bauman, z. et al. o papel da cultura nas ciencias sociais

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"O trabalho é a fonte de toda a riqueza, dizem os economistas. £ é- o de fato... juntamente com a Natureza que lhe fornece a matéria por ele transformada em riqueza. Mas é infinitamente mais do que isso. É a con- dição fundamental de toda a vida humana, e em tão elevado grau que, certo sentido se pode dizer: foi o trabalho que criou o próprio homem." FRIEDRICH ENGELS "A era glacial, com as suas rápidas e radicais variações nas forma- ções terrestres, e na vegetação, é reconhecida desde muito tempo co- mo um período durante o qual as condições foram ótimas para o acelera- do e eficiente desenvolvimento evolutivo do homem. Julga-se também atualmente que terá sido um período em que o meio ambiente cultural te- substituído gradualmente o meio ambiente natural no processo de se- leção, de tal modo, que acelerou ainda mais o ritmo evolutivo do homem fazendo-o atingir uma velocidade sem precedentes." CLIFFORD GEERTZ "Entre as concepções erradas, pseudocientíficas, sobre o homem, sobre o seu desenvolvimento e cultura, há que incluir, antes de mais na- da, aquelas que pressupõe que a maioria esmagadora da população está predestinada por natureza a viver, a trabalhar com carências e sem direi- los, eiu|iianlo que outra fração, a dos eleitos, têm por missão governar essa maioria e usufruir de todos os bens materiais e espirituais." ALEIXEI NIKOLAEVICH LEONTIEV "Para que a cultura se torne "massiva", não basta construir uma eslação de televisão: é necessário que algo aconteça primeiro na estrutura social. A cultura de massas é de certa forma uma superestrutura que as- senta sobre aquilo a que poderemos chamar "uma estrutura social massi- va". ZYGMUNT BAUMAN "Apesar do conceito de "cultura" se encontrar entre as categorias mais importantes das ciências sociais e do seu interesse crescer de ano pa- ra ano, as definições dadas pelos diferentes autores não têm nem de lon- ge a mesma acepção. Como muito justamente assinala Jan Schepanski é difícil imaginar um conceito de que se tenha abusado tanto e que tenha mais significado que o conceito de "cultura", que aparece com muitos sentidos, não só na linguagem corrente como também nas diversas ciên- cias e na filosofia. Tal estado de coisas levanta, naturalmente, a necessi- dade de elaborar, o mais rapidamente possível, uma definição rigorosa- mente científica, com aceitação geral, do conceito de "cultura". EDUARDO S. MARCARIAM osa-dos-ventos rn tf) rP ! 8o g.e mN II Engels - C. Geertz - Z. Bauman A. Leontiev - E. Marcarian O P/ DACUITURA AS CIÊNCIAS SOOAI MIA MARTHA

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Page 1: Bauman, z. et al. o papel da cultura nas ciencias sociais

"O trabalho é a fonte de toda a riqueza, dizem os economistas. £ é-o de fato... juntamente com a Natureza que lhe fornece a matéria por eletransformada em riqueza. Mas é infinitamente mais do que isso. É a con-dição fundamental de toda a vida humana, e em tão elevado grau que,certo sentido se pode dizer: foi o trabalho que criou o próprio homem."

FRIEDRICH ENGELS

"A era glacial, com as suas rápidas e radicais variações nas forma-ções terrestres, e na vegetação, é reconhecida desde há muito tempo co-mo um período durante o qual as condições foram ótimas para o acelera-do e eficiente desenvolvimento evolutivo do homem. Julga-se tambématualmente que terá sido um período em que o meio ambiente cultural te-rá substituído gradualmente o meio ambiente natural no processo de se-leção, de tal modo, que acelerou ainda mais o ritmo evolutivo do homemfazendo-o atingir uma velocidade sem precedentes."

CLIFFORD GEERTZ

"Entre as concepções erradas, pseudocientíficas, sobre o homem,sobre o seu desenvolvimento e cultura, há que incluir, antes de mais na-da, aquelas que pressupõe que a maioria esmagadora da população estápredestinada por natureza a viver, a trabalhar com carências e sem direi-los, eiu|iianlo que outra fração, a dos eleitos, têm por missão governaressa maioria e usufrui r de todos os bens materiais e espirituais."

ALEIXEI NIKOLAEVICH LEONTIEV

"Para que a cultura se torne "massiva", não basta construir umaeslação de televisão: é necessário que algo aconteça primeiro na estruturasocial. A cultura de massas é de certa forma uma superestrutura que as-senta sobre aquilo a que poderemos chamar "uma estrutura social massi-va".

ZYGMUNT BAUMAN

"Apesar do conceito de "cultura" se encontrar entre as categoriasmais importantes das ciências sociais e do seu interesse crescer de ano pa-ra ano, as definições dadas pelos diferentes autores não têm nem de lon-ge a mesma acepção. Como muito justamente assinala Jan Schepanski édifícil imaginar um conceito de que se tenha abusado tanto e que tenhamais significado que o conceito de "cultura", que aparece com muitossentidos, não só na linguagem corrente como também nas diversas ciên-cias e na filosofia. Tal estado de coisas levanta, naturalmente, a necessi-dade de elaborar, o mais rapidamente possível, uma definição rigorosa-mente científica, com aceitação geral, do conceito de "cultura".

EDUARDO S. M A R C A R I A M

osa-dos-ventos

rntf)

rP!8og.em N

II

Engels - C. Geertz - Z. BaumanA. Leontiev - E. Marcarian

O P/DACUITURA

AS CIÊNCIAS SOOAIMIA MARTHA

Page 2: Bauman, z. et al. o papel da cultura nas ciencias sociais

Este livro apresenta cinco ensaiossobre "cultura", conceito dos maisdiscutidos em Ciências Sociais e cu-ja definição tem gerado mais con-trovérsia, que propriament~ um es-clarecimento científico, sobre o queseja a "cultura" como ente socioló-gico.

O sentido que se lhe atribui, suaorigem, sentido e esfera de influên-cia, têm variado de época para épo-ca, de autor para autor, e a polêmicaque à sua volta se tem gerado per-manece ainda hoje longe de se darpor concluída.

Nossa intenção não foi, nem po-deria ter sido, esgotar o tema, masatravés da visão de autores de váriasépocas e de diversas nacionalidades(alemães, soviéticos e norte-ameri-canos) esboçar uma linha da ori-gem, sentido e âmbito da cultura in-tegrada ao desenvolvimento históri-co e social da humanidade.

"As grandes batalhas da nossaépoca são as batalhas pelo bem-estar

dos homens, pela libertação do homemde todas as formas de opressão e

de escravidão."

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Coleção rosa-dos-ventosVol. 3

R Engels - C. Geertz - Z. BaumanA. Leontiev - E. Marcarian

O PAPELDA CULTURA

NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

I11IIIEDITDRIAL VILLA MARTHA

Page 5: Bauman, z. et al. o papel da cultura nas ciencias sociais

CapaEstúdio da Villa

2? semestre de 1980Direitos desta edição reservados à:EDITORIAL VILLA MARTHA LTDA.Rua Visconde do Herval, 77790.000 - PORTO ALEGRE - RS - BRASIL

TRANSFORMAÇÃO DO MACACO EMHOMEM, por

Friedrich Engels .TRANSIÇÃO PARA A HUMANIDADE, por

Clifford Geertz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21O HOMEM E A CULTURA, por

AleixeiNikolaevich Leontiev 37UMA PRIMEIRA NOTA SOBRE A CULTURADE MASSAS:A INFRA-ESTRUTURA, por

Zygmunt Bauman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73LUGAR E PAPEL QAS INVESTIGAÇÕES DACULTURA NAS CIENCIAS SOCIAISMODERNAS, por

Eduardo S. Marcarian . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 931. Para uma caracterização geral da atual etapa da

elaboração do conceito de "cultura" . . . . . . . . . 942. Sobre o problema da relação entre os conceitos:

"Sociedade" e "Cultura" 973. A cultura, uma função da vida social das

pessoas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 1034. O conceito da "cultura" e o problema da

classificação do conteúdo dos elementos dosistema social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 107

5. O conceito de "técnica" à luz do atual conceitode cultura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 112

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TRANSFORMAÇÃO DO MACACOEM HOMEM

o trabalho é a fonte de toda a riqueza, dizem os econo-mistas. E é-o de fato ... juntamente com a Natureza quelhe fornece a matéria por ele transformada em riqueza.Mas é infinitamente mais do que isso. É a condição fun-damental de toda a vida humana, e em tão elevado grauque, certo sentido, se pode dizer: foi o trabalho que criouo próprio homem.

Há várias centenas de milhares de anos, provavel-mente nos finais de um período ainda não determinado daera terrestre a que os geólogos chamam terceária, viviaalgures nazona tropical - muito possivelmente num vastocontinente hoje submerso no oceano índico - uma raçade macacos antropóides que alcançaram um desenvolvi-mento particularmente elevado. Darwin deu-nos uma des-cri~o aproximada desses símios que seriam nossos ante-passados: tinham o corpo coberto de pêlos, possuíambarba e orelhas pontiagudas e viviam em bandos sobreas árvores.

Sob a influência, fundamentalmente, do seu gênerode vida em que o subir às árvores exigia das mãos uma

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função diferente da dos pés, esses macacos foram, poucoa pouco, desabituando-se de empregar as mãos ao cami-nharem em solo plano, adotando uma posição cada vezmais ereta. Deu-se, assim, o passo decisivo para a transiçãodo macaco ao homem.

Todos os macacos antropóides que ainda subsistemconseguem erguer-se e caminhar sobre os dois pés, sema ajuda das mãos, mas fazem-no apenas em caso de neces-sidade e muito desajeitadamente. A sua marcha naturalrealiza-se em posição inclinada e com a ajuda das mãos.Á maioriaapoia os nós dos dedos no solo, impulsionando ocorpo para a frente, com as pernas dobradas entre os longosbraços, como um paralítico apoiado em muletas. De modogeral, podemos ainda hoje observar, entre os macacos,todos os estádios de transição entre a marcha quadrú-pede ea bípede. A marcha bípede não passa, em nenhumdeles, porém, de um simples recurso de emergência.

Uma vez que a marcha ereta se tornou, para os nossospeludos antecessores, primeiro num hábito e, depois,numa necessidade, é natural supor-se que, ao mesmo tempo,as mãos. se terão dedicado, cada vez mais, a outras novastarefas. Na própria atividade dos macacos se verificajá uma certa divisão de funções entre as mãos e os pés>Ao trepar, como já foi dito, a mão é usada de maneiradiferente da dos pés: é utilizada, geralmente, para colheros frutos e segurar os alimentos, tal como fazem, com aspatas dianteiras, determinados mamíferos inferiores. Váriasespécies de macacos se servem delas na construção deninhos nas árvores e até, como no caso dos chimpazés,de coberturas entre os ramos, para se protegerem das chuvas.Com as mãos se armam de paus para se defenderem, e depedras e frutos para atacarem. Com elas realizam, quandoem cativeiro, uma série de operações simples, imitadas

dos homens. Mas é precisamente neste ponto que se veri-fica a diferença entre a mão pouco desenvolvida do macaco,por mais parecido que seja com o homem, e a humana,altamente desenvolvida pelo trabalho de centenas demilhares de anos. O número e a disposição geral dos ossose dos músculos são os mesmos, quer num, quer nooutro~mas a mão do mais primitivo dos selvagens pode executarde operações que nenhuma mão de macaco consegueimitar. Nenhuma mão de macaco conseguiu até hoje fa-bricar uma faca de pedra, por mais tosca que fosse.

As operações a que os nossos antepassados aprende-ram a adaptar gradualmente as suas mãos durante o perí~dode transição do macaco ao homem, no decurso de mUItosmilênios, só podiam ter sido portanto, muito simples, aprincípio. Os mais primitivos dos selvagens, mesmo aquelesem que se pode admitir um retrocesso a um estado bastantepróximo do animal, acompanhado de regressão física, en-contra-se num nível bem mais elevado que esses seres detransição. Antes da primeira pedra ter sido modeladapela mão do homem para a transformar num~ faca, t~rãodecorrido períodos de tempo ao lado dos qUaIS o penodohistórico que conhecemos é insignificante. Mas o pas.sodecisivo fora dado; a mão tinha sido libertada; ela podena,a partir daí, adquirir cada vez mais novas aptidõ~s, e amaior capacidade assim obtida, ser herdada e aperfeIçoada,de geração em geração.

Deste modo, a mão não é apenas o órgão de trabalho,é também o produto do trabalho. Só pelo trabalho, pela suaadaptação a operações sempre novas, pela tr~nsmissã?hereditária do desenvolvimento particular, asSIm adqUI-rido, dos músculos, dos tendões e, em intervalos mais lon-gos, dos próprios ossos, pela aplicação constant~ desseaperfeiçoamento hereditário a novas e cada vez maIS com-

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plexas operações, foi possível à mão humana alcançar esseelevado grau de perfeição que lhe permitiu fazer surgir omilagre dos quadros de Rafael, das estátuas de Thorwal-dsen, da música de Paganini.

Mas a mão não estava só. Era apenas uma parte detodo um organismo extremamente complexo. O que eraproveitoso para a mão, era-o igualmente para todo o corpo,a cujo serviço se encontrava - e isto de duas maneiras.

Em primeiro lugar, em virtude da lei da correlação dodesenvolvimento, como a denominou Darwin. Segundoesta lei, determinadas formas de uma certa parte do orga-nismo estão sempre ligadas a outras formas de outras partesque, aparentemente, não têm relação com aquelas. Tantoassim é que todos os animais que possuem glóbulos ver-melhos sem núcleo, e cujo crânio está ligado à colunavertebral por intermédio de uma dupla ligação (condilos)têm, sem exceção, glândulas mamárias para alimentaçãodas suas crias. Também, nos mamíferos, os cascos bifur-cados estão geralmente associados a um estômago múl-tiplo para ruminação. Os gatos brancos, de olhos azúis,são sempre, ou quase sempre surdos. O aperfeiçoamentoprogressivo da mão humana e a adaptação simultâneado pé à marcha ereta, repercutiram-se igualmente, porefeito duma correlação semelhante, sobre outras partesdo organismo. Todavia, esta influência não foi ainda sufi-cientemente estudada para que possamos ir além da suaconstatação em termos gerais.

A influência direta e verificável do desenvolvimentoda mão sobre o resto do organismo é, porém, muito maisimportante. Conforme já dissemos, os nossos anteces-sores simiescos eram seres sociáveis; é evidentementeimpossível admitir que o homem, o mais sociável dos ani-mais, procedesse de um antepassado direto que o não fosse.

O domínio da Natureza pelo homem, iniciado com o desen-volvimento da mão, com o trabalho alarga-lhe, a cadaprogresso, o horizonte. Nos objetos naturais, descobriaconstantemente propriedades novas, até então desconhe-cidas. Por outro lado, o desenvolvimento do trabalho con-tribuiu necessariamente para o estreitamento de laçosentre os membros da sociedade à medida que se multi-plicavam os casos de ajuda mútua, de ação em comum,e em que a utilidade dessa cooperação se tornava clara naconsciência de cada indivíduo. Em resumo, os homensem formação atingiram um ponto em que tinham qualquercoisa a dizer uns aos outros. A necessidade criou um órgãoapropriado: a tosca laringe do macaco transforma-selentamente, mas num sentido definido, obtendo modula-ções cada vez mais desenvolvidas, e os órgãos da bocaforam, pouco a pouco, aprendendo a pronunciar sonsarticulados.

A comparação com os outros animais demonstra seresta explicação da origem da linguagem, devido ao trabalhoe por meio dele, a única correta. Estes, mesmo os maisdesenvolvidos, têm tão pouco a comunicar entre si que opodem fazer sem recorrer à linguagem articulada. Noestado natural, nenhum animal considera como imperfei-ção o fato de não poder falar ou não compreender a lin-guagem humana. O mesmo não acontece quando domes-ticado pelo homem. O cão e o cavalo, adquirem atravésdo trato com o homem, um ouvido de tal modo ajustadoà linguagem articulada que conseguem fácilmente aprendera compreender qualquer linguagem, dentro dos limitesdo seu campo de representações. Adquirem também afaculdade de nutrir sentimentos que antes lhes eram es-tranhos, tais como carinho pelo homem, gratidão, etc.;quem tenha muitos contatos com esses animais dificil-

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mente deixará de se convencer de que muito frequentementeos mesmos sentem então como insuficiência o fato de nãopoderem falar, insuficiência essa que é já impossível reme-diar dada a excessiva especialização dos seus órgãos vocais.Mas quando existe um órgão adequado, essa incapacidadedesaparece, dentro de certos limites. Os órgãos bucais dospássaros são extraordinariamente diferentes dos do homem;mas, no entanto, os pássaros são os únicos animais queconseguem falar e é precisamente o que tem a voz maisdetestável, o papagaio, que melhor fala. E que não se digaque não se percebe o que ele diz. Pelo simples prazer defalar ou para estar em companhia do homem, é capaz depalrar durante horas a fio, repetindo sem cessar o seu voca-bulário. Mas, dentro dos limites do seu campo de repre-sentação, consegue também compreender o que diz. Ensine--se um papagaio a proferir injúrias, de forma a que adquiraa noção do seu significado (uma das distrações preferidasdos marinheiros que regressam das regiões tropicais);quando irritado, depressa se verificará que sabe utilizaras suas injúrias tão corretamente como uma vendedeira dehortaliças de Berlin. O mesmo verificaremos se lhe ensinar-mos a pedir guloseimas.

Primeiro o trabalho, e depois em simultâneidade comele, a linguagem; eis os dois principais estímulos sobcuja influência o cérebro do macaco se foi, pouco a pouco,transformando em cérebro humano, que, a despeito de~odas as semelhanças, o supera de longe, quer em dimensão,quer em perfeição. Paralelamente ao desenvolvimento docérebro, efetuou-se o aperfeiçoamento dos seus maisimediatos instrumentos, os órgãos dos sentidos. Assimcomo a linguagem, no seu desenvolvimento progressivo,é acompanhada de um adequado aperfeiçoamento doórgão da audição, assim também o desenvolvimento do

cérebro provoca o aperfeiçoamento de todos os sentidos.A águia consegue ver muito mais longe do que o homem,mas o olho humano vê muito melhor que o da águia.O cão tem um olfato muito mais apurado que o homem,mas não distingue uma centésima parte dos odores que,para o homem, são características definidas de diferentescoisas. E o sentido do tato que existe, no macaco, apenassob forma muito rudimentar, só com a mão do homem,pelo trabalho, se desenvolveu.

O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos que lheestão subordinados, a crescente clareza da consciência,o aperfeiçoamento da capacidade de abstração e de racio-cínio influenciaram o trabalho e a linguagem e forneceram--lhes constantemente estímuios sempre renovados nosentido do seu contínuo aperfeiçoamento. Este aperfeiçoa-mento não terminou no momento em que o homem sediferenciou definitivamente do macaco; muito pelo contrá-rio, continuou a partir desse momento. Com progressosdiferentes, em grau e em direção, de povo para povo,de região para região, interrompido mesmo, por vezes,por uma regressão temporária e local, prosseguiu sempre asua grandiosa marcha, recebendo, por um lado, um novoe poderoso impulso, por outro, uma direção mais definidade um novo elemento que surgiu com o aparecimento dohomem acabado: a sociedade.

Terão passado seguramente centenas de milhares deanos - o equivalente na história da terra a um segundo navida do homem (1) - antes que, de um bando de macacosque trepavam às árvores, surgisse uma sociedade de seres

(1) Ver Jan Schepansfli, Conceitos éleméntares da sociologia, Mos-cou , 1969, pp. 38-40 (edição russa).

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humanos. Existia, finalmente. E que voltamos a encontrarcomo diferença característica entre aquele bando de ma-cacos e a sociedade humana? O trabalho. O bando demacacos contentava-se em colher os alimentos existentesna área que lhe era determinada pela situação geográficaou pela resistência de bandos vizinhos; errava de local emlocal ou entrava em luta com os bandos vizinhos com o fimde conquistar uma nova área rica em alimentos, mas eraincapaz de extrair do seu domínio mais do que a naturezalhe oferecia, com exceção para o fato de o adubar in-conscientemente com os seus excrementos. Quando todosos territórios susceptíveis de fornecerem alimentos aosmacacos estivessem ocupados, era impossível haver qual-quer aumento da sua população. O seu número podia,na melhor das hipóteses, manter-se estacionário. Mas todosos animais desperdiçam alimentos e destroem, para alémdisso, os rebentos quando germinam. O lobo não respeita,como o caçador, a cabra que lhe dará, no ano seguinte,os cabritos; na Grécia, as cabras que devoram o tojorecente, tornaram áridas as montanhas desse país, Esta«economia de saque» levada a cabo pelos animais desem-penha um importante papel na progressiva transformaçãodas espécies, obrigando-as a adaptarem-se a uma alimen-tação que não a habitual, em consequência do que o sangueadquire uma nova composição química e toda a constitui-ção física se modifica, pouco a pouco, enquanto que asespécies definitivamente fixadas se vão extinguindo. Não.resta dúvida de que esta devastação contribuiu poderosa-mente para a transformação dos nossos antecessores emhomem. Numa raça de macacos muito mais avançadaque as outras, quer em inteligência quer em capacidade deadaptação, esta prática teria tido como resultado o au-mento do número de plantas que entravam na sua ali-

mentação, o aumento do número de partes dessa plantaque eram consumidas, uma alimentação mais variada,em resumo, e, ao mesmo tempo, a criação, por parte dosnovos elementos introduzidos no organismo, das condiçõesquímicas necessárias à passagem do macaco ao homem.Tudo isto, porém, não constituía, ainda, trabalho propria-mente dito. O trabalho começa com a fabricação de ferra-mentas. E, quais são as mais antigas que conhecemos?Que forma tomam os primeiros instrumentos, a julgarpelos vestígios deixados pelos homens pré-históricos epelo modo de vida dos primeiros povos da história e dosatuais selvagens mais primitivos? São instrumentos decaça e de pesca, servindo, os primeiros, também de armas.Mas a caça e a pesca pressupõem a passagem da alimenta-ção exclusivamente vegetariana ao consumo simultâneoda carne: um novo passo no sentido da humanização.A alimentação carnívora contém, sob forma quase completa,todos os elementos essenciais de que o corpo necessitapara o seu metabolismo; sendo mais curta a digestão,torna-se menor o tempo requerido pelos outros processosvegetativos, correspondentes ao processo da vida dasplantas, ganhando, assim, tempo, mais substância e mai~rforça para a vida animal, propriamente dita. Quanto maISo homem em formação se afastava dos vegetais, mais seelevava ao do animal. Assim como o hábito da alimentaçãoassociada à carne transformou o gato e o cão em servido-res do homem, assim também o hábito da alimentaçãocarnívora associada aos vegetais, contribuiu essencial-mente para dar ao homem em formação a força física eindependência. Mas o mais importante neste tipo de ali-mentação foi a sua ação sobre o cérebro, que recebia assubstancias necessárias à sua alimentação em quantidadesmuito mais abundantes do que anteriormente e que por

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conseguinte, se pôde desenvolver com maior rapidez eperfeição, de geração em geração. Com a permissão dosvegetarianos, o homem só atingiu a sua completa formaçãodepois de adotar uma alimentação carnívora, e apesardesse regime de alimentação ter conduzido, neste ou na-quele período, em todos os povos que conhecemos, aocanicalismo (os antepassados dos berlinenses, os vite-lenses, em pleno século X, comiam os seus próprios pais),isso não nos pode já preocupar.

A alimentação carnívora conduziu a dois novos pro-gressos de importância decisiva: o uso do fogo e a domes-ticação de animais. O primeiro abreviou ainda mais oprocesso digestivo na medida em que os alimentos eramlevados à boca já semi-digeridos, por assim dizer; a segundatornou o regime alimentar à base de carne mais abundante,ao criar paralelamente a caça uma nova e mais regularfonte de alimentos, fornecendo-lhe, com o leite e seusderivados, um novo alimento de valor, pelo menos, igualao da carne, devido à sua composição. Estes dois progressostornaram-se, assim, já de modo direto, em novos meios deemancipação do homeni; entrar em pormenores sobre osseus efeitos indiretos levar-nos-ia demasiado longe, ape-sar da sua enorme importância para o desenvolvimentodo homem e da sociedade.

Assim como o homem aprendeu a comer tudo o queera comestível, assim se tornou também capaz de viveremtodos os climas. Espalhou-se por toda a superfície habitá~vel da terra, como único animal capaz de o fazer por sípróprio. Os outros animais que se acostumaram a todos osclimas, não o fizeram por si próprios, mas sim em compa~nhia do homem: os animais domésticos e os vermes. Eapassagem da temperatura constante do clima da sua pá-tria primitiva para as regiões mais frias, em que o ano se

dividia em verão e inverno, criou novas necessidades:a habitação e o vestuário, para se proteger do frio e daumidade , abrindo assim caminho a novos tipos de tra-balho e a novas atividades que iam afastando, cada vezmais, o homem do animal.

Graças à ação conjugada da mão, dos órgãos da falae do cérebro, não só em cada indivíduo, como também nasociedade, os homens foram-se tornando capazes de rea-lizar operações cada vez mais complexas, de fixar e de al-cançar objetivos cada vez mais elevados. O própriotrabalho se ia tornando, de geração para geração, maisperfeito e mais variado. À caça e à criação de gado, junta-sea agricultura, e a esta a fiação, a tecelagem, os trabalhoscom metais, a navegação, a olaria. Ao lado do comércioe da indústria surgiram, finalmente, a arte e a ciência; astribos transformaram-se em nações e em. Estados; a polí-tica e o direito desenvolveram-se, e, a um mesmo tempo,o reflexo fantástico das coisas humanas: a religião. Em facede todas estas criações, que se apresentavam à primeiravista como produtos do cérebro do homem e que pareciamdominar as sociedades humanas, os produtos mais modes-tos do trabalho das mãos passaram para segundo plano;e isto tanto mais que o espírito queestabeleciao plano detrabalho podia já, mesmo nos primórdios do desenvolvi-mento da sociedade (na família primitiva, por exemplo),fazer executar, por outras mlos, o trabalho planejado.Foi ao espírito, ao desenvolvimento do cérebro que seatribuiu todo o mérito do rápido desenvolvimento dasociedade; os homens habituaram-se a explicar os seusatos como resultado do seu pensamento, e não como conse-quência das suas necessidades (que refletindo-se no seucérebro, se tornam conscientes), e foi assim que surgiucom o decorrer do tempo a concepção idealista do mundo

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que, sobretudo a partir do dec1ínio da antiguidade, temdominado os espíritos. Ela reina ainda a tal ponto que nemsequer os próprios estudiosos materialistas da escola deDarwin conseguem ter ainda hoje uma idéia clara sobre aorigem do homem, uma vez que, sob a influência destaideologia, não reconhecem o papel desempenhado pelotrabalho nesta evolução.

Como já foi indicado, os animais, tal como o homem,modificam, ainda que em menor grau, o meio ambienteatravés da sua atividade:, e essas transformações por elesproduzidas, atuam, por sua vez, como já vimos, sobre oselementos causais, transformando-os. Isto porque na na-tureza nada acontece isoladamente. Cada fenômeno atuasobre um outro, e vice-versa, e é na maior parte dos casospor esquecerem este movimento e esta ação recíprocauniversais que os nossos estudiosos ficam impossibilitadosde ver com clareza as coisas mais simples. Já vimos comoas cabras constituem obstáculo ao reflorescimento naGrécia; na Ilha de Santa Helena, as cabras e os porcosdesembarcados pelos primeiros navegadores à vela que aíaportaram, destruiram quase totalmente a antiga vegeta-ção da ilha e, assim, prepararam o terreno onde mais tardeproliferaram as plantas para ali levadas ulteriormentepelos navegadores e colonos. Mas quando os animaisexercem uma influência duradoura sobre o seu meio am-biente, isso verifica-se independentemente da sua vontadee é, para eles próprios, um fato puramente casual.O homem, porém, quanto mais se afasta dos animais,mais a sua ação sobre a natureza toma o caráter de umaatividade preme&itada, metódica, visando fins determi-nados, anteriormente conhecidos. O animal destrói a vege-tação de uma determinada região, sem saber o que estáa fazer. O homem destrói-a para semear no solo, assim

limpo, cereais, para plantar árvores ou vinhas, que elesabe que produzirão muitas vezes mais do que os que elesemeou. Transporta plantas úteis e animais domésticosde um país para outro, modificando assim a flora e a faunade continentes inteiros. Mais ainda, através da seleçãoartificial, plantas e animais são transformados pela mãodo homem de tal forma que se tornam irreconhecíveis.As plantas silvestres, de que procedem os nossos cereais,são hoje procuradas em vão. Continua-se a investigar deque animal selvagem procederão os nossos cães, que sãoextremamente diferentes entre si, bem como as raças decavalos.

Não nos ocorre, evidentemente, negar aos animais apossibilidade de agirem metódica e premeditadamente.Antes pelo contrário. Onde quer que se encontre proto-plasma, albumina viva, reagindo, isto é, matéria com movi-mentos determinados, por mais simples que seja, comoresposta a determinadas reações exteriores, existe, emgérmen forma de atividade metódica. Uma tal reação ve-rifica-se mesmo onde não existe ainda uma célula, ou muitomenos mesmo do que uma célula nervosa. O modo peloqual as plantas insetívoras se apoderam das presas surgeigualmente, em certa medida, como metódico, ainda queinconscientemente. Nos animais, a faculdade de agir demodo consciente, metódico, desenvolve-se à medida queo sistema nervoso se desenvolve também, e, nos mamíferos,atinge já um grau elevado. Na caça à raposa, tal como sepratica em Inglaterra, podemos observar diariamentecom que habilidade a raposa utiliza o seu grande conhe-cimento do terreno para escapar aos seus perseguidores,procurando, por todos os meios, interromper o seu rastro.Entre os nossos animais domésticos, que a sociedade doshomens desenvolveu ainda mais, pode-se observar, a cada

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passo, manifestações de astúcia que se situam absoluta-mente ao mesmo nível das que observamos nas crianças.Assim como a história do embrião humano no ventre da suamãe mais não representa do que uma repetição abreviadada história de milhões de anos da evolução física dosnossos antepassados animais, a começar pelo verme,assim também a evolução intelectual da criança é uma re-petição, ainda mais abreviada, da evolução intelectualdos seus antecessores, pelo menos dos mais recentes.Todavia, o conjunto da atividade metódica de todos osanimais não conseguiu deixar a marca da sua vontade.Só o homem o conseguiu.

Em resumo, o animal utiliza apenas a natureza e asmodificações que nela provoca são apenas aquelas quedecorrem da sua presença; o homem, ao introduzir-lhemodificações, serve-sedela para fins determinados, domina-a.É nisto que consiste a última diferença essencial entre ohomem e o resto dos animais, e é, mais uma vez, ao tra-balho que o homem a deve.

TRANSIÇÃOPARA A HUMANIDADE

o problema da ligação entre o homem e os restantesanimais tem sido tema constante nas ciências humanas.A partir de Darwin, deixou-se praticamente de duvidar daexistência de tal relação. Mas no que respeita à naturezadesta relação e especialmente ao seu grau, o debate temsido muito mais amplo e não completamente esclarecedor.Alguns estudiosos, em particular aqueles que se dedicamàs ciências biológicas - zoologia, paleontologia, anatomiae fisiologia -, revelaram a tendência de dar demasiadoênfase ao parentesco existente entre o homem e aquilo aque nos damos ao luxo de chamar animais inferiores:consideram a evolução como um fluxo relativamente inin-terrupto do processo biológico, e têm tendência a olharpara o homem apenas como uma das mais interessantesformas em que a vida se manifesta, tal como fazem com osdinossauros, com os ratos brancos e com os golfinhos.O que lhes prende a atenção é a continuidade, a unidade detodo o mundo orgânico, a generalidade incondicionaldos princípios sob os quais ele próprio se forma. No entanto,se bem que os estudiosos das ciências sociais - psicólogos,

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sociólogos, especialistas em ciências políticas - não ne-guem a natureza animal do homem, revelaram a tendên-cia de o considerar único no seu gênero, diferente, comoàsvezes eles mesmos dizem, não só de «grau», mas tambémde «qualidade». O homem é um animal que conseguefabricar ferramentas, falar e criar símbolos. Só ele ri; sóele sabe que um dia morrerá; só ele tem aversão a copularcom a sua mãe ou a sua irmã; só ele consegue imaginaroutros mundos em que habitar, chamados religiões porSantayana, ou fabricar peças de barro mentais a queCyril Connolly chamou arte. Considera-se que o homempossui, não só inteligência, como também consciência;não só tem necessidades, como também valores. não sóreceios, como também consciência moral; não só passado,como também história. Só ele - concluindo à maneirade grande sumário - possui cultura.

A conciliação destes dois pontos de vista não temsido fácil, especialmente numa disciplina como a antro-pologia, que, pelo menos nos Estados Unidos, sempre setem relacionado com ambos os campos. Por um lado, osantropólogos têm sido os principais estudiosos da evo-lução física dos seres humanos; seguiram os vestígios dasetapas no decurso das quais surgiu o homem modernodestacando-se da categoria geral dos primatas. Por outrolado, os antropólogos têm sido os estudiosos por excelên-cia da cultura, mesmo quando não sabiam exatamenteo que exprimir por esse termo. Ao contrário do que acon-tecia com alguns biólogos, não podiam ignorar a vidacultural do homem, situando-a no domínio das artes,para lá dos confins das ciências. E ao contrário de algunsespecialistas das ciências sociais, não podiam igualmentemenosprezar a história física do homem como irrelevantepara a compreensão da sua condição atual. A consequên-

cia de tudo isto é que o problema da origem da cultura- pouco importa as vezes que foi ignorado por se consi-derar pouco importante, ou que se ridicularizou conside-rando-se sem solução - tem chamado cada vez mais anossa atenção à medida que, fragmento após fragmento,se foi reconstruindo o processo da evolução do Homosapiens.

Durante cerca da última m~tade do século XIX, asolução que prevalecia quanto ao problema da origem dacultura foi o que se poderia chamar a teoria do «pontocrítico». Este termo, que foi adotado pelo decano daantropologia norte-americana, Alfred Kroeber, recente-mente falecido, postula que o desenvolvimento da capaci-dade de adquirir cultura foi uma conquista repentina, deum momento para o outro, tipo salto quântico, na filo-genia dos primatas: num dado momento da história dahominização - isto é, da «humanização» de um ramo dalinha dos primatas - se produziu uma alteração orgânicaprodigiosa ainda que provavelmen.te pe,5luena em term~sgenéticos ou anatÔmicos. Esta modlficaçao, que se podenasupor ter tido lugar na estrutura cortical, tornou possí.velque um animal cujos progenitores não tinham conseguIdoum desenvolvimento superior, se tornasse apto, segundo aspalavras de Kroeber, «a comunicar, .aprender,. ensinar,generalizar a partir de uma ínfima cadela de sentImentos eatitudes diferentes». Com ele começaria a cultura e, umavez iniciada, estabelecer-se-ia sobre o seu próprio cursode tal modo que o seu desenvolvimento seria completamenteindependente da ulterior evolução orgânica do homem.Todo o processo de criação da capacidade do homem mo-derno de produzir e de utilizar a cultura foi definido comouma transformação quantitativa marginal que deu lugara uma diferença qualitativa radical. Kroeber empregou

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o exemplo da congelação da água, cuja temperatura sepode reduzir grau a grau sem que o líquido perca fluidezaté que, de repente, se solidifica a 0° C. Outro antropólogocomparou o processo ao decolar de um avião, que vaiaumentando de velocidade ao longo da pista até chegar aomomento em que começa a voar. Um antropólogo físico. . 'ao cntIcar esta noção, referiu-se-Ihe sucintamente apre-sentanto o esquema do aparecimento do homem como umapromoção militante, «como se tivesse sido de repente pro-movido de coronel a brigadeiro». A humanidade do homemtal como o fogo no fósforo, começou a existir repentina~mente.

Foram três as considerações fundamentais que con-duziram a esta opinião geral e lhe serviram de apoio.Em primeiro lugar havia o enorme abismo aparente entreas capacidades mentais do homem e as dos seus parentesvivos mais próximos, os grandes símios. O homem podefalar, fazer símbolos, fabricar ferramentas, etc. Nenhumoutro animal contemporâneo pode sequer aproximar-sede tais conquistas. Um casal de primatólogos impos-sea tarefa de levar a cabo a heróica experiência de criar umchimpazé no seu lar como se tratasse de um irmão adotivoda sua filha, oferecendo-lhe, dentro das medidas do pos-sível, a mesma educação e atenção do que à criança. No en-tanto, apesar do animal ter aprendido um grande númerode coisas bem insólitas para um chimpazé - tais comomanipular uma pistola de água, abrir latas com um abre--latas, e, num momento culminante, puxar um brinquedoimaginário com uma corda também imaginária, nem come-~0.u a aprender a falar. Sendo incapaz de falar, depressatOl ultrapassado pela sua irmã humana, a qual se podesupor terá continuado a avançar até chegar a elaborarcomplexas teorias sobre a unicidade da condição humana.

Em segundo lugar, a linguagem, a simbolização, aabstração, etc., pareciam ser, do ponto de vista puramentelógico, assuntos de extremos, ou sim ou não. Fala ou nãofala, fabrica ou não fabrica ferramentas, imagina demô-nios ou não os imagina. As meias religiões, meias artes,meias línguas não podiam sequer ser concebidas, uma vezque o processo essencial que está por detrás destas capa-cidades - isto é, a imposição à realidade de uma estruturaarbitrária de significado simbólico - não constituia otipo de atividade de que existissem versões parciais.O progresso, desde a atividade reflexa simples até aopensamento simbólico, foi considerado como uma sériede saltos e não como um continuum ascendente. Entre aconcepção da relação natural nuvem escura-chuva até aoestabelecimento da relação arbitrária nuvens escuras--desespero não havia, segundo se cria, etapas intermédias.

E, em terceiro lugar, havia o problema ainda maisdelicado daquilo a que comumente se conhece pela «uni-dade psíquica da humanidade». Isto está relacionado com atese - que muito poucos antropólogos atualmente põemem dúvida - que defende que não existem diferençasimportantes na natureza do processo do pensamentoentre as diferentes raças humanas atuais. Se se supuserque a cultura surgiu plenamente desenvolvida num dadomomento, e no período anterior ao início da diferenciaçãoracial, então esta tese fica implicitamente demonstrada pordedução. Defender a possível existência de diferençashistóricas entre as diferentes espécies de hominídeo - ouseja, entre as diferentes classes de «homens», atuais eextintos - parecia apoiar a citada afirmação relativamenteàs diferentes raças do homem moderno. Uma vez que aevidência empírica contradiz de forma retundante as taisdiferenças entre os diferentes grupos do Homo sapiens,

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a. hipótese parecia refutada de antemão. Assim, a psicolo-gIa .co~para~a, a semântica e a etnologia convergiam noapOIO a teona do «ponto crítico» da origem da cultura.Apesar. disso, havia um ramo da antropologia que não~Ond?ZIa ao mesmo resultado: a paleontologia humana,Isto e, o estudo da evolução humana através da descobertae análise de restos fósseis. Desde que o estranho médicoholandês Eugene DuBois encontrou o casco do crâniodo Pithecanthropus erectus, o «homem símio- ereto»num leito fluvial de Java em 1891, a antropologia físic~tem acumulado sem cessar provas que tornam cada vez maisdifícil traçar uma linha definida entre o homem e o não--?omem sob ~ ponto de vista anatõmico, Apesar de algumastenues tentatIvas de estabelecer um «Rubicão cerebral»- um tamanho cerebral crítico, a partir do qual nasce jádesenvolvida a capacidade de se comportar corretamentede modo humano, como Atenas da fronte de Zeus -a~ ~esco?ertas paleontológicas suavizaram, fragmento d~fossI1 apos fragmento, a curva da ascendência do homematé ao ponto em que as simples afirmações sobre o que éhumano e o que o não é, tomaram um lamentável ar dea~bitrariedade. As mentes e almas humanas surgirão ouna~ de modo gradual; mas não há dúvida que com os corposaSSIm acontece.

As descobertas de fósseis que maior perplexidadecausaram, ,n~ste sentido, foram as dos vários tipos de«homens-s,nn~os» au~t~ralopitecus que têm vindo a apa-recer na Afnca mendIOnal e oriental desde que, em 1924Raymond Dart desenterrou o primeiro no Transval.De fato, estes fósseis cuja idade oscila entre 750000 e1?5? ?OO anos são as descobertas mais importantes dahIstona da paleontologia humana; mostram um con-trastante mosaico de características morfológicas primiti-

vas e avançadas, cujos traços mais particulares são umaformação da pélvis e da perna assustadoramente parecidacom a do homem moderno, e uma capacidade cranianapouco maior do que a dos grandes símios atuais. A ten-dência inicial foi considerar esta desconcertante conju-gação num mesmo animal de um sistema locomotorbípede «semelhante ao do homem» e de um cérebro «se-melhante aos dos símios», como indício de que os austhro-lopithecus constituiam uma linha de desenvolvimentoaberrante, mal-aventurada, separada tanto da linha humanacomo da dos grandes símios; era preferível ser completa-mente macaco do que meio-homem, como disse uma vezErnest Hooton. Mas o consenso atual é de que representaas mais antigas formas conhecidas do processo evolutivo,as quais, com o andar dos tempos, deram origem ao homemmoderno a partir de algum tronco símio geral. Estes es-tranhos semi-homens constituem as raízes da nossa huma-nidade.

O nosso interesse pelos austhralopithecus deriva dassuas implicações com a teoria do «ponto crítico» da origemda cultura. Estes proto-homens semi-eretos, de cérebropequeno, cujas mãos estavam livres das funções de locomo-ção, fabricavam ferramentas, e é provável que tenham ca-çado animais pequenos, pelo menos alguns deles. Mas ébastante improvável que tenham tido uma cultura desen-volvida comparável, digamos, à dos aborígenes austra-lianos, ou que possuissem uma língua, no sentido modernodo termo, contando com um cérebro cujo tamanho eraapenas um terço do nosso. Ao que parece no authralopi-thecus temos, por conseguinte, um tipo de «homem»que era evidentemente capaz de adquirir alguns elementosde cultura (fabricação de ferramentas simples, caça perió-dica, e talvez algum sistema de comunicação mais avançado

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que o dos grandes símios atuais e menos avançados doque a língua verdadeira), mas apenas estes, situação estaque projeta como que uma sombra sobre a teoria do«ponto crítico». Aquilo que parecia pouco provável, oumesmo logicamente impossível, surge como empiricamentecerto: tal como no homem, a capacidade de adquirir cul-tura apareceu contínua e gradualmente, pouco a pouco,durante um período de tempo bastante longo.

Mas a situação é ainda mais desesperada, porquantose os austhralopithecus possuíam uma forma de culturaelementar (aquilo a que um antropólogo chamou «proto-cultura»), com um cérebro cujo tamanho era apenas umterço do do homem moderno, daqui se infere que a maiorparte da expansão cortical humana seguiu, e não prece-deu, o «início» da cultura. Na teoria do «ponto crítico»considerava-se o homem já mais ou menos completo,pelo menos neurologicamente, antes de se iniciar o desen-volvimento da cultura, uma vez que a capacidade biológicade adquirir cultura era uma questão de tudo ou nada.Uma vez alcançada esta totalmente, o resto foi uma meraadição de novos costumes e desenvolvimento de outrosmais antigos. A evolução orgânica prosseguiu até chegara um certo ponto, e então, uma vez franqueado o «Rubicãocerebral», inciou-se a evolução cultural, processo autô-nQmo por si só, e independente de ser ou não produtor dealterações posteriores do sistema nervoso. O fato de assimnão ter acontecido, segundo se julga, do desenvolvimentocultural se verificar muito antes de terminar o desenvolvi-mento orgânico, tem uma importância fundamental paraa nossa noção da natureza do homem. Ele converte-seagora, já não só no produtor de cultura, mas também,num sentido biológico específico do termo, no seu pro-duto.

Isto assim é porque as pressões do padrão de seleçãodurante as fases finais da evolução do animal humanoeram parcialmente determinadas pelas fases iniciais dodesenvolvimento cultural humano, e não simplesmentepor fatores do meio ambiente natural. A dependê~cia. dofabrico de ferramentas, por exemplo, confere maIOr Im-portância tanto à destreza manual como à previsão. Nu~aaldeia de austhralopithecus, um indivíduo um pouco maISdotado dessas características teria uma vantagem sele -tiva sobre um outro indivíduo um tanto menos dotado.A caça de pequenos animais, com o uso de armas primiti-vas, requer, entre outras coisas, grande persistência epaciência. O indivíduo que possuisse em maior grau .es~assóbrias virtudes, teria vantagem sobre um outro maIS 1l1-

constante e menos dotado. Todas estas capacidades,aptidões, disposições ou como se lhes queira chama~,dependem, por sua vez, evidentemente, do desenvolvI-mento do sistema nervoso. Deste modo, a introdução daelaboração de ferramentas e a caça deve ter' atuado, detal modo que as pressões da seleção modificaram-se efavoreceram o rápido crescimento do cérebro anterior,assim como, muito provavelmente, determinaram os pro-gressos na organização social, comunicação e normaçãomoral, que - tudo leva a crer - teriam tido lugar duran~.teeste período de interrelacionação entre a transformaçaobiológica e a cultural.

Como é natural, grande parte das conjeturas nestecampo são, apesar de tudo, de índole especulativa, e e~-tamos mais a começar a pôr questões do que acontesta--Ias. Assim por exemplo, o estudo sistemático da condutados primatas sob condições naturais descrito por DeVare, e que tem atualmente um grande impacto nas nossasconcepções da vida social do homem primitivo, tem,

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salvo raras exceções, uma escassa década. O arquivo defósseis aumenta de dia para dia e os processos de determi-nação cronológica aperfeiçoam-se com tal rapidez, que sóos imprudentes tentariam estabelecer opiniões definitivassobre determinadas matérias. Mas, deixando de lado por-menores, provas e hipóteses específicas, verificamos que oponto essencial é que a constituição inata, genérica dohomem moderno (aquilo a que, de uma maneira maissimples, se costuma chamar «natureza humana») pareceser um produto tanto cultural como biológico. «Seriaprovavelmente mais correto, escreveu o antropólogofísico Sherwood Washburn, considerar uma grande parteda nossa estrutura (física) como o resultado da cultura,em vez de imaginar homens iguais a nós do ponto de vistaanatômico, e descrever, assim, a cultura lentamente».A expressão «o homem faz-se a si próprio» tem atualmenteum significado mais literal do que antes se supunha.

A era glacial, com as suas rápidas e radicais variaçõesclimáticas nas formações terrestres, e na vegetação, éreconhecida desde há muito tempo como um períododurante o qual as condições foram ótimas para o acele-rado e eficiente desenvolvimento evolutivo do homem. Jul-ga-se também atualmente que terá sido um período em que omeio ambiente cultural terá substituído gradualmente omeio ambiente natural no processo de seleção, de talmodo, que acelerou ainda mais o ritmo evolutivo do homemfazendo-o atingir uma velocidade sem precedentes.

Ao que parece, não foi apenas um período de retro-cesso dos seios frontais e de diminuição dos maxilares,mas foi também um período no decorrer do qual se for-jaram todas aquelas características da existência do homemque são mais humanas: o seu sistema nervoso, dotado deum bom encéfalo; a sua estrutura social baseada no incesto

como tabú, e a sua capacidade de criar e de utilizar sím-bolos. O fato destas diferentes características da humani-dade terem surgido a um mesmo tempo, numa complexainteração e não sucessivamente, como se supôs durantemuito tempo, é de excepcional importância para a inter-pretação da mentalidade humana, uma vez que sugereque o sistema nervoso do homem não só lhe permite adqui-rir cultura, como também é necessário que o faça para quepossa funcionar. Em lugar de considerar a cultura apenasna sua função de suprir, desenvolver e aumentar capaci-dades com base orgânica, geneticamente anteriores a ela,dever-se-ia considerá-Ia como integrante das mesmas ca-pacidades. Um ser humano desprovido de cultura não seriaprovavelmente um grande símio intrinsecamente dotadode talento ainda que não-realizado, mas uma monstruosi-dade carecente de psique e por conseguinte irrealizáve1.Como a couve - a que tanto se assemelha - o cérebrodo Homo sapiens, que surgiu dentro do contexto da culturahumana, não seria viável fora do mesmo.

As implicações gerais desta opinião revista sobre atransição para a humanidade são imensas, e apenas al-gumas podem aqui ser consideradas. Por um lado, levoua que se efetuasse uma reinvestigação e reformulação dasconsiderações teóricas que serviam de base à tese do «pontocrítico». Por exemplo, a argumentação baseada na psi-cologia comparada dos primatas, como se pode verificaratualmente, estabelecia não tanto a unicidade do homemmoderno, mas mais o caráter distintivo de toda a linhahominídea num período de 5 a 25 milhões de anos, da qualo homem não é mais do que o representante máximo e,de fato, o único vivo; mas inclui um número maior declasses diferentes de animais, todos eles extintos, muitomais «próximos» do homem do que qualquer dos grandes

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slmlOs atuais. O fato dos chimpanzés não falarem é aomesmo tempo interessante e importante; mas extrair destefato a conclusão de que a fala é um fenômeno de tudoou nada, sería como supor que sendo a girafa o únicoquadrúpede vivo que possui um pescoço muito longo, oteria adquirido mediante algo comparável a um saltoquântico. Os grandes símios podem ser os parentes vivosmais próximos do homem; mas o «próximo» é, por assimdizer, um termo relativo. Se se considerar uma escalacronológica realista, não são certamente tão próximos,uma vez que o último antepassado comum viveu, pelomínimo, 50 000 séculos ou mais, naquilo a que os geólogosdenominam de plioceno.

No que respeita ao raciocínio lógico, podemos dizerque também isto foi posto em dúvida. O crescente interessepela comunicação como um processo geral, que caracte-rizou durante as duas últimas décadas disciplinas que vãodesde a engenharia à etnologia, reduziu a linguagem,por um lado, a um só mecanismo - com grande flexi-bilidade e eficiência reconhecidas - para a transmissãode significados entre muitos interlocutores e, por outrolado, ofereceu um contexto teórico em cujos termos se podeconceber uma série gradual de passos conducentes àlinguagem verdadeira. Esta questão não pode ser aquianalisada; mas, como exemplo, um linguista comparouoito sistemas diferentes de comunicação, que compreen-diam desde a dança das abelhas, o cortejo dos peixese o canto dos pássaros até aos gritos dos gibões, a músicainstrumental e a linguagem humana. Em vez de concentrartoda a sua análise à volta da simples e já bastante penosadiferenciação de sinal versus símbolo, distingue trezeaspectos fundamentais da linguagem, e tenta, baseando-senestes, analisar com maior precisão a diferença existente

entre a comunicação humana e sub-humana e construir umalinha possível de desenvolvimento, gradual na era glacial,da linguagem verdadeira a partir da protolinguagem.Também este tipo de investigação se encontra na começo;mas, segundo parece, aproxima-se o fim da etapa em que aúnica coisa de útil que se podia dizer sobre a origem dalinguagem, era que todos os humanos a possuíam porigual e que, do mesmo modo, todos os não-humanos a nãopossuíam.

Por último, o fato comprovado da não existênciade diferenças significativas na capacidade mental entre asraças atuais do homem não é negado e, em última instân-cia, é apoiado e aprofundado pelo postulado da existên-cia de diferenças na capacidade de adquirir cultura entreas várias formas de homens pre-sapiens. A diversidadefísica das raças humanas é, evidentemente, algo de muitorecente; ter-se-á verificado há talvez apenas 50 000 anos,ou,segundo as estimativas mais conservadoras, menos de umacentésima parte da duração de toda a linha hominídea,isto é, da formação do homem. Portanto, a humanidadenão só passou a maior parte da sua história envolvida numprocesso evolutivo comum, como se julga hoje em diater sido precisamente este o período durante o qual seforjaram as características fundamentais da sua humanidade.

As raças modernas são apenas isto: modernas. Elasrepresentam adaptações muito tardias e secundárias nacor da pele, estrutura facial, etc., devidas, provavelmente,em primeiro lugar, a diferenças climáticas, à medida que oHomo sapiens se foi estendendo por todo o planeta atéfinais da era glacial. Estas adaptações são, por conseguinte,inteiramente posteriores aos processos formativos básicosdo desenvolvimento nervoso e anatômico que teve lugarentre o estabelecimento da linha hominídea e o apareci-

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mento, há 50-150 milénios, do Homo sapiens. Mentalmente,o homem formou-se na era glacial, e a força modeladorarealmente decisiva na produção da sua unicidade - ainteração das fases iniciais do desenvolvimento culturale as fases culminantes da formação biológica - faz parteda herança comum de todas as raças modernas.

Deste modo, a opinião de que a capacidade de detercultura não floresceu num dado momento, mas que foielaborada nas oficinas de ferramentas do paleolíticoinferior, durante um período de tempo prolongado, longede enfraquecer a doutrina da unidade psíquica, explica-ae especifica-a; confere-lhe uma base histórica de que care-cia anteriormente.

Mais importante ainda do que a revisão ou reinterpre-tação das antigas teorias, que o conceito sincrônico e nãoo conceito de sequência da relação entre a evolução daanatomia humana e o nascimento da cultura humanarequeria, são as suas implicações no novo modo de pensara própria cultura. Se o homem cresceu, por assim dizer,dentro do contexto de um meio ambiente cultural em de-senvolvimento, então é necessário considerar esse meioambiente cultural apenas como uma mera amplificaçãoextra-somática, uma espécie de extrapolação artificial dascapacidades inatas já conferidas, mas como parte integranteda existência dessas mesmas capacidades. O fato patentedas etapas finais da evolução biológica do homem teremtido lugar depois das etapas iniciais do crescimento dacultura implica, como já foi assinalado, que a naturezahumana «básica», «pura», ou «não condicionada», nosentido da constituição inata do homem, é tão incompletado ponto de vista funcional que se torna impraticável.As ferramentas, a caça, a organização familiar, e, maisa arte, a religião e uma forma primitiva de «ciência»,

moldaram o homem somaticamente, e são, portanto,não só necessárias para a sua sobrevivência, como tambémpara a sua realização existencial. É certo que sem homensnão existiriam manifestações culturais. Mas é igualmentecerto que sem manifestações culturais não haveria homens.

A trama simbólica formada por crenças, expressãoe valores, em cujo interior vivemos, provê-nos dos meca-nismos necessários a uma conduta ordenada; nos animaisinferiores, ao contrário do que acontece conosco, estesmecanismos não se encontram geneticamente instaladosno corpo. A unicidade do homem costuma exprimir-seem termos de quanto e quantas coisas diferentes é capazde aprender. E assim é, embora o fato de chimpanzésjogarem com objetos imaginários nos possa pôr momen-taneamente algumas dúvidas. Mas o que tem talvez aindamaior importância teórica é saber quanto pode o homemaprender. Sem os padrões guias da cultura humana, a vidaintelectual do homem não seria mais do que uma confusãobarulhenta e estrondosa, como disse William James.O conhecimento no homem, ao contrário do que acontececom os símios, depende da existência de modelos simbó-licos da realidade, objetivos e externos. Emocionalmente,a situação é a mesma. Sem o guia das imagens exteriori-zadas, dos sentimentos falados no ritual, os mitos e a arte,não saberíamos, de fato, como sentir. Tal como o pró-prio cérebro anterior desenvolvido, as idéias e as emoçõessão artefatos culturais do homem.

O que isto anuncia, creio eu, é uma revisão fundamentalda própria teoria da cultura. Nas próximas décadas consi-deraremos os padrões de cultura menos em termos domodo em que estes limitam a natureza humana, e cadavez mais na forma em que, para bem ou para mal, a atua-lizam; cada vez menos como uma acumulação de mecanis-

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mos engenhosos para alargar as capacidades inatas pre-existentes, e cada vez mais como parte das tais capacidades;cada vez menos como uma massa supra-orgânica de cos-tumes, e cada vez mais, como nas vivas palavras do defuntoClyde Kluchhonh, desenhos para viver. O homem é o únicoanimal vivo que necessita de tais desenhos, uma vez que é oúnico cuja história evolutiva se desenvolveu de tal formaque o seu ser físico se modelou em grau significativo pelaexistência dos mesmos, e , por conseguinte, os pressupõe.A tensão existente entre a concepção do homem comosimples animal dotado de talento e do homem comoestranhamento único no seu gênero evaporar-se-á, assimcomo os conceitos teóricos que lhes deram origem, aomomento em que se reconheça o alcance total deste fato.

As grandes batalhas da nossa época são as batalhaspelo bem-estar dos homens, pela libertação do homem detodas as formas de opressão e de escravidão.

É por isso que o problema do homem assume nosnossos dias um sentido especial, sendo atualmente paramilhões e milhões de pessoas um problema de atuação.A importância de uma abordagem verdadeiramente cien-tífica deste problema é, portanto, cada vez maior.

A ciência, se é verdadeira, constitui a bússula que indicacorretamente ao homem a senda do progresso. No entanto,a ciência só pode cumprir esta missão se se despir das con-cepções e preconceitos falsos. Entre as concepções erradas,pseudocientíficas, sobre o homem, sobre o seu desenvolvi-mento e cultura, há que incluir, antes de mais, aquelasque pressupõem que a maioria esmagadora da populaçãodo nosso planeta está predestinada por natureza a viver atrabalhar, com carências e sem direitos, enquanto que outrafração , a dos eleitos, tem por missão governar essa maioriae usufruir de todos os bens materiais e espirituais.

Conhecemos perfeitamente a que consequências mons-truosas podem conduzir estas idéias. Foram precisamente

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A concepção de que o homem se distingue radicalmentemesmo dos animais mais altamente desenvolvidos, con-tinua, entretanto, a manter-se firmemente na ciência.Como diferentes autores consideram estas diferenças e asexplicam, é outro problema.

Consideramos que não vale a pena determo-nos emtodas as idéias expostas nesta direção.

Deixaremos sem examinar, de um modo geral, asidéias que têm por base a aceitação do princípio claramenteespiritual, religioso, que segundo este critério, constituia origem e a essência especial do homem. A aceitação desteprincípio não depende da ciência, mas da fé; este princípiofoge do quadro da ciência.

As discussões científicas mais importantes giraramà volta das propriedades e particularidades biológicas ehereditárias do homem. A ponderação hábil da sua im-portância serviu de base teórica às mais reacionárias eracistas concepções biológicas.

A posição oposta a este tipo de soluções do problema,posição desenvolvida pela ciência progressita, parte, pelocontrário, do homem como ser social por natureza; de queaquilo que no homem é humano é engendrado pela vidaem sociedade e pela cultura criada pela humanidade.

Já no século passado, imediatamente após o apareci-mento do livro de Charles Darwin, A origem das espéciespor meio da seleção natural, F. Engels, ao mesmo tempoque apoiou a idéia da origem animal do homem, demons-trou que este, diferenciando-se profundamente dos seusantecessores animais, se humanizou ao passar pela vidasocial, baseada no trabalho; que este passo transformoua sua natureza e estabeleceu o início do desenvolvimento,que, ao contrário do dos animais, não se determina já

estas idéias que suportaram teoricamente o racismo e ali-cerçaram descaradamente o direito à escravização e exter-mínio de povos inteiros.

Mas nos nossos dias, estas falsas concepções perde-ram força e afundam-se cada vez mais sob a pressão cres-cente dos triunfos dos movimentos nacionais pela indepen-dência, a igualdade e a liberdade; triunfos que em apenasalgumas décadas transformaram países, antes quase anal-fabetos, em países com uma intelectualidade tecnicamenteavançada, com os seus cientistas, literatura, teatros emuseus. Estas transformações, rápidas e inesperadas,não deixam lugar para teorias sobre o destino fatal doschamados povos atrasados e das massas exploradas.

Estas concepções erradas caem sob a pressão do avançoda ciência do homem. Dispomos atualmente da possibi-lidade de compreender muito melhor a verdadeira naturezado homem, as suas capacidades, forças e condições de quedepende o seu desenvolvimento.

Dedico, pois, a minha exposição à análise destesproblemas.

Desde tempos imemoriais que se considera o homemum ser especial, qualitativamente diferente dos animais.A acumulação de conhecimentos concretos de biologiapermitiu a Charles Darwin fundamentar a sua conhecidateoria sobre a evolução. Esta teoria confirmou a idéia deque o homem é um produto do desenvolvimento gradualdo mundo animado e que aquele provém deste.

Desde então, a anatomia, a paleontologia, a embrio-logia e a antropologia comparada, têm recolhido novos enumerosos fatos que confirmam o anteriormente afirmado.

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por leis biológicas, mas pelas novas leis do desenvolvi-mento social histórico.

À luz dos modernos dados da paleontologia, o pro-cesso em que decorre a passagem dos animais para ohomem realiza-se, em poucas palavras, do seguinte modo:

Esta passagem realizou-se mediante um longo pro-cesso que compreende uma série de estádios. O que deter-mina a preparação biológica do homem constitui o pri-meiro deles. Inicia-se no período terciário já avançado econtinua até aos começos do quaternário. Os representantesdeste estádio, os chamados Australopithecus, eram ani-mais que vi\.iam em grupos e que se distinguiam pela suaposição ereta; utilizavam instrumentos toscos, não for-jados, e dispunham provavelmente de meios simples decomunicação. Nesta fase as leis biológicas prevaleciam to-talmente.

Ao segundo grande estádio, formado por uma sériede etapas longuíssimas, pode-se chamar o estádio da pas-sagem ao homem. Estende-se desde o aparecimento doPithecantropus erectus até à época do Homo neandertha-lensis, inclusive. Esta fase é importante porque é nela quesurge a preparação de utensílios e aparecem as primeirasformas, ainda que em estado embrionário, de trabalho esociedade. Neste estádio continuaram a prevalecer na for-mação do homem as leis biológicas, isto é, manifestavam-secomo anteriormente em transformações anatômicas quese transmitiam por herança de geração em geração. Mas,neste estádio, aparecem, ao mesmo tempo, coisas novasno desenvolvimento. As transformações da estrutura ana-tômica do homem, do cérebro, dos sentidos, mãos e ór-gãos vocais, realizavam-se já sob a influência do desenvol-vimento do trabalho, e da comunicação oral por ele in-centivada.

Em poucas palavras, o desenvolvimento biológico dohomem realizava-se sob a influência do desenvolvimentoda produção. Mas a produção é desde o princípio um pro-cesso social, que avança segundo as suas próprias leis obje -tivas, leis social-históricas; eis porque a biologia começoua «registrar» na estrutura anatômica do homem o inícioda história da humanidade.

Deste modo o homem, convertido em sujeito do pro-cesso social, depende da ação de duas leis: primeiro, daação das leis biológicas, em virtude das quais os seusórgãos se adaptaram às condições e exigências da produção;e segundo, através destas leis, das leis social-históricas,que regulam o desenvolvimento da produção e dos fenô-menos que ela engendra.

Há que assinalar que muitos autores modernos consi-deram toda a história do homem como um processo subme-tido a esta dupla condição. Crêem, como Spencer, que odesenvolvimento da sociedade, ou como eles preferem dizer,o desenvolvimento do meio «supra orgânico», isto é,social, cria apenas para o homem condições de existên-cia particularmente complexas às quais se adapta biolo-gicamente. Esta versão, no entanto, carece de base. De fato,a formação do homem passa por outra etapa, um terceiroestádio, em que os fatores biológicos e sociais da formaçãoda sua natureza se modificam de novo.

Este é o estádio do aparecimento do homem moderno,fiomo sapiens. Esta etapa representa uma viragem radicalno desenvolvimento do homem, que se liberta completa-mente da sua anterior dependência das modificaçõesbiológicas, inevitavelmente lentas, transmitidas heredita-riamente. As leis social-históricas são as únicas que dirigemagora o desenvolvimento do homem.

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Y.Y. Roguinski, destacado antropólogo soviético,descreve esta viragem do seguinte modo: «Para além doslimites, isto é, no período da formação do homem, a suaatividade. laboral estava intimamente ligada à sua evoluçãomorfológica. Para cá daqueles limites, isto é, no homemmoderno, já completamente formado, a ativiGade labo-ral decorre sem qualquer relação com o seu progressomorfológico».

Isto significa que o homem, definitivamente formado,possui todas as propriedades biológicas necessárias ao seuposterior desenvolvimento social-histórico ilimitado. Poroutras palavras, a passagem do homem para uma vidacultural mais elevada não exigia já a transformação dasua natureza biológica e hereditária. O homem e a humani-dade tinham sacudido, segundo a expressão de Vandell,o«despotismo hereditário» e podiam desenvolver-se a umritmo jamais visto no reino animal. Efetivamente, duranteas três, quatro ou cinco décadas milenárias que nos sepa-ram dos primeiros representantes da espécie Homo sapiens,produziram-se as condições históricas e modus vivendidas pessoas, transformações inesperadas e sem paralelo,tanto pelo seu significado como pelo seu ritmo crescente.No entanto, as particularidades biológicas e de espécie nãomudaram; mais precisamente, estas transformações nãoforam para além dos limites das variantes que na vidasocial têm significado considerável.

Não queremos com isto dizer que as leis evolutivas ehereditárias deixem de atuar completamente no processode formação do homem, e que a natureza do homem, umavez conduída, em nada se modifique. O homem, efetiva -mente, não escapa à ação das leis biológicas. Não se tratadisso; trata-se de que as transformações biológicas, trans-mitidas hereditariamente, não condicionam o desenvolvi-

mento social-histórico do homem e da humanidade; que oprocesso de desenvolvimento é movido por outras forçase não pela ação das leis da evolução biológica e here-ditária.

K.A. Timiriazev, o conhecido biólogo, no seu livrodedicado à teoria evolucionista, expressou esta idéia comas seguintes e magníficas palavras: «A teoria sobre a lutapela existência - escreveu - detém-se nos umbrais dahistória da cultura. Toda a atividade racional do homem éuma luta contra a luta pela existência. Isto é, uma luta paraque todas as pessoas da nossa terra possam satisfazer asnecessidades, para que não conheçam carências, fome ouextenuação ...»

Assim, o processo de humanização, processo de trans-formações essenciais na organização física do homem,completou-se no início da era da história social da humani-dade. Hoje esta idéia já não parece paradoxal. Bastadizer, por exemplo, que num colóquio científico sobre estetema recentemente realizado em Paris, esta idéia foi defe-dida pela maioria dos especialistas que nele participaram.

No entanto, como decorre neste caso o desenvolvi-mento do homem e qual é o «mecanismo» deste processo?Pois, no devir da história da humanidade as condições devida dos homens e os próprios homens continuarão a mo-dificar-se. Para além disso, os valores do desenvolvimentoacumulados transmitir-se-ão de geração em geração,pois só isso pode assegurar a continuidade do processohistórico.

O que foi anteriormente afirmado demonstra que estesprogressos se consolidaram. Mas, se, tal como vimos,não se puderam afirmar pela ação biológica e hereditária,como se consolidaram, então? Afirmaram-se de uma forma

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completamente especial, que surgiu uma só vez na socie-dade humana, sob a forma de fenômenos exteriores de,fenômenos da cultura material e espiritual.

Esta forma particular de consolidação e de transmissãodos progressos do desenvolvimento às gerações seguintessurgiu devido ao fato da atividade dos homens, ao con-trário da dos animais, ser criadora, produtiva. Esta é,portanto, e antes de mais, a atividade fundamental dohomem, o trabalho.

Na sua atividade, os homens, não se adaptam, sim-plesmente, à natureza. Modificam-na, correspondendo àssuas crescentes dificuldades. Criam objetos que satis-fazem as suas necessidades e os meios para a produçãodesses objetos, isto é, instrumentos, e depois máquinasmais complicadas, Constroem habitações, produzem ves-tuários e outros valores materiais. Ao mesmo tempo quea produção de bens materiais progride desenvolve-se acultura espiritual dos homens; o caudal de conhecimentossobre o mundo circundante e sobre o próprio homemenriquece-se, e desenvolvem-se as ciências e as artes.

Para além disso, no processo de atividade dos homens,as suas capacidades, conhecimentos e aptidões crista-lizam-se de determinada maneira nos produtos dessa ati -vidade, nos produtos materiais e espirituais, nos seus ideais.É por isso que cada novo passo no aperfeiçoamento, porexemplo, dos instrumentos de trabalho, pode ser consi-derado neste sentido como uma encarnação de um novoescalão no desenvolvimento histórico das aptidões motrizesdo homem; a diversificação da fonética, nas línguas, podeser considerado como a personificação dos progressos naarticulação dos sons e no aperfeiçoamento do aparelhoauditivo; o processo na arte pode considerar-se como a

encarnação do desenvolvimento estético, e assim sucessi-vamente.

Deste novo modo, cada nova geração começa a suavida no mundo dos objetos e fenômenos criados pelasgerações precedentes. Participando no trabalho, na pro-dução e nas diferentes formas da sua atividade social,ela apropria-se das riquezas deste mundo, desenvolvendonos homens as aptidões especificamente humanas quese haviam já cristalizado e encarnado neles. A capacidadede articulação, inc1usivamente, forma-se nos homens decada geração apenas no processo de apropriação da línguahistoricamente estabelecida e na dependência das suasaptidões objetivas. O mesmo acontece no desenvolvimentodo pensamento e na aquisição de conhecimentos. Nenhumaexperiência pessoal, por mais rica que seja, pode conseguirpensar de maneira lógica, abstrata ou matemática, e indi-vidualmente estabelecer um sistema de idéias. Para seconseguir isto é necessário não uma vida, mas milhares.Na realidade, o pensamento e os conhecimentos de cadageração formam-se apropriando-se dos progressos jáalcançados pela atividade cognoscitiva das geraçõesanteriores.

Os dados suficientemente verídicos de que a clenciadispõe atualmente demonstram que em determinadoscasos de crianças que desde a mais tenra idade se desen-volvem à margem da sociedade e dos fenômenos que elaengendra, não passam do nível de desenvolvimento dosanimais (R. Zingg). Estas crianças não só desconhecem afaculdade de pensar e de falar, como inc1usivamente osseus movimentos em nada se parecem com os dos homens;será suficiente dizer que eles nem sequer chegam a dominara posição ereta, própria dos homens. Conhecemos outros

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fatos, decerto modo contrários, em que crianças perten-centes por nascimento a comunidades que se encontramnum grau inferior de desenvolvimento cultural e econô-mico, que passam a viver desde muito cedo num meiocultural elevado, e em que obtém todas as aptidões neces-sárias para viverem plenamente nesse meio cultural. Cita-rei, por exemplo, o caso mencionado por A. Pieron.

No Paraguai existe a tribo guayaquili, que pertenceàs mais atrasadas das conhecidas atualmente. À civili-zação dos guayaquili dá-se o nome de «melosa», pois queum dos meios de subsistência consiste em recolher o meldas abelhas silvestres. Estabelecer contato com eles édificílimo, uma vez que não vivem num local permanente.logo que alguém desconhecido se aproxima deles fogempara a floresta. Uma vez conseguiu-se atrair uma criançade sete anos desta tribo; pode-se assim conhecer a sualíngua que se verificou ser extremamente primitiva.Noutra ocasião, num acampamento abandonado destatribo encontrou-se uma criança com uns dois anos. O etnó-grafo francês Vellard, que a encontrou, entregou-a àeducação da sua mãe. Passados vinte anos (1958) não sedistinguia em nada, pelo seu desenvolvimento intelectual,das mulheres europeias cultas. Fala francês, espanhol eportuguês, e dedica-se à etnografia.

Estes fatos e muitos outros demonstram claramenteque as capacidades. e aptidões específicas do homem nãose transmitem por herança biológica, mas que se formamdurante a vida, no processo de apropriação da culturacriada pelas gerações anteriores. Todos os homens con-temporâneos (tendo em conta os casos normais), indepen-dentemente de pertencerem a este ou aquele grupo étnicopossuem, pois, os gérmens criados no período de formação

do homem, os quais, existindo as condições necessárias,permitem um progresso nunca visto no reino animal.

Pode dizer-se que cada homem aprende a ser homem.Aquilo que a natureza lhe deu à nascença não é sufi-ciente para viver em sociedade. Tem de assimilar tudoo que o desenvolvimento histórico da sociedade humanaalcançou.

Diante do homem surge um oceano de riquezas acumu-ladas durante séculos de inúmeras gerações humanas,constituídas pelos únicos seres do nosso planeta que pos-suem a faculdade de criar.

As gerações humanas desaparecem e substituem-seuma às outras, mas aquilo que por elas foi criado transmite--se à geração seguinte, a qual, nos seus trabalhos e lutas,multiplica e aperfeiçoa estas riquezas, dá um passo em frentena continuidade progressiva da humanidade.

O fundador do socialismo científico. Karl Marx,analisou pela primeira vez teoricamente a natureza socialdo homem e o seu desenvolvimento social-histórico. «Cadauma das relações humanas com o mundo - escreveuKarl Marx - vista, ouvido, olfato, gosto, tato, pensa-mento, contemplação, sensação, vontade, desejos, ati-vidade, amor, numa palavra, tudo o que constitui a suaindividualidade ... , existe em função dos órgãos sociais e,a sua relação objetiva., ou as suas relações com os objetos,não são mais do que a apropriação deste último, a apro-priação da realidade humana».

Desde então, altura em que estas linhas foram escri-tas, até hoje, passaram já mais de cem anos, mas as idéiasque elas encerram continuam ainda hoje a constituir aexpressão mais profunda da verdadeira natureza dascapacidades humanas, ou como disse Marx, «a expressãodas forç.as da essência humana».

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tempo objeto social em que se encarnou e afirmou o re-sultado histórico das experiências laborais.

A existência deste conteúdo simultaneamente sociale ideal, cristalizado nos instrumentos humanos, distingue--os dos «instrumentos» dos animais. Os chamados «ins-trumentos» animais realizam também determinadas ope-rações: por exemplo, os macacos, aprendem, como sesabe, a utilizar o pau para alcançar os frutos. Mas nos«instrumentos» animais, estas operações não se fixam,e eles, os instrumentos, não se convertem em meios exe-cutores estáveis dessas operações. Quando o pau nas mãosdo macaco cumpre a sua função converte-se de novo numobjeto que lhe é indiferente. É por isso que os animaisnão guardam os seus «instrumentos» e estes não se trans-mitem de geração em geração. Por conseguinte, eles, osinstrumentos, não são capazes de cumprir este desenvol-vimento «acumulativo» da função própria da cultura (JohnBernal). É isto que explica o fato de não existir entre osanimais o processo de assimilação do instrumento; a uti-lização do «instrumento» não forma neles novas operaçõesmotrizes. O instrumento submete-se aos movimentosnaturais do animal, instintivos na sua base; ao sistema demovimentos em que se integra.

Uma relação oposta caracteriza o emprego dos ins-trumentos pelo homem. A sua mão, em contrapartida,passa a fazer parte do sistema social-histórico de operaçõesencarnadas no dito instrumento e submete-se a elas.Deste modo, o homem, ao assimilar os instrumentos res-trutura os seus movimentos naturais e instintivos e durantea sua vida formam-se nele capacidades motrizes novas esuperiores. «A apropriação de um determinado conjuntode instrumentos de produção - escreveu Marx - equi-

O problema do desenvolvimento do homem relativa-mente ao desenvolvimento cultural da sociedade levantauma série de questões que tentarei expor em seguida.

Antes de mais, trataremos do que representa em sie de como decorre o processo anteriormente descrito deassimilação individual dos progressos do desenvolvimentohistórico da humanidade.

Como vimos, a experiência social-histórica da humani-dade concentra-se sob a forma de fenômenos exterioresdo mundo objetivo que circunda o homem. Este mundo,o mundo da indústria, da ciência e da arte, exprime a ver-dadeira história da natureza do homem, o resultado da suaformação histórica. Este mundo conduz o homem aohumano.

No entanto, em que consiste o processo de assimila-ção deste mundo, que é ao mesmo tempo processo deformação das capacidades específicas do homem?

Há que sublinhar que este processo no que respeitaao sujeito é um processo ativo. Para conhecer os objetosou fenômenos, produto do desenvolvimento histórico, énecessário realizar em torno dos mesmos uma determinadaatividade, isto é, uma atividade que reproduza os traços

essenciais daquela (atividade), encarnada, «acumulada»,no citado objeto.

Para explicar esta idéia utilizarei um exemplo simplis-síssimo, a assimilação dos instrumentos.

O instrumento é um produto da cultura material quede forma absolutamente ilustrativa e sensível exprime ostraços típicos da criação humana. Não se trata apenas deum objeto que possui determinada forma e que tem deter-minadas propriedades físicas. O instrumento é ao mesmo

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vale ao desenvolvimento de determinado conjunto decapacidade nos próprios indivíduos».

Assim, o homem, ao apoderar-se dos instrumentos,assimila as operações motoras a eles ligadas. Este processoé ao mesmo tempo um processo de formação no homem,ao longo da sua existência, de novas capacidades superio-res, as chamadas funções psicomotoras, que «humanizam»a sua esfera motora.

O mesmo se passa quando se tenta assimilar os fenô-menos da vida cultural. O domínio de uma língua não éapenas um processo de assimilação das operações compalavras que historicamente se afirmaram nos seus signi-ficados; é também a posse da fonética da língua, que de-corre no processo de assimilação das operações que for-jam a permanência do sistema fonológico objetivo damesma. É precisamente através destes processos que ohomem elabora as funções de articulação e audição, bemcomo a atividade central do cérebro a que os fisiólogoschamam «segundo sistema de sinais» (I.P. Pavlov).

Que todas estas particularidades fisiológicas formamno homem precisamente a língua que aprende, e que nãodomina na altura do nascimento, é de tal modo claro,que conhecendo as características de uma determinadalíngua se pode com segurança descrever algumas destasparticularidades mesmo antes de fazer qualquer inves-tigação. Assim, por exemplo, se se souber que a línguavernácula do grupo de homens em causa pertence àstonais, podemos estar certos de que possuem um ouvidotônico-oral desenvolvido (Taylor, Leontiev, e Guippen-reitor).

Deste modo, a principal particularidade do processode apropriação por nós examinado, «assimilação» oupossessão, consiste em criar no homem novas capacidades,

novas funções psíquicas. Nisto consiste a diferença doprocesso de formação dos animais. Enquanto que nestesúltimos representa o resultado da adaptação individualda espécie às modificações e complexas condições de exis-tência, a assimilação no homem é um processo de repro-dução nas particularidades do indivíduo, das particula-ridades e capacidades historicamente estabelecidas dogênero humano (espécie).

Falando do papel da assimilação no desenvolvimentodo homem, o autor de uma obra contemporânea de-dicada a este problema, assinala, e muito justamente,que enquanto os animais ficam satisfeitos com o desen-volvimento da sua natureza, o homem constrói a suanatureza (T. Chatuen).

No entanto, como é fisiologicamente possível esteprocesso e como se realiza? Estamos perante um problemabastante difícil. Por um lado, os fatos demonstram que ascapacidades e funções que se desenvolvem no períododa história social da humanidade não se fixam no cérebrodos homens e não se transmitem segundo as leis da heredi-tariedade. Por outro lado, é absolutamente claro que qual-quer capacidade ou função só se pode realizar pela ativi-dade de um órgão determinado ou de certos orgãos.

A solução desta contradição, nascida da comparaçãodestas duas posições igualmente indiscutíveis, constituium dos mais importantes triunfos das investigações fisio-lógicas e psicológicas do nosso século.

G. Wundt exprimiu já a idéia de que o caráter espe-cífico das atividades se explica tendo em conta que na suabase se encontram não as funções elementares e fisioló-gicas do cérebro, mas a sua união que surge no decorrerdo desenvolvimento individual.

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A descoberta do princIpIO da sistematização, porPav10v, no funcionamento dos grandes hemisférios cere-brais, representou um novo e decisivo passo no desen-volvimento desta idéia.

Por outro lado, um dos grandes contemporâneosde Pav10v, A.A. Ujtomski, delineou a idéia da existênciade orgãos particulares, fisiológicos e funcionais, do sis-tema nervoso. «Habitualmente o nosso pensamento rela-ciona com a idéia «órgão» algo de morfo10gicamenteconstante ... Parece-me que tal não se verifica necessaria-mente, e particularmente para o espírito da nova ciência,seria mais adequado não ver nisto qualquer relação ne-cessária».

O que são os «órgãos funcionais do cérebro»? Sãoórgãos que funcionam como os órgãos especiais e morfo-10gicamente constantes; no entanto, distinguem-se destesúltimos por representarem uma nova formação surgi dano processo de desenvolvimento individual (ontogênico).Representam um substrato material das capacidades efunções específicas que se formam no decorrer do processode apropriação por parte do homem do mundo dos objetose fenômenos, criações da cultura, forjados pela humani-dade.

Hoje em dia conhecemos suficientemente as particula-ridades e mecanismos da formação destes órgãos paracriar no homem os seus «modelos» experimentais delaboratórios.

Por outro lado, vemos com maior clareza o que signi-ficou precisamente humanizar o cérebro humano, que crioua possibilidade de submeter o ulterior desenvolvimento dohomem à ação das leis social-históricas, acelerando-oincomensuravelmente: isto traduziu-se na conversão do

córtex do cérebro humano, de 15000 milhões de célulasnervosas, num órgão capaz de formar outros órgãos.

Até este momento examinamos o processo de assimi-lação como resultado da influência ativa do indivíduorelativamente aos objetos e fenômenos do mundo cir-cundante, criado pelo desenvolvimento da cultura humana.

Sublinhamos que esta atividade deve ser adequada,isto é, deve reproduzir os traços da atividade dos homensque se encontra cristalizada, acumulada, nos ditos objetose fenômenos, mais exatamente, nos sistemas por elesformados. Poderemos, no entanto, aceitar que esta ati-vidade adequada se forma no homem, na criança, sob ainfluência desses objetos ou fenômenos? A inconsciên-cia desta posição é óbvia.

O homem, em geral, não se encontra só frente aomundo que o circunda. As suas relações com ele são sempremedidas pelas suas relações com as outras pessoas. A suaatividade faz sempre parte destas relações, mesmo nos casosem que exteriormente está só. A relação social na sua formaexterior original, sob a forma de atividade conjunta ou decomunicação oral, ou mesmo apenas no pensamento,constitui a condição necessária e específica da vida dohomem em sociedade. A relação social constitui tambéma condição necessária à formação da criança, e em cada ho-mem, da atividade adequada àquelas (atividades - NT)que, segundo parece, contém em si os objetivos e os fenô-menos que traduzem os progressos do desenvolvimentoda cultura espiritual e material da humanidade. Destemodo, a relação social constitui a segunda condição obri-gatória da assimilação, o seu «mecanismo», por assim dizer.

Por outras palavras, os progressos do desenvolvimentohistórico das capacidades humanas não se transmitemao homem apenas através dos fenômenos objetivos da

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cultura material e espiritual, apesar de se encontraremapenas nestes fenômenos. Para alcançar estes progressos,para convertê-Ios em capacidades próprias, em «órgãosda sua individualidade», a criança, o homem, deve rela-cionar-se com o mundo circundante através dos outroshomens, isto é, relacionar-se com elas. Neste processo,a criança, o homem, aprendem a agir adequadamente.Deste modo, este processo é pela sua função um processode educação.

Compreende-se que este processo possa ter, e tem,de fato, variadíssimas formas: inicialmente, nas primeirasetapas do desenvolvimento da humanidade, assim como nascrianças mais pequenas, tem o caráter de simples imitaçãodas ações das pessoas que estão à sua volta, decorrendo,no entanto, sob seu controle e intervenção; depois torna-semais complexo e especializa-se, surgem as formas de en-sino e educação escolar, diferentes formas de instruçãosuperior e finalmente a auto-instrução. Mas o fundamental,o que há que sublinhar, é que este processo deve ser per-manente, pois de outra forma a passagem dos progressosdo desenvolvimento social-histórico à geração seguinte seriaimpossível, e, portanto, a continuidade do processo his-tórico seria travada.

Para explicar esta idéia usaremos um exemplo tiradodo livro de A. Pieron, já anteriormente citado. Se se desseno nosso planeta uma catástrofe e sobrevivessem apenas ascrianças, desaparecendo toda a população adulta, apesardo gênero humano não deixar de existir, no entanto, a his-tória da humanidade ficaria inevitavelmente cerceada.Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente,mas não haveria ninguém que os desse a conhecer às gera-ções seguintes. As máquinas deixariam de funcionar, oslivros deixariam de se ler e as obras de arte perderiam o

seu valor estético. A história da humanidade teria de come-çar de novo.

Portanto, o movimento histórico é impossível sem atransmissão ativa às novas gerações dos progressos dacultura humana, sem a sua educação.

Quanto mais a humanidade se desenvolve, mais ricossão os resultados acumulados pela prática social-histórica,tanto mais cresce o peso específico da educação e tanto maiscomplexas se tornam as tarefas que se apresentam ao longodo seu desenvolvimento. É por isso que cada nova etapano desenvolvimento da humanidade, assim como no desen-volvimento de certos povos, implica inevitavelmente umanova etapa no desenvolvimento da educação da geraçãoseguinte, aumenta o tempo que a sociedade dedica aoensino, surgem novas instituições docentes, o ensino adquirenovas formas de especializlção e relacionado com isto aprofissão do educador, do professor, se diferencia; os pro-gramas de ensino são cada vez mais completos, os métodospedagógicos aperfeiçoam-se e desenvolvem-se a pedagogia.Esta ligação entre o progresso histórico e o progreso nocampo da educação é tão íntima, que pelo nível geral dodesenvolvimento histórico da sociedade podemos determi-nar, inequivocamente, o nível de desenvolvimento da edu-cação e, inversamente, pelo nível de desenvolvimento daeducação, determinar igualmente o nível de desenvolvi-mento econômico e cultural da sociedade.

A educação, o ensino ou a instrução, a sua história,são particularidades e exigências que a época modernaapresenta, tudo isto, constitui um tema especial e extrema-mente longo. A nossa tarefa consiste apenas em indicar afunção que a educação, no seu mais amplo sentido, exerceno desenvolvimento da humanidade. Mas é evidente queo problema da cultura e do homem não se esgota com isto.

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a acumulação dos conhecimentos que penetram nos se-gredos mais zelosamente guardados do universo, as pro-duções de arte que destacam poderosamente os seus sen-timentos. Mas estas conquistas estarão ao alcance de todosos homens? Não, sabemos perfeitamente que tal assimnão acontece, que estas conquistas do desenvolvimentose encontram à margem dos próprios homens. Relativa-mente a este ponto devemos referir de novo a comparaçãoentre a evolução biológica e o progresso histórico, porum lado, e a natureza dos animais e dos homens, por outro.

A perfeita adaptação dos animais ao meio, a «sabe-doria», a riqueza e a complexidade dos seus instintos e oseu comportamento são assombrosos. Tudo isto sãoconquistas do seu desenvolvimento e acumulação de expe-riências enquanto espécie. Embora ínfimos comparadoscom os progressos do desenvolvimento histórico doshomens, se nos abstrairmos dos desvios individuais quesão secundários, constituem, no entanto, um progressopara todos os representantes da dita espécie e bastaráque o naturalista estude um ou alguns dentre eles, paraconseguir uma representação justa de toda a espécie noseu conjunto.

Um outro quadro completamente diferente se nosdepara quando examinamos o homem. A unidade daespécie humana parece não existir, e tal acontece, não porquehaja entre os homens diferenças de cor, diferentes formasdos olhos ou outros traços manifestamente exteriores,mas devido à grande diferença existente de condições devida, de riqueza de atividade material e espiritual, e denível de desenvolvimento das suas aptidões e capacidadesintelectuais.

Se um ser de outro planeta visitasse a terra e desco-brisse as capacidades físicas, intelectuais e estéticas, as

Este problema levanta novas questões, entre as quaisse destaca a desigualdade cultural das pessoas.

Vou passar em seguida a abordar esta questão.

Até aqui examinamos o desenvolvimento do homemcomo indivíduo. Este chega ao mundo indefeso e desarmado,dotado de nascença de uma única faculdade que o distinguefundamentalmente dos seus antepassados animais, a fa-culdade de formar capacidades especificamente humanas.Se não for privado de algumas particularidades inatas queo individualizam e deixam traços no seu desenvolvimentoisto manifestar-se-á não através do conteúdo ou do nível,de possíveis progressos da sua vida espiritual, mas emapenas alguns traços fundamentais e particularmentedinâmicos da sua atividade e personalidade; tais sãopor exemplo, a influência dos tipos de atividade nervosasuperior inata.

Por outro lado, surge diante de nós a fonte efetivae única do desenvolvimento no homem das forças e capa-cidades, produtos do desenvolvimento social-histórico. Sãoos objetos e fenômenos que encarnam a atividade dasgerações anteriores, o resultado do desenvolvimentoespiritual da espécie humana, o resultado do desenvolvi-mento do homem como ser genérico (Marx). Mas nestamesma idéia se encerra uma abstração científica, talcomo nos conceitos de «humanidade», «cultura humana»e «gênio humano».

Nós podemos, evidentemente, conceber as descobertasinesgotáveis do desenvolvimento humano: a técnica criadapelo homem, técnica que elevou em dezenas de milhar devezes a potência das forças físicas e intelectuais do homem;

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qualidades morais e particularidades de comportamentodos homens, pertencentes a diferentes classes e estratos so-ciais, que vivem nas diversas regiões e países do nossoplaneta, poderia pensar que se tratassem de representa-tes de espécies diferentes.

No entanto, esta desigualdade entre os homens nãodepende de diferenças naturais ou biológicas. É criada peladesigualdade econômica e de classe das relações que li-gam os homens, aos progressos que são a personificaçãodo conjunto das forças ou capacidades da natureza humana,formada no processo do desenvolvimento histórico.

O fato destes progressos se refletirem nos produtosobjetivos da atiVidade humana modifica radicalmente,como vimos, o tipo de desenvolvimento. Esta circunstâncialiberta o homem da subordinação às leis biológicas, ace-lera-o e abre-lhe perspectivas que seriam inconcebíveisno processo evolutivo sujeito às leis da mutação e da here-ditariedade.

Mas esta mesma circunstância leva a que tais progressosdo desenvolvimento histórico possam separar-se dos pró-prios homens que forjam este desenvolvimento.

Esta distanciação dá-se, antes de mais, na prática, soba forma de alienação econômica dos meios e produtos dotrabalho dos produtores diretos, surge com o aparecimentoda divisão social do trabalho e, simultaneamente, com odesenvolvimento provocado pela troca de produtos, asformas de propriedade privada e a luta de classes. Porconseguinte, esta distância surge pela ação das leis obje -tivas do desenvolvimento da sociedade, independente-mente da consciência e da vontade dos homens.

A divisão social do trabalho converte o produto dotrabalho em objeto destinado a troca, o que modificaradicalmente a relação entre o produtor e o produto por

ele produzido. Este último, apesar de continuar, natural-mente, a ser o resultado da atividade do homem, perde,no entanto, o caráter concreto da atividade daquele,adquire um caráter completamente impessoal e inicia,independentemente do homem, a sua vida especial, a vidade mercadoria. Ao mesmo tempo a divisão social do tra-balho leva a que a atividade material e espiritual, a satis-fação e o trabalho, a produção e consumo, se separem unsdos outros e correspondam a homens diferentes. É porisso que quanto mais rica e multiface é a atividade doshomens, mais a atividade que corresponde a indivíduosisolados adquire um caráter unilateral e se empobrece.Este caráter unilateral, este empobrecimento, pode chegar,como se sabe, a graus extremos quando, por exemplo, osoperários gastam todas as suas forças na execução de umaoperação que se repete milhares de vezes seguidas.

Na produção capitalista, especialmente, esta ativi-dade limitada, unilateral, aliena-se do homem e perde oseu conteúdo objetivo.

As máquinas que os operários constroem, os prédiosque levantam, os livros que imprimem, nada disto fazempara eles próprios: para eles só produzem o salário. Destemodo, as máquinas, os prédios, os livros, etc., convertem-separa os trabalhadores apenas numa determinada quanti-dade de objetos de primeira necessidade.

Por outro lado, o mesmo acontece no polo socialoposto, no polo do capital. Mesmo para o capitalista, aempresa que possui não tem sentido enquanto empresa deprodução de tais ou tais objetos, mas enquanto empresaque dá rendimento. É por isso que ele está disposto a produ-zir seja o que for, mesmo as mais horríveis armas de des-truição, cuja ação nele próprio se pode repercutir.

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Em tais condições, tudo o que existe tem para oshomens um duplo aspecto. Tem um duplo sentido não sóo mundo dos fenômenos que circunda os homens e que foicriado por eles próprios, mas também a sua própria ati-vidade, a sua consciência, que adquire traços unilaterais,«desintegrantes». Ao concentrarem-se as riquezas materiaisnas mãos da classe dominante, nela se concentra tambéma cultura espiritual, embora as criações dessa cultura pareçaexistir para todos; no entanto, só uma minoria íntimatem possibilidades materiais e tempo para satisfazer osseus anseios de instrução para completar sistematicamenteos seus conhecimentos e dedicar-se às artes: ao mesmotempo, as massas, especialmente a população rural, de-vem contentar-se com um mínimo de desenvolvimentocultural, o mínimo indispensável para que possam realizar,dentro dos limites traçados para os operários, a atividadeprofissional e a produção de valores materiais.

Como a minoria dominante não possui apenas osmeios de produção material, mas também a maior partedos meios de produção da cultura espiritual e da sua di-fusão, e tende a pô-Ia ao serviço dos seus interesses, surgea diferenciação da cultura. Se na esfera da ciência se fa-cilita o aperfeiçoamento técnico e se se acumulam rapi-damente conhecimentos positivos, noutra esfera, na esferadas representações sobre o homem e a sociedade, sobre anatureza e a essência, sobre as forças motrizes e o seufuturo, na esfera dos ideais morais e estéticas, o desen-volvimento decorre em duas linhas radicalmente diferentes.Por um lado, na linha de acumulação de valores espirituais- representações, conhecimentos e ideais - que encaI-nam o autenticamente humano no homem e iluminam ocaminho do desenvolvimento histórico; esta linha refleteos interesses da maioria. Por outro lado, a linha da criação

de representações cognoscitivas, morais e estéticas qu~ se~-vem os interesses das classes dominantes, tendem a JustI-ficar e a eternizar a ordem social existente, afastar as mas-sas da luta pela justiça, pela igualdade e pela liberdade,narcotizar e paralizar a sua vontade. O choque destas duaslinhas engendra a chamada luta ideológica.

Assim, o processo de alienação produzido pelo desen-volvimento da divisão do trabalho e pelas relações de pro-priedade privada, não só conduz à separação das massasda cultura espiritual, como também a diferenciação dosseus elementos componentes, avançados uns, isto é, demo-cráticos, que servem o progresso da humanidade, e retró-grados outros, cuja penetração nas massas impede o pro-gresso. Estes últimos formam o conteúdo da cultura de-gradada das classes reacionárias da sociedade, o que éfictício, transitório, na cultura da humanidade.

A concentração e diferenciação da cultura não severifica só nos limites das nações e dos povos. A desigual-dade cultural no desenvolvimento dos homens manifesta--se, demodomais radical, se considerarmos o mundo todo,toda a humanidade.

Esta desigualdade serve precisamente de base, antesde mais, para a divisão dos homens em representantes deraças «inferiores» e «superiores». Têm-se feito e continuam--se a fazer grandes esforços especialmente nos países cujasclasses dominantes têm um especial interesse na justifi-cação ideológica do direito de submeter outros po:os,atrasados no seu desenvolvimento cultural e econômICO.Não foi por acaso, pois, que o país em que se fizeram asprimeiras tentativas de fundamentar cientificamente, aidéia de que estes povos se encontram num outro mvelde desenvolvimento biológico e pertencem a uma classehumana especial (subespécie) foi a Inglaterra (Lawrens,

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G. Smith e, na segunda metade do século passado, J. Kente os seus discípulos).

Não foi por acaso, por exemplo, que se verificou umrecrudescimento radical da doutrinação racista nos EstadosUnidos, no início da libertação dos negros. N. Chernis-hevski, democrata revolucionário russo (1828-1889), es-creveu: «Quando os proprietários de plantações dos es-tados do sul se alarmavam devido às suas possessõesescravagistas, elaboraram rapidamente todo um sistema deargumentação em defesa da escravatura; havia necessi-dade de refutar as idéias do partido que se tinha tornadoum perigoso inimigo dos escravagistas... , e empregaramnesta luta no terreno da eloquência, da imprensa e da ciên-cia, grandes forças, tal como fizeram depois no campo mi-litar.» (Citado de Y. Roguinski e M. Levin.).

Sabe-se também que na altura em que cresciam aspretenções colonialistas da Alemanha, o racismo convertia--se cada vez mais na ideologia dos cÍrcúlos militares, pas-sando depois à sua forma mais aguda, o fascismo.

Para fundamentar cientificamente as afirmações sobrea suposta imperfeição das chamadas raças «inferiores»serviram-se, como se sabe, de dois tipos de argumentos:morfológico e genético-comparativo.

As tentativas repetidamente levadas a cabo no sentidode demonstrar a existência de diferenças anatâmicas nocérebro dos homens de diferentes raças, fazem parte doprimeiro tipo. No entanto, estas tentativas fracassaraminevitavelmente. Por exemplo, a capacidade média docérebro de certas tribos negras verificou-se, depois deinvestigações minuciosas, ser inclusivamente superior àcapacidade cerebral dos brancos (escoceses). O mesmosucedeu com os resultados das investigações da estruturaparticular e delicada do cérebro. Neste aspecto, O. Kleine-

berg, psicólogo, usa no seu livro sobre psicologia dadoscaracterísticos. Bean, colaborador do Instituto de Ana-tomia da famosa universidade norte-americana «JohnHopkins», publicou no seu tempo dados que demonstra-vam que o desenvolvimento da parte frontal do córtexcerebral dos negros era relativamente infelior aos dosbrancos e que o cérebro dos primeiros possuiam particula-ridades de estrutura que correspondiam ao «fato compro-vado», segundo Bean, de deficiência nos negros. Como aMaU, diretor do instituto, os dados apresentados porBean lhe pareceram pouco convincentes, repetiu a inves-tigação num mesmo numero de cérebros, mas, contraria-mente ao que fizera Bean, realizou seu estudo comparativosem saber, de antemão, quais eram os cérebros que perten-ciam aos brancos e quais pertenciam aos negros. Depoisde MaU e os seus colaboradores terem dividido os cérebrossegundo os índices estabelecidos por Bean, em dois grupos,e depois contarem quantos cérebros de raça branca e negrahavia em cada um deles, verificou-se que se haviam dis-tribuido pelos grupos de modo quase idêntico; a conclusãode Bean ficou deste modo refutada. Como assinala Klein-berg a este respeito, Bean esperava, por certo, encontraríndices de subdesenvolvimento nos negros, e conhecendopreviamente a procedência dos cérebros submetidos a inves-tigação, «viu» entre eles diferenças que na realidade nãoexistiam.

Vejamos agora os argumentos genéticos. A sua análisetem um grande e especial interesse, uma vez que tocadiretamente o problema da desigualdade de desenvolvi-mento da cultura nos diferentes povos. A base destes argu-mentos é constituída pela chamada hipótese do poligenismo.O sentido desta hipótese reduz-se ao fato das raças huma-nas terem tido origem independente, isto é, procederem

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de diferentes antepassados. Assim se explicam as diferen-ças irrefutáveis, segundo eles, entre os povos, tanto pelonível alcançado como pelas possibilidades de ulteriordesenvolvimento. No entanto, à medida que os conheci-mentos paleontropológicos iam aumentando, esta hipótesetornava-se cada vez mais improvável e a maioria dos inves-tigadores modernos mantém posições opostas, posiçõesque reconhecem a comunidade de origem de todas as raças,que, do ponto de vista biológico, mais não representam doque variações de uma espécie única, a espécie do Homo-sapiens. Isto é demonstrado, antes de mais, pelo fato dotraços raciais serem muito variáveis, devido às fronteirasentre as diferentes raças serem de certo modo enganado-ras, caracterizadas por transições imperceptíveis. Os dadosmodernos demonstram que certos traços raciais, em deter-minadas condições, nas deslocações para outras regiõesgeográficas, poderem modificar de modo bem sensívelno decurso de apenas uma geração. Outra prova daorigem comum das raças humanas é constituída pelofato dos traços individuais, cujo conjunto define os tra-ços raciais, se encontrarem sob a forma de diferentes com-binações entre os representantes de diferentes raças. E fi-nalmente, e que é particularmente importante, as caracte-rísticas principais do homem moderno, já «acabado»,tal como o elevado desenvolvimento cerebral e a corres-pondente correlação entre a parte frontal e a parte posteriordo crânio, a estrutura característica das mãos, as particula-ridades do esqueleto adaptado à posição ereta e a mar-cha em posição vertical, o débil desenvolvimento capilarno corpo e outras, são próprias de todas as raças humanassem exceção.

Somos levados a acreditar que as diferenças raciaissurgiram devido à antiga humanidade se ter estendido pela

terra fracionando-se em grupos isolados, tendo cadaum dos quais continuado o seu desenvolvimento sob ainfluência de condições de vida desiguais, adquirindo,sob esta influência, certas particularidades que só têmimportância adaptativa relativamente aqueles fatoresnaturais que atuam diretamente (por exemplo, a pigmen-tação da pele que se verifica sob a ação dos raios solares);para além disso, o isolamento destes grupos reforçou,naturalmente, a acumulação hereditária deste tipo departicularidades biológicas, uma vez que, como sabemos,a ação das leis hereditárias não cessa, geralmente, senãono que respeita à consolidação e transmissão das conquistassocial-históricas da humanidade. E é precisamente nodomínio destas últimas que se verificam as maiores di-ferenças.

É certo que o isolamento relativo, a desigualdade decondições no progresso econômico e social poderiam tercriado, nos grupos humanos, habitantes de diferentesregiões do nosso planeta, uma determinada desigualdadeno seu desenvolvimento. No entanto, a grande diferençaque existe entre o nível cultural e espiritual dos diferentespaíses e povos não se pode explicar apenas pela ação dosmencionados fatores. Com efeito, no desenvolvimentoda humanidade surgiram, e começaram a desenvolver-serapidamente, os meios de comunicação e as relações econô-micas e culturais entre os povos; e isto terá exercido umainfluência em sentido inverso, isto é, terá atuado no sen-tido de uma nivelação no desenvolvimento dos diferentespaíses, levando os povos atrasados a alcançar o nível dosavançados.

Assim, se a concentração da cultura mundial, pelocontrário, se reforçou ainda mais, de tal modo que algunspaíses se converteram nos seus representantes próximos

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enquanto que noutros era subjugada, é porque as relaçõesentre os países se não desenvolveram sob os princípios daigualdade, colaboração e ajuda mútua, mas sob o princípiodo domínio do mais forte sobre o mais fraco.

A conquista de territórios, o saque e a submissão es-cravagista da população indígena dos países atrasados ea conversão destes territórios em colônias, representoupara eles um muro de contentação e de retrocesso nodesenvolvimento e plOgresso da sua cultura. E isto nãoaconteceu apenas porque os povos subjugados eram pri-vados da maioria esmagadora das suas componentes, emesmo das condições materiais indispensáveis ao seuprogresso cultural, mas também porque se levantavam bar-reiras artificiais que os afastavam da cultura mundial.Ainda que os opressores colonialistas mascarassem osseus fins egoístas com frases sobre a sua missão culturale civilizadora, na realidade lançaram povos inteiros namiséria espiritual, e se importaram valores culturais, esteseram sobretudo valores fictícios, não os portadores de umaverdadeira cultura, mas de alguns aspectos que só super-ficialmente se manifestavam.

Portanto, a concentração e a alienação da cultura dohomem não se verifica só na história dos vários países,mas também, e sob formas mais agudas, na história dahumanidade no seu conjunto.

Esta alienação da cultura teve como consequência oaparecimento de um abismo entre as enormes capacidadesalcançadas pela humanidade, por um lado e, por outro,a miséria e o caráter desigual do desenvolvimento, em quese encontram - ainda que em grau diferente - determi-nados homens. Este abismo, no entanto, não é eterno,como não são eternas as relações sócio-econômicas que oengendraram. A sua completa eliminação forma o conteúdo

do problema das perspectivas do desenvolvimento dohomem.

O problema do ulterior desenvolvimento do homem éuma das questões que interessam tanto aos antropólogose psicólogos, como aos sociólogos. Na sua solução, chocam--se entre si os mesmos pontos de vista contraditórios sobrea natureza do homem, biológicos e sócio-históricos, doque na solução de outros problemas da antropologia his-tórica.

Claro está que este choque de pontos de vista não severifica apenas no campo marcadamente abstrato; tantouns como outros se referem aos grandes problemas sociaise fundamentam, portanto, princípios diametralmente opos-tos para a sua solução prática.

Os representantes da primeira tendência, marcada-mente biológica, entendendo o desenvolvimento do homemcomo uma continuação direta do processo biológicode evolução, menosprezam as transformações ocorridasna última etapa da formação do homem, o desenvolvimentodo homem moderno. Constroem as suas representaçõessobre o futuro do homem através da extrapolação doprocesso das modificações ocorridas no período da suapreparação, da sua formação primária, utilizando paraeste fim as observações sobre as variações dos traços indi-viduais nas pessoas modernas, considerando uns comoatávicos e outros como progressistas e proféticos, isto é,expressivos da tendência do desenvolvimento ulterior.

Assim surgiu a concepção sobre a conversão gradualdo homem num novo ser humano. Este ser do futuro,Homo sapientissimus, é descrito por diversos autores demaneiras diferentes, mas sempre como um ser no qualpredominam novas particularidades biológicas. Quantomais não seja, representam-no como um indivíduo de

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elevada estatura, com um cramo mais redondo e demuito maiores dimensões do que as do homem moderno,cara pequena e plana, com menos dentes e apenas quatrode~os nos ~és. No que respeita às suas propriedades psí-qUIcas consIderam como principal um intelecto apuradoe poderoso; os seus sentidos, pelo contrário, debilitar-se-ão.

O ponto em questão não é, obviamente, a represen-tação mais ou menos fantástica sobre o homem do futuro'trata-se da compreensão das leis motoras do seu desen~volvimento, da compreensão do que encerram e quaisas consequências inevitáveis do espírito deste chamado«darwinismo social».

Na realidade, se se mantiver o ponto de vista de queo desenvolvimento do homem se realiza sob a forma dodesenvolvimento das propriedades da espécie humanatransmitidas hereditariamente, então a intervenção nesteprocesso só é possível com a ajuda das medidas que me-lhor~m estas propriedades hereditárias. Esta idéia parteprecIsamente da chamada eugenesia, isto é, a teoriasobre o aperfeiçoamento da espécie humana, fundadanos começos do nosso século por F. Galton, autor dada obra Herança do talento, suas leis e consequências.

Os eugenistas, com o fim de conservar e estimularo desenvolvimento das capacidades humanas, exigem quese. to_mem uma série de medidas que impessam a pro-cnaçao de homens «imperfeitos» e de raças «inferiores».. 'aSSIm como a sua mIstura com os representantes superio-res da espécie humana, dos homens de «sangue azul».Os eugenistas, ao mesmo tempo que julgam necessárioestimular a procriação das pessoas pertencentes às classesprivilegiadas da sociedade e raças superiores, e diminuüpel~ contrário, a procriação das castas inferiores da popu~laçao e dos povos de «cor», pregam também a necessidade

de empregar a seleção genética artificial, semelhante àque se utiliza para o melhoramento da raça dos animaisdomésticos. Os representantes mais reacionários da euge-nesia foram muito mais longe, ao fundamentar a neces-sidade da esterilização forçada e inclusivamente o exter-mínio físico de pessoas e povos inteiros «imperfeitos here-ditariamente» e também ao considerarem as guerras deextermínio como um dos meios mais eficazes para o aper-feiçoamento da espécie humana. Sabe-se perfeitamenteque estas concepções monstruosas, horríveis, «não ficaramno papel»; elas tiveram a sua encarnação prática nos cam-pos de extermínio fascistas e nos atos de violência reali-zados pelos modernos racistas. É por isso que a luta contraestas concepções, o desmascaramento do seu caráterreacionário e antipopular sai das marcas da sua impor-tância teórica abstrata; esta é necessária à limpeza da sendaque leva ao triunfo das idéias democráticas, da paz e doprogresso da humanidade.

O futuro do homem é realmente maravilhoso e estámuito mais próximo do que os que confiam nas transfor-mações da sua natureza biológica pensam. Esse futurodescortina-se já nos nossos dias; é o amanhecer da histó-ria humana.

O homem não nasce dotado das conquistas históricasda humanidade. As conquistas do desenvolvimento dasgerações humanas não se encontram encarnadas no homem ,nem nos seus gérmens inatos, mas no mundo que o cir-cunda, nas grandes criações da cultura da humanidade.Só no processo de assimilação deste progresso, processoque o homem realiza durante a sua vida, adquire as pro-priedades e capacidades autenticamente humanas; esteprocesso situa-o nos homens das gerações anteriores eeleva-o muito acima do reino animal.

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No entanto, mesmo para os poucos que chegam adominar OS pontos altos das conquistas da humanidade,estas conqlústas não se ap;esenta~ na .sua plenit~dedevido à estreiteza e ao carater obrIgatorIamente umla-teral da sll~ atividade; para a maioria esmagadora doshomens, estas conquistas só são exequíveis num ínfimo

~~'. .Já vimos que isto e o resultado do processo de ahena-

ção que se verifica nas esferas da vida humana, tanto eco~~-mica como espiritual. Só a destruição das relações SOCIaiS

fundadas l1a exploração do homem pelo homem, que oengendra, pode, pois, eliminar este processo e devolverao homem, a todos os homens, a sua natureza humanaem toda ~ sua plenitude e variedade.

No entanto, o ideal do desenvolvimento no homemde todas aS faculdades humanas, será exequível? Os pre-conceitos, enraizados na consciência, sobre as fontes inter-nas do desenvolvimento espiritual do homem, são de talmodo fortes que obrigam a olhar as condições deste desen-volvimento como se estivessem viradas de pernas para oar' não é na assimilação das conquistas da ciência que residea ~ondição de formação de aptidões científicas, mas nascapacidades para a ciência, a condição da sua assimilação;não é na assimilação da arte que reside a condição dodesenvolvimento do talento artístico, mas no talentoartístico que reside a condição de assimilação da arte.É devido a esta consideração que geralmente se faz refe-rência a fatos que demonstram as capacidades de uns ea total incapacidade de outros para tal ou tal atividade,sem levantar ao mesmo tempo o problema da origem destasmesmas capacidades, e geralmente se toma o caráterespontâneo da sua primeira formação por ~apaci~ad~.No entanto, dispomos atualmente de provas lrrefutavels

de que as capacidades, e especialmente aquelas cujanatureza se encontra mais dissimulada, as capacidadesmusicais, surgem durante a vida. Serve de exemplo a expe-riência da educação musical precoce de muitas criançasque não foram especialmente selecionadas, que deu cempor cento de bons resultados. Esta experiência tem sidolevada a cabo de há muitos anos a esta parte por M. Kra-vets na escola musical infantil de Chakolovsk, nos arre-dores de Moscou. Resultados análogos foram obtidosno Japão pelo psicólogo e pedagogo, S. Suzuki, que ini-ciou em 1948 este trabalho experimental e sistemáticoabarcando um número considerável de crianças da maistenra idade: bastará dizer que a orquestra por ele organi-zada é composta por mil pequenos violinistas.

Portanto, o problema real não consiste na capacidadeou incapacidade dos homens de assimilarem as aquisi-ções da cultura humana, de as tornarem acessíveis à suaindividualidade e de darem a sua contribuição para o pro-gresso. O problema real consiste em todos os homens teremna prática possibilidades de marchar pelo caminho dodesenvolvimento sem quaisquer limitações. É este o grandeobjetivo que se levanta à humanidade progressista.

E este objetivo é exequível. É-o em condições capazesde libertar os homens do peso das necessidades materiais,de destruir os efeitos monstruosos que a divisão do tra-balho físico e intelectual produz, de criar um sistemade educação que permita o desenvolvimento integral charmônico, oferecendo a possibilidade de participar, demaneira criadora, em todas as manifestações da vidahumana.

Serão estes os homens do futuro.Os melhores pensadores da humanidade sonharam

com eles e por eles esperaram. «Eu sei - disse um dos

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heróis do grande escritor e humanista Gorki - que entãonão será a simples existência, mas o serviço do homem,cuja imagem atingirá o seu ponto mais alto; para todos oshomens livres, todas as alturas são atingíveis. Então seviverá em liberdade, e os melhores serão aqueles que commais força abracem o mundo, aqueles que mais profunda-mente o amem; os melhores serão mais livres e maisbelos. Grandes serão os homens desta vida ... !»

UtvlA PRIMEIRA NOTASOBRE A CULTURA DE MASSAS:A INFRAESTRUTURA

É provável que tenham sido as circunstâncias histó-ricas do nascimento do termo «cultura de massas» quedeterminaram o contexto cognoscitivo particular em queos problemas que se lhe relacionam têm sido geralmentetratados nos escritos sociológicos norte-americanos e deoutras procedências. Verificou-se primeiro a «descoberta»daquilo que veio a ser conhecido como meios de comu-nicação de massas e do seu satânico papel na transfor-mação radical dos mecanismos de perceber o mundo e doalcance da manipulação a que estão sujeitos estes meca-nismos. O termo «cultura de massas» foi engendrado pelotermo «comunicação de massas», criado para traduzirtudo o que se relaciona com o fato da comunicação teralcançado um caráter de massas. Deste modo, devidoà estrutura causal do pensamento, o conceito de culturade massas vinculou-se ao de comunicação de massas. Mais,entrelaçaram-se numa relação causa-efeito. Os meiostécnicos modernos de comunicação de massas eram acausa. A cultura de massas, o efeito. Alturas houve em que

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se estabeleceu claramente a sua interdependência; maisfrequentemente, pressupomo-Ia, sem pensar. O termo«cultura de massas» desencadeia associações com a tele-visão, rádio e jornais de circulação massiva, e nada mais.Na maioria das teses, o círculo fecha-se por completo;os meios de comunicação de massas são os pais da cul-tura de massas; a cultura de massas é a filha dos meiosde comunicação de massas. Stefan Zolkiewski inclusi-vamente, o principal teórico marxista polaco da culturade massas, apesar de ter rompido o círculo, não lhe conse-guiu escapar totalmente; no seu excelente estudo Sobrea cultura da Polônia Popular, vincula a estrutura socialapenas ao «estilo» da cultura de massas, atribuindo o seu«tipo» ou caráter «massivo» à extensão massiva dos meiosde comunicação social e ao seu público.

Escreveu-se esta nota para pôr em causa o sentidode fechar o mencionado círculo, e para fundamentar ahipótese de os meios de comunicação de massas não seremtanto a causa da cultura de massas mas instrumento dasua elaboração; servem de canais de transmissão de con-teúdos culturais que ocuparam, independentemente dessesmeios, as celulas de uma estrutura social que assumiuum caráter «massivo». «As particularidades técnicas esociais dos meios de comunicação de massas ajudam aexplicar a sua capacidade de desempenhar essa função.Mas só as particularidades da estrutura social podem expli-car por que é que desempenham essa função eficazmente.Para que a cultura se torne «massiva», não bastaconstruir uma estação de televisão: é necessário quealgo aconteça primeiro na estrutura social. A cultura demassas é de certa forma uma superestrutura que assentasobre aquilo a que poderemos chamar <<uma estruturasocial massiva».

o debate sobre a definição de cultura de massas foilongo, e envolveu muitos participantes. Não pretendemosser mais um dos protagonistas. Nem neste momentonos interessa estabelecer uma definição, mas apenas oque geralmente se pretende dizer com o termo «culturade massas»: dentro das culturas que abarcam sociedadesinteiras (culturas nacionais) existiam tradicionalmente umasvariantes relativamente diferentes - regionais, ecológicas(aldeia, povoado, grande cidade), e de classes. Não obstanteos seus traços comuns, a cultura de uma nação era umagregado de «subculturas». A aquisição de um caráter«massivo» significava o desaparecimento destas subcul-turas e a sua substituição por uma cultura universalcomum a todos os membros da sociedade. Significava, mai~precisamente, um enfraquecimento dos traços «subcul-turais» e o concomitante aumento da importância dostraços comuns.

Não pretendemos também vermo-nos envolvidos nadiscussão sobre a definição de cultura. Em todo o caso,será suficiente recordar o nível cognoscitivo dos proble-mas que geralmente se referem a «cultura» - as normas ,instituições e padrões de conduta individual, que se com-binam para formar a «cultura», constituem, de fato,tanto o produto como a condição prévia da adaptaçãoativa do homem ao seu meio ambiente. A cultura é oproduto das experiências vitais acumuladas de muitasgerações, e «toma atenção» também a estes processosvitais. A função social da cultura consiste nesta atenção,e nesta função reside o mecanismo principal da seleçãode elementos culturais; embora nem todos os elementosculturais que atuam socialmente sejam «funcionais»,uma comunidade humana com um equilíbrio ecológicopróximo do normal demonstra inclinação para absorver

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elementos funcionais e resistência aos elementos estranhosao sistema cultural.

Se estivermos de acordo com o que foi dito sobreo conteúdo do termo «cultura» em geral, e do termo «cul-tura de massas» em particular, podemos tirar a seguinteconclusão: a existência, dentro de uma cultura «nacional»de diferentes subculturas - diferenciadas por distinçõesregionais, ecológicas ou classistas - é prova evidente deque só estas diferenças são responsáveis pelo fato dassituações se diversificarem tão marcadamente que têmde ser reguladas por diferentes normas, instituições epadrões culturais. As comunidades humanas, diferencia-das devido à diversidade de fatores regionais, ecológicosou de classe social, criam aquilo a que se poderia chamar,parafraseando um termo em genética, intra-breeding popu-lations, isto é, populações que se distinguem pelo fatodos intercâmbios culturais e a acumulação de elementosculturais no plano interno, serem muito mais intensos queno plano externo. É por este motivo - mesmo tendo emconta o intercâmbio contínuo entre populações diferen-tes, que atuaL como um mecanismo nivelador - quedentro de cada uma das tais intra-breeding populationsas transformações de elementos culturais, que ocorremcom relativa independência e num relativo isolamento,produzem uma tendência evolucionista relativamente inde-pendente na cultura. Do ponto de vista da sociedade noseu conjunto, isto conduz à diversificação progressiva dassubculturas. A importância desta diversificação é tantomaior quanto mais variadas são as particularidades domeio ambiente dentro do qual cada população escolheum «meio próprio». E uma vez que o principal critériode tal seleção é a situação social da comunidade, quese reflete sobretudo no modo de produzir, distinguir e

adquirir os bens que servem as suas necessidades, podemosconcluir que a diversificação da cultura geral da sociedadee a diferenciação das subculturas são tanto maiores quantomais diferem as respectivas situações sociais dos membrosdas intra-breeding populations, e vice-versa: quanto maispronunciado é o caráter «massivo», no sentido antesempregue, da cultura da sociedade no seu conjunto, maiorserá a importância na mesma dos elementos culturaisuniversais, e quanto mais pequeno for o papel dos traçosculturais específicos dos grupos intra-breeding, menos«endoculturais» se tornarão, isto é, quanto mais conver-gem os seus ambientes, no sentido social da palavra, maisuniformes se tornam os modos através dos quais os diver-sos indivíduos e grupos que formam a sociedade no seuconjunto adquirem os bens. Por outras palavras, para queuma cultura adquira um caráter «massivo» (talvez fossemais correto dizer, para que se torne <<universal») temde se uniformizar as situações sociais dos membros da socie-dade e, consequentemente, os critérios que determinam autilidade funcional dos elementos da cultura.

Cremos que esta conclusão é importante mais nosentido metodológico que ontológico. Não nos interessaneste momento mostrar como é que a cultura chegou ater um caráter massivo: aquilo que nos interessa é osistema de referência fenomenológico em que os proble-mas da cultura de massas se devem colocar para quese tornem tão inteligíveis quanto possível, e para que senão considere como relação causa-efeito a interdepen-dência de duas variáveis, quando na realidade resulta daintervenção de uma terceira que permanece na sombra.

A televisão, a rádio e o jornal de circulação massivasão inovações recentes, o que não quer dizer que os meiosde comunicação de massas fossem desconhecidos em épocas

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anteriores. Considera-se, e muito bem, que as particula-ridades destes meios consistem no seguinte:

(I) na comunicação de uma mesma unidadede informação a um grande número de pessoasnum mesmo momento, sem que se introduzam dife-renciações de acordo com as condições dos des-tinatários;

(lI) na comunicação desta unidade de infor-mação numa direção irreversível e na virtualexclusão da possibilidade de resposta por partedo destinatário, pondo de parte toda e qualquerpossibilidade de discussão numa base de igual-dade; numa aguda polarização do sistema de comu-nicação entre os que enviam a informação e osque a recebem;

(lll) no notável poder persuasivo da informa-ção que se comunica, baseado na exaltação daautoridade social da origem, na sua posição semi--monopolista e na convicção de grande significadopsicológico, de que «todos» prestam atenção - erespeitosamente - à mesma mensagem.

versalidade da recepção, seria dificilmente alcançada mesmopelo mais hábil dos peritos de televisão. No entanto, aigreja não produziu uma cultura de massas. Não só amaneira de vestir e de viver, como os ideais e as normasmorais, como as próprias crénças menos dependentesda posição na vida, permaneciam diversificados entre afreguesia da igreja. As palavras pronunciadas do púlpitoeram as mesmas para todos os fiéis, mas os ouvidos dosauditores estavam aparentemente cheios de acessórios dediversos tipos, destinados a absorver diferentes tipos desonoridades, peló que cada par de ouvidos recebia umconteúdo diferente. Era necessário que a estrutura dosacessórios se uniformizasse primeiro para que as mensa-gens, uniformes à transmissão, o fossem também na recep-ção. A cultura começou a adquirir um caráter massivonão quando os vários ramos do mesmo sistema de difusãocomeçaram a alcançar um público massivo, mas quandocertas condições de vida e situações sociais foram alcan-çadas pelas massas, quando estas condições e situações,já não diferenciadas, deixaram de diversificar a seleti-vidade da recepção.

Se atualmente os meios de comunicação de massasaumentam os recursos de conteúdo de uma cultura que temum caráter cada vez mais massivo (queria-se dizer: cadavez mais univetsal), as causas deste fato devem ser encon-tradas na universalização - supra-regional, supra-ecológicae supraclassista - das condições sociais essenciais. Maisprecisamente, a eficácia dos meios de comunicação demassas é tanto maior quanto mais progride o processode universalização destas componentes da situação social.Vejamos, pois, quais são essas condições.

Primeira condição: a dependência do mercado: Há cercade cem ou duzentos anos a maior parte das pessoas satis-

Facilmente se verificará que todas estas coisas foramusadas, por exemplo, pela igreja católica, o grande centrode difusão da Europa medieval, através dos púlpitos dassuas igrejas paroquiais que desempenhavam o papel deaparelhos receptores de televisão. Tanto o senhor, comoo servo, como o artesão ouviam a mesma missa; todosouviam as mesmas palavras do mesmo sermão, os apeloseram os mesmos para todos. O fluxo de informação eradecididamente unidirecional e não menos irreversíveldo que a televisão de hoje. E quanto à autoridade e à uni-

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fazia as suas necessidades sem a intervenção do mercado;com a ajuda de força de trabalho não vendida - ou aparte não vendida da mesma - produziam bens que elaspróprias consumiam. O processo de satisfação das neces-sidades da maioria era, por conseguinte, exterior à cir-culação macro-social de mercadorias e relativamente inde-pendente das trocas inter-regionais, interecológicas ou inter-classistas. Constituía uma infraestrutura específica da endo-cultura do indivíduo; o seu meio ambiente imediato eraum meio em que havia um círculo fechado de trocas nãodesenvolvidas.

Hoje, em países com uma indústria desenvolvida e,portanto, com um mercado desenvolvido, só uma parterelativamente insignificante dos homens satisfaz uma parteigualmente insignificante das suas necessidades com bensexteriores à circulação macro-social; bens que eles pró-prios produzem e que personificam a identidade entre oprodutor e o consumidor. A grande maioria vende umaúnica mercadoria, a mais comum de todas, a força de tra-trabalho, para depois comprar bens de consumo. Entramduas vezes no mercado: como vendedores e como compra-dores. Todos, ou praticamente todos, são comerciantes.E, tal como acontece com os comerciantes, os seus êxitosou fracassos, esperanças ou desilusões, dependem do mer-cado. Dependem do mercado de trabalho e de salários,do preço da mão-de-obra e do preço do pão. Nestas cir-cunstâncias, a preocupação com as necessidades pessoaissó se pode traduzir pela preocupação com o mercado.O «dirigir-se para o mercado» é, nestas condições, umanorma social e um sintoma de saúde mental. Por motivosquase psicofísicos, um homem colocado na situaçãomacro-social da circulação de mercadorias está expostoàs influências formadOlas da cultura existentes no mer-

c ado. Encontra os produtos da cultura indispensáveisà satisfação de necessidades culturalmente modeladas e,não os pode adquirir senão por intermédio do mercado.Ninguém o pode evitar, seja rico ou pobre, chefe ou subor-dinado, citadino ou camponês. Este é um elemento comumda situação social de todos, elemento universal da infraes-trutura da cultura.

E o mercado uniformiza as coisas, como todos osmercados. Especialmente este mercado, baseado na produ-ção em massa e em série.

A indústria consistiu, desde o início da revoluçãoindustrial - do ponto de vista de mercado - na univer-salização e na produção em série de mercadorias queanteriormente, pela sua raridade, só eram acessíveis aosprivilegiados, e que por este motivo eram objeto de par-ticular cobiça e prestígio. Enquanto consumidoras, asclasses superioras desempenhavam a função de provador;a indústria para os privilegiados converteu-se na explo-ração que abria caminho às quantidades massivas de PlO-dutos em série. (Uma nota à margem: daí., possivelmente,o salto extraordinário do preço do «raro» em combinaçãocom o «único», característico dos nossos tempos: nãohá produto industrial cuja posse possa dar a doce sensaçãode segurança e de estabilidade que são característica dossímbolos materiais de um status social superior; todosos produtos industriais hoje exclusivos e «únicos», se con-verterão amanhã - logo que adquiram prestígio sufi-ciente - , devido precisamente à sua exclusividade, numamercadoria comum, e perderão rapidamente a sua quali-dade de gerar prestígio. Daí os preços fantásticos dos ori-ginais dos quadros, esculturas, obras antigas, procuradaspelos colecionadores; só estes produtos proporcionam agarantia de que a sua raridade não se converterá amanhã

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em algo de comum. Aquilo que se paga é a unicidade, e opreço não tem qualquer relação com um possível valor esté-tico ou útil. À medida que se compram os símbolos destatus superior, tornam-se mais difíceis de se encontraremno mercado). Assim, a questão não diz apenas respeitoao fato de todos satisfazerem as necessidades atravésdo mercado. Com o desenvolvimento da produção emsérie, estas necessidades satisfazem-se cada vez mais comcoisas que são idênticas para todos. Este é outro dosfatores universais da infraestrutura da cultura.

Segunda condição: a dependência da organização.Quando uma sociedade é composta por amos e servos,ou por empresários e assalariados, são necessárias duasculturas diferentes que sirvam os dois tipos de condiçãosocial, de domínio e de subordinação, de poder e de aban-dono. No entanto, quando uma sociedade é composta emlarga medida por funcionários de organizações, uma sócultura é suficiente. A conduta de um diretor afeta. ade muito mais gente que a de um operário ou trabalhadormanual que trabalha sob a sua direção; mas tanto o dire -tor; como o operário como o empregado são funcionáriosnum mesmo sentido. O senhor feudal tinha fatalmente deser amo, do mesmo modo que o servo tinha de ser servo;o magnata capitalista da revolução industrial tinha neces-sariamente de traçar o seu próprio destino; as vidas dodiretor , do empregado ou do operário da época das gran-des organizações conformar-se-iam necessariamente nãotanto por terceiras pessoas, mas por terceiras «não-pessoas»,a quem não dominam e sobre as quais não têm influênciae direito, cuja natureza apenas conhecem.

A apertada rede de vínculos e de dependências querespeitam à organização (que só através de abstração socio-lógica distante das realidades é possível desenredar), jun-

tamente com uma ampla autonomia para tomar decisõesde que disfrutam organismos especializados, explicam ofato de praticamente não haver acontecimento socialque não influa no destino do indivíduo, enquanto que oindivíduo, por seu lado, só pode influir, ou apenas conhecere assinalar, um número muito restrito dos tais elementosdeterminantes. Os sociólogos descobrem muito frequente-mente com horror, que o operário, geralmente não sabe oque é que se está a produzir na fábrica em que ele faz minús-culos furos em tubos de aço. E estes mesmos sociólogos de-param também frequentemente com o fato de não existiruma única pessoa na fábrica que esteja consciente de todoo processo de produção na sua totalidade, de todo o con-junto de operações parciais. Diz-se que um capataz sabemais do que um operário, um chefe de departamentomais do que um capataz, e um gerente mais do que umchefe de departamento. Mas esta é a visão que se obtémdo ponto de vista do gerente. O contrário é igualmentecerto: há coisas que o operário sabe, e o capataz não,que o chefe de departamento conhece, mas o gerente não.Ninguém sabe tudo. Todos nos encontramos numa situa-ção em que o número de variáveis desconhecidas excedeo número de equações.

Assim acontece numa fábrica, num escritório, e muitomais numa sociedade de múltiplas organizações do quenuma fábrica considerada «isoladamente».

A organização é, sem dúvida e sem exceção, maissuprapessoal do que impessoal. É este um outro fatoruniversal da infraestrutura da cultura.

Para satisfazer as suas necessidades, para adquiriros bens que lhe são indispensáveis, o homem tem de obteruma posição na organização. Isto adquire para todos,seja qual for a sua profissão, o mais alto valor instrumen-

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tal. As organizações diferem umas das outras, ass~mcomoas posições dentro das mesmas, mas a necessIdade deobter uma posição na organização é comum a todos.Também os modos de obter uma posição desejada, umaconduta apropriada aos requisitos da organização, coroadapor uma designação decidida pelos órgãos compe~entes,são geralmente semelhantes. O fascínio das necessIdade,sconverte-se de um modo socialmente natural, no faSCI-, -nio da organização e da posição dentro da mesma, e naopode converter-se noutra coisa. A posição ~a o~ganiza?ã.oé a determinante fundamental de todas as sltuaçoes SOCIaiSe um certificado social de identidade. À pergunta «quemé ele?» o homem de hoje responde sem vacilações: «é oDiretor X da fábrica Y» em vez de «é uma excelentepessoa» ou «é um grande sonhador». E isto é tambémum fator universal da infraestrutura da cultura.

Mas numa sociedade pluralista, o poder de cada orga-nização ~brange apenas uma fração dos ?ens de impor-tância social e apenas uma parte da comumdade. Nenhumindivíduo pode limitar o processo de satisfação das su~snecessidades à gama de bens e de pessoas dentro do domI-nio de uma única organização. Antes pelo contrário,através deste processo entrará inevitavelment~ na_ esf~ra,de influência de um grande número de orgamzaçoes dIfe-ferentes e mutuamente autônomas, em que é pessoalmenteuma pessoa influente apenas num número reduzido delas.Assim todos são alternativamente aquele que ordena eo que 'solicita, o sujeito e o Jbjeto de influênci~. Os atosindividuais de cooperação bilateral vão-se polanzando emsujeitos e objetos, mas o mesmo não suce~e com a socie-dade. Quanto mais a sociedade se aprOXIma do m_odel?perfeitamente pluralista, mais o núm:ro de exceçoes. aregra se aproxima do zero. A proporçao em que se conJu-

gam os elementos de sujeição e de comando varia de situa-ção para situação, mas ambos os elementos se encontrampresentes em cada caso. As diferenças são mais quanti-tativas do que qualitativas. Assim, este aspecto da situação,que é tradicionalmente uma das principais fontes de diver-sificação cultural, converte-se gradualmente numa premissade fatores universais da infraestrutura da cultura.

Terceira condição: a dependência da teena/agia. O cam-ponês que tecia o linho num tear manual na sua própriacasa dependia apenas de si para a satisfação das suas neces-sidades. O agricultor que compra a camisa numa lojada aldeia depende da tecnologia. Um homem que usa umanavalha depende menos da tecnologia do que o que usauma máquina de barbear elétrica. Se uma pedra cair naengrenagem de uma turbina de uma hidrelétrica a cen-tenas de quilômetros de distância, não poderá fazer a barbacomo costumava. O equipamento técnico facilita consi-deravelmente todas as nossas operações, mas, por outrolado, deixa-nos muito mais vulneráveis frente a adver-sidades do destino, por pequenas que sejam. Ê mais fácillimpar uma sala com um aspirador do que com umavassoura, mas não somos capazes de o reparar quando seavaria. Há a este propósito uma anedota norte-americanasobre a família que se foi deitar sem jantar porque a tele-visão se tinha avariado: a dona da casa não sabia o queque é que havia de comprar, pois não tinha visto os últimosanúncios. A tecnologia ultrapassou os desastres funda-mentais de outros tempos: basta que um carro se despistepara que não possamos regressar do centro de trabalhort casa. O medo dos automóveis ocupa hoje no ambientefamiliar o lugar dantes ocupado pelas serpentes e os lobos.Mas voltemos ao que para nós é o assunto mais impor-tante: as pessoas satisfazem cada vez mais uma parte

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crescente das suas necessidades com a ajuda da tecnolo-gia: uma tecnologia que elas próprias não criaram, cujosprincípios de funcionamento não entendem e que não sãocapazes de dominar sem a ajuda de outras pessoas.

A tecnologia é uma benção, mas é também um pesa-delo materializado e omnipotente. É notório a ambiva-lência e a ambiguidade dos sentimentos que gera: a admi-ração entrelaçada com a apreensão. O homem vulgaraceita a notícia de que um computador pensa, pela mesmarazão que o indígena nutka aceitava a explicação do shamande que a pesca havia sido má porque os peixes estavamsentidos por não se ter feito a dança ritual antes de lançara canoa à água. O homem vulgar pede uma explicaçãosobre o computador pela mesma razão que o nutka queriasaber algo sobre a atitude dos peixes: porque existe umarelação entre o computador e a satisfação das suas neces-sidades. O fascínio com as necessidades pessoais expressa-sesob a forma de fascínio com a tecnologia. Este é outrofator universal da infraestrutura da cultura.

Mas no caso do nutka a relação entre a irritabili-dade dos peixes e o seu jantar seguinte era direta e óbvia.Para o nosso homem vulgar, no entanto, a relação entrea tecnologia sobre a qual se informa nos jornais, e o jantarde hoje, ou mesmo de amanhã, está longe de ser evidente.A relação entre uma ferramenta nova e a posição pessoaldo artesão ou do agricultor, era tão clara como eram sim-ples os critérios usados na sua avaliação: havia progressose encontrasse trabalho mais facilmente, ou se o trabalhorendesse mais, ou ambas as coisas. No entanto, ao tomarconhecimento através do jornal da introdução de umanova escavadora ou de uma nova trituradora, o homemvulgar não tem a certeza de haver uma relação entre esteprogresso e a sua situação pessoal, e, caso tenha, qual

é. Para que as duas variáveis se relacionem é necessárioo pensamento abstrato: a teoria, a síntese macrossociaI.Nem toda a gente o consegue, pois que a sua verificaçãoestá fora do alcance de cada indivíduo. Um novo aparelhotécnico implica sem dúvida um aumento da força humana.Mas aumentará também a força do indivíduo? Estamoslonge de compartilhar o otimismo individualista de umAdam Smith ou o otimismo coletivista de um CharlesWilson, da General Motors. O progresso da humani-dade e o progresso da situação do indivíduo não são atual-mente idênticos nem na prática nem na consciência humana.A dependência da tecnologia gera deste modo a desorien-tação e a ansiedàde, mesmo que seja apenas do tipo daque acompanha sempre a incerteza e o con~eci~ent~incompleto. Todos se sentem ameaçados. Nmguem eamo deste gênio saído da lamparina. E também estefato deve ser incluído entre os universais infraestru-turais.

A importância das três referidas condições da situaçãosocial das pessoas que vivem na civilização industrial -tra-ços suprarregionais, supraecológicos e supraclassistas, e,apenas, comuns - reside no fato de serem aspectos d?processo fundamental da vida, a satisfação das neceSSI-dades humanas. O homem converte-se num ser depen-dente do mercado, da organização e da tecnologia, porqueos não pode evitar no caminho que o conduz do disp~ndi?de energia criadora à aquisição dos bens necessanos. asua regeneração. Assim, é na semelhança cada vez maIOrentre estes caminhos que se encontra a causa fundamentaldo predomínio crescente destes traços comuns e. geraisnas situações da vida dos homens sobre os que aInda semantêm diversificados, e também, por conseguinte, dopredomínio dos elementos culturais que se generalizaram

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em toda a sociedade sobre os que ainda se encontram sujei-tos à diversificação subcultural (regional, ecológica ou declasse). A cultura diz respeito às situações da vida dos indi-víduos: a cultura massiva (universal) diz respeito às situa-ções das massas (universais). Trata-se, pois, de uma ten-dência em linhas gerais: por um lado, a universalização dacultura tem de vencer a resistência da tradição, dos costu-mes e dahomostase de grupo, e por este motivo fica geral-mente aquém da universalização dos elementos infraes-truturais; por outro lado, o impacto do atual desenvol-vimento cultural pode introduzir no sistema cultural deuma ou outra sociedade elementos que respeitam a umainfraestrutura ainda não surgida - estes elementos (con-siderados dentro do contexto de uma sociedade nacionaldeterminada, e não da humanidade no seu conjunto)aumentarão então e acelararão as correspondentes trans-formações na base.

Em tudo aquilo que dissemos até agora pudemosempregar o termo «necessidade» com o sentido que comu-mente se lhe dá, sem mais explicações. Mas, para comple-tar a lista dos fatores universais da infraestrutura, há quedar primeiro uma ordem grosseira aos diversos elementosabrangidos pelo termo «necessidades». A diferenciaçãoproposta por Abrahan H. Maslow entre «necessidadesdeficitárias» e «necessidades existenciais» parece ser amais útil para este fim. A primeira categoria inclui, porexemplo, a necessidade de satisfazer a fome e garantira segurança física; a segunda, a necessidade da satisfaçãoque surge da experiência estética e em certo sentido daprópria potencialidade criadora. A interrelação destasduas categorias pode ser caracterizada em termos geraisda seguinte forma: (I) quando as necessidades deficitárias

não são satisfeitas, suprimem ou aniquilam mesmo asnecessidades existenciais; (lI) quando as necessidades defi-citárias são satisfeitas, são as necessidades existenciais as maisfortes e as mais audazes em fazerem-se sentir. Acrescentemosque, na opinião de Maslow, as necessidades de de~ciê~ciae as existenciais diferem na medida em que as pnmeIrasdesaparecem logo que são satisfeitas, enquanto que asúltimas, pelo contrário, são estimuladas pela s~ti~faç~o;e que a recompensa no primeiro caso. pode consIst.lr SI~-plesmente no alívio da tensão produzIda pela sua msatIs-fação (é, pois, uma «recompensa negativa»), enquantoque no segundo caso, pelo contrário, criam tensões q~e são,elas próprias, fonte de gozo. A satisfação das necessIdadesdeficitárias, segundo Maslow, é apenas a condição préviapara uma ausência de doença; a. saúde e~ige, ~a~a alémdisso, o aparecimento das necessIdades eXIstencIaIs.

Utilizando a terminologia de Maslow, podemos dizeragora que uma característica da situação dos homens quevivem numa civilização industrial - uma característicaque, não sendo universal, se torna cada vez mais comum -é a diminuição da quantidade de tempo e de energia social-mente necessários à satisfação das necessidades de defi-ciência e, portanto, a universalização das necessidadesde existência. Durante os últimos milênios, as necessidadesexistenciais, potencialmente acessíveis a todo o indivíduohumano, revelaram-se, em muitas partes do mundo, ape-nas em indivíduos que pertenciam às classes ociosas ericas. Todos centravam as suas vidas na satisfação dassuas necessidades, quer quantitativas quer qualitativa~.A minoria procurava a maneira de satisfazer as neceSSI-dades de crescimento, enquanto que a maioria lutava pelasnecessidades de deficiência. Consequentemente, a minoria e

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a maioria tinham necessidade de culturas distintas. A abun-dância dos bens que servem à satisfação das necessidadesdeficitárias e a simultânea redução da contribuição doesforço humano direto na sua produção, ao mesmo tempoque se elevava o nível inferior de participação no consumodestes bens, criou uma nova situação; um número cadavez menor de pessoas centrava a sua atividade na satis-fação das necessidades de deficiência, enquanto que asnecessidades existenciais ocupavam o lugar principal cadavez mais frequentemente. Lentamente, vão-se convertendonum fator psicológico universal que, de modo idênticoao dos fatores universais da infraestrutura, se transfor-mam em elemento de universalização da cultura, isto é,do aparecimento e triunfo da cultura de massas.

Esta primeira nota pode muito bem terminar aqui.A idéia que pretendemos exprimir é relativamente simples.Esquematicamente, pode representar-se do seguinte modo:para que a cultura de uma sociedade se converta em cul-tura de massas - isto é, numa cultura aceita universal-mente com insignificantes diversificações segundo a região,ecologia ou classe - é necessário que nesta sociedade Xse uniformizem as situações sociais dos indivíduos e aestrutura das suas necessidades de tal modo que devame possam ser enquadradas por um único sistema cultural.O caráter esquemático desta dependência reside no queela pressupõe - aceite em silêncio mas que não se cumprena prática - de isolamento cultural da sociedade X,isto é, de ausência de difusão cultural externa. E é simples-mente porque este pressuposto não se cumpre na práticaque a relação entre a cultura, por um lado, e a infraestru-tura e a estrura de necessidades, por outro, será maiscomplexa numa sociedade concreta do que se infere deste

esquema. No entanto, volto a insistir no valor cognoscitivodesta orientação metodológica uma vez que os processosque ocorrem na infraestrutura social e na estrutura dapersonalidade devem constituir o sistema de referênciapara uma análise da origem e do conteúdo da cultura demassas.

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LUGAR E PAPELDAS INVESTIGAÇÕES DA CULTURANAS CIÊNCIAS SOCIAIS MODERNAS

Apesar do conceito de «cultura» se encontrar entreas categorias mais importantes das ciências sociais e doseu interesse crescer de ano para ano, as definições dadaspelos diferentes autores não têm nem de longe a mesmaacepção. Como muito justamente assinala Jan Schepanskié difícil imaginar um conceito de que se tenha abusadotanto e que tenha mais significado que o conceito de «cul-tura», que aparece com muitos sentidos, não só na lingua-gem corrente como também nas diversas ciências e nafilosofia (1). Tal estado de coisas levanta, naturalmente,a necessidade de elaborar, o mais rapidamente possível,uma definição rigorosamente científica, com aceitaçãogeral, do conceito de «cultura».

(1) Sobre a origem e desenvolvimento do conceito de «cultura» veros trabalhos: V. M. Mezhuev, «Problemas da cultura da filosofia pré-marxista», Voprosi Fi/osofi, n.O4,1965, e também L. A. Ornatsflaia, «Os pro-blemas da origem e da formação do conceito de cultura», Problémi Fi/o-so/fi Soziologii, Edições da Universidade Estatal de Leninegrado, 1968.

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Entendemos que só é possível elaborar um tal conceito,que corresponda aos requisitos das ciências sociais em geral,quando o seu conteúdo estiver de acordo com as funçõescognoscitivas básicas que foi chamado a cumprir nasciências modernas. A verdadeira definição das funçõescognoscitivas do conceito de «cultura» pressupõe neces-sariamente um exame do mesmo no âmbito de outrasnoções fundamentais das ciências sociais, e a sua corres-pondência com elas. O problema não se reduz assim a umexame isolado de uma determinada definição, por muitoboa que seja a sua formulação. Uma definição só é meto-dologicamenteefetiva, «operante», se se enquadrar logi-camente num sistema teórico mais amplo, como parteintegrante e funcionalmente necessária do mesmo.

Nas ciências sociais atuais, o conceito socio-lógico geral «cultura», na diversidade das suasacepções, é chamado a exprimir uma peculiari-dade da atividade humana vital e traçar uma linhade deman:ação entre ela e as formas biológicasda vida (1). Este sentido aparece já nas obras dosrepresentantes do pensamento humanista europeudo século XVII e sobretudo do século XVIII.

o que o homem, como resultado da sua atividade CrIa-dora, acrescenta à natureza propriamente dita.

Herder teve um papel importante no posterior desen-volvimento desta concepção. O seu grande mérito foiter conseguido superar o sentido axiológico de culturaque foi característico dos seus predecessores, de que umadas manifestações era a contraposição dos povos «cultos»aos «não cultos». Para Herder, e pela primeira vez, a cul-tura converte-se num atributo necessário de todos os povos,independentemente do lugar que ocupem na história dahumanidade. A cultura assume um caráter universal.Para Herder não existem povos «não cultos». (1)

A particularidade mais importante desta nova con-cepção foi que o fenômeno em questão começou a ser rela-cionado com todas as formas da existência humana comoseu indício mais imprescindível e característico. Começandopor volta da segunda metade do século XIX, este sentidogeral torna-se, pouco a pouco, predominante na utili-zação do conceito de «cultura» nas ciências sociais. (2)

No entanto, esta superação do sentido axiológicode cultura e o estudo da mesma como fenômeno universaldentro da sociedade humana, destinado a manifestar anatureza específica da mesma, criou apenas as premissasnecessárias à concepção moderna de «cultura». Para iso-lar o fenômeno como objeto específico da investigaçãocientífica, a indicação de que cultura é o «não natural»,e a sua definição, também característica para a nossa lite-ratura, como tudo aquilo que é criado pelo homem no

J. PARA UMA CARACTERIZAÇÃO GERAL DA ATUAL ETAPADA ELABORAÇÃO DO CONCEITO DE «CULTURA».

Toda uma série de pensadores deste período começoupor considerar a cultura como «o natural», isto é, tudo

(1) Sobre o estado da elaboração do conceito de «cultura» na lite-ratura ocidental do século XX, ver A. Kroeber, C. Kluckhohn, Culture;A critical review of concepts and definitions, New York, 1952.

(2) Ver como exemplo O comunismo e a cultura, Leis da formarü"e do desenvolvimento da nova cultura, Moscou, 1966, p. 7. .

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processo da sua atividade (1) espiritual e material, sãoabsolutamente insuficientes uma vez que nestas definiçõesnão se fixam os limites do fenômeno cultura. Com efeito,dentro dos limites da esfera da vida social das pessoas,o que é que se relaciona com cultura, e o que é que não?A pergunta não é nada clara, uma vez que toda esta esfera,no fim de contas, pode ser considerada como o produtoda atividade humana.

Estabelecer limites reais para um fenômeno globalcomo cultura não é tarefa nada simples. Muitos investi-gadores da cultura ignoraram pura e simplesmente esteproblema. Outros tentaram resolvê-Io através de um sen-tido limitativo do conceito, separando simplesmente algunselementos do conjunto social e denominando-os «cultura».O princípio da concepção do mundo do investigador,os seus interesses cognoscitivos e, por último, as descober-tas científicas realizadas ou as novas idéias surgi das podemter sido fatores limitativos. Sob o conceito de «cultura»agruparam-se muitas vezes os elementos da produção espi-ritual. Estas tentativas desempenharam, sem dúvida, umcerto papel positivo. Mas, no essencial, esta forma de esta-belecer os limites da cultura, dentro dos marcos do con-junto social, não pode ser de modo algum consideradacomo satisfatório, uma vez que é arbitrária e não possuinenhum critério rigoroso de seleção dos elementos dacultura. Assim, temos, por um lado, um amplíssimo con-ceito tradicional de cultura, elaborado, durante uma longaevolução, sem qualquer tipo de limites claramente esta-belecidos que permitissem definir o fenômeno, comoobjeto de investigação específico e relativamente indepen-

dente, dentro dos limites do conjunto social. Por outrolado, deparamos com a tendência para um sentido limi-tativo, que estabelece fronteiras absolutamente arbitráriase subjetivas. para o conceito, segundo a orientação teóricado investigador. O que há de comum nestas duas tendên-cias do pensamento culturológico é que não têm um cri-tério claro e rigorosamente formulado para definirem cul-tura como um dos componente do todo social. É absolu-tamente evidente, que só encontrando um tal critério sepode obter uma definição metodológica efetiva do con-ceito em questão.

É precisamente nisto que consiste toda a essênciada tarefa que se nos depara, a elaboração de um conceitode «cultura» rigorosamente objetivo e aceite universal-mente. Relacionado com este .objetivo analisemos antesde mais o problema da relação entre o conceito de socie-dade e de cultura, uma problema que nas últimas décadastem sido bastante discutido na literatura ocidental, espe-cialmente nos Estado Unidos.

2. SOBRE O PROBLEMA DA RELAÇÃO ENTRE OS CONCEITOS«SOCIEDADE» E «CULTURA».

Entre os trabalhos dedicados ao problema da relaçãoentre os conceitos de «sociedade» e de «cultura», podedestacar-se um artigo dos conhecidos investigadores norte--americanos, Alfred Kroeber e Ta1cott Parsons. Devidoao seu caráter generalizante o artigo traduz o estado dedesenvolvimento da questão na ciência norte-americanada cultura (na antropologia cultural) e na sociologia.

Os autores deste artigo começam por constatar oo fato de não existir entre os estudiosos da cultura e os

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sociólogos uniformidade na utilização dos conceitos de«cultura» e de «sociedade» (sistema social). Existem aindaestudiosos da cultura e sociólogos, escrevem Kroeber eParsons, que não vêm a necessidade de aceitar a diferençaentre cultura e sociedade, uma vez que toda a esfera davida social das pessoas é socio-cultural.

E, finalmente, ainda que os estudiosos da culturae os sociólogosreconheçam a diferença entre estesconceitos,mantêm diferentes posições. Se os sociólogos considerama cultura como algo derivado do sistema social, os estu-diosos da cultura consideram mais frequentemente o sis-tema social como uma parte de um todo mais amplo, acultura.

Deste modo, dirigindo-se para a história do problema,Kroeber e Parsons, assinalam no desenvolvimento doconhecimento científico social dos tempos modernos, apresença de duas tradições vinculadas a uma denominaçãoda esfera geral da atividade vital da humanidade. Aquiloa que Tylor e Boas chamaram cultura, escrevem eles,Comte, Spencer, Weber e Durkeim denominaram socie-dade; ambos os termos compreendiam o mesmo, preci-samente aqueles aspectos da conduta humana que nãodependem das leis biológicas. Assim, o principal, paraeles, era a idéia da criação, acumulação e transmissãoda cultura, independentemente da herança biológica. (1)

A utilização deste conceito uno «cultura-sociedade»manteve-se durante bastante tempo, enquanto durou adiferenciação dos estudos da cultura e da sociologia enão se sentia a necessidade de o desmembrar. No entanto,o desenvolvimento do conhecimento e a diferenciação

dos interesses cognoscitivos alcançaram já um nível talque é indispensável separar estas duas noções. Com basenisto Kroeber e Parsons (tendo em conta a tradição dosestudiosos da cultura), propõem a utilização de conceitode «cultura» num sentido mais estreito, a saber, aplican-do-o apenas a tipos de valores, idéias e outros sistemassimbólicos, transmitidos e criados como fator que con-diciona a conduta humana e a atividade produtiva. Poroutro lado propõem a designação do termo «sociedade»(sistema social) para os sistemas de relações entre os indi-víduos e os coletivos. (1)

São estas as teses fundamentais do artigo de Kroebere Parsons. Em nosso entender levanta-se aqui um problemateórico bastante complexo, importante e extraordinaria-mente real, cuja essência consiste na separação das compo-nentes propriamente sociais e culturais da esfera geral daatividade humana vital.

As dificuldades ligadas à solução do problema têmum duplo caráter: em primeiro lugar há as dificuldadesde ordem terminológica, e em segundo lugar as dificul-dades ligadas ao caráter do objeto.

As dificuldades de ordem terminológica, especial-mente, surgem porque até há bem pouco tempo toda aesfera da atividade humana vital se traduzia na litera-

(1) Será ou não oportuno traduzir pelo termo «sociedade» a com-ponent.e «pr<;>priamente,social» que se está a destacar? Esta pergunta requerUI~a dlscussao. É pOSSIVelque no futuro se encontre um termo mais apro-pnado, mas n~ste caso, embora conscientes da inadequação da utilizaçãodo termo <~socledade»para estes fins, somos obrigados a fazê-Io. Relati-vamente a Isto, r.ar<l;evitar confusões de conceitos, há que ter sempre emconta qu~ .nas clen~l~s modernas o termo «sociedade», para além do seuuso. tradICIOnal, utilIza-se também com um sentido mais limitado paradesIgnar a componente «propriamente social» do sistema da atividadehumana vital.

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tura (inc1usivamente marxista) pelo termo «sociedade»,com exceção para algumas tendências no estudo da cul-tura, para as quais, desde cerca do último quarto do sé-culo XIX, esta esfera começou a ser designada pelo termo«cultura» .

Se tal utilização não diferenciada destes termos foiabsolutamente suficiente na etapa da articulação do objetogeral da investigação nas ciências sociais, atualmentejá não seria aplicável. Há toda uma série de problemasfundamentais que hoje se levantam às ciências sociaisque não se podem resolver devidamente sem uma demar-cação analítica precisa da esfera da atividade no planomencionado. (1) Ainda que as dificuldades de caráterterminológico não possam ser subestimadas, é impossívelcompará-Ias com as dificuldades que se levantam à tarefade separar as componentes propriamente culturais e sociaisda esfera da vida social das pessoas.

O problema consiste no fato da cultura ser a compo-nente específica desta esfera que tudo penetra e que abarcatudo. Não é possível indicar um ramo da vida social quenão seja «cultura». A separação dos elementos da culturaapresenta dificuldades em toda uma série de coisas, comoseja por exemplo a diferenciação entre diversas obras dearte, sistemas morais, jurídicos, etc. Mas numa série decasos os problemas não só surgem, como são tambémnecessários esforços analíticos específicos para a sua solu-ção. Assim sucede quando se separa a estrutura socialna qualidade de objeto de investigação e se tenta abstrairos elementos de cultura nela contidos. Alguns investiga-dores consideram este problema como um dos mais difí-

ceis e complexos da ciência social; nomeadamente AlfredKroeber o estudioso norte-americano da cultura, ante-riormen;e citado, qualificou, inc1usivamente, a unidadedos componentes «social» e «cultural» da estrutura socialcomo «uma anomalia da lógica científica».

Uma das perguntas mais difíceis, que nos coloca numbeco sem saída, eSCleveKroeber, é a pergunta, como p.odea estrutura social ser, ao mesmo tempo, «social» e «cul-tural» quando o mesmo se não pode dizer da religiãoou da arte? Este duplo significado, social - cultural, dasrelações sociais é uma anomalia da lógica científica, masé empiricamente um fato,.

«Há uma justificação lógica para tal estado de coi-sas?» (1), pergunta Kroeber a este propósito. Tentandocontestar esta pergunta Kroeber e Parsons, no seu artigo,assinalam muito justamente que uma demarcação do sociale do cultural não é um trabalho de classificação de fenô-menos empiricamente diferentes, mas a dissecação analíticadas componentes de um mesmo fenômeno. E esta circuns-tância deve precisamente, na sua opinião, aumentar emlarga medida o papel da análise teórica nesta esfera dainvestigação. 1vIas, em nosso entender, estes autores nãoconseguiram realizar tal análise.

Uma lacuna fundamental que se manifesta no esquemaconceptual por eles introduzido disso os impediu. Ao recu-sarem o conceito uno tradicional de «sociedade», utili-zando-o num sentido mais limitado, como uma denomi-nação do sistema de relações entre os indivíduos humanos(para eles os conceitos de «sociedade» e de «sistema social»

(1) Acerca das diferentes funções da cultura veja-se o artigo de E. V.Soko1ov, «Cultura», Notas científicas do Instituto Pedagógico de Lenin -grado, «A. I. Hertzen», t. 305, 1968 (edição russa).

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são iguais), completando-o depois com o conceito de«cultura», só são capazes, em princípio, de determinar apresença de duas partes diferentes, de dois aspectos dife-rentes da esfera geral da vida social. Não se encontra noartigo de Kroeber e Parsons um conceito que una estasduas partes da vida social dos homens e que a exprimacomo sistema realmente operante. Entretanto, sem a pre-sença de tal conceito não é possível aclarar a relaçãoreal entre estas duas partes e levar a análise teórica atéao seu fim lógico. Isto é, aproximadamente, o mesmo quetentar construir os conceitos de «morfologia» e de «fisio-logia» das plantas e dos animais, sem o conceito de «orga-nismo».

A necessidade deste tipo de conceito é indiscutíveluma vez que antes de definir qualquer característica d~vida social dos homens e isolar os diferentes aspectos doseu estudo, é necessário distinguir o portador real destavida, isto é, a união estável e absoluta dos indivíduos ,que atua como sujeito da ação humana coletiva. Naliteratura esta união na sua forma una, denomina-se maisfrequentemente pelo termo «sociedade». Neste contexto,para evitar uma confusão conceptual, consideramos opor-tuno utilizar termos mais neutrais como «sistema social»e «organismo social» para designar uma categoria inicial,que deve descrever o fenômeno total da vida social. Outrainsuficiência do ponto de vista de Kroeber e de Parsonsrefere-se à definição do próprio conceito de «cultura»,pelo qual entendem «tipos de valores, idéias e outros sis-temas simbólicos transmitidos e criados, que determinama conduta dos homens e o produto da sua atividade».Aqui, naturalmente, surge a pergunta: por que é quesó os «sistemas simbólicos» que determinam a condutados homens se relacionam com a cultura e muitos outros

meios ficam fora da sua esfera da atividade humana como,por exemplo, os instrumentos de trabalho, as armas, ahabitação, o transporte, etc.? Esta pergunta podia serposta a todos os autores que têm tendência a limitar acultura à esfera da produção espiritual e às forma de cons-ciência social. Qual é a importância cognoscitiva destalimitação? Com que fundamento se agrupam alguns ele-mentos da atividade vital do homem sob o conceito de«cultura» e outros não? Uma definição rigorosamentecientífica e metodologicamente efetiva deste conceitoútil não só para a solução dos problemas cognoscitivo~particulares, como também para as ciências sociais no geral,deve responder também a esta exigência.

Como já foi assinalado anteriormente, o papel cognos-citivo inicial e fundamental do conceito de «cultura»consiste antes de mais em determinar a particularidadequalitativa comum da atividade humana. Este sentidoestá claramente expresso nas diferentes definições do ditoconceito como tudo o que é «anatural».

A insuficiência principal destas definições tradicionaisconsiste em não refletirem o ponto de vista culturoló-gico sobre a atividade humana. Com efeito, a vida socialdos homens representa um objeto de investigação extraor-dinariamente complexo e polifacetado que pode e deve serestudado a partir de diferentes pontos de vista. No conceitode «cultura», apesar da dimensão do seu conteúdo, é neces-sário determinar com precisão o ângulo visual a partirdo qual se deve analisar a particularidade da atividadehumana, uma vez que não existe o conhecimento em geral,

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mas sim o conhecimento concreto que abrange determi-nadas zonas cognoscitivas.

Qual é o ponto de vista especificamente «culturoló-gico» que permite demarcar um plano particular na análiseda vida social? Em nosso entender, o conceito de «cultura»é chamado a refletir a vida social das pessoas do pontode vista do modo de vida específico que lhes é próprio,e que abarca aquele sistema particular de meios e de meca-nismos graças ao qual os indivíduos humanos solucionamos diversos problemas que se lhes deparam no decursoda sua existência pela cooperação. Destes meios e meca-nismos fazem parte os instrumentos de trabalho, a cons-ciência, (na sua forma individual e supra-individual) e,conseqüentemente, os diferentes sistemas de sinais, pelosquais a consciência se objetiva na moral, no direito,na ideologia, na ciência, na filosofia, na religião e na amplarede de instituições sociais, no caráter, nos costumes, nahabitação, no vestuário, no transporte, etc. Estes, assimcomo todos os muitos outros elementos da vida social,surgiram ao solucionar os diferentes problemas com queas pessoas deparam no processo da sua atividade vital,e têm um fim determinado. (1).

Não os encontramos nos sistemas que representam otipo biológico de organização da realidade, por mais com-plexos e desenvolvidos que sejam esses sistemas.

Neste sentido pode dizer-se que os meios e mecanis-mos assinalados têm por origem um caráter extrabioló-gico sendo de uma forma ou de outra, o produto da cria-, ,ção humana, do trabalho criador.

Os princípios que se aplicam à cultura, diferencian-do-se qualitativamente dos princípios biológicos de orga-nização, com eles se relacionam, ao mesmo tempo, neces-sariamente. Isto é absolutamente compreensível, uma vezque a vida biológica é a premissa natural do aparecimentoe da posterior existência de cultura. A essência dos princí-pios da organização da vida coletiva, aplicados à cultura,consiste na capacidade de elaborar meios e mecanismosextrabiológicos pela sua origem e caráter, graças aosquais se controla constantemente a natureza biológicacomum aos indivíduos que compõem a sociedade, seprograma e se dirige a conduta dos mesmos na direçãonecessária à manutenção da vida social e se garanteo metabolismo específico entre o sistema social e a na-tureza.

A compreensão do fenômeno da cultura como modoespecífico da atividade das pessoas e da or ganização dasua vida - por outras palavras, como modo específicoda existência humana - garante um critério suficientementeexato e uma possibilidade potencial de diferenciar asdiversas formas de manifestação da cultura e reduzi-Iasà sua unidade interna.

A elaboração de tal critério torna-se possível nestecaso graças ao ângulo visual clara e definidamente expostosob o qual se analisa o sistema social. É este ângulo visualque permite mostrar o modo específico da existência daspessoas, o modo da sua atividade'.

De acordo com este ponto de vista, a cultura podedefinir-se como função específica da vida social das pessoas,e o cariz da análise do sistema social manifestado pelacultura pode definir-se como funcional.

Na realidade, dar uma caracterização funcional geraldo sistema significa determinar o seu modo específico de

(1) Sobre as diferentes funções realisa~as pela cultu.ra, veja-se ? ~rtigode E. V. Sokolov «Cultura», Notas científicas dei Instztuto Pedagoglco deLeninegrado, «A. I. Hertzen» t. 305, 1968 (edição russa).

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atividade , isto é, determinar aquele conjunto de meiose de mecanismos graças aos quais este sistema funcionae se desenvolve. (1)

Para além disso, a análise (relacionada com a disse-cação do modo de atividades) do modo de conduta dosistema, só tem sentido, combinado com o estudo da suaestrutura, da sua morfologia.

Uma tal explanação do problema permite passar aum aspecto muito importante e interessante do estudoestruturàl-funcional do sistema social, que é infelizmentemuito frequentemente ignorado na literatura sociológica.No entanto, é precisamente este aspecto da análise estru-tural-funcional do sistema social que dá a chave de umasolução frutífera do problema anteriormente analizadoda relação entre a sociedade e a cultura.

A argumentação lógica da unidade e das diferençasentre o social e o cultural simplifica-se se se analisar o pro-blema, por um lado, do ponto de vista das relações propria-mente ditas, que formam o sistema social dos indivíduose dos diferentes grupos em que estes se unem, e por outro,dos meios graças aos quais estas relações se regulam.Esta mesma diferenciação dos planos «social» e «cultu-ral» corresponde em muito à diferenciação das perspectivasestrutural (morfológica) e funcional do sistema. Aquiloque geralmente se entende por relações sociais, apresentauma complexa formação, cujo conteúdo não foi ainda sufi-cientemente precisado na ciência. A sociologia deparacom a necessidade de uma definição estritamente científica

do conceito de «relação socia!>},que permitisse superara albitrariedade e a multiplicidade de sentidos manifes-tadas no uso deste conceito. Relativamente a isto, parece--nos que a condição prévia para ter uma compreensãocorreta do fenômeno das relações sociais, deve ser a disse-cação dos elementos que estão contido em cada sistemade relações sociais, empiricamente, a partir das própriasrelações e dos meios da sua regulação. Na prática da inves-tigação, realizam-se processos de abstração semelhantesa cada passo. Por exemplo, a abstração «relações de pro-dução}} forma-se de modo muito semelhante. Ainda queas relações de produção existam sempre no contexto dedeterminadas normas, graças às quais se regulam devi-damente, a necessidade de aclarar o seu lugar na estruturageral das relações sociais, e também de estabelecer a suanatureza historicamente determinada, requer a abstraçãoe a dissecação das relações de produção dos meios da suaregulação. E se encararmos este processo de abstraçãodo ponto de vista do problema analisado, não será maisdo que o processo de dissecação da esfera das relaçõessociais nos seus elementos propriamente sociais e cul-turais. Atualmente a tarefa consiste precisamente emgeneralizar os processos de uma tal abstração, inevitáveisna prática da investigação, com o caráter de uma conclu-são teórica claramente formulada.

4. o CONCEITO DE «CULTURA» E O PROBLEMA DA CLASSI-FICAÇÃO DO CONTEÚDO DOS ELEMENTOS DO SISTEMASOCIAL.

(1) Ao contrário da maioria dos outros significados dos termos «fun-ção» e «funciona]», neste caso não se acentuam os diferentes elementosdo sistema (as relações entre si, o papel por eles realizado, etc.), mas ascaracterísticas do sistema em geral para deste modo isolar um plano espe-cial da sua análise.

A concepção da cultura como modo específico da exis-tência humana, como modo de atividade das pessoas,permite-nos, do nosso ponto de vista, aproximar-mo-nos

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de uma solução metodologicamente efetiva do problemada classificação dos diferentes elementos do sistema social.Este problema deve ser considerado como ponto de partidapara uma análise dos sistemas da vida social, o que é abso-lutamente natural, uma vez que a análise específica do sis-tema pressupõe, antes de mais, para o sistema social,a presença de critérios claramente formulados relativa-mente ao encadeamento dos diferentes elementos que oformam. N o entanto o problema da classificação dos ele-mentos que compõem o sistema social tem sido muitoinsuficientemente desenvolvido.

Os ensaios que existem na literatura sociológica oci-dental neste sentido, encerram, quanto a nós, defeitos fun-damentais. Estes defeitos manif.::stam-se muito claramentena concepção sociológica de T. Parsons. Quanto a istobasta dizer que ele exclui praticamente os elementos queccmpõem o sistema social as componentes materiais, su-bstâncias da vida social dos hcmens, isto é, a técnicamaterial, a habitação, o transporte, etc. Esta circunstânciaé diretamente condicionada pela limitação da culturaapenas aos sistemas simbólicos.

A definição da cultura como um modo específicoda existência humana cria outras premissas teóricas na clas-sificação dos elementos do sistema social. Dita definição queao abarcar todo o complexo de meios e de mecanismosda realização da atividade humana (e não só os mecanis-mos que regulam a conduta das pessoas) e deste modomodificando qualitativamente a relação entre o conceitode «cultura» e os outros conceitos fundamentais das ciên-cias sociais, dá, em nosso entender, a chave para a elabo-ração de um esquema de classificação metodologicamenteoperante dos elementos que compõem o sistema social.

Pata disto nos convencermos, relacionemos primeiro osconceitos de «cultura» e de «atividade humana». Geral-mente não se estabelece a devida diferença entre estesdois conceitos, o que conduz à mistura de planosqualitativamente diferentes da investigação do sistemasocial.

Estes dois tipos de elementos do sistema social sãoabstrações de uma só classe de elementos, e é com os esfor-ços comuns destes que se cria o próprio fenômeno da vidasocial das pessoas; isto é, são uma abstração dos mesmosindivíduos humanos e dos diferentes tipos de grupos, quese unem no processo da sua atividade vital. Organizandoestas abstrações não devemos esquecer nunca que os ele-mentos por eles manifestados (as esferas da atividadehumana e os mecanismos e meios da sua realização) nãotêm qualquer significado independente fora das pessoas.Esta abstração realiza-se com fins metodológicos quepermitem diferenciar e não misturar os elementos do sis-tema social correspondentes a classes qualitativamentediferentes.

Este complexo objeto que é a vida social dos homens,requer, naturalmente, a distinção de alguns planos prin-cipais que assinalam «pontos de referência» específicosao estudar a realidade social e permitem efetuar umaseleção e um encadeamento dos diferentes elementos quea formam, de acordo com critérios claramente estabele-cidos.

Já falamos destes dois «pontos de referência». Surgi-ram da necessidade de fazer um estudo específico da reali-dade social na perspectiva da aplicação da atividadehumana (das esferas da atividade humana) e do modode realização da atividade humana (da cultura). Quantoao «terceiro ponto de referência», foi necessário para a

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(1) Veja-se E. S. Marcarian, Esboço da teoria da cultura, Erevan,1969, pp. 34-42, 210-214 (edição russa).

outros SUjeItosde atividade que não sejam as pessoas,mas os sujeitos da atividade humana podem ser diferen-tes. Existem precisamente duas classes de tais sujeitos,o indivíduo e o coletivo. Para designar o primeiro sujeitoda atividade humana (individual), na literatura socioló-gica usa-se o termo «pessoa»; para o segundo sujeito daatividade (coletivo), usam-se os termos «grupos», «con-junto social», etc.

O primeiro sujeito coletivo da atividade, humanaé a própria sociedade, mas dos seus elementos que se rela-cionam com este caso sobressaem enquanto tais os gruposmais específicos que formam o sistema social, por exemplo,as classes sociais, os grupos étnicos, a família, etc.

Desta forma, e resumindo, podemos dizer que naanálise do sistema social, devemos partir antes de maisda presença de três classes qualitativamente diferentes deelementos que o formam: primeiro, os próprios indiVÍ-duos humanos como sujeitos de atividade, cujas relaçõesentre si no processo da sua atividade vital de cooperaçãoformam a organização social da sociedade num sentidoamplo; segundo, a classe de elementos que traduz os dife-rentes campos de aplicação da atividade: socialmentedirigida dos indivíduos, os seus esforços conjugados (esfe-ras daltividade: humana); finalmente, em terceiro lugar,a classe de elementos da cultura, isto é, o modo específicoda existência humana que abarca o sistema extraordina-riamente polifacetado de meios e mecanismos da ativi-dade das pessoas e a organização da sua vida.

O esquema de classificação apresentado permite, emnosso entender, abarcar todos os diversos elementos dosistema social e agrupá-los com base em critérios clara-mente formulados.

análise da composição elementar dos sujeitos da ativi-dade humana.

No presente artigo não temos possibilidade de analisarem detalhe a característica do conceito de «'atividadehumana». (1) Relativamente a este ponto basta dizer queo conceito de «atividade humana» representa, no sentidoamplo, a categoria que reflete a qualidade ativa daconduta comum e socialmente dirigida dos homens.

Este ativismo dirigido é realizado por uma multidãode indivíduos humanos nas diferentes esferas de aplicaçãodos seus esforços; é o que forma na sua totalidade o pro-cesso de funcionamento e desenvolvimento do sistemasocial.

Quanto ao conceito de cultura, isto de acordo com adefinição aceita no presente artigo, exprime o modo espe-cífico, graças ao qual se programa, se coordena e se rea-liza esta conduta ativa.

Se as «esferas de atividade~» (a economia, a educação,a direção, etc.) são as unidades estruturais fundamentais,os elementos desse corte da vida social que se forma nodecurso de um estudo específico da atividade humana,então os meios e mecanismos específicos (tanto materiaiscomo mentais) da atividade humana (os instrumentosde trabalho, a habitação, a consciência, os sistemasde sinais, os costumes, os hábitos, as instituições so-ciais, etc.) são os elementos, as unidades estruturaisda cultura.,

Finalmente, ao falar sobre o «terceiro ponto de refe-rência», é necessário assinalar que na sociedade não há

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5. O CONCEITO DE «TÉCNICA» À LUZ DO ATUAL. CONCEITODE CULTURA.

lógica inclui o conjunto de meios utilizados pelas pessoasna sua prática social, e o conceito de esfera da culturainclui os fins e os valores.

O ponto de vista de Maclver parece-nos pouco satis-fatório. Ainda que seja absolutamente legítima a diferen-ciação entre o conjunto dos meios de ação prática doshomens e o sistema de objetivos e valores pelos quaisestes se guiam na sua atividade, é necessário, no entanto,considerar o caráter relativo desta diferenciação. Estadivisão não deve exprimir fenômenos completamente hete-rogêneos, mas duas componentes organicamente relacio-nadas da esfera geral e comum da cultura, que só conser-vam significado nas suas relações mútuas.

Efetivamente, aquilo que num caso serve de obje -tivo, noutro pode apresentar-se como meio. Nomeada-mente, todos os fenômenos da vida social que Maclverinclui numa esfera especial da cultura (os valores, os ideais,os fins), noutra relação, podem ser considerados na suatotalidade como meios «técnicos».

Historicamente, a vida social dos homens surgiucomo um sistema de sustentação da vida dos indivíduosque compõem a sociedade, graças ao qual foi possívela satisfação das suas necessidades quanto à alimentação,ao vestuário, à habitação, à defesa frente aos perigosexternos, etc. Mas o cumprimento efetivo destas funçõessó é possível em condições de determinada coesão do cole -tivo humano, a sua integração. Eis por que os homenssempre cumpriram a tarefa de manter a sociedade comoum todo integrado, funcionando de modo coordenado(ainda que o grau de integração e de coordenação possavariar).

Os valores espirituais, os ideais, analisados desteponto de vista têm um indubitável caráter tecnológico,

À luz da atual concepção de cultura surgiu tambéma necessidade de tratar de uma forma mais ampla os con-ceitos de «técnica» e de «tecnologia», tratamento que nãose limitaria à esfera material da técnica e da tecnologia.Para que os conceitos considerados cOlTespondam àsnecessidades das ciências sociais no seu conjunto, devemabarcar os sistemas de meios da ação prática e os modosde utilização dos mesmos, elaborados pelo homem emtodos os ramos da sua multifacetada prática histórico--cultural.

O sociólogo americano Robert Maclver, especial-mente, parte da compreensão da necessidade de trataramplamente os conceitos de «técnica» e de «tecnologia»;na classificação do complexo sócio-cultural ele individua-liza uma esfera tecnológica especial, na qual incluíu, paraalém da técnica material, outros sistemas de técnica, porexemplo, a técnica da direção do Estado, a técnica dopensamento, etc. (1)

Aceitando como ponto de partida da sua concepção,o esquema largamente conhecido de Alfred Weber, deacordo com o qual todo o complexo sócio-cultural se subdi-vide na esfera da civilização (ciência e técnica), na esferasocial e na esfera da cultura (a religião, a filosofia, a arte),Maclver substitui a esfera da civilização pela esfera tecno-lógica, com base na diferenciação entre os meios e os fins.Segundo a opinião de Maclver, o conceito de esfera tecno-

(I) Inicialmente Maclver conservou a terminologia de Weber e sómais tarde introduziu o termo «ordem tecnológica». Ver Robert MaclverSociety, New York, 1940, e também Social Causation, Boston, 1949. '

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isto é, apresentam-se como os meios que estimulam aatividade humana. Não menos evidente é a naturezatecnológica do sistema de valores e ideais na sua funçãoreguladora da conduta dos homens. Aqui o papel prin-cipal corresponde à moral. Mais, a cultura na sua baseé justamente tecnológica no amplo sentido da palavra,uma vez que foi elaborada precisamente como um sistemaespecífico dos meios de solucionar os problemas maisdiversos com que se depara no decurso da multiface prá-tica humana, como modo geral da atividade das pessoase da organização da sua vida.

Estas são, em nosso entender, algumas das considera-ções necessárias para ter uma compreensão histórico-mate-rialista correta do fenômeno da cultura (1). Karl Marx nassuas teses sobre Feuerbach escreveu: «A vida social éessencialmente prática». O conceito de «cultura» estájustamente destinado a refletir esta vida do ponto de vistado modo geral da sua realização. Pelo cumprimento dadita função cognoscitiva deve também ser determinadoo lugar e o significado deste conceito nas ciências sociaiscontemporâneas.

(1) Importa assinalar que o problema da cultura foi analisado nesteartigo apenas no plano sociológico geral, e que o autor se abstraiu dosdados historicamente diferenciados das culturas. Semelhante abstraçãofoi necessária para compreender a natureza geral da cultura, independen-temente de qualquer manifestação histórica. Quanto à característica dasculturas históricas, trata-se de uma tarefa especial que não coube aquitratar. Notamos apenas que se o conceito de cultura tomado no seu sen-tido sociológico geral caracteriza o mais amplamente possível o modoespecífico de existência humana em contraposição com os modos de exis-tência biológica, então o conceito de «cultura historicamente dada» repre-senta uma abstração que tem por fim exprimir os traços gerais e especí-ficos dos métodos de existência elaborados pelos diferentes povos. Estaquestão aproxima-nos do problema da tipologia histórico-cultural. Versobretudo E. S. Marcarian, Ensaios na teoria da cultura, segunda parte.

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