquitetônico-Cultural de Belmonte

Belmonte é uma dessas pequenas cidades cuja riqueza cultural ainda não foi

devidamente valorizada. Aspectos históricos, artísticos, religiosos e ecológicos

podem ser percebidos por viajantes e pesquisadores, no contexto dessa realidade

sociocultural, o que pode resultar em um conjunto de eventos e atrativos voltados

para o lazer, como também produzir a interação entre pessoas das mais diferentes

origens e culturas.

De modo geral, a cultura belmontense é influenciada pela zona rural,

sobretudo em decorrência da lavoura do cacau que ali se desenvolveu a partir do

início do século XIX, cuja rusticidade pode conviver com os aspectos intelectuais e

artísticos urbanos, pela sua história e pelas relações externas que estabelece.

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A despeito de seu acervo cultural e histórico, Belmonte ainda se encontra

esquecida no tempo, sendo pouco freqüentada por nacionais e muito menos ainda

por estrangeiros (Tabelas 1, 2, 3). O patrimônio cultural belmontense está lá

esperando para ser visitado. Mas, primeiro faz-se necessária uma ação de caráter

político para tombamento (daquilo que deve ser tombado), restauração (daquilo que

precise ser restaurado) e preservação desse patrimônio, de acordo com as

orientações do IPAC, da SPHAN e de outros órgãos governamentais de proteção e

preservação.

Cada rua, cada praça, cada casarão é a representação simbólica da realidade

de um povo. Antigas praças, antigos casarões, antigas ruas, velhas esquinas por

onde ainda ressoam os passos dos coronéis e seus clavinoteiros, por onde ainda se

ouvem os dobrados das filarmônicas que desfilavam em competições nem sempre

tranqüilas, são fantasmas que emergem no cotidiano para alimentar a memória da

cidade, quando o patrimônio arquitetônico-cultural é reabilitado. Essas “velharias”

são o que Michel de Certeau chama de “cacos de histórias naufragadas” de uma

cidade invisível que irrompem na cidade visível, tornando-a confiável para abrir-se

aos seus visitantes.

As “velhas pedras” renovadas se tornam lugares de trânsito entre os fantasmas do passado e os imperativos do presente. São passagens sobre múltiplas fronteiras que separam as épocas, os grupos e as práticas. À maneira das praças públicas para onde afluem diferentes ruas, as construções restauradas constituem, de forma histórica e não mais geográfica, permutadores entre memórias estranhas (CERTEAU, 1996, p. 194, 195).

Tabela 01 – Turistas segundo o local da entrevista. Belmonte, Jan. 1999

Local Abs. % Estação Rodoviária 33 58,93 Posto Policial 23 41,07

Total 56 100,00

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Tabela 02 - Turistas segundo o país de residência permanente. Belmonte, Jan. 1999

País Abs. % Brasil 56 100,00 Outros -- --

Total 56 100,00 Tabela 03 - Turistas segundo o estado de residência permanente. Belmonte, Jan. 1999

Estado Abs. % Bahia 34 60,72 Rio de Janeiro 6 10,71 São Paulo 5 8,93 Minas Gerais 4 7,14 Espírito Santo 4 7,14 Distrito Federal 2 3,57 Alagoas 1 1,79

Total 56 100,00 Belmonte . UESC/NTT

Pesquisa de Turismo Receptivo/Bahiatursa Jan/99

Na Av. D. Pedro II, destacamos em meio à residência de antigos políticos e

coronéis do cacau: a sede da Sociedade Filarmônica de Belmonte, fundada em 15

de setembro de 1895 e a sede da Sociedade Filarmônica Lira Popular de Belmonte,

fundada em 08 de dezembro de 1914. Essas filarmônicas estavam vinculadas a

grupos políticos diferentes, o que ocasionou verdadeiros duelos, não apenas de

caráter artístico, como também com armas de fogo, por conta dos clavinoteiros que

defendiam suas facções políticas.

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Na Av. Rio-Mar se encontra o prédio da Prefeitura Municipal, construído em

1907 como residência do italiano José Paternostro. Cerca de 18 anos depois, foi

adquirido pelo Patrimônio Municipal, na administração do intendente Dermeval

Oliveira Viana, e adaptado para instalação da sede municipal.

Na Av. Mal. Deodoro, dentre outros, os antigos prédios: Instituto de Cacau da

Bahia, Banco Econômico da Bahia S. A. e Capitania dos Portos. Na Av. Beira Rio, o

Conjunto Comercial dos Wildberger, a Santa Casa de Misericórdia, Loja Maçônica,

sede do Sindicato dos Arrumadores de Belmonte, e a Praça 13 de Maio,

antigamente conhecida como a “Praça dos Gringos”, onde moravam algumas

famílias italianas do grupo Magnavita.

Outros componentes do patrimônio arquitetônico: Igreja Matriz de Nossa

Senhora do Carmo (Fig. 3), padroeira da cidade, que marca as origens da

Freguesia e é o símbolo maior da comunidade católica em Belmonte. O chafariz

(Fig. 4) importado da Europa (França ou Portugal) que está localizado na Praça

Manoel Veloso, e o Farol Belmonte.

O Farol Belmonte

É um dos atrativos integrantes do patrimônio cultural de Belmonte, que

desperta a atenção dos visitantes e que se constitui no monumento símbolo da

cidade, segundo o belmontense João Bartoli Schubach.

De acordo com o Serviço de Documentação da Marinha, o Farol Belmonte

teve duas torres, em três locais diferentes, todos na margem direita do rio

Jequitinhonha. A primeira torre, com altura de 13,25m, foi construída pelo mecânico

José Gomes Serpa e tinha um aparelho luminoso de 6a ordem, com alcance de

10 milhas náuticas. Foi inaugurada em 20 de maio de 1885.

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FIGURA n.º 3

Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo

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FIGURA n.º 4

Chafariz de Belmonte importado da Europa

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Com a necessidade de se aumentar o alcance luminoso e melhorar as

condições de sua estrutura, uma segunda torre e aparelho de luz foram

encomendados à França, em 1892. Esta nova torre, do sistema Mitchell,

inteiramente de ferro, com altura de 35 metros, foi construída sobre oito parafusos

roscados no chão, e dispunha de residências para faroleiros. Com um aparelho

luminoso de 3a ordem, mais potente, exibia um lampejo branco a cada 10

segundos, com alcance de 18 milhas náuticas. Foi inaugurada em 12 de outubro de

1901.

Em abril de 1905, a Diretoria de Faróis tomou conhecimento de que o mar

ameaçava derrubar a estrutura do farol e decidiu afastá-la cerca de 1500 metros

para sudoeste. As obras foram iniciadas em dezembro do mesmo ano e estiveram a

cargo do mecânico Alfredo Kurt Schulze. Essa segunda torre do sistema Mitchell foi

desmontada, remontada e re-inaugurada em 01 de maio de 1907. Desde então,

passou a exibir três lampejos de luz branca seguidos de um vermelho, à mesma

altura e com o mesmo alcance (Fig. 5, 6, 7, 8).

A torre do sistema Mitchell do atual farol Belmonte, rara, é a única do gênero no Estado da Bahia [...] São similares a ela, as dos faróis Salinópolis no Pará; Aracaju em Sergipe, desativada como farol, mas tombada pelo Patrimônio do Estado; Rio Doce no Espírito Santo; e São Tomé no Rio de Janeiro (MINISTÉRIO DA MARINHA, em 23 de maio de 1995).

Festejos religiosos

Bom Jesus dos Navegantes, em primeiro de janeiro, um dos mais

concorridos; São Sebastião, no período de 11 a 20 de janeiro (com Boi-Duro e

Contradança); as festas juninas (Santo Antônio, São João e São Pedro), a festa da

Padroeira Nossa Senhora do Carmo, cujos festejos são comemorados de 6 a 18 de

julho, sendo o ponto alto no dia 16, consagrado à santa, e a festa de São Vicente,

em 19 de julho.

O belmontense é um religioso típico, tradicional, que vai à missa e deposita

nos santos uma fé de significado absoluto. Para o turista, esses símbolos de

devoção religiosa têm um significado histórico ou cultural, mesmo sem perder de

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FIGURA n.º 5

FAROL DE BELMONTE

Reprodução de fotografia do Farol de Belmonte. Não há referência de autor e época. Presumível que seja da inauguração de sua primeira instalação na foz do Rio Jequitinhonha em 12/10/1901.

Fonte: Arquivo Carlos Burlacchini

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FIGURA n.º 6

FAROL DE BELMONTE

Reprodução de um cartão postal com fotografia do Farol de Belmonte, sem indicação de data, assentado em seu segundo sítio onde ainda se encontra e cuja reinauguração ocorreu em 01/05/1907.

Fonte: Arquivo Mariazinha Guerrieri

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FIGURA n.º 7

FAROL DE BELMONTE

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FIGURA n.º 8

FAROL DE BELMONTE

Fotografia atual (1999) do Farol de Belmonte na mesma localização para onde foi transferido em 1907.

Notar as mudanças sofridas em sua estrutura original: — perdeu a marquise da parte destinada para residência do faroleiro; — o vão livre no solo entre os pilares de sustentação, foi fechado com muro de alvenaria.

Foto: José Andrade

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vista o sentido religioso. É aí que os templos viram museus e os museus viram

templos (BRANDÂO, 1989, apud GIOVANNINI JÚNIOR, 2001).

Fora dos festejos religiosos, além do Reveillon (31 de dezembro), do Carnaval

(que até 1980 foi considerado o melhor do extremo sul da Bahia) e da festa cívica

do Sete de Setembro, o grande destaque são os festejos do Aniversário da Cidade,

em 23 de maio.

Cooper et al. (2001) entendem que não é possível desenvolver turismo sem

que ocorram impactos ambientais, mas é possível gerenciar o desenvolvimento

turístico de tal maneira que os impactos negativos sejam minimizados e sejam

estimulados os impactos positivos. Assim, as atividades turísticas decorrentes

desses recursos (da natureza e da cultura), se devidamente planejadas, podem

minimizar impactos ambientais e contribuir para o desenvolvimento sustentável,

com benefícios para a população local.

Por outro lado, um turismo desordenado pode ocasionar deterioração do

meio ambiente, destruição do patrimônio histórico-cultural, mudança da cultura

regional, além das questões de caráter econômico, como alta dos preços, redução

da oferta de produtos à demanda da população local e instabilidade no mercado de

trabalho.

Tanto a preservação do meio ambiente como a preservação, a recuperação e

a conservação do meio urbano devem se constituir em preocupação dos gestores do

turismo, seja na esfera pública ou privada. Com o incremento do turismo, a

expansão urbana, em conseqüência, pode trazer sérios problemas de ordem social:

crescimento desordenado, baixa qualidade habitacional, infra-estrutura deficiente,

falta de segurança, serviços de má qualidade etc., o que vai demandar esforços no

sentido da recomposição mínima e conservação do patrimônio cultural urbano e

suas estruturas.

Embora haja a tendência de se considerar o turismo como uma atividade de

caráter econômico apenas, talvez com base no fato de que seus efeitos econômicos

são mais evidentes, Beni (1998), Barreto (2001) e outros o consideram como um

fenômeno eminentemente social, porque

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só a observação do seu impacto na economia não basta para explicar e conter toda a complexa e múltipla importância na sociedade sob o rótulo de “econômico”. Pelo contrário, o Turismo é eminentemente um “fenômeno social” que, ao originar toda uma série de atividades, como transporte, alojamento, recreação e outras, as faz gerar outra série de efeitos sobre o meio ambiente em que se desenvolvem e que podem ser de caráter econômico, social, cultural e até ecológico (BENI, 1998, p. 107).

Assim, para que Belmonte possa desenvolver um turismo de baixo impacto

negativo, no meio ambiente e no seu patrimônio cultural, faz-se necessário, por parte

dos gestores da administração pública, um planejamento, no sentido de se

“estabelecer objetivos, definir ações e determinar as necessidades de recursos”

num processo contínuo, permanente e dinâmico, dentro dos princípios de um

desenvolvimento sustentável, que atenda aos interesses do presente, mas sem

descuidar das gerações futuras, dentro dos limites da capacidade de sustentação

dos sistemas ambientais (CAVALCANTI, 1997).

Nesse processo de planejamento do turismo, é preciso se desenvolver uma

política governamental voltada para os visitantes e também para os benefícios à

população local, que deve ser conscientizada sobre a necessidade de preservação

do seu patrimônio turístico-cultural. Para isso, deve haver a participação conjunta do

poder público e do setor privado com os instrumentos necessários à execução dos

objetivos propostos, levando em conta os seguintes serviços: serviços urbanos,

saneamento básico, sistema viário e de transportes, etc.

Os serviços urbanos são da competência da administração municipal,

indispensáveis à qualidade de vida e a todo empreendimento habitacional ou

empresarial: energia elétrica e iluminação pública, limpeza pública, transporte

coletivo, comunicação, abastecimento, conservação de logradouros públicos, e os

equipamentos e serviços gerais de infra-estrutura do turismo, incluídos aí os serviços

de preservação e conservação dos recursos da natureza e do patrimônio cultural,

preservação e conservação dos espaços culturais e recreacionais e de suas vias de

acesso, bem como equipamentos junto aos espaços culturais e de recreação com

grande concentração de público, como sanitários, bebedouros, vestiários, etc.

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Saneamento básico envolve as atividades e o controle dos fatores do meio

físico ocupado pelo homem, que possam causar mal-estar físico, mental ou social:

abastecimento de água; coleta, transporte e destino final do lixo; controle da

poluição das águas e do ar; higienização de habitações e dos locais de trabalho;

educação e recreação. Em princípio, de atribuição da administração municipal,

esses serviços podem ser desenvolvidos por outros setores da sociedade.

Os sistemas viários e de transporte são de vital importância para o

desenvolvimento socioeconômico de uma região e para a expansão e o

desenvolvimento do turismo, com especial atenção para o sistema rodoviário. Daí a

importância da ligação rodoviária Canavieiras-Belmonte, que vai colocar Belmonte

em ligação com todo o Brasil, levando-se em conta também o valor cênico da região

(Id. p. 108, passim).

Turismo, cultura e meio ambiente devem ser vistos de forma una e harmônica,

já que o ato de viajar não é simplesmente uma atividade materialista, mas também a

oportunidade de se vivenciar outras culturas e outros ambientes, a despeito dos

impactos decorrentes. É nesse contexto que entra a relevância da conscientização

da população para a importância da cultura e do turismo, numa ação de

reciprocidade, dentro de um planejamento que envolva todos os seus atores:

empresários do turismo, políticos, sindicatos, estudantes etc.

A cultura que foi formada às margens do rio Jequitinhonha foi o resultado de

um processo de aculturação, de adaptação pelo colonizador das culturas locais,

consideradas “inferiores”, adaptando-as a um padrão considerado “superior”. Foi

esse processo de aculturação que Sosígenes Costa procurou realçar através do

poema Iararana.

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THEOBALD, William F. Turismo global. Trad. Anna Maria Capcvilla et al. São Paulo: SENAC, 2001. TREVISAN, Salvador D. P. Sociedade-natureza: uma concreta e necessária integração. Rio de Janeiro: Papel & Virtual, 2000. TRIGO, Luiz Gonzaga Godoi. A sociedade pós-industrial e o profissional em turismo. Campinas: Papirus, 2000. TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. VALLS, Josep Francese. Las claves del mercado turístico: cómo competir en el nuevo entorno. Bilbao: Deusto, 1996. WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Trad. Luis Felipe Sarmento. Lisboa: Notícias, 2000.

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CAPÍTULO II

NOS ARCANOS DA MEMÓRIA

Quem não pode lembrar o passado não pode sonhar o futuro e, portanto, não pode criticar o presente (ROUANET, 1989).

Belmonte na Colônia

A história das sociedades humanas, nos últimos séculos, é a história da

expansão européia ocidental sobre outros povos, num processo de violência e

opressão. O mundo tem sido ordenado e reordenado nos termos dos interesses

europeus. Cada povo tem sido envolvido pelos ideais de riqueza e poder que

nortearam a onda de expansão européia, a partir da invasão mercantilista, para a

qual as terras descobertas são lugares existentes apenas para o benefício dos

“civilizados”.

Através da colonização, instalou-se no Brasil um sistema de trabalho não

assalariado, nas fazendas, que durou por muito tempo, e que se refletiu

posteriormente nas práticas políticas do povo brasileiro, cujas características gerais

podem ser sintetizadas como segue.

Havia o predomínio de uma camada de latifundiários, com interesses ligados

a grupos mercantis europeus, com força de trabalho que se constituía basicamente

de escravos. O escravo tinha, como alternativa, não a possibilidade de um regime

assalariado, mas a fuga para os quilombos. Quando alforriado, poderia ter uma

vida de subsistência como posseiro de pequenos sítios ou a condição de agregado,

o que aconteceu mesmo após a abolição da escravatura. A estrutura política girava

em torno dos interesses dos senhores rurais, com uma administração local exercida

pelas câmaras municipais, formadas pelos “homens bons”, os proprietários,

posteriormente, coronéis. No final do século XVIII, as câmaras perdem poder, com a

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nomeação dos juízes de fora, que se sobrepunham à instituição dos juízes eleitos

nas vilas.

As origens do processo que levou o país à independência estão ligadas ao

agravamento da crise do sistema colonial, que se percebe pelas revoltas do final do

século XVIII e início do século XIX. Tudo isto amparado nas idéias liberais da

independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789-1799).

Com a transferência da Corte para o Brasil, profundas transformações aconteceram,

as quais levaram à ruptura do pacto colonial.

Com a Independência, o mandonismo local pode afirmar-se através da

presença dos bacharéis nas assembléias provinciais, bacharéis que eram filhos da

aristocracia rural. O exercício da cidadania ficou limitado pelo Estado e pelo

esquema interno de forças, com a centralização administrativa que caracterizou o

Brasil-Império, em um sistema eleitoral censitário e indireto. O clero secular se

imprensava entre os senhores rurais e a Coroa à qual estava vinculado, econômica

e juridicamente, através do sistema de padroado.

No que se refere ao clero regular, as ordens religiosas, principalmente os

jesuítas, procuravam cumprir o projeto das missões junto aos índios, dentro da idéia

do papel cristianizador da expansão portuguesa. Posteriormente, esse exercício vai

acontecer apenas às margens do sistema, vindo a sucumbir à pressão dos

bandeirantes e à força do exército colonial, restando aos jesuítas a educação

humanística para os jovens de famílias privilegiadas.

A cultura letrada, rigorosamente estamental, não permitia a mobilidade

vertical, salvo os raros casos de apadrinhamento. O domínio das letras era

reservado a poucos e servia para estabelecer o marco divisor entre a cultura oficial

e a popular.

Pode-se resumir as considerações acima afirmando que o Brasil estava

vinculado, economicamente, aos interesses mercantilistas de escravos, de açúcar, e

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de ouro, e politicamente ao absolutismo reinol e ao mandonismo rural (BOSI, 1994,

passim).

Embora os primeiros contatos feitos pelos portugueses no Brasil tenham

ocorrido no Sul da Bahia – “entrou pela barra nadando do mar” (p. 22) – a região

permaneceu esquecida. A notícia do “descobrimento” foi recebida com pouco

entusiasmo, porque Portugal estava mais interessado no comércio com a Índia, já

que o país passava por grande necessidade de especiarias e metais preciosos.

Somente o pau-brasil despertou interesse.

No processo de colonização, o sistema de capitanias-hereditárias,

fracassado, resultou apenas em algumas povoações e vilas ao longo da costa.

Mesmo assim, essas povoações, às margens dos grandes rios, viviam isoladas,

entre um oceano de corsários – que muitas vezes entravam pela embocadura dos

rios para contrabandear madeira – e uma imensa floresta desconhecida, com

animais selvagens e índios.

No começo do século XVIII, foi criado um aldeamento de índios do grupo

Kamakan, chamados botocudos, que foram catequizados pelo padre jesuíta José

de Araújo Ferraz, responsável pela construção de uma capela sob a invocação de

Nossa Senhora da Madre de Deus, na foz do rio Jequitinhonha. Um povoado aí se

formou com a presença de colonos que passaram a ter uma convivência mais ou

menos pacífica com os índios aldeados - São Pedro do Rio Grande (BARROS, 1916;

MONTEIRO, 1918).

Pouco tempo depois, em 1718, foi criada a freguesia, pelo então arcebispo da

Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide, com a denominação de Freguesia de Nossa

Senhora do Carmo do Belmonte. Em 1764, o povoado foi elevado à categoria de

vila, cuja instalação aconteceu a 23 de junho de 1765, sob a presidência do Ouvidor

Geral de Porto Seguro, Tomé Couceiro de Abreu (1763-1765).

O emprego do nome Belmonte decorre de uma instrução do governo

português a Tomé Couceiro de Abreu, no sentido de substituir antigos nomes das

povoações da comarca por outros de cidades ou vilas do Reino. Belmonte é o

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nome de uma antiga vila de Portugal, onde nasceu Pedro Álvares Cabral, nome

relacionado à mítica do descobrimento. Mesmo depois de instalada a vila, a

nomenclatura se apresenta de forma variada em diversos documentos municipais,

como Rio Grande de Belmonte, Villa de S. Pedro de Belmonte, e em escrituras

publicas e notas de tabeliães, aparece Villa do Rio Jequitinhonha de Belmonte

(BARROS, 1916; MONTEIRO, 1918).

Os colonos da ex-capitania de Porto Seguro, agora comarca – com sua

incorporação à Coroa, em 1761, após a expulsão dos jesuítas, de Portugal e do

Brasil, pelo Marquês de Pombal, continuaram desenvolvendo suas atividades

agrícolas, com o plantio de cereais (arroz, feijão e milho), cana-de-açúcar

(atividade iniciada por Caetano Vicente), mandioca e batata, na região do baixo

Jequitinhonha. Também criavam galinhas, bois, ovelhas, porcos, e burros, “as raças

mais úteis e rendosas, respeita a linha dos escravos, porque, como animaes de

maior valor, tinha-se aos pobres homens escravisados” (MONTEIRO, 1918, p. 20).

Desde os primeiros anos da colonização que o movimento bandeirante seguiu

pelo rio Jequitinhonha na exploração de riquezas minerais e na conquista dos índios.

Possivelmente, a primeira foi a de Francisco Braza Spinosa, que vinha do Peru com

larga experiência na busca de metais, e partiu a 13 de junho de 1553; outra, a de

Sebastião Fernandes Tourinho, sobrinho do donatário de Porto Seguro, em 1573 ; a

de Lucas de Freitas, em 1724, “que saiu a descobrir esmeraldas pelo Jequitinhonha

abaixo”; a de Sebastião de Leme, em 1733, que encontrou sinais de ouro, já

descobertos por João Gonçalves do Prado, na mata “que medeia entre os rios

Pardo e Jequitinhonha”; a de Sebastião Senret (1737), que facilitou as expedições

de Pedro Leonino de Mariz (1752) e do padre Albano Pereira Coelho, “em busca de

esmeraldas” (FREIRE apud MONTEIRO, 1918, p.22 passim).

Além destas, outras expedições percorreram os sertões, através do

Jequitinhonha, onde diversos grupos de aventureiros procuravam encontrar uma

serra resplandecente, também conhecida por Serra Amarela e Sol da Terra porque,

segundo as notícias que corriam, jorrava ouro dessas serras para dentro do rio. Os

jorros de ouro não foram encontrados, mas desvendaram grandes áreas dos sertões

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e subjugaram índios selvagens que, cada dia, mais se revoltavam contra a invasão

de suas terras.

Apesar de muitas pessoas terem ficado ricas nas atividades mineradoras, a

povoação de Belmonte sofreu um grande atraso, porque ficou esvaziada pela

ausência de homens, que se infiltravam nos garimpos em busca de ouro e metais

preciosos, ao longo do Jequitinhonha.

Por questões de ordem estratégica, os bandeirantes alistavam índios

domesticados, porque, conhecedores dos terrenos e dos costumes das selvas, iriam

contribuir para as conquistas de metais preciosos e dos moradores selvagens. A

pacata vila de Belmonte, em vez de pouso sossegado dos colonos, transformara-se

em valhacouto dos mineradores.

Contra essas atividades mineradoras, a Coroa tomou providências no sentido

de que suas riquezas não se esvaíssem. A mineração particular foi proibida e

divisões militares foram colocadas para impedir os mais ousados. O governo tomara

a iniciativa de construir novas estradas, ligando povoados, vilas e cidades, e de

estabelecer agências de correio, conhecidas como Paradas, em diversos lugares,

no ano de 1777, a fim de facilitar a comunicação. Depois, resolveu extinguir as

Paradas a fim de dificultar o trabalho dos mineradores, além de estabelecer multas,

confiscos e denúncias.

Por volta de 1802, José e Gaspar Dantas Coelho, junto com o capitão-mor

das ordenanças de Porto Seguro, Mariano Manoel da Conceição, envolveram-se

em atividades de mineração, extraindo ouro e diamante, “e venderam muitos kilos

ao Capitão de um Brigue Inglez, Thomas Lindley, em contrário às ordens regias”

(BARROS, 1916, p. 48), o que motivou uma devassa de que resultou a prisão dos

transgressores e processo para o Ouvidor da Comarca.

Os garimpeiros usavam de todo expediente para transportar o contrabando:

nos cabos das facas, entre os forros das cangalhas ou no meio de outras

mercadorias dos mascates. Mas a pressão do governo foi muito grande e, depois de

muitos anos, conseguiu isolar a zona mineradora do Jequitinhonha.

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Nesse momento, as terras da antiga capitania, agora comarca de Porto

Seguro, são distribuídas pela Coroa, em forma de sesmarias, para incrementar a

colonização e o povoamento das áreas costeiras. Essas sesmarias, ordinariamente,

tinham “1 légua de largo por 3 de comprido, com todas as águas e logradouros

úteis” : Pauaçu, a Manoel Gomes da Cruz, por Alvará de 8 de abril de 1771; outra a

José da Silva Mein, por Alvará de 4 de setembro de 1772 (Ibid., 1918, p. 19).

Com a restauração das agências ou Paradas7 (Fig. 9), o governo concedeu

novas sesmarias: a José Pereira dos Santos (20 de novembro de 1795), a Domingos

Pereira dos Santos (15 de março de 1796), a José da Silva Meira, a Manoel José

Joaquim, “no lugar chamado Pocassu” (Ibid. p. 32). Em 1820, sesmarias de meia

légua em quadra: a José Tomás Boca Seare e a José Lino dos Santos Coutinho,

Francisco José de Souza Castro, entre os rios Jequitinhonha e Salsa; a Antônio da

Costa Coelho, a Domingos José Monteiro da Silva e a José Dias Lopes, nas

margens do Jequitinhonha (BARROS, 1916).

Muitas povoações foram se formando nesses lugares, como Mugiquiçaba,

Quartéis Velhos e Cachoeirinha, onde foi instalado o Destacamento dos Arcos,

criado por decreto de 21 de novembro de 1813, por representação do ouvidor de

Belmonte, José Marcelino da Cunha, para “pacificação” dos índios, no governo de D.

Marcos de Noronha e Brito, 8o Conde dos Arcos, governador da Bahia (Id. p. 44).

Esse governador também promoveu a navegação no rio Jequitinhonha e criou

novos destacamentos. D. Francisco de Assis e Mascarenhas, Conde da Palma, que

o sucedeu, último governador da Bahia antes da Independência, deu

prosseguimento a essas atividades e incrementou as relações comerciais com Minas

Gerais. Era o Estado intervindo para estabelecer a ponte entre a sociedade nacional

e a regional, “atuando no sentido de ver reproduzido o conjunto das relações sociais”

(GUERREIRO DE FREITAS, 2000, p. 25).

Em razão das pressões do governo contra os garimpeiros do vale do

Jequitinhonha, as atividades mineradoras foram diminuindo no transcorrer das

primeiras décadas do século XIX. Muitos que haviam saído de Belmonte retornaram

7 Agência de Correios e lugar de troca das tropas de carga.

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FIGURA n.º 9

Pouso de uma tropa

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à vila e se dedicaram ao cultivo da terra, plantando cafeeiros e coqueiros, atividades

que não tiveram expressão econômica. Mesmo assim, em menor escala, a

mineração no vale do Jequitinhonha se estendeu por muitos anos.

Belmonte no Império

Com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil e a conseqüente abertura dos

portos, a partir de 28 de janeiro de 1808, os produtos da terra não se limitaram,

como antes, ao exclusivo abastecimento do país, mas puderam ser exportados para

outros lugares. Mesmo assim, as atividades agrícolas, no Sul da Bahia, tiveram um

desenvolvimento lento por um período de aproximadamente 50 anos. Somente a

partir de 1860 passam a ganhar relevância, com o incremento da lavoura cacaueira,

em termos econômicos. Belmonte é assim o terceiro município baiano a desenvolver

a cultura do cacau, depois de Canavieiras e Ilhéus (MONTEIRO, 1918).

A importância do rio Jequitinhonha sempre foi reconhecidamente notória desde os nossos tempos coloniais, em que o governo da metrópole considerava o dito rio um manancial de riquezas;mandando no princípio desde século coloniza-lo;nomeando comandante para as colônias e mais expedições a Julião Fernandes Leão, que abriu estradas, fundou núcleos, estabeleceu postos militares, criou presídios e aldeias e fundou a 10 de fevereiro de 1814 a importante posição estratégica do Salto Grande, divisa da Bahia e Minas, onde colocou muitos índios, colonos e um destacamento de 20 praças para impedir o passo aos botocudos (AGUIAR, 1979, p. 277).

O cacau que veio do Pará para Canavieiras, em 1746 – segundo tradição

corrente - sendo plantado na fazenda Cubículo, de Antônio Dias Ribeiro, chegou

também a Belmonte, vindo a ser sua principal sustentação econômica a partir de

1860. Como consta no capítulo I, a expansão da lavoura cacaueira, no município de

Belmonte, foi rápida, o que resultou no reflorescimento da vila e estimulou uma

grande imigração de brasileiros oriundos do norte da Bahia e de Sergipe, norte-

americanos e europeus – alemães, franceses, norte-americanos, suíços e,

principalmente, italianos, o que também motivou consideráveis mudanças sociais.

Outro fator que contribuiu para a dinamização da economia regional foi a

decadência da mineração em Minas Gerais. A criação de gado então se apresentou

como alternativa para a ocupação dessa mão-de-obra excedente. A mobilidade do

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gado favorecia o deslocamento em busca de mercados consumidores que também

pudessem fornecer outros produtos de subsistência. Tudo isto contribuiu para

acelerar o desenvolvimento da vila e do município de Belmonte. O comércio aí se

desenvolveu, especialmente com a província de Minas Gerais, através do rio

Jequitinhonha, elemento de integração entre as duas províncias, ao longo do qual se

fizera mineração de metais e pedras preciosas, acima do Salto Grande, em território

mineiro.

Posteriormente, foram construídas estradas ao longo dos cursos d‘água, o

que ajudou a configurar, no Sul da Bahia, uma nova espacialidade, independente

de Salvador, onde os laços com os estados vizinhos se desenvolveram e se

tornaram mais fortes, num processo de mistura cultural. “Essas relações,

perceptíveis no econômico e social, avançaram para o político e cultural. Nessas

fronteiras, os baianos falam, vestem e comem muito mais parecido com o vizinho

mineiro...” (GUERREIRO DE FREITAS, 2000, p. 34).

Outra atividade que também se desenvolveu nesse período foi a extração de

madeira de lei para exportação, o que contribuiu para a degradação da mata

atlântica, nesse espaço como em outros tantos da costa brasileira. Das matas de

Cachoeirinha e Poaçu, onde foram estabelecidos os principais cortes de madeira,

os troncos eram transportados pelo rio, por meio de balsas, até os lugares

chamados Franquia e Peso-do-Pau, próximos à foz do Jequitinhonha, onde eram

embarcados.

Borges de Barros em sua Memória esclarece que, a exemplo do que se fazia

em Santa Cruz, Porto Seguro, Jacarandá, Comandatuba, Mogiquiçaba e em outros

locais, “nas margens do Jequitinhonha, abrem-se, a torto e a direito, num ímpeto

devastador, cortes de madeira, quase sempre em terrenos devolutos e pertencentes

ao Estado” (BARROS, 1916, p. 36).

As estradas, que favoreciam as relações comerciais de Belmonte com a

província de Minas Gerais, eram mantidas transitáveis por meio dos escravos da

Nação, os quais se achavam divididos em dois grupos: um no Poaçu e outro em

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Cachoeirinha. Esses grupos, controlados por feitores, garantiam o trânsito das

boiadas e das tropas de animais que conduziam mercadorias.

A partir de 1870, houve um grande interesse pela navegação do

Jequitinhonha, o que foi incrementado através de contrato celebrado pela Província

da Bahia, inicialmente com George Adolpho Stolz, Christovam Retberg e John Blay,

e depois, em 1875, após rescisão do primeiro contrato, com o deputado Manoel

Ernesto de Souza França e Christovam Reitberg. Pela costa, já havia sido concedido

privilégio à Companhia Bahiana de Navegação através do Decreto n. 1.038, de 30

de agosto de 1852 (BARROS, 1916; MONTEIRO. 1918). Era a revolução da

navegação, que ocorrera na Europa desde 1830, com a substituição dos navios

movidos a pano pelos movidos a vapor, que chegava ao sul da Bahia e que iria

contribuir para a sustentação de toda a história do século XIX, reconfigurando os

processos de produção (WARNIER, 2000).

Segundo o imperfeito censo da época, Belmonte contava com uma população

de 4.323 pessoas, das quais 462 eram escravos, o que significa um pouco mais de

10% dos belmontenses, abaixo da média brasileira que era de 15% e abaixo ainda

da média baiana que era de 12,16% (Quadros I e II).

Foi termo da Comarca de Porto Seguro até 28 de maio de 1873, quando

passou para a Comarca de Canavieiras. A expansão da lavoura cacaueira, a

aquisição de novas propriedades agrícolas, inclusive por parte dos imigrantes

europeus (alemães, franceses, italianos), que vieram em busca de terras fáceis, a

extração de madeiras de lei, os resíduos da mineração, tudo favoreceu o

desenvolvimento de atividades forenses, ações cíveis e criminais.

A vila de Belmonte passa então a reivindicar melhoramentos ao governo da

Província, principalmente o estabelecimento de escolas de instrução primária

(fundamentais). O atendimento às vilas e pequenas cidades, por parte do governo

provincial, estava relacionado com o número de eleitores e o poder de barganha dos

seus representantes, os coronéis. Havia dois níveis de eleitores: o eleitorado geral

ou paroquial e, dentre este, o eleitoral especial ou provincial.

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A vila era governada pela Câmara Municipal que, de acordo com o artigo 24

da Constituição de 1824, exercia um poder de natureza exclusivamente

administrativa. As posturas municipais, que tratavam da ordem e da saúde pública

tinham que ser aprovados pelo Conselho Geral da Província, e qualquer “ato

político”, como vender, permutar ou alugar bens do município, dependia da

autorização do presidente da Província. As questões relacionadas com

desapropriações, repartição de impostos municipais e provinciais, nomeação de

funcionários municipais, salários, criação e supressão de cargos eram de alçada da

Assembléia Provincial. O poder do Império, em todas as suas instâncias, era

autoritário e centralizador.

Se fosse nos dias atuais, com uma população de aproximadamente 5.000

pessoas, Belmonte teria cerca de 2.500 eleitores. Naquela época, quando o voto era

censitário, analfabetos e mulheres não votavam, e o índice de analfabetismo era

muito alto, eram raros os homens que podiam ser eleitores, ou mesmo exercer um

cargo público, “o que facilitava o domínio de uma oligarquia sobre o conjunto da

população livre” (MATTOSO, 1992, p. 258, passim).

Quadro nº 1

POPULAÇÃO BRASILEIRA – 1872

Escravos

15%

Livres

42%

Ex-escravos

43%

Apud SCHIMDT, Mário Furley. Nova História Crítica do Brasil 500 anos de História malcontada. São Paulo; Nova Geração, 1997.

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Quadro nº 2

POPULAÇÃO LIVRE E ESCRAVA NA PROVÍNCIA DA BAHIA – 1872

População Livre

1.211.972 87,84%

População Escrava

167.824 12,16%

Total

1.379.796 100,00%

Fonte: LYRA, Colonos e Colônias; 1982.

No período de 1876 a 1878, o eleitorado geral contava com um pouco mais

de duzentos eleitores. Dentre esse, formavam o eleitoral especial: Cap. José Gomes

de Oliveira, Ten. Ignácio Manoel da Conceição, Vigário Ignácio Alexandrino Borges,

Ten. Severiano Tiburtino Portella, Major Fernando da Cunha Melo, Frontino Eunapio

da Conceição, Ten. Antônio Furtado dos Reis, Trajano Rosa de Salles, Ramiro

Fernandes dos Santos, Antonio Joaquim da Silva Bittencourt e Antônio Joaquim da

Encarnação. Destes, apenas quatro não faziam parte da Câmara de 1876 a 1880, o

que evidencia o caráter oligárquico de dominação.

Nesse tempo, foram realizadas as seguintes obras que permaneceram por

muitos anos: estação telegráfica inaugurada em 19 de fevereiro de 1880, a criação

da Freguesia de N. S. da Conceição da Cachoeirinha do Baixo Jequitinhonha, por

força da lei de 6 de agosto de 1881, e a inauguração do Farol Atalaia, em 1885, que

foi substituído em 1900 pelo farol atual, do sistema Mitchell, trasladado para o local

onde hoje se encontra, em 12 de outubro de 1901.

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Belmonte na República

Com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, a Câmara

Municipal de Belmonte encaminhou ao Governador do Estado da Bahia a seguinte

mensagem:

Tenho a satisfação de communicar a V. Exa. não só que a Câmara em sessão solemne hoje adherio unanimemente ao regimen republicano e jurou fidelidade ao mesmo juntamente com vários funccionarios públicos, como ainda ficou unanimemente deliberado que se felicitasse em seu nome e do Município a V. Exa. pela acertada escolha de tão distintco cidadão para dirigir o governo deste Estado. Enthusiasmo geral com as deliberações da Câmara. Sessão muito concorrida. Paz e harmonia completas. Wencesláo de Oliveira Guimarães, Presidente da Câmara Municipal (BARROS, 1916, p. 32).

A antiga Câmara funcionou até 31 de abril de 1890. Com a posse de Dr.

Manoel Victorino Pereira como Governador do Estado, foi nomeado o primeiro

intendente de Belmonte e o Conselho Municipal, em 15 de abril de 1890, que ficou

assim constituído: Intendente – Bel. Francisco Ferreira Pinto Lobão; Vice-intendente

- Manuel Maria de Andrade; Conselheiros - Elpídio Paschoal Amâncio da Silva

Camelyer; Eugenio de Sant’Anna Amorim, Licinio Guerreiro da Silva, Antonio Maria

de Mello e Manoel Domingues Mendes.

Por conta das atividades econômicas – especialmente a lavoura do cacau e a

extração de madeira – e do poder político dos coronéis, a vila de Belmonte foi

elevada à categoria de cidade, em 23 de maio de 1891, através do Ato assinado

pelo governador José Gonçalves da Silva, nos seguintes termos:

1a S. n. 386 – Acto. O Governador do Estado resolve, pelo presente Acto, elevar a Villa de Belmonte à catagoria de Cidade. Palácio do Governo do Estado da Bahia, 23 de Maio de 1891. José Gonçalves da Silva. Conforme. O Secretário Manoel Pedro de Resende. Confere. A. Rocha.

Muita coisa aconteceu a partir daí: a jagunçada organizada a serviço de

grupos dominantes no município, para manutenção das relações de poder, tanto na

esfera política como na econômica; movimentos culturais, tais como: ampliação de

escolas, criação de jornais, loja maçônica, agremiações literárias e sociedades

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filarmônicas, que se faziam presentes tanto nas atividades culturais-recreativas,

como também nos acontecimentos políticos.

Foi então nomeado um novo Intendente e um novo Conselho, os quais

tomaram posse em 15 de junho de 1890: Intendente – Cel. José Gomes de Oliveira.

Conselheiros: Dr. Demócrito de Bittencourt Calazans, José Pereira Barbosa Jr.,

Flameano Gaudêncio Leal do Bonfim, José Ferreira de Souza, Licínio Guerreiro da

Silva. Novos horizontes se descortinavam para Belmonte, a partir da iluminação

pública, de melhor qualidade, e da criação de novas escolas. Com o advento da

República, já não havia mais distinção entre o eleitorado, que chegava a 600

eleitores, e a Igreja Católica Romana não era mais a religião oficial do Estado.

O desenvolvimento da lavoura cacaueira e, conseqüentemente, a migração

de pessoas de várias partes do Brasil e da Europa, criaram uma instabilidade social

nos diversos setores da economia e da política, o que levou os fazendeiros

(coronéis) a organizarem uma polícia particular para defender sua honra, sua família

e sua propriedade – os jagunços clavinoteiros8. Nessa sociedade competitiva e

instável, a violência fazia parte do cotidiano, como uma necessidade imperiosa.

Assim como o jagunço sertanejo, o clavinoteiro era o braço armado do coronel do

cacau, e tanto podia ser um trabalhador da fazenda como fazer parte de um grupo

armado, sob sua proteção e em troca de eventuais serviços.

A cada alteração do controle hegemônico dos partidos políticos, no Brasil, a

violência estava presente, tanto em forma de vingança aos desafetos, quanto como

manifestação de poder. Os chefes locais precisavam mostrar seu valor aos chefes

maiores, controladores da política na província – os donos do poder. Para tanto,

chefes de bandos armados, verdadeiros condottieri do cacau, “faziam a terra

tremer” no serviço da vendetta, que complementava os grandes debates, tanto na

tribuna como nos jornais, nos grandes centros urbanos (PEIXOTO, 1933). No final

do século XIX além do cacau, ainda se cultivava mandioca, cana-de-açúcar (em

decadência, com relação ao cacau), café e cereais.

8 Homens armados de clavinotes, a serviço dos coronéis.

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A onda de violência, que fez de Belmonte o palco dos clavinoteiros, acentuou-

se logo nos primeiros anos após sua elevação a cidade, tendo como quartel general

o distrito de Ilha Grande, na administração do Cel. José Gomes de Oliveira. Este é

um assunto que será mais bem explanado no capítulo III.

Canoeiros e Tropeiros

Toda a comunicação e o transporte de mercadorias eram feitos por via fluvial

ou pelas estradas que eram abertas para o tráfego das caravanas de animais de

carga, conhecidas como tropas. Dessas atividades surgiram duas figuras típicas do

vale do Jequitinhonha: o canoeiro e o tropeiro.

Grande parte do transporte fluvial era feito através de canoas - pequenas

embarcações feitas com tronco de madeira escavado - que transportavam

mercadorias e passageiros. Tinham, próximo à extremidade traseira, uma cobertura

de couro ou de lona, onde a tripulação se abrigava. Aí também os canoeiros

levavam um pequeno fogão para cozinhar os alimentos: feijão com carne do sol e

farinha. O controle e a condução da canoa eram feitos pelo canoeiro, caboclo forte

e treinado, através da zinga, lugar onde o remo tem função de leme, na popa da

embarcação. Na proa, à frente, um ou dois auxiliares ajudavam o zingador,

impulsionando a canoa com varas apoiadas no peito, na cadência das passadas.

Nos lugares em que a profundidade do leito do rio não permitisse o uso de varas, o

canoeiro da popa fazia o trabalho sozinho. Algumas dessas canoas chegavam a

transportar 6 toneladas de mercadorias.

Tropeiros eram os condutores das caravanas de animais de carga, mais

conhecidas como tropas. A organização das tropas surgiu em decorrência do

comércio entre as províncias de Bahia e Minas Gerais e ao longo desse percurso,

com as populações ribeirinhas.

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A tropa era uma instituição de grande importância, numa época em que não

se cogitava em rodovias, e os tropeiros eram os agentes de notícia e informações.

A chegada e a partida desses homens marcavam os dias, as horas e até mesmo os

anos, determinando o tempo no cotidiano das cidades e vilas (GUERREIRO DE

FREITAS, 2000). Era formada por um comboio de animais de carga que poderia ser

dividido em lotes, a depender da quantidade de animais, e conduzida pelo tropeiro

tocador, o tropeiro-chefe que, normalmente, era o proprietário da tropa. Com uma

chibata de couro trançado, calçado de alpercatas ou mesmo descalço, chapéu de

couro ou de palha, o tropeiro-condutor conduzia sua tropa com experiência e

sabedoria.

A passos lentos e cadenciados, os animais se deslocavam e seguiam a

madrinha, que ia à frente do comboio, enfeitada com fitas, chapas de metal,

pequenos guizos e um cincerro9 ao pescoço, chamando a atenção. Sua função era

servir de orientação aos outros animais e facilitar a reunião da tropa e o seu

descanso.

A viagem era longa e poderia durar vários dias. Os tropeiros se acomodavam

em propriedades de fazendeiros conhecidos. Com o carregamento protegido por

pedaços de couro ou de lona, a tropa descansava nas Paradas ou pontos de apoio,

e seguia viagem no outro dia cedo. Até pouco tempo, existia em Itapebi, antigo

povoado de Pedra Branca, um lugar chamado o mercado da tropa (STOLZE, 2003).

Protestantismo

A liberdade de culto era, teoricamente, garantida aos cidadãos brasileiros,

através do artigo 5 da Constituição de 1824. Contudo, o artigo 179 restringia essa

liberdade no que se referia ao Estado e à moral pública, o que favorecia todo tipo de

repressão, porque a lei não esclarecia o que era “respeito ao Estado” ou “ofensa à

moral pública”, ficando a interpretação ao arbítrio da administração policial. Ao

reafirmar que a religião católica apostólica romana continuaria a ser a religião oficial 9 Campainha que se pendura ao pescoço da “madrinha”, besta de carga que serve de guia às outras.

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do Império do Brasil, a Constituição permitia o culto doméstico das outras

confissões religiosas, mas proibia a construção de prédios com forma exterior de

templos com torre, sino ou cruz.

Os primeiros protestantes a chegarem ao Brasil, no século XIX, foram os

colonos alemães, que para aqui vieram em 1826, entre outras finalidades, para

branquear a população brasileira, de acordo com as teorias racistas em voga na

Europa. Contudo, vale salientar que esses luteranos (na sua maioria) eram filhos da

imigração e não da evangelização. Em termos de evangelização, os

congregacionais chegaram em 1855, os presbiterianos em 1859, os metodistas a

partir de 1867, os batistas em 1871, os episcopais em 1889 (CÈSAR, 2000) e os

adventistas em 1895.

Kátia Mattoso (1992) coloca os metodistas americanos como os primeiros a

chegarem ao Brasil para o trabalho de evangelização no século XIX. Isto parece

estar em desacordo com o que foi exposto acima, mas a aparente discordância é

explicável: os metodistas começaram seus trabalhos, de fato, em 1835; um trabalho

que não foi adiante, interrompido em 1841, e somente retomado em 1867, quando

congregacionais e presbiterianos já estavam definitivamente instalados.

De todas as confissões protestantes que procuraram se estabelecer no Brasil,

os que primeiro alcançaram sucesso, na obra evangelizadora, foram os

presbiterianos, oriundos dos Estados Unidos. Em 1859, o missionário Ashbel G.

Simonton (1833-1867) foi enviado ao Brasil pela Igreja Presbiteriana dos Estados

Unidos, antes da divisão motivada pela guerra civil.

Com a Constituição de 24 de fevereiro de 1891, a Igreja Católica Romana

deixava de ser a religião oficial do Estado, o que abriu oportunidade para os

movimentos evangélicos protestantes e provocou a revolta do clero católico. Até

então, a igreja dominante era menos tolerante com as manifestações cultuais dos

protestantes do que com os cultos afro-brasileiros, já que esses não representavam

ameaça por serem os últimos na hierarquia social. Em Belmonte, o líder dos clericais

e monarquistas era o Padre Antonio Francisco da Hora, que encetou enérgica

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campanha contra a candidatura ao senado, de Rui Barbosa, “republicano do dia

seguinte”, como se autodenominara, e simpatizante do movimento protestante.

Enquanto o protestantismo era uma religião cristã, de brancos, e dominante

em países da Europa e na América do Norte, o culto afro-brasileiro era pagão,

praticado por escravos, ex-escravos ou seus descendentes. O protestante tinha uma

mensagem semelhante à católica, mas que apontava outro caminho de salvação,

com doutrina e prática mais atraentes, enquanto o culto afro-brasileiro era

considerado ofensivo à moral pública.

Ao chegarem em uma comunidade, os missionários protestantes se

preocupavam também em estabelecer escolas, alfabetizar a população para que ela

pudesse ler a Bíblia e decidir a respeito de sua conversão. Com métodos

pedagógicos diferentes dos católicos, os protestantes trabalhavam em cima da

alfabetização no meio rural. Na cidade, o ensino era centrado, além da Bíblia, em

literatura, ciências, poesia, música e trabalhos manuais. Era uma educação que

reproduzia, de certa forma, os modelos da ideologia norte-americana –

individualismo, liberalismo e pragmatismo (MATTOSO, 1992).

A primeira notícia que se tem de evangélicos protestantes na região

cacaueira data de 1876, quando houve um casamento de presbiterianos norte-

americanos na fazenda Barreiras, no município de Canavieiras. Esses norte-

americanos vieram em busca de terras, no Sul da Bahia, em razão da Guerra Civil

Americana (1861-1865) e suas posteriores conseqüências.

O trabalho de evangelização foi desenvolvido por meio dos missionários

William Alfred Wadell (1862-1939) e Henry J. Mc-Call (1868 - ?), primeiro em

Canavieiras e logo depois em Belmonte, no final do século XIX e inicio do século XX,

de sorte que em 1906, a igreja foi organizada em Canavieiras e, em 1909, foi

lançada a pedra fundamental do templo, sob a administração do Rev. Salomão

Barbosa Ferraz (1880-1969). Pouco tempo depois dos presbiterianos, os batistas

também se instalaram em Belmonte, em 1907, através da evangelização do

missionário norte-americano Robert E. Pittigrew (MONTEIRO, 1918).

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Grêmio Literário Castro Alves

No contexto das transformações que marcaram a cidade de Belmonte, no

final do século XIX, com dois jornais – o Lábaro e o Liberal – duas filarmônicas,

clubes, 13 escolas (2 estaduais, 6 municipais e 5 particulares), foi também criado o

Grêmio Literário Castro Alves. A cidade estava vivendo seus grandes momentos

culturais. A idéia partiu de Afonso Marques Monteiro que reuniu um grupo de amigos

e propôs a criação de um grêmio literário composto de 20 cadeiras, que teriam os

nomes de vultos literatos baianos, já falecidos.

De início, os baianos escolhidos para dar nome às cadeiras da Academia

foram: Gregório de Matos Guerra, João de Britto, Muniz Barretto, Manoel de Souza

Britto, Francisco Mangabeira, Luiz da Gama, Urbano Duarte, Joaquim Freire,

Franklim Dórea, Domingos Borges de Barros, Manoel Vitorino, José da Silva

Paranhos, Bellarmino Barretto, Francisco Montezuma, Rodrigo Brandão, Sebastião

da Rocha Pitta, Euzébio de Mattos, Visconde de Cayrú, Abílio Cezar Borges e Emílio

Embassahy.

Com a aprovação dos Estatutos, foram criadas mais 5 cadeiras para as quais

foram indicados os seguintes patronos: Nabuco de Araújo, Agrário de Menezes,

Teixeira de Freitas, Xisto Bahia e Dionysio Martins. Periodicamente, um dos sócios

era sorteado para fazer pronunciamentos de caráter literário ou científico, e a

instituição também se responsabilizava por organização de festas cívicas, sendo a

primeira a comemoração do “Dois de Julho”, em Belmonte.

Na segunda década do século XX, após os devidos ajustes, o Grêmio ficou

assim constituído com seu quadro de sócios ocupando as cadeiras dos respectivos

patronos:

Rodrigo Brandão: Carlos Marques Monteiro

Francisco Mangabeira: Euclides Candido Pereira

Emílio Embassahy: Carlos Conceição

Agrário de Menezes: José Cortes Duarte

Luiz da Gama: Afonso Marques Monteiro

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José da Silva Paranhos: Gilberto Marques Monteiro

Franklin Dórea: Esmero Martins

Visconde de Cairu: João Pedro Neves

João de Brito: Prof. Giraldo Baltazar da Silveira Filho

Xisto Bahia: Antonio Pinho

Urbano Duarte: Manoel Joaquim de Magalhães

Gregório de Matos: Sílvio Alves Pereira

Francisco Montezuma: Prof. Lúcio da Silva Coelho Jr.

Manoel Vitorino: Dr. José Martins da Paixão

Teixeira de Freitas: Ascânio Pinto Imbassahy

Belarmino Barreto: Eduardo Santos Maia

Para fazer parte do Grêmio, era necessário que o pretendente submetesse

algumas produções literárias a uma comissão formada por três membros do referido

Grêmio, que emitiria um laudo aprovando-o ou não. Sendo aprovado, sorteava-se o

nome da cadeira que deveria ocupar.

Santa Casa de Misericórdia

A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia é uma instituição, de caráter

religioso, tipicamente mediterrânea, fundada também em Portugal desde o final do

século XV. Propagou-se rapidamente por todo o Reino, chegando ao Brasil nos

primórdios da colonização. Quando Tomé de Sousa chegou ao Brasil para fundar a

cidade do Salvador, em 1549, e instalar a capital do Brasil, uma das primeiras

preocupações foi a criação de um hospital. Dos homens que vieram como colonos

da terra, inclusive os que acompanharam o governador, muitos dormiam ao relento

ou em abrigos que não ofereciam comodidade, deixando-os expostos às doenças

tropicais.

O governador então convocou os homens mais importantes de sua armada

para, sob a direção do padre Manoel da Nóbrega, fundarem a primeira Santa Casa

de Misericórdia da Bahia. Antes já havia sido fundada a Santa Casa de Misericórdia

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de Santos, em São Paulo (1543-1545), e depois a Santa Casa de Misericórdia do

Rio de Janeiro, em 1556 (OTT, 1960).

A organização hospitalar no Brasil foi algo desordenado, nos primeiros

séculos, predominando os hospitais do tipo Santa Casa da Misericórdia, instituição

voltada para os carentes e desvalidos, preocupada com a vida e a dignidade pessoal

de seres humanos que a procuravam, muitas vezes de forma oculta e silenciosa,

através dos tempos.

No final do século XIX, apesar do crescente desenvolvimento que se

percebia em Belmonte, a cidade ressentia-se de um hospital que pudesse atender

às necessidades da população, principalmente dos mais carentes. Foi nesse

momento que o Cel. José Gomes de Oliveira e sua esposa, Guilhermina Ferreira de

Oliveira, venderam uma casa situada na então rua Primeiro de Março, n. 46, para a

Associação da Santa Casa de Misericórdia, conforme escritura de compra e venda

de 30 de outubro de 1893 . Outra escritura de 31 de outubro de 1893 estabelece a

compra e venda do prédio n. 48, contíguo ao de n. 46. Os irmãos da Santa Casa

de Misericórdia, reunidos em assembléia, deram procuração ao seu Provedor,

Wenceslau de Oliveira Guimarães, com todos os poderes, para a compra dos

prédios 46 e 48,

os quaes se destinam ao estabelecimento do Hospital que, por força de seus estatutos mantem nesta cidade a mesma Instituição, que os vai adquirir, podendo o referido Provedor assignar a competente escriptura e fazer tudo quanto for necessário para aquelle fim, em virtude dos plenos poderes que como procurador recebe pelo presente instrumento... (BARROS, 1916, p. 168).

Embora houvesse médicos particulares na cidade, era um privilégio para as

pessoas abastadas: comerciantes, fazendeiros, funcionários públicos. As pessoas

do povo, de modo geral, não tinham acesso a esses benefícios, salvo quando

protegidas por um dos grandes da terra (coronéis). Para aqueles menos

afortunados, a Santa Casa de Misericórdia era a tábua de salvação.

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Filarmônicas

De modo geral, o belmontense se orgulha de suas tradições, de sua

memória, do seu patrimônio cultural e, nesse contexto, merecem especial relevância

as sociedades filarmônicas, de grande sucesso no final do século XIX e nas

primeiras décadas da segunda metade do século XX.

A primeira delas, em Belmonte, foi a Sociedade Filarmônica XV de Setembro,

ou Sociedade Filarmônica de Belmonte, fundada em 15 de setembro de 1895, e

carinhosamente chamada de “Quinze” pelos seus adeptos e admiradores. A

outra era a Filarmônica Bonfim, fundada pela família do Cel. José Gomes de

Oliveira, que foi intendente municipal, em dois períodos (1890-1896 e 1896-1899) e

integrava uma das mais poderosas famílias belmontenses do final do século XIX, no

período áureo dos clavinoteiros.

Nos estatutos dessas filarmônicas, consta como objetivo principal a cultura

da arte musical, incluindo a criação e manutenção de uma escola de música para

manter valorizado o seu corpo de estante. Em princípio, as filarmônicas não

tinham caráter político. Todavia, o que se via na prática era exatamente o contrário,

porque elas, no transcurso do tempo, iriam marcar o compasso e dar o tom, não

somente nas atividades culturais-recreativas, como também nos acontecimentos

políticos.

Um acontecimento de caráter humanitário, relacionado com a Sociedade

Filarmônica XV de Setembro, ocorreu na epidemia de varíola que assolou a cidade

de Belmonte em 1910. A diretoria da filarmônica cedeu sua sede social para abrigo

dos doentes. Por causa disto, o prédio ficou interditado por alguns anos. Em

consideração ao ato generoso, o governo municipal, através da Lei n. 92, de 18 de

dezembro de 1911, isentou-a de impostos.

Nos primeiros anos do século XX, a Filarmônica Bonfim foi desativada. A 07

de dezembro de 1914, numa reunião transformada em assembléia, foi constituída a

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primeira diretoria da Filarmônica Lira Popular de Belmonte, que incorporou 17

músicos da antiga Filarmônica Bonfim e seu instrumental.

Essas filarmônicas estavam vinculadas a grupos políticos diferentes, o que

ocasionou verdadeiros duelos, não apenas de caráter artístico, como também com

armas de fogo, por conta dos clavinoteiros que defendiam suas facções políticas. A

Filarmônica de Belmonte, nos anos de 1930, tornou-se simpática ao grupo dos

integralistas, formado por italianos e seus descendentes, enquanto a Filarmônica

Lira Popular estava vinculada ao grupo político da família Gomes de Oliveira.

Segundo relatam as professoras Ariadne da Silva Rocha e Maria Adalcy

Rocha Brazão Santana (1992), em uma monografia baseada em depoimentos de

Faustiniano Henrique do Carmo (Senhorzinho da Lira), no ano de 1919, houve um

confronto violento entre homens vinculados à Lira Popular e homens do Cel. Alfredo

Matos, um dos poderosos da cidade, pessoa ligada à Filarmônica XV de Setembro.

Tudo começou quando o velho Acelino, pai do músico da Lira, Felismino

Pereira dos Santos, foi espancado por homens do Cel. Alfredo Matos, o que deixou

a população revoltada. À tarde do mesmo dia, os bandidos tentaram matar o

presidente Aristóteles, o que levou os homens da Lira à reação, transformando a

Rua XV de Novembro em verdadeira praça de guerra. Dias depois, um músico da

Lira chamado Zeferino foi assassinado.

Passando por altos e baixos, essas sociedades musicais particulares iam

marcando o cotidiano da sociedade belmontense, arrastando multidões às ruas, às

praças, tanto nas festividades cívicas e religiosas, como nos acontecimentos

políticos.

Outro grande momento dessas filarmônicas aconteceu em 16 de julho de

1948, dia de Nossa Senhora do Carmo, padroeira de Belmonte. O presidente da

organização das festividades, considerando a importância da data festiva, que

atraía, como atrai ainda, muitos visitantes, resolveu mandar construir dois coretos

para apresentação das duas filarmônicas: a XV de Setembro e a Lira Popular.

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Encerrada a festa religiosa, às 9 horas, com a bênção do S. Sacramento, por

D. Eduardo, bispo da Diocese de Ilhéus, começaram as apresentações musicais.

Cada uma das filarmônicas procurava apresentar o melhor do seu repertório, uma

após a outra. A cada apresentação havia aplausos e vaias.

Às 5 horas da manhã, quando o bispo ia celebrar a missa, as duas

filarmônicas estavam lá, exaustas, sem qualquer disposição de abandonar o posto,

nem a pedido do líder religioso. Somente ao meio dia, foi que os presidentes das

respectivas agremiações subiram simultaneamente aos coretos e desceram com

os seus maestros, encerrando assim o duelo musical. Musical apenas porque foi

encerrado em tempo: as armas estavam lá, embaixo dos coretos, prontas para

qualquer emergência.

Em 1951, no governo de Regis Pacheco, a Lira Popular participou em

Salvador das comemorações do centenário de Rui Barbosa, como representante das

filarmônicas do interior da Bahia. Em 1961, já no governo de Juraci Magalhães,

participou de um concurso de bandas do interior da Bahia, “Salve Retreta”,

classificando-se em primeiro lugar.

A partir da década de 1970, as filarmônicas vêm perdendo o seu prestígio, em

razão da popularização das bandas modernas, que têm influenciado na cultura

musical, especialmente das gerações mais jovens. Contudo, alguns segmentos

ligados à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia estão procurando revitalizar

essas filarmônicas como preservação do patrimônio cultural.

Maçonaria

A maçonaria é uma sociedade secreta de fins filantrópicos e de assistência e

defesa mútua aos seus membros, admitidos dentro de certos requisitos morais e

após rito de iniciação. Espalhada por todo o mundo, seus membros devem ajudar-se

onde quer que se encontrem, seja qual for o país, a classe social ou organização a

que pertençam. A admissão à maçonaria só ocorre após cerimônias de iniciação,

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principalmente com relação à integridade moral, além do juramento de manter sob

rigoroso sigilo os segredos da confraria.

Na maçonaria, o local de reuniões é chamado de loja ou oficina; a sala

fechada onde são realizados os trabalhos presididos pelo venerável é o templo. Na

estrutura maçônica, salientam-se três graus de hierarquia: 1) aprendizes (membros

novos), 2) companheiros, logo a seguir; e 3) os mestres ou maçons perfeitos. Além

desses, há outros graus, de caráter honorífico, em número variável, de acordo com o

rito, sendo o grau 33o o mais elevado de todos e poucos são aqueles que chegam a

alcançá-lo.

A origem da maçonaria é discutível e se perde em hipóteses e lendas. Alguns

a levam para os primórdios da Antiguidade oriental; outros acreditam que seu

fundador foi Hiram-Abif, arquiteto do templo de Salomão; e outros ainda acham que

ela deriva dos mistérios do Egito, ou da Grécia.

Contudo, é possível que a origem mais provável seja um desenvolvimento

das confrarias medievais de pedreiros-livres, daí a denominação adotada. No início

do século XVII, começaram algumas lojas a admitir pessoas estranhas à arquitetura.

Com o tempo, as lojas assumiram caráter meramente simbólico, conservando-se,

porém, toda a antiga simbologia: o triângulo, o avental, o esquadro e o compasso,

além de outros, cujo sentido somente os iniciados conhecem.

O triângulo eqüilátero, triângulo perfeito, é representação simbólica do

templo do corpo humano. O avental, o compasso posicionado em relação ao

esquadro, com o vértice apontando para o Oriente, e seus braços abertos para o

Ocidente, são símbolos dessa construção, porque o maçom é, sobretudo, construtor.

Os adeptos da maçonaria podem ser membros de qualquer religião, e sua

concepção de “Grande Arquiteto do Universo” não apresenta ligação com a crença

em Deus nas diferentes religiões. Apenas não são aceitos ateus ou agnósticos, dado

o caráter sagrado que reveste todos os seus ritos.

A primeira Grande Loja simbólica foi fundada em 1717, em Londres, e em

1723, o Livro de constituições, do pastor James Anderson, dá à ordem seu caráter

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secreto e místico. Da Inglaterra, as lojas se multiplicam pela Europa, principalmente

na França, onde alcançou considerável importância, e daí pelo resto do mundo,

principalmente para os países latinos. A ela aderiam os membros das classes mais

elevadas, atraídos por seu ideal de igualdade, liberdade e fraternidade, o que a

tornou via de propaganda do racionalismo filosófico do século XVIII, que levou à

Revolução Francesa.

Condenada pela Igreja Católica, a maçonaria teve boa aceitação entre os

protestantes, e relevante papel na independência das nações americanas, inclusive

nos movimentos políticos que levaram à independência do Brasil. Com pressupostos

ideológicos trazidos de Portugal, da França ou da Inglaterra, a maçonaria brasileira

tinha força e prestígio, através de princípios herdados do Iluminismo, salientando-se

a liberdade de pensamento e o racionalismo.

A data da penetração da maçonaria em território brasileiro não se pode

precisar, porque não existe consenso nem mesmo entre os historiadores maçons.

Há notícias que remontam a 1788, mas sem qualquer confirmação documental.

Assim, a organização oficial da maçonaria, no Brasil, data de 1801, com a fundação

da Loja Reunião, filiada ao Grande Oriente da França, segundo posteriormente

anunciou José Bonifácio de Andrada e Silva.

Na Bahia, a idéia da fundação da Loja Maçônica Cavaleiros da Luz, em

1797, por influência do capitão francês Antoine René Larcher não tem

fundamentação histórica, embora não se descarte a possibilidade de que alguns dos

conjurados fossem maçons, mais por afinidade cultural do que por participação em

alguma sociedade secreta organizada (TAVARES, 1995). Caso fosse comprovada a

sua fundação, seria ela a primeira Loja maçônica do Brasil, já que a Reunião, de

1801, é considerada a primeira Loja regular do Brasil, ou seja, com sua Carta

Constitutiva.

Segundo Ávila Júnior (2000), pesquisador maçom, a primeira Loja maçônica

da Bahia foi fundada em 5 de julho 1802, denominada Virtude e Razão, que

adotou o rito francês, nos termos da Constituição do Grande Oriente Lusitano,

embora não fosse a ele subordinada. Acredita-se que, entre os seus fundadores

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estão José Borges de Barros (envolvido com a maçonaria na Ilha da Madeira),

Cipriano José Barata de Almeida, Pe. Agostinho Gomes e o Prof. Francisco Muniz

Barreto de Aragão, elementos relacionados com a Conjuração Baiana, entre outros.

Ávila Júnior fala ainda da presença de viajantes maçons na costa brasileira, à

altura da Bahia, das dificuldades e das perseguições políticas que enfrentaram os

baianos maçons e da ajuda que sistematicamente recebiam dos seus irmãos, na

maioria “pessoas importantes da sociedade”, bem como da participação da

maçonaria nos movimentos políticos.

Nesse contexto, figuras proeminentes na política brasileira aderiram à

maçonaria, como José Bonifácio, Gonçalves Ledo e o próprio D. Pedro de Alcântara

que, ao ser aclamado Imperador, paradoxalmente, por força da Carta de Lei de 20

de outubro de 1823, proibiu as sociedades secretas, o que obrigou as lojas

maçônicas a permanecerem “adormecidas”, por um certo período, retornando com

força total após 1831.

Com a proclamação da República, é promulgada a primeira Constituição

republicana, a 24 de fevereiro de 1891, o que vai direcionar os novos rumos da vida

nacional. Foi nesse cenário que surgiu a primeira Loja maçônica da Bahia, no

período republicano, a União e Caridade, de Canavieiras, em 27 de dezembro de

1890. Muitas outras Lojas foram criadas na Bahia, durante a Primeira República.

Filha da União e Caridade, a Loja maçônica União e Sigilo, de Belmonte, foi

fundada em 04 de agosto de 1931, filiada ao GOEB – Grande Oriente Estadual da

Bahia, quando o município já se encontrava em franco declínio. Com a agitação

nacional ocorrida em 1935, o movimento integralista, de extrema direita entrou em

choque com o movimento comunista, de extrema esquerda, o que culminou com o

acontecimento que ficou conhecido como intentona comunista.

A repressão ao comunismo possibilitou a Getúlio Vargas a oportunidade para

dar um golpe em 10 de novembro de 1937, assumindo um governo ditatorial, nos

moldes fascistas, começando assim uma nova fase nacional que ficou conhecida por

Estado Novo (1937-1945). Aí o Conselho de Segurança Nacional propôs a Getúlio o

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fechamento das lojas maçônicas, por serem contrárias ao regime político vigente. A

Loja União e Sigilo ficou então “adormecida” de 1938 até 1949, quando foi reerguida.

A Literatura do Cacau

Toda essa memória do rio Jequitinhonha: os índios, o garimpo, o folclore, a

religiosidade, a saga do cacau com seus coronéis e clavinoteiros; todo esse caldo

cultural faz de Belmonte um lugar especial, onde ações humanas se desenvolveram,

significados foram construídos, os quais são expressos através de representações

da realidade. Nas clareiras das roças de cacau, nos entrepostos dos transportes de

cargas, surgiram povoações que rapidamente se transformaram em cidades. Essa

construção histórico-cultural vai alimentar o imaginário e influenciar a produção

literária regional.

A literatura do cacau, que tem início com Inglês de Souza, com o Cacaulista

(1876) na Amazônia, e vai ter em Jorge Amado sua expressão mais evidente,

assinala seu começo na Bahia, com Afrânio Peixoto, através dos romances Maria

Bonita (1914) e Fruta do Mato (1920). Esses romances descrevem acontecimentos

relacionados com o final do século XIX, no Sul da Bahia, o primeiro tendo como

pano de fundo a mineração do Salobro, no então município de Canavieiras; o

segundo, as fazendas de cacau do rio Salsa, hinterlândia nos vales dos rios Pardo e

Jequitinhonha.

Além de Afrânio Peixoto (Maria Bonita e Fruta do Mato) e Jorge Amado

(Cacau, Terra do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, Gabriela Cravo e Canela, Tocaia

Grande), outros nomes se destacam para compor o mosaico da região cacaueira,

feita de suor e sangue: Adonias Filho (Servos da Morte, Memórias de Lázaro, Corpo

Vivo, Léguas da Promissão), Jorge Medauar (Água Preta, A Procissão e os Porcos,

Visgo da Terra) Hélio Pólvora (Os Galos da Aurora, Estranhos e Assustados), Cyro

de Matos (Berro de Fogo, Violentos e Desalmados, Os Brabos), e tantos outros.

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A temática do cacau também vai aparecer no poema Iararana, do

belmontense Sosígenes Costa, no qual o poeta cria um mito de origem para o cacau

do sul da Bahia, e sintetiza as características histórico-culturais de Belmonte. Aí,

Tupã-Cavalo, figura mitológica que foge do Olimpo e vai se instalar na foz do

Jequitinhonha, simboliza o colonizador português, e Iararana, sua filha com a iara do

Jequitinhonha, simboliza a nossa hibridez cultural, a nossa missigenação com todas

as implicações decorrentes.

Sosígenes Costa

Para se conhecer um trabalho é importante se conhecer também o seu autor,

pois uma das principais causas determinantes de uma obra é o seu criador. Daí a

necessidade de se analisar a personalidade e a vida do escritor para melhor

entender a sua produção artística. Sosígenes Costa, o poeta de Belmonte, é

considerado uma das mais expressivas figuras da poesia modernista no Brasil,

embora pouco conhecido. Seu trabalho somente vai aparecer diante do grande

público depois que José Paulo Paes editou através da Cultrix, em 1977, um ensaio

sobre a poesia sosigesiana intitulado Pavão Parlenda Paraíso: uma tentativa de

descrição crítica da poesia de Sosígenes Costa, no qual pretende contribuir para a

sua reabilitação perante a literatura brasileira.

Gerana Damulakis (1996), num ensaio crítico da obra de Sosígenes Costa,

percebe que, na História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, o nome do

poeta de Belmonte é mencionado duas vezes, en passant, numa referência a Jorge

Amado, quando se menciona o nome de Sosígenes ligado à Academia dos

Rebeldes, grupo do qual faziam parte o próprio Jorge Amado e o futuro historiador e

folclorista Edson Carneiro. A outra, quando trata de outros poetas, no fim da

página, “em letras pequenas, esclarecendo que José Paulo Paes, ‘seu admirador e

crítico’, chamou atenção sobre o poeta ao publicar Pavão Parlenda Paraíso, um

estudo crítico sobre a poética sosigenesiana” (p. 17, 18). A edição consultada por

Damulakis é a 3a, de 1990; na 2a edição, de 1979, existe apenas uma referência

relacionada com a Academia dos Rebeldes. Nenhuma menção foi feita ao trabalho

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crítico de José Paulo Paes sobre a obra sosigenesiana, que é de 1977. A ensaísta

menciona ainda que na História da Literatura Brasileira, edição de 1989, de

Massaud Moisés, “SC mereceu um pouco mais de espaço”.

Sosígenes Marinho da Costa (Fig. 10) nasceu em Belmonte, no sul da Bahia,

no dia 14 de novembro de 1901, filho de Inocêncio Inácio da Costa e Brasília

Marinho da Costa e faleceu no Rio de Janeiro, em 5 de novembro de 1968. Era um

introspectivo, tímido ao extremo. Nascido e criado em Belmonte, onde viveu e foi

professor até 1926, não freqüentava as rodas literárias e tinha poucos amigos, o que

foi negativo para o conhecimento de sua obra.

A partir daí, a maior parte de sua vida passou em Ilhéus, onde foi secretário

da Associação Comercial, onde também cuidava de pássaros e flores; telegrafista do

Departamento dos Correios e Telégrafos e redator do Diário da Tarde. Morava num

pequeno minarete do primeiro andar de uma loja de ferragens, na rua D. Pedro II. O

espaço de sua caminhada estava compreendido entre os locais de trabalho e o

local de residência. Assim vivia o poeta, sonhador, a olhar o mar de Ilhéus e sonhar

com o mar de Belmonte, sua terra natal, concebendo imagens, figuras mitológicas

que ganhariam vida na estrutura de seus poemas. Sua timidez e a ausência de

vaidades, contudo, continuavam conspirando contra a divulgação de sua obra.

Arredio em Belmonte, em Ilhéus fugia dos amigos que insistiam com ele para a

publicação dos poemas. Somente a partir de 1928, quando foi fundada Academia

dos Rebeldes, em Salvador, “com o objetivo de varrer com toda a literatura do

passado – raríssimos os poetas e ficcionistas que se salvariam do expurgo – e iniciar

a nova era” (AMADO,1992, p. 84) sob a égide de Pinheiro Viegas, foi que

começaram a aparecer as primeiras publicações de seus poemas.

Foi a partir de Ilhéus que sua veia poética fluiu com maior intensidade,

inspirando-se ora em Belmonte, a terra do mar, ora em Ilhéus, o búfalo de fogo,

resultado de sua grapiunidade, filho legítimo das terras do cacau.

Falando sobre o pequeno impacto que causou a primeira publicação de Obra

Poética, em 1959, Jorge Amado (1979), amigo e incentivador, diz que

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FIGURA n.º 10

Sosígenes Marinho da Costa (1901-1968), quando saiu de Belmonte para Ilhéus

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seu inegável sucesso de estilo foi, porém, insuficiente para situar Sosígenes Costa no panorama da poesia brasileira no lugar que lhe cabe entre os maiores [...]. Faz-se finalmente justiça a quem representa um desses instantes raros de alta criação na literatura de um povo. Creio que, publicada toda a sua produção, a consciência da importância deste poeta só fará crescer de agora em diante, seja no que se refere à crítica, ao ensaio e à história literária, seja – o que é ainda mais grato – entre os leitores [...] Poeta do mar, poeta do cacau, poeta social marcado por seu tempo, tão requintado e ao mesmo tempo tão popular, pois grande parte de sua obra se baseia na vida do povo e dela se alimenta – folclore, hábitos, expressões, humanismo – ele ficará nas nossas letras como uma dessas grandes árvores isoladas que se destacam na floresta.

Wilson Rosa (2002), que o conheceu de perto, fala de seu gosto pela leitura

“principalmente de autores brasileiros e portugueses”. Aposentado, em 1954, o

poeta foi morar no Rio de Janeiro, quando então viaja pela Europa e Ásia, novas

fontes de inspiração para muitos dos seus poemas. No Rio, por insistência de

amigos, publica em 1959 a Obra Poética, pela Editora Leitura, o que lhe valeu o

Prêmio Jabuti de Poesia, em 1960. O poeta faleceu no dia 5 de novembro de 1968.

Numa construção de caráter simbolista, Sosígenes se voltou para um mundo

lendário, oriental e bíblico, onde figuras exóticas de silfos, dragões, pavões; mirra,

cravo, canela e nardo emergem do Jequitinhonha numa correspondência de

símbolos, “no poente, a linha limite, para onde confluem o real e o irreal,

transfigurando-se tudo em sons, cores e perfumes” (Id.).

Embora, atualmente, tenha havido um despertar de interesse pela obra de

Sosígenes Costa, indiscutivelmente, foi José Paulo Paes – grande crítico literário

que organizou o Pequeno dicionário de literatura brasileira (1967), ao lado de

Massaud Moisés – quem impediu que o poeta de Belmonte ficasse na vala comum

do esquecimento. Além de levar de novo ao público a obra sosigenesiana, publica

também um estudo crítico, Pavão Parlenda Paraíso (1978), como “tentativa de

despertar o interesse pelo poeta” (Id. p, 18), ao salientar seu vigor e originalidade

no contexto da poesia modernista.

Conhecedor da poesia de Sosígenes, José Paulo Paes, que temia o seu

desaparecimento, preocupou-se em reeditá-la, em 1978, pela Cultrix/MEC/INL,

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incluindo ali mais 70 poemas inéditos, conjunto ao qual o organizador deu o título de

Obra Poética II, o que se tornaria a obra básica para a compreensão da poesia

sosigenesiana, cujo lançamento aconteceu em Belmonte, em dezembro do mesmo

ano. Dez anos após a sua morte, chegava o momento da “ressurreição”. Apenas

um pequeno trecho de Iararana aparece nessa Obra Poética, em razão mesmo da

extensão do poema. No ano seguinte (1979), com introdução, apuração do texto e

glossário de José Paulo Paes e apresentação de Jorge Amado, que o chamou o

“canto ao cacau” o longo poema Iararana, isoladamente, foi também editado pela

Cultrix.

Paes demonstra a convicção de que “um dia a literatura brasileira há de ficar

devendo a Sosígenes Costa um desses certificados de vitalidade que só um grande

poeta esquecido, quando criticamente reabilitado, pode passar-lhe” (PAES, 1997, p.

11). Aí ele apresenta alguns sonetos de Sosígenes, numa visão panorâmica para

dar ao leitor alguma familiaridade e “despertar a apetência”... para a leitura da Obra

Poética que sairia no ano seguinte.

A partir daí, o nome de Sosígenes Costa, quando vivo, considerado por Jorge

Amado como o maior poeta da Bahia, aparece nos meios de comunicação e passa a

chamar a atenção de políticos e intelectuais, sendo lembrado em Belmonte, sua

cidade natal, com a criação da biblioteca que leva o seu nome.

Sosígenes Costa foi um escritor que não se prendeu a escolas ou modelos,

embora alguns críticos o considerem simbolista, como Wilson Rosa, enquanto

outros o inserem entre os modernistas, como José Paulo Paes. Se levarmos em

conta as características marcantes do espírito romântico presente na sua poesia, o

tom idealista e religioso, a sonoridade dos versos e a policromia das formas, tudo

isto associado a idéias representadas por metáforas e símbolos (COUTINHO, 1976),

podemos afirmar que ela traz em si reminiscências simbolistas que

ressaltam em particular no ciclo de sonetos dedicados ao crepúsculo, hora eminentemente simbolista, em que as cores delimitativas das coisas, cuja nitidez é como que a garantia das fronteiras do real, se entremesclam e esmaecem na ambigüidade das tintas do poente (PAES, 1977, p. 14).

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Observe-se que no soneto Crepúsculo de Mirra os sentidos perdem sua

função natural para a “experiência sobrenatural das coisas visíveis”, onde toda

palavra é uma representação simbólica de uma realidade além da percepção. Na

primeira estrofe, há uma combinação aromática, sonora e policrômica, em que as

funções sensoriais extrapolam para uma outra realidade além das percepções

comuns: “Vêm os aromas como uma grinalda,/ ornar a sombra arroxeada e bela/ e

ungir os nossos sonhos de esmeralda”. Em suas funções naturais, os aromas não

“ornam” sombras nem “ungem” sonhos e muito menos sonhos de esmeralda; mas

na concepção simbolista do poeta isto é possível.

Crepúsculo de Mirra

A tarde fecha a cintilante umbela. Vêm os aromas como uma grinalda Ornar a sombra arroxeada e bela

E ungir os nossos sonhos de esmeralda.

Nuvens de mirra e oriental canela Formam na sombra a singular grinalda.

e a tarde fecha a cintilante umbela E o vento as asas de dragão desfralda.

A própria lua vem lançando aroma.

Nasce vermelha como a flor de um cardo E sobre a mirra dos vergéis assoma.

E a noite chega no seu grifo pardo,

Cheirando a incenso como o rei de Roma E como Herodes recendendo a nardo.

(1937)

Falando sobre a pluralidade de estilos que envolve a poética sosigesiana,

Hélio Pólvora diz que ele

foi parnasiano sob o prisma formal da construção rigorosa do poema; foi simbolista pela intensa musicalidade, pelo ritmo, pelas rimas internas. Foi modernista quando bem quis e entendeu. Um poeta de verdade transcende filiações. Sua importância maior está na fusão da arte tradicional como o “espírito novo” da sua época... Sua poesia tinha militância política, dependia da memória – mas teve sobretudo o dom de escapar a aspectos da realidade, pela transfusão, e abraçar o mito de sereias, dragões, pavões, búfalos, reis e rainhas orientais... (2002, p. 9).

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Poder-se-ia acrescentar que Sosígenes foi também romântico pelo caráter

localista de muitos de seus poemas, como no caso de Iararana. Assim, não seria

impróprio afirmar-se que Sosígenes Costa é um poeta múltiplo, com trânsito nas

diversas escolas da literatura brasileira, desde o barroco de construção

magnificente, passando pelo nacionalismo e subjetivismo românticos, pelos fortes

traços parnasianistas dos Sonetos Pavônicos, no rigor da rima e da métrica, para

desembocar na profusão dos perfumes e na policromia simbolistas da

transfiguração imagética. É quando o poeta aproveita a hora crepuscular para

aplicar os poderes da imaginação à realidade que o cerca: os coqueirais das praias

de Belmonte, a cidade natal, ou de Ilhéus, onde passou muitos anos de sua vida. Aí

os pássaros reais se transfiguram em pássaros de bronze - “o amarelo-ouro

misturado a vermelho, as duas cores básicas do sol poente...” (Id. p. 19) – e os

coqueiros em figuras da mitologia.

Múltiplo e Singular

A despeito de sua vivência local, ainda sem muito contato com a cultura

universal, a não ser através das leituras, sua imaginação é cosmopolita, capaz de

trazer para o Sul da Bahia antigos reinos, personagens da História, da Bíblia e da

mitologia - grega ou indígena. Pode-se aqui recorrer à paráfrase que Ítalo Calvino

faz, ao comentar os vislumbres do Purgatório, de Dante:

Ó imaginação, que tens o poder de te impores às nossas faculdades e à nossa vontade, extasiando-nos num mundo interior e nos arrebatando ao mundo externo, tanto que mesmo se mil trombetas estivessem tocando não nos aperceberíamos (CALVINO, 1990, p. 98).

Foi esse poder que fez de Sosígenes Costa um poeta ao mesmo tempo

múltiplo e singular: por cantar e contar sobre o Sul da Bahia de uma forma especial e

por buscar em diversos tempos e em vários lugares os motivos para a sua

construção poética, que é a sua própria construção, ele mesmo ator e expectador

dos dramas vividos e experimentados no palco da vida. “Os poetas, como os

filósofos, exprimem a consciência do mundo” (ARAÚJO, 2000, p. 16), ultrapassando

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os seus limites através da linguagem. “O que importa é o universo polissêmico da

estética literária, o que se alcança com o exercício da sensibilidade” (Id. p. 26).

Gerana Damulakis, falando sobre as singularidades que formam a pluralidade

de Sosígenes Costa, aponta caminhos diversos que podem ser encontrados na

Obra Poética que o definem, nos seus múltiplos aspectos, “como poeta social

datado”, desde o luxo barroco que ele mistura a sonetos parnasianos na forma, de

técnica simbolista, os sonetos pavônicos. (DAMULAKIS, 2001/2002, p. 53

passim).

Poema narrativo, de caráter rapsódico, dentro da linha modernista-

nacionalista de Macunaíma, de Mário de Andrade (1928); Cobra Norato, de Raul

Bopp (publicado em 1931 com indicação de que fora escrito em 1928), e Martim

Cererê, de Cassiano Ricardo (1928), Iararana (1933) representa um mito de origem

para o cacau da Bahia, em que os seus personagens tipificam os colonizadores e

seus descendentes mestiços.

Iararana assemelha-se a Cobra Norato quando vai buscar na tradição

indígena a sua inspiração, e também no espaço sagrado da floresta, assim como

Macunaíma, cuja linguagem empregada se “aproxima da oralidade folclórica”

(PACHECO, 1967). Contudo, enquanto o paulista Mário de Andrade e o gaúcho

Raul Bopp vão a Amazônia para situar os seus heróis, o baiano Sosígenes o faz em

sua terra mesmo, na Bahia, ou melhor, em Belmonte, na foz do Jequitinhonha.

Símbolo de libertação do inconsciente coletivo, Macunaíma transforma-se ao

sabor da imaginação, carece de um caráter definido, posto que se modifica no

transcorrer da história, revelando-se, desmentindo-se, na evolução de suas

peripécias, características amorfas (a imaturidade) do povo e da cultura brasileira.

Em Cobra Norato, um estudo do folclore, das lendas e da paisagem da

Amazônia e do seu regionalismo (SILVA, 1967), percebem-se as características do

movimento antropofágico, do qual é talvez a obra mais representativa, que apela aos

elementos de uma cultura primitiva através da figura indígena. Tupy, or not tupy that

is the question é a síntese de Oswald de Andrade para as conquistas do

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movimento modernista, parodiando a célebre dúvida de Hamlet. Oswald de Andrade

cobra dos brasileiros uma postura comprometida com um nacionalismo de caráter

verde-amarelo e tupi.

Identificado com o movimento primitivista da década de 1920, que vai do

Manifesto Pau-Brasil (1924) e se cristaliza com o Manifesto Antropófago (1928),

quando Oswald de Andrade propõe o caminho contrário ao das correntes

nacionalistas, próximas às tendências fascistas da Europa, que defendiam um

Estado forte (SCHWARTZ, 1980),o poema Iararana situa-se nesse contexto de

forma anacrônica. Escrito entre 1932 e 1934, na opinião de José Paulo Paes (1979),

o poema era a expressão da simpatia do poeta de Belmonte pelo Verde-Amarelismo

e pela Antropofagia, correntes que perdiam seu fulgor após 1930.

Nessa época, Sosígenes morava em Ilhéus, situação que o deixava afastado

dos movimentos culturais. O sistema de radiodifusão estava engatinhando no Brasil

e nas pequenas cidades ainda era um sonho impossível. Tudo isso contribuiu para

que as informações chegassem sempre com atraso. Contudo, embora de forma

tardia, Sosígenes imprime sua marca pessoal naquilo que escreve, sem se

preocupar com “os corifeus do Modernismo paulista”, imprimindo assim um estilo

sosigenesiano de escrever.

Ao analisar a arte como autoconsciência do desenvolvimento da humanidade,

Georg Luckács (1968), dá ênfase ao humanismo como representação artística, em

que “o particular, como categoria estética, abraça o mundo global”. Aí, a arte serve

de mediação para a representação do homem e os seus modos de manifestação.

Luckács acredita ainda que essa força evocativa reside no fato de que nesses

dramas é revivido e feito presente o próprio passado, não como sendo a vida

anterior pessoal de cada indivíduo, mas um passado que retorna miticamente

ressignificado, enquanto pertencente à humanidade. “Será que é possível

estabelecer se são mais numerosos os homens que aprenderam a história de sua

pátria através da arte ou através da ciência?” (p. 297). Sosígenes procurou levar a

história da origem do cacau no Brasil através de sua arte.

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Jorge de Souza Araújo (2000) enfatiza que não se deve temer o universo das

palavras, mas com elas metamorfosear o real, refletir sobre elas e, a partir daí,

construir-se melhor o seu destino, num processo de invenção ou de transgressão

do mundo. Foi o que Sosígenes procurou fazer ao se manter numa linguagem

próxima à oralidade. A linguagem em Iararana tem um sabor todo especial, seja pela

temática indianista, seja pela construção literária para a figura da Iararana, a falsa

iara, mestiça. Segundo Câmara Cascudo (2001), a iara é simplesmente uma forma

literária brasileira para representar a lenda mediterrânea da sereia sedutora ou a da

mãe-dágua do folclore africano – Iemanjá. Não é, portanto, um mito autenticamente

brasileiro. Sosígenes recorre também a nomes diversos da fauna, da flora e de

entidades fantásticas; cantigas, usos e costumes do vale do Jequitinhonha, em cuja

foz se encontra a cidade de Belmonte, o locus do poeta.

A partir de 1930 – coincidindo com os grandes acontecimentos políticos que

marcaram a época - desponta uma geração de escritores comprometidos com a

realidade social dolorosa e ainda desconhecida. Era uma espécie de neo-realismo

que procurava mostrar a nudez crua da verdade, denunciando a vida subumana do

nordestino, sob a política autoritária do coronelismo, ou simplesmente dos excluídos

da sociedade. Em meio às obras de Raquel de Queiroz (O Quinze, 1930), José Lins

do Rego (Menino de Engenho, 1932; Doidinho, 1934), Graciliano Ramos (Caetés,

1933, S. Bernardo, 1934), surge também Jorge Amado com País do Carnaval

(1932), Suor (1934), e Capitães de Areia (1937), os romances da Bahia, obras

comprometidas com a denúncia das injustiças sociais e da opressão.

De cunho regionalista são as obras Cacau (1933), Terras do Sem-Fim (1942),

e São Jorge dos Ilhéus (1944), em que Jorge Amado retrata a vida na região

cacaueira da Bahia, tomando Ilhéus como exemplar, e denuncia a opressão a que

estavam submetidos os trabalhadores rurais, em contraste com os coronéis

enriquecidos a fogo e sangue: fogo das armas e sangue dos trabalhadores.

Jorge Amado admite que o grupo modernista da Bahia não conseguiu varrer

da literatura os movimentos literários que o precederam; não conseguiu levar ao

esquecimento nomes consagrados como Coelho Neto e Alberto de Oliveira, que

eram os alvos prediletos. Os Rebeldes e outros grupos concorreram “para afastar

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as letras baianas da retórica, da oratória balofa, da literatice, para dar-lhe conteúdo

nacional e social na reescrita da língua falada pelos brasileiros” (AMADO, 1994, p.

85). É aí que a antropofagia entra, não simplesmente como destruição do passado,

mas como metáfora daquilo que deveria ser culturalmente repudiado, assimilado e

superado na busca de uma verdadeira independência cultural, em que a crítica

social se volta para a dominação da burguesia.

Comentando sobre as possíveis influências do modernismo paulista sobre

Iararana, Marcos Aurélio Souza (2002) salienta como Sosígenes Costa soube

redimensioná-las, o que descaracteriza a idéia de imitação, ou de epigonismo,

principalmente no que se refere à antropofagia oswaldiana.

Sosígenes falava das margens e nas margens, não seguia, portanto, uma tendência de busca pelo exótico macunaímico, com arroubos e automatismos surrealistas, nem vociferava em favor de um movimento nacional, ou se embrenhava nas matas amazônicas e paulistas com botas de bandeirante ‘protofuturista’, louvando a investida colonial como formadora de uma cultura bela e ‘colorida’ (Id. 2002).

É nesse momento que Sosígenes, através da construção emblemática de

Iararana (cerca de 1933), primeiro poema consagrado ao cacau, narra as aventuras

de Tupã-Cavalo, símbolo do colonizador português que, ao lado de Iararana, sua

descendência mestiça, “fez guerra com espingarda aos cabocos do mato” e os

obrigou a plantar cacau. Aí o poeta belmontense desconstrói “o discurso histórico

oficial”, para mostrar o lado perverso da colonização européia.

Reabilitada, a obra sosigenisiana vai ganhando espaço nas academias, nas

bibliotecas, entre os amantes da poesia. Canto ao cacau, segundo Jorge Amado, ou

pantomima curiboca, como o considerou o próprio Sosígenes Costa, Iararana é

uma história de bicho “no tempo da onça”, no tempo em que ainda não havia cacau.

Como produção simbólica, o poema conta a saga do cacau no Sul da Bahia, em

que os mais estranhos personagens emergem, num conflito mítico que coloca em

cena o centauro conquistador; a iara, símbolo cultural dos filhos da terra; o menino

do céu, como o grande herói da saga, e Iararana, símbolo da miscigenação biológica

e cultural.

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CAPÍTULO III

IARARANA

- - Ô Vênus, ô Déesse!

Je regrette les temps de l’antique jeunesse, Des satyres lascifs, des faunes animaux,

Dieux qui mordaient d’amour l’écorce des rameaux Et dans les nénufars baisaient la Nymphe blonde!

Je regretted les temps où la sève du monde, L’eau du fleuve, le sang rose des arbres verts Dans les veines de Pan mettaient un univers!

Où le sol palpitait, vert, sous ses pieds de chèvre Où, baisant mollement le clair syrinx, sa lèvre

Modulait sous le ciel le grand hymne d’amour... (RIMBAUD, 1870)10

Quando nasce o Brasil

Analisando o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, quando estabelece uma

comparação entre o aparecimento de novas idéias filosóficas e a descoberta da

América, Marilena Chauí (2000) dá ênfase ao fato de que a conquista da América e

assim também do Brasil não foram “descobertas” nem “achamentos”, mas invenções

históricas e construções culturais. As terras, achadas ou não, sempre estiveram lá,

mas Brasil é uma criação dos conquistadores europeus, uma instituição de Portugal.

Os principais elementos para a construção de um mito fundador aparecem em

forma de três componentes especiais: a obra de Deus (a Natureza), a palavra de

Deus (a História), e a vontade de Deus (o Estado). Em suma, o mito fundador é

construído sob a perspectiva do conceito de poder teológico-político.

As grandes navegações e, conseqüentemente, as conquistas e a

colonização, do ponto de vista econômico, social e político, foram realizadas no

curso da abertura de novos mercados para o capitalismo mercantil, como

desdobramento da expansão comercial. “Do ponto de vista simbólico, seriam um

10 Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud (1854-1891), poeta do simbolismo francês. “Ó Vênus, Deusa!/ Quem me dera viver na juventude antiga/ Dos faunos, dos sátiros lascivos/ Que mordiam de amor a casaca do arvoredo,/ Beijando nas ninféias suas Ninfas louras!/ Saudoso sou do tempo em que a seiva do mundo,/ A água do rio, o sangue a arder de árvores verdes,/ Nas artérias de Pã vertia um universo!/ Sob seus pés de cabra, o verde solo arfava/ E seu lábio a beijar a siringe sonora,/ Sob o céu modulava um grande hino de amor...” Trad. Ivo

Barroso (1995).

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alargamento das fronteiras do visível e um deslocamento das fronteiras do invisível

para chegar a regiões que a tradição dizia impossíveis” (Id. p. 58).

A idéia de “visão do paraíso” que aparece em antigas obras de escritores

brasileiros, a partir da célebre carta de Pero Vaz de Caminha, vai produzir a imagem

mítica fundadora do Brasil.

Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem.[...]. Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles. [...]. Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm nem entendem em nenhuma crença [...] porque, certo, essa gente é boa e de boa simplicidade [...]. E, pois, Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. {...} Eles não lavram nem criam [...]. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. (CAMINHA, apud CHAUÍ, 2000, p. 60).

A idéia de paraíso terrestre é a idéia de uma bela e luxuriante vegetação, com

flores e frutos perenes, feras dóceis e temperatura amena, “nem muito frio nem

muito quente”, como repete a literatura dos navegantes, a eterna primavera. É o

retorno à perfeição da origem, ao Jardim do Éden, onde essa gente nova, simples e

inocente está pronta para ser evangelizada, porque “não foi sem causa” que os

portugueses aí chegaram.

Esse Paraíso-Brasil-Natureza não comporta o estado de Natureza descrito

por Hobbes, em que o medo da guerra de todos contra todos e, conseqüentemente,

o temor da morte, levaria ao surgimento da vida social, ao pacto social e ao poder

político, o Leviatã11 (CHEVALIER, 1973, p. 64 passim).

Todavia, esse Brasil-Paraíso, “abençoado por Deus e bonito por natureza” vai

sofrer os efeitos do escravismo que se impunha como contingência econômica,

dentro da estrutura do mercado europeu. Aí as formas compulsivas de trabalho eram

exigidas para o desenvolvimento e a acumulação do capital nas economias

européias e para a exploração colonial.

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Monstro da mitologia fenícia, mencionado na Bíblia. Em Hobbes, simboliza o Estado.

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Neste contexto, a escravidão se justifica porque não estamos concebendo um

estado de Natureza, dentro de um conceito moderno, da guerra de todos contra

todos, mas segundo as teorias dos teólogos católicos, na Universidade de Coimbra,

de acordo com as idéias de direito natural objetivo e subjetivo.

Primeiro, a teoria do direito natural objetivo parte da idéia de que Deus é o

legislador supremo, criador de uma ordem jurídica, que ordena os seres dentro de

uma hierarquia segundo sua perfeição e seu poder, onde o superior comanda e o

inferior obedece. Já a teoria do direito natural subjetivo afirma que, por ser dotado de

razão, o homem possui naturalmente o sentimento do bem e do mal, do certo e do

errado, do justo e do injusto, o que se constitui no fundamento da sociabilidade

natural.

Segundo essas teorias, o estado de inocência do homem fica ameaçado

pelo risco de degenerar em injustiça e guerra, em decorrência do pecado original.

Mas isto é evitado porque Deus envia sua lei e representantes da sua vontade que

manterá a harmonia natural, em conformidade com o direito natural objetivo,

estabelecendo o estado de sociedade. Assim, a Natureza é constituída por seres

que, naturalmente, subordinam-se uns aos outros.

Ainda nos termos dessas teorias, o cativeiro dos índios, a subordinação e a

violentação de sua cultura são obra espontânea da Natureza, já que os nativos são

juridicamente inferiores e, portanto, devem ser mandados e controlados pelos

superiores naturais, o conquistador, o colonizador. Contra a argumentação de que “a

vida, o corpo, a liberdade são concebidos como propriedades naturais, que

pertencem ao sujeito de direito racional e voluntário”, os navegantes e colonizadores

afirmavam que os índios não podiam ser considerados como sujeitos de direito, em

razão de seu estado selvagem e, portanto, eram escravos naturais, “sem fé, sem lei

e sem rei”. Estão, portanto, naturalmente subordinados ao poder do conquistador.

Contudo, no início da colonização, quando as sesmarias foram repartidas

pelos capitães da terra, os índios entenderam que deveriam usar a livre faculdade

da vontade e recusar a servidão voluntária. Percebe-se então a natural indisposição

do índio para a lavoura e a natural “afeição” do negro para ela, como resposta da

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Natureza, pelas mãos do direito natural objetivo, para legitimar a subordinação do

negro “inferior” ao branco “superior”, não mais como servidão voluntária, mas pelo

direito natural de dispor dos vencidos de guerra. Vamos ter assim uma sociedade

essencialmente escravista, onde o escravo-mercadoria era também um ser humano.

Ao analisar O caráter nacional brasileiro, de Dante Moreira Leite (1983), na

introdução Aventuras e desventuras de uma ideologia, Alfredo Bosi afirma que boa

parte do livro sugere que a existência de traços psicológicos no interior de raças,

nações ou povos derivam de paixões, simpatias ou antipatias manipuladas por

interesses que pouco têm a ver com a busca da verdade, ao procurar responder a

pergunta “quem somos enquanto nacionalidade?” Esta questão não pode ser

respondida satisfatoriamente à luz das ciências humanas, “mas por um ‘saber’ sob

suspeita, entre emotivo e dogmático, que se chama ideologia”, sistema de idéias que

constituem uma doutrina política ou social adotada por partido ou grupo humano.

Bosi salienta ainda que, enquanto o presente exige o escarmento da

pseudociência do caráter nacional, do passado vem o fascínio pelos textos poéticos

e narrativos, onde gritam as vozes de cronistas e viajantes deslumbrados com as

belezas da terra; “vozes de pensadores ‘positivos’ veladas de sombras pessimistas

quando falam de um povo mestiço ainda, tão distante do topo da evolução

européia” (p. 9).

Nessa discussão, Dante Moreira Leite (1983) chama a atenção para alguns

contatos entre povos de culturas diferentes que podem ser fatais para um deles, a

ponto até mesmo de sua destruição de forma total ou parcial, como no caso dos

povos indígenas das Américas. O grupo considerado tecnicamente mais “evoluído”

procurou explorar o grupo mais “atrasado”, que não teve como se defender.

Também muitos instrumentos dos conquistadores foram introduzidos na vida

indígena, o que foi fatal para o seu sistema de crenças e valores, como a arma de

fogo, por exemplo, que tende a alterar o significado da educação e da hierarquia

indígena.

Assim como outros povos ficaram marcados pelos estereótipos projetados

pelas classes dominantes, aqueles que resultaram do colonialismo europeu, que

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foram explorados por um sistema fundado na violenta divisão da sociedade, entre

um pequeno grupo de senhores e uma grande massa de escravos, fatalmente, na

concepção dos dominantes, só trabalhariam à força dos capatazes. Daí os epítetos

de apático, desanimado, desequilibrado, fanático, malandro, resignado, etc. etc.,

caracterização que teve sua fase áurea na segunda metade do século XIX.

Posteriormente, algumas auto-imagens foram sendo construídas e

generalizadas, em que a matriz do brasileiro não é mais o trabalhador forçado, mas

o proprietário que já conheceu algumas décadas de próspera ociosidade e é

identificado como: individualista, aventureiro, sensual (principalmente com índias,

negras e mulatas), mandão, imitador dos luxos europeus, amante da ostentação,

mas também cordial, generoso etc.

Para pensar o Brasil em termos de nacionalismo, vale lembrar como se foram

construindo os símbolos e mitos que justificam e explicam a formação de uma

imagem nacionalista brasileira, no século XIX (LEITE, 1983).

Carlos Guilherme Mota (1999), ao analisar o processo do que ele chama de

(re)descobrimento do Brasil, vai buscar, em relatos de viajantes, formas de

pensamento, hábitos de época, o momento em que o Brasil-Colônia se torna Nação,

no que diz respeito à sua identidade, mais ou menos entre 1808 a 1850. São

momentos em que o Brasil “se descobre”, ou se cristaliza uma idéia de Brasil-Nação,

através dos diversos atores sociais que se apresentaram na cena da História.

Segundo essa versão, o primeiro grande impacto cultural sofrido pelo Brasil teria

acontecido quando da transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808.

Essa nova descoberta seria compreender como as pessoas que viveram na

metade do século XIX entendiam o que estavam vivendo. Trata-se da percepção da

mentalidade, especialmente no tocante ao estudo dos “lugares da memória” e nas

histórias da vida pública e privada, em um Brasil de formação estamental.

Essa temática, estudada por grandes mestres brasileiros como Gilberto

Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior primeiro, é retomada por

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Raimundo Faoro e Florestan Fernandes depois, e por outros mais novos que vão

fazer a releitura dos chamados novos objetos da História, como: o cotidiano, a

mulher, o público e o privado, o religioso, o meio ambiente, a vida sexual, a cidade

etc.

A idéia de um só rebanho, um só pastor; uma só cabeça, um único cetro e

um único diadema, era a imagem teológica do poder político que se manifesta no

tempo profano: a monarquia absoluta por direito divino dos reis. Dentro da tese

jurídica de Ulpiano12, “o que apraz ao rei tem força de lei”, o que coloca o rei acima

da lei e não estando obrigado por ela. No Brasil, é através desse poder teocrático

que a Coroa tem base jurídica para a distribuição das capitanias hereditárias e das

sesmarias.

A herança desse sistema de monarquia absoluta vai se refletir na construção

da sociedade brasileira como um todo, de onde provêm as diversas manifestações

do mandonismo, do autoritarismo político, nas zonas da mata, nas zonas da

mineração, na zona do cacau.

Com a independência do Brasil, em 1822, três séculos de mandonismo

haviam sedimentado o poder dos grandes senhores e construído em volta deles

uma sociedade submissa. A esse poder, o Império nascente haveria de recorrer para

sua consolidação. Os coronéis brotados da burguesia comercial, tanto quanto os

antigos senhores das sesmarias, exerciam um poder absoluto sobre suas

comunidades, das quais se faziam, não apenas distribuidores da justiça e

mantenedores da ordem, mas também provedores do sustento da maioria pobre

(LINS, 1988).

No regime republicano, a situação política, social e econômica, no interior do

Brasil, não havia sofrido grandes modificações. Permanecia muito semelhante ao

que acontecera na Colônia e no Império. O monopólio da terra, que gerou o

12 Domitius Ulpiano (170-228), jurisconsulto romano, cuja carreira teve início no império de Setímio Severo (193-211); dedicou-se ao magistério no reinado de Caracala (212-217), sendo banido por Marco Aurélio (218-222). Chamado a Roma pelo imperador Alexandre Severo (222-235) foi assassinado pela guarda pretoriana.

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mandonismo local, em tempos anteriores, subsistia, embora enfraquecido pelas

transformações sociais decorrentes do desenvolvimento tecnológico.

O século XX começara ainda no final do século XIX, com as inovações

tecnológicas que alteraram o cotidiano das pessoas, numa velocidade maior do que

elas mesmas podiam se adaptar, contribuindo assim para uma supervalorização do

progresso. O navio a vapor, o telefone, o automóvel, a máquina de escrever e

tantas outras criações tecnológicas que adentraram o século XX, assinalaram a

exaltação do mundo da máquina, da velocidade e da ação, com fortes influências

também no mundo das letras e das artes.

Os modelos artísticos, que vieram do Parnasianismo e do Simbolismo,

estavam desgastados, mas não havia uma nova proposta estética, o que só vai

aparecer com o movimento modernista de 1922 - centenário da Independência -

uma ruptura artística que coincidia com movimentos políticos que estavam

desestabilizando a Velha República: a prática da política das salvações, que visava

acabar com as oligarquias cafeeiras, o aumento da inflação e as greves de operários

contra a carestia. A insatisfação política coincidia com a insatisfação referente às

tendências artísticas. Por outro lado, a crise do capitalismo iria conduzir à Primeira

Guerra Mundial (1914-1918), pondo fim à chamada belle-époque13 e

desacreditando os sistemas políticos, sociais e filosóficos.

O período entre as duas guerras mundiais é conhecido como “os anos

loucos”, em que predominou a ânsia de viver o presente. Foi nesse período de

inquietação, contradição e insatisfação que surgiu a necessidade de interpretar e

expressar a realidade de um modo novo, inédito. Foi dessa necessidade que

resultaram os movimentos artísticos que integraram a vanguarda européia e

influenciaram o modernismo brasileiro.

Na primeira fase do movimento modernista brasileiro, houve uma disposição

muito forte para se colocar em prática as propostas de renovação, o que deveria

acontecer através de uma nova linguagem, em que as características principais

13 A bela época (do fr. belle époque) foi os anos de euforia para as classes privilegiadas francesas, no início do século XX.

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sobressaíssem: 1) através da liberdade formal - verso livre, abandono das formas

fixas, linguagem coloquial - e 2) do emprego de imagens resultantes da livre

associação de idéias, até mesmo com aparente falta de lógica.

O ambiente de transformações culturais que culminou com a Semana da Arte

Moderna, já começara a se delinear antes de 1922, com as novidades futuristas de

Oswald de Andrade (1912), as exposições sem princípios acadêmicos de Lasar

Segall (1913), o expressionismo de Anita Malfati (1914). O pré-modernismo foi assim

um período de transição, em que prevalecia a preocupação em entender e explicar

a realidade social brasileira.

Após a Semana da Arte Moderna, grupos renovadores se formaram. Em São

Paulo: Mário de Andrade (Macunaíma), Oswald de Andrade (Pau-brasil), Menotti Del

Picchia (Chuva de pedra), Cassiano Ricardo (Martim Cererê), Raul Bopp (Cobra

Norato) etc. No Rio de Janeiro: Ronald de Carvalho (Toda a América), Manoel

Bandeira (Poesias) etc. Em Minas Gerais: Carlos Drumond de Andrade (Brejo das

Almas). Na Bahia: Jorge Amado (Cacau), Sosígenes Costa (Iararana) etc.

Macunaíma (1928) é a mais importante obra de Mário de Andrade,

classificada por ele como uma rapsódia que conta as aventuras de Macunaíma,

herói sem caráter que se torna - índio, negro e branco - símbolo da miscigenada

sociedade brasileira. Numa linguagem quase coloquial, o autor incorpora ao texto

várias frases feitas, provérbios e fragmentos da cultura popular.

A poesia de Cassiano Ricardo acompanha as diversas fases do Modernismo

brasileiro, sendo sua obra a mais importante da fase do nacionalismo verde-amarelo,

Martim Cererê, em que o poeta recria poeticamente o período compreendido entre a

descoberta do Brasil e a modernização de São Paulo, sob a influência da agricultura

cafeeira e da chegada do imigrante.

O Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, propunha a devoração da

cultura e das técnicas importadas e sua reelaboração com autonomia,

transformando o produto importado em exportável. O nome do manifesto recuperava

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uma crença em que índios antropófagos comiam o inimigo, para assimilar as suas

qualidades (COUTINHO & COUTINHO, 1999).

Mito de origem para o cacau O mito é uma narrativa tradicional que procura explicar os principais

acontecimentos da vida de um povo, por meio do sobrenatural, e que comporta

sempre uma significação simbólica, de caráter cosmogônico, onde deuses são os

principais personagens. Para a psicologia e a sociologia, é uma forma de explicação

do mundo, onde são expressas certas estruturas da sociedade ou do espírito

humano, que projetam certos tipos gerais de explicação das coisas, apoiando em

terra firme as fantasias e os conteúdos do inconsciente (JUNG, 1995).

Embora não haja concordância entre os explicadores da mitologia, sua

importância maior reside em sua influência nas artes e, de modo especial, na

literatura. De todas as mitologias do mundo, a que mais influência exerceu foi a da

Grécia antiga, não somente na Antiguidade Clássica, mas também nos tempos

modernos com o Renascimento. Na literatura de língua portuguesa, Os Lusíadas, de

Camões, é o exemplo maior, modelo clássico para poetas posteriores em Portugal e

no Brasil.

A mitologia indígena no Brasil, já estudada por poetas e escritores do

romantismo, como Gonçalves Dias, reaparece no modernismo, no contexto do

folclore brasileiro, aliada à mítica de procedência africana e à herança dos mitos da

cultura ibérica.

Iararana, de Sosígenes Costa, é um poema narrativo, escrito em torno de

1933, de caráter rapsódico, dentro da linha modernista-nacionalista de Macunaíma,

de Mário de Andrade (1928); Cobra Norato, de Raul Bopp (1931), e Martim Cererê,

de Cassiano Ricardo (1928). Assim como em Macunaíma os personagens são

símbolos do povo brasileiro, Iararana narra as aventuras de Tupã-Cavalo, figura

mítica que fugiu do Olimpo e se instalou na foz do rio Jequitinhonha, símbolo dos

conquistadores portugueses, numa época quando ainda “não tinha cacau”, o que o

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coloca em um tempo anterior à colonização, quando esse espaço pertencia aos

habitantes da floresta.

A chegada do centauro Tupã-Cavalo com seus raios trovejantes –

simbolizando as armas de fogo dos conquistadores – termina com esse tempo

mítico, ocupa o espaço sagrado, aniquila as florestas e seus habitantes. O

Jequitinhonha, que era o símbolo da vida, o lugar da subsistência, é invadido e

violentado.

Iararana também se assemelha a Cobra Norato quando vai buscar na

tradição indígena a sua inspiração, e também no espaço sagrado da floresta, assim

como Macunaíma, cuja linguagem empregada se “aproxima da oralidade folclórica”

(PACHECO, 1967). Contudo, enquanto o paulista Mário de Andrade e o gaúcho

Raul Bopp vão à Amazônia para situar os seus heróis, o baiano Sosígenes o faz em

sua terra mesmo, na Bahia, ou melhor, em Belmonte, na foz do Jequitinhonha.

Símbolo de libertação do inconsciente coletivo, Macunaíma transforma-se ao

sabor da imaginação, carece de um caráter definido, posto que seu caráter se

modifica no transcorrer da história, revelando-se, desmentindo-se, na evolução de

suas peripécias, características amorfas (a imaturidade) do povo e da cultura

brasileira.

Em Cobra Norato, um estudo do folclore, das lendas e da paisagem da

Amazônia e do seu regionalismo (SILVA, 1967), percebe-se as características do

movimento antropófago, do qual é talvez a obra mais representativa, que apela aos

elementos de uma cultura primitiva através da figura indígena. Tupy or no tupy that is

the question, na síntese de Oswald de Andrade.

Embora sejam marcantes as semelhanças de Iararana com Macunaíma e

Cobra Norato, como símbolo de libertação e pelo caráter antropofágico, Sosígenes

fica mais próximo de Cassiano Ricardo, em Martim Cererê, quando centra sua

temática no Sul da Bahia, que começa com a exaltação do indígena brasileiro, “no

tempo da onça”, e passa aos colonizadores, através da gesta de Tupã-Cavalo até a

expansão do cacau e à criação dos núcleos populacionais, um discurso por

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imagens que pode brotar de qualquer tipo de terreno (CALVINO, 1990), mas que o

autor prefere localizar em Belmonte, sua terra natal.

Enquadrado no chamado modernismo primitivista, Iararana, contudo,

apresenta alguns traços diferenciais, com relação às obras da mesma linha de

estilo acima mencionadas. Primeiro, o próprio anacronismo estilístico (discutível), já

que o primitivismo fora abandonado pela escola modernista em 1930. Segundo,

que Sosígenes não estava preso ao normativo ortodoxo do movimento modernista,

daí o anacronismo ser discutível.

Enquanto os modernistas abominavam tudo que tivesse relação com a cultura

helênica, ou com qualquer resquício de parnasianismo, Sosígenes, tranqüilamente,

misturava mitologia indígena com mitologia grega sem qualquer constrangimento.

“Os deuses do Parnaso comparecem em Iararana sob o signo negativo da paródia –

signo modernista por excelência e particularmente caro a Sosígenes Costa, a quem

ensejou invenções notáveis – mas nem por isso deixam de ali estar menos

presentes” (PAES,1979, p. 6). E ainda outro traço diferencial é que o caráter local

prevalece sobre o nacional, porque quase toda a ação de Iararana se passa em

Belmonte.

Tupã-Cavalo – o colonizador português

O poema começa por descrever o susto que os bichos e figuras lendárias do

Jequitinhonha tiveram com a chegada do centauro que veio do mar e adentrou o rio,

com uma forma de “anta medonha com cara de homem”. Embora o nome Belmonte

vá aparecer somente bem mais adiante, há toda uma menção a topônimos e nomes

relacionados com a fauna e com a flora, instrumentos, folguedos, bem como a

aspectos lendário-mitológicos locais. Lugares: Boca do Córrego, Bolandeira, Coroa

Grande, Ibipura, Ilha das Vacas, Ingauíra, Limoeiro, Meroaba, Pedra Branca, Peso,

Poaçu, Rio das Pedras, Rio Bu (Ubu). Figuras lendário-mitológicas: boitatá,

bruxa, bute, caburé, caçari, caipora, calunga, capeta, curupira, homem-de-saia, iara,

ipupiara, jurupari, lobisomem, mula-de-padre, oxum, pai-do-mato, romãozinho, tupã,

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tutu. Elementos da fauna: acauã, anequim, anta, aramaçá, aruá, bacurau, baiacu,

beija-flor, caburé, caçari, calunga, canapu, capivara, caxinguelê, come-grilo, formiga-

de-estalo, gambá, grauçá, grilo, jabuti, japu, jitiranabóia, jundiá, jupati, jupará, mãe-

da-lua, marobá, maruim, martim-pescador, micuim, miriqui, mutuca, perequito-testa,

perua, pico-de-jaca, pitu, pixixica, salgo, saruê, siri, sucuriuba, surucucu, taruíra, teiú,

xaréu, xexéu, vaca. Elementos da flora: babá, bananeira, barba-de-barata,

baronesa, beijo-de-frade, cajá, carrapicho, coco, fita-de-moça, fruta-pão, gameleira,

gravatá, ingá, jasmim-borboleta, mané-velho, mangue, maturi, mulungu, patioba,

quiçare, quioiô, quitoco, rabo-de-arara velame. Instrumentos de caça e pesca: anzol,

camboa, jequi, mundéu, munzuá, siripóia, tarrafa. Instrumentos de fazenda de

cacau: caçuá, dedeira, gancho, podão, porango. Folguedos: burrinha, jote,

mataná-ariti, picula, sacudido (V. Glossário).

Toda esta nomenclatura vai caracterizar o estilo localista do poeta, que é

também acentuado com brasileirismos e idiomatismos regionais, cantigas e outros

aspectos culturais. A linguagem coloquial utilizada pelo poeta também é outro traço

que vai reforçar a predominância do caráter localista sobre o nacional.

- Compadre de Bu, disse dom Grilo, Tenho uma coisa pra lhe contar. ... Eu estava na ilha brincando de jote, Correndo picula, defronte do mar, E quando olho, menino, Que vejo? Menino (p. 21, 22.) ... ...não contou lorota nem semana de onze dias ...não foi lodaça, foi verdade purinha (p.32).

Os artistas do movimento modernista defendiam a existência de uma língua

“brasileira”, diferente daquela que nos foi imposta pelos colonizadores simbolizados

por Tupã-Cavalo, o “bicho danado que veio da Oropa com feição de mondrongo” (p.

33). Sosígenes Costa, de acordo com os pressupostos norteadores do movimento

modernista, através do uso da linguagem popular e regionalista, procura justificar a

idéia de que “a língua dos simples é portadora de algum saber” (MARTÌN-

BARBERO, 2001).

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Todo o poema - e isto já se percebe na primeira cena - está recheado de

palavras e expressões regionais que podem ser de difícil compreensão em um outro

contexto. São ditos, ditados e dichotes aprendidos e apreendidos pelo poeta, em

Belmonte ou em Ilhéus, os quais refletem essa brasilidade tão cara aos

representantes do movimento modernista.

Quando ele diz que “aquela bruxa também azulou” (p.21), significa

simplesmente que ela saiu dali apressadamente. Na expressão “compadre de Bu”, o

autor está se referindo ao principal afluente do Jequitinhonha, na Bahia, o rio Ubu, e

é uma alusão ao jundiá (personificado), o “compadre de Bu”, e assim por diante.

... amarelo empapuçado (p. 26) Zeca Fedeca sem pé nem munheca (p. 27) Elê elê pela porta do capeta Dom Grilo passou por aqui? (p.31)

O poema é composto de quinze capítulos ou cenas, como denomina o autor.

Na primeira cena, que abre o poema, a narrativa é impessoal, salvo alguns diálogos

entre animais e entidades do reino das selvas. Na segunda e na terceira cenas, o

narrador se personaliza na figura do avô, que conta ao neto a gesta de Tupã-

Cavalo, símbolo do conquistador europeu, aquele que saiu da “pontinha da Oropa

(...) e veio nadando e chegou neste rio” (p. 33, passim).

De acordo com a última cena do poema, a história se passa em um tempo

mítico, “tempo da onça, no tempo em que o rio não tinha cacau...” (p. 100). Esta

indicação do poema situa a ação em época anterior à colonização, quando as matas

do Jequitinhonha ainda pertenciam aos seres da floresta - homens, animais e

entidades.

Com a chegada de Tupã-Cavalo, os seres míticos da floresta desapareceram.

O centauro tomou o lugar de Jurupari (entidade indígena, deus reformador), e “fez

guerra com espingarda aos cabocos do mato e venceu os cabocos, escorraçou o

pai-do-mato e ficou no lugar dele e se chamou dono da gente. Mas caboco com

ódio o chamou Tupã-Cavalo...” (p. 34).

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Tupã, na mitologia indígena, é uma divindade, cujo raio trovejante (no poema,

símbolo das armas-de-fogo dos colonizadores) aniquila as árvores e os seres da

floresta. O pai-do-mato é um monstro folclórico, muito grande, cujo urro estronda

por toda a floresta; nem tiro nem facada o matam a menos que lhe acertem o

umbigo; come gente, tem pés de cabrito e corpo peludo (PAES, 1979).

Com os colonizadores europeus, há uma substituição de poder, porque a

mata - lugar sagrado - é invadida, conquistada, derrubada para se plantar o cacau.

Os cabocos aprendem a cultivar o cacau e a fazer o chocolate, essa bebida

maravilhosa (gr. theobroma = bebida dos deuses). José Paulo Paes quer ver no

caráter dúplice de Tupã-Cavalo os aspectos, ao mesmo tempo, hostil e benéfico

que, enquanto destrói - a floresta, a cultura indígena, mitos e lendas - constrói aquilo

que seria a civilização do cacau.

Ao comentar sobre A colônia brasileira: economia e diversidade, Sheila de

Castro Faria (1997) salienta que, embora houvesse facilidades para o acesso à

terra, pelo colonizador, havia também uma espécie de barreira indígena que impedia

que as terras da colônia fossem efetivamente livres. Daí o cuidado que se tinha para

não se estabelecer atividades muito afastadas dos núcleos de povoamento. Os

riscos teriam que ser reduzidos com presença dos corpos de milícia e da

administração portuguesa - os “mondrongos” - para espantar os ataques indígenas.

Com a rarefação da presença indígena no litoral, as incursões do colonizador

europeu e de seus descendentes tornaram-se mais acentuadas.

Diante das dificuldades para a apropriação das terras, o colonizador procurou

utilizar o próprio índio para servir de colono, primeiro na extração de pau-brasil e

depois nas atividades agrícolas açucareiras, a despeito da interferência dos jesuítas.

Embora os primeiros contatos entre colonizadores europeus e os nativos tenham

sido amistosos, a situação mudou, iniciando-se um longo processo de escravização.

Iararana, portanto, é também um poema de denúncia contra a apropriação das

terras brasileiras pelos colonizadores europeus, contra a exploração violenta na

busca de riquezas e contra a apropriação da cultura indígena, a iara do

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Jequitinhonha, situação que se confunde com a exploração dos trabalhadores das

roças de cacau, tão colocada em evidência nos romances de Jorge Amado.

A narrativa da alma-do-mato, em Iararana vai dessacralizar a visão heróica do

“descobrimento” do Brasil, perpetrada pela história oficial, substituindo-a pela idéia

de invasão e violência. O colonizador é representado pela figura errante do

centauro, que se intercessiona com representações mitológicas nativas, como a do

cavalo-marinho, monstro marítimo fantástico da mitologia cabocla; o Ipupiara, gênio,

bestial e repugnante, inimigo, conforme crença indígena, dos pescadores; e Tupã,

deus poderoso, presente no estrondo do trovão e no clarão do relâmpago (SOUZA,

2002).

Já na segunda cena, Sosígenes recorre à mitologia grega para justificar o

mito do centauro como símbolo da origem do cacau. Os centauros eram seres

fantásticos, metade homem, metade cavalo que, segundo se acreditava, viviam nas

montanhas da Tessália e da Arcádia. Filhos de Íxton, rei dos lápidas, tentaram raptar

a noiva de Pireto, o que provocou uma luta feroz. Na arte clássica, a vitória sobre os

centauros simboliza o triunfo da civilização sobre a barbárie e da legalidade sobre a

desordem (SULFINCH, 1965).

Marcos Aurélio Souza (2002) percebe, ainda, na narrativa sosigenesiana,

um diálogo com obras do modernismo hispano-americano, de onde se extrai a idéia

do mito do centauro, o que se explica “pelo fato dos colonizadores espanhóis terem

explorado a América sob o lombo de cavalos e, como os índios não os conheciam

em estado domesticado, enxergavam, assim, homem e bicho em um só corpo,

formando uma figura arrebatadora e terrível”.

O “Papai-vovô [ ...] que é o dono da Oropa [...], dono do corisco e é quem

manda o pau cantar” pode ser identificado com Zeus, senhor do Olimpo; pode

também ser um símbolo da hegemonia cultural da Europa, onde, em seus tronos,

assistem os doze deuses do Olimpo, ou as doze mais poderosas nações da Europa.

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A idéia de desbravar está presente quando os índios foram obrigados a servir

o colonizador.

Tupã-Cavalo brocou a mataria e onde havia bananeira do mato plantou, na sombra e na umidade, umas sementes que molhou com querosene para o grilo não comer. E disseram: é carrapicho! E as sementes nasceram e se viu que era cacau (p. 37).

Tupã-Cavalo, ao mesmo tempo homem e bicho, inteligência e brutalidade,

construção e desconstrução, apresenta esse caráter dúplice dos começos do cacau

na Bahia, desde que Luis Frederico Warneaux trouxe as sementes do Pará, que

foram plantadas na fazenda Cubículo, no município de Canavieiras, em 1746, a se

levar em consideração a tradição mais aceita. Quando as matas eram brocadas, ou

derrubadas, para o plantio do cacau, era costume molhar as sementes com

querosene para que não fossem comidas pelos bichos, principalmente o jupati, um

roedor típico das roças de cacau. O colonizador

era branco e bonito mas gostava de judiar. Porque não achou aqui com quem pudesse se casar, judiava da gente e fez índio escravo dele. E mandava caboco limpar a roça dele. E o cacau já estava crescidinho e saía com uma força... (p. 39).

O colonizador português, aqui simbolizado pelo centauro Tupã-Cavalo,

investe contra as tradições indígenas, contra o caráter sagrado da terra, quando,

apaixonado, se apossa da iara do Jequitinhonha e a violenta, “apoderando-se, a

partir daí, simbolicamente, de um importante mito fluvial dos caboclos, cujo encanto

é muito respeitado, pois representa a força do rio” (SOUZA, 2002). Desse encontro

forçado, nasce Iararana14, a falsa iara, “símbolo de uma hibridez racial, assimiladora,

conivente com os valores coloniais” (Id.).

Tupã-Cavalo ficou logo apaixonado, Passou junto da camboa, Se escondeu na cana brava E pegou a mãe-dágua na coroa.

14 Iararana (do tupi ig = água; iara = senhor/senhora, acrescido do sufixo rana = semelhante a, falso) – Semelhante à senhora das águas.

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Foi daí que nasceu o samba: Olha o fogo no canaviá (p.41).

O fogo no canaviá é o fogo do desejo, o fogo da luxúria de que é tomado o

centauro-conquistador que vai profanar a figura sagrada da iara do Jequitinhonha, o

que leva o rio a encher e alagar tudo na tentativa de “levar Tupã-Cavalo”. Aí se

percebe uma explicação mítica para as grandes enchentes que causam temor aos

belmontenses, principalmente às populações ribeirinhas e, ao mesmo tempo, uma

resposta da natureza aos seus agressores.

Nos primeiros tempos da colonização portuguesa, no Brasil, as sociedades

indígenas eram igualitárias, onde tudo era dividido, e desconheciam, portanto, a

propriedade privada. No processo de troca de mercadorias (escambo), os índios

incluíam no negócio também mulheres, que eram oferecidas como esposas,

enquanto os portugueses as viam como escravas. Onde o português via a

conquista, a dominação, os índios viam simplesmente uma aliança fundada na

relação de parentesco.

Havia, pois, um fosso cultural enorme entre europeus e povos indígenas. Os

portugueses recebiam as mulheres indígenas, mas não davam suas mulheres em

troca, como seria o esperado pela cultura da terra. A violentação da iara entre a

cana brava foi mais que se apoderar “de um mito fluvial dos caboclos”, o que levou

o rio a “ficar danado”, alagar tudo e botar lama no pasto. Foi a apropriação das terras

indígenas, de suas mulheres, de sua cultura, de forma violenta, pois que se

julgavam superiores e acreditavam que a terra lhes pertencia por direito. Ali o

português era o mandachuva da Oropa, dono do corisco e que “manda o pau

cantar”. Onde não funcionou a persuasão, a violência foi a norma.

Comentando sobre os quinhentos anos do descobrimento da América, na

sua Pedagogia da indignação, Paulo Freire coloca em relevância o fato de que não

se pode mudar o passado, mas compreendê-lo, recusá-lo ou aceitá-lo. Com esta

compreensão, salienta ainda que o colonizador não descobriu, mas conquistou a

América e, no que diz respeito à conquista, seu “pensamento em definitivo é o de

recusa”. A conquista se caracteriza pela presença predatória não apenas no que se

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refere ao espaço físico, como também aos aspectos históricos e culturais dos

invadidos diante do mandonismo e do poder avassalador dos conquistadores sobre

terras e gentes, nessa ambição incontida de destruir a identidade cultural de povos

considerados inferiores (FREIRE, 2000).

Origem do Cacau O cacaueiro é uma planta nativa das regiões tropicais da América Central e

da América do Sul. Quando os colonizadores espanhóis chegaram à América, o

cacau já era cultivado pelos nativos, principalmente os Astecas (México), os Maias

(América Central) e os Incas (Peru).

De acordo com uma lenda asteca, o cacahualt (cacaueiro) era considerado

uma árvore de origem divina, pois Quatzalcault, o profeta agricultor, ensinara o

povo a cultivá-lo, pois ele mesmo o havia trazido do paraíso e daquelas sementes

tinha se alimentado e adquirido o conhecimento universal. Por isso, a plantação do

cacaueiro era quase sempre cercada de cerimônia religiosa. Provavelmente, foi este

significado religioso que levou o botânico sueco Carolus Linneu (1707-1778) a

denominar a planta de Theobroma cacao, o manjar dos deuses.

Na época da conquista, os espanhóis perceberam que os nativos já usavam

uma bebida feita de amêndoas de cacau trituradas, misturadas com água e plantas

aromatizantes. A essa bebida chamavam de chocolatl. O próprio imperador

Montezuma era um grande consumidor do chocolate e o ofereceu ao conquistador

Fernão Cortez, após a conquista de Tenochititlán, em 1519.

Com a utilização do açúcar na preparação do chocolate, os espanhóis

passaram a usá-lo também como alimento e, posteriormente, o levaram para a

Europa, transformando-o em bebida da aristocracia européia que depois se

espalhou por todo o mundo.

Outro uso que os nativos faziam do cacau era como moeda. O imperador

Montezuma recebia anualmente cerca de 1,6 milhões de sementes de cacau, ou

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200 xiquipils, como tributo da cidade de Tabasco, o equivalente hoje a

aproximadamente 120 arrobas.

Alguns antigos escritores falaram sobre o cacau na América e suas

diferentes formas de uso. Peter Martyr de Algeria, historiador da América e

conselheiro do imperador Carlos V, menciona o cacau em seu livro De obre novo

Petri Martyris ab Algeria, publicado em 1530, fala de sua utilização como bebida e

como moeda, enfatizando sua importância porque protege seus possuidores da

cobiça, pois não pode ser acumulado por muito tempo nem escondido.

O italiano Girolamo Benzoni publicou em 1565 La Historia Del Mondo Nuovo,

onde fala do uso do cacau como dinheiro e das técnicas de sombreamento

usadas pelos nativos para proteger a planta do sol. Dizia ele ainda que as amêndoas

de cacau, usadas como moeda, tinham grande valor, porque com uma centena

delas se poderia comprar um bom escravo.

Outro italiano que escreveu a respeito do cacau foi José de Acosta na obra

De Natura Novi Obris, publicada em 1585, onde se fala da utilização do cacau pelos

índios, como bebida e como dinheiro, e do comércio que já estava sendo realizado

pelos espanhóis.

Também Antonio de Herrera, historiador de Felipe III, publicou a Historia

General de los Hechos de los Catellanos, em 1601, em Madri, onde fala da

importância do cacau tanto como produto de subsistência como para o comércio.

A utilização do açúcar no preparo do chocolate serviu para atenuar o gosto

amargo da bebida e contribuiu para sua difusão entre o povo, permitindo-se que

fosse servido até mesmo nas igrejas. Em 1624, o chocolate foi condenado na

Europa, por certo Francisco Rauch, que escreveu um livro onde afirmava que o

cacau era um “inflamatório das paixões” e, portanto, seu uso devia ser proibido nos

mosteiros (BONDAR, 1938. p. 7 passim).

A partir daí se levanta toda uma polêmica de caráter teológico a respeito dos

benefícios e malefícios do cacau, suas qualidades nutritivas e terapêuticas, se os

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padres poderiam tomá-lo antes de celebrar a missa e se poderia beber chocolate

sem quebrar o jejum. Essa questão teológica somente foi resolvida com a abalizada

opinião do Cardeal Brancatio, que sentenciou:

Liquidum non frangit jejum (Id.p. 18).15

No Brasil, o marco oficial do cultivo do cacau é 1679, através da Carta Régia

que autorizava sua plantação em terras da Colônia. Entretanto, o cacau que já

vinha se desenvolvendo em estado nativo no Amazonas, e no Pará, começou a ser

cultivado em meados do século XVIII, embora tenha ficado ali, por muitos anos,

como simples atividade extrativa.

Na Bahia, existe notícia de que, por volta de 1665, D. Vasco de

Mascarenhas, vice-rei do Brasil pediu ao capitão-mor da Capitania do Pará, Paulo

Martins Carro, sementes de cacau para serem plantadas na Bahia. Contudo, não se

conhece documento algum que confirme o atendimento a esse pedido. Mas, é

tradição corrente e dada como certa que, em 1746, Antônio Dias Ribeiro recebeu

algumas sementes do colonizador francês Luiz Frederico Warneaux, do Pará, e as

plantou em sua fazenda Cubículo, à margem direita do Rio Pardo, no atual município

de Canavieiras. Daí então, em 1752, o cacau foi levado para o município de Ilhéus, e

depois para Belmonte que é assim o terceiro município baiano a desenvolver a

cultura do cacau, depois de Canavieiras e Ilhéus.

Em Ilhéos e em Cannavieiras, primeiro que em Belmonte, se bem que por pouco tempo, começou esse utilíssimo trabalho; até que, de Ilhéos, foram trazidas as sementes para o Pao-assu, pelos lavradores Pedro Seare e Belmiro Francisco de Lotero, e após para o França e Ingauhyra, por Joaquim Silva, Manuel José de Bittencourt, e Eugenio Amorim, no Engenho, os quaes fazendo algumas plantações, pequenas a principio, por experiência, logo tornaram-n’as maiores, em virtude de se mostrar a terra muito própria para o desenvolvimento e exhuberancia da arvore indígena da América Meridional, - da grande arvore do manjar divino, como se traduz do grego o seu nome botanico de “Theobroma cacáo” (MONTEIRO, 1918, p. 38).

O cacau se adaptou ao clima do Sul da Bahia, a ponto de tornar-se a principal

base de sustentação econômica, não somente da região mas também do Estado.

15 Líquidos não quebram jejum.

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Em Belmonte, a expansão foi rápida, com colheitas fartas e lucrativas, após 1860, o

que resultou no reflorescimento da vila e estimulou uma grande migração de

nordestinos e de europeus. Tudo isto contribuiu para consideráveis mudanças na

sociedade local, levando-se em conta aspectos econômicos, políticos, sociais e

religiosos – a cultura em geral.

Para os que chegaram nas terras do sul da Bahia, atraídos pelo cacau, antes de qualquer sinal do dinheiro fácil, pelo qual se deslocavam, (...) o primeiro choque vinha sempre na natureza. Para trabalhar precisava enfrentar a mata atlântica, desbravando-a, queimando árvores e animais para só assim poder plantar o cacau, o qual viria a ser realidade cinco anos depois (GUERREIRO DE FREITAS, s/d).

Belmonte passa a manter as mais estreitas relações com a província de

Minas Gerais, via Jequitinhonha, e pelas longas estradas que eram mantidas

transitáveis pelo trabalho dos escravos da Nação, que também ajudavam no trânsito

das boiadas e das tropas de animais que transportavam mercadorias.

Analisando as transformações que se processaram no Sul da Bahia, por

conta da expansão do cacau, em luta contra o poder natural da floresta, Antonio

Pereira Sousa percebe a apropriação do espaço que, territorializado, seria a região

do cacau, em estágios distintos, de forma gradativa.

Num primeiro momento, os pioneiros viviam numa espécie de equilíbrio cósmico com a terra (...). Numa segunda fase, temos o tempo histórico dos desbravadores, em busca do plantio do cacau (século XIX). O equilíbrio inicial se desfaz ao se intensificar o avanço do homem sobre a mata, na cobiça pela posse de terras, na disputa pelo processo acumulador de propriedade e de poder (SOUSA, 2001, p. 19, 20).

Transplante Cultural

Símbolo de uma hibridação racial e cultural, nasceu Iararana, de brancura

araçuaba comparada a uma taruíra (lagartixa branca). Puxa às suas origens

européias, ao pai, não apenas na cor da pele, mas no caráter cruel e violento:

“danada de runhe”. Nossa mestiçagem aparece aí como resultado de uma limpeza

étnica, de um estupro praticado contra a cultura de povos considerados inferiores

(no caso, os índios do Sul da Bahia).

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Passado o tempo, Tupã-Cavalo com podão colheu fruta de cacau que tinha dado e estava assim de madurinha. E se sambou no cacau (p.62).

De que tempo está falando o poeta? Aqui, o tempo mítico, o “tempo da onça”,

se confunde com o tempo histórico de Belmonte, do Jequitinhonha, das fazendas de

cacau. Esse tempo pode ser situado na segunda metade do século XIX, quando o

cacau passou a ganhar importância em meio a outras culturas de subsistência,

vencendo em preferência a cana-de-açúcar que declinava.

Quando o poeta diz que “se sambou no cacau”, possivelmente, está se

referindo à prática de se pisar o cacau fermentado, levado para secagem na

barcaça (a sol) ou na estufa (a fogo), quando os trabalhadores executavam uma

espécie de coreografia, cantando alguma música da região. Esse processo favorece

a limpeza das amêndoas e lhes dá um brilho especial. Contudo, pode quebrar a

película de proteção e deixá-las sujeitas à infiltração de traças e outros bichos, o que

pode levar ao mofo interno desqualificando o produto.

O cacau passa a ter múltiplas finalidades: dele se extrai o mel, faz-se

chocolate, doce, jacuba, vinagre. No vale do Jequitinhonha, assim como em outros

lugares da região, o cacau é trazido da roça em cestos ou caçuás e depois colocado

em canoas velhas utilizadas para servirem de cocho. “Tupã-Cavalo [...] botou cacau

num pedaço de canoa pra fermentar” (p. 63). Os fazendeiros maiores, normalmente,

constroem cochos especiais, que ficam abrigados contra as chuvas e o vento em

galpões ou abrigos para evitar as variações de temperatura, que podem prejudicar

o processo de fermentação. Quando o cocho está cheio, é então coberto com folhas

de bananeira ou sacos de aniagem16 para manter o calor. Para que o cacau seja

submetido às mesmas condições de temperatura e fermentação, é revolvido com

uma pá de madeira de uma para outra parte do cocho. Novamente coberto, a

operação é repetida no dia seguinte, e assim durante aproximadamente seis dias,

período considerado ideal para uma boa fermentação.

Quando o cacau fermentou bem, Pôs em cima de um saco na coroa O cacau do gavião que não é do jupará.

16 Tecido grosseiro de algodão ou linho cru para sacos e fardos.

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Também botou cacau em zinco velho e numa esteira E em taboa velha que apanhou na alagação (p. 63).

Após a fermentação, naqueles tempos era comum, entre os pequenos

produtores, a secagem do cacau em panos, esteiras ou folhas de zinco nos bancos

de areia, ao sol, método ainda rudimentar mas considerado o melhor (BONDAR,

1938), tanto pela qualidade do produto como pela facilidade do processo. Daí o

poeta afirmar:

“O sol veio e secou tudo e o cacau ficou bom” (p. 63).

Depois é torrado “numa lata torradeira” (uma lata de querosene aberta ao

meio) posta em fogo brando, a seguir moído “no pilão grande de pau” (tronco grosso

de madeira cavado), e depois peneirado na urupema (peneira) de cipó, com açúcar,

canela e baunilha. Está pronto o chocolate.

Em Forrobodó na coroa (p.65), e Sacudido do cavalo-marinho (p. 74), o

bicho-cavalo canta e conta a sua origem com todos os ingredientes mitológicos,

retomando a narrativa da cena II contada pela alma do avô. Aí Sosígenes Costa,

notadamente sério, torna-se irreverente ao misturar os elementos lendários para

construir a sua narrativa.

Quando o centauro diz que nasceu de um “engano danado” e que “mamãe

enganou papai, virou nuvem lá do céu”, está se referindo a um acontecimento

mitológico relacionado com o envolvimento amoroso de Íxion com Hera a esposa de

Zeus. Tomando conhecimento do fato, Zeus moldou uma nuvem à semelhança de

Hera, a quem Íxion se uniu e geraram o Centauro, gênese de todos os centauros.

Recorrendo então ao mito dos centauros, fala de uma festa no céu (Olimpo),

a que o Centauro fora convidado pela Aurora e lá foi onde ele “quis roubar a mulher

mais bonita de lá”, que era exatamente do “dono do corisco” e por isso ele foi

expulso pela fúria do grande mandachuva. A seguir, vem um elenco de seres

mitológicos como a Medusa, Pégaso (que o poeta chama de jegue), Ceres

(encantada em égua) e Hebe (a copeira do Olimpo).

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Ao fugir da Medusa, o Centauro vai se esconder em Roma, de onde tem que

fugir, porque aí caem também os destroços do céu e um bode preto que morre, o

que provoca uma “noite pesada” que dura muito tempo e só termina com a

ressurreição dele e de uma grande turba de aleijados. No contexto de Iararana, José

Paulo Paes (1979) identifica o bode preto como Pã, deus dos pastores, o único deus

a morrer e que divertia os demais deuses do Olimpo com sua feiúra. Pã em grego

significa tudo. Daí que no Forrobodó na coroa

- O bode perdeu a gaita naquela festa do céu. A gaita de sete bicos, a gaita de sete bocas, a gaita de sete braços a gaita de sete peitos, a gaita de tudo sete não se mete mais na boca, na boca não mais se mete (p. 72, 73).

Entre os antigos hebreus, sete era considerado o número da perfeição e da

universalidade: os sete castiçais, as sete trombetas, os sete selos, as sete igrejas.

Na mitologia grega, “a gaita de tudo sete” está relacionada com a amplitude de seu

alcance, que divertia a todos os deuses do Olimpo. Com a morte de Pã, “caiu a noite

pesada que quase não teve fim”, o que significa o declínio da cultura helênica e a

longa noite medieval que se seguiu. A ressurreição do bode seria o período

renascentista, cujo final coincide com o descobrimento do Brasil, com a chegada do

centauro-colonizador à foz do Jequitinhonha, símbolo do transplante e da imposição

cultural eurocêntrica.

E quando na Oropa se soube que estava de volta o cavalo-do-mar, os bichos da Oropa que enxotaram aquele cavalo do lugar mais bonito de lá, disseram assim:

- Olhe, menino, voltou do país das araras o cavalo-do-mar. Está queimado que nem salgo fugido

mas voltou com dinheiro (p. 78).

O que ocorre aqui é depois de “passado tempo”, quando o cacau é levado

para a Europa como produto de exportação. Tupã-Cavalo tipifica o colonizador, o

desbravador das matas, o plantador de cacau que estabelecerá o coronelismo - nas

relações de poder na esfera do econômico, do político e do social - num processo de

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hibridação cultural (CANCLINI,1998), figura que Iararana simboliza, na concepção

do poeta. O cacau é “recebido no palacete dos bichões que tinham morrido uma

vez, mas se levantaram mais tarde do caixão”. O cacau, então, em forma de

chocolate, é servido “na mesona dos bichões”.

Mais uma vez existe aqui uma recorrência de Sosígenes à mitologia grega

quando, de forma irreverente, ele trata os deuses como os “doze bichões” .Em

razão da própria etimologia da palavra theobroma, em grego, manjar dos deuses,

Sosígenes imagina as figuras do Olimpo a exigirem de Zeus o theobroma em lugar

da ambrosia . A despeito de toda esta percepção simbólica, a poesia sosigenesiana

pode ser entendida, além da justificativa etimológica ou do “desejo de zombar da

parafernália helenizante dos parnasianos”, como acredita José Paulo Paes, como

uma referência à importância que o cacau alcançou no mercado europeu, o que o

colocou “lá naquelas alturas” (p. 84).

Coronelismo

Coronelismo é um termo que se refere ao conjunto de influências exercidas

pelos coronéis da política brasileira, grandes fazendeiros e chefes políticos que

controlavam o processo eleitoral, no exercício de um poder absoluto, mantinham a

ordem e até mesmo distribuíam a justiça e se tornavam provedores da grande

maioria pobre.

Na Primeira República, a fragilidade do poder central, tanto em nível estadual

como federal, era evidente, o que contribuiu para o predomínio dos coronéis, nos

municípios, onde sua vontade era imposta como lei, pela força das armas de seus

bandos, transformando o coronelismo na única instituição viável de poder, tudo isto

favorecido pela ausência de um Estado forte e centralizado.

De modo geral, acredita-se que o termo coronel decorre das patentes da

Guarda Nacional dadas aos potentados locais, pessoas influentes, da confiança do

governo imperial e que assim adquiriam autoridade para impor a ordem. O termo

continuou mesmo quando foi extinta a Guarda Nacional, sob o regime republicano.

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Nesse momento, o coronel já dispunha de sua própria polícia, dezenas e centenas

de jagunços a seu serviço para defender e ampliar suas propriedades, bem como

garantir a vitória de seus candidatos nas eleições.

Para Wilson Lins (1988), as raízes do coronelismo estão ligadas às antigas

sesmarias que, no desbravamento dos grandes espaços pouco povoados,

introduziram as práticas do mandonismo, idéia que também tem apoio em Eul-Soo

Pang (1979), que vê o termo “coronel” relacionado com os aspectos sociais e

políticos do monopólio do poder, e que vai se projetar, após a independência do

Brasil, tanto no regime monárquico como no republicano. Após a independência, o

título de coronel foi legitimado, com a Guarda Nacional, em 1831, instituição criada

para garantir o cumprimento das leis do país e a defesa nacional; mas o

coronelismo, enquanto poder, foi legitimado pela aceitação do seu status pelas

classes dominadas, forjadas no sistema agrário do Brasil colonial.

Embora a economia monocultora do período colonial tenha impedido a

ascensão das classes não-agrárias ao poder, privilégio da aristocracia rural, no final

do século XVIII, a classe mercantil urbana já desafiava os proprietários de terras.

Posteriormente, como a terra era o grande símbolo do poder, muitos comerciantes

das pequenas cidades resolveram aplicar os seus lucros no campo, comprando

terras, “já que a terra era a fonte de dominação dos ricos e a poupança dos

remediados”. No sertão, a terra era símbolo do poder pela sua extensão; no litoral,

pela sua produção.

Ao falar sobre o coronelismo no Sul da Bahia, Gustavo Falcón (1988) não o

vê como algo isolado, distante da realidade do mercado, mas como parte intrínseca

do jogo do poder, numa relação muito próxima “com os mecanismos de dominação

do capital” (Id. p. 62). Ele percebe em Ilhéus essa relação profunda entre o sistema

mercantil e a política do coronelismo, o que vai desembocar na formação de uma

burguesia agrária do cacau. As raízes do mandonismo político local estavam

entrelaçadas nas relações entre o poder econômico, o político e o social.

Falcón analisa o coronelismo no município de Ilhéus em particular, e o faz por

extensão em toda a região cacaueira, “onde se produzia um bem em expansão”,

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uma atividade que se desenvolvia rapidamente em termos de produtividade. Em

Ilhéus, o pessoal resolvia suas pendências “na boca do revólver, do trabuco,

fazendo os processos eleitorais das formas mais estapafúrdias possíveis, chegando

a conhecer no período uma coisa engraçada: a duplicata eleitoral efetiva” (Ib. p. 66).

Em Belmonte também.

A cada ascensão e queda de partido no Brasil, turvam-se os ares e treme a terra no sertão com o levante da canalha, ao serviço das vinganças, dos chefetes dos pequenos burgos que, pelo fato, na violência, reproduzem os debates de tribuna e de jornalismo dos chefes nos grandes centros policiados. Não se comparam, pois, os bandidos sertanejos com criminosos das cidades. Os moveis egoístas, de natureza econômica e de injustiça social que impelem a estes, são naqueles apenas substituídos pela falta de educação e de polícia, pelos costumes partidários sem elevação e patriotismo, que os arma em desmandos contra a ordem, mas para repressão e castigo de desmandos opostos e passados (PEIXOTO, 1933, p. 121).

Eduardo Santos Maia, em Recontos da minha terra, fala de um dos chefes de

clavinoteiros, como eram conhecidos os jagunços do vale dos rios Pardo e

Jequitinhonha – José Alves Leão, conhecido por Zeca Petisco, protegido de alguns

coronéis e políticos da região. Figura contraditória, cometia os piores desatinos,

deixando a população apavorada. Por outro lado,

à sua sombra viviam algumas famílias a quem concedia esmolas e garantias, praticando, muita vez, atos de verdadeira benemerencia e misericórdia: casava moças pobres e seduzidas, costeava enterros, fazia batizados, dava credito comercial, emprestava dinheiro para começo de vida, etc. (MAIA, p. 262).

Segundo Afonso M. Monteiro (1918), José Alves Leão era capitão da Guarda

Nacional; dava-se também o título de coronel e assim fazia questão de ser tratado.

Seu Quartel General ficava na Ilha Grande e, quando visitava a cidade de

Belmonte, vestia sempre uma farda de brim branco com três galões nos punhos,

cobria-se de jóias e montava cavalos ricamente arreados, símbolos de poder.

Exercia as funções de Juiz de Paz da Ilha-Grande, por influência do intendente

municipal e com o apoio do Conselho.

O movimento desses clavinoteiros começou no distrito de Ilha Grande, no

final de 1891, com espancamentos, roubos, assassinatos e outros tipos de

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agressão. Daí, a violência organizada foi se distendendo pelas redondezas em

direção a outros povoados através dos rios Jequitinhonha, Pardo, Salsa , chegando

aos povoados de Cachoeirinha, Campo do Zinco, Campinhos, Jacarandá e Salobro.

Fazendas eram incendiadas e seus donos obrigados a fugirem quando não

morriam. Afrânio Peixoto, em Fruta do mato (1933), reproduz um diálogo entre

clavionoteiros:

- Vocês já limparam toda a redondeza?... - Qual?!... falta muito!... dá trabalho... Da Ilha Grande partimos, faz três meses, por dentro, até o Campo do Zinco, para juntar os companheiros. Saímos no rio Pardo, fomos ao Salobro, ao Campinho, à Cachoeirinha... até aí serviço bem feito. Escorraçamos e “demos exemplo” a tudo quanto foi “mandioca”, bolos nos homens, “confianças” nas mulheres, fogo nas casas, p´ra não ficar sinal (PEIXOTO, 1933, p. 113).

O mesmo Afrânio Peixoto ainda explica a conjuntura política que motivava as

ações daqueles homens armados a serviço do poder:

Com a queda dos conservadores, os liberaes que subiram ao poder, como é de regra a cada ocasião destas, açulavam a vindicta contra os adversários. Grupos de criminosos, canalha desclassificada, se armava e percorria, de deu em deu, toda a comarca e adjacências [...]. É assim, o ritual, a cada ascensão de partido. Desde 7 de junho que anda a conflagração em Canavieiras, em Belmonte, sei lá por quantos termos, desse infeliz Brasil! Chama-se a isso “política” [...] Chegam à noite, quando os inimigos não cuidam e se anunciam ruidosamente com descargas, vivas aos liberaes, - “pinguelos” para eles - , morras aos “mandiocas”, - que são os conservadores -, bebem, comem, descansam, se é fazenda de amigo ou correligionário, ou insultam, batem, violentam, matas, às vezes incendeiam, quando topam adversários (Ibid. p. 114).

Em algumas vezes, esses clavinoteiros chegaram a invadir cidades, como

Porto Seguro, em 1892, e Canavieiras, em 1894, quando saíram dando tiros pelas

ruas da cidade, estes sob o comando de Sérgio Portugal, outro dos condottieri do

vale do Jequitinhonha, colocando a população em polvorosa.

A 24 de julho de 1892, os clavinoteiros atacaram a propriedade do suíço

Frederico Gustavo de Lecoultre, que faleceu dois dias depois. José Alves de Leão, o

Zeca Petisco, foi preso pelo Ten. Francelino Telles de Menezes, julgado em

Salvador e absolvido. No dia 19 de fevereiro de 1896, enquanto caminhava pelas

ruas de Salvador, foi assassinado pelo fazendeiro Macedônio Cardoso, a quem

havia assaltado e saqueado, no município de Belmonte.

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Em 15 de julho de 1894, foi fundada em Belmonte uma organização

denominada “União”, porque representava a união de pessoas que não pactuavam

com os clavinoteiros nem com os seus chefes-políticos-coronéis. Por esse tempo,

Sérgio do Nascimento Portugal foi detido, julgado e condenado a seis anos de

prisão. A partir daí, por algum tempo, a ousadia dos clavinoteiros se arrefeceu.

Filha do centauro-colonizador europeu com a iara do Jequitinhonha, num

processo de hibridação biológica e cultural, Iararana cresceu, tornou-se poderosa,

“com ar de raposa e de pata-choca danada de runhe” (p. 60). No conceito dos filhos

da terra, daquelas pessoas identificadas com a cultura local, “Iararana puxou ao

cavalo-marinho”. A expressão “ar de raposa e de pata-choca” combina duas

características marcantes do coronelismo: astúcia e sagacidade (da raposa) e a

opulência (da pata-choca), herança do processo colonizador (Tupã-cavalo).

Figura emblemática do mandonismo do cacau, do coronelismo, que foi

plasmando uma sociedade às margens do Jequitinhonha, através de conquista e

dominação das terras e da cultura indígenas, Iararana “tocou a judiar”, exigindo a

obediência de uma população que não conheceu outra justiça senão a dos

senhores que impuseram a lei da força, a justiça do clavinote.

É neste sentido que Wilson Lins (1988) vê o coronelismo como “filho caçula

do autocratismo discricionário dos primeiros povoadores brancos da terra selvagem”

(Id., p. 27), que chegou até nós depois das várias fases de adaptação a cada

estágio de desenvolvimento do país, e que marcou, indelevelmente, a vida

brasileira, moldando caracteres e impondo costumes, ao longo de quatro séculos

de mandonismo e obediência.

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CAPÍTULO IV

ARACANJUBA

Iahweh os dispersou dali por toda a face da terra, e eles cessaram de construir a cidade. Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi lá que Iahweh confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi lá que ele os dispersou sobre toda a face da terra.17

Migração Européia

O que se entende por migração, a despeito da variedade de fenômenos que

reúne, é simplesmente a mobilidade dos homens. É qualquer deslocamento,

individual ou coletivo, de um lugar para outro, desde os caçadores e coletores até

os grandes êxodos dos tempos modernos.

As pessoas não migram simplesmente porque querem mudar de lugar, sem

qualquer motivo plausível. Em qualquer estudo sobre migração, há que se levar em

conta o peso dos fatores de expulsão ou de atração e como se equilibram. De modo

geral, os migrantes na sua maioria não gostariam de abandonar seus locais de

origem, suas comunidades. A migração, então, se dá quando as pessoas concluem

que já não poderão mais viver ali em suas comunidades de origem por motivos os

mais diversos (RAISON, 1986).

Analisando, em primeiro lugar, os fatores de expulsão, pode-se perceber que,

mesmo nos movimentos aparentemente homogêneos, as causas podem ser

diferentes: culturais, econômicas ou políticas. Quando as causas são de caráter

econômico, é preciso se levar em conta ainda os fatores responsáveis pelo

agravamento da situação: o acesso à terra (e ao alimento), a variação de

produtividade da terra e o número de pessoas da família. Além das causas

econômicas, as pessoas podem estar sendo perseguidas por sua nacionalidade (as

17 Explicação bíblica para a mobilidade dos homens na pré-história (Bíblia de Jerusalém – Gênesis 11: 8, 9)

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minorias, numa cultura nacional maior, como no caso dos judeus em países como

Portugal e Espanha, nos séculos XV e XVI) ou por causa de religião (grupos

minoritários ou dissidentes, como no caso dos protestantes no tempo da Reforma).

No século XIX, o crescimento populacional em muitos países pressionou a

agricultura, o que causou grandes demandas por alimentos. Os métodos tradicionais

de arrendamento, cultivo e produção foram mudados, com a supressão dos antigos

direitos à terra, a criação dos enclosures18, o que implicou na perda do direito dos

camponeses, obrigando-os a trabalharem para outros. Com a mecanização da

agricultura, houve menor necessidade de mão-de-obra, justo quando surgia um

excedente de força de trabalho. Aí a fome foi a grande ameaça para as populações

sem terra ou com poucas terras.

Assim, os fatores de expulsão, nos locais de partida, e os fatores de atração,

nos locais de chegada, estabeleciam um jogo de forma dialética. Como esses

fatores existem em função uns dos outros, reforçam-se reciprocamente. Por

exemplo, enquanto na Europa a terra era cara e a mão-de-obra barata, na América a

terra era abundante e disponível. Contudo, a mão-de-obra era escassa e,

conseqüentemente, cara, o que possibilitava aos trabalhadores europeus uma

grande probabilidade, em pouco tempo, de conseguirem suas próprias fazendas.

Portanto, as fronteiras estavam abertas para o trabalho, e a possibilidade de adquirir

terras era grande atração para os imigrantes (KLEIN, 2000).

Cerca de dez milhões de africanos e quinze milhões de europeus cruzaram o

Atlântico até 1880. Mas o grande fluxo migratório da Europa aconteceu mesmo no

final do século XIX e início do século XX, principalmente no período de 1880 a 1915.

A segunda metade do século XIX coincide com grandes avanços tecnológicos, como

a substituição da vela pela energia a vapor nos navios de passageiros, o cabo

telegráfico transatlântico, as ligações ferroviárias, que foram marcantes para os

meios de transporte e de comunicação, de forma mais rápida e mais barata, entre a

Europa e a América.

18 Processo de passagem de terras livres ou comuns para o uso privado, com a demarcação de áreas e seu cercamento.

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Nesse período, foram cerca de 31 milhões de europeus que cruzaram o

Atlântico. Entre esses estava uma grande quantidade de italianos pobres, primeiro

do Norte e depois do Sul da Itália. Em menor escala, vieram também alemães,

poloneses, russos, suíços, etc. Na sua maioria, eram jovens adultos do sexo

masculino que tinham como lema “fazer a América”. O objetivo primordial era

acumular dinheiro para retornar aos seus países de origem. Muitos realmente

conseguiram voltar, mas a grande maioria mandou buscar suas famílias: esposas e

filhos, e noivas. De início, havia uma preocupação de casar com mulheres de sua

própria origem étnica. Depois, o processo de aculturação ao ambiente receptor

mudou os valores comportamentais desses imigrantes.

A Italianidade dos Filhos da Imigração

A primeira notícia que temos de presença italiana em Belmonte vem de Avé-

Lallemant, quando passou por aquele município no ano de 1859, e fez referência “a

um lugar por nome Italiano, por se ter domiciliado lá um indivíduo dessa

nacionalidade”, muitos anos antes da grande imigração do final do século XIX. (AVÉ-

LALLEMANT,1961, I v., p. 104).

Nos movimentos migratórios para o Brasil, que aconteceram no final do

século XIX e início do século XX, há que se levar em conta dois tipos de imigrantes:

aqueles que vieram de forma espontânea, por sua conta e risco, e aqueles que o

fizeram como parte dos contingentes de colonização oficial (CONSTANTINO, 2000).

De acordo com os depoimentos prestados por descendentes de imigrantes italianos

que vieram para Belmonte, nesse período, esses estão incluídos na primeira

relação: os que não estavam vinculados a grupos de colonização, de ordem pública

ou privada.

Assim como a maioria dos italianos que imigraram para outras regiões do

Brasil, esses que vieram para o Sul da Bahia o fizeram em razão da crise que se

abatera na Itália recém-unificada. A incorporação da península italiana à produção e

ao mercado capitalistas pesou sobre as condições de vida das populações

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camponesas. Contudo, dentro do contexto das teorias racistas, do determinismo

biológico e geográfico, Gramsci informa sobre a ideologia disseminada que atribuía o

atraso do Sul da Itália ao fato de que os sulistas eram “seres biologicamente

inferiores, semibárbaros ou completamente bárbaros por destino natural” (apud

OLIVEN, 1992, p. 16). Assim, a culpa do atraso não estaria relacionada ao sistema

capitalista nem às desigualdades sociais.

No entanto, das famílias italianas que se radicaram em Belmonte – quase

todas originárias do Sul da Itália - a maioria obteve sucesso em seus

empreendimentos. Muitos imigrantes ou seus descendentes enriqueceram,

tornaram-se latifundiários; outros fizeram sucesso na política ou ocuparam cargos

importantes, e todos, de alguma forma, contribuíram para que Belmonte se tornasse

uma das mais importantes cidades do Sul da Bahia, no final do século XIX e início

do século XX.

Nesse momento histórico, a Itália era uma colcha de retalhos em termos

culturais, onde se falavam diversos dialetos, e quando ainda não se havia

desenvolvido uma concepção nacionalista, uma italianidade. Dentre os diversos

falares dialetais que se desenvolveram na península itálica, o toscano foi o que

alcançou maior prestígio, pelo fato de ser o mais próximo do latim, a língua mãe.

Assim, o toscano foi mais assimilado pelas classes dominantes e pelos grupos

letrados, sendo a Divina Comédia, de Dante Alighieri, o elemento central nesse

processo de aceitação como língua escrita das elites peninsulares e, mais tarde,

como língua nacional italiana, até mesmo antes da unificação. Também a situação

geograficamente privilegiada de Florença, como principal centro político, econômico

e cultural da Toscana, com suas corporações, favorecia o papel de língua

hegemônica entre as diversas regiões da Itália e sua ligação com o resto da Europa.

Segundo Carboni, “no contexto de relações comerciais e produtivas mais

sistemáticas e refinadas, o falar dominante dos burgueses florentinos refinou-se,

padronizou-se e generalizou-se” (CARBONI, 2000, p.48). Acontecia na Itália o que

Marc Ferro fala com referência à França, a partir do século XVI, quando se

recomendava aos historiadores que abandonassem a língua latina em benefício da

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língua vulgar “para melhor glorificar a pátria e legitimar o Estado que a encarna”

(FERRO,1993, p.12).

Embora os falares dos diversos centros urbanos da Itália fossem se

modificando, sob a influência do toscano (também conhecido como volgare,

fiorentino ou italiano) - principalmente no Norte - as populações do Sul pouco sabiam

da língua de Dante, principalmente as camadas camponesas. Assim, permaneceu e

se fortaleceu uma situação de bilingüismo – língua oficial e língua dialetal – em que

o dialeto continuava sendo a língua principal das massas camponesas (Sanga apud

CARBONI, 2000, p. 63).

De um modo geral, a grande maioria dos imigrantes italianos no Brasil veio

por conta da contingência da colonização, muitos a serviço de elites italianas que

lideravam grande massa de trabalhadores, na Itália, como intermediários de

fazendeiros brasileiros; ou mesmo como aconteceu no Espírito Santo, na atividade

extrativa de madeiras-de-lei, um empreendimento de Pietro Tabachi já conhecido na

Europa (MEDEIROS, 1997, p. 55).

Em Belmonte, como era a tendência no Brasil, os italianos foram o maior

grupo nacional entre os imigrantes, mais do que portugueses, espanhóis e

alemães, com uma diferença considerável. “Paradoxalmente, os imigrantes

reforçaram, assim, o caráter ‘latino’ da população branca brasileira, a despeito da

esperança de muitos promotores da imigração de que europeus nórdicos fossem

atraídos em grande número” (SKIDMORE, 1989 p. 162).

Esses imigrantes italianos vieram quase todos da cidade de Paola, região

administrativa da Calábria. Tinham poucos recursos e eram de baixa escolaridade,

tinham pouco conhecimento da língua oficial e, conseqüentemente, falavam o

calabrês. Eram famílias que, na impossibilidade de sobreviver em suas

comunidades de origem, vinham “fazer a América” (no caso específico, o Sul da

Bahia).

O imigrante europeu, particularmente o italiano, foi bem recebido pela

comunidade belmontense, porque, através do branqueamento pela união de

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miscigenados com brancos, nesse processo de redução étnica, seria lógico esperar

que no curso de mais um século os mestiços tivessem desaparecido. Muitos

casamentos aconteceram entre filhos e filhas de fazendeiros locais e imigrantes ou

seus descendentes. Contudo, mais de cem anos depois, a população belmontense

– como de toda a região – continua miscigenada.

As condições econômicas, portanto, foram o mais poderoso fator de

expulsão, agravadas ainda pela impossibilidade de acesso à terra e, portanto, ao

alimento; pela variação de produtividade da terra, e pelo número de membros da

família que precisavam ser mantidos. As famílias italianas eram geralmente

numerosas, numa época em que as taxas de mortalidade se mantiveram estáveis,

chegando mesmo a decrescerem nas décadas seguintes (KLEIN, 2000; ALVIM,

2000).

No Sul da Bahia, a cultura do cacau, em termos econômicos, havia começado

há pouco tempo. Com a terra barata, muitos imigrantes conseguiram construir suas

fazendas num período curto (os Magnavita, os Paternostro, os Tedesco, os Tosto),

enquanto outros, além da lavoura de cacau se dedicaram também ao comércio (os

Magnavita), ou se inseriram em atividades socioculturais (os Bafica, os Guerrieri, os

Troccoli).

Em atividades menos condicionadas pelo ambiente físico, alguns costumes

originários da italianidade ainda guardam vestígios. Foi assim que o imigrante

continuou fazendo a macarronada, o salame, a lingüiça, o queijo, a polenta e o pão,

práticas que, aos poucos foram desaparecendo no cotidiano dos seus

descendentes, em parte desmotivados pelo desinteresse em manter tais costumes,

em parte influenciados pela força do mercado. Não tiveram, por exemplo, a força

reprodutora e de permanência cultural como os “árabes” de Ilhéus e Itabuna.

Nas relações de vizinhança, também houve profundas mudanças. Na Itália, a

vizinhança dos camponeses era próxima, porque moravam em pequenas aldeias.

Nas colônias brasileiras, com lotes de 25 hectares, a distância já era bem maior. No

Sul da Bahia, onde as fazendas de cacau ultrapassavam os 200 hectares, favorecia

o distanciamento entre um morador e outro.

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A cultura do cacau, em si, foi um fator poderoso de abrasileiramento dos

imigrantes italianos no Sul da Bahia. Tratava-se de uma atividade produtiva, sem

raízes européias e muito menos italianas que, por mais de um século, exerceu a

hegemonia na economia regional. Envolver-se com tal atividade significava cortar as

raízes culturais do país de origem.

Em São Paulo, pode-se dizer que houve um processo semelhante. Os

imigrantes vieram para atender uma demanda de mão-de-obra para o cultivo do

café, atividade esta também desvinculada de raízes italianas ou européias.

No Rio Grande do Sul, a realidade foi outra. Além de tratar-se de imigrantes

vindos do Norte da Itália e, por isto, familiarizados com uma paisagem de topografia

acidentada, reproduziram no Brasil uma atividade típica da região de origem: a

produção de uva e vinho. Estava, portanto, instalada a infra-estrutura que

reproduziria a cultura do país de origem.

Os de São Paulo, Espírito Santo e Sul da Bahia imigraram do Sul da Itália. No

Espírito Santo, esses imigrantes italianos se dedicaram, principalmente, à extração

de madeira-de-lei, especialmente jacarandá, atividade já conhecida na Europa

(MEDEIROS, 1997).

Na Bahia, a história da imigração italiana em Belmonte, portanto, como em

todo o Sul do Estado, está vinculada primeiro à expansão da lavoura cacaueira que,

em termos de sustentação econômica, havia começado há pouco tempo, e depois à

extração de madeiras-de-lei, com a vinda de descendentes de imigrantes de origem

capixaba, já na metade do século XX.

Ao se tentar entender como os imigrantes e seus descendentes aproveitaram

as oportunidades fornecidas pelo processo de mudança social, que eles próprios

ajudaram a desencadear, através da transformação do seu equipamento cultural,

percebe-se que foi no crescimento da economia cacaueira que encontraram as

condições favoráveis, na disponibilidade de terras e no estímulo fornecido pelo

mercado externo.

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O clima tropical, a floresta densa e úmida, com fauna e flora típicas, a

extensão das terras agricultáveis, os rios caudalosos, tudo era muito estranho para o

imigrante. Precisava romper os laços que o ligavam à Itália expulsora e abrasileirar-

se para melhor viver nesta terra desconhecida. Esses imigrantes de uma Itália

culturalmente diversificada, chegaram à Bahia unidos por características culturais

de sua região: a religião (católica), o dialeto (calabrês), o trabalho (camponês),

diferentemente da diversidade cultural que marcou outras áreas de colonização.

Na onda de naturalização que ocorreu em face do Decreto n. 58, de 14 de

dezembro de 1889 e pelo Decreto n. 396, de 15 de maio de 1890, muitos imigrantes

italianos alteraram a grafia de seus nomes: Francesco passou a ser Francisco,

Giovanni passou a ser João, Giuseppe passou a ser José, Salvatore passou a ser

Salvador e assim por diante. Era o corte do cordão umbilical que os ligava à

comunidade de origem.

Em Belmonte, a imigração italiana do final do século XIX levou o governo

italiano a criar uma Delegacia da Real Agência Consular de Itália, sob a

responsabilidade de Demetrio Guerrieri, que a geriu por um período de trinta anos.

Apesar de não ter sido possível determinar o número de famílias italianas que

vieram para Belmonte, algumas podem ser mencionadas: Baffica, Bartelotti, Bartolli,

Burlacchini, Carnovali, Casali, Daiello, Ferrari, Giffoni, Guerrieri, Leonardo,

Magnavita, Mega, Multari, Nervino, Pastore, Paternostro, Ricci, Roconi, Romano,

Tartari, Tedesco, Tosto, Trocolli, Vitorelli etc.

Hoje, os descendentes desses imigrantes falam de sua ancestralidade com

forte dose de ufanismo, em que a figura patriarcal aparece de forma mítica e

heroicizada, num discurso de exaustiva valorização do imigrante italiano, que serviu

de modelo de cidadão, operoso e ordeiro, capaz de fácil assimilação. “Tal discurso

está próximo das concepções do imigrante ansioso por uma segunda pátria, que lhe

oferece a possibilidade de acesso à propriedade de terra, onde poderá demonstrar

sua capacidade de trabalho” (CONSTANTINO, 2000, p. 71).

Os descendentes de imigrantes italianos entrevistados são quase todos de

famílias provenientes da Calábria, região administrativa do Sul da Itália. Uns poucos

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vieram primeiro e depois retornaram à Itália para trazer os seus parentes, amigos e

vizinhos, a maioria da cidade de Paola, seguindo uma tendência dos imigrantes de

atraírem parentes e conterrâneos. No grupo calabrês, havia diferenças ocupacionais

que incluíam um contingente de pessoas com ocupações rurais (camponeses,

pequenos proprietários) e urbanas: artesãos (alfaiates, marceneiros, carpinteiros,

ourives), técnicos e pequenos comerciantes.

Na série de mitificações que caracterizam a cultura de imigração italiana no

Sul da Bahia, estão presentes: o culto do trabalho (“Em termos de trabalho, os

italianos eram pessoas ativas e empreendedoras”.... “O trabalho era um exercício

constante”), a religiosidade (“Família tradicionalmente católica, os Tosto tinham em

casa imagens de santos...”), o espírito de solidariedade (“...vovô e vovó trabalhavam

na agricultura junto com os filhos”), a alegria permanente (‘... pelo vinho como

complemento alimentar e pela alegria como uma correta atitude de vida”), a solidez

da ordem familiar (“A família de imigrantes italianos era de mesa farta. Os filhos se

sentavam à mesa, já tomados os banhos, calçados e bem vestidos”) e assim por

diante.

“O che se vince o pur se muore”19 é a frase de um imigrante italiano citada

por Carlin Farbis (apud POZENATO, 2000), mostrando um discurso que reforça o

caráter de grandeza dos pioneiros imigrantes: indivíduos que lutaram fortemente

contra o destino adverso e venceram, ao invés de morrerem.

Falando de sua ancestralidade, Alberto Magnavita20 diz que seu avô,

originário da Calábria, estudou apenas o primário. “Era mestre alfaiate de profissão,

pequeno comerciante e cultivador de uvas...” Quando chegou ao Brasil, foi se

dedicar a uma atividade produtiva completamente desvinculada de raízes

européias, o que significava romper com os laços culturais do seu país de origem e

sofrer as mudanças decorrentes das migrações (CANCLINI, 1998). “....Dedicou-se

ao cultivo do cacau, no município de Belmonte, uma cultura que vinha ganhando

espaço no Sul da Bahia”, que seria a cultura dominante e um poderoso fator de

abrasileiramento dos imigrantes.

19 Ou se vence ou se morre. 20 Alberto Magnavita, 45 anos. Depoimento em outubro de 2001 – Canavieiras (BA).

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Embora Alberto admita que os italianos de Belmonte se abrasileiraram, que

os seus descendentes perderam as características culturais da imigração, faz

questão de enfatizar que preservaram parte de sua cultura, principalmente no que

se refere à gastronomia... “Os italianos imigrados passaram para seus descendentes

o gosto por uma boa macarronada. Também apreciavam polenta, salame, lingüiça

e mortadela, comidas que eram preparadas pela própria família”. Outra

característica que ele enfatiza é o gosto pela música italiana orquestrada.

Quando fala em termos de trabalho, seu discurso é altamente heroicizado

porque “os italianos eram pessoas ativas e empreendedoras, que contribuíram de

forma acentuada para transformar o município de Belmonte e outros municípios

vizinhos”. Essa idéia é reforçada quando ele diz que os Magnavita representam a

mais extensa família de imigrantes italianos no Sul da Bahia, cujos descendentes

“estão espalhados em todo o estado, como lavradores, políticos, empresários ou

funcionários públicos”.

De igual maneira, Rafael Tosto Filho21 fala de seu pai e de seus avós

também calabreses, que trabalhavam na agricultura, junto com os filhos, e

“produziam salame, lingüiça, pernil defumado e extraíam azeite de oliva”, produtos

estocados no verão e vendidos no inverno para o sustento da família. “Além das

atividades no campo, os filhos aprenderam outras profissões: papai aprendeu a arte

de sapateiro, tio Mário a de carpinteiro, tio Vicente (Vincenzo) era radiotelegrafista”.

A fala de Rafael é muito semelhante à de Alberto, sobretudo quando se refere

aos aspectos gastronômicos de sua família ancestral: “macarronada, polenta,

inhoque e feijoada com carne de porco [...] principalmente aos domingos, ao som da

boa música italiana”.

Contudo, deixando de lado os aspectos heróicos desses imigrantes, podemos

perceber que também houve conflitos, seja pela posse da terra, seja por

desentendimentos entre os próprios imigrantes, como o que aconteceu entre

Francesco Tedesco e Agostinho Magnavita por causa da construção de um prédio

21 Rafael Tosto Filho, 61 anos. Depoimento em agosto de 2001- Feira de Santana (BA).

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no atual sítio histórico de Canavieiras. A questão só foi solucionada com a

interferência da Intendência Municipal 22.

Essas questões normalmente não são lembradas, sobretudo pela imagem

extraordinária que se quer dar aos patriarcas. São os silêncios da história que

“jogam um véu pudico sobre alguns segredos de família” para assegurar a

legitimidade dos discursos heroicizados (MARC FERRO , 1993, p. 34).

Assim, pode-se afirmar que a comunidade belmontense é o resultado de um

profundo processo de miscigenação biológica e cultural (COUTO, 1995), com a

incorporação de diversas etnias. De início, o contato entre portugueses e índios, nos

primeiros anos da povoação, através do aldeamento dos kamakan pelo padre

Ferraz. Depois, a inclusão do elemento de origem africana nas atividades de

subsistência, na garimpagem de pedras preciosas, ao longo do rio Jequitinhonha e

na cultura do cacau. Com a expansão da lavoura cacaueira e a imigração de

nordestinos e europeus, novos elementos de diversas etnias são incorporados à

formação cultural de Belmonte.

Para os filhos da imigração, o Sul da Bahia seria assim um novo mundo, o

eldorado, a terra da promissão que mana leite e mel, o ideal messiânico para uma

vida nova livre da opressão na Itália recém-atrelada ao mercado capitalista. Com o

declínio do feudalismo, o capitalismo é a principal força modeladora do mundo

moderno que transforma em mercadoria, não somente os bens materiais, como

também a força do trabalho humano.

Nesse contexto, a descoberta de novos lugares, “a substituição de diferentes

unidades espaciais”, tornam as culturas desterritorializadas, abrindo “múltiplas

possibilidades de mudança”. É a proposta de Giddens (1991) como noção de

“desencaixe” das relações sociais do contexto local da interação (ORTIZ, 2000); em

um homogêneo tempo vazio (ANDERSON, 1991). Aí, o processo de construção da

22 Correspondência da Secretaria da Intendência Municipal de Canavieiras: n. 351 e 352, de 13 de julho de 1900; 362, de 25 de agosto de 1900; 363, de 29 de agosto de 1900; 381, de 17 de dezembro de 1900, e 392, de 4 de fevereiro de 1901.

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identidade seria um novo projeto de vida, “com base em uma identidade que se

expande no sentido da transformação da sociedade ...” (CASTELLS, 1999, p. 26).

Stuart Hall (1999) entende a identidade como algo que se vai construindo

através de processos inconscientes, e que vai permanecer incompleta, sempre em

formação, a partir das formas pelas quais nós imaginamos ser vistos pelos outros.

Como os imigrantes italianos se abrasileiraram, a cultura de imigração é apenas um

traço diferencial no contexto da cultura sulbaiana, na qual estão perfeitamente

inseridos. Não estão incluídos, portanto, entre aqueles que não sabem onde chegar

e “decidem assumir todas as identidades disponíveis” (CANCLINI, 1998, p. 323).

Belmonte, ou qualquer outra cidade do Sul da Bahia, longe de ser o que

Marc-Augé (1994) chama de “não-lugar,” é o “lugar antropológico”, onde o imigrante

se torna sulbaiano, belmontense, identificado com a “geografia econômica, social,

política e religiosa do grupo” no qual está agora inserido.

Assim, os italianos que migraram para a Bahia, no final do século XIX e até

meados do século XX, não chegaram a formar uma comunidade coesa, apesar de

terem introduzido, entre os baianos, alguns dos hábitos e valores do seu país de

origem. Percebe-se, em Belmonte, uma população que pode ser considerada

como assimilada na sociedade local, pois até o uso da língua italiana desapareceu

no convívio familiar.

Não se consegue estabelecer diferenças marcantes entre as famílias de

origem italiana e as famílias locais, seja nos aspectos religiosos, nas cerimônias e

festividades, seja no que se refere à alimentação, embora tenham mantido alguma

tradição herdada dos ancestrais. Também não se percebem diferenças

significativas entre os descendentes de italianos e a população de origem nacional

quanto à escolaridade, nível ocupacional e propriedade de imóveis, apenas que os

descendentes de italianos se distribuem por todas as posições da hierarquia social.

Contudo, embora identificados como brasileiros que são, e que pouco

contato mantêm entre si e menos ainda com seus parentes na Itália, ignorando até

mesmo sua relação de parentesco, os filhos da imigração se reconhecem herdeiros

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dessa italianidade (WILLYS, 1998). E tanto é assim que alguns a estão buscando

através da aquisição de dupla cidadania para si e seus familiares.

“Palmatória do Mundo”

Em Iararana, no final da Cena X (p. 64), Tupã-Cavalo personifica a figura do

coronel enriquecido, que acabou de vender o cacau e se prepara para um passeio à

Europa: “[...] amanhã vai pra Oropa o bichão que veio do mar”. No final da página

77, vamos encontrar o centauro dizendo que vai para a Europa se vingar “da

palmatória do mundo”. A palmatória era uma pequena peça circular, de madeira,

comumente com cinco orifícios em forma de cruz, presa a um cabo, que servia para

castigar as crianças, nas escolas, batendo-lhes na palma da mão. Embora essa

prática tenha sido uma herança de Portugal, Câmara Cascudo (2001) informa que

sua origem é remotíssima, já conhecida na Roma antiga, ao lado do açoite, como

“excitador” da memória infantil. O termo “palmatória do mundo”, como foi utilizado

por Sosígenes, significa sujeito moralista, metido a censor de tudo e de todos, uma

referência à hegemonia cultural da Europa.

E quando na Oropa se soube que estava de volta o cavalo-do-mar, os bichos da Oropa que enxotaram aquele cavalo do lugar mais bonito de lá, disseram assim: - Olhe, menino, voltou do país das araras

o cavalo-do-mar. Está queimado que nem salgo fugido mas voltou com dinheiro (p.78).

O centauro agora recebe um tratamento especial e é convidado “pra comer

manjar do céu”. Também é chamado pelos mondrongos (portugueses) de

“Centaurinho -do-rio e bichão de Belmonte”, e então ele “foi recebido no palacete

dos bichões”. É o reconhecimento de que ele agora é “um graúdo e chefia aquilo lá”.

E quando o copeiro servia manjar na mesona dos bichões metidos a gente bonita, a gente que não quer acabar nem a pau, Tupã-Cavalo levantou-se da cadeia estofada e botou nos doze canecos dos bichos da Oropa

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chocolate que aquela gente metida a letrada não conhecia, nem sabia o que era mas achou bem cheirozinho (p. 81).

Mais do que uma referência aos deuses do Olimpo, na irreverência do poeta,

os doze bichões podem muito bem representar as doze mais poderosas nações da

Europa, onde os produtos do cacau foram difundidos. Vale a pena salientar que o

nome científico para o cacau, theobroma (gr. = manjar dos deuses) justifica a

presença da mitologia grega em um poema do Modernismo, movimento que

despreza toda a construção helenizante dos parnasianos.

Na Europa, Tupã-Cavalo se casa com uma “mulher esquisita”, “bicha loura”

“que falava franciú”, “uma gringa metida a princesa” que expulsa a iara de casa.

Iararana fica logo “unha e carne” com a madrasta, desprezando a mãe, que se

refugia na roça de cacau, onde se encontra com um caboco do mato e engravida

outra vez. Agora, diferente da mestiçagem cultural imposta pela força, existe uma

união por amor: um índio pataxó, cujos descendentes ainda estão por aí, com a iara

do grande rio Jequitinhonha, seres da mesma terra. “É desse puro filho de iara com

aimoré que descende em linha reta o arquinarrador do poema, segundo lhe revela a

alma do avô” (PAES, 1979, p. 16):

E este netinho de botocudo foi pai do meu pai e avô do teu avô (p. 90) (...)

- Menino do céu, você tem sangue da mãe-dágua. Teu sangue bom é sangue do rio, sangue caboco com sangue do rio sangue mais limpo que o da falsa iara (p. 93).

O desprezo de Iararana pela mãe significa a preferência pela cultura

eurocêntrica. Quanto a Aracanjuba, é possível perceber na “gringa metida a

princesa” um símbolo da imigração européia, no Sul da Bahia, particularmente em

Belmonte, no final do século XIX e início do século XX, de alemães, suíços e,

principalmente, italianos. O fato de Aracanjuba falar franciú (francês) e não italiano,

por exemplo, está relacionado à importância que o idioma francês alcançara na

Europa daquele tempo.

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Quando a gringa chega em Belmonte, os cabocos fazem uma descrição

crítica da figura:

essa moça é Aracanjuba, é de chulé. Cabelo de estopa, pirão com jacuba, nariz de tucano, jabá na maré, olho de peixe E de caburé.

(...) Eta japu Eta xexéu Eta gambá Eta pituim (p. 84, 85).

Estas expressões jocosas e debochadas, que aparecem no excerto acima,

refletem na parte final, o pensamento difundido na região de que o europeu exalava

mau-cheiro, porque não gostava de tomar banho. O banho em água corrente

sempre foi um hábito popular entre os povos equatoriais. Tanto os povos indígenas

quanto os africanos tinham o banho como divertimento e, particularmente para o

indígena, fazia parte dos cerimoniais de iniciação. Câmara Cascudo (2001)

esclarece que na iniciação aos cultos Jurupari, considerado o mais nacional dos

cultos ameríndios, o rapaz ou a moça (esta por ocasião da primeira menstruação)

toma banho várias vezes nas águas do rio, junto com os padrinhos. Os

belmontenses, na concepção do poeta, de formação multirracial, culturalmente

marcados pela ascendência índia e africana, achavam estranhos os hábitos

estrangeiros. Fica evidente aqui a intenção do poeta de salientar a importância da

cultura local ao ser confrontada com a cultura européia.

Teoria do Branqueamento

Formado pela miscigenação de índios, negros e colonos europeus, o

belmontense do século XIX, segundo a concepção da época, se enquadrava

naquele tipo identificado por Vacher de Lapouge (apud POUTIGNAT & FENART)

que, submetido à seleção social, adquire características morfológicas e qualidades

psicológicas que são determinadas pelas “vicissitudes da história”.

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Essa teoria da superioridade ariana e da inferioridade do negro e do índio era

aceita pela elite intelectual brasileira, como fator de determinismo histórico no final

do século XIX. Esses conceitos racistas, tão em voga na Europa, se tornaram

particularmente verdadeiros, “por volta da passagem do século, quando o

condicionamento reflexo e a preferência dos brasileiros pela cultura francesa

levaram-nos, diretamente, a escritores racistas populares como Gustave Le Bon e

Vacher de Lapouge” (SKIDMORE, 1989, p. 69). Não é à toa que Aracanjuba falava

franciú.

No Brasil do século XIX, a miscigenação era vista como mecanismo para a

formação de um tipo nacional através de um processo seletivo que resultasse no

branqueamento da população – Iararana. Isso deveria ser efetivado através de uma

política de imigração regulamentada por força da Lei n. 601, de 1850, que favorecia

a expedição de títulos de terra para estrangeiros e definia o imigrante ideal (branco,

camponês, resignado) e o indesejável - “raças atrasadas, não civilizadas e inferiores”

(RAMOS, 1996; SEYFERTH, 1996).

Como se acreditava que os povos do Norte da Europa eram superiores aos

outros homens (segundo Gobineau, Ammon, Lapouge, Chamberlain etc.), a fórmula

para melhorar o Brasil consistia em aumentar o influxo de alemães, que deveriam

ser distribuídos e disseminados pelo país...(SKIDMORE, 1989, p.72). Esses

conceitos da propalada superioridade da “raça branca” estão presentes nos

registros deixados pelos viajantes europeus, quando passaram pela costa brasileira.

Vejamos as impressões do naturalista alemão Robert Avé-Lallemant, quando

passou pelo Sul da Bahia no ano de 1859:

Assim foi que vi muitas negras minas na sua fatiota domingueira, esplêndido quadro africano, mas só um quadro africano, um quadro selvático, que se desmorona totalmente ao lado da figura de uma mulher nórdica, mesmo duma muito modesta, sem nenhuma pretensão (AVÉ-LALLEMANT, 1961, v. 1, p. 22).

E mais: Quando será que um silvícola fará do ferro um cinzel, para esculpir num bloco de mármore do seu rio pátrio, uma Vênus de Milo ou fazer sair dele aquele maravilhoso grupo das Graças do grande dinamarquês? Nunca! Nunca, digo eu! O botocudo nunca terá noção do que pisa, quando na noite espectral de lua passa sobre aquela

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jaziada de mármore, nunca sonhará que naquela pedra alva dormitam estátuas de deuses e heróis e diversas formas graciosas, para serem trazidas pela mão para a luz e para a vida! Sua noção de beleza vai apenas até um pedaço de pau atravessando o lábio inferior, e sua capacidade artística até a confecção duma flecha, dum arco e duma rede (Ibid. 103).

Desse pensamento, participavam intelectuais brasileiros como Nina

Rodrigues, o cientista miscigenado que ensinava que a inferioridade do africano fora

estabelecida fora de qualquer dúvida científica, e desprezou como sentimental a

noção de que um “representante das raças inferiores” pudesse atingir através da

inteligência, “o elevado grau a que chegaram as raças superiores” (SKIDMORE,

1989, p. 75). Toda essa construção, era por conta do darwinismo social, que

estabelecia “o primado das leis biológicas na determinação da civilização” e que o

progresso humano é o resultado da competição entre raças, onde os mais aptos

(os brancos) prevalecerão, enquanto as demais raças (principalmente os negros)

sucumbirão à seleção natural e social (SEYFERTH, 1996).

Muitos desses intelectuais brasileiros - como o historiador Oliveira Viana,

admirador dos mestres do pensamento racista europeu, teórico do branqueamento -

concluíram que o Brasil estava em vias de atingir a pureza étnica pela miscigenação.

No final do século XIX, o ideal do branqueamento estava plenamente inserido na

alma do brasileiro, por questões sociais e por conta do liberalismo, aplicado aos

aspectos político e econômico, para produzir uma imagem nacional mais definida. O

estímulo à imigração estava presente na propaganda dirigida a estrangeiros pelas

agências oficiais e na produção intelectual que refletia o pensamento da elite

(SKIDMORE, 1989).

Essa teoria da superioridade ariana e da inferioridade do negro e do índio era

aceita pela elite intelectual brasileira, como fator de determinismo histórico no final

do século XIX. Esses conceitos racistas, tão em voga na Europa, se tornaram

particularmente verdadeiros “por volta da passagem do século, quando o

condicionamento reflexo e a preferência dos brasileiros pela cultura francesa

levaram-nos, diretamente, a escritores racistas populares como Gustave Le Bon e

Vacher de Lapouge” (Id., p. 69).

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Afrânio Peixoto, o primeiro ficcionista do cacau na região Sul da Bahia,

discípulo de Nina Rodrigues, no romance A Esfinge reflete as preocupações raciais

da elite do Rio de Janeiro. Num dos diálogos sobre a formação étnica do brasileiro,

com referência ao negro e ao índio, afirma que “essas sub-raças de passagem

tendem a desaparecer, reintegrada a raça branca na posse exclusiva da terra....”

(PEIXOTO, 1978, p. 196). Em Fruta do Mato, romance regional, o Dr Virgílio

lamenta: “Teremos que sofrer a ação corruptora deles, na família, na sociedade, nas

letras, na política, no trabalho, nas instituições, até que se disfarcem ou se depurem,

ou se misturem completamente na raça branca” (Id., 1933, p. 94, 95).

Mesmo antes da aprovação da primeira constituição republicana, o governo

provisório promulgou decreto, de 28 de junho de 1890, que revelava o ideal de

branqueamento na busca de imigrantes. Dispunha: “É inteiramente livre a entrada,

nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se

acharem sujeitos a ação criminal de seu país” (Ibid., p. 155). Exceção feita aos

habitantes da África e da Ásia.

Teorias como da inferioridade das espécies na América e da impotência do

selvagem, de Buffon; da inferioridade e da degenerescência do homem americano,

de De Pauw; ou a hipótese do dilúvio só na América e do homem americano bestial

e débil, de Francis Bacon (ANTONELLO, 1996), e outras idéias de teóricos racistas

da Europa, se eram recebidas como verdades pelos intelectuais brasileiros, muito

mais o eram pelo povo. Esses autores “inauguram uma reflexão preocupada em

observar os mecanismos que relacionam o homem ao seu meio natural”, onde as

diferenças são explicadas pelo “conjunto de elementos físicos que atuam no

organismo” e que vão produzir “diferenças raciais, nos costumes e nas leis”

(MONTERO, 1997).

Como a sociedade brasileira já era multirracial, e muitos indivíduos

miscigenados ocupavam postos de relevância no cenário político-social, era preciso

se flexibilizar as atitudes raciais. Considerar simplesmente o mestiço como

degenerado e incapaz seria ameaçar um dado aceito e estabelecido pela sociedade

brasileira, já que a miscigenação era um processo reconhecido, pelo qual alguns

mestiços mais claros tinham ascendido ao topo da hierarquia social e política. Assim,

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os imigrantes europeus, dentro da teoria do branqueamento, contribuiriam para a

formação de um tipo racial brasileiro “mais eugênico” e, por outro lado, seriam

assimilados na cultura brasileira . De qualquer forma, essa acomodação contrariava

as premissas do racismo “científico”, porque nenhum dos pregadores europeus da

eugenia iria admitir a mistura com raças “inferiores”.

Embora a hierarquização dos europeus não obedecesse a critérios de

natureza racial, já que todos eram brancos, os alemães eram os mais

recomendados, em razão do mito ariano prevalecente. Contudo, os alemães eram

considerados uma ameaça à nacionalidade, por serem resistentes à assimilação.

Em Belmonte, como era a tendência no Brasil, os italianos (Fig. 11) foram o maior

grupo nacional entre os imigrantes, mais do que portugueses, espanhóis e

alemães, com uma diferença considerável, o que serviu para reforçar, (...) “assim,

o caráter ‘latino’ da população branca brasileira, a despeito da esperança de muitos

promotores da imigração de que europeus nórdicos fossem atraídos em grande

número” (SKIDMORE, 1989, p. 162).

No entanto, das famílias italianas que se radicaram em Belmonte – quase

todas originárias do Sul da Itália (Mapa 5) - a maioria obteve sucesso em seus

empreendimentos. Muitos imigrantes, ou seus descendentes, enriqueceram,

tornaram-se latifundiários; outros fizeram sucesso na política, ou ocuparam cargos

importantes, e todos, de alguma forma, contribuíram para que Belmonte se tornasse

uma das mais importantes cidades do Sul da Bahia, no final do século XIX e início

do século XX.

O imigrante europeu, particularmente o italiano, foi bem recebido pela

comunidade belmontense, porque, através do branqueamento pela união de

miscigenados com brancos, nesse processo de redução étnica, seria lógico esperar

que “no curso de mais um século os mestiços tivessem desaparecido” (Id. p. 83).

Muitos casamentos aconteceram entre filhos e filhas de fazendeiros locais e

imigrantes ou seus descendentes. Contudo, mais de cem anos depois, a população

belmontense – como de toda a região – continua miscigenada.

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FIGURA n.º 11

Família Magnavita, início do século XX.

E/D em pé: Alfredo, Adélia(Dedé), Amélia, Antonio(Totonico), Ernestina, Eduardo(Dudu),

Alzira, Helena e Lourdes, Edith.

Sentados: José(Zezinho), Theresa e Hortencio, Waldemar

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Laços de Sangue

A XV e última cena se constitui no caminho para a apoteose do caboclo, no

desfecho em que o menino do céu é o grande herói detentor da nossa brasilidade.

A cena é aberta com o cacau como “um deus na terra e só se falava em cacau,

ninguém queria mais plantar mandioca no oiteiro da Conceição nem coco em

Mugiquiçaba” (p. 86). E acrescenta que “o povo todo recebeu debaixo de festa o

cavalo-do-mar aqui na roça. A festa que se fez foi a festa da Burrinha”. Ao tomar

conhecimento de quem era a gringa franciú, o povo ficou triste “como gente

capionga {...} porque a mãe-dágua era agora desprezada”.

E a gringa metida a princesa Se repimpou no sobrado E a iara foi expulsa da casa da roça E foi morar lá dentro do cacau (p. 87).

Nesse momento, ocorre o encontro do caboco do mato com a iara que ficou

prenha “e teve um filho muito bonito”, que puxou à iara, um mimo-do-céu, ao

contrário de Iararana, fruto de uma mestiçagem degenerada.

Saiu gordinho Como um baé. Filho de iara Com aimoré (p. 89).

Como Iararana ficou “unha e carne” com a madrasta que veio da Europa, esta

se achou no direito de tramar contra a iara do Jequitinhonha, junto a Tupã-Cavalo:

- Como consentes, meu lindo Iararanaruba, que tua amásia, a mãe desta menina, viva debaixo do cacau tendo filho de caboco? Vai com teus negros que trouxeste da África e prenda aquela sabida com correntes e atire ela amarrada dentro dágua (p.93).

A iara agora é aprisionada “em correntes bem grossas”, no fundo do rio, pelo

cavalo-marinho auxiliado por “negros da roça”, a quem os marimbondos picam

ferozmente em defesa de sua rainha. Em princípio, pode parecer estranho o enfoque

negativo do negro que aparece como cúmplice da violência de Tupã-Cavalo,

principalmente se se levar em conta o fato de que Sosígenes procura sempre exaltar

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o negro em seus poemas. Essa aparente contradição pode ser explicada pelo

caráter essencialmente indianista de Iararana. José Paulo Paes (1979) procura

esclarecer como segue.

A “limpeza” de sangue do arquinarrador, enfatizada no desfecho do poema, implica total adesão à herança aborígene, assim como recusa xenófoba do que de fora viera para desvirtua-la – sangue branco do centauro mondrongo, sangue negro dos trabalhadores do cacau (p. 17).

No que toca aos marimbondos vingadores, podem ser vistos como uma

repulsa da natureza aos profanadores mondrongos, como a revolta do rio

Jequitinhonha contra o ato de violência que se fez à iara; mas outro significado

pode ser percebido, dentro do espírito localista do poeta. “Marimbondos” eram os

partidários de uma antiga facção política de Belmonte, que se contrapunham a outro

grupo conhecido como “morcegos”.

Esses dois grupos são notadamente diferenciados nos seus valores ético-

simbólicos: enquanto o marimbondo só ataca se provocado e à luz do dia, o

morcego ataca traiçoeiramente à noite, e sopra o lugar da mordida para a vítima não

sentir dor, segundo a crença popular nos meios rurais.

Comentando sobre os partidos no século XIX, que deveriam ser a

representação da opinião pública militante, Raimundo Faoro (1891) mostra como

era frágil o sistema eleitoral que ficava sempre à mercê dos líderes locais e que as

eleições pouco tinham a ver com a vontade do povo.

Antes da proclamação da República, apenas dois partidos dominavam a vida

política do Brasil, alternando-se no poder: o Partido Liberal e o Partido Conservador.

Do ponto de vista ideológico, não havia diferenças entre eles, já que ambos

visavam à posse do poder e à manutenção de seus privilégios. Entretanto, os

tentáculos desses partidos chegavam a todos os rincões do Brasil, assumindo as

feições locais, com nomes identificadores de suas características: lisos e cabeludos,

guabirus e praieiros, saquaremas e luzias; pinguelos e mandiocas, em Canavieiras;

marimbondos e morcegos, em Belmonte.

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Após descrever os diversos tipos de marimbondos que atacaram os

agressores da iara - marimbondo três-por-dois, marimbondo tapiocaba, marimbondo-

tatu, marimbondo peito-de-moça - o poema realça:

E ficou assanhada a cabaça dos marimbondos (p.94)

Os cabocos também invocam o lobisome que, na sexta-feira, apareceu “e

pegou Tupã-Cavalo desencalmado” e o atacou “com boca de fogo (...) no barranco

da Ingauíra” e o matou. Com a morte de Tupã-Cavalo, seu corpo se converteu em

ossada no fundo do rio, e os seus descendentes, descendentes de todos os

mondrongos (colonizadores portugueses)

chamam a este rio de Belmonte porque nele está a ossada do cavalo-marinho que eles chamavam centaurinho-Belmonte que é mesmo um nome de portuga e uma burrice desgraçada. E os matutos ouvindo a lengalenga dos marotos chamavam o bicho de Seu-Tourinho-do-Monte . E a filha de Seu Tourinho do Monte, a desgraçada Iararana, mãe-dágua runhe, dominou nesta terra (p. 95).

A narrativa faz um retrocesso para outro tempo, o tempo histórico da criação

da capitania hereditária de Porto Seguro, em cujo limite ao norte, no início do século

XVIII, foi criada a povoação de Belmonte, na foz do rio Jequitinhonha. A capitania

fora doada a Pedro de Campos Tourinho, daí o trocadilho que o poeta faz com o

“centaurinho-Belmonte” com o nome do donatário “Seu Tourinho do Monte”. A aldeia

foi chamada inicialmente de São Pedro do Rio Grande. Quando elevada à categoria

de vila, em 1765, teve o nome mudado para Belmonte por uma instrução do governo

português ao ouvidor de Porto Seguro, Tomé Couceiro de Abreu, no sentido de

abolir “os bárbaros e antigos nomes” das povoações da comarca, substituindo-os por

“alguns outros novos de cidades ou vilas deste Reino”. Belmonte é o nome de uma

antiga vila de Portugal, onde nasceu Pedro Álvares Cabral, nome relacionado à

mítica do descobrimento. O desabafo do poeta contra a arbitrariedade do nome

talvez se justifique (“nome de portuga/e uma burrice desgraçada”) em razão de

Belmonte estar situada em uma região de planície, sem qualquer monte por perto

(BARROS, 1916; MONTEIRO, 1918).

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Embora o centauro tenha morrido, a iara continuava aprisionada no rio, e “só

quem descendesse da mãe-dágua podia quebrar as correntes”. Por ser sangue

limpo, o herói da flor mágica vai à busca de Iararana e Aracanjuba, filha e viúva do

rei dos morcegos, que foram encontradas no alto de um pé de gameleira. Ao

classificar o centauro como rei dos morcegos, o poeta atribui ascendência

estrangeira a esse grupo político.

Ao caminhar para o final da narrativa, o poeta, numa relação hipostática com

o menino do céu, revisita o espaço territorializado do Sul da Bahia, afastando-se do

modelo modernista da matriz inicial, para celebrar a apoteose da saga do cacau.

Quando o menino do céu recebe da alma-avô a flor mágica, consegue destruir

Iararana e Aracanjuba, a madastra, e libertar a iara que estava aprisionada por

Tupã-Cavalo.

A apoteose acontece no quintal da casa do menino do céu, o alter ego do

poeta, na criação de uma genealogia mítica na qual está inserido o próprio autor do

poema. É ali que ele destrói a Iararana e sua madrasta estrangeira, morcegas

dominadoras da cultura belmontense. Ali também ele liberta a verdadeira iara, há

séculos acorrentada pela cultura eurocêntrica - Tupã-Cavalo.

Percebe-se aí o fim da dominação política dos “morcegos”, a vitória do local

sobre o estrangeiro, o alienígena, construção que está vinculada ao programa

atropofágico-nacionalista do movimento modernista. A vitória das tradições locais

sobre a cultura alienígena é indicada pela presença de “uma caboca de beleza rara”

que subiu do Jequitinhonha através do arco-íris e se dirigiu “para dentro do cacau”.

E quando ela passava no arco-íris por cima da casa, me disse olhando para baixo - Menino do céu, menino do céu, eu te beijo.

Eu te beijo, menino do céu Era a iara (p. 105).

Nesse procedimento antropofágico, o poeta propõe, não simplesmente a

destruição da cultura européia, mas o seu aproveitamento no vínculo de sangue com

o herói nativo que vai libertar a iara – emblema das tradições culturais brasileiras –

das correntes seculares do colonizador.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O que se procurou neste trabalho foi entender os aspectos sócio-culturais do

Sul da Bahia, tendo Belmonte como o locus, a partir da concepção de Sosígenes

Costa através do poema Iararana, e como isto pode ser utilizado para as

atividades turísticas.

Através dos vôos da imaginação, o poeta constrói o seu mito de origem para

o cacau, misturando seres fabulosos da mitologia grega e indígena, contrariando as

regras da escola modernista, que ensinava a destruição de tudo que tivesse relação

com a antiguidade clássica.

As figuras mitológicas e lendárias utilizadas por Sosígenes são produções

simbólicas da realidade sulbaiana e estão relacionadas com um espaço

territorializado onde nasceu, cresceu e se desenvolveu a cultura do cacau. Essa

saga está repleta de lendas, canções, bichos falantes e entidades da floresta e das

águas, elementos contidos na memória do poeta que ali viveu os primeiros 25 anos

de sua existência. Aí também estão presentes: a dominação do colonizador, a

imposição cultural de um povo considerado superior, segundo as teorias vigentes, o

que resultou em conflitos pela posse da terra, pela expansão do cacau.

Exposto às tentações do mercado, o turista é uma pessoa sempre em

movimento e, conseqüentemente, um consumidor em potencial, na busca de novas

emoções e de novas experiências. Isto o pode levar ao consumo de bens culturais,

sem levar em conta os cuidados necessários para a sua preservação.

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Portanto, é preciso se desenvolver uma política que privilegie um turismo de

impacto sociocultural positivo, onde estejam incluídas claras noções relacionadas

com a educação ambiental, envolvendo aí as áreas naturais e os bens culturais.

Assim, o patrimônio cultural poderia estimular o turismo que, por sua vez, estaria

contribuindo para a preservação dos bens culturais.

Embora não seja possível desenvolver turismo sem que ocorram impactos

ambientais, é possível, contudo, gerenciar o desenvolvimento turístico de tal

maneira que os impactos negativos que já ocorreram sejam revertidos, na medida do

possível, minimizados outros, e sejam estimulados os impactos positivos.

Assim, as atividades turísticas decorrentes desses recursos (da natureza e

da cultura), se devidamente planejadas, podem minimizar impactos ambientais e

contribuir para o desenvolvimento sustentado, com benefícios para a população

atual e garantia para as gerações futuras.

Ficam aqui algumas idéias sobre a importância do turismo para Belmonte,

no contexto em que estamos vivendo, com vistas ao desenvolvimento sustentável

de um turismo focado nos bens da natureza e da cultura. Saliente-se ainda que, em

várias circunstâncias, o turismo pode significativamente contribuir para a

conservação do meio natural como também dos bens culturais entendidos no seu

sentido mais amplo. Contudo, é necessário o planejamento desse espaço, dos

equipamentos e das atividades turísticas, tudo isso aliado a uma tomada de

consciência da população local.

Faz-se necessário o entendimento de desenvolvimento sustentável como a

gestão e administração dos recursos e serviços ambientais, no sentido de assegurar

a satisfação das necessidades humanas para as gerações presentes, sem perder de

vista as gerações futuras, entendida aí a sustentabilidade de forma ampla e

abrangente, quanto aos aspectos geoecológico, econômico e social.

A sustentabilidade geoecológica está relacionada com a capacidade de

manter constante o equilíbrio dos sistemas ambientais. A sustentabilidade

econômica está relacionada com a habilidade de um sistema ambiental manter uma

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produção razoável diante das pressões sócio-econômicas. A sustentabilidade social

está relacionada com o manejo da organização social compatível com os valores

culturais e éticos do grupo envolvido.

Assim, para o incremento, em Belmonte, de um turismo fundamentado na

idéia de desenvolvimento sustentável, a pesquisa sugere:

• revitalização da memória belmontense para conhecimento popular;

• reconfiguração e ressignificação do patrimônio cultural urbano: prédios

históricos, logradouros, chafariz, farol, igrejas etc.;

• reconfiguração e ressignificação do patrimônio cultural rural: fazendas de

cacau com seus instrumentos de trabalho etc.;

• preservação, recuperação e conservação dos recursos da natureza e do

patrimônio cultural;

• melhoramento dos serviços urbanos e do saneamento básico;

• ênfase especial no sistema rodoviário, com a construção da estrada

Canavieiras-Belmonte-Santa Cruz Cabrália;

• revitalização da cultura belmontense urbana: filarmônicas, festejos religiosos,

festejos populares, cultura de origem italiana etc.;

• revitalização da cultura rural belmontense, no vale do Jequitinhonha, através

do incentivo aos fazendeiros com vistas ao desenvolvimento do agroturismo,

do ecoturismo, do turismo rural, do turismo de aventura etc.

Levando em consideração o conceito de desenvolvimento sustentável, é preciso

ter cuidado com a tendência economicista que prioriza o crescimento econômico às

custas da sustentabilidade ambiental e da sustentabilidade social. Além da relação

entre crescimento econômico, equidade social e sustentabilidade social, possa

também haver uma nova relação política, econômica e social, entre os agentes

econômicos e os agentes sociais.

Cultura e turismo são considerados uma união difícil e até mesmo conflitante,

porque, enquanto as instituições culturais são orientadas por funções educacionais,

o turismo é orientado pelas leis do mercado. Onde o turismo fala de destinos e

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atrativos, as ciências humanas falam de lugares. Esses lugares são definidos pela

sua cultura, pela sua história e por suas experiências.

Apesar disso, as relações entre cultura e turismo são possíveis, desde que

haja conscientização e planejamento, porque o turista que visita determinado lugar -

atraído pela sua história, por seus festivais, pelas suas tradições - esse mesmo

turista precisa consumir os produtos e serviços que a destinação pode oferecer.

Um lugar ou destino que recebe um fluxo de visitantes culturais estará

também beneficiando os residentes, porque vão compartilhar das melhorias

necessárias na infra-estrutura e nos serviços que os turistas requerem. Assim, os

moradores de Belmonte devem se constituir no primeiro contingente da cultura e do

turismo locais para conhecer a sua própria história, para descobrir a respeito de si

mesmos, dos seus vizinhos e de bens culturais esquecidos ou pouco valorizados. É

preciso que a comunidade seja orientada, primeiro, no sentido de valorizar os

espaços rurais, as áreas costeiras, o patrimônio arquitetônico, as tradições, para

depois somar seus interesses à dinâmica das empresas de turismo, cujos interesses

são mais de caráter mercadológico.

Em sua produção poética, além dos aspectos ambientais presentes em todo

o poema, Sosígenes Costa mergulha nos arcanos da memória belmontense para

trazer de lá, de forma simbólica, as construções culturais que se desenvolveram ao

longo do tempo. Dessas construções, restam vestígios de um significativo patrimônio

cultural que identifica o resultado de ações humanas que aí se desenvolveram.

Esses bens culturais, que fazem parte da memória belmontense,

simbolizados na poética de Sosígenes Costa, considerados como atrativos turísticos,

podem ser revitalizados e ressignificados para ser mais bem utilizados, tanto pela

população residente como pelo turismo, como importante fonte da economia,

contudo, sem perder de vista o cuidado com os impactos decorrentes.

No caso do patrimônio cultural belmontense, podem ser relacionados: canoas

para transporte de cacau, instrumentos de pesca, arreios para tropas de animais,

clavinotes antigos; fotografias documentais (paisagens, eventos, pessoas); cultura

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originária de imigração (culinária, música, religiosidade); jornais antigos; lendas,

folclore, sociedades filarmônicas e outras manifestações orais; documentos da

administração pública e de acervos particulares, etc. Ao lado desses bens, devem

ser considerados também os bens imóveis, que formam o patrimônio arquitetônico:

igrejas, conjuntos residenciais, logradouros públicos, sedes de fazendas, o Farol de

Belmonte etc. – todos, e cada um a seu modo, representativos da cultura em que

estiveram ou estão inseridos.

Além disto, emergem acontecimentos dessa memória belmontense no

período colonial, no Império e na República, que estão tipificados nos versos de

Iararana, através do processo colonizador de Tupã-Cavalo, no coronelismo e no

transplante cultural de Iararana, a descendência mestiça do colonizador que se

fortalece com a migração européia de Aracanjuba, através de uma teoria de

branqueamento que vai aprisionar a cultura nacional emblematizada na iara do rio

Jequitinhonha.

Essa viagem regressiva de Sosígenes Costa, pelos caminhos da memória, ao

locus amenus da infância, em busca do tempo perdido, é mais que uma ruptura das

correntes culturais que nos amarravam à velha Europa. Divergindo do modelo

modernista, sua proposta é uma celebração genealógica que reafirma os laços de

sangue, em que o menino do céu, hipóstase do poeta, é o herói libertador da iara -

figura das tradições culturais brasileiras.

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GLOSSÁRIO Este glossário visa esclarecer alguns brasileirismos pouco comuns e

idiomatismos do Sul da Bahia, particularmente da região de Belmonte, empregados

por Sosígenes Costa, em Iararana. Foram cotejados alguns termos, e

acrescentados outros, através do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio

Buarque de Holanda Ferreira, Grande Enciclopédia Delta Larousse, Dicionário do

Folclore Brasileiro (2001), de Câmara Cascudo, Dicionário Tupi-Português

Português-Tupi, de Octaviano Mello, Belmonte e a sua História, de Affonso M.

Monteiro, além das outras fontes utilizadas no Glossário de José Paulo Paes, no

final de Iararana (1979).

Acauã, s. m. e f., bras. Ave da família dos gaviões, conhecida no Nordeste por anunciar a seca e matar cobras para alimentar os filhotes. Seu canto é tido como prenunciador de chuva. Anequim, s. m., bras. Peixe de cor cinzento-clara, que chega a atingir 6 a 7 metros de comprimento, da família dos tubarões. De grande ferocidade, ataca o que encontra pela frente; costuma acompanhar os navios, tornando-se um perigo nos naufrágios. Araçá, s. m. Nome comum a diversas árvores e arbustos da família das mirtáceas. Araçazeiro. Aramaçá, s. m., bras. Pequeno peixe fluvial, identificado com o linguado, de corpo oval e achatado. Baba-de-moça, s. f. (bras.) Doce de calda com leite de coco, açúcar e ovos. Barba-de-barata, s. f., bras. Arbusto ornamental de flores vermelhas ou amarelas dispostas em cachos. Bacurau, s. m., bras. Nome com que se designam várias aves noturnas de plumagem mole que se nutrem de insetos. Baiacu, s. m., bras. Peixe do mar ou de água doce, que pode intumescer a barriga quando à tona, seja para boiar, seja para fugir à perseguição de inimigos. Sua carne é tida por venenosa. Baronesa, s. f., bras. Erva aquática encontrável em todo o Brasil, que desce os rios nas estações chuvosas.

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Beijo-de-frade, s. m., bras. Erva ornamental, de flores vermelhas, rosas, brancas ou variegadas. Bispar, v. t. d., bras. Avistar ao longe; ver, perceber. Boca do Córrego, s. f., top. Povoação situada na margem esquerda do Jequitinhonha, já na divisa com Canavieiras, a cerca de 40 km de Belmonte, em terras da antiga sesmaria de João Antônio Gomes da Costa. Seu nome no século XIX era Poaçu, depois Boca do Córrego Poaçu e finalmente Boca do Córrego. Boitatá, s.m., bras. Do tupi mboi, cobra ou agente, e tatá, fogo. É um dos primeiros mitos registrados no Brasil. Identificado amiúde ao fogo-fátuo; é visto como uma alma penada a purgar os pecados advindos de união incestuosa ou sacrílega. Var.: biatatá, baitatá. Bolandeira, s. f. top., bras. Vilarejo do município de Belmonte onde Sosígenes Costa lecionou primeira letras. Boquete, s. m., top. Antiga zona ribeirinha do Jequitinhonha, em Belmonte, hoje alagada. Bu ou Ubu, s. m. bras.. top. O maior afluente do Jequitinhonha em território baiano, que o recebe no município de Belmonte. Burrinha, s. f. , bras. BA. Folguedo popular semelhante ao Terno de Reis, cuja figura principal era um mascarado a simular um homem cavalgando uma alimária, que dançava ao som de viola, ganzá e pandeiro e de versos cantados.

Bute, s. m., bras., NE. O mesmo que diabo.

Caburé, s. m., bras. Mestiço de índio e negro; mestiço de branco com índio; pessoa feia, de aparência sorumbática; pequena coruja. Caçari, s. m., bras. Peixe de água doce, de pequeno porte, semelhante ao bagre. Cachupeleta, s. m., bras. Bajulador, puxa-sacos, que ou aquele que gosta de adular para tirar alguma vantagem. Embora José Paulo Paes tenha registrado como prepúcio - s. f., bras., BA - o termo, como Sosígenes Costa empregou, tem o sentido de bajulador: “Jogue fora o manjar velho de papai, cachupeleta” (p. 81). É uma referência a Ganimedes, o copeiro do céu. Caçuá, s. m., bras. Cesto grande e oblongo para transporte de gêneros, feito de cipó, com alças para prender à cangalha. É muito usado para transporte do cacau mole, em amêndoas, ou em cabaças. Caipora, s.f. e m., bras. Do tupi caá, mato, e pora, morador. Seu aspecto varia conforme a região: ora é visto como um pequeno caboclo, que deixa rastro redondo e tem um olho no meio da testa, ora como um indiozinho de pele escura e grande agilidade, louco por cachaça e fumo para o seu cachimbo. Protege a caça e faz pacto com os caçadores. A palavra designa também o indivíduo azarado, cuja simples presença traz má sorte.

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Calumbá, s. m., bras. Garapa de cana.

Calunga, s.f. (bras.) Divindade secundária do culto banto; o ratinho doméstico. Como Sosígenes emprega a palavra com inicial maiúscula, é possível que ele estivesse se referindo à divindade e não ao ratinho.

Camboa, s. f. , bras. Cercado triangular feito com caniços colocado à beira-rio, para apanhar peixes.Espécie de curral para pesca. Canapu, s. m., BA. Peixe do Atlântico tropical, de cor olivácea, com pontos e faixas negros sobre o corpo. Chega a atingir 3 metros de comprimento, e mora em lugares rochosos e nutre-se de outros peixes. Capiongo, adj., bras. Tristonho, sorumbático, taciturno. Cavalo-marinho, s. m. Nome vulgar do hipocampo. No poema Iararana, de Sosígenes Costa, símbolo dos conquistadores portugueses. Os portugueses foram os senhores dos mares, nos reinados de D. João II (1481-1495) e de seu primo D. Manuel o Venturoso (1495-1521). Caxinguelê, s. m., bras. O étimo quimbundo significa “rato de palmeira”. Nome com que se designam vários mamíferos roedores da família dos esquilos que tem cauda muito pilosa, mais comprida que o corpo, unhas pontudas e que vivem em árvores; o mesmo que serelepe. Cepa, s. f., top. Povoado à margem esquerda do rio Ubu, a cerca de 40 km de Belmonte. Coroa Grande, s. f., top. Baixio produzido por aluviões, a pouco mais de um quilômetro acima de Belmonte. Curupira, s. m., bras. Ente fantástico que habita as florestas brasileiras. O étimo tupi significa “corpo de menino”. Segundo a superstição popular, trata-se de um pequeno tapuio com os calcanhares virados para a frente para enganar os caçadores. Detesta pimenta e alho. Dedeira, s. f., bras. Proteção de pano que as pessoas ocupadas em retirar as amêndoas dos frutos de cacau usam nos dedos. De venta acesa. Disparado, desembestado, célere. Desgraçar (se) para, v.p., bras. Azular, danar, entrar no mundo, flechar; fugir apressadamente. Engenho de Areia, s. m., top. Povoado da margem direita do Jequitinhonha, no município de Belmonte, próximo a Ibipura. Formiga-de-estalo, s. f., bras. Taco-taco, formiga de picada dolorosa que, quando irritada, produz ruído semelhante a estalo. Fruta-pão, s. f., bras. Árvore da família das moráceas, que produz um falso fruto arredondado, que pode ser comido assado ou cozido.

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Gameleira, s. f., bras. Figueira-brava, árvore lactescente encontrada em matas úmidas cujo látex possui propriedade vermicida. Da gameleira se faz um vaso em forma de alguidar chamado gamela. Gancho, s. m., bras. Ancinho ou ciscador; instrumento agrícola, dentado, próprio para juntar palha. Grauçá, s. m., bras. Espécie de caranguejo brancacento comum nas praias arenosas. Graúdo, s. m., bras. Rico, poderoso: adj., desenvolvido, importante. Iara, s. f., bras. Ser fantástico, espécie de sereia de rios e lagos. A iara ou mãe-dágua é uma convenção do indianismo literário, segundo Câmara Cascudo. Ibipura, s. f., bras., top. Zona ribeirinha à margem esquerda do Jequitinhonha, distante cerca de 8 km de Belmonte. Ilha Grande, s. f., top. Povoado situado à margem direita do Jequitinhonha, a cerca de 63 km de Belmonte. Não está situado em ilha alguma, como parece, mas fica defronte à ilha chamada Grande. Antigo QG dos clavinoteiros de Belmonte. Ilha das Vacas, s. f., top. Ilha fluvial do Jequitinhonha em Belmonte. Ingá, s. m., bras. Fruto da ingazeira, árvore da família das leguminosas, que dá um fruto de polpa doce e comestível. Ingauíra, s. f., bras., top. Zona ribeirinha do Jequitinhonha, a cerca de 3 léguas de Belmonte, onde estava situada a fazenda Veneza, de propriedade do pai de Sosígenes Costa. Jacuba, s. f., bras. Bebida refrescante feita com farinha de mandioca diluída em água, adoçada com açúcar ou mel, às vezes com um pouco de aguardente. Jequi, s. m., bras. Cesto de pescaria, trançado com canas flexíveis, de formato alongado feito funil. Jitiranabóia, s. f., bras. Jequitiranabóia, inseto cuja cabeça lembra a de um sáurio, tornando-o temido do povo, que o crê capaz de, com sua picada, secar uma árvore ou matar um homem, muito embora seja inofensivo. Jote, s. m., bras. Brinquedo infantil semelhante à picula. Jundiá, s. m., bras. Nome comum a diversos tipos de bagres. Jupará, s. m., bras. Macaco-da-meia-noite, mamífero pertencente a uma ordem de animais relacionados com os ursos que, embora terrestres, se deslocam igualmente nas águas e nas árvores. Costumam atacar os frutos do cacaueiro. Jupati, s. m, bras. Designação genérica dos mamíferos da família dos gambás e das cuícas. Muitos são roedores à semelhança dos ratos e têm no abdome uma bolsa de pele.

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Jurupari, s. m., bras. Mito difundido no rio Negro por aruacas vindos do norte e mais tarde generalizado por quase todas as tribos amazônicas. Termo usado por missionários para relacionar esse ente da floresta com o diabo. Linha, s. f., bras. Zona ribeirinha do Jequitinhonha, próxima de Engenho de Areia. O nome vem do fato de, naquele ponto, a linha do telégrafo atravessar o rio. Lodaça, s. f., bras. Audácia, gabolice.

Mãe-da-lua, s. f., bras. BA. O mesmo que urutau: ave noturna de canto tristonho a lembrar um gemido humano. Mané-velho, s. m., bras., BA. Coco miúdo, de cor arroxeada, produzido por uma palmeira de pequeno porte e tronco espinhoso. Marobá, s. m., bras. Peixe de brejo, comestível. Maribondo (marimbondo), s. m., bras. Inseto da família dos vespídeos. Recebe um nome conforme o formato da casa que constrói, ou de acordo com o seu comportamento. SC menciona maribondo peito-de-moça, maribondo tapiocaba, maribondo três-por-dois e maribondo-tatu. Era também a alcunha que os portugueses davam aos brasileiros no tempo da independência, e apelido dos sediciosos pernambucanos que, em 1852, se manifestaram em protesto contra a execução do decreto imperial de 18 de junho de 1851, que instituiu o registro de casamentos e óbitos. No texto de Iararana, acredita-se que seja uma referência a um dos grupos políticos de Belmonte. Mataná-ariti, s. m., bras. Jogo dos índios Parecis, de Mato Grosso. Martim-pescador, s. m., bras. Ave da família dos alcedínidas, ariramba, que se alimenta de peixes. Maruim, s. m., bras. O étimo tupi quer dizer “mosca pequena”. Inseto de duas asas, minúsculo, cujas larvas vivem na água e cujas fêmeas se alimentam de sangue: suas picadas dolorosas transmitem ao homem e aos animais domésticos um tipo de elefantíase. Maturi, s. m., bras. NE. Caju novo, ou melhor, a castanha verde e ainda mole. Miriqui, s. m., bras. Macaco de pequeno porte. Mulungu, s. m., bras. O mesmo que corticeira, arbusto ornamental que dá hastes e flores rubras. Meroaba, s. f., top. Zona ribeirinha do Jequitinhonha, em Belmonte, próxima da Ingauíra, a 26 km de Belmonte. Micuim, s. m., bras. Espécie de carrapato, que ataca homens e animais provocando fortes comichões; tem coloração avermelhada e é tão diminuto que se precisa de lente para vê-lo bem. Mondrongo, s. m., bras. Apelido depreciativo de português; monstrengo.

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Mula-de-padre, s. f., bras. O mesmo que mula-sem-cabeça, assombração, ex-concubina de padre que, na noite de quinta para sexta-feira, sai em galope ruidoso com relincho estridente, botando fogo pelas ventas e pela boca. Pode ser desencantada se lhe arrancar o freio da cabeça: então surgirá nua, a chorar arrependida. Mundéu, s. m., bras. O étimo tupi significa “alçapão”; armadilha de caça. Munzuá, s.m., bras. Armadilha de pesca afunilada, feita de ripas de taquara ou bambu. Mutuca, s. f., bras. Espécie de mosca grande, de cabeça larga e olhos enormes. Somente as fêmeas picam e sua picada é dolorosa e incômoda aos seres humanos e aos animais. Oxum, s. m., bras. Orixá, divindade da religião iorubana, deusa dos rios e das fontes, filha de Iemanjá casada com seu irmão Xangô. Pai-do-mato, s. m., bras. Monstro folclórico, descrito como um bicho, maior que as árvores da mata, de cabelo e unhas longuíssimos. Seu urro estronda na floresta;nem tiro nem facada o matam, a menos que o acertem em torno do umbigo. Papagaio, s. m., top. Fazenda do município de Belmonte que ficou arruinada por uma enchente do Jequitinhonha, o qual, segundo a crença popular, castigou assim as impiedades de seu antigo proprietário. Pardo, s. m., top. Rio da Bahia que tem foz em Canavieiras, município vizinho de Belmonte. Pata-choca, adj. e s. f., bras. Mulher obesa, de gestos vagarosos, símbolo da opulência dos coronéis. Patioba, s. f., bras. O étimo tupi quer dizer “folha de pati (ou palmeira)” Pedra Branca, s. f., top. Atual município de Itapebi, outrora distrito do município de Belmonte. Peso, s. m., top. Vilarejo situado ente Belmonte e Canavieiras, onde antigamente se pesava a madeira para ser exportada e por isso o lugar era conhecido como Peso-do-Pau. Pico-de-jaca, s. f., bras. Surucucu, cobra extremamente venenosa, de pele escamada como casca de jaca, donde o seu nome. É a maior cobra venenosa do Brasil, atingindo até 3 metros de comprimento. Picula, s. f., bras. Jogo infantil de pega, semelhante à cabra-cega e ao pique.

Piticão, s. e adj. Quiçá o aumento de “pítico”, relativo à pítia, sacerdotisa de Apolo que pronunciava oráculos em Delfos; “azar-piticão” significaria aquele cuja presença anuncia ou augura má sorte. Pixixica, s. f., bras. Pequena formiga encontradiça nos cacauais e cujo simples contato com a pele produz dolorosa sensação de queimadura. Poaçu, s. m., top. bras. Afluente da margem esquerda do Jequitinhonha, entre Belmonte e Canavieiras.

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Podão, s.m., bras. Ferramenta recurvada para poda de árvores, usada na colheita do cacau. Porango, s. m., bras. O mesmo que porongo, cuia ou cabaça feita do fruto oco, de casca dua, do porongueiro. Quioiô, s. m., bras. Erva cujas folhas, fortemente aromáticas, são usadas como condimento. Romãozinho, s. m., bras. Demônio zombeteiro que se diverte em pregar peças aos viajantes solitários; às vezes, manifesta-se como entidade amiga, que dá recados ao ouvido e procura objetos extraviados; seus favores são granjeados pela oferenda de comida posta nas encruzilhadas. Sacudido, s. m., bras. Forró animado. Salgo, adj., bras. Diz-se do cavalo que tem olhos gázeos. Possivelmente, ao usar a expressão “queimado que nem salgo fugido”, Sosígenes tinha em mente outra popularizada na região - “cor de burro quando foge” – para designar uma cor morena, indefinida. Saruê, s. m., bras. Gambá, sariguê, espécie de marsupial, do qual existem 4 espécies no Brasil. Sucuriuba, s. f. bras. Possivelmente o mesmo que sucurijuba, que em tupi significa “sucuri amarela”. A sucuri é uma cobra sem peçonha, que vive em rios e lagos, atinge até 10 metros de comprimento e nutre-se de peixes, aves e mamíferos, que devora após esmagar-lhes os ossos por arrocho muscular. Siripóia, s. f., bras. Tipo de peneira de fibras trançadas, de formato côncavo, usada na pesca de camarão e siri. Taboa, s. f. , bras. Planta de cujos colmos se fazem esteiras. Taruíra, s. f., bras. Lagartixa branca. Teiú, s. m., bras. Grande lagarto da fauna brasileira de cor preto-azulada, que vive em buracos cavados na terra. O étimo tupi significa “comida de gentalha”. Trabuco, s.m. Espécie de bacamarte; clavinote. Tomar sumiço, v. p. bras. Desaparecer, esconder-se. Tupã, s. m., bras. A primeira e mais sensível manifestação de algo incompreensível ou superior que está no trovão e no relâmpago. Entidade desconhecida que troveja e destrói com o fogo dos raios trovejantes as árvores e os habitantes da floresta. O termo foi empregado pelos missionários jesuítas para designar Deus. Tutu, s. m., bras. Bicho-papão, monstro fictício com que se dá susto às crianças; mandachuva, figurão. Uaka-curumim. (Uaka = céu; curumim = menino) Menino do céu, o alter ego do poeta.

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Velame, s. m., bras. Arbusto muito ramoso que dá flores pequenas, de muitos estames. Xaréu, s. m., bras. Designação genérica de várias espécies de peixes. Xexéu, s. m., bras. Ave muito encontradiça no Brasil e países vizinhos; tem cor negra, com dorso e penas da cauda amarelo-vivos e o bico claro.

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