bauman, z. ensaios sobre o conceito de cultura

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•Introdução•

Reeditarum livroescritoháquase trêsdécadasexigeumaexplicação. Seporacasooautoraindaévivo,recaisobreeleotrabalhodeexplicar.

Aprimeirapartedessatarefaédescobrir,passadostodosessesanos,oqueolivroaindatemdeatualenovoosu icienteparajusti icarapresentá-loumavezmaisaosleitores–aleitoresdiferentes,umaouduasgeraçõesmaisjovensqueaquelesquedevemterlidooexemplarnaediçãooriginal.Osegundotrabalhoéopostoaoprimeiro,masocomplementa:ponderaroque o autor teria alterado no texto caso o estivesse escrevendo pelaprimeiravez.

Aprimeira tarefanãoé fácil, sejaqual foropadrão,dadaavelocidadedesconcertante com que todas as ideias desaparecem e caem noesquecimentoantesdeterachancedeamadurecereenvelhecerdeformaadequadaemnossaera,comodizGeorgeSteiner,decoisasepensamentoscalculados “para o impacto máximo e a obsolescência instantânea”. Umaépoca em que, como outro autor observou, a vida de um best-seller nasestantesdaslivrariaséalgoentreoleiteeoiogurte.Àprimeiravista,esteéumtrabalhoassustador,talvezimpossível…

Masquemsabenãosepossaextrairalgumconsolodasuspeita,nãodetodofantasiosa,deque,dadaavelocidadecomqueos“temasquentes”damoda são substituídos e esquecidos, não se pode saber ao certo se asideias antigas realmente envelheceram, sobreviveram ao uso ou foramabandonadas por motivo de obsolescência. Será que certos temasdeixaramdesercomentadosporterperdidoarelevância,oudeixaramdeser relevantes porque as pessoas icaram cansadas de falar a respeitodeles? Sobre nós, cientistas sociais, Gordon Allport disse uma vez quejamais resolvemos problema algum, só nos entediamos com eles. Mas,desdeentão,setornoumarcaregistradadenossasociedadecomoumtodoo fato de nãomais nosmovermos nem acreditarmos nos mover “para afrente”;nósnosdeslocamosdelado,comfrequênciadetrásparaafrente,

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e novamente para trás. Por sua vez, vivemos na era da reciclagem; nadaparecemorrerdeumavezpor todas,nada–nemavidaeterna–parecedestinadoapermanecerparasempre.

Assim, as ideiasdevemserenterradasvivas–muitoantesdeestarem“bem mortas” –, e sua morte aparente é apenas um artefato de seudesaparecimento de nosso campo visual. O ato do enterro, mais quequalquertesteclínico,équegaranteoatestadodeóbito.Seresgatadasdaamnésiacoletivaemqueforamdestinadasahibernar,elaspodem–quemsabe?–ganharmaisum tempodevida (comcerteza,nãomuito longo).Enão apenas porque foram espremidas até secar em sua primeira visita,masporque,comomandaadinâmicadosdiscursos,as ideiasestimulamodebateeocolocamemmovimento“porimpacto”,emboraesseefeitoinicialdi icilmente seja seguido de plena assimilação. A princípio, não há limiteparaonúmeroderetornos;acadavezoimpactotemnovoefeito–comoseo retorno fosse uma primeira apresentação. É verdade que não se podeentrarno“mesmo”rioduasvezes,mastambéméverdadeque“amesma”ideianãopodeentrarduasvezesnoriodospensamentos.Hojeavançamosnão tanto pelo aprendizado cumulativo e contínuo,mas por umamisturadeesquecimentoelembrança.Essaparece,emsimesma,umarazãoboaosu iciente para reeditar um livro – ainda mais pelo fato de que ele nãovoltarásozinho.Otextofoiescritonumdiálogoativocomoutrosqueentãose encontravamna linha de frente do debate intelectual, mas que hojetambém acumulam poeira nas estantes das bibliotecas. Recordar osproblemas que enfrentaram e tentaram resolver juntos não seráinoportuno para todos aqueles que estão imersos e engajados naspreocupaçõesatuais.

A segundadasduas tarefas émais simples, pelomenos emaparência.Para o autor, também é mais grati icante. Exige algo que os autoresdi icilmente têm tempo de fazer em seu pensar e escrever cotidianos:examinar em retrospecto a estrada que percorreram – ou melhor,organizaraspegadasesparsasparaproduzirumsimulacrodeestrada.Aoatender a essa exigência, eles têm a rara oportunidade de imaginar(descobrir? inventar?) uma progressão lógica naquilo que vivenciaramcomoumasucessãodeproblemasetemassingulares, “umdecadavez”–trabalho em geral deixado aos estudantes encarregados de produzirdissertações sobre a obra dos autores. E, confrontando-semais uma vezcom seus próprios pensamentos iniciais, podem colocar em relevo suasideias atuais. A inal, todas as identidades – incluindo as identidades das

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ideias–sãofeitasdediferençasecontinuidades.OobjetivodestaIntroduçãoétentarrealizaressasduastarefas.Vamosanteciparadireçãoqueatentativairátomar:quandolidotrinta

anosdepoisdetersidoescrito,olivroparecepassarnotesteda“verdade”.Tem desempenho um pouco inferior no teste de “somente a verdade”. Efracassaterrivelmentenotestede“nadamaisqueaverdade”.Creioqueamaiorpartedoquenelehádeerradoserefereaoquefalta–masdeveriaestarpresente, tal comoo vejo agora – emqualquer avaliaçãoda culturaque se pretenda abrangente e correta. Se fosse escrever este livro outravez, talvez eliminasse pouca coisa do texto antigo, mas muitoprovavelmente acrescentaria alguns tópicos, e com toda a certezaremanejaria as ênfases. O restante desta “Introdução”, portanto, contémalgumas revisões, mas seu principal foco é preencher os espaços embrancoqueotextooriginaldeixoudeformainadvertida.

Mais uma observação se faz necessária, tendo em vista sobretudo otempo de vida curto de nossa memória coletiva. Um livro sobre culturaescrito trinta anos atrás tinha de confrontar leitores muito diferentesdaqueles que estarão presentes em sua segunda encarnação. Pouco sepodia iarnasideiasarraigadasdosleitoresnaquelaépoca,enquantohojeomesmotextopodecontarcomleitoresexperimentadosna“problemáticada cultura”, com estruturas cognitivas básicas e conceitos essenciaisirmemente estabelecidos. Certas ideias que há trinta anos teriam de serexplicadas com muito labor agora parecem evidentes, no limite datrivialidade.

Nessesentido,ocasomaisevidenteéodapróprianoçãodecultura:nadécada de 1960, na Grã-Bretanha, ela estava quase ausente do discursopúblico, em particular do discurso sociocientí ico – e isso apesar dosesforços pioneiros de Matthew Arnold para inseri-la no vocabulário dasclasses letradasbritânicasedabrava lutaposteriorpor sua legitimidade,empreendidaporRaymondWilliamseStuartHall.Admitodesde logoque–porsortedaopiniãocultabritânica–édi ícilacreditarhojequeesteeraoestadodecoisasapenashátrintaanos.Mas,algumtempodepoisdevirapúblico a primeira edição deste livro, passei pela agonia de explicar aosilustres intelectuais membros da comissão de planejamento dauniversidadeo que signi ica a palavra “cultura”. A ocasiãopara isso foi apropostadeinstituirumCentrodeEstudosCulturaisinterdepartamental–então um espécime extraordinariamente raro nas Ilhas Britânicas. Damesma forma, a ideia de estrutura como fenômeno diacrônico, e não

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sincrônico, não era fácil de transmitir, tampouco de ser apreendida edigerida pelos potenciais leitores, antes que a “estruturação” de AnthonyGiddens atingisse o status canônico no primeiro ano dos cursos desociologia.

Hoje,aquiloquenopassadopareciaumaousadaaventuraintelectualsetransformou na repetição irre letida da rotina. É da natureza das ideiasqueelasnasçamcomoheresiasperturbadorasemorramcomoortodoxiasaborrecidas.Énecessáriomuitopoderdeimaginaçãoparafazerressurgir(quediráreviver)seuantigoepoderosoimpactoemancipatório,instigadorda re lexão: por exemplo, a agitação causada pela visão de cultura comouma série in indável de permutas, da autoria de ClaudeLévi-Strauss.A inal, a função de toda rotina é transformar a re lexão, o exame, acomprovação,avigilânciaeoutrosesforçosárduosedemoradosemluxossemosquaissepodepassar.

Assim, somando-se às duas tarefas antes mencionadas, cabe ao autorremodelaralgumasdasideiasagoraincorporadasà“rotina”,naesperançade restaurar, se possível, seu poder de corte. Ou, se preferirem, fazerressurgirnumacançãodeninaroseupassadodetoquedealerta…

Aculturacomoautoconsciênciadasociedademoderna

Emsintoniacomavisãosociológicaprevalecente trêsdécadasatrás,paramima cultura eraumaspectoda realidade social –umdosmuitos “fatossociais” que deviam ser adequadamente apreendidos, descritos erepresentados. A principal preocupação do livro agora reeditado é comofazer isso da maneira apropriada. Eu pressupunha a existência de umfenômenoobjetivochamado“cultura”que–emfunçãodonotório“retardodoconhecimento”– talvez tenhasidodescoberto comatraso,porém,umavezdescoberto,poderiaserempregadocomopontodereferênciaobjetivoem relação ao qual tornava-se possívelmedir e avaliar a propriedade dequalquermodelocognitivo.Quemsabehouvetrêsdiferentesdiscursosemqueomesmotermoteveseusigni icadoalterado,causandocertograudeconfusãosemântica?Assim,eraprecisodistingui-loscomcuidado,demodoqueo signi icado emqueo termo “cultura” é usado em cada caso icasseclaroelivredecontaminação;masapresença,oconvívioeainterferênciamútua dos três discursos me pareciam então, em si mesmos, nãoproblemáticos. Era outro “fato social”, e não umquebra-cabeça a exigir o

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esforço de uma escavação arqueológica ou necessitando ser“desconstruído”. Ainda não havia por perto Michel Foucault e JacquesDerridaparadarumaajuda…

Éumaespéciedeparadoxoo fatodequeadesconstruçãodo conceitodecultura tenhaacabadoporvirnaondada“culturalização” das ciênciassociais. Originalmente, na segunda metade do século XVIII, a ideia decultura foi cunhada para distinguir as realizações humanas dos fatos“duros” da natureza. “Cultura” signi icava aquilo que os seres humanospodemfazer;“natureza”,aquiloaquedevemobedecer.Porém,atendênciageral do pensamento social durante o século XIX, culminando com ÉmileDurkheimeoconceitode“fatossociais”,foi“naturalizar”acultura:osfatosculturais podem ser produtos humanos; contudo, uma vez produzidos,passam a confrontar seus antigos autores com toda a in lexível eindomável obstinaçãodanatureza – e os esforçosdospensadores sociaisconcentradosna tarefademostrarque issoéassimedeexplicar comoeporquesãoassim.SónasegundametadedoséculoXX,demodogradual,porém contínuo, essa tendência começou a se inverter: havia chegado aerada“culturalização”danatureza.

Qualarazãodetalreviravolta?Pode-seapenasconjecturarque,depoisdeumperíododominadopelabusca frenéticados fundamentos sólidos einabaláveisdaordemhumana, conscientedesua fragilidadeecarentedecon iança,veioumtempoemqueaespessacamadadearti ícioshumanostornou a naturezaquase invisível – e suas fronteiras, entre elas as aindaintransponíveis,cadavezmaisdistanteseexóticas.Ospilaresdaexistênciahumana construídos pelo homem foram plantados em profundidadesu iciente para tornar redundante qualquer preocupação com outras emelhores bases. Podia começar a era do contra-ataque: as armas, avontade e a autocon iança agora estavam a postos. A “cultura” nãoprecisavamaismascarar sua própria fragilidade humana e desculpar-sepela contingênciade suas escolhas.Anaturalizaçãoda cultura foi parte eparceladomodernodesencantamentodomundo.Suadesconstrução,quese seguiu à culturalização da natureza, tornou-se possível – talvezinevitável–comoreencantamentopós-modernodomundo.

Reinhart Koselleck batizou o século XVIII de “a era das passagens damontanha” (“Sattelzeit”).1 O nome é merecido, já que, antes do inaldaquele século, um abrupto divisor de águas ilosó ico foi negociado edeixado para trás, em vários pontos aomesmo tempo. Para a história dopensamento humano, as consequências desse evento não foram menos

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seminaisdoqueoforam,paraahistóriapolítica,aquelasprovocadaspelatravessia do Rubicão por César. Em 1765, o conceito de “ iloso ia dahistória” apareceu noEssai sur lesmoeurs, de Voltaire, gerando uma levade tratados deGeschichtephilosophische. Em 1719, Gottfried Müllercomeçou a dar um curso de antropologia ilosó ica em que o sujeitocognitivo cartesiano se expandiu para o modelo em tamanho natural do“homem total”. E em 1750, Alexander Gottlieb Baumgarten publicou seulivroAesthetica, ampliandoaindamaisa ideiada “humanidade”dos sereshumanos, ao adicionar às faculdades racionais as da sensibilidade e doimpulso criativo. Em suma, emergiu uma visão do “homem” que, nosduzentos anos seguintes, deveria servir de eixo em torno do qual iriamgirarasimagensdomundo.

Aquela era uma nova visão, produto coletivo de uma nova iloso ia –uma iloso iaqueviaomundocomoumacriaçãohumanaeumcampodetestesparaasfaculdadesdohomem.Daíemdiante,ouniversodeveriaserentendidobasicamentecomooambienteparaatividades,escolhas,triunfose equívocos humanos. Numa tentativa de explicar o súbito aparecimentode uma novaWeltanschauung, Odo Marquard cita Joachim Ritter: derepente,ofuturofoi“desacoplado”dopassado–começouasedesenvolverapercepçãodequeumfuturocujopontodepartidaéasociedadehumananão guarda continuidade com o passado. O próprio Koselleck assinala anova experiência de uma brecha entre realidade e expectativa. Não sepoderia continuar a ser uma criatura do hábito, não se poderia maisdeduzir o estado de coisas futuro a partir de seus estágios presente epassado. Como o ritmo da mudança se acelerava a cada ano, o mundoparecia cada vezmenos algo feito à semelhança de Deus – ou seja, cadavezmenos eterno, impenetrável e refratário. Em vez disso, assumiu umaforma cada vez mais humana, tornando-se, aos poucos, algo feito “àimagem do homem” – multiforme, instável e instabilizante, caprichoso echeiodesurpresas.

Haviamaisque isso, porém:o ritmoaceleradodamudança revelava atemporalidade de todos os arranjosmundanos, e a temporalidade é umacaracterística da existência humana, não da divina. O que algumasgerações atrás teria sido uma criação divina, um veredicto contra o qualera impossível apelar em qualquer tribunal humano, agora, de formaproblemática, parecia consistir no traço característico das realizaçõeshumanas – certas ou erradas, masmortais e revogáveis. Se a impressãonão estava equivocada, então o mundo e a forma como as pessoas nele

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viviamconstituíamumatarefa,enãoalgodadoe inalterável.Dependendode como as pessoas a encarassem, era possível realizar essa tarefa demaneiramaisoumenossatisfatória.Elapodia ser feita comdesleixo,mastambém ser bem-executada, para bene ício da felicidade, da segurança edaexpressividadedaexistênciahumana.Paragarantirosucessoeevitarofracasso, era necessário começar com um cuidadoso inventário dosrecursos humanos: o que as pessoas podem fazer, se levam até o limitesuasfaculdadescognitivas,suacapacidadelógicaesuadeterminação.

Essa era, em resumo, a premissa da novaWeltanschauung, dohumanismomoderno,sobreoqualJohnCarrollescreveu:

EletentousubstituirDeuspelohomem,colocarohomemnocentrodoUniverso.…Suaambiçãoera encontrar uma ordem humana sobre a Terra, na qual prevalecessem a liberdade e afelicidade,semapoiostranscendentaisousobrenaturais–umaordeminteiramentehumana.…Mas,paraqueoindivíduosetornasseopontofocaldoUniverso,eledeveriaterumlugarparaseapoiarquenãosemovessesobseuspés.Ohumanismoprecisavaconstruirumarocha.TinhadecriardonadaalgotãofortequantoafédoNovoTestamento,capazdemovermontanhas.2

EmLegisladoreseintérpretes,procureiasraízescomunsearessonânciamútua, a “a inidade eletiva”, entre o novo desa io que confrontava osadministradores da vida social – a tarefa de substituir a desintegradaordem divina ou natural das coisas por uma ordem feita pelo homem,arti icial,debaselegislativa–eapreocupaçãodos ilósofosemsubstituirarevelação pela verdade de base racional. As duas preocupações emessênciamodernaseintimamenteinterligadasconvergiamnumaterceira–apragmáticadaconstruçãodaordem,envolvendoatecnologiadocontrolee da educação comportamentais: a técnica da moldagem da mente e davontade.Essestrêsinteressesentãorecém-chegados,emborapenetrantese irresistíveis, deveriam juntar-se e fundir-sena ideia de “cultura” – estaúltima considerada, ao lado daGeschichtsphilosophie, da antropologia e daestética,umdosmarcosda“passagemnamontanha”doséculoXVIII,talvezomaisnotávelentreeles.

OquelevouopensamentodoséculoXVIIàpassagemnamontanhafoiadúvidacorrosivaquantoà idedignidadedasgarantiasdivinasdacondiçãohumana. Veredictos inegociáveis do poder supremode repente pareciamsedimentos, por vezes da sabedoria humana, por vezes da ignorância oudaestupidez.Odestinoinapelável,predeterminadonoinstantedaCriação,começou a parecer mais um momento na história – uma realizaçãohumana e um desa io à inteligência e à vontade do homem; não umaquestão de abrir e fechar, mas um capítulo inacabado esperando ser

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concluído pelos personagens da trama. Em outras palavras, por sob osmeandrosdodestinohumanoforavislumbradaaautodeterminação.

A liberdade de autodeterminação é uma bênção – e uma maldição.Estimulante para o ousado e diligente, atemorizante para o fraco – deespírito, de braços ou de vontade.Mas não é só isso. A liberdade é umarelaçãosocial:paraquealgunssejamlivresa imdeatingirseusobjetivos,outros devem ser não livres no que se refere a opor resistência aosprincípios.Aliberdadedeumapessoapodeserdesconcertante,jáqueestáimpregnada do risco de erro. Mas a liberdade dos outros parece, àprimeiravista,umobstáculoperigosoà liberdadedeaçãodeumapessoa.Aindaquealiberdadedealguémpossasercontempladacomoumabênçãoindubitável, a perspectiva de liberdade ilimitada para todos os outrospoucas vezes é agradável. Mesmo para os mais ardentes entusiastas daautodeterminação humana, a noção de “restrições necessárias”dificilmentefoialgoestranho.

Emsuamanifestaçãomaisradical,incorporadanaideiadeemancipaçãoe transcendência, a apoteose da liberdade humana era uma regracomplementada pela preocupação com os limites que precisavam serimpostos às ações dos protagonistas. O que era orgulhosamenteapresentado como um exercício do livrearbítrio, no caso de uma pessoa,tendia a ser considerado esquisitice, irresponsabilidade, preconceito ouapenas um capricho mal-intencionado quando percebido comopossibilidadeuniversalmentedisponível.OsarautosdoduplopadrãonemsempreousaramirtãolongequantoNietzsche,supostamenteprotofascista(“agrandemaioriadoshomensnãotemdireitoàexistência,massãoumadesgraça para os homens superiores” 3), ou quanto o socialistaH.G.Wells(“os enxames de pessoas pretas, e pardas, e brancas sujas, e amarelas”quenãoatingemoselevadoscritériosestabelecidosparaaautoa irmaçãohumana “devem ir embora” 4). Mas ninguém teria dúvida quanto ànecessidadedeamarrarasmãosdaquelesemquemnãosepodeconfiar.

A ideia de cultura que entrou em uso perto do im do século XVIIIre letia de modo iel essa ambivalência de atitudes. O caráter de doisgumes – simultaneamente “permitindo” e “restringindo” – da cultura,sobre o qual muito se tem escrito nos últimos anos, na verdade estavapresente desde o começo. Num modelo “universalmente humano” decultura,duascaracterísticasmuitodiferentesdohomemsefundiramnumacondição conjunta; assim, desde o início, houve um paradoxo endêmico aessanoção.

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Oconceitodeculturafoicunhadoparadistinguirecolocaremfocoumaáreacrescentedacondiçãohumanadestinadaaser“subdeterminada”,oualgo que não podia ser plenamente determinado sem a mediação dasescolhas humanas: uma área que, por essa razão, abriu espaço para aliberdade e a autoa irmação. Mas o conceito devia signi icar, a um sótempo,omecanismoquepermitiaoempregodessamesmaliberdadeparalimitar o escopo, cercar escolhas potencialmente in initas num padrãoinito, compreensível e administrável. A ideia de “cultura” serviu parareconciliar toda uma série de oposições enervantes pela suaincompatibilidade ostensiva: entre liberdade e necessidade, entrevoluntário e imposto, teleológico e causal, escolhido e determinado,aleatórioepadronizado, contingenteeobedienteà lei, criativoe rotineiro,inovador e repetitivo – em suma, entre a autoa irmação e a regulaçãonormativa. O conceito de cultura foi planejado para responder àspreocupações e ansiedades da “era da passagem na montanha” – e aresposta se mostrou tão ambígua quanto eram ambivalentes as a liçõesnascidasdessasansiedades.

Autores que tiverama cultura como tema izeramumesforço honestoparaeliminaraambiguidade.Semsucesso,porém,jáqueaideiadeculturacomo “determinação autodeterminada” deve seu atrativo intelectualexatamente à ressonância de sua ambivalência interna com asambivalênciasendêmicasdacondiçãomoderna.Issonãofazmuitosentido,a menos que se tente “fundamentar” a liberdade e a falta dela. A esserespeito, ela tende a compartilhar a qualidade de “inconclusivibilidade”com opharmacon (suplemento) de Derrida, ao mesmo tempo veneno ecura;oucomohymen,simultaneamenteavirgindadeesuaperda.

Odiscursodaculturatornou-sefamosoporfundirtemaseperspectivasqueseajustamcomdi iculdadenumanarrativacoesaenãocontraditória.O volume de “anomalias” e incongruências lógicas teria há muito feitoexplodir omais resistentedos “paradigmas”kuhnianos.Édi ícil conceberumdiscursoquepudesse ilustrarmelhoraobservaçãodeFoucaultsobreacapacidadedasformaçõesdiscursivasdegerarproposiçõesmutuamentecontraditóriassemsedesintegrar.

Trinta anos atrás, tentei desemaranhar as incoerências evidentes nosusosde“cultura”separandotrêscontextosdiscursivosdistintosemqueoconceito se enredava. Nessa tentativa, parti do pressuposto de que asincoerências em questão eram em princípio corrigíveis. Fui guiado pelacrença de que elas haviam surgido de falhas sobretudo analíticas, e pela

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esperançadeque,comodevidocuidado,aconfusãodecategoriasdistintasocultas por trás de um só termo poderia ser evitada e prevenida. Aindaachoquemanteradistinçãoentreesses trêsconceitosqueoferecem trêssigni icadoscorrelatos,porémdiferentes,paraa ideiadeculturacontinuaa ser condição básica para qualquer tentativa de esclarecer o tema dadiscordância. Contudo, não creio mais que essa operação acabe poreliminar a ambivalência que o discurso da cultura necessariamenteencerra. Mais importante ainda: não acho que a eliminação de talambivalência, se ela for ao menos concebível, seria uma coisa boa,reforçando,porassimdizer,autilidadecognitivadotermo.Acimadetudo,nãoaceitomaisqueaambivalênciaquede fato importa–aqueprimeirome estimulou a dissecar o complexo signi icado de cultura, mas não foiafetada pela operação e continuou a ser um alvo fugidio – tenha sido oefeito acidental de uma negligência ou de um erro metodológicos. Creio,pelo contrário, que a ambivalência inerente à ideia de cultura, a qualre letia ielmente a ambiguidade da condição histórica que ela pretendiacaptar e descrever, era o que tornava essa ideia um instrumento depercepçãoereflexãotãoproveitosoepersistente.

A ambiguidade que importa, a ambivalência produtora de sentido, oalicerce genuíno sobre o qual se assenta a utilidade cognitiva de seconceber o hábitat humano como o “mundo da cultura”, é entre“criatividade” e “regulação normativa”. As duas ideias não poderiam sermaisdistintas,masambasestãopresentes–edevemcontinuar–naideiacompósita de “cultura”, que signi ica tanto inventar quanto preservar;descontinuidade e prosseguimento; novidade e tradição; rotina e quebrade padrões; seguir as normas e transcendê-las; o ímpar e o regular; amudançaeamonotoniadareprodução;oinesperadoeoprevisível.

A ambivalência central do conceito de “cultura” re lete a ambiguidadeda ideia de construção da ordem, esse ponto focal de toda a existênciamoderna.Aordemconstruídapelohomeméinimaginávelsemaliberdadehumana de escolher, a capacidade humana de se erguer acima darealidade pela imaginação, de suportar e devolver suas pressões.Inseparável,contudo,da ideiadeumaordemconstruídapelohomemestáopostuladodequeessaliberdadedevea inalresultarnoestabelecimentode umarealidade a que não se possa resistir – na noção de que aliberdadedeveráserempregadaaserviçodesuaprópriaanulação.

Essacontradição lógicadaideiadeconstruçãodaordemé,porsuavez,re lexo da genuína contradição social constituída pelaprática dessa

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construção.“Ordem”éoopostodealeatoriedade,signi icaoestreitamentodoleque

de possibilidades. Uma sequência temporal será “ordenada”, e nãoaleatória,àmedidaquenemtudopossaacontecer,oupelomenosquenemtudo tenha a mesma possibilidade de acontecer. “Construir a ordem”signi ica,emoutraspalavras,manipularasprobabilidadesdoseventos.Seoquesedeveordenaréumconjuntodesereshumanos,atarefaconsisteemincrementaraprobabilidadedecertospadrõesdecomportamento,aomesmo tempo que se restringe, ou se elimina totalmente, a possibilidadede outros tipos de conduta. Essa tarefa envolve dois requisitos: primeiro,deve-se projetar uma distribuição ótima das probabilidades; segundo,deve-se garantir a obediência às preferências projetadas. O primeirorequisito pressupõe a liberdade de escolha; o segundo signi ica sualimitação,oumesmosuaeliminaçãototal.

Os dois requisitos foram projetados sobre a imagem de cultura. Agenuínaoposiçãoentreascondiçõesdelegislareserlegislado,administrare ser administrado, estabelecer regras e segui-las (sedimentada emdivisões sociais igualmente genuínas de papéis e potenciais para a ação)tinha de ser subsumida, resolvida, superada e obliterada num únicoconceito:umprojetoincapazdeserconcluídocomsucesso.

A ideiadecultura foiuma invençãohistórica instigadapelo impulsodeassimilar, do ponto de vista intelectual, uma experiência inegavelmentehistórica.E,noentanto,aideiaemsinãopodiaapreenderessaexperiênciadeoutramaneirasenãoemtermossupra-históricos,dacondiçãohumanacomotal.Ascomplexidadesreveladasnocursodoconfrontodeumatarefahistoricamente determinada de construção da ordem (nenhumadeterminação se impõe, como assinalou Gadamer, a menos que sejareconhecida como tal) foram elevadas à categoria de paradoxosexistenciais da humanidade, por meio da ideia de cultura comopropriedadeuniversaldetodasasformashumanasdevida.

Como nos lembra Paul Ricoeur, “paradoxo” compartilha com“antinomia” a característica da insolubilidade: em ambos os casos, “duasproposiçõescontráriasresistemcomigual irmezaàrefutaçãoe,assim,sópodem ser aceitas ou rejeitadas em conjunto”. Mas paradoxo difere deantinomia porque, neste caso, as duas teses em questão se ancoram nomesmo “universo discursivo”. Nesse sentido, pode-se falar daparadoxicalidade incurável da ideia de cultura formada no limiar da eramoderna,emboraprojetadasobreacondiçãohumanadetodasasépocas,

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já que ideias inconciliáveis assimiladas nesse conceito aparecem a partirdamesmaexperiênciahistórica.

O paradoxo que surge no universo do discurso cultural é entreautonomia evulnerabilidade – ou, comoprefereRicoeur, fragilidade.O serhumanoautônomosópodeserfrágil.Nãoépossívelhaverautonomiasemfragilidade (ou seja, sem a ausência de uma formação sólida, semsubdeterminaçãoecontingência).A“autonomiaéumacaracterísticadoserfrágil, vulnerável”. Observemos que o íntimo vínculo entre autonomia efragilidade só se torna um “paradoxo” quando concebido como umproblema da iloso ia, que tende, por sua natureza, a procurarEindeutigkeit (não ambiguidade), lógica, coerência e clareza num mundoquenãotemqualquerdessascaracterísticas,ea tratar todaambivalênciacomo um desa io à razão. Quando visto como um problema ilosó ico, oparentesco entre autonomia e vulnerabilidade apresenta um problemaexasperante:asfigurasdavulnerabilidadeedafragilidade

são portadoras de marcas particulares, adequadas à nossa modernidade, que di icultam odiscurso ilosó ico, condenando-o a misturar considerações da condição moderna e atéextremamente contemporânea com características que podem ser tratadas, quando não comouniversais,aomenoscomodelongaoumesmomuitolongaduração.5

Podemosacrescentarqueoquetornaparticularmentepoucopromissorotratamento ilosó icodispensadoaotemadaautonomia/fragilidadeésuarecusa a levar a sério a história (como acausa da “condição humana”, enão como ocaso que a exempli ica); recusa que traz em seu interior atendência a encobrir contradições sociológicas que se re letem emparadoxos lógicos. Falando do ponto de vista sociológico, o parautonomia/fragilidadere leteapolarizaçãodecapacidadee incapacidade,desenvoltura e falta de expediente, poder e falta de poder deautoa irmação.Essencialmentemodernaéacondiçãoemqueolugarentreos dois polos que assinalam o continuum ao longo do qual todos osindivíduoshumanos sãoposicionadosnunca éplenamente “estabelecido”,estando sempre sujeito a negociação e luta. É destino dos indivíduosmodernos–livrese,portanto,subdeterminados–,subconstituídoseassimdestinadosàautoconstituição,oscilarentreosextremosdaforçaedafaltadepoder,eassimpercebersualiberdadecomouma“bênçãodúbia”,umamodalidadesaturadadeambivalência.

Quandotraduzidacomoproblema ilosó ico,aambivalênciarealdavidase torna um paradoxo lógico. Não há mais a questão de enfrentar a

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ambivalência que estrutura o luxo da vida real. Em vez disso, há oproblemaderefutarumparadoxoqueofendealógica.ComodizRicoeur:

Inúmeros pensadores contemporâneos, em particular cientistas políticos, veem a era dademocracia como algo que teve início com a perda de garantias transcendentais, que deixoupara arranjos contratuais e procedimentais a tarefa de preencher o “vácuo fundamental”. …[Entretanto, eles] não podem evitar situar-se, em certo sentido, após os alicerces, após um bigbang moral – e assumindo o fenômeno da autoridade com seus três membros que são aantecedência,asuperioridadeeaexternalidade.6

O impulso dos ilósofos para abrandar no pensamento acontraditoriedade da vida é poderoso e tende a jamais perder muito desua potência. As contradições repercutem como paradoxos: espinhosdolorosos na carne da iloso ia – esse projeto hercúleo de reconstruir omundo confusoda experiência humana segundoo padrãode elegância eharmoniaencontradoapenasnaserenaregularidadedopensamento.

Oconceitodeculturacomportatodasasmarcasdesseimpulsofilosófico.Incorporaavisãodamodernacondiçãohumanajárecicladaemparadoxológico. Seu objetivo é superar a oposição entre autonomia evulnerabilidade, concebidas comoproposições – enquanto encobre acontradiçãoda“vidareal”entreoautônomoeovulnerável:entreatarefadaautoconstituiçãoeofatodeserconstituído.

Como o esforço de resolver o paradoxo não produzisse resultadosconvincentes, não surpreende que tenha nascido outra tendência paraseparar as duas proposições desconfortavelmente enredadas – esquecerou colocar em segundo plano a origem comum e a comunalidade dodestino, elevar o insolúvelparadoxo de duas qualidades incompatíveisbrotando das mesmas raízes ao status deantinomia entre duas forçasmutuamente estranhas e não relacionadas. É uma guerra travada entreexércitos distintos, e, portanto, uma guerra capaz, em princípio, de serganha ou perdida, de terminar com a derrota ou o desgaste inal de umdosantagonistas.Ideiasquenãopodemserfacilmentecombinadasnumsóconceito tendem a exercer uma pressão centrífuga, e cedo ou tardeexplodemumatotalidadequeéfrágil.

Nãoadmiraquedoisdiscursosdiferentesenão facilmenteconciliáveissetenhamrami icadoapartirdeumtroncocomum,afastando-secadavezmais. Em suma: um discurso gerou a ideia de cultura como atividade doespírito que vaga livremente, o lócus da criatividade, da invenção, daautocrítica e da autotranscendência; o outro apresentou a cultura comoinstrumentodarotinizaçãoedacontinuidade–umaservadaordemsocial.

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Oprodutodoprimeirodiscursofoianoçãodeculturacomocapacidadederesistirànormaedeseelevaracimadocomum–poïesis, arte, criaçãoabnihilo à semelhança deDeus. Signi icava aquilo que, presumivelmente,distinguia os espíritos mais ousados, menos submissos e conformistas:irreverência em relação à tradição, coragem de romper horizontes bem-delineados,ultrapassar fronteirasbem-guardadase revelarnovas trilhas.Assim entendida, era possível possuir ou não a cultura; ela erapropriedadedeumaminoria,eassimestavadestinadaacontinuar.Paraorestodahumanidade, elavinha,namelhordashipóteses, soba formadeum presente: sedimentava “obras de arte”, objetos tangíveis que podiamser adquiridos ou, pelo menos, compreendidos para ser apreciados poroutros seres, não criativos. Esforços para aprender como estimar osprodutos da alta cultura não tornariam esses seres criativos – elescontinuariam, tal como antes, recipientes mais ou menos passivos(espectadores, ouvintes, leitores). Mas, ao ganhar de forma oblíqua umacompreensão do mundo arcano da alta cultura, os membros da maiorianão criativa se tornariam, não obstante, “pessoas melhores” – passandoporumprocessodeelevação,intensificaçãoeenobrecimentoespirituais.

O produto do segundo discurso foi a noção de cultura formada eaplicada na antropologia ortodoxa. Nela, “cultura” queria dizerregularidade e padrão – com a liberdade classi icada sob a rubrica de“desvio” e “rompimento da norma”. Cultura era um agregado ou,melhorainda, um sistema coerente de pressões apoiadas por sanções, valores enormas interiorizados, e hábitos que asseguravam a repetitividade (eportanto a previsibilidade) da conduta noplano individual e amonotoniadareprodução,dacontinuidadenodecorrerdotempo,da“preservaçãodatradição”,damêmeté,deRicoeur,noplanodacoletividade.“Cultura”,nessesentido,queriadizer,emoutraspalavras,“preencherovazio”deixadopelodesaparecimento da ordem preordenada (seja como experiência factual,seja como arti ício explanatório). Ela transmitia uma imagem de escolhasvoláteis, indeterminadas, solidi icando-se em fundações. Implicava a“naturalização” da ordem arti icial, construída pelo homem. Contava ahistória do modo como uma espécie destinada à liberdade usava-a parainvocar necessidades não menos poderosas e resistentes que as da“natureza” cega, desprovida de propósito. A narrativa antropológicaortodoxa da “cultura” surgiu, no período inicial da era moderna,caracterizadoporum “pânico à ordem”, aomesmo tempo como teoria dacoerênciasocialeumapólogo.

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Asduasnoçõesdeculturaestavamemtotaloposição.Umanegavaoquea outra proclamava; uma se concentrava nos aspectos da realidadehumana que a outra apresentava como impossíveis ou, na melhor dashipóteses, comoanormalidades.A “cultura artística” explicavapor que osmeios e métodos humanos não permanecem; a cultura da antropologiaortodoxa, pelo contrário, explicava por que eles são duradouros,obstinados e tremendamentedi íceis demudar.Aprimeira era a históriada liberdadehumana,daaleatoriedadeecontingênciadetodasas formasde vida produzidas pelo homem; a segunda atribuía à liberdade e àcontingência papel semelhante ao dosmitos etiológicos, concentrando-se,emvezdisso,nasmaneiraspelasquaisseupoderdedestruiçãodaordeméesvaziadoesemconsequências.

Foiasegundahistóriaqueprevaleceunasciênciassociaispormaisoumenos um século. Ela alcançou sua versãomais ampla (como seria de seesperar, exatamente quando estava para entrar em colapso e perder aautoridade)nomonumental sistema teóricodeTalcott Parsons, emque aculturaganhouopapeldefator“desaleatorizante”.

Parsons reescreveu a história da ciência social comouma sucessãodetentativasfracassadasderesponderàperguntahobbesiana:comoagenteshumanos voluntários, dotados de livre-arbítrio e buscando seus objetivosaparentemente individuais e livremente escolhidos, não obstante secomportamdemaneiranotavelmenteuniformeeregular,demodoquesuaconduta “siga um padrão”? Na busca de uma resposta adequada a essapergunta perturbadora, a irmou Parsons, a cultura é chamada adesempenhar o papel decisivo de meio que garante o “ajuste” entresistemas “sociais” e de “personalidade”. “Sem a cultura, nem aspersonalidadeshumanasnemnossos sistemas sociais seriampossíveis” –eles são possíveis apenas em coordenação mútua, e a cultura éprecisamente o sistema de ideias ou crenças, de símbolos expressivos eorientaçõesdevalor,quegaranteaperpetuidadedessacoordenação.

Asseleções [deorientaçõesdevalor]são,evidentemente, sempreaçõesde indivíduos,maselasnão podem ser interindividualmente aleatórias num sistema social. Com efeito, um dos maisimportantesimperativosfuncionaisdamanutençãodossistemassociaiséqueasorientaçõesdevalor de diferentes atores nomesmo sistema socialdevemser integradas, em alguma medida,numsistemacomum.…Ocompartilhamentodeorientaçõesdevaloréespecialmentecrucial.…Aregulação de todos esses processos de alocação e o desempenho das funções que mantêm osistemaousubsistemaemfuncionamentodemaneirasu icientementeintegradasão impossíveissemumsistemadedefiniçãodepapéisesançõesparaaconformidadeouodesvio.7

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“Não pode ser”, “deve ser”, “é impossível”. Não fosse pela funçãocoordenadora desempenhada por valores, preceitos e normas atribuídas,todoscompartilhadoseconsensualmenteaceitos(istoé,pelacultura),nãose pode imaginar qualquer tipo de vida ordenada (ou seja, nenhumsistemadurável,capazdeseequilibrareperpetuar,assimcomodemantersuaidentidade).Aculturaéopostodeabastecimentodosistemasocial;aopenetrar nos “sistemas de personalidade”, no curso dos esforços demanutenção de padrões (ou seja, sendo “internalizada” no processo de“socialização”), ela garante a “identidade consigo mesmo” do sistema aolongo do tempo – “mantém a sociedade funcionando” em sua formadistintamentereconhecível.

AculturadeParsons,emoutraspalavras,éoque tornaoafastamentode um padrão estabelecido algo impossível, ou pelo menos altamenteimprovável.Aculturaéumfatorimobilizante,“estabilizador”.Elaestabilizatãobemque,amenosqueocorram“disfunções”,todamudançadepadrãoéinacreditável,eaocorrênciaconcretadealgumamudançaéumquebra-cabeça que não pode ser resolvido utilizando-se o arcabouço da mesmateoriaque tratada inérciado sistema.Nadescrição idealtípicada culturaem termos de “deves” e “só podes”, não havia lugar para a alteração depadrões consagrados. Explicar a mudança era o evidente calcanhar deaquiles da versão parsoniana (e a mais de initiva) da visão ortodoxa decultura.Masfoielaquecolocouemrelevooqueforaafraquezaessencialdaabordagemantropológico-culturaldaépoca.

Essa fraqueza acabou eliminando toda esperança de escapar aoparadoxodaculturaquedivideamoedaaomeioeseguraseparadamentecadaumadasfaces.Oatualestadodeteorizaçãodaculturare leteanovadeterminação(ouacordoresignado)deenfrentaroparadoxoemtodasuacomplexidade, em toda a ambivalência de habilitar/desabilitar, deliberdade/restrição.

Tal comoocorreu com tantas ideias “novas” em teoria social, foiGeorgSimmel quem – muito antes da tentativa de Parsons, abortada eautodestrutiva, de superar o paradoxo reduzindo a imagem da culturaapenas a uma de suas faces inseparáveis – anteviu a inutilidade dessastentativas;eletambémpreviuanecessidadedeumateorizaçãodaculturaque pudesse abarcar a ambivalência endêmica do modo existencial daculturasemtentarnegá-lanemreduzi-laaumsimpleserrodemétodo.

Simmelpreferiu falarda tragédia – enãodoparadoxo–da cultura.Aseu ver, o símile mais adequado para lidar com os mistérios da cultura

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deveria ser extraído do universo do drama grego e não do emaranhadológico.Defato,nomododeexistênciahumano,duasforçasformidáveisseopõem num contraste radical: “A vida subjetiva, que é agitada, mastemporalmente inita, e seus conteúdos, que, uma vez criados, sãoestacionários, mas de validade atemporal. … A cultura vem a ser criadapelo encontro dos dois elementos, nenhum dos quais a contém por simesmo.”8 O que transformaodrama em tragédia real é o fatode os doisadversários serem parentes próximos. O “estacionário e de validadeatemporal”descendedo“agitadoe inito”–nadamaisqueacaracterísticasolidi icada, “rei icada”, dos trabalhos autoexpressivos do primeiro; masSimmel confronta seu progenitor, à maneira de Electra, como uma forçaestranha,hostil.Oimpulsoemancipatóriogerouarepressão,ainquietaçãorepercute na ixidez: o espírito rebelde e indomável cria seus própriosgrilhões.

Falamosdeculturasemprequeavidaproduzcertasformaspelasquaisseexpressaeserealiza– obras de arte, religiões, ciências,tecnologia, leis e uma in inidade de outras. Essas formasabrangem o luxo da vida e lhe fornecem conteúdo e forma, liberdade e ordem.Mas emborasurjam a partir dos processos da vida, em função de sua singular constelação, elas nãocompartilham seu ritmo agitado. … Adquirem identidades estáveis, uma lógica e umalegitimidadepróprias.Essanovarigidezascolocainevitavelmenteacertadistânciadadinâmicaespiritualqueascriouequeastornaindependentes.…

Eisaíaprincipalrazãopelaqualaculturatemumahistória.…Cadaformacultural,umavezcriada,éconsumidaaritmosvariáveispelaforçadavida.

Abatalhajamaiscessa–éomododevidaprópriodetodasasculturas.A sedimentação das formas e sua erosão caminham de par, emboraobedeçama“ritmosvariáveis”;e,assim,oequilíbrioentreosdoisaspectosdoprocessoculturalmudadeumaépocaparaoutra.Nossaprópriaépoca– amoderna –, segundo Simmel, é marcada por uma particular agitaçãodas forças da vida: “O impulso básico da cultura contemporânea é umimpulso negativo, e é por isso que, ao contrário dos homens em todas asépocas anteriores, já temos vivido por algum tempo sem qualquer idealcomum,talvezmesmosemquaisquerideais.”9

Fica-seimaginandoporqueéassim.Talvezamodernabuscadaordem–o salto corajoso, autoconsciente,da temporalidadeàatemporalidade,dainquietação à ixidez – seja autodestrutiva. Se nenhuma “forma estável”podea irmar teralgumalicercealémdaqueleque lhe foidadopela forçacriativahumana,entãoéimprovávelquealgumaforma,qualquerqueseja,venhaaatingirostatusdeum“ideal”–nosentidodeum“estado inal”,ou“derradeiro objetivo”, que, uma vez alcançado, interrompesse toda crítica

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das formase levassea “vida subjetiva” e “seus conteúdos” a coexistir empaz. Quanto mais autoconsciente, determinado e desembaraçado é oimpulso de construção da ordem,mais visível é amarca de nascença dafragilidadequeportamseusprodutos;quantomaisfrágeisparecemserosprodutosdaautoridade,menos“atemporal”semostrasuafixidez.

AtragédiadaculturadeSimmel,comotodasastragédias,carecedeuminalfeliz.Comotodasastragédias,elacontaahistóriadeatoresgolpeadosporforçasquesetornamcadavezmaisselvagensquantomaiselestentamdomá-las, guiados por um destino que não controlam. Em termos maisprosaicos,porémnãomenosdramáticos,asideiasseminaisdeSimmelsãoagora pesquisadas por todo o campo das ciências sociais – sobretudo nomodelo desociedade de risco, de Ulrich Beck, e na ideia deincertezafabricada, de Anthony Giddens. Ou, nesse sentido, na visão de CorneliusCastoriadis sobre a democracia moderna como um “regime dere lexividadeeautolimitação”,comoumasociedadequesabe,devesaber,quenãotemsigni icaçãogarantida,quevivesobreocaos,queelaprópriaéocaosqueprecisadarasimesmoumaforma,formaestaquenãopodeserestabelecidadeumavezportodas.10

Pararesumir:acultura,comotendeaservistaagora,étantoumagenteda desordem quanto um instrumento da ordem; um fator tanto deenvelhecimentoeobsolescênciaquantodeatemporalidade.O trabalhodaculturanãoconsistetantoemsuaautoperpetuaçãoquantoemgarantirascondiçõesparafuturasexperimentaçõesemudanças.Oumelhor,aculturase “autoperpetua” na medida em que não o padrão, mas o impulso demodi icá-lo, de alterá-lo e substituí-lo por outro padrão continua viável epotente com o passar do tempo. O paradoxo da cultura pode ser assimreformulado: o que quer que sirva para a preservação de um padrãotambémenfraqueceseupoder.

Abuscadaordemtornatodaordem lexívelemenosqueatemporal;aculturanadapodeproduziralémdamudançaconstante,emborasópossaproduzir mudança por meio do esforço de ordenação. Foi a paixão pelaordemnascidadomedodo caos– assimcomoadescobertada cultura, apercepçãodequeodestinodaordemestáemmãoshumanas–quelevouo mundo humano a uma era de ininterrupto e acelerado dinamismo deformas e padrões. Na busca de ordem eEindeutigkeit, a ambivalência daliberdadeencontrouométodopatenteadodesuaprópriapreservação.

Sistemaoumatriz?

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A imagem da cultura como uma o icina em que o padrão estável desociedade é consertado e mantido harmonizava-se com a percepção detodas as coisas culturais – valores, normas comportamentais, artefatos –estruturadasnumsistema.

Aofalardeumgrupodeitenscomoum“sistema”,temosemmentequetodosos itensestão“interconectados”–ouseja,queoestadodecadaumdeles depende dos estados que todos os outros assumem. A gama devariaçõespossíveisnoestadodecadaitemé,portanto,mantidadentrodecertos limites impostospelaredededependênciasemqueestáenvolvido.Enquantoesseslimitesforemobservados,osistemaestará“emequilíbrio”:manterá a capacidade de retomar sua forma adequada, preservar suaidentidade,apesardosdistúrbioslocaisetemporais,eimpediráquetodaequalquerunidadeatinjaumpontosemretorno.Enquantopermaneceremdentro do sistema, todos os itens (unidades, ingredientes, variáveis)tenderãoaseconservarunidosnaredededeterminaçãorecíprocaeasemanter na linha, pois do contrário irão transgredir o limite permitido edesequilibrar o todo. Ou, para reformular a mesma exigência de formanegativa, nenhum item que não sejamantido na linha, ou que não possaser colocado na linha quando necessário, será ou poderá ser parte dosistema. Em sua essência, a sistematicidade é a forma de subordinar aliberdadedoselementosà“manutençãodepadrão”datotalidade.

Do que se a irmou depreende-se que, para atender aos critérios dasistematicidade, o conjunto de itens precisa ser circunscrito – deve terfronteiras.Sósepodefalardesistemaquandosempreforpossíveldecidirqueitemlhepertenceequalestáforadele.Sistemasnãogostamdeáreasinde inidas nem de terras de ninguém. É preciso vigiar as fronteiras,limitaresobretudocontrolarosmovimentosquenelasedão;aexistênciade passagens de fronteira sem controle equivale ao colapso do sistema.Elementosdeforapodemtersuaentradapermitidanosistemasobcertascondições:devempassarporumprocessodeadaptaçãoouacomodação –umamodi icaçãoqueos torne “ajustados” ao sistema, permitindoque eleo sassimile. A assimilação é uma via de mão única: é o sistema queestabeleceasregrasdeadmissão,projetaosprocedimentosdeassimilaçãoe avalia os resultados da adaptação – e continua a ser um sistemaenquanto for capaz de fazê-lo. Para os recém-chegados, assimilaçãosigni ica transformação,enquantoparao sistemasigni ica rea irmaçãodesuaidentidade.

Em tese, houve uma mistura de experiências heterogêneas que se

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combinaramnessaimagemdaculturacomoumatotalidadeencerradaemsi mesma, à maneira de um sistema. Pode-se supor que esse casamentocomplicadodavisãodosdedentrocomadosde foraeranecessáriaparaquesepudesseinvocaravisãosistêmica.

Essa perspectiva foi umproduto da prática dos antropólogos culturaiscriada por BronislawMalinowski, de visitar as “populações nativas” comummodo de vida evidentemente distinto do seu; imergir nas atividadescotidianas,registrarosmeiosemodosnativosetentar“extrairumsentido”deles, encaixando cada um dos hábitos ou ritos observados, ou relatadospor “informantes”, numa totalidade abrangente de rotinas que,supostamente, tornam o modo de vida investigado viável e capaz de seautoperpetuar.

A primeira visão baseava-se na experiência de seletividade dasociedade da própria pessoa, suas práticas de inclusão/exclusão, suaspressões assimilatórias sobre “elementos estranhos” no interior dasfronteirasdoEstado-naçãoesualutaporumaidentidadeparticular.

As duas visões estavam naturalmente disponíveis, na época em que omodelo ortodoxo de cultura se tornou predominante. Havia, contudo,numerosas áreas do globo com pouca ou nenhuma comunicação com asáreasvizinhas;populaçõesquepoderiam,semdistorcermuitoosfatos,serdescritascomototalidades fechadasemsimesmas.EhaviaEstados-naçãoque promoviam, de modo explícito e forçado, a uni icação nacional delínguas,calendários,padrõesdeeducação,versõesdahistóriaecódigosdeética juridicamente fundamentados – Estados preocupados emhomogeneizarovagoconjuntodedialetos,costumesememóriascoletivaslocais para formar um conjunto único, comum, nacional, de crenças eestilosdevida.

Talcomoeranaturalparaosexploradoresculturaisdaépocapresumir,literalmente, que todas as populações devem ter se preocupado com osproblemas conhecidos a partir das práticas domésticas dos própriosexploradores, também é natural para nós duvidar da credibilidade das“totalidades” semelhantes a sistemas invocadaspela antropologia culturalortodoxa.Édi ícilsaberaocertoseaclassi icaçãodasculturasexploradascomo sistemas era uma ilusão de ótica estimulada por umponto de vistatransitório e historicamente concebido, ou uma percepção adequada deuma realidade agora distante. Qualquer que tenha sido o caso, essaimagem se choca de modo estridente com nossa experiência atual desímbolos culturais que lutuam livremente; da porosidade das fronteiras

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quealgumaspessoasgostariamdefechar,emboranãosejamcapazes;edegovernosdeEstadoquepromovemativamente o “multiculturalismo”, nãomais interessados em privilegiar algum modelo particular de culturanacional, mas preocupados em não infringir qualquer das incontáveis“opções culturais” individual ou coletivamente assumidas. Sobre a Françaatual – terra em particular famosa no passado por governos queequiparavamacidadaniaeacondiçãodeEstadoàculturanacional–,MarcFumarolicomentoudemaneiraácidaque

aindasefaladesociedadefrancesa,depolíticaculturalfrancesa;porém,esseadjetivonãoémaisqueumtermodeconveniênciaqueserveparadenotaropresenteimediato,assimcomoo luxoagregadodemodismoseopiniõesregistradospelaspesquisasdeopinião.…Nãoénemumlugarnemumambiente–apenasumazona.Emvezde falardaFrança, falamosdecultura–mesmoqueessetermosejaapenasumsubstitutopara“Babel”,estemuitomaisvulgar.…

A palavra “cultura” se tornou um enorme conglomerado composto de “culturas”, cada qualem igualdadedecondiçõescomtodasasoutras.…O“Estadocultural”,emboraaspirandoaserum Estado nacional, também deseja ser tudo para todo mundo, um Estado-fantoche e atécamaleônico,seguindoosfluxoserefluxosdosmodismosedasgerações.11

À luzdaexperiênciaagora comum,pareceplausívelque, tendohavidoounãouma cultura “de tipo sistema”, a possibilidade (e a probabilidade)de perceber os fenômenos culturais como constituindo uma totalidadecoesaefechadaemsimesma(um“sistema”,nosentidoantesdescrito)foiumacontingênciahistórica.Temosagoraaoportunidadedecompreendermelhor do que antes o verdadeiro signi icado da observação (de restobanal)dequeosfenômenosespaciaissãosocialmenteproduzidos–eque,portanto, seu papel de separar e reunir entidades sociais tende amudarcomamudançadetécnicaseprocedimentosprodutivos.

Olhando a história em retrospecto, pode-se indagar em que medidafatores geo ísicos, fronteiras naturais ou arti iciais entre unidadesterritoriais, distintas identidades de populações eculturas, assim como adistinçãoentre“dentro”e“fora”deumaentidadesociocultural, foram,emsua essência, nada mais que derivativos conceituais dossedimentos/arti ícios materiais produzidos pelos “limites de velocidade”;ou, de modo mais geral, pelas restrições de tempo e custo impostas àliberdadedemovimentaçãopeloespaço.

Paul Virilio insinuou que, embora a declaração de Francis Fukuyamasobre o “ im da história” tenha parecido altamente prematura, hoje sepode falar com con iança cada vezmaior sobre o “ imda geogra ia”. 12 Asdistânciasnãosãomaistãoimportantesquantocostumavamser,enquantoa ideia de fronteira geo ísica é cada vez mais di ícil de se defender no

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“mundo real”. De repente parece claro que as divisões dos continentes edo globo como um todo em enclaves mais ou menos fechados ou atéautossustentáveis eram função das distâncias – tornadas forçosamentereais graças sobretudo ao caráter primitivo dos transportes e àsdificuldadeseaoscustosexorbitantesdasviagens.

Longedeserum“dado”objetivo, impessoale ísico,a “distância”éumproduto social. Sua extensão varia com a velocidade com que pode serpercorrida e, para todas as inalidades e propósitos práticos, superada(embora, numa economiamonetária, também com os custos para que seatinja essa velocidade). Todos os outros fatores socialmente produzidos,relativosàconstituição,separaçãoemanutençãodeidentidadescoletivas–tais como fronteiras entre Estados ou barreiras culturais –, parecem, emretrospecto,apenasefeitossecundáriosdessavelocidade.

As oposições entre “aqui” e “lá fora”, “perto” e “longe”, e também aoposição entre “dentro” e “fora”, registravam o grau de subjugação,domesticação e familiaridade de vários fragmentos (humanos e nãohumanos)domundocircundante.

“Dentro”éumaextrapolaçãode“estaremcasa”,caminharnumterrenoque se domina, conhecido até a evidência ou mesmo a invisibilidade.“Dentro” envolve seres humanos e coisas que são vistos, encontrados etratados, ou com os quais se interage diariamente, interligados à rotinahabitualeàsatividadesdodiaadia. “Dentro”éumespaçoemquerarasvezes, se é que alguma vez, alguém se sente prejudicado, em que lhefaltampalavras ou no qual se ica inseguro sobre como agir. “Fora” – “láfora”–,poroutrolado,éumespaçoondesevaiapenasocasionalmente,oununca se vai, emque tende a acontecer coisas quenão sepodemprevernemcompreender,diantedasquaisnãosesaberiacomoreagir,casoelasacontecessem–umespaçoondeestãocoisasdasquaispoucosesabe,deque não se esperamuito e do qual ninguém se sente obrigado a cuidar.Comparadocomaconfortávelsegurançado lar,encontrar-senumespaçoassim é uma experiência irritante; aventurar-se “lá fora” signi ica estaralém de seu horizonte, fora de seu lugar e de seu elemento, representaatrairconfusãoetemeramágoa.

Em resumo, a dimensão crucial da oposição “dentro-fora” é entrecertezaeincerteza,autocon iançaehesitação.Estar“fora”signi icaatrairetemer problemas – e exige esperteza, destreza, engenhosidade oucoragem,aprenderregrasestranhassemasquaissepassamuitobememoutros lugares, e dominá-las pormeio de tentativas arriscadas e erros

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muitas vezesdispendiosos.A ideiado “dentro”, poroutro lado, signi icaonão problemático, hábitos adquiridos sem dor e desfrutados quaseinconscientemente,habilidadesqueexigempoucare lexão–e,sendocomosão, eles parecem leves e não exigem escolhas, decerto não escolhastorturantes, não há espaço para a hesitação que gera ansiedade. O quequer que tenha sido retrospectivamente apelidado de “comunidade”costumavasertrazidoàluzporessaoposiçãoentre“bemaqui”e“láfora”,“interno”e“externo”.

A história moderna tem sido marcada pelo progresso constante dosmeios de transporte, e, portanto, do volume demobilidade. Transporte eviagens constituíram um campo de mudanças particularmente rápidas eradicais. O progresso, nesse caso, como Schumpeter indicou há muitotempo, não foi resultado damultiplicação do número de carruagens,masda invençãoeproduçãoemmassademeiosde transportenovos– trens,automóveiseaviões.Foiadisponibilidadedemeiosdeviajarquedisparouoprocessotipicamentemodernodeerodireminaras“totalidades”sociaise culturais enraizadas do ponto de vista local – o processo captado (eromantizado) pela primeira vez pela famosa fórmula de Tönnies damodernidade como passagem daGemeinschaft (comunidade) para aGesellschaft(sociedade).

Entreos fatores técnicosdamobilidade,papeldeespecialdestaque foidesempenhadopelotransportedainformação–otipodecomunicaçãoquenão envolve, senão secundária emarginalmente, omovimento de corposísicos.Desenvolveram-semeiostécnicosquepermitiramqueainformaçãoviajassedeformaindependentedeseusportadorescorpóreos,mastambémdos objetos sobre os quais ela informava: esses meios estabeleceram“signi icantes” livres da custódia dos “signi icados”. A separação entre omovimentoda informação e amudança espacial de seusportadores e deseusobjetos,porseuturno,permitiuadiferenciaçãodavelocidadededuasmobilidades. O movimento da informação ganhou velocidade numa taxaqueexcediaemmuitoaquelaqueaviagemdoscorpos,ouamudançadesituações que a informação “informava”, era capaz de alcançar. A inal, oaparecimentode uma redemundial servida por computadores pôs im –aomenosnoqueserefereàinformação–àpróprianoçãode“viagem”(ede “distância” a ser percorrida), e tornou a informação instantâneadisponível pelo globo. Os resultados gerais desse último desenvolvimentosão enormes. Seu impacto sobre a interação entre associação/dissociaçãosocialtemsidoamplamenteobservadoedescritoemdetalhes.

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Uma consequência, contudo, é em particular importante para o nossoargumento. Martin Heidegger assinalou que a “essência do martelo” sóchamanossaatenção–e,assim,se tornaobjetodecognição–quandoelequebra. Por motivos semelhantes aos sugeridos por Heidegger, agoravemoscommaisclarezadoquenuncaopapeldesempenhadoportempo,espaçoemeiosdecarregá-losnaformação,instabilidadeou lexibilidadeeno desaparecimento inal das totalidades políticas e socioculturais. Aschamadas “comunidades estritamente entrelaçadas” de outrora eram,comopodemosveragora,trazidasàluzemantidasvivaspelabrechaentrea comunicação quase instantânea dentro da pequena comunidade (cujotamanho era determinado pelas qualidades inatas da “massa cinzenta”, eportantocon inadaaoslimitesnaturaisdavisão,dacapacidadedeouviredememorizar dos seres humanos) e a enormidade de tempo e despesasnecessários para passar a informaçãoentre localidades. Por outro lado, afragilidadeeocurtotempodevidaatuaisdascomunidades,assimcomoapermeabilidade e a falta de clareza de suas fronteiras, parecem ser oresultado do estreitamento ou desaparição total dessa brecha: acomunicação dentro da comunidade perde sua vantagem sobre ointercâmbio intercomunal quandoambos são instantâneos. “Dentro” e“fora”perderamgrandepartedeseusignificado,muitoclaronopassado.

Michael Benedikt resume assim nossa descoberta retrospectiva e onovo entendimento da conexão íntima entre velocidade das viagens ecoesãosocial:

O tipodeunidade tornadopossível empequenas comunidadespelaquase simultaneidadeeocusto quase zero das comunicações porvoz natural, cartazes e pan letos se desintegra com aampliaçãodaescala.Acoesãosocialemqualquerescalaéfunçãodoconsenso,doconhecimentocompartilhado, e, sem atualização e interação constantes, essa coesão dependefundamentalmentedaeducaçãoprecoceeestritana–assimcomodamemóriada– cultura.Aflexibilidadesocial,aocontrário,dependedeumacomunicaçãoesquecívelebarata.13

Acrescentemosqueapalavra“e”naúltimasentençacitadaésupér lua.Afacilidadedeesquecereobaixocusto(assimcomoaaltavelocidade)dacomunicação são apenasdois aspectos damesma condição, e di icilmentese pode concebê-los em separado. Comunicação barata signi ica inundar,sufocar ou empurrar a informação adquirida, assim como representa arápida chegada de notícias. Mantendo-se inalterada a capacidade da“massacinzenta”desdepelomenosaerapaleolítica,acomunicaçãobaratainunda e as ixia a memória, em vez de alimentá-la e estabilizá-la. Acapacidade de retenção não é páreo para o volume de informações que

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competempela atenção. As novas informações di icilmente têm tempodesubmergir, sermemorizadas e se enrijecer numpiso sólido sobre o qualpoderão se depositar sucessivas camadas de conhecimento. Em amplamedida, em vez de se acrescentarem ao “banco da memória”, aspercepções têm início a partir de uma “tela em branco”. A comunicaçãorápida bene icia a atividade de limpar a área e esquecer, em vez deaprendereacumularconhecimento.

Talvez omais seminal dos desenvolvimentos recentes seja a diferençadecrescente entre os custos de transmitir a informação em escala local esupralocal ou global (demodo independente da “distância geográ ica” dolugar para onde você envia sua mensagem, você paga a tarifa de uma“chamada local”, circunstância tão importante culturalmente quanto dopontodevistaeconômico).Isso,porsuavez,signi icaqueainformaçãoqueacaba chegando e exigindo atenção, querendo entrar e icar (ainda quepor curto prazo) em nossamemória, tende a se originar nos locaismaisdiversose independentes.Nãoéprovável,portanto,quepossuaqualquerparafernália da “sistematicidade” – acima de tudo, coerência esequencialidade. Ao contrário, é possível que transmita mensagensmutuamenteincompatíveisouqueseanulem–emcontradiçãoagudacomas mensagens que costumavam circular dentro de comunidadesdesprovidas de hardware e software, e baseadas apenas no wetware, ou“massa cinzenta”, ou seja, com as mensagens que tendiam a reiterar ereforçar umas às outras, e assim contribuíam para o processo dememorização (seletiva). Agora não há vantagem na proximidade espacialda fonte de informação. Quanto a esse aspecto fundamental, a distinçãoentre“dentro”e“fora”perdeuosentido.

Comoa irmaTimothyW.Luke,“oespaçodassociedadestradicionaisseorganiza em torno das capacidades mais imediatas dos corpos humanoscomuns”:

Asvisões tradicionaisdaaçãomuitasvezes recorremametáforasorgânicasemsuasalusões:ocon litoeracorpoacorpo;ocombateerapalmoapalmo;a justiçaeraolhoporolho,dentepordente; o debate era face a face; a solidariedade era ombro a ombro; a comunidade era cara acara;aamizadeeradebraçosdados;eamudançaerapassoapasso.14

Essa situaçãohavia sealteradoatéumpontoalémdo reconhecimento,com o advento de meios que permitiam alongar os con litos, assolidariedades, os combates e a administração da justiça muito além doalcancedeolhosebraçoshumanos.Oespaçoentãosetornou,naspalavras

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de Luke, “processado/centrado/organizado/normalizado” – e, acima detudo,emancipadodasrestriçõesnaturaisdocorpohumano.Foi,portanto,acapacidadedaciência,avelocidadedesuaaçãoeocustodeseuusoqueapartirdeentão“organizouoespaço”:“Oespaçoprojetadoporessaciênciaéradicalmentediferente:nãodadoporDeus,masconstruído;nãonatural,mas arti icial; não mediado pelowetware, mas mediado pelo hardware;nãocomunalizado,masracionalizado;nãolocal,masnacional.”

Falandofrancamente,esseespaço–oespaçomoderno–eraoobjetodaadministração, do gerenciamento. Era o playground da autoridadeencarregadada tarefade “coordenaçãoprincipal”;decriaras regrasquetornaram o “dentro” uniforme, ao mesmo tempo que o separavam do“fora”;deapararasextremidadeseosatritosásperosentreasnormaseos padrões de comportamento existentes; de homogeneizar osheterogêneos e uni icar os diferenciados – em suma, de remodelar umagregado incoerente, transformando-o num sistema coerente. O espaçoglobal foi fatiado em domínios soberanos – territórios distintos comagências distintas e soberanas – para realizar as tarefas da autoridademoderna. As coisas que não tinham lugar nesse arranjo eram “terra deninguém”, “pessoas sem controle”, condutas fora do padrão emensagensambivalentes.A imagemdacultura comoum“sistema” segundoopadrãode um quadro gerencial era a projeção dessa tarefa/ambição degerenciamentodoespaço.

Planejado, o espaço moderno devia ser duro, sólido, permanente einegociável. Concreto e aço deviam ser sua carne; a rede de ferrovias eautoestradas,seusvasossanguíneos.Osautoresdasutopiasmodernasnãofaziam distinção entre ordem social e arquitetônica, ou entre unidades edivisõessociaiseterritoriais;paraeles–comoparaseuscontemporâneosencarregadosdaordemsocial–,achaveparaumasociedadeordeiradeviaserencontradanaorganizaçãodoespaço.Atotalidadesocialdeviaserumahierarquia de localidades cada vez mais amplas e inclusivas, com aautoridade supralocal do Estado no topo, supervisionando o todo, e elaprópriaprotegidadainterferênciacotidianapelomantodosigilooficial.

Mas esse quadro recua para o passado. Sobre o espaçoterritorial/urbanístico/arquitetônico construído, uma terceira divisão domundohumano–acibernética–seimpôscomoadventodaredeglobaldeinformações.Oselementosdesseespaço,segundoPaulVirilio,são

desprovidos de dimensões espaciais, porém estão inscritos na temporalidade singular de umadifusãoinstantânea.Apartirdaí,aspessoasnãopodemserseparadasporobstáculos ísicosoudistâncias temporais. Coma interligação de terminais de computador emonitores de vídeo, as

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distinçõesentreaquielájánãofazemsentido.15

Ociberespaçoéterritorialmentedesancorado;situa-senumadimensãodiferente, impossível de atingir, muito menos de controlar, a partir dasdimensõesemqueoperamos“poderessoberanos”daTerra.Pode-sedizerque o luxo de informações e o quadro de controle são “principalmentedescoordenados”. Se a ideia de cultura como um sistema eraorganicamente vinculada à prática do espaço “gerenciado” ou“administrado” em geral, e emparticular de sua versão de Estado-nação,ela não se sustenta mais nas realidades da vida. A rede global deinformaçõesnãotem,nempodeter,agênciasdedicadasà“manutençãodopadrão”, assim como não é dotada de autoridades capazes de separar anorma da anormalidade, o regular do desviante. Qualquer “ordem” quepossaaparecernociberespaçoéemergenteenãoprojetada.Aindaassim,não passa de uma ordem momentânea, “até nova orientação”, que demaneira alguma poderia in luenciar a forma de ordens futuras nemdeterminarsuaocorrência.

O primeiro insight sobre a futilidade da concepção “sistêmica” decultura foi uma formidável façanha de Claude Lévi-Strauss, cuja obrainspirouamaiorpartedosargumentosdestelivro.Nolugardoinventáriode um número inito de valores supervisionando todo o campo dasinterações, ou de um código estável de preceitos comportamentaisintimamente relacionados e complementares, Lévi-Strauss apresentou acultura como uma estrutura de escolhas – uma matriz de permutaçõespossíveis, initas em número, mas incontáveis na prática.En passant,permitam-me observar que, embora negasse seu parentesco com essaestratégia, a ideia de formação discursiva, de Michel Foucault, capaz degerar proposições mutuamente contraditórias, embora retendo suaprópria identidade,di icilmentepoderia tersidoconcebidasemadecisivaguinada do discurso cultural empreendida com grande poder persuasivoporLévi-Strauss.

A paixão regulatória dos cientistas sociais se estende a seu próprioplayground,eassimLévi-Strausslogofoichamadodeestruturalista(assimcomo a perspicácia revolucionária de Georg Simmel foi suavizada,domesticada e esvaziada durante anos quando ele foi classi icado de“formalista”). Mas esse estranho “estruturalista” fez mais que qualqueroutropensador para destruir a ideia ortodoxade estrutura como veículode reprodução, repetitividade e mesmice monótona. Na visão de Lévi-

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Strauss,aestruturasetransformoudegaiolaemcatapulta;deinstrumentodesbastador/mutilador/restritivo/impeditivo em determinante daliberdade; de arma da uniformidade em ferramenta da variedade; deescudo protetor em motor da mudança in indável e eternamenteincompleta.

Além disso, Lévi-Strauss negou veementemente a existência de algocomoa estrutura de uma “sociedade” ou “cultura”: embora seja verdadequetodasasatividadeshumanas–danarraçãodemitosàarteculináriaeà atribuição de nomes a animais domésticos, passando pela seleção deparceirosmatrimoniais– são estruturadas,a ideiade“estruturacomotal”não passa de uma abstração desse caráter não aleatório dos tiposinfinitamentevariadosdeinteraçõeshumanas.

Emretrospecto,issosemostrouumpassodecisivo–enaépocapareciaum evento libertador. Liquidou muitos temas estéreis que ocupavam amente e as práticas dos estudiosos da cultura e desatou muitos nós.Pessoalmente, considerei o aspecto mais atraente da revolução de Lévi-Strausso imdaatribuiçãounilateraldaculturaao“ladocontinuidade”dodilema continuida-dedescontinuidade. Não se devia mais ver a culturacomo uma restrição à inventividade humana, como instrumento deautorreprodução monótona das formas de vida, resistente à mudança, amenosqueempurradaoupuxadapor forçasexternas.AculturadeLévi-Strausseraemsimesmaumaforçadinâmica(bastavaumúnicopassodalià iteração de Jacques Derrida – a novidade embutida em cada ato derepetição), e a própria oposição entre continuidade e descontinuidadeparece ter perdido muito de seu poder perturbador. Os antigosadversários agora pareciam mais aliados iéis num processo decriatividade cultural interminável – a continuidade agora era impensávelsob qualquer outra forma que não a cadeia in indável de permutas einovações.

Suponho agora que a mensagem de Lévi-Strauss foi um tantoenfraquecidapelaatençãoqueelededicouamaisumproblemailusório–oda sincroniaversusdiacronia, emdetrimentodeoutrosaspectos.Quemsabe não foi má sorte Lévi-Strauss ter sido manipulado por Jean-PaulSartre no famoso debate sobre história e historicidade; ao longo desseperíodo, o tema foi desviado para o que, do ponto de vista da teoriacultural, só poderia ser visto como uma via colateral – e ali foi mantidodurante tempo excessivo, por parte de uma opinião acadêmica semi-informadaeávidadesensações.

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Essa infeliz coincidência, porém, não absolve Lévi-Strauss daresponsabilidade, ao menos parcial, pelos usos equivocados que oscomentadores puderam fazer (e efetivamente izeram) de sua insistênciateimosae indevidanaoposiçãoentreasvisões sincrônicaediacrônicadecultura.Aabordagemsincrônica, tiradada“guerrade libertação” travadapor Ferdinand de Saussure contra a etimologia que então dominava oestudodalinguística,foiumremédiobem-vindocontraasdebilidadesmaisrepulsivas das visões evolucionistas ou difusionistas que anuviavam odomínio dos estudos culturais. Bom ponto de partida para a operaçãomuito necessária de limpeza do terreno, a estratégia sincrônica, contudo,podia ser facilmente convertida em outra receita falsa, caso aplicada àconstrução de uma nova e melhorada versão da teoria cultural – emparticular se o aguçamento, polemicamente justi icado, da oposição entresincroniaediacroniafossetranspostodocampodametodologiaparaoda“ontologia”dacultura.

Creio que o dilema sincronia/diacronia não passa de um re lexometodológicodaoposiçãoentrecontinuidadeedescontinuidadenavidadacultura. O grandemérito da renovação de Lévi-Strauss na teoria culturalfoimostrarocaminhoparaodesmascaramentodafutilidadedessaúltimaoposição.Aposteriorrevoluçãonoentendimentodecomoaculturaopera,decomocontinuidadeedescontinuidadeseinterligamecondicionamumaà outra na vida da cultura, não foi acompanhada de um exame maispróximo da dialética das abordagens sincrônica e diacrônica; e pouco foifeitoparaalertarosestudiososdaculturasobreaverdadedequeosdoisprincípios metodológicos não são somente alternativas – decerto não nosentidofirme,disjuntivo.

Agora me sinto inclinado a ler a mensagem de Lévi-Strauss com aréplica de Cornelius Castoriadis – uma crítica justa e adequada ao“radicalismo sincrônico” e um lembrete oportuno da interação sutil,emboravital,dasredesdeconexõesdiacrônicasesincrônicasnaproduçãocultural tanto de conhecimento quanto de compreensão. O que se podeaprendercomacríticadeCastoriadiséque,emboraaênfasenaoposiçãodiacrônico/sincrônico e nos méritos até então negligenciados daperspectiva sincrônica possa ser proveitosa, a compreensão da culturapouco tem a ganhar com um modelo teórico construído no plano(horizontal) do “agora”. O que Castoriadis escreveu sobre a língua napassagemaseguirpodeserfacilmenteestendidoàculturacomoumtodo:

O “estado sincrônico” da língua francesa, ou seja, que essamesma línguamuda, por exemplo,

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entre 1905 e 1922, a cada vez que Proust completa uma sentença. Já que, aomesmo tempo,Saint-JohnPerse,Apollinaire,Gide,Bergson,Valérye tantosoutros tambémestãoescrevendo–cada qual não seria um escritor se não imprimisse a um grande número de “signi icantes”incluídosnoseutextoumaalteraçãoqueésósua,masquedaíemdiantepassaapertenceràssigni icaçõesdaspalavrasnalíngua–,oqueéentãoo“estadosincrônico”dofrancêscomolínguanoqueserefereasignificações,nesseperíodo?

É também obviamente uma propriedade essencial da língua, assim como da história,… sercapaz de se alterar enquanto continua funcionando de maneira e iciente e constante paratransformar o incomum em comum, o original em estabelecido, [estar apta a] se tornar umaaquisiçãooueliminaçãocontínuae,nessesentido,perpetuarsuacapacidadedeserelamesma.Alíngua,emsuarelaçãocomassigni icações,mostra-noscomoasociedadeinstituídafuncionademaneira constante, e também… como esse funcionamento, que existe apenas como instituído,nãoobstruiacontinuadaatividadeinstitutivadasociedade.16

Asociedadeeacultura,assimcomoalinguagem,mantêmsuadistinção– sua “identidade” –, mas ela nunca é a “mesma” por muito tempo, elapermanecepela mudança. Além disso, na cultura não existe “agora”, aomenos no sentido postulado pelo preceito da sincronia, de um ponto notempo separado de seu passado e autossustentado quando se ignoramsuasaberturasparaofuturo.RecorrendoumavezmaisàdistinçãodePaulRicoeur entre l’ipséité ela mêmeté, os dois ingredientes da identidade,pode-se dizer, com Castoriadis, que o segundo – a durabilidade daidentidade–consistenapreservaçãodoprimeiro–adistinção;masqueoprimeiroéinconcebívelforaouindependentementedesuaduração,oqueune sucessivas – diferentes – formas de distinção como pertencentes àmesma identidade, e, assim, faz surgir a identidade a partir da simplesdiferença.

Citandomais uma vez Castoriadis: “Não haveria linguagem, sociedade,história, coisa alguma, se um francês comum de hoje não fosse capaz deentenderO vermelho e o negro, ou mesmo asMemórias de Saint-Simon,tantoquantoumtextoinovadordeumautororiginal.”

Resumindo: “dominar uma cultura” signi ica dominar uma matriz depermutações possíveis, um conjunto jamais implementado de modode initivoesempreinconcluso–enãoumacoletânea initadesigni icaçõese a arte de reconhecer seus portadores. O que reúne os fenômenosculturaisnuma“cultura”éapresençadessamatriz,umconviteconstanteàmudança, e não sua “sistematicidade” – ou seja, não a natureza dapetri icação de algumas escolhas (“normais”) e a eliminação de outras(“desviantes”).

Oquenoslevaaoutrotematratadodeformainsu icientenolivroagorareeditado, porém hoje muito mais central para o debate cultural: o da

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culturacomo–aomesmotempo–fábricaeabrigodaidentidade.

Culturaeidentidade

Aatençãointensaquehojesedáaotemadaidentidadeéemsimesmaumfatoculturaldegrandeimportânciae,aomenospotencialmente,degrandepoderesclarecedor.

Aspectos da experiência entram em foco e começam a ser debatidoscom seriedade quando já não podemmais ser tidos como certos, quandodeixam de ser evidentes, ou de poder sobreviver por si mesmos, sem oestímulodare lexãovigilante.Quantomaisfrágeisparecem,maisforteéoimpulso de descobrir ou inventar seus alicerces, e sobretudo dedemonstrarsuasolidez.

A “identidade” não é exceção: torna-se tema de re lexão aprofundadaquando sua probabilidade de sobrevivência sem re lexão começa adiminuir – quando, em vez de algo óbvio edado, começa a parecer umacoisa problemática, umatarefa. Isso ocorreu com o advento da eramoderna, com a passagemda “atribuição” à “realização”: deixar os sereshumanosperderemparaquepossam–precisem,devam–determinarseulugarnasociedade.

Não se pensa em identidade quando o “pertencimento” vemnaturalmente, quando é algo pelo qual não se precisa lutar, ganhar,reivindicar e defender; quando se “pertence” seguindo apenas osmovimentos que parecem óbvios simplesmente pela ausência decompetidores.Essapertença,quetornaredundantequalquerpreocupaçãocom a identidade, só é possível, como vimos, num mundolocalmenteconfinado: somente quando as “totalidades” a que se pertence, antesmesmodesepensarnisso,paratodososfinspráticos,foremdefinidaspelacapacidadeda“massacinzenta”.Nesses“minimundos”,estar“aquidentro”parece diferente de estar “lá fora”, e a passagem do aqui para o ládificilmenteocorre,seéquechegaaocorrer.

A pertença, contudo, não é viável se a totalidade em questãotranscenderacapacidadeda “massacinzenta”–quandoelase torna,poressemotivo,umacomunidadeabstrata,“imaginada”.Alguémpertenceaumcongregadodepessoasigualoumenorquearededeinteraçõespessoais,faceaface,vinculadasnarotinacotidianaounocicloanualdeencontros;éprecisoidentificar-secomatotalidade“imaginada”.Essaúltimatarefaexigeum esforço especial, diferente dos afazeres do dia a dia, e portanto é

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concebidacomoumaatividadedeaprendizadodistinta.Envolvepassarporcertos testes e exige ummodo de con irmação de que o teste foimesmoenfrentadocomsucesso.

A marca da modernidade é a ampliação do volume e do alcance damobilidade,e,porconseguinte,de forma inevitável,oenfraquecimentodain luência da localidade e das redes locais de interação. Mais ou menospela mesma razão, a modernidade é também uma era de totalidadessupralocais, de “comunidades imaginadas” orientadas ou aspiradas, deconstruçãodenações–edeidentidadesculturais“compostas”,postuladasouconstruídas.

Com sua perspicácia usual, Friedrich Nietzsche percebeu a marémontante do nacionalismo moderno: “Aquilo que hoje é chamado de‘nação’ na Europa émaisres facta do quenata (por vezes confusamentesemelhanteaumaresfictaetpicta[esculpidaepintada]).”17ErnestGellnerexplicouporquetinhadeserassim:

Asnações comouma formanatural,dadaporDeus,de classi icaroshomens, comoumdestinopolíticoinerente,emboralongamenteprotelado,sãoummito;onacionalismo,queàsvezestomaculturas preexistentes e as transforma em nações, às vezes as inventa e frequentemente aselimina;esteéumarealidade,paraobemouparaomal,eemgeralumarealidadeinescapável.18

ComoFrederickBarthapontoudemodoenfático,

categorias étnicas fornecem uma veia organizacional a que se podem atribuir variadosconteúdoseformasemdiferentessistemassocioculturais.Podemserdegranderelevânciaparao comportamento, mas não necessariamente; podem permear toda a vida social, ou serrelevantesapenasemsetoresdeatividadelimitados.

Qualdasopçõessetornarealidade,essaéumaquestãoemaberto.Foitarefa do Estadomoderno garantir que a opção de “permear toda a vidasocial” tivessepreferênciaemrelaçãoàmarginalidadeouparcialidadedopertencimento étnico. A inal, a existência continuada de uma “categoriaétnica” só depende damanutenção de um limite territorial , não importaquanto sejammutáveis os fatores culturais selecionados como postos defronteira. Graças ao seu monopólio dos meios de coerção, o Estadomodernotinhaopodernecessárioparareivindicaredefenderfronteiras.

No inal, é “a fronteira étnica que de ine o grupo, não a substânciacultural que ele encerra”, insiste Barth. 19 Tudo dito e feito, a própriaidentidade dessa substância cultural (sua “unidade”, “totalidade”,“distinção”)éartefatodeumafronteira irmementetraçadaevigiadacomrigor, embora os planejadores e os guardiões das fronteiras em geral

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insistamna ordemoposta de causalidade.Os teóricos culturais ortodoxosquasesempresepostaramao ladodosencarregadosdas fronteiras–emtese,naturaisegenuínas,masnaverdadearti iciaisemuitasvezesapenaspostuladas.

“Teruma identidade”pareceserumadasnecessidadeshumanasmaisuniversais (embora, permitam-me repetir, seu reconhecimento comonecessidadeesteja longedeseruniversal–umaevidênciahistoricamentesimultâneaàsuafragilidade).Todosnósparecemosparticipardabuscadoque Michel Morineau denominou, de forma adequada,la douceur d’êtreinclu:

Porsimesma,emcertosentido,essaexpressãodiztudo:correspondeaumdesejobásico–odepertencer, fazer parte de um grupo, ser recebido por outro, por outros, ser aceito, serpreservado,saberque temapoio,aliados.…Aindamais importanteque todasessassatisfaçõesespecí icas, obtidas uma a uma, em separado, é aquele sentimento subjacente e profundo,sobretudoodeteraidentidadepessoalendossada,confirmada,aceitapormuitos–osentimentodequeseobteveumasegundaidentidade,agoraumaidentidadesocial.20

A identidadepessoal confere signi icado ao “eu”. A identidade socialgaranteessesigni icadoe,alémdisso,permitequesefaledeum“nós”emqueo“eu”,precárioeinseguro,possaseabrigar,descansaremsegurançaeatéselivrardesuasansiedades.

O “nós” feito de inclusão, aceitação e con irmação é o domínio dasegurança grati icante, desligada (embora poucas vezes do modo tãoseguro como se desejaria) do apavorante deserto de um lá fora habitadopor“eles”.Asegurançasóéobtidaquandosecon iaemque“nós”temosopoderdaaceitaçãoeaforçaparaprotegeraquelesquejáforamaceitos.Aidentidade é percebida como segura se os poderes que a certi icaramparecemprevalecersobre“eles”–osestranhos,osadversários,osoutroshostis, construídos simultaneamente ao “nós”, no processo deautoa irmação. “Nós” devemos ser poderosos, ou a identidade social nãoserá grati icante. Há pouco prazer em ser incluído se – como HeinrichHeine uma vez observou a respeito de uma das muralhas de proteçãomenose icientes,asdoguetoétnico–“acovardiavigiaosportõesdoladodedentro,eaestupidezestáemguardadoladodefora”.

A força necessária não virá por si mesma. Deve ser criada. Tambémprecisa de criadores e autoridades. Precisa de cultura – educação,treinamento e ensino. Re letindo sobre a reforma intelectual e moral dequeaFrançadoséculoXIXnecessitava,ErnestRenandeploravao“estadodasmassas”,masacimade tudoa incapacidadedestasdeescaparaesse

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estadoporsuaprópriaforçaevontade:

Asmassas são turbulentas, rudes,dominadasporumavisãoextremamente super icialde seusinteresses.…Imbecisouignorantespodemmuitobemseunir,masnadaseseguirádessaunião.…Oespetáculodosofrimento ísicodospobresésemdúvidalamentável.Admito,porém,quemecausa uma dor in initamente menor do que a visão da grande maioria predestinada aopatriarcalismointelectual.21

Aóbvia liçãomoralepráticaaextrairdisso foique“asmassas”teriamde se tornar (e permanecer, por um futuro previsível) objeto de umaatenção carinhosa voltada para sua elevação espiritual: impedidas deseremsujeitos da ação autônoma, já que di icilmente se tornariamprodutorasdasescolhasqueseestariaprontoaaceitar .Foiapresençadasmassasquecriouanecessidadedeliderançaespiritual,eassimofereceuàjurisdição da elite intelectual suaraison d’être . Na época em que Renanescreveu essas palavras, esta era a opinião em geral aceita, e em breveseriamaiselaboradaporLeBon,TardeouSorel,entreváriosoutros.Essaopiniãosumarizavaumséculooumaisdeestranhamentoereconquista.

“Asmassas”pertencemànumerosafamíliadascategoriasnascidascoma modernidade – todas elas re letindo a ambição moderna de dissolvermuitas e diferentes identidades locais numa tarefa nova, supralocal ehomogênea: uni icar o agregado heterogêneo de pessoas mediante ainstruçãoeocontrole,otreinamentoeoensino,e,senecessário,acoerção.O corolário intelectual desse processo político – juntar a variedade deidentidadesregionais, jurídicaseocupacionaisdopetitpeupleparaformaruma “massa” indiscriminada, oumobilevulgus – começoua serproduzidoseriamente no século XVII, alcançando suamaturidade conceitual apenasnopensamentoiluminista.SegundoRobertMuchembled:

Todos os grupos sociais dos séculos XV e XVI moviam-se no mesmo nível naquele universoenormemente distante do nosso. As clivagens reais causadas por nascimento ou riqueza nãoresultavam em diferenças profundas em termos de sensibilidade e conduta comum entredominadoresedominados.

ApartirdoséculoXVIII,a fraturaentreessesdoisplanetasmentaisdistintosse intensi icou.As pessoas civilizadas não podiam mais sentir o povo, no sentido próprio da palavra. Elasrejeitavam tudoque lhesparecesse selvagem, sujo, lascivo – paraque elas próprias pudessemdominarmelhortentaçõessemelhantes.…Ocheirotornou-seumcritériodedistinçãosocial.22

Havia muitas divisões e subdivisões, grandes ou minúsculas, nessacadeiadivinadoserforjadapelamentepré-modernadaEuropacristãparaconstruirseumundodavida:demasiadonumerosas,naverdade,paraqueumasó“divisãodasdivisões”, totalmenteabrangenteede inidora,comoa

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divisãomoderna entre “cultos” e “incultos” – brutos, grosseiros, semrefinamento,precisandoelevar-se–pudesseemergir.

De maneira verdadeiramente revolucionária, o “processo civilizador”quesedesencadeounoséculoXVIIfoi,anteseacimadetudo,umimpulsodeautosseparaçãodaselitesemrelaçãoao“resto”–agorafundidoàforça,apesar de toda variedade interna, numa classe homogênea: um processod edessincronização cultural aguda. De uma parte, do lado ativo (daselites),issoproduziupreocupaçãocrescentecomatarefadeautoformação,autotreinamento e do autoaperfeiçoamento. De outra, do lado receptor,sedimentou a tendência a biologizar,medicalizar, criminalizar e cada vezmais policiar “asmassas” – “consideradas brutais, obscenas e totalmenteincapazes de reprimir suas paixões a im de se ajustar aos moldescivilizados”.

Resumindo: no limiar da modernidade, encontra-se o processo deautoformação da elite letrada ou esclarecida (que agora se distingue porseus “modoscivilizados”, comsuasduas facesdere inamentoespiritualeadestramento corporal) que foi, ao mesmo tempo, um processo deformaçãoorientadadas“massas”comocampopotencialda função,açãoeresponsabilidadedesupervisãodaselites.Aresponsabilidadeeraconduziras massas à humanidade; aação podia tomar a forma de persuasão oucoação. Eram essa responsabilidade e o impulso vinculado de agir quede iniam “as massas” – em suas duas encarnações coexistentes emutuamente complementares, aindaqueemaparênciaopostas: “a turba”(queassumiaadianteirasemprequeaforçaestavanaordemdodia)e“opovo”(invocadoquandoseesperavaqueaeducaçãotornasseredundanteacoação).

Oqueseaplicavaaessagrandedistinção tambémvaliaparaagranderecongregação que viria a seguir. A reintegração da sociedade divididadeveria ser conduzida pela nova elite civilizada dos educados, agora comrédeasfirmes.MaisumavezcitandoGellner:

Nabasedaordemsocialmodernanãoseencontraocarrasco,masoprofessor.Nãoaguilhotina,mas o [adequadamente denominado]doctorat d’état é o principal instrumento e símbolo dopoderdoEstado.Omonopóliodaeducaçãolegítimaéagoramaisimportante,maiscentral,queomonopóliodaviolêncialegítima.23

A tarefa de integração e reprodução da sociedade não podiamais serdeixada às forças espontâneas da sociabilidade, operando de formairre letida, postas em movimento por uma multiplicidade de lealdades

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compactas, cada qual funcionando em separado e baseando-se emrecursos locais. De modo mais correto, pode-se dizer que as elitesmodernas haviam rompido, de forma consciente e resoluta, com o queagora viam – em retrospecto e com horror – como um estado de coisasirracional,descentrado,difuso,caótico,eportantoperigosoesemprefértildecatástrofes.

Os processos de integração e reprodução da ordem social tinham setornado o domínio da especialização, da perícia – e de uma autoridadelegalmente de inida. Eles rea irmavam e reforçavam o que os processosprecedentes de separação haviam conseguido. O “projeto do Iluminismo”constituiu aomesmo tempoa elite instruída, “culta”, no topo, e o restodasociedade como objeto natural de seus ensinamentos, de sua ação deensino,de “cultivo”, e assim reproduziu a estruturadedominaçãona suanova forma, a moderna: uma forma de dominação que se estendia paraalémdastarefaspré-modernasderedistribuiçãodoprodutoexcedente,eque agora envolvia, como preocupação maior, a intenção de moldar osespíritos e corpos dos sujeitos, penetrar profundamente em sua condutadiária e na construção de seusmundos de vida. O apelo à educação dasmassas era, a um só tempo, uma declaração de incompetência social dasprópriasmassaseumaproclamaçãodaditadurado professariat (ou,parausar o vocabulário educado das próprias elites, do “despotismoesclarecido”dosguardiõesdarazão,dosbonsmodosedobomgosto).

Aconstruçãodanaçãofoi,essencialmente,umaproclamaçãodessetipo.Foi, portanto,moderna quanto à estrutura de dominação em torno e pormeio da qual a nova integração dasociedade foi obtida, e quanto aosestratossociaiselevadosaposiçõesgerenciaisnesseprocesso.Nocursodahistória moderna, o nacionalismo desempenhou o papel de dobradiçaligando Estado e sociedade (o primeiro concebido como Estado-nação, ecomele identi icado).Estadoenaçãoemergiramcomoaliadosnaturaisnohorizonte da visão nacionalista, na reta inal do surto de reintegração. OEstadoforneciaosrecursosdoprocessodeconstruçãonacional,enquantoa postulada unidade da nação e o destino nacional comum ofereciamlegitimidadeàambiçãodaautoridadeestataldeexigirobediência.

Haviaumaa inidadeíntima,emboraeletiva,entreoesforçomodernodegarantir a integração supralocal por meio de uma ordem jurídicaadministrada pelo Estado e o estabelecimento de uma cultura nacional,supralocal. Pode-sedizerque, conscienteou instintivamente, oEstadoemascensão buscou legitimar o apoio colocando-se ao lado de um

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nacionalismo já existente, ou fomentando uma nova ordem; enquanto osprojetos nacionalistas buscavam os instrumentos e as garantias de suaefetividadenospoderesdosEstadosexistentesouaindaporseconstruir.Na verdade, a aliança promovida pelas elites entre nação e Estado setornara tão íntima que, no inal do século XIX, Maurice Barrès pôdeexaminaremretrospectoovínculoentreEstadoenaçãocomoresultadodeum processo essencialmentenatural e não induzido, uma espécie deprodutodasleisdanatureza:“Povosemancipadosdasrestriçõeshistóricaspor direito natural, pelaRevolução, organizaram-se emnacionalidades.…Decidiramespontaneamenteformargruposcombasenaslendascomunsena convivência.”24 Para se tornar nacional, a cultura tinha primeiro denegarquefosseumprojeto:precisavadisfarçar-sedenatureza.

“Queélapatrie?”,indagouBarrès.Eelemesmorespondeu:“ LaTerreetlesMorts.” Os dois constituintes nomeados dapatrie têm algo em comum:não são uma questão de escolha. Não podem serescolhidos livremente .Antes de se poder contemplar uma escolha, é preciso ter nascido ecrescido neste solo aqui e agora e nesta sucessão de ancestrais e suaposteridade. Pode-se mudar de um lugar para outro, mas não se podelevarosoloconsigo,enãosepodetornarseuoutrosolo.Pode-semudardecompanhia, mas nãomudar os própriosmortos – os ancestrais falecidosque são próprios, e não de outros; também não se pode transformar osmortos de outras pessoas em ancestrais. Comentando o con lito entreCreonteeAntígona,Barrèsdeixaclaroquaissãooslimitesdaescolha:

Creonte é um mestre que chegou do estrangeiro. Disse ele: “Conheço as leis do país e asaplicarei.” Esse era o julgamento de sua inteligência. Inteligência – que coisa insigni icante,situada na própria super ície de nós mesmos! Antígona, pelo contrário, … empenha suahereditariedade profunda, é inspirada por aquelas partes subconscientes, nas quais respeito,amor,medonãomaissediferenciavamdopodermagníficodaveneração.25

Antígona tinha o que Creonte, equipado apenas com sua razão e umconhecimento apropriado – aprendido –, nunca iria adquirir: l’épinedorsale, acolunadorsalemqueeemtornodaqual tudomaisnacriaturahumanaseapoiaeémodelado(acolunadorsal,insisteBarrès,nãoéumametáfora, “mas uma analogia extremamente poderosa”). Em comparaçãocom a solidez da coluna dorsal, a inteligência não passa de “uma coisainsigni icante situadana super ície”. A colunadorsal é umponto ixoquede ineo lugarde todas asoutras coisas.Determinaquaismovimentosdocorpointeiroedequalquerumadesuaspartessãoviáveisoupermitidos,equaisnãoosão(quaisameaçamquebraraespinhadorsal).Averdadeé

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tambémumponto ixo,talcomoacoluna:nãoumpontodechegada(nãoopontofinaldoprocessodeaprendizagem),masopontodepartidadetodoconhecimento, um ponto que não pode ser criado, apenas encontrado,recuperado,casoperdido–ouperdidodevez;“umpontoúnico,esteaqui,nãooutroqualquer,opontoapartirdoqualtudonosaparecenasdevidasproporções”.

Devosituar-meexatamentenopontoqueexigemmeusolhos,essesolhosque foram formadosduranteséculos:opontoapartirdoqualtodasascoisasseoferecemnamedidadeumfrancês.Atotalidadedasrelaçõescorretaseverdadeirasentrecertosobjetoseohomemdeterminado,ofrancês, esta é a verdade francesa e a justiça francesa. O nacionalismo puro não passa doconhecimento de que esse ponto existe, a tentativa de encontrá-lo e – uma vez alcançado –penetrá-loparadeleextrairnossaarte,nossapolítica,todasasnossasatividades.

Emoutraspalavras,essepontofoi ixadoantesdeeunascer;eumesmofuiporele“ ixado”antesdecomeçarapensarempontosouemqualqueroutracoisa–emboraaindapensequeessepontoéminhatarefa,algoquedevo fazer exercitando a razão. Devo procurá-lo ativamente e depoisescolher o que não é assunto de escolha: abraçarvoluntariamente oinevitável, submeterpor escolha, em plenaconsciência, o que já estevepresenteotempotodoemmeusubconsciente.Oresultadodalivreescolhaédadoporantecipação:aoexerceromeudesejo,nãosourealmente livrepara desejar, já que só há uma coisa que, no meu caso, poderá serdesejada de verdade: que eu seja determinado por la Terre et lesMorts ,para agradarmeus austeros e exigentes senhores – dizer amimmesmo:“Quero viver comesses senhores e – ao torná-los objetos demeu culto –partilharamplamenteasuaforça.”

Mas existem tambémoutras coisas queposso vir a desejar, oupensar(deformaequivocada)quesoulivreparadesejar:porexemplo,desabilitaros meus senhores ou apropriar-me de senhores que não são meus. Emambososcasos,eupossoviraacreditarquesoudefatolivre,equeminhaescolha, ditada pela razão, como a própria razão, não conhece fronteiras.Em ambos os casos, o resultado é o mesmo:déracinement,desarraigamento–carnefrouxasemcolunadorsal,pensamentoerranteeconfusosemumpontofixoparaseapoiar.

Oqueunecertascriaturashumanas(easdistinguedasoutras)nãoéasolidariedade – algo que podem forjar ou rejeitar à vontade, negociar,acordarourenegar–,masoparentesco:vínculosquenãoescolheramnemtêm a liberdade de negociar. “O fato de ser da mesma raça, da mesmafamília,formaumdeterminismopsicológico:énessesentidoqueinterpreto

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apalavraparentesco”,dizBarrès.Ostatusdoparentescoéprecário:forteo bastante para inspirar a fé na vitória inal do impulso da unidade,masnão o su iciente para desenvolver a complacência e legitimar apassividade. O verdadeiro nacionalismo (sem dúvida um nacionalismo aoestilo de Barrès) evitaria o determinismo incontestável, impessoal esubjugante daraça: “É incorreto dizer que existe uma raça francesa nosentidoexatodapalavra.Nãosomosumaraça,masumanação:umanaçãoque continua a se criar a cada dia, e, para evitar que seja aviltada,aniquilada,nós–osindivíduosqueaconstituem–devemosprotegê-la.”26

Seaparticipaçãonumgrupodependessedaraça,tudoteriasidoditoefeitoantesquequalquercoisapudesseserpensadaoufalada,etudoqueéde importância permaneceria inalterado independentemente do que sepossa ainda vir a pensar ou falar. Se, por outro lado, a convivência dogruposebaseianaprontaaceitaçãododestino(seanaçãoéo“plebiscitocotidiano”deRenan),elatambémsebaseia(edemodomaissigni icativo)no que está sendo falado, com que frequência e com que força deconvicção, e naqueles que o falam. Ao contrário da raça, a nação estáincompletasemseusporta-vozes“conscientizadores”.Aocontráriodaraça,a nação inclui a consciência entre seus atributos de inidores; ela deve,porém,passardoensoi aopoursoi por seusprópriosesforços–mas, emprimeiro lugar e acima de tudo, mediante o esforço extenuante derefinamentofeitodiariamentepelosguardiõesdaculturanacional.

Umadasprincipais característicasdoprojetonacionalista sempre foioimpulso irresistível de assegurar que o “eu devo” de Barrès signi iqueexatamenteisso;quea“descobertadacolunadorsal”sejafeitaportodos;equetodomundo“abrace”oquefoidescobertoem“todasasatividades”.Esóhaviaummeiodeassegurarisso:lançarmãodaprerrogativadoEstadodeusaracoerçãoporleiparatornaro“desentendimento”tãoimprovávelquantopossível,eo “acordo”,virtualmente inescapável.Semo impulsodopoder do Estado, a nação seria apenas um “grupo de referência” entremuitos outros – tal como eles, incerta de sua sobrevivência,movida porondas cruzadas demodismosmutáveis, obrigada a apelar diariamente alealdadesinstáveis,aseinclinarparatrása imdeproduzirevidênciasdavantagemdeseusbene íciossobreasofertasdoscompetidores.OEstado-nação(aideiadanaçãotransformadaemsubstânciadoEstado),poroutrolado,poderiaimporlegalmentealealdadeedeterminarporantecipaçãoosresultadosdalivreescolha.Asraízespostuladaspoderiamteraexistênciaproclamadapor lei e ser objeto de cuidados das agências estatais

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devotadasà imposiçãoda leiedaordem,docânonede inidopeloEstado,da herança cultural e do currículo do ensino de história autorizado peloEstado.

Recordemosqueopropósitode tudo isso foienfraquecerouromperocontrole sob o qual as “comunidades” (tradições, costumes, dialetos,calendários, lealdadeslocais)mantinhamos potenciais patriotas danaçãouna e indivisível. A ideia que orientou todos os esforços do Estado-naçãomoderno foi a de impor um tipo de lealdade sobre o mosaico de“particularismos” locais, comunitários. Em termos de política prática, issosigni icouo desmantelamento, ou o desempoderamento legal, de todos ospouvoirs intermédiaires ; o im da autonomia de qualquer unidademenorqueoEstado-nação,que,contudo,pretendessesermaisqueexecutoradavontadedesteeassumissemaispoderdoqueoquelheforadelegado.

ComoassinalaCharlesTaylor,apósmaisoumenosdoisséculosdetodosesses (a inal inconclusos) esforços de uni icação nacional, “comunidadesminoritárias” estão “lutando para semanter”. Batalhampor se conservarcomosão,istoé,comocomunidades.Eisso,porsuavez,signi icaque“essaspessoas” (Taylor não especi ica quem sejam, aceitando tacitamente opostuladodaunidadedeinteressesedestinosencarnadapelospastoreseseus rebanhos) “estão lutando por algo mais que os seus direitos comoindivíduos”. Se de fato existe algomais do que os “direitos dos indivíduos”(ou seja, algo tão importante que justi ique a suspensão dos direitos dosindivíduosna condição de indivíduos), então, claro, a luta é inevitável, equalquerpessoabondosadevesolidariedadeeajudaaoslutadores.Masoqueéesse“algomais”?

O “algo mais” (esse “algo” que torna palatáveis e até bem-vindas asrestriçõesaodireitoindividualdeescolha)éo“objetivodasobrevivência”,eisso por sua vez signi ica “a continuação da comunidade através dasgeraçõesfuturas”.Falandoemtermosmaissimples,esobretudopráticos,abusca do “objetivo da sobrevivência” apela para o direito da comunidadedelimitar ou reservar as escolhas das geraçõesmais jovens e ainda nãonascidas, de decidir por elas quais devem ser suas opções. Em outraspalavras,oqueseexigeaquiéopoderdeimplementar,degarantirqueaspessoasajamdestamaneira, enãodeoutra,de reduziroâmbitode suasopções, demanipular as probabilidades; de obrigar os indivíduosa fazeraquilo que de outra forma não fariam , de torná-los menos livres do quepoderiam ser. Por que é importante fazer isso? Taylor observa que issodeve ser feito (não se trata de um argumento novo, como nos mostra a

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históriadosintelectuais)nomelhorinteressedasprópriaspessoas,jáque“ossereshumanossópodemfazerescolhassigni icativassobreseumododevidatendocomoperspectivasalternativasquesópodemalcançá-lopormeiodastradiçõeslinguísticaseculturaisdesuasociedade”.27

Ideiasemelhante foiexpressamuitasvezesporgeraçõesdeprofetasepoetasdacortedoEstado-nação,enãoédeimediatoóbvioporque,sobapena de Taylor, deveria ser um argumento em favor da causa das“minorias em luta”. Para que a mudança de endereço se tornecompreensível, é preciso reconhecer primeiro o corolário oculto: apercepçãodequeoEstado-naçãonãocumpriusuapromessa;dequeporalgummotivoeleagorafaliucomofontede“escolhassigni icativasquantoaomodo de vida”; de que esse nacionalismo, despido de seu alicerce noEstado,perdeuaautoridadesemaqualaaboliçãodosdireitosindividuaisdeescolhanãoseriaviávelnemaceitável;edeque,novácuoresultante,as“minorias em luta” é que agora são vistas como a segunda linha detrincheiras, onde a “escolha signi icativa” pode ser protegidada extinção;agora se espera que elas tenham êxito na tarefa que o Estado-naçãodefinitivamentedeixouderealizar.

Asurpreendentesemelhança(oumelhor,identidade–salvoamudançade endereço) entre as esperanças e os paradoxos nacionalistas ecomunitaristas não é nada acidental. As duas visões do “futuro perfeito”são,a inal,reaçõesde ilósofosàexperiênciageneralizadade“desencaixe”profundoeabruptodasidentidades,causadapeloatualcolapsoaceleradodas estruturas em que as identidades em geral eram inscritas. Onacionalismo foi uma resposta à destruiçãomaciça da “indústria caseira”das identidades, e à subsequente desvalorização dos padrões de vidaproduzidos no plano local (e, para falar sem rodeios, de maneirairrefletida).

Avisãonacionalistasurgiudaesperançadesesperadadequeclarezaesegurança da existência, que em aparência caracterizaram a vida pré-moderna, podem ser reconstruídas num nível de organização socialsuperior, supralocal, em torno do pertencimento nacional e da cidadaniade Estado fundidos numa coisa só. Por motivos demasiado amplos enumerosos para serem aqui citados, essa esperança não conseguiu setransformaremrealidade.OEstado-naçãorevelou-seoincubadordeumasociedade moderna governada não tanto pela unidade de sentimentosquantopeladiversidadedeinteressesdemercadodesprovidosdecaráteremocional.Seuesforçoprofundodedesarraigaraslealdadeslocaisparece,

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em retrospecto, nem tanto uma produção de identidades de nível maiselevadoquantoumaoperaçãode limpezadeáreaparaocontodovigárioconduzido pelo mercado de modos de autodescrição rapidamentemontadoselogodesmantelados.

E assim, uma vez mais, “identidades signi icativas” (“signi icativas” nosentido postulado no passado pelos nacionalistas e agora peloscomunitaristas) são di íceis de concretizar. Mantê-las no lugar e intactas,não importa seporpouco tempo, sobrecarregaashabilidades (ensinadasou aprendidas) de prestidigitação dos indivíduos, muito além de suacapacidade. Já que agora não parece se sustentar a ideia de que asociedadeinstitucionalizadanoEstadovaidarumaajuda,nãoadmiraquenossosolhosmirememoutradireção.Porironiadahistória,contudo,estãomudando seu foco para entidades cuja destruição radical parecia serconsiderada,desdeosprimórdiosdamodernidade, condição sinequa nondeuma “escolha signi icativa”: agora as tãodesprezadas comunidadesdeorigem, locaisenecessariamentemenos importantesqueoEstado-nação –descritas pela propaganda modernizante como paroquiais, atrasadas,dominadas pelo preconceito, opressivas e absurdas, e transformadas emalvos de cruzadas culturais organizadas em nome das “escolhassigni icativas” –, é que são vistas com esperança como executorascon iáveisdessaracionalização,desaleatorização,saturaçãodesigni icadosdas escolhas humanas que o Estado-nação e a cultura nacionalabominavelmentedeixaramdepromover.

Reconhecidamente, o nacionalismo à moda antiga, orientado para oEstado,está longedetercompletadoseucurso–emparticularnomundopós-colonial, na África ou no Leste Europeu, entre os destroços deixadospelocolapsodosimpérioscapitalistaecomunista.Lá,aideiadeumanaçãoque provê um lar para os perdidos e confusos é nova e, acima de tudo,ainda não experimentada. Está alojada em segurança no futuro (mesmoque o nacionalismo, tal como o comunitarismo, empregasse comentusiasmoa linguagemdaherança,dasraízesedeumpassadocomum),eo futuroéo lugarnaturalemque investirasesperançaseexpectativasdas pessoas. Para a Europa (comexceçãodo extremo leste, pós-colonial),por outro lado, o nacionalismo e sua maior realização, o Estado-nação,perderam muito do antigo brilho. Deixou de resolver no passado o queagora,maisumavez,devesersolucionado,e seria toliceesperarqueseudesempenho melhore muito nessa segunda rodada. A Europa tambémsabemuitobemoqueomundopós-colonialnãosabenemquersaber:que

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quanto mais a obra do Estado-nação se aproxima do ideal de alicercessólidoselarseguro,menosháliberdadeparasemoveremtornodecasa,emais fétido e poluído se torna o ar lá dentro. Por essas e outras razões,nadadaquiloqueosEstados-naçãoatuaistêmocostume,acapacidadeoua disposição de fazer parece adequado para enfrentar a angústia daincertezaquedevoraos recursospsíquicosdo indivíduonamodernidadetardiaoupós-modernidade.

Nessascircunstâncias,oquetornatãoatraenteavisãoda“comunidadenatural”invocadanostextoscomunitaristasésobretudoofatodequeelasforam imaginadas de forma independente do Estado e da “culturanacional”queelepromovia,eatéemoposiçãoaeles.ÉcomoseoEstado,emressonânciacomossentimentospopulares,tivessesidorelegadopelosilósofoscomunitaristasaolado“produtorderiscos”daexistênciahumana:ele cuida da liberdade individual, mas, do mesmo modo, abandona osindivíduos aos seus próprios recursos – patentemente inadequados – nabusca da “escolha signi icativa”. Tal como antes o fez a nação, tambémagora a “comunidade natural” representa o sonho do signi icado – eportanto da identidade. De modo paradoxal, apesar da avidez doscomunitaristas para “enraizar” no passado (genuíno ou invocado, massempre pré-moderno) os novos refúgios de escolhas signi icativas, é oespíritomoderno de aventura, de exploração do inexplorado, de tentar oque não foi tentado que os torna atraentes aos olhos dos ilósofos etambémdeseusleitores.

Politicamente, a visão comunitarista da cultura (no sentido básico de“cultura” comoatividade – de re inar, esclarecer, propalar, converter,empreender cruzadas culturais) se coloca em oposição à ambiçãohomogeneizanteda “culturanacional”, tal comocorpori icadanaspráticasde seu autoproclamado guardião e gerente, o Estado-nação.Sociologicamente falando, porém, a oposição não parece tão evidenteassim.

Como vimos, a promoção pelo Estado da “cultura nacional” foi umaproclamaçãodaculturacomo“sistema”–uma totalidadeencerradaemsimesma. Funcionava pela eliminação de todos os resíduos de costumes ehábitosquenãoseencaixassemnomodelouni icado,destinadoasetornarobrigatório na área sob a soberania do Estado, agora identi icada comoterritório nacional. Esse modelo era organicamente oposto ao“multiculturalismo” – condição a partir da qual a perspectiva da culturanacional podia ser concebida apenas de forma negativa, como o fracasso

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do projeto administrado pelo Estado; como a persistência de muitosconjuntos distintos e autônomos de valores e normas comportamentais;portanto, como a ausência de uma autoridade cultural dominante eincontestada.

O comunitarismo, em princípio, não rompe com essa percepção. Opostuladocomunitaristadomulticulturalismopresume,talcomoo izeraoprojeto da cultura nacional, o caráter “totalista”, sistêmico, da cultura.Apenas inverte a avaliação da copresença de tantas dessas “totalidades”num único domínio político e postula sua forçosa continuação lá onde oprojeto de cultura nacional propugnava sua dissolução orientada numúnicosistemadeculturanacional.

AsuspeitaemrelaçãoàsambiçõesculturaisdoEstado-naçãoeaperdadafénaspromessasdoEstadoemtornodeumaidentidadesigni icativaebem-alicerçadanãoocorreramaoacaso.AculturanacionalpromovidapeloEstado revelou-se uma proteção frágil contra a comercialização dos bensculturais e a erosão de todos os valores, exceto daqueles do poder desedução,da lucratividadeedacompetitividade.Assim,hácraterasnosoloonde os sinais de trânsito e os marcos miliários pareciam incados comirmeza.Eháomedoeoressentimentogeneralizadosdaexperiênciadasidentidades “desencaixadas”, “desobstruídas”, livremente lutuantes,desancoradas, frágeis e vulneráveis – experiência gestada em escalamaciça numa situação em que a tarefa de construção e preservação daidentidade é deixada à iniciativa individual, “desregulamentada” e“privatizada”,earecursosindividuaisbastanteinadequados.

Aautoa irmaçãoqueessacondiçãomodernaproduziunodestinoenosdeveres do indivíduo exige recursos consideráveis,mas a perspectiva defornecê-los em igualmedida a todos osmembros da sociedade nunca sematerializoueparececadavezmaisnebulosa.Comaampliaçãodabrechaentre o leque de escolhas publicamente proclamado e a limitadacapacidade individualdeoptar,sópodiaaumentaranostalgiapela“graçado pertencimento”. A cultura nacional promovida pelo Estado deviafornecerumcontrapesoparaodesesperodoabandono,reduzirosdanospsicológicoseestabelecerlimitesàatomização,aoestranhamentomútuoeà solidão, ampliados pelas forças desabridas da competição demercado;mas não conseguiu fazê-lo – oumelhor, as esperanças de que viesse umdia a realizar essapromessa se desvaneceram, enquanto a atomizaçãoestimulada pelo mercado prosseguia inabalável, e o sentimento deincertezaganhavaforça.

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O comunitarismo assume a bandeira que caiu (foi solta) dasmãos doEstado. Promete realizar o que ele se comprometia a fazer, mas nãoconseguiu: a graça do pertencimento. Na guerra declarada às forças do“desencaixe”,da “desobstrução”edadespersonalizaçãoquecaracterizamacompetiçãoabertaatodos,ocomunitarismosegueamesmaestratégiadoEstadonaépocadascruzadasculturais:curaras feridaspsicológicaspelaunidade espiritual, enquanto se rende à invencibilidade das pressõesdivisionistas que foram as próprias causadoras das feridas. A culturacomum, em ambos os casos, é apresentada como a compensação pelodesarraigamentoproduzidopelomercado.Apromessadecompensaçãoédirigidaemespecialaosmuitosque,porfaltadeforça,tendemaafundareseafogar,emvezdenadarnaságuasturbulentasdacompetição.Oprojetoda cultura nacional e os projetos comunitaristas são unânimes quanto àinviabilidade da solução alternativa: a de tornar a liberdade e aautoa irmação realmente universais, fornecendo a cada indivíduo osrecursos necessários e a autocon iança que os acompanha, tornandoredundanteacompensação.

Num estudo adequadamente intitulado “Problemas falsos everdadeiros”, Alain Touraine exigiu que distinguíssemos dois fenômenos(ou programas) confundidos com muita frequência, em detrimento dodebatepúblico: “multiculturalismo”e “multicomunitarismo”: “Opluralismocultural só pode ser alcançado desmantelando-se as comunidadesde inidaspelarelaçãocomumasociedade,umaautoridadeeumacultura.Énecessáriorejeitaranoçãodeumasociedademulticomunitaristaa imdedefenderaideiadeumasociedademulticultural.”28

Longe de serem duas faces damesmamoeda, omulticulturalismo e aideia comunitarista estão em total oposição: “A criação de sociedades eautoridades políticas com base na identidade cultural e em tradiçõescomuns é contrária à ideia de multiculturalismo.” Seu resultado genuínoseria, emvezdisso, “a fragmentaçãodoespaço culturalnumapluralidadede fortalezas comunitárias, ou seja, em grupos politicamente organizadoscujos líderes retiram a legitimidade, a in luência e o poder do apeloexercidopelatradiçãocultural”.

Invocações aos direitos das comunidades de preservar sua distinçãocultural com frequência “ocultam a brutalidade do poder ditatorial sobuma crosta de culturalismo”. Há muito capital político no desespero dosdespossuídos e na insegurança dos tantos outros que temem a privaçãocomo perspectiva possível – e existem inúmeros líderes comunitários em

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potencialávidosporfazerusodelecomaajudadasredesculturalistas.InvestigamosatéagoraassimilaridadesentreonacionalismodeEstado

e o projeto comunitarista; essas similaridades limitaram-se, em últimainstância, aos interesses investidos por ambos os programas na“sistematicidade” da cultura, em sufocar a diferença e eliminar aambivalência das escolhas culturais a im de criar uma totalidadeimaginadacapazderesolveraespinhosaquestãodaidentidadesocial.Masobservemos que existem diferenças também entre os dois projetos – ediferençasseminais,semdúvidaalguma.

Em primeiro lugar, o projeto da cultura nacional foi concebido comosuplemento necessário a outra ideia moderna: a universalidade dacidadania. A comunidade nacional devia ser outra face da república dedireitosedeveresiguais–indiferente,emproldaigualdadedoscidadãos,àsescolhasculturaisqueelespudessemfazer.Arepúblicadoscidadãosétambémumarepúblicade indivíduosqueassumemriscos.ComolembroucertavezIosifBrodski,apessoalivreéaquelaquenãosequeixaemcasode derrota, e ser um cidadão livre implica a possibilidade constante dederrota e a disposição de assumir a responsabilidade por suasconsequências.

Osuplementodaculturanacionaleradefatonecessárioparaintegraroquea impessoalidadeda cidadaniahavia separado; emprincípio, emboranem sempre na prática, permitia que a república dos cidadãos iguaisfuncionasse com tranquilidade; e, coletivamente, dava segurança aoscidadãos contra as consequênciasperniciosas de suas escolhas feitas nacondição de indivíduos, prometendo estender a rede de proteção dasolidariedadecomunalsobacordabambaindividual.Oserviçodarededeproteção, na verdade, era mútuo: a república oferecia a segurança dosdireitos dos cidadãos e os protegia dos extremismos das cruzadasculturais.Arelaçãoentreaculturanacionaleosprojetosrepublicanosnãoestavalivredeatritos;masfoiprecisamentegraçasàtensãoentreosdoisprojetosqueacondiçãomodernapôdeemergiresedesenvolver.

Nesse sentido, o projeto comunitarista revela uma veia antimodernabastantepronunciada.Nãoé restringidoemantidodentrode limitespelocompromissodoEstado-naçãocomarepúblicaealiberdadedoscidadãos.A comunidade cultural é apenas o que ela se declara – uma comunidadecultural, que existe apenas por cortesia da tradição comum (ou de seupressuposto). Tem a ver com o cerceamento da livre escolha, com apromoçãodapreferênciaporumaescolhaculturaleaprotelaçãodetodas

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asoutras–comvigilânciaecensuraestritas.Há,portanto,todasasrazõespara se ter a expectativa de que as comunidades empurrem suaintolerânciaculturalaté limitesqueomenostolerantedosEstados-naçõesdi icilmenteatingiu.Naverdade,acomunidadeculturaldoscomunitaristasépostanumasituaçãodotipo“conforme-seoumorra”.

A segunda diferença é consequência da primeira. A comunidadecultural do projeto comunitarista – necessariamente autoconsciente,autoproclamada, postulada – nada tem para mantê-la unida além dalealdadeinabaláveldeseusmembros.Aesserespeito,émuitodiferentedacomunidade pré-moderna que em tese ela revive ou imita – uma“totalidade” genuína, em que os aspectos da vida agora analiticamenteisolados do restante da vida e sintetizados como “cultura” eraminterligados ou fundidos com outros aspectos, e jamais codi icados comoum conjunto de regras a serem aprendidas e seguidas, muito menosapresentadoscomoumatarefa.Elatambéméprofundamentediferentedoprojeto moderno de “comunidade nacional”, o qual – realisticamente ounão–tinhacomoalvoarecriaçãodessatotalidadeemplanosupralocal.

Poressemotivo,na ideiadecomunidadeculturalpostulada, a “cultura”é encarregada de funções integradoras que a comunidade não tem forçapara desempenhar por si mesma. Essa comunidade deve ser vulneráveldesde o princípio e consciente de sua fragilidade – o que torna todatolerânciaetransigênciaquantoàscrençasquesedevetereaosmodosdevida a se seguir um luxo que ela não pode sustentar. Normas culturaistransformamsenos temaspolíticosmais quentes; pouca coisa na condutados membros da comunidade é indiferente à “sobrevivência” do todo epode ser deixada ao arbítrio e à responsabilidade dos própriosintegrantes. Segundo a regra de Frederick Barth, todas as marcasdistintivasgenuínasdevemserampliadasemimportância,ecabeprocurarouinventarnovasdistinçõesparasepararacomunidadedeseusvizinhos– em particular, de vizinhos isicamente (economicamente, politicamente)próximos, parceiros do diálogo e das trocas. Uma condição “semalternativas” deve ser imposta a um mundo em que todos os outrosaspectos da vida promovem e oferecem uma variedade de opções; ahomogeneidade cultural deve ser imposta, por esforço consciente, a umarealidadeinerentementepluralista.

A comunidade cultural, portanto, deve ser um espaço de coerçãocultural–aindamaisdolorosaporser vivenciada,vivida,comocoerção.Sópode sobreviver à custa da liberdade de escolha de seusmembros. Não

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pode perpetuar-se sem vigilância estrita, exercícios de disciplina epenalidadesseverasparaqualquerdesvioemrelaçãoàsnormas.É,assim,nãotanto“pós-moderna”,mas“antimoderna”:propõereproduzir,deformaaindamaisseverae impiedosa, todososexcessosmaissinistroseodiososdas cruzadas culturais contra a ambivalência associadas ao processo deconstrução nacional, enquanto milita contra a autoa irmação e aresponsabilidadeindividual,tambémprodutosdarevoluçãomoderna,quecostumavamcontrabalançareamorteceraspressõeshomogeneizantes.Nomundodapós-modernidadeoudamodernidadetardia,caracterizadopelolivre luxo de informações e por uma rede global de comunicação, a“comunidadecultural”,porassimdizer,nadacontraacorrente.

Aterceiramarcadistintivada“comunidadecultural”doscomunitaristasvem da seguinte contradição: pregadores e defensores das comunidadesculturais quase inevitavelmente desenvolvem uma mentalidade de“fortaleza sitiada”. Na verdade, quase todas as características do mundocircundante parecem conspirar contra o projeto. O sentimento defragilidade não alimenta a con iança, enquanto a falta de con iançaalimentauma suspeitaquebeira aparanoia. Para suaprópria segurançaespiritual,ascomunidadesculturaisprecisamdemuitosinimigos–quantomaismalvadoseardilososmelhor.Ospregadoresepotenciais líderesdascomunidades culturais se sentemmuitobemnopapel depatrulheirosdefronteira. O movimento e o diálogo transfronteiriços são para eles umanátema; a proximidade ísica de pessoas de diferentes modos de vida,umaabominação;alivretrocadeideiascomessaspessoas,omaisfataldosperigos.

Talvez fosse isso que Touraine tinha em mente quando falou dascomunidades culturais defendidas pelos comunitaristas como ditadurasmaldisfarçadas. Se o “multiculturalismo”, ao menos em algumas de suasversões, pode ser uma força uni icadora e integradora, “inclusiva”, essachance não é dada ao “multicomunitarismo”. Este último é um fator dedivisão, “exclusivista” por natureza, com interesses na quebra dacomunicação.Sópodegerarintolerânciaeseparaçãosocialecultural.

Se o multiculturalismo, ao mesmo tempo que eleva a diversi icaçãocultural ao status de valor supremo, atribui à variação cultural umavalidade potencialmente universal, o multicomunitarismo viceja napeculiaridade e no caráter intraduzível das formas culturais. Para oprimeiro, a diversidade cultural é universalmente enriquecedora; para osegundo, os valores universais empobrecem a identidade. Os dois

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programasnãosecomunicam–travamumdiálogodesurdos.Fica-se imaginando em quemedida esse debate é um beco sem saída

paraoqualavisão“totalista”,sistêmica,deculturadevemaiscedooumaistarde conduziroprotagonistadeuma sociedade pluralista ediversi icadade tipo pós-moderno ou tardiomoderno. Também se imagina quantoprogressosepodefazernasoluçãodasdiferençasquandoseestápresoaessa visão, com a qual os dois programas, explícita ou tacitamente,concordam.

Osprogramasmulticulturalistaemulticomunitaristasãoduasdiferentesestratégiasparaenfrentarumasituaçãodomesmomododiagnosticada:acopresença demuitas culturas numa mesma sociedade . Parece, contudo,que,paracomeçodeconversa,odiagnósticoé falso.Acaracterísticamaispreeminentedavidacontemporâneaéa variedadeculturaldassociedades,e não avariedade de culturas numa sociedade: aceitar ou rejeitar umaforma cultural não é mais algo negociável (se é que já foi); não exige aaceitação ou rejeição de todo o estoque nem signi ica uma “conversãocultural”. Mesmo que no passado as culturas fossem sistemas completos,em que todas as unidades eram fundamentais e indispensáveis para asobrevivênciadetodasasoutras,comcertezaelasdeixaramdeserassim.Afragmentaçãoafetoutodososcamposdavida,eaculturanãoéexceção.

Num ensaio sintomaticamente intitulado “Who needs identity”, StuartHallpropõeadistinçãoentreascompreensões“naturalista”e“discursiva”dosprocessosidenti icatórios.Deacordocomaprimeira,“aidenti icaçãoéconstruída combaseno reconhecimentode algumaorigemcomumoudecaracterísticas compartilhadas com outra pessoa ou grupo, ou com umideal, e com o estreitamento natural da solidariedade e da idelidadeestabelecidas sobre esse alicerce”. De acordo com a segunda, “aidenti icaçãoéumaconstrução,umprocessosempre inacabado– sempre‘sendo feito’.Nãoédeterminadono sentidodepoder sempre ser ‘ganho’ou ‘perdido’, sustentado ou abandonado”. A segunda compreensãoconsegue apreender o verdadeiro caráter dos processos de identidadecontemporâneos.

[Oconceito]de identidadenãoassinalaessecerneestáveldoself,desenrolando-sedoprincípioao im, sem mudança, através das vicissitudes da história. … Nem é esse self coletivo ouverdadeiroseescondendodentrodemuitosoutros,maissuperficiaisouartificialmenteimpostos,queumpovocomumahistóriaeumaancestralidadecomunscompartilha.

As identidades nunca são uni icadas, e, na era da modernidade tardia, são cada vez maisfragmentadas e fraturadas; nunca singulares, mas múltiplas, construídas sobre discursos,práticaseposiçõesdiferentes,muitasvezescruzadaseantagônicas.29

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AsobservaçõesdeStuartHallsãocruciaisemerecemtodaatenção.Selevadas a sério, exigem uma revisão e um repensar profundos dosconceitos empregados e gerados no contínuo debate sobre “identidadecultural”.

Tome-se, por exemplo, o conceito de intercâmbio transcultural; ou,melhorainda,dedifusãocultural.Adifusão,antesumeventoperturbadornavidacotidianadasculturas,agorasetornouomododeexistênciadodiaadia.Pode-seirumpassoadiante,contudo,econcluirqueoprópriotermoperdeu utilidade. O conceito de difusão só faz sentido quando visto comoum tráfego entre entidades integrais, bem-de inidas: quando, em outraspalavras,opróprio tratamentodasculturascomo totalidadesdistintas fazsentido. Édeduvidar, porém, se ele (ainda) o faz. Senão existem regras,nãoháexceções;senãoexistemtotalidadesabrangentesefechadasemsimesmas, não há difusão. A ideia de difusão ou intercâmbio transculturalnão ajuda a compreender a cultura contemporânea. Tampouco outrosconceitos tradicionais da análise cultural, como, por exemplo, o deassimilação ou acomodação – damesma forma intimamente associados àrealidade“sistêmica”ouàvisãosistêmicadecultura.

A ideia de “multiculturalismo” não vai tão longe como o“multicomunitarismo”emsugerirofechamentodasculturasemsimesmase sua superposição com populações em condição semelhante (emborasomente por motivos espirituais). E, no entanto, ele vai longe o bastantenessa direção para que seja responsabilizado pela dinâmica da culturacontemporânea. A inal, também está sujeito à acusação de sugerir que apeculiaridadedaculturacontinuaaserarealidadebásica,equetodososmovimentos e misturas de valores, símbolos, signi icados, artefatos,padrõesdecomportamentoeoutrascoisasculturaissão,porconseguinte,secundários – mais ou menos um fator de confusão, uma anormalidade,mesmoquenãorepreensíveloucensurável.

O mesmo é sugerido por termos hoje na moda, como hibridismo,mestiçagem ou transplante cultural: todos eles implicam um espaçocultural dividido de formamais oumenos nítida em lotes distintos, cadaqualmarcadoporumadiferençamaisoumenosclaramentede inidaentre“dentro”e “fora”, como tráfego sobreas fronteiras limitadoe controlado.Casamentos mistos são permitidos nesse esquema, mas a prole híbridalogo reivindica seu próprio território soberano. Seja pró ou contra avontade de seus usuários, termos como “multiculturalismo”, “hibridismo”etc. evocamessa imagem(a inal,dependemdelapara sua compreensão);

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uma imagem conveniente, talvez, como disfarce para ambições políticas,mas que perde depressa o contato com a realidade. Seria melhorabandoná-la–aomesmotempoqueaterminologiadodebateculturalqueelaevocaeressuscita.

A característica mais preeminente do atual estágio cultural é que aproduçãoedistribuiçãodosprodutosculturaisagoraadquiriram,ouestãoem vias de adquirir, grande dose de independência em relação àscomunidadesinstitucionalizadas,emparticularàscomunidadesterritoriaispoliticamente institucionalizadas.Amaioriadospadrõesculturaisatingeodomíniodavidacotidianaapartirdeforadacomunidade,eamaiorpartedelesdetémumpoderdepersuasãomuitosuperioraqualquercoisaqueos padrões nativos possam sonhar em reunir e a irmar. Eles tambémviajam a uma velocidade inacessível ao movimento corporal, o que oscolocaaumadistânciaseguradanegociaçãofaceafaceaoestilodaágora;sua chegada, como regra, pega os destinatários de surpresa, e a duraçãodavisitaémuitocurtaparapermitirotestedialógico.

Os produtos culturais viajam livremente, sem se preocupar comfronteiras entre estados e províncias. Salvo a censura ao estilo KhmerVermelhoouTalibã,ouaproibiçãodeprodutoseletrônicos, suapresençaubíqua não pode ser impedida. Se as barreiras linguísticas ainda sãocapazes de obstar ou reduzir avelocidade de seu movimento, suacapacidade de fazer isso vai encolhendo a cada passo sucessivo nodesenvolvimentodatecnologiaeletrônica.

Issonãosignificaodesaparecimentofinaldasidentidadesculturais.Masrepresenta, sim, que elas, e a difusão de padrões e produtos culturais,mudaramdelugar–pelomenosquandocomparadascomsuasversõesnaimagem ortodoxa da cultura. Mobilidade, desarraigamento edisponibilidade/acessibilidade global dos padrões e produtos culturaisconstituem agora a “realidade primária” da cultura; como identidadesculturaisdistintas,sópodememergircomoresultadosdeumalongacadeiade“processossecundários”deescolha,retençãoerecombinaçãoseletivas(os quais, o que é mais importante, não são bloqueados quando aidentidadeemquestãodefatoemerge).

Sugiro que a imagem mais capaz de apreender a natureza dasidentidades culturais é a de umredemoinho, e não a de umailha. Asidentidades mantêm sua forma distinta enquanto continuam ingerindo evomitando material cultural raras vezes produzido por elas mesmas. Asidentidades não se apoiam na singularidade de suas características, mas

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consistem cada vez mais em formas distintas deselecionar/reciclar/rearranjaromaterialculturalcomuma todas,oupelomenospotencialmentedisponívelparaelas.Éomovimentoeacapacidadede mudança, e não a habilidade de se apegar a formas e conteúdos jáestabelecidos,quegarantesuacontinuidade.

Relatividadedaculturaeuniversalidadedoshomens

Enquantoapluralidadecultural for teorizadacomopluralidadedeculturas ,os estudiosos do assunto só poderão ver a comunicação e a comparaçãotransculturais como um de seus problemas centrais. Uma vez que cadaculturadivideouniversoculturalem“dentro”e“fora”,hápelomenosduas– é provável que haja in initas – formas de interpretar o signi icado dosprodutosculturais.Podehavermuitas interpretações“defora”,mastodaselasdistorcem, de ummodo ou de outro, a compreensão “de dentro”. Seacrescentarmos o pressuposto tácito de que a interpretação de dentro éprivilegiadaemrelaçãoatodasasoutras,talcomooprivilégiodequegozaa verdade em relação aos erros, então o alvo ideal estabelecido para asleituras “de fora” é abordar de modo tão próximo quanto possível osigni icado que um determinado produto cultural tem para seusprodutores/usuáriosnativos.Oproblemaécomoseaproximarosu icientedessa compreensão de dentro sem perder contato com o seu própriouniversodesigni icados.Essapareceseraprincipaldi iculdadequea ligea“traduçãotranscultural”.

Os historiadores, que exploram terras jamais visitadas pelas pessoascomuns, por causa da distância temporal, e os etnólogos, que examinamterras igualmente não vistas em razão da distância espacial, fornecemcasosparadigmáticosparaacondiçãodosperitosemtradução.SeudilemafoiresumidocomsucessoporCorneliusCastoriadis:

Ohistoriadorouoetnólogosãoobrigadosatentarcompreenderououniversodosbabilôniosoudos bororos … como se o vivenciassem, e … a evitar introduzir nele determinações que nãoexistiamparaessacultura.…Masnãosepodepararporaí.Oetnólogoquetenhaassimiladotãoprofundamenteavisãodemundodosbororosapontodenãopodercontinuarvendoomundode outramaneira não émais um etnólogo,mas um bororo, e os bororos não são etnólogos. Araisond’être do etnólogo não é ser assimilado pelos bororos,mas explicar aos parisienses, aoslondrinos e aos nova-iorquinos, em 1965, a outra humanidade representada pelos bororos.Portanto,elesópodefazê-lopelalinguagem.30

Castoriadis assinala de imediato que a linguagem traduzida e aquela

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por meio da qual a versão é disponibilizada aos parisienses e nova-iorquinos não são “códigos equivalentes” – elas são estruturadas pordiferentes “signi icações imaginárias”. Para fazer seu trabalho de formaadequada, a tradução deve aproximarse tanto quanto possível dessassigni icações. Porém, quandoesse im parece prestes a ser alcançado,quando ele está bem perto, ela pode, literalmente, ser tragada, e suaslocuções serão tão ilegíveis para os leitores domésticos quanto asexperiênciasquebuscoutraduzir.

Aspirantes a antropólogo costumavam ser advertidos com a tristehistória de Frank Cushing, considerado o maior expert em cultura zuni.Quantomaiseleentendiaoszunis,maissentiaqueseusrelatos,recebidoselouvadoscomgratidãopeloscolegasantropólogos,distorciamarealidadezuni,emvezdetransmitila.Elecomeçouasuspeitardequetodatraduçãofosse uma deformação. Não se satisfazia com sua própria compreensão,nãoimportaemquenívelelaestava;acadabasequealcançava,descobriaoutraporbaixo.Embuscadatraduçãoperfeita,Cushingdecidiuvivenciarouniversozuniapartir“dedentro”.Conseguiu:oszunioaceitaramcomoumdeles e lhe concederam amaior honraria que um zuni pode obter, ocargo de arquissacerdote do Arco-Íris. Desde então, porém, Cushing nãoescreveuumaúnicafrasedeantropologia.

Há uma descrição paradigmática da situação do etnólogo nomaravilhoso conto “A busca de Averróis”, do grande escritor argentinoJorgeLuisBorges–pensadorquesesenteemcasaemtodasastradiçõesconvergentes no mundo das modernas classes letradas. Intrigado pelaspalavras “tragédia” e “comédia” encontradas no texto de Aristóteles, oAverróisdocontodeJorgeLuisBorgespelejoudurantediassem imparaencontraratraduçãoadequadaemárabe.Seuproblema,contudo,nãoeraapenas uma questão de dicionário, de linguística. Ele foi mais fundo: emtodasuavida,Averróisnuncaforaaoteatro,invençãoignoradaeestranhanomundoislâmicoemquenasceraevivera.Nãotinhaexperiênciadaquiloaqueessaspalavrasdesconhecidaspoderiamreferir-se.No inal,Averróisescreveu as seguintes linhas: “Aristu dá o nome de tragédia a seuspanegíricos, e o de comédia a sátiras e anátemas. Tragédias e comédiasadmiráveis são abundantes nas páginas do Corão e nasmohalacas dosantuário.” Com insuperável clareza, Borges revela o sentido do queaconteceu:

Nocontoprecedente,tenteinarraroprocessodeumaderrota.PenseiprimeironoarcebispodeCanterbury,quetomouasiatarefadeprovarqueexisteumDeus;depois,nosalquimistas,quebuscavam a pedra ilosofal; depois, nas vãs trisseções do ângulo e na quadratura dos círculos.

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Mais tarde re leti que seriamais poético contar o caso de um homem que estabelece para simesmoumobjetivoquenão éproibidoparaos outros,maspara ele. Lembrei-medeAverróis,que, encerrado na esfera do islã, não podia conhecer o signi icado dos termos tragédia ecomédia.

Vem então o ponto principal, o relato de uma autodescoberta notável,antecipandoemboaquantidadedeanosas tormentosasedeslumbrantesrevelaçõesintrospectivasdosantropólogosculturais:

Relateiestecaso:enquantoeuprosseguia,sentioqueaqueledeusmencionadoporBurtondevetersentidoquandotentoucriarumtouro,eemvezdissocriouumbúfalo.Sentiqueotrabalhoestava zombando de mim. Senti que Averróis, tentando imaginar o que era um drama semjamais tersuspeitadooqueeraumteatro,não foimaisabsurdodoqueeu, tentando imaginarAverróis sem qualquer outra fonte senão alguns poucos fragmentos de Renan, Lane e AsínPalacios. Senti, na última página, queminha narrativa era um símbolo do homem que eu eraquandoaescrevi,eque,paracomporessanarrativa,eutinhadeseraquelehomem,eparaseraquele homemeu tinhade compor a narrativa, e assimpor diante,ad in initum. (Nomomentoemqueeudeixardeacreditarnele,“Averróis”desaparecerá.)31

A di ícil sabedoria obtida por leitores ocidentais a partir de culturasestrangeiras após alguns séculos de autocon iança injusti icada, embora,por issomesmo,nãomenosarrogante, jáestátodaaqui–nasruminaçõesdamenteprivilegiadalançandoseuspensamentosdentrodomundoqueocentro classi icadeperiférico–,mas,poressamesmarazão,mantidoporforçanotopoda“barricadadatradução”.

A traduçãoéumprocessodeautocriaçãoe tambémdecriaçãomútua;longe de exercer a autoridade de colocar o traduzido no devido lugar, otradutordeveprimeiroelevar-seaoplanodotraduzido;masseatraduçãocria o texto traduzido, também cria o tradutor. Sem o relato da busca deAverróis, o Averróis que busca desaparece; tanto tradutor quantotraduzido ganham vida e desaparecem no processo da tradução – cadaqualéuma tela imagináriaemqueseprojetaomesmo trabalhocontínuode comunicação.Muitas vezes nos preocupamos com o que se “perde natradução”.Talveznospreocupemosindevidamente,oucomacoisaerrada:detodomodo,nuncasaberemosoqueseperde,e,seviermosasaber,nãoconseguiremoscompartilhar nosso conhecimento comaquelesparaquemgostaríamosdetraduzir.Emvezdisso,avaliemososganhos.Hácoisasquesópodemserganhasnatradução.

Durante amaior parte de sua história, a teoria da hermenêutica – dacompreensãodaquiloquenãoéimediatamentecompreensívelouquetrazconsigo o perigo da compreensão equivocada – era uma narrativa dos

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feitosdosquebuscamaverdadenaterradopreconceito,da ignorânciaedodesconhecimentodesimesmo;ahistóriadolançarluzsobreastrevas,da luta contra a superstição, da correção do erro – e outras formas delimparasmanchasdeixadasporacidentesdahistória,semprelocaisecommuita frequênciadistantes, sobrea facepurado signi icadoobjetivoedouniversalmenteválido.Nessanarrativa, o intérprete eraumamáscaradolegislador; esperava-se que o intérprete construído por essa narrativarevelasse a verdade daquilo que os que vivenciaram a experiênciainterpretada, pela sua própria ingenuidade passada e não esclarecida,eram incapazes de perceber. Tal como Marlow e Kurtz, personagens deJoseph Conrad, o explorador de outras culturas era pressionado peloimpulsodelançarluzsobreoqueatéentãofora“ocoraçãodastrevas”.Emúltima instância, a tradução não era um intercâmbio entre duas línguasdiferentes, muito menos um intercâmbio idêntico entre duas línguasequivalentes,maso atodeelevaro contingenteaoplanodoobjetivopelaimposição legislada do signi icado, para a qual só o tradutor, não otraduzido,estavaqualificado.

Na famosa palestra de 1983 que introduziu no atual discursosociocientí icoo conceitode “antirrelativismo”, 32 eemnumerososestudospublicados mais tarde, Clifford Geertz popularizou a ideia de que, nomundo do explorador de “outra cultura”, os “nativos”, imersos em seusmundostambémcontingentes,situavam-sedosdoisladosdoencontro.Nãoexisteumpontodeobservaçãosupraculturalesupra-histórico(eportantolivre de toda contingência) a partir do qual o signi icado verdadeiro euniversalpossaseravistadoedepoisretratado;nenhumdosparceirosdoencontroocupaessaposição.Atraduçãoéumdiálogocontínuo,incompletoe inconclusivo que tende a continuar assim. O encontro de duascontingências, ele próprio, é uma contingência; nenhum esforço impediráque assim o seja. O ato da tradução não é um evento singular que possaacabar com a necessidade de novos esforços de tradução. O local deencontro,aterradefronteiradasculturas,éoterritórioemqueoslimitessão constante e obsessivamente traçados só para serem violados eretraçadosvezes semconta– enãomenospelo fatodeosdoisparceirosemergiremmodificadosdecadasucessivatentativadetradução.

A tradução transcultural é umprocesso contínuo que ajuda aomesmotempoqueconstituiaco-habitaçãodepessoasquenãopodemnemsedarao luxo de ocupar o mesmo espaço, quanto mais de delinear o espaçocomumemsuasformaspróprias,distintas.Nenhumatodetraduçãodeixa

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um dos parceiros intacto. Ambos emergem do encontro modi icados,diferentesdoqueeramnocomeço–assimcomoatraduçãodeixadaparatrásnomomentoemquefoicompletadanecessitadeuma“novatentativa”;essamudançarecíprocaéotrabalhodatradução.

Anthony Giddens faz inúmeros comentários sobre a viagemantropológica de Nigel Bailey à Indonésia, que, a seu ver, estabeleceu opadrão de abordagem que os estudiosos de “outras culturas” podem edevem seguir. “A antropologia”, observa Giddens com aprovação,“descobriu o que se poderia denominar ainteligência essencial de outrasculturasetradições”.33Masofezcomatraso.Porumlongotempo,seguiroscânones da metodologia ortodoxa signi icava observar nos relatosantropológicos oprincípioda “ausênciadeautor”.Essapretensaausênciaera,contudo,umdisfarceparaapresunçãodesuperioridadedoautor,desuaonisciência:comoseelesedissolvesseedesaparecesse–comtodasassuas falhas e tolices particulares ou socialmente produzidas – noconhecimento objetivo pelo qual atuou como portavoz. (“A anatomia dohomem”, explicou Karl Marx, é a chave para a anatomia do macaco;segundoessavisão,as“formassuperiores”daevoluçãohumanarevelamoque eram as “formas inferiores”: elas tateavam no escuro para atingir averdadequesóseabreasuassucessoras“maisavançadas”.)NavisãodeGiddens,apretensa“ausênciadoautor”tevecomoefeitoo fatodequeosestudosassimproduzidosnãofossem“engajamentosdialógicosplenoscom‘outras culturas’”. Em sua viagem à Indonésia, Bailey comportou-se deforma diferente – admirável: “É ele oingénu, e não as pessoas que vaiinvestigar.ÉcomoumLuckyJimdomundoantropológico.”

Giddens apreende aqui a essência da nova antropologia, feita sobmedidaparaomundopós-colonial,noqualas fronteiras, emsuamaioria,são encontros entre estranhos aos quais ninguém compareceu tendo nobolso a permissão de estabelecer um programa. Todos os residentes dazonade fronteira têmagorapela frente tarefa semelhante.Compreender,não censurar; interpretar, não ordenar; abandonar o solilóquio em favordo diálogo – parece ser este o preceito para as novas ciências humanas,maishumildes;porém,pelamesmarazão,maispoderosas,prometendoaoshomens e mulheres desnorteados que vivem em nossa era algumdiscernimento e um pouco de orientação para enfrentar a massa deexperiências cada vezmais descoordenadas e amiúde contraditórias – e,pelaprimeiravez,capazesdecumprirsuapromessa.Noentanto,hámaiscoisasaseremditas.

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O que foi exposto parece ser também o preceito para as ciênciashumanas feitassobmedidaparanossaerade intercâmbioecomunicaçãoglobais, de um tempo achatado e de um espaço encolhido ou abolido devez.Nessetipodemundo, fronteiras interculturaissópodemsertraçadasexperimentalmente, e só conseguem ter uma vida tênue, perigosa eprecária. Sãosobretudo imaginadas – e a imaginação que as sustentaenfrenta obstáculos enormes: virtualmente, todas as forças materiais eespirituais de nossos tempos devem ser computadas entre seusadversários. As fronteiras reais ou putativas são atravessadas com tantafrequência que, em vez de falar de marcos divisórios que podem seralternadamente preservados ou rompidos, é mais adequado descrevernossasituaçãocomoadeumavidaqueselevanazonadefronteira.Aquiloqueos limitesdevemmanterseparadoémisturadoeespalhadodeformaaleatória,easlinhasdedivisãojamaispassamdeprojetosinacabadosquese destinam (e na verdade tendem) a ser abandonados antes de atingirqualquercoisapróximadesuaconclusão.Linhassãotraçadassobreareiamovediçaapenasparaseapagareserretraçadasnodiaseguinte.

Wojciech Burszta, um membro distinto da brilhante geração deantropólogos poloneses que tanto fez para avaliar esse novo estado decoisas, assinala que “a teoria tradicional da cultura, tão bem-testada nocaso de populações estáveis, isoladas, relativamente pequenas,economicamente simples e autocentradas, é inútil diante de “culturas emmovimento”.

As culturas tornam-se interdependentes, penetram-se, nenhuma é um “mundo por direitopróprio”, cadaumadelas temstatushíbridoeheterogêneo,nenhumaémonolítica e todas sãointrinsecamentediversificadas;há,aumsótempo,mélangeculturaleglobalidadedacultura.…

Aépocadasviagensintelectuaisàs“periferiassilenciosas”chegouao im;estasúltimasfalamporsimesmas,ouviajaramelasprópriasparaocentro,inúmerasvezessemconvite.34

Encara-se com suspeita, conclui Burszta, a própria noção de “cultura”como entidade fechada em si mesma, internamente consistente eestritamentecircunscrita.Seriapreferívelabandonardevezahipótesedeculturas distintas e, em vez disso, falar de “alteridade” – um modo deexistênciaecoexistênciatãouniversalquantonãosistêmicoemuitasvezesaleatório.Adiferençaéomodelodomundoànossavolta,adiversidadeéomodelo domundo dentro de cada um de nós. Agora somos todostradutores, sempre que conversamos uns com os outros – mas tambémsempre que re letimos sobre aquilo que percebemos, de maneirajusti icada,masemamplamedidadeformaputativa,comonossospróprios

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pensamentos.Mencionei antes a posição antirrelativista de Geertz. Há uma ideia

semelhante, embora um tanto diferente, na obra de Richard Rorty: oprograma do anti-anti-etnocentrismo. Alguns críticos da antropologiaculturalortodoxaconsideravamaalteridadeumsintomadeparoquialismoe particularismo local, assim como de ignorância, imaturidade ou outrasmanifestações de inferioridade, ao mesmo tempo que, de modoequivocado, julgavam sua própria perspectiva, igualmente local econtingente, o ponto de vista objetivo e universal. Eles proclamaram, emvez disso, aigualdade de todas as escolhas culturais, negando assim apossibilidade de comparações e avaliações transculturais. Em seujusti icadoressentimentocontraoextremismoortodoxo,elespularamparaoextremooposto, tornando-se,assim,alvo fácilparaacrítica,vindadestavez dos quadrantes preocupados com as consequências éticasameaçadoras de uma postura radicalmente relativista. O anti-anti-relativismo de Rorty pretende manter distância das duas posiçõesextremas, mas se refere ao estágio cultural contemporâneo parademonstrarqueaposturaextremistaé,antesdemaisnada,desnecessária.

Oanti-anti-relativismodeRorty implica,grossomodo,oseguinte:nãoéverdadequetodososvaloresepreceitosculturaissejamigualmentejustosapenas pelo fato de terem sido escolhidos em algum lugar e em algumestágio da história. Algumas soluções culturais decerto são “mais iguaisque outras”. Não no sentido antes a irmado, de serem respostasendemicamentesuperioresaosproblemasuniversaisdacondiçãohumana,masapenasnodeque,aocontráriodeoutrasculturas,elasestãoprontasalevar em consideração sua historicidade e sua contingência próprias, etambémapossibilidadedecomparaçãoemtermosiguais.

Uma cultura pode proclamar sua superioridade na medida em queesteja preparada para examinar seriamente as alternativas culturais,tratá-las como parceiras num diálogo – não recipientes passivos dehomiliasmonológicas–ecomofontesdeenriquecimento–nãocoleçõesdecuriosidadesesperandoparaseremcensuradas,enterradasoucon inadasnummuseu.Asuperioridadedessassoluçõesculturaisconsisteemnãoseiarem em sua própria superioridade substantiva e reconhecerem a simesmas como uma presença contingente que, como todos os serescontingentes, precisa ainda se justi icar em termos substantivos – etambémemtermosdeseuvalorético.35

Ora, tudo isso é precisamente a característica da “zonade fronteira” –

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liberal,democráticaeacimade tudo tolerante,ouseja,àmedidaqueessazona continue liberal, democrática e tolerante, o que, como zona defronteira, ela tem uma chance até considerável de ser. Liberal edemocráticosigni icaestar“nomododialógico”–convidativamenteabertoe hospitaleiro, pensando nas fronteiras como locais de encontro econversaçãoagradável,enãoespaçosdecontroledepassaportesevistos,dechecagemalfandegária.Signi icaserinclusivo,nãoexclusivo–tratarosoutroscomosujeitosfalantes,presumindoseudireitoecapacidadedefalarpelo menos até prova em contrário, e esperando por uma nova luz quevenhadoexercíciodessedireito.

Tudoissopodeseravidanazonadefronteiraquenós–porescolhaounecessidade–habitamos.Masnãohágarantia–nenhuma“inevitabilidadehistórica” – de que assim o seja. A polivocalidade pode provocar tantoressentimentoquantoprazer.Aconfusão,aambivalênciaeaincertezaquepodem acompanhá-lamostram que a vida na zona de fronteira não é sócervejaefutebol,podendoinspirarindignação,vergonhaeraiva.Essaáreaéumterritóriode intenso intercâmbio–solo fértilparaa tolerânciaeatépara a compreensão mútua, mas também local de brigas e disputaseternas, terreno fecundo também para mágoas e xenofobia tribais. Acondiçãoculturaldotipozonadefronteiraénotóriaporserfraturadaportendências opostas e hostis, ainda mais di íceis de conciliar pelo fato desurgiremdamesmacondição.

Que tendência acabará prevalecendo, esta é uma questão em aberto:devemosestaralertasparateoriasqueseproclamem ocuparoespaçodeescolhas históricas. Argumentos poderosos podem ser reunidos em favordadeprimenteexpectativadoentrincheiramentocomunaledahostilidadeintercomunal, muda ou vociferante; e, da mesma forma, em defesa daprobabilidadedeseavançarnaeliminaçãodosmarcosdivisóriosculturais.Seja qual for a direção dos eventos, talvez seja prudente dar ouvidos àadvertênciadeMichelFoucault:

Oqueéboméalgoquevemcomainovação.Obomnãoexistecomotal,numcéuatemporal,compessoas que seriam como os Astrólogos do Bem, com a tarefa de determinar qual a naturezafavoráveldasestrelas.Oboméde inidopornós,épraticadoeinventado.Eesseéumtrabalhocoletivo.36

Não existe astrólogo, não existem pessoas dotadas de uma linhatelefônica direta com a ordem predeterminada da criação – por maisnumerososquesejamoscandidatosataisocupações.“Melhor”e“pior”não

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são selecionados de antemão, e nenhuma forma de iltragem pode serconsideradainfalível.Obomnãopodesergarantido–maspodeganharaoportunidade de aparecer: ao prosseguir o trabalho coletivo, ao darcontinuidade à negociação, resistindo com sucesso a toda conclusãoprematura(umpleonasmo,semdúvida:naquestãodosvalores,nenhumaconclusãopodeterdatafixada–todaconclusãosópodeserprematura).

Nossaépoca,adopluralismoculturalcomoalgodistintodapluralidadede culturas, não é a era do niilismo. Não é a ausência de valores nem aperda de sua autoridade que torna a condição humana confusa e asescolhas di íceis, mas a multiplicidade de valores, frouxamentecoordenados e ligados (embora demodo de iciente) a uma variedade deautoridades diferentes, muitas vezes discordantes. A a irmação de umconjuntodevaloresnãomais se fazacompanhardadetraçãode todososoutros; o resultado éuma situaçãode comutação constante – experiênciaenervadora,quetornaatraenteapromessadeuma“grandesimplificação”.

A proteção do “trabalho coletivo” de Foucault não é de forma algumagarantida – a disposição para a negociação e o diálogo é fustigada edesgastadapelo sonho contrário,deumaescolha inalque tornaria todasas outras escolhas redundantes e irrelevantes. O verdadeiro dilema éreconheceravalidade,as“boasrazões”demuitosvaloreseatentaçãodedepreciar e condenar valores outros que não aqueles hoje escolhidos.ComoJeffreyWeeksa irmou:“Oproblemanãoestánaausênciadevalores,mas em nossa incapacidade de reconhecer que existem muitas formasdiferentes de sermos humanos, e em articular as correntes comuns quecomfrequênciaasunem.”37

Esse problema, contudo, é em si mesmo uma fonte de problemas.Correntes apresentadas como “comuns” podem ser instrumentos daerosão de valores. Parece que a agora espantosa popularidade dos“valores econômicos” – como e icácia, e iciência, competitividade – sebaseia em considerável medida em sua indiferença à qualidade dosvalores que eles propõem como “denominador comum”. Esses valoreseconômicos em tese oferecem um guia infalível para a escolhasimplesmente dissimulando, depreciando ou apagando tudo aquilo quetornou a escolha necessária, e o “trabalho coletivo” indispensável, emprimeiro lugar: a diferença genuína entre várias formas de sermoshumanos, o bem que cada uma delas promove, a impossibilidade daescolha de certos valores sem o sacri ício de outros. Como Simmelassinaloumuitotempoatrás,oquetornavaliosososvaloreséopreçoque

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temosdepagarporescolhê-los–emtermosdeadiaroucederoutracoisa,nãomenosvaliosaedignadedefesa.Nessesentido,apromoçãodocálculoeconômico ao status de valor supremo, na verdade único, é, ao lado deoutras variedades de fundamentalismo contemporâneo, uma das fontesmaisimportantesdaameaçaniilista.

Umavezmais,JeffreyWeeksapresentaodilemaatualsobaperspectivacorreta ao a irmar que, no caso da “humanidade” entendida como “aunidadedaespécie”,

odesafioéconstruiressaunidadedeumaformaqueatinja(“invente”ou“imagine”)umsentidode “valor humano universal”, ao mesmo tempo que represente a variedade e a diferençahumanas.…

Ahumanidadenãoéumaessênciaaserconcretizada,masumaconstruçãopragmática,umaperspectiva a ser desenvolvida pela articulação da variedade de projetos individuais, dasdiferençasqueconstituemnossahumanidadenosentidomaisamplo.

Finalmente,umaadvertência:“Operigonãoestánoscompromissoscoma comunidade e a diferença, mas em sua natureza exclusiva.” Não hávínculo necessário entre a preferência por certos valores e a negação deoutros.Neminclusãonemexclusão;nemaberturanemfechamento;nemadisposição de aprender nem o estímulo de ensinar; nem a disposição deouvir nem o impulso de mandar; nem a curiosidade solidária nem apostura de negligência hostil em relação às maneiras de ser humanodiferentesdesuaprópria–nadadissoéobrada inevitabilidadehistóricaou de atitudes enraizadas na natureza humana. Nenhuma dessasalternativastemmaiorprobabilidadedeserealizarquequalqueroutra–eem cada caso a passagem do possível ao real é mediada pela sociedadepoliticamente organizada, ou seja, pelo fórum de pessoas pensantes efalantes.

Pormais de um século, as culturas foramde inidas basicamente comotecnologias de discriminação e distinção, fábricas de diferenças eoposições.Masodiálogoeanegociaçãotambémsãofenômenosculturais–e como tal ganham, em nossa era de pluralidade, uma importânciacrescente,talvezdecisiva.Aconstruçãopragmáticaaquesedáonomede“humanidade” é também um projeto cultural, um empreendimento quenão está fora do alcance da capacidade cultural humana. Pode-seencontraramplacon irmaçãodequeassiméemnossaexperiênciacomumdavidacotidiana.A inal,conviver,conversarunscomosoutrosenegociarcom sucesso soluções mutuamente satisfatórias para problemas comunssãoanormadessaexperiência,nãoaexceção.Pode-seexpressarsobrea

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pluralidade cultural amesmaopinião emitida porGadamer a respeito dapluralidade dos horizontes cognitivos: se a compreensão é ummilagre, éum milagre diário, realizado por pessoas comuns, não por milagreirosprofissionais.

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•1•

Culturacomoconceito

Éconhecidaa inexorávelambiguidadedoconceitodecultura.Bemmenosnotóriaéa ideiadequeessaambiguidadeprovémnemtantodamaneiracomo as pessoas de inem a cultura quanto da incompatibilidade dasnumerosas linhas de pensamento que se reuniram historicamente sob omesmo termo.Demodo geral, os intelectuais são so isticados o su icientepara perceber que a similaridade de termos é um guia frágil quando setratadeestabeleceraidentidadeoudiversidadedeconceitos.Aindaassim,aautoconsciênciametodológicaéumacoisa,amagiadaspalavras,outra.

Commuita frequência, umnúmero imensodepessoas se vê enredadopela tendência temerária, embora de senso comum, de impor uma frágilunidade conceitual a termos semelhantes. O esforço, que pode ser dealgum proveito no caso das linguagens arti iciais da ciência, di icilmentedará frutos se as expressões em causa, como cultura, tiveremuma longahistóriapré-científicaecosmopolitaprópria.Palavrasdessetipoquasesemdúvidateriamsidoadotadaspordiferentescomunidadesintelectuaisparadar respostaadiversosproblemasenraizadosem interessesdivergentes.Como regra, as qualidades inerentes ao termo não restringemmuito seupossível uso conceitual. Tampouco existe a necessidade “natural” de umtermo livremente lutuante aser adotado cada vez que se perceba umademandaconceitualespecífica.

Poucas pessoas conhecem melhor essa regra que os antropólogosanglo-saxões dos dois lados do Atlântico. Embora impulsionados pelamesmaânsia incontrolávelde“registrar”modosestranhosdevidaemviade extinção, eles enfrentaram duas situações bem distintas. ComoW.J.M.Mackenzie assinalou, “os americanos tinham de trabalhar sobretudo comlínguas, artefatos, indivíduos sobreviventes; os britânicos podiam icarsentadosobservandocomcalma–emmeioasistemassociaisnasuper ícieintocadospelogovernobritânico”. 1Porforçadeseuprocedimentopróprio

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(embora não escolhido de forma voluntária), o que eles extraíramoralmente dos sobreviventes isolados da debacle parecia aos americanosuma rede de “deves” mentais. Chamaram o que viram (ou o queimaginaram ter visto) de “cultura”. Ao mesmo tempo, seus correlatosbritânicos – já que as informações orais que obtiveram pareciam tersustentação na realidade das comunidades vivas – se inclinavam aorganizardadosbasicamente similaresnuma redede “és”, ederam-lheonomede“estruturasocial”.

Emúltimaanálise,osdoisladosestavamatrásdamesmacoisa:emquemedida e em que sentido o comportamento do povo X difere docomportamento dos povos Y e Z. Mais que isso: os dois lados de fatoperceberam que, para alcançar esse objetivo, deveriam descobrir e/oureconstruirpadrões reproduzíveisdecomportamentohumanoemqueascomunidades diferissem entre si. Ambos os lados, portanto, buscavam omesmo objetivo e procuravam os mesmos tipos de dados primários. Osconceitos teóricos ixados em seus modelos explanatórios e normativos,porém,eramdiferentes.

O todo – ao qual se esperava que a conduta individual se ajustasse –signi icava para os britânicos um grupo de indivíduos interligados,enquanto para os americanos representava um sistema de normasinterligadas. Os britânicos queriam saber, emprimeiro lugar, como e porque as pessoas se integram; os americanos tinham curiosidade sobre omodo como normas e princípioscooperam ou se chocam. Os dois gruposeram a icionados pelo conceito de papel, que ambos consideravamindispensável e fundamental como ferramenta analítica para tornarinteligíveis os dados empíricos dispersos.Mas os britânicos viam o papelcomo vínculo mediador que integrava o comportamento individual àsexigênciasdaestruturasocial,enquantoosamericanospreferiamcolocá-lona posição demediador entre a conduta individual e a intricada rede denormaseimperativosmorais.

De importância ainda maior foi o fato de que as duas tendênciasteóricas divergentes acabaram ganhando nomes contrastantes. Muitotempo depois de os dois lados aceitarem a legitimidade das respectivasabordagens e deixarem de conter a fúria de suas antigas cruzadasmetodológicas,acrençadequesepodelidarcom“relaçõessociais, emvezde cultura”, 2 continuou a principal, se não a única, relíquia dessascontrovérsiasque,deoutromodo,teriasidoesquecida.

Esse debate é um exemplo evidente da situação em que o aceite do

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termo por alguns e sua rejeição por outros pode levar ambos os lados aexageraraspeculiaridadesconceituaisqueporventuraosseparem,sejamelas quais forem. De forma inversa, issuras conceituais muito maisprofundas tendem a ser negligenciadas ou subestimadas quando ocultasportrásdetermoscorrelatos.

Sintomático dessa tendência é o fato de que amaioria dos intelectuaisquetentamcolocaralgumaordemnovastoespectrodecontextosemqueotermo “cultura” aparece costuma abordar sua tarefa como, em primeirainstância, a necessidade de “classi icar as de inições aceitas”. Namaioriados casos, presume-se de maneira tácita, quando não explícita, asuperposição (se não a identidade) de campos semânticos. O quesupostamentesedeixaparaconciliarsãoaspreocupaçõesdivergentesdeescolasouautorescomumououtroaspectodocampo.

Assim, A. Kroeber e C. Kluckhohn,3 depois de dividir com cuidado asdefiniçõesdeculturareunidasemseisgrupos,continuaramconvencidosdequeoquetornavacadagrupodiferentedosoutroseraadiversidadedosaspectos que os autoreshaviamescolhido como traçosde inidoresdeumcampo semântico que, de outro modo, seria comum (a essênciaterminológica das divergências reconhecidas foi adequadamenteenfatizadapelaescolhadeverbetesclassi icatórios;havia,nataxonomiadeKroeber e Kluckhohn, de inições descritivas, históricas, normativas,psicológicas, estruturais e genéticas).Umadécadamais tarde,Albert CarlCafagna4 se lançou à mesma viagem exploratória para produzir divisõesapenas nominalmente diferentes (de inições que enfatizavam a herançasocial, o comportamento aprendido, as ideias ou o comportamentopadronizado). Tampouco lhe ocorreu que esferas portadoras da maiorsemelhança fenomenal podem adquirir signi icados bastantecontraditóriossecolocadasemestruturassemânticasdivergentes.

Maispertodessadescobertaestavamossociólogoseantropólogosquepromoviam a famosa distinção entre duas compreensões da cultura: avinculadaavaloreseaneutraemrelaçãoaeles–emborapermanecesseacrençadequealinhadivisóriamaisimportanteentreasteoriassociaiseraa que corria ao longo do eixo “comprometida com valores” – “livre devalores”,porsorte,parecetersidomodapassageira.Adistinçãosancionou,mesmo que só de modo implícito, o inevitável argumento de que osconceitos opostos a um termo num contexto particular têmmais a dizersobre seu signi icado que a de inição formulada com meticulosidade,derivada,dopontodevistaanalítico,domesmo termoquando tomadode

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formaisolada.Na famosa distinção de Edward Sapir entre uma cultura que encarna

“qualquerelementosocialmenteherdadonavidadohomem”eoutraque“serefereaumidealbastanteconvencionaldere inamentoindividual”, 5amesmapalavraapareceemdoiscampossemânticosdistintos:noprimeirocaso,opõe-seao“estadodanatureza”,ouseja,àfaltadeumconhecimentotradicional socialmente hereditário; no segundo, é contrastado com arudeza determinada pela negligência ou falha dos processos dere inamento (educacionais). Não que o conceito tenha sido de inido deduasmaneiras–omesmotermoéválido,naverdade,paradoisconceitosteóricos diversos. Seria inútil o esforço detentar preencher o fossosemânticoentreelesereunirosdoissobumasódefinição.

Osinteressescognitivosinstitucionalizadosàespreitaportrásdotermo“cultura”sãomaisnumerososdoquesepodeapreendercomadicotomiade Sapir. Cada qual se localiza num campo semântico substancialmentediferente, cercado por um conjunto especí ico de noções vinculadas doponto de vista paradigmático e sintagmático, e que derivam/manifestamseu signi icado numa série distinta de contextos cognitivos. Essacircunstância parecedecisivapara a escolhada estratégia taxonômicanodomíniodosconceitosteóricos.

A estratégia alternativa, aquela que de fato se aplica na maioria dasclassi icações populares, consistiria em separar os atributos usados porvários autores para descrever uma classe de fenômenos substanciais“objetivamente” distinta. Teríamos de presumir que existe alguma formaobjetiva de de inir uma classe peculiar de fenômenos culturais; que atarefa de um estudioso desejoso de de ini-la consiste em recolher oudescobrir certonúmerodecaracterísticaspresentesemcadamembrodaclasse;equeatarefadeumestudiosoquedesejeclassi icarasde iniçõespropostas consiste em separá-las, do modo mais conveniente eparcimonioso, numnúmero limitadodedivisões, cadaqualpossuidoradeseuprópriodenominador comum.A iloso ia subjacente a essa estratégiapresume uma inquestionável prioridade do universo fenomenal,objetivamenteeemsimesmodeterminadoeordenado,eumpapelapenassubordinado,secundário,paraodiscursohumano.

Issonoscolocanocentrodacontroversaquestão ilosó icadanaturezado signi icado – algo que não podemos desenvolver aqui na extensãoproporcionalàsuaimportânciaeàsofisticaçãoatestadapelosespecialistas.Independentemente da signi icação do problema em si, ele desempenha

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somenteumpapelauxiliaremnossaconsideração.Esperopoderdeclararque, entre as muitas teorias atuais do signi icado, minha opção é pelateoriadouso,ouseja,aquelaquetentaelucidarosigni icadodeelementoslinguísticos semanticamente carregados pelo estudo dos locaisem queaparecemtantonadimensãoparadigmáticaquantonasintagmática. 6ComoafirmaJ.N.Findlay:

Oqueestáimplícitonolema“Nãoperguntepelosigni icado:perguntepelouso”nãoéqueousoabarque muitomais que as funções conotativa e denotativa da linguagem, porém, que ele decerta forma as resume e explica totalmente, que podemos olhar à nossa volta e perceber,conversandosobreisso,areferênciaeaconotaçãodeexpressõesobservandoamaneiracomoaspessoas as utilizam, como as combinam com outras expressões para formar sentenças e asdiferentescircunstâncias em que produzir tais sentenças é considerado adequado ouplenamentejustificável.7

Decerto que não acompanharia em tudo os porta-vozes maispragmaticamente orientados da teoria do uso, que negam a importânciados “signi icados preexistentes”, ou seja, preexistentes em relação àelocução atual.8 Mas devo insistir na íntima conexão einterdependência(emoposiçãoàdependênciasódemãoúnica)entreonívelcontextualeodo signi icado. Os dois são inseparáveis e constituem um ao outro, porforçade “umacorrelaçãoentre,porum lado, avariaçãocontextual e,poroutro, as variações de conteúdo”. 9 Cada termo utilizável na comunicaçãosigni icativaéumíndicenosentidosemiológicodotermo,ouseja,reduzaincerteza anterior do universo percebido, introduz alguma ordem numdomínioatéentãoamór ico.Masesseíndiceestárelacionadonãoapenasàclassedefenômenosque“nomeia”;otermo-índiceorganizaatotalidadedouniverso e assim se relaciona a ele como um todo, e só pode sercompreendidoemseuarcabouçototal.Oatodaindicação(aatividadequeconstituioíndice)“apresentainevitavelmenteumaspectonegativoaoladodeumpositivo”.

Aclasseindicadapeloíndice“nãoéumaentidadeabsoluta:oqueelaése deve apenas à sua relação com outra classe, complementar. … Paradeterminar uma classe, deve-se começar deun univers du discours; ocomplementodaclassepodeserde inidocomoumaclasse formadapelosobjetos pertencentes aouniversdu discours, mas não abrangidos pelaclasseemquestão”. 10Ora,nemo índiceeaclassepositivamentedenotadapor ele nem ouniversdudiscours emqueele é signi icativo levamaumaexistência independente. Um vínculo mais ou menos consistente entredeterminadotermo-índiceedeterminadaclassedeobjetospodeser(ede

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fato muitas vezes é) estabelecido numa dada comunidade a ponto de seimpor, com a força de uma inevitabilidade externa, a cada membro dacomunidade e a cada eventocomunicação em particular. Vistohistoricamente, contudo, ele não existe pormais tempo (embora tambémnãopormenos)doqueouniversdudiscoursqueelenãoapenasorganiza,comotambémtrazàluz.

Emfunçãodecircunstânciashistóricasnãomuitorelevantesparanossotema,otermo“cultura”foiincorporadoatrês universdudiscoursdistintos.Emcadaumdostrêscontextoseleorganizaumcamposemânticodiverso,singulariza e denota diferentes classes de objetos, põe em relevodiferentes aspectos dos membros dessas classes, sugere diferentesconjuntos de questões cognitivas e estratégias de pesquisa. Isso signi icaque, em cada caso, o termo, emboramantendo intacta sua forma, conotaum conceito diverso. Há um só termo, porém três conceitos distintos. Épossível apontar numerosos pontos de contato comuns aos três campos.Talvez se possa tentar minimizar as discrepâncias mais salientes eaparentemente irremovíveis como controvérsiasmarginais e temporáriasqueseriamelhoreliminaremfavorda“clarezaconceitual”ouda“precisãoterminológica”.Mas,antesdefazê-lo,deve-setercertezadequeojogovaleapena.Naverdade,muitoprovavelmente,não.

Umdospressupostosdesteensaioéofatodequeaquiloquediferenostrês conceitos de cultura coexistentes (e o que é determinado pelasdivergências de forma alguma contingentes e secundárias entre osrespectivos campos semânticos) é a parte cognitivamente mais rica,fecundae,portanto,academicamenteestimulantedeseuconteúdo.Astrêsquestõesqueconformamseuuniversdudiscourssubordinadotambémsãolegítimas e relevantes. É preferível explorar as imensas oportunidadescognitivasque se revelam seminais em sua especi icidadedo que se aterao esforço muito menos compensador de atingir uma simetria um a umentreumsóconceitoeumsó termo.Tentareimostrarnesteensaioqueopreçoseriamuitoaltoparajusti icarumasatisfaçãopuramenteestética.Oaspectodecisivonãoétantoseastrêsnoçõespodemounãoserreduzidasaumdenominadorcomum,masseessareduçãoémesmodesejável.

Aculturacomoconceitohierárquico

O uso do termo “cultura” está tão profundamente arraigado na camadacomumpré-cientí icadamentalidadeocidentalquetodomundooconhece

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bem, embora por vezes de forma irre letida, a partir de sua própriaexperiência cotidiana. Nós reprovamos uma pessoa que não tenhaconseguido corresponder aos padrões do grupo pela “falta de cultura”.Enfatizamos repetidas vezes a “transmissão da cultura” como principalfunção das instituições educacionais. Tendemos a classi icar aqueles comquemtravamoscontatosegundoseunívelcultural.Seodistinguimoscomouma “pessoa culta”, em geral queremos dizer que ele é muito instruído,educado, cortês, requintado acima de seu estado “natural”, nobre.Presumimostacitamenteaexistênciadeoutrosquenãopossuemnenhumdessesatributos.Uma “pessoaque temcultura”éoantônimode “alguéminculto”.

Vários pressupostos foram necessários para explicar a noçãohierárquicadecultura.

1) Herdada ou adquirida, a cultura é parte separável do ser humano, éumapropriedadede tipomuitopeculiar, semdúvidaalguma: elapartilhacom a personalidade a qualidade singular de ser ao mesmo tempo a“essência”de inidoraea “característicaexistencial”descritivadacriaturahumana.DesdequeospoetaslíricosdaGréciadescobriram,noséculoVII,a divergência entre desejo e dever, entre dever e necessidade, o homemocidental foi condenado à angustiosa precariedade de uma identidadedual,semelhanteàfacedeJano:eleéumapersonalidademastambémtemumapersonalidade,éumatormastambémobjetodesuaprópriaação,aomesmotempocriadorecriatura.Suaessênciadeterminaoqueé:maseleécominsistênciaresponsabilizadoporsuaessênciaeobrigadoaformatá-ladeacordocomseudesempenhoexistencial.

Aculturaemseusigni icadohierárquicolevaàmesmavidafrustranteepavorosa de umobjeto que é seu próprio sujeito. “O que Sócrates tentoufazer com que os atenienses compreendessem foi o dever de ‘cuidar desuas almas’. … A um ateniense do século V a.C. … deve ter parecidorealmente muito estranho.” 11 Para um ateniense daquele século, a alma(Ψυχή)erasementeeportadoradavidaquedesaparececomaexistênciaconscientedoserhumano.Aideiadequeumapessoapode–e,maisainda,deve– tentaragiremproldealgumacoisavistacomo fontede todaaçãoera, na época, revolucionária o bastante para fazer um gênio da estaturade Aristófanes ridicularizar o seu profeta. Ainda assim, a cultura, nãoobstante a peculiaridade de sua existência, é uma propriedade. E todapropriedade pode ser adquirida, dissipada, manipulada, transformada,

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moldadaeadaptada.

2) A qualidade de um ser humano pode ser moldada e adaptada; mastambém é possível ser abandonada, nua e crua, como uma terra inculta,largadae cadavezmais selvagem.AΤέχυη (téchne) éomeiopeloqual aimensidãodanaturezaéforçadaaseajustaràsnecessidadeshumanas.Aimortalmetáfora de Plutarco da culturaanimi só era compreensível paraseuscontemporâneosporqueseapoiavanacodi icaçãodeCícerosobreaposiçãosubjacenteàpráticaagrícola:osolosódáfrutosdocesemadurosquando tratado por um agricultor competente e habilidoso que, comassiduidadeeesmero,selecionaassementesdemelhorqualidade.

Dezoitoséculosdepois,afonteprimáriadeinspiraçãoaindaestavaviva–eoDictionnairede l’AcadémieFrançaise complementouodebatesobreacultura com uma observação plutarquiana: “Diz-se também, no sentidoigurado, do cuidado que se imprime às artes e ao espírito.”12 Deve terparecidoaAristótelesqueaanalogiaentreoaperfeiçoamentodaalmaeatéchne foiimposta; a alma, para ele, era como “a capacidade de umaferramenta”.13 Uma ferramentamuito estranha, com certeza, como gumevoltadoparasimesma.FielnessesentidoaoadágiodeSócrates,Aristótelesqueria que os homens fossem os moldadores de suas próprias almas.Infelizmente, continua inexplorada a questão de saber em quemedida aintensapreocupaçãodosantigosgregoscomomistériodaconstituiçãodaalma, revelado no tratamento quase religioso que dispensavam a tudoaquiloqueserelacionasseaosprocessoseducacionais,eraestimuladapelaambíguacondiçãoexistencialdapersonalidadehumana.

Contra o cenário da rígida distinção de Górgias entre “agir” e “serin luenciado”, em que o primeiro aspira ao tipo de perfeição disponívelapenas na existência eterna, nunca gerada, e o segundo é sempretransicional, imperfeito, degradado, a enganosa personalidade humanaavultavadeformaperigosasobreasfronteirascríticasdaordemmundial.Nessas circunstâncias, foi apenas natural que Platão atribuísse à almahumanao status sagradode imortalidade: “Somenteoquea simesmosemove, nunca saindo de si, jamais acabará de mover-se. … Toda alma éimortal.Poisoquesempresemoveéimortal.”14

Para amente lógicadeumgrego, essa soluçãoem termosdeum taburevelaria facilmente sua natureza de subterfúgio desesperado, tivessePlatãosidomenosconsistenteaoextrairasconclusõesnecessáriasapartirde uma decisão fatal. Mas ele não foi. A reorganização a partir de um

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projetoextrínseco–oprópriocerneda téchne–foisubstituídapelocultivoautorreveladordequalidades intrínsecas; a formaçãoda almadesnuda aessência que sempre ali esteve, ainda que não evidente e invisível àexperiência sensorial. Isso nos leva à natureza absoluta do ideal deeducação, o atributo inexorável do conceito hierárquico de cultura. Antesdenosvoltarmospara isso,observemosquemesmoosistemaabsolutistadePlatãoadmitia a existênciadeumhiatoentreopotencial eo concreto,deixandomuitoespaçoparaaatividadecriativadatéchne.

3)Anoçãohierárquicadeculturaésaturadadevalor.Aexpressãoindica,contudo (paraqualquerpessoa treinadanaspreocupaçõesdescritivasdaantropologia pós-boasiana), apenas assumir uma posição tendenciosa naconhecidadiscussão a respeitoda comparabilidade e/ou relatividadedassoluções culturais. Por medo de subestimar o que constitui o cerne doconceito hierárquico, preferimos reformular a expressão inicial. Overdadeiro problema não é a admissão ou negação da existência de umcritério objetivo para a avaliação comparativa das culturas. O termo“culturas”, quando entendido do ponto de vista hierárquico, di icilmentepoderiaserusadonoplural.Oconceitosófazsentidosedenotadocomoacultura; existe uma natureza ideal do ser humano, ea cultura signi ica oesforço consciente, fervoroso e prolongado para atingir esse ideal, paraalinhar o processo de vida concreto com o potencial mais elevado davocaçãohumana.

Anoçãohierárquicadeculturamantém-seinabaladanãoapenasdiantede nossa distinção (em outros casos, meticulosa) entre descrição eavaliação. Ela permanece imune a outra distinção que frequenta omoderno pensamento culturológico, entre cultura e natureza. Cultura éatingir,alcançar,anatureza;culturaléaquiloque inactusetornaidênticoàsuapotentianatural.

Robert A. Nisbet culpa (acertadamente) os romanos de engendrarmuitos de nossos conhecidos problemas metodológicos e conceituais, aotraduzircomdescuido,dogregoparaolatim, physiscomonatura.Violandonossasprópriasebem-estabelecidasdivisõeslinguísticas,devemosadmitirq u ephysis transmite um conceito há muito desaparecido de nossovocabulário: denota, tomando-a pelo que ela vale, nossa cultura e nossanatureza aomesmo tempo. Para os gregos, physis signi icava a “forma decrescer”.“Anaturezadeumacoisa…écomoelacresce,etudonouniverso,seja ísicoousocial,temumaphysisprópria,umaformadistintadecrescer,

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um ciclo de vida.”15 Tudo tem sua própriaphysis, que não é uma decisãoarbitrária dos deuses nem objeto de uma ação humana desordenada.SócratescontinuavaperguntandoaTrasímaco,comonoscontaPlatão:

Vocêestariadispostoade inirotrabalhodeumcavalooudequalqueroutracoisacomoaqueleque se pode fazer apenas com ele, oumelhor com ele? … Há algo com o qual você possa versenão com os olhos? … Você poderia ouvir com outra coisa que não os ouvidos? … Não é otrabalho de uma coisa aquilo que só ela pode realizar, ou pode realizarmelhor que qualqueroutra?16

O pensamento grego dedicou-se obsessivamente à noção de universoordenado,emqueodeterminadosefundeaoalcançável,ea liberdadedatéchne se realiza submetendo-se à necessidade da natureza. Os gregosabordavam essa ideia de diversos ângulos. Podem-se considerar, ao ladoda já mencionadaphysis, apsyche socrática e a famosatélos (forma)aristotélica,nãoobstantesuasingularidadesemântica,variaçõessobreumsó tema. A Παιδεία (paideia), tão profundamente dissecada por WernerJaeger,17pertenceàmesma famíliasemântica.Eladesa iaobstinadamentequalquer tentativa de situá-la de forma inequívoca no campo semânticodas línguas modernas. Abrange muito mais que qualquer termo queutilizarmos para expressar nossa forma de dividir o continuum do ser.Como Edward Myers observou com propriedade, é “uma concepção quereúne mais do que é sugerido por ‘cultura’ ou ‘educação’: inclui o idealhumanista de uma cultura ético-política.” 18 Por infortúnio, a fórmulamaisperspicaz não chega a transmitir a riqueza do signi icado original.Tentamos em vão montar um conceito monolítico indivisível juntandopedaçosepeçasincoerentesdenossaexperiênciamoderna.

O ideal cultura-natureza dos antigos gregos não se subdividia nosdomínios que hoje estamos acostumados a distinguir de modo tãometiculoso;omoralmentebomeraaomesmo tempoesteticamentebeloemais próximo da verdade da natureza. A unidade preordenada darealizaçãoedasdimensões-padrãoexpressava-secommaiorplenitudenoconceito,muitodiscutido,deΚαλoκάγαθια(kalokagathia, “beloebom”),doqual trataram amplamente todos os pensadores do período clássico, deHeródotoaAristóteles.A segundapartedoconceito,γαθόζ, éumadjetivoderivado do verbo αγαμαι, que corresponde grosseiramente às palavras“admirar”e“louvar”.Aprimeiraparte,Καλόζ,émaiscomplicada;signi icaaomesmotempoo isicamentebelo,graciosoeatraente;ofuncionalmentebelo, como um objeto feito sobmedida para sua serventia ou vocação; omoralmente belo, nobre e virtuoso; e o socialmente (politicamente) belo,

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comoumapessoaprontaadesempenharcomardorseusdeverescívicos,dedicada à sua comunidade e que merece ser recompensada por suaatividadepública.

O conceito era usadode forma indivisível; aqueles que o empregavampareciam satisfeitos com o fato de que as muitas virtudes que em geraltratamoscomodistintasde fatocaminhassemdeparesecondicionassemumaàoutra.Juntas,elasconstituemavocaçãonaturaldoserhumano;mas“sóaquelesqueagemalcançamkalokagathiaemsuasvidas”. 19Ondequerquehajavirtudeháumaescolha;umapessoapodeescolherainação,podedeixar de atingir sua vocação mesmo que agindo e se comportando demaneira irracional, ou permitindo-se desviar do caminho da decência. Ocaráter natural do ideal não torna sua realizaçãomais fácil ou suave. Eleaindaexigeάγώυ,disputae competição, ideiaassumidapelos ilósofosdaperfeição espiritual do período pré-socrático; foi Heráclito quemapresentou a noção de que a disputa “mostrava serem alguns deuses eoutrosmortais,fezdealgunsescravosedeoutroshomenslivres”. 20Pareceque os pós-socráticos preferiram atribuir à disputa a mesma função“reveladora” nos dois campos que Heráclito se inclinava a distinguir.Di icilmente estariam preparados para compreender a aguda diferençaestabelecidaporsirHenryMaineentrerealizaçãoeprincípiosatributivos.

A questionabilidade inata da noção hierárquica de cultura em geral, eem particular dakalokagathia, traz-nos à mente a charmosa análise deGellner, ao estilo de Swift, do fenômeno nem tão imaginário assim da“bobilidade”(boblility).21Compontaria infalível,Gellnerdesnudaosentidosocialdesseconceitoemaparênciaabsurdo,ambíguoecontraditórioemsimesmo:“Bobilidadeéumarti ícioconceitualpeloqualaclasseprivilegiadada sociedade em questão adquire parte do prestígio de certas virtudesrespeitadas nessa sociedade, sem a inconveniência de ter de praticá-las.”Issoéoque“bobilidade”defatosignificadopontodevistasociológico.

Maisumavez,éverdadequesempreépossívelexercer“controlesocialpor meio do emprego de doutrinas absurdas, ambíguas, incoerentes eininteligíveis”.Masjustaporduasnoçõesqueemgeraldistinguimostornaoconceitoresultantenecessariamenteabsurdo?Quaissãoosoutroscritériosque um sociólogo pode empregar para avaliar a “absurdidade” ou“racionalidade” de um fenômeno social sem levar em conta seu contextosocioestrutural? Será que a coerência semântica de um conceitosocialmentefuncionalnãodeveriaseravaliadaemrelaçãoàestruturaqueele denota e aciona? Em segundo lugar, embora muitas classes

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privilegiadas utilizem conceitos do tipo “bobilidade” para reforçar edefender o seu domínio, o inverso não é necessariamente verdadeiro. Épossível imaginar – e de fato assinalar – exemplos em que um conceitohierárquico de cultura socialmente aceito e aprovado esteja ancorado naestruturasocialporoutras funçõesquenãoosarti íciosprotecionistasdeumaelitehereditáriabem-instalada.

Quantoàprimeiraressalva,foiGeorgSimmelquemnosforneceuapistacertaparaavaliaraaristocraciaeseusideaisemrelaçãoàlógicaintrínsecade uma estrutura social da qual ela é parte constitutiva.22 Simmel vê ofenômeno da aristocracia como resultado de um tipo particular desociedadequesópodeexistirseproduziradaeternum umestratodetipoaristocrático e os princípios culturais correspondentes. Como sabemos,numa sociedadede castas, cadanovo grupo, qualquerque seja seu traçodistintivo, tende a assumir atributosde casta e a se acomodarna rede jáexistente;numasociedadeorganizadacombasenacoexistência funcionaldegruposmutuamenteimpenetráveisehermeticamentefechados,aclassedetentoradopoder assumeomesmo caráter. Tal comooutras classes ouStände, ela é fechada em cima e embaixo; tal como outros grupos, éautorizada ou forçada a utilizar símbolos culturais particulares e aexplorar bens especí icos porque detém um segmento particular daestruturasocial total (enãoaocontrário, comonocasodeumasociedademóveleaberta).Éolócusestruturaldogrupocomoumtodoquedáacadaumdeseusmembrossuaidentidadesocial.

Seagoraconsiderarmosossímbolosculturaisemrelaçãoaseucontextosemântico natural – a estrutura social que eles representam e fazemexistir–,pareceráapenas lógicoeracionalquesuadistribuiçãosebaseieno pressuposto de que “cadamembro de uma aristocracia participe e seaproveitedoquesejamaisvaliosoemtodososmembrosdogrupo.Écomose uma substância de valor permanente corresse pelo sangue dos váriosmembros de uma aristocracia, geração após geração”. 23 Há uma claracorrespondência entre o princípio organizador da estrutura social e osprimeiros axiomas da “ideologia” de cultura aceita. De vez que tanto ossignosquantoseus referentespresumidospertencemaomesmocontextosemântico e representam a salvaguarda, respectivamente, de suasigni icação e de sua relevância operativa, a acusação de “fraude”, de“exploração absurda” etc. só pode ser con irmada em referência a umalógica social de fora, estranha. Do ponto de vista intrínseco, a fusão dasvirtudes individuaiscomaalocaçãoestruturaldogrupoaqueo indivíduo

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pertence parece estar bem-assentada na “lógica objetiva” da estruturasocial.

Everett E. Hagen aborda o mesmo tema da perspectiva do tipo depersonalidade estruturalmentedeterminado.Uma sociedade tradicional –daespécieque levaaumaelitearistocrática–éaquelaemqueabundampersonalidades autoritárias (não confundir com o famoso conceito deAdorno).Aquestãoéque,deacordocomHagen,aocorrênciadessetipodepersonalidade particular não se limita a determinada classe social nestasociedade; ela permeia todas as fronteiras de classe e tende a ser tãogeneralizada na aristocracia quanto entre os camponeses. “Parece-meprovávelqueumaforçacausalchaveamodelartantoopadrãoderelaçõessociais quanto a personalidade do camponês é a consciência da extensãolimitada de seu poder.” A elite aristocrática, pelo contrário, parece sertodo-poderosa:

Seu poder, contudo, depende da posição herdada, não da realização individual. Vale observarquantoavisãoqueseusmembrostêmdasfontesedoslimitesdeseupoderseparececomadoscamponeses.Aquantidadeabsolutadepodereconômicoepolíticodeumindivíduomembrodasclasses de elite não é ixa. Ele pode ganhar poder à custa de outro. No entanto, para cadamembrodaelite,essapossibilidadeéaomesmotempoameaçaepromessa;e,paraalémdessapossibilidade demudanças de poder dentro do grupo, a vida parece ser altamente dominadaporforçasqueestãoalémdeseucontrole,talcomoocorrecomoscamponeses.24

Emborapartindode conceitosoriginaisbemdiferentesdosdeSimmel,chegamos a uma conclusão muito semelhante: a existência de umacorrespondência íntima entre o conceito de ideal cultural do tipo“bobilidade” e o raciocínio inerente à lógica estruturalmente (e, segundoHagen,tecnologicamente)determinadadosprocessos“vividos”.

Entretanto, mesmo que a censura das ideias culturais do tipo“bobilidade” como um absurdo transformado numa arma de classepudessemseancorarnarealidadedasociedadeemdiscussão;mesmoque,em outras palavras, as ressalvas apresentadas até agora pudessem sertotalmenterejeitadas,continuariadepéaquestãodesaberseissonegariatodos os exemplos do conceito hierárquico de cultura. O caso queescolhemos como representativo dele, a noção grega de cultura, não seencaixa muito bem no arcabouço da “bobilidade”; talvez pudesse serapresentado sob esse título em seu estágio pré-clássico, a άρετή (areté,“virtude”), em que o ideal galante dos guerreiros aristocráticos seaproximavadoprivilégiohereditáriodegovernar;masissoémuitomenosverdadeiro no período clássico de uma democracia política, social e

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econômica rousseauniana – a menos, claro, que estejamos preparadosparatratar,demaneiranãototalmenteinjusta,todososcidadãoslivresdeAtenascomoosaristocratasdeumasociedadeescravista.

A avaliação do papel desempenhado pelo conceito hierárquico numasociedadecon lituosadependedoarcabouçoestrutural de referênciaqueselecionemos. Até agora não deparamos com um só caso em que umarcabouço, transformando o conceito hierárquico em outra versão da“bobilidade”, não seja encontrado. Começamos a indagar se o conceitohierárquico pode ser, de alguma forma, isentado da acusação detendenciosidadedeclasse.Tentamosoptarpela lógicasocioestruturalquesupera o aparente absurdo e a inconsistência lógica dos conceitoshierárquicos de cultura. Mas, ainda que racional dessa maneira elogicamentecoerente,seriaesteumconceito“semclasses”?

Idealmente,arespostaésim.Em1924,EdwardSapirtentourecuperaraabordagemgregadeculturaparaforneceraoconceitoemvigornosensocomum uma base acadêmica. Sua metáfora da “cultura genuína” (emcontraposição a “espúria”) pautava-se amplamente na herança grega dos“refinamentosindividuais”eda“formaideal”.

Umaculturagenuínaéperfeitamenteconcebívelemqualquer tipoouestágiodecivilização,nomodelo de qualquer espírito nacional. … É apenas inerentemente harmoniosa, equilibrada,autossatisfatória.…Éumaculturaemquenadaéinsigni icantedopontodevistaespiritual,emquenenhumaparteimportantedofuncionamentogeraltrazconsigoumsensodefrustração,deesforçoequivocadoouinsensível.25

Pode-senotaratendênciarelativistapresentenopensamentodeSapir,embora ausente no de Aristóteles; também se pode observar a humildeaceitação de soluções culturais alternativas que di icilmente teriam sidocompreensíveis aos contemporâneos autocon iantes de Platão. Mas umaspectopermanecealémdediscussão:emdeterminadasociedade,pode-sededuziruma,eapenasuma,formaidealquesejaaphysisaomesmotempocorretaeverdadeira(genuína,emsuma)doserhumano.

O metro que Sapir fornece para mensurar essa cultura superiorapresenta grande semelhança como ideal aristotélicode sophrosyne;maspertence claramente à poderosa corrente da oposição romântica à hubrisindividualquesepreganoevangelhodasociedadeindustrial.Elesópodepassar por um fenômeno sem classes se estivermos preparados paradescartar a vigorosa defesa, por alguns autores, do lastro de classe doromantismo moderno. Desta vez, contudo, ao contrário do caso da“bobilidade”, compromissode classe signi icadissensão. Longede serútil

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na preservação do atual sistema de dominação e privilégio, o idealhierárquico de cultura transmite, de uma das maneiras possíveis, odescontentamento de um dos grupos mais despossuídos edesprivilegiados.Éumidealbelicoso,voltadoparaamudançaeareforma,quersejaconscientedesuaorientaçãoparao futuro,quer, 26 paragrandesurpresadeseusseguidores,aponteparaopassado.Écomoseoconceitohierárquico de cultura, embora mantendo em cada caso seucomprometimento de classe, não fosse necessariamente orientado para oestablishment. Alguns pensadoresmodernosmuito in luentes diriam quenenhumidealculturalgenuínopodeserorientadoparaoestablishment.SeHerbertMarcuseusasseaexpressão“culturagenuína”,semdúvidaateriaaplicadoapenasaospostuladosdasclassesdissidentes.Afirmaeleque

avalidadehistóricadeideiascomoLiberdade,Igualdade,Justiça,Indivíduoestavaprecisamenteem seu conteúdo irrealizado – no fato de que não podiam se referir à realidade estabelecida,que não iria nem poderia validá-las porque eram negadas pelo funcionamento das própriasinstituiçõesquedeveriamconcretizá-las.27

É destino dos ideais culturais, diz Marcuse, que sempre retratem ainsubordinaçãoeosanseiosdasclassesdestituídase/ouemascensão.Nomomentoemquesãoadotadoscomodispositivosdescritivosdarealidadesocial e deixam de fornecer um fulcro independente para formas sociaisalternativas, perdem a força criativa, de initiva ou temporariamente, atéserem de novo adotados por uma nova classe, mais uma vez comodispositivoscríticos.

Pareceque,norodíziodecon litos, revoluçõese institucionalizaçõesdenovos sistemas, conceitos hierárquicos de cultura – sempre presentes –desempenham papel importante, embora mutável. Emergem como gritosde guerra de oprimidos e dissidentes; em geral terminam comolegitimações, ao estilo “bobilidade”, de um novo establishment. Às vezes(comonocasodoidealde liberdade,quereaparecedeformacontínuanahistória do Ocidente, cada vez com um referente semântico ampliado)reassumemseupapelmilitantemente críticohámuitoesquecido,mas sãoentão reformulados como componente parcial de um princípio maisamplo.28

Nossa época aparentemente se distingue pela falta de um conceitohierárquicodeculturacomparávelàantiga kalokagathiaouàmaisrecentenobilidade (ou, nomesmo sentido, aobaraka dosberberes estudadosporGellner). Embora seja este umperíodo saturado de ideais de cultura, em

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parteuniversais,empartecompetitivos,numgrautalvezdesconhecidodenossosancestrais,rejeitamoscomenergiaaexistênciaobjetiva(querdizer,pré-humana) dos padrões culturais. Desde pelo menos a época de sirHenry Maine, somos capazes e de fato estamos acostumados afundamentar nossa explicação dessa nova postura, pautada na sociologiado conhecimento, no princípio de realização contratual da organizaçãosocial moderna; toda referência a uma hierarquia preestabelecida dequalquer tipo estaria em confronto com aWeltanschauung de uma classequeescolheuarealizaçãocomolegitimaçãosupremadeseudomínio.

Não atribuímos, contudo, su iciente importância à in luência exercidasobreaposturamodernapelocrescentestatussocialdosintelectuais,cadavezmaisemposiçãodedeterminar,àsuaprópriamaneira,ospadrõeseoconteúdodastendênciasdesocializaçãopredominantes.Ointelecto,arealousupostaforçamotoradoavançodosintelectuais(dequalquermaneira,o ponto focal de sua legitimação de classe), compartilha com o dinheiro,comoSimmelproclamoudeformaprofética,aqualidadesingulardeseraum só tempomultidecisivo emultigenético; ele leva a uma variedade deobjetivos socialmentede iníveis epode serusadocomo implementopelosresponsáveis por diversas posições sociais, armados comdiferentes tiposde ativos originais. É por isso que ointelecto pode ser usado, como odinheiroeraeaindaé,comoveículodemobilidadesocialascendentepelosmesmos indivíduos para os quais estavam inacessíveis as rotasprivilegiadas regidas de modo mais tradicional (e portanto maisespecíficas).

A imparcialidade e a disponibilidade relativas do sedimentomaterializadodo intelecto–oconhecimento– foram fundamentaisparaarápidaascensãodanova, in luente,prestigiosaebem-sucedidaclassedosintelectuais.Aelevaçãodessaclasse, contudo,signi icou inevitavelmenteoascensosimultâneodesímbolosqueemteseadiscriminavam.Eles foramlouvadosesacramentadoscomoopadrãomodernodeculturahierárquica.Em desacordo com o princípio da “bobilidade” (o conhecimento é, porde inição,algoaseradquirido,alcançado,acumuladoporesforçopróprio–aprendido), eles não podem ser, e de fato não são, retratados da formapraticadanocasodaάρετή,ounobrezadeespírito.

Ninguém, exceto alguns poucos gênios solitários, pode ser identi icadocomo detentor de conhecimento por outro sinal além do próprioconhecimento.Porconseguinte,amaneiracomofalamosepensamossobrea versão moderna do ideal hierárquico de cultura oculta a forma como

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esse ideal funciona na realidade social. Não apenas substituímos o “tipoadequadode família”pelo “tipoadequadodeescola”,esquecendoopapelquea“famíliaadequada”desempenhacomoguardiãda“escolaadequada”(ou, talvez,opapeldessaguardiãemtransformardeterminadaescolaem“adequada”); acreditamos que pessoas se tornam membros decomunidadesinstitucionalmente“informadas”porseremdoutaseletradaspordireitopróprio–emboranapráticapossamospresumirqueXédoutoe letrado quando nos dizem que ele é membro da comunidademencionada. Além disso, observamos com meticulosidade umprocedimento de aprendizado complexo, cuja função real consiste emdecisões, tomadas pelas próprias comunidades institucionalizadas, sobrequemmereceenãomerecesetornarumdeseusmembros.

Não constitui um acidente histórico o fato de que as prerrogativas daguilda,comseusintricadosritosdeiniciaçãoedepassagem–arti íciofeitosob medida para a sociedade aristocrática, corporativa –, tenham sidopreservadas intactase indestrutíveisprecisamentenaesferaque forneceofocodomodernoidealhierárquicodecultura,aomesmotempoqueelasde inharam em quase todos os outros campos sociais. RealmentepercorremosumlongocaminhodesdeasolitáriabatalhadeFrancisBaconpela legitimação dos valores cientí icos. Com a brilhante carreira dasabedoria como ideal de cultura, os eruditos (que desempenham emrelação ao novo ideal amesma função de sustentáculos da qualidade daΚαλόζdesempenhadanostemposdeAristóteles)tornam-secadavezmaisdefiníveiscomofuncionáriosdeorganizaçõesacadêmicas.

Àluzdenossoargumento,ofenômenoda“bobilidade”deGellner,longede ser um exemplo de conceito absurdo, ilógico, empregado para ins declasse, não parece se limitar, em sua aplicação, apenas à sociedadearistocrática.Nãoseajustaamuitosideaisculturais,eanenhumdelesemseu estágio militante, dissidente; é bem provável, contudo, que a“bobilização” seja o destino derradeiro e inescapável de todos os ideaishierárquicos de cultura historicamente conhecidos – e que acabarãotriunfando.

Aculturacomoconceitodiferencial

Emseusegundosigni icado,o termo“cultura”éempregadoparaexplicaras diferenças visíveis entre comunidades de pessoas (temporária,ecológica ou socialmente discriminadas). Esse uso situa o conceito

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diferencialdeculturaentrenumerosos“conceitosresiduais”,muitasvezesconstruídos em ciências sociais para invalidar o sedimento deidiossincrasias desviantes que não pode dar conta de regularidades que,de outro modo, seriam universais e onipotentes (onde ele compartilha afunçãoquelheéatribuídacomideias,tradição,experiênciadevidaetc.).

As observações anteriores referem-semais amplamente às aplicaçõesmodernas do conceito diferencial, embora ele mesmo não fosse de todoconhecidopelosantigos.Osgregos,de fato, encontraram “outrospovos” eeram extremamente conscientes de sua diferença. Desenvolveram umadisposição para registrar de modo consciente as perturbadorasdivergências entre os hábitos de outros povos e os deles próprios. Aindaassim, viamessas distinções como curiosos desvios do padrãonormal: ascompetentesdescriçõesdecaucasianos,egípcios,citas,babilôniosemuitosoutrospovos“exóticos”feitasporHeródotosãoconstruídasporsentençasque na maioria das vezes começam com as expressões “Eles não” e “aocontráriodenós”.29

O mundo dos gregos era dividido de maneira clara entre um núcleohelênico e uma margem uniformemente bárbara. Do ponto de vistailosó ico, a conciliaçãoentreopressupostodaexistênciadepadrõespré-constituídosdeverdade,belezae rigormoralea registradavariabilidadedos hábitos e costumes populares aceitos deve ter produzido obstáculosinsuperáveis. Parece, todavia, que os gregos nunca enfrentaram oproblema em termos teóricos. Classi icar dissimilaridades explícitas comocuriosidades exóticas pode ser uma forma de contornar o problema, emvezderesolvê-lo.

O que sem dúvida impediu os pensadores gregos de usar no plural oque quer que pudesse signi icar nossa “cultura” foi seu pressupostoinquestionável da natureza inata dos padrões de vida e do papelmeramente “opressivo” do processo educacional. O educador era umaparteira ajudando no nascimento de um produto que ela própria nãocriara.Quaisquerquefossemsuasvirtudes,aindocilidadeeainsubmissãonãoestavamentreelas.Pode-seinterpretaressepressuposto(notávelsoboutros aspectos) da unidade incontroversa entre processo ativo decrescimento e autoaperfeiçoamento individuais e padrões em teseimutáveisenãomanipuláveiscomore lexão ilosó icadeumacomunidadeculturalmente uniforme e com alto grau de unidade social; entretanto,mesmoquesedetesteessetipodeexplicaçãoóbvia,combasenasociologiado conhecimento, parece haver um forte argumento em favor do papel

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epistemologicamente restritivo de uma integração social muitodesenvolvida. Travar contato com diferenças culturais não signi icapercebê-las;epercebê-las nãoimplicaconferiromesmostatusexistencialaformasdevidadivergentes.30Arelatividadedospadrõesculturaissófoiconcebida historicamente quando a lorescente estrutura socialmodernahaviasolapadoaanteriorunidadeentreindivíduoesuacomunidade.

Olegadodavisãogregadecultura,hierárquicaeabsolutista,encantouopensamento europeu bem depois que Locke, em 1690, apresentou arelação completa dos ingredientes intelectuais que o conceito diferencialexigia. Em 1750, Turgot, bem a inado com aambience intelectualdominante, tentou escapar do impasse ilosó ico atribuindo ao conceitohierárquico de cultura um valor universal (dessa vez explicitamente naescaladahumanidade):“Asdisposiçõesprimitivasestãoativastantoentrepovosbárbaros quanto civilizados.…As oportunidades educacionais e ascircunstâncias as desenvolvem ou as deixam ser enterradas naobscuridade.”31 Mas a revolução lockiana já estava em marcha. Adevastadora pergunta “Onde está aquela verdade prática recebidauniversalmente sem que haja dúvida ou questionamento, tal como deveser, se ela é inata?” já havia sido feita, e a chavemágica da “sala vazia”tinhadestrancadotravasintelectuaisatéentãoinvioláveis.32

É verdade que Locke extraiu esses argumentos cruciais contra aexistência de padrões inatos de dados etnográ icos (escassos eequivocados como eram à época). Mas seria ingênuo acreditar que suasconclusões estivessem intrinsecamente presentes na própria diversidadeda espécie humana, esperando por um espírito inquisitivo que asdesnudasse para que todos as vissem e as aceitassem. Os conceitosdiferenciais de cultura, como todos os outros, são arcabouços intelectuaisimpostossobreocorpoacumuladodasexperiênciashumanasregistradas.Sãoaspectosdapráticasocialhumana;suacoesão intoto,comonocasodequalquer outra totalidade sistêmica, não é necessariamente divisívelquandodelesseretiraumfragmentoqualquer.

Osconceitosestão,defato,encerradosnatotalidadedapráticahumana,mas nem sempre se ligam aos elementos da experiência aos quais sesubordinam semanticamente. Sua associaçãocom os referenciaissemânticos em geral registra e cultua certa dose de arbitrariedadehumana ativa, enquanto, do ponto de vista genético, estão em geralarraigados (e de modo bem menos arbitrário) na organizaçãohistoricamente determinada da própria condição humana, a parte da

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existênciadohomemmaisprofundamentesentidaevivida.As relações sãomuitomais complicadas do que conseguimos tipi icar;

são cheias de efeitos do tipo reação e recuo por parte de qualquerelementona totalidadedaprática.Semdúvidavoltaremosaesse temanodevido tempo;voltamosaelenesteestágioapenasparaexplicaromotivopelo qual estamos inclinados a buscar as raízes da descoberta de Lockenasmudanças estruturais por que passou a sociedade inglesa no séculoXVII, e não na exploração de novos continentes por parte dos nãoconformados,fossemelesmercadores,santosoupiratas.

Modosdevidaalternativostinhamdeganharstatuslegítimonointeriordeumacomunidadeuni icadaporuma só fontede legitimidade, a imdetornarpossívelaab-rogaçãodeumsistemasocialabsolutoesemrivais,ede sua imagem sacralizada, os padrões absolutos de moral, beleza,decência.

No momento em que o conceito diferencial de cultura emergiu dascinzas de seu predecessor absoluto e hierárquico, ele passou a sersustentado por diversas premissas tácitas (por vezes explícitas) quedeveriam permanecer como seus atributos inseparáveis ao longo dahistória.

1)De longe, o pressupostomais importante, seminal, é a crença lockianaque (se reapresentada de maneira mais moderada) se resume naa irmaçãodequeossereshumanosnãosãototalmentedeterminadospelogenótipo; o equipamento inato do ser humano, por mais rico que seja,ainda deixa os homens despreparados para o modo humano de vida;muitaspontassoltaspodemseramarradasdediversasformasdiferentes,e determinantes naturais não favorecem qualquer das maneirasporventuraescolhidas.Aúnicacoisaqueessesdeterminantesestipulaméquedeveriam ser feitas algumas escolhasparadotarumhomosapiens inpotentia das características dohomo sapiens in actu. Se restrito a seusaspectos somáticos, biológicos, um ser humano potencial é incompleto,truncado,monstruosamenteinfantil.CliffordGeertz,umadasmentesmaishábeiseperspicazesentreosantropólogosvivos,convidou-nosamirarasculturas

cada vezmenos em termos damaneira como elas restringem a natureza humana, e cada vezmaisdomodocomo,paraobemouparaomal,elasaefetivam.…Ohomeméoúnicoanimalvivoqueprecisademodelos [culturais],poiséoúnicoanimalvivocujahistóriaevolutiva foi talqueseu ser ísico se moldou de forma signi icativa por sua existência, e que, portanto,irrevogavelmentesesustentanela.33

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No raciocínio bem-informado que precedeu essa conclusão, Geertzevocou a visãomoderna da pré-história biológica humana para construirfundamentos sólidos sob a famosa pro issão de fé de que “as basesbiológicas do comportamento cultural da humanidade são a parte maisirrelevante”, enquanto “os fatores históricos são dinâmicos”, 34 o que setornouvirtualmenteincontestáveldepoisdesetransformarnacarteiradeidentidadedosdiferencialistasculturais.

2) Do pressuposto da incompletude básica do ser humano em suacapacidade puramente biológica surge a segunda premissa do conceitodiferencial de cultura: essas várias formas socioculturais, que chegam aser mutuamente exclusivas, podem corresponder a um só conjunto decondições não sociais (biológicas, natural-ambientais, ecológicas). RuthBenedict,maisumavez,afirmaemsuafestejadaalegoria:

O padrão cultural de qualquer civilização faz uso de certo segmento do grande arco depropósitosemotivaçõeshumanospotenciais,damesmaformacomovimos,emcapítuloanterior,quequalquercultura lançamãodecertastécnicasmateriaisoutraçosculturaisselecionados.Ogrande arco ao longo do qual todos os comportamentoshumanos possíveis se distribuem éamplo demais e cheio de contradições para que uma cultura, qualquer que ela seja, consigarecorrer a uma parcela considerável dele. A seleção é a primeira exigência. Sem seleçãonenhumaculturapoderiaatingirainteligibilidade,easintençõesqueelaselecionaetornasuasconstituem um temamuitomais importante que o detalhe particular da tecnologia ou que asregrasmatrimoniaisqueelaselecionademaneirasimilar.35

A antiga dualidade aristotélica da forma ativa, modeladora (espírito,télos), e da substância passiva, moldada (matéria, corpo), tem sidoreiterada sob um disfarce atualizado. “Fatores culturais ativos operamsobreassubstânciasrelativamenteestáticasdaraçaedoambiente ísico”,é a a irmação peremptória de C. Daryll Forde. 36 A cultura é a energéticaatividade humana colocada em ação contra a natureza imóvel. O mesmomotivoérepetidosemprequesetocaacançãodaculturacomodiferencial,embora amelodia varie ao longo de um amplo espectro. O voluntarismoextremado e embaraçoso de Ruth Benedict, atribuindo uma liberdadequase ilimitada a escolhas puramente culturais, foi há pouco substituídoporumaatitudemaiscautelosa.

LeslieA.White,emborabuscandoordenarasculturasconhecidasnumasó sequência evolutiva (procedimento tradicionalmente associado a umarejeição bastante inequívoca do relativismo), ainda é enfático ao a irmarque a cultura é um “continuum extrassomático, temporal, de coisas eeventosdependentesdasimbolização” .Masnãoéesseotompredominante

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hoje. Outro neo-evolucionista, Julian H. Steward, sem dúvida está maispertodoclimaatualaoconcluirque

seasmais importantes instituiçõesdaculturapodemser isoladasdeseuambientesingulardemodoaseremtipi icadas,classi icadaserelacionadasaantecedentesrecorrentesoucorrelativosfuncionais, épossível consideraras instituiçõesemquestãobásicasou constantes, enquantoascaracterísticasqueemprestamsingularidadesãoassecundáriasouvariáveis.38

Oqueémaisimportante:autoresrecentesevitam,demododeliberado,consideraraobstinadadiversidadedeculturasumdos“fatosbrutos”nãoproblemáticos,cabeaveriguar,masdi icilmentepoderiamserrelacionadosaumacamada“maisprofunda”darealidadeempírica.Pelocontrário,elestratamofatodeas“culturas”resistiremàfusãoetenderemamantersuascaracterísticas distintivas como um problema a ser explicado. Cada vezmaiscônsciosdaunidadebásicadaespéciehumana,presumemde formatácita que, se as pessoas não sucumbem a um conjunto de padrõesuni icados,devehaveralguns fatoresemoperação impedindo-asde fazerisso, e que esses fatores deveriam ser apontados e devidamenteanalisados.39

Marshall D. Sahlins, antropólogo dotado de notável capacidade desíntese,destaca,entre“osarti íciosqueisolamaspessoasdasalternativasculturais”, “as ideias negativamente carregadas sobre condições ecostumes em sociedades vizinhas”. Essa ideologia etnocêntrica éresponsável pelo fato de “culturas maduras, adaptadas e especializadas”serem “conservadoras, apresentando reações defensivas em relação aomundo”.40 Uma vez feita uma escolha, a cultura resultante age comoprincipalempecilhoàaceitaçãodasopçõesdeoutrospovos;adiversidadeempíricada culturanão implicanecessariamente a relatividade imanentedos padrões culturais, ou a impossibilidade de conceber uma escalauniversaldasuperioridaderelativadessespadrões,crençaqueajudaseusportadores a contornar os ângulos mais desfavoráveis do relativismoculturalextremo,nãomaisrespeitável.

3)Claro,oconceitodiferencialdeculturaélogicamenteincompatívelcomanoçãodeuniversais culturais (oquenão signi icaquenão sepossa fazeresforço para localizar esses universais sem extrair conclusões lógicas erejeitar o paradigma diferencial; na verdade, isso tem se realizadorepetidas vezes, como veremos adiante). Usar o termo “cultura” com oartigoinde inidosófazsentidosesustentadopelopressupostoimplícitode

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quenadaquesejauniversalpodeserumfenômenocultural;semdúvida,existeminúmerascaracterísticasuniversaisdesistemassociaise culturais;mas, porde inição, elasnãopertencemao campoqueapalavra “cultura”denota. Infelizmente, é di ícil se manifestar esse tipo de autoconsciêncialógica.

Muitos antropólogos passam por grandes sofrimentos para “provar”que as supostas similaridades culturaisnão são culturais, e deveriam serrelacionadas a fenômenos psicobiológicos ou protoculturais. A lucidez depensamento mostrada por David Kaplan (quedefine a cultura como algoque “não parece ser explicável apelando-se para suas característicasgenéticasouparapeculiaridadespsíquicaspan-humanas”)41continuaaseruma raridade na literatura antropológica. O que desde o início foi umaopção sectária por um (entre os muitos signi icados do termo) tem sidoapresentado de maneira insistente como a irmação empírica, descritiva,embora a decisão de inidora determinasse a priori a maneira como osdados empíricos eram selecionados e (se coligidos por outros)interpretados.

Assim,diantedamenção,porpartedeLowie,de “universaisdamentehumana” (1920), Sapir respondeu ferozmente, embora com presunção,que qualquer característica social generalizada pode ser revelada como“não como [a] resposta psicológica imediata e universal que poderíamospresumir,masumfenômenooriginalmente local,singular,queaospoucosseespalhouporempréstimosculturaisaumaáreacontígua”.42

O difusionismo era o complemento inescapável de um diferencialismoconsistente. Se de inirmos cultura – seguindo, por exemplo, ClydeKluckhohn – como “uma forma de pensar, sentir, acreditar”, como o“conhecimentodo grupo armazenado para uso futuro”, 43 então presumirque diversas culturas sejam capazes de chegar demodo independente aumasolução idênticaserá tão implausívelquantoaprobabilidadedeque,em diversas populações endogâmicas distintas, as mesmas mutaçõesapareçam de forma espontânea e evoluam segundo tendências genéticasparalelas; e, assim, a hipótese do difusionismo se transformaautomaticamentenaexplicaçãomaiscabíveldasimilaridadecultural.

DavidAberle fez umadefesa convincentedo estruturalismo linguísticoemsua fase inicial(na formaqueassumiunoaugedotriunfopóstumodeFerdinand de Saussurre) como a principal inspiração do diferencialismocultural. A fácil analogia entre linguagem e cultura (os dois fenômenosatuamcomofatoresconstitutivosdasrespectivas comunidades)pareceter

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reforçado em muito a posição dos cientistas sociais que evidenciaram afunçãodiferenciadoradas culturas. Entre osnumerosospontos contíguosespeci icados por Aberle, dois são de particular importância no presentecontexto: tal como a linguagem, a cultura “é seletiva”, cada qual é “umaconfiguraçãosingular.Nãohácategoriasgeraisdeanálise”.44Maisumavez,oquedeinícioeraumpostuladometodológico(deenormevalorheurístico,com certeza) reencarnou-se no seu análogo cultural com a aparência deumadeclaraçãopseudodescritiva.

4) É evidente, o outro lado da moeda é a rejeição enfática dauniversalidadecultural.Aúnica ideiadeuniversalidadecompatível comoconceito diferencial de cultura é a presença universal de algum tipo deculturanaespéciehumana(comonocasodalinguagemsaussuriana);maso que essa declaração signi ica é antes uma característica universal dossereshumanos,nãoaculturaemsi.

Háumaevidentecontradiçãoentrenossageneralizaçãoeasconhecidastentativas dos culturologistas diferenciais de produzir inventários de –precisamente – “universais culturais”. Marvin Harris mostra como essabuscade“universais”remontaaoséculoXVIII,emqueoprópriotermonãoerausadoequandoosetnógrafosnãofaziammistériosobreanaturezadesuas categorias descritivas, destinadas pura e simplesmente a injetaralguma ordem nos dados caóticos das pesquisas de campo e algumadisciplinaemsuacompilação.

JosephLa itau(1724)organizouseusachadossobostítulosdereligião,governopolítico,casamentoeeducação,ocupaçõesdoshomens,ocupaçõesdasmulheres,guerra,comércio,jogos,morteefuneral,doençaemedicina,e linguagem; J.N. Demeunier (1776)modi icou e ampliou a lista, abrindoespaçoparaitensrequintados,comopadrõesdebelezaoudes iguraçãodocorpo.45 Mas foi só com Clark Wissler que os modestos autoresdeinventários assumiram a pretensão de descobrir universais, em vez deapenas descrever os itens que estavam procurando. Os títulosdespretensiososesperariamaté1923para serpromovidosporWissleràesplêndida categoria de “padrões culturais universais”, 46 enquanto seunúmero encolhia para oito (discurso, hábitos materiais, arte, ciência ereligião, família e sistemas sociais, propriedade, governo e guerra). ComGeorgeP.Murdock,alistacresceumaisumavezparaumanumerosasériede itens organizados em ordem alfabética, incluindo, entre tantos outros,galanteio, escatologia, gestos, penteados, pilhérias, refeições, costumes na

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gravidez e conceitos de alma.47 Os autores permaneceram curiosamentecegos ao fato de que as supostas generalizações nada transmitiam alémdasperguntasapresentadaspelospesquisadoresdecampoeformuladasapriori, em funçãode seuprópriohábito, adquirido como treinamento,dedividirouniversoemfenômenosdistintos.

Oprocedimentogenuíno,pormeiodoqualsechegouaosuniversaisdotipoaquiapresentado,poucasvezeseraexplicitado.UmdessesraroscasosfoifornecidopeladeclaraçãoprogramáticadeE.E.Evans-Pritchard(1962),com quem aprendemos que a tarefa do antropólogo consiste emcompreender as características manifestas importantes de uma cultura,revelando sua forma subjacente mais atual, e depois comparar “asestruturas sociais que a análise revelou numa ampla gama desociedades”.48Assim,acomparaçãoéopontocentraldetodoométodo.Naverdade, os chamados universais são apenas similaridades desnudadaspeloprocessodecomparardiferentesentidadesculturais.

Por infortúnio, nenhum volume de comparação provavelmente noscolocará mais perto da descoberta daquilo que de fato poderia serchamadode“universais”semviolarasregrasaceitasdalógicadaciência–e não apenas em função das reconhecidas de iciências inatas dopensamento indutivo. O verdadeiro problema do procedimento propostopor Evans-Pritchard está na impossibilidade de especi icar critériosuniversalmenteválidose incontroversosparaescolher “umeapenasum”arcabouçodecomparaçãoeposteriorclassificaçãodasculturas.

A escolha, na verdade, é agravada pelo primeiro estágio doprocedimento como um todo, pela lógica supostamente inerente, emboraem geral importada, do cenário etnográ ico local do próprio antropólogo.Seoestudiosodaculturadesejatranscenderoembaraçosoparoquialismodascontingênciaslocais,vaipreferircomparar,seguindoaadvertênciadeRadcliffe-Brown,49 culturas vistas pelo prisma de categorias de sensocomum, como economia, política, parentesco etc. Se obtiver sucesso, serárecompensado com outro conjunto de tipos classi icatórios. Seu caráterarbitrário só será disfarçado pelo falso brilho da exatidão empírica. Masnenhumgraudeprecisãoempíricapoderásalvarsuacriaçãodolixo,maisumavezsemumargumentoconclusivo,emnomedeoutraclassi icaçãodesensocomum–nempiornemmelhor.

O caráter inexoravelmente inconclusivo – e, portanto, a escassa cargainformativa – das aventuras classi icatórias provê o principal alvo dadevastadora crítica de Edmund Leach. Não que ele duvide do valor

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cognitivo e das possíveis aplicações das classi icações comparativas; suasreservas referem-se a substituir as generalizações universais porclassi icações, bem como a ilusão de que, uma vez produzidas asclassi icações, o problema dos universais culturais estará resolvido. AposiçãodeLeachédeque

tanto a comparação quanto a generalização constituem formas de atividade cientí ica, emboradiferentes. A comparação é uma questão do tipo coleção de borboletas – de classi icação,disposiçãodascoisasdeacordocomseustiposesubtipos.…Radcliffe-Brownpreocupava-se,porassimdizer,emdistinguirrelógiosdepulsoderelógiosdeparede,enquantoMalinowskiestavainteressadonosatributosgeraisdosmecanismosdemediçãodo tempo.Masambos osmestrestomaramcomopontodepartidaanoçãodequea culturadeumasociedadeéuma totalidadeempírica constituída de um número limitado de partes prontamente identi icáveis, e que,quando comparamos duas sociedades, nossa preocupação é ver se osmesmos tipos de partesestão presentes ou não, nos dois casos. Essa abordagem é adequada para um zoólogo, umbotânicoouummecânico.50

Leach acredita que a antropologia não deveria estar próxima dequalquer desses campos e, para achar seu método próprio, deveria sevoltar para a matemática. Com formação em engenharia, Leach temintimidadesu icientecomamatemáticaparareduzi-la–acompanhadodemuitos prosélitos confusos – à quanti icação e à aritmética. Sua polêmicanão gira em tornodeuma linhadivisória imaginária entre a exatidão e aprecisão das fórmulas quanti icáveis e a incon iabilidade e obscuridadedas humanidades. Ele está pronto a aceitar que a distinção classi icatóriameticulosa é tão precisa, e mesmo empiricamente con iável, quanto sepossadesejar.

OqueLeachprocuraéalgomaisambicioso,algodequeamatemáticaéaprópriaencarnação,paraquemestádevidamentefamiliarizadocomsuaprópria essência: seguindo a receita cartesiana, ele deseja penetrar nosdomínios do necessário, do constante, do exato. Não está interessado nacorreção ao estilo colcha de retalhos das falácias individuais, no que é aestratégia analítica correta; seu alvo é transplantar toda a questão dosuniversais culturais do teatro da contingência, da acidentalidade e datemporalidade para o solo dos princípios invariáveis a que ela pertence.Masessejáéoutroproblema,aoqualretornaremosnomomentodevido.

5)Tendoseprivadodoarcabouçoanalíticouniversal,genérico,osusuáriosdo conceito diferencial devem se esforçar ao máximo para construir umarcabouço substituto em que possam ixar suas descobertas. AmodéstiainicialdeFranzBoas,queestimulavaseusseguidoresaseconcentrarem

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características culturais individuais consideradas isoladamente, logo semostrouresponsávelpeloseupróprio fracasso,aoserconfrontadacomoritmo logarítmico da coleta de dados. Para entender fatos acumuladosnuma grande velocidade, e controlar o futuro luxo das partículas derealidade registradas que se apresentavam como “fatos”, era necessárioconstruir um modelo sistemático no qual os “fatos” pudessem seracomodados de maneira segura e adequada, tornando-se, assim,inteligíveis. A importância vital dessa tarefa acabou sendo admitida,emboranãocedoobastante,pelopróprioBoas.Seusdiscípulosforammaisrápidosnaresposta.Oendereçoaquerecorreramembuscadeajudaemprimeirainstânciafoi,naturalmente,os“nativos”,osmembrosdasprópriascomunidadesculturaisinvestigadas.

De início essa busca não foi muito além da cláusula weberiana da“compreensão”. Leal à sua formação ilosó ica germânica, saturada deWeltanschauung eVolksgeist, Bronislaw Malinowski foi dos primeiros aformular a tarefa do etnógrafo como “apreender o ponto de vista nativo,suarelaçãocomavida”,eperceber“suavisãodeseumundo”.51Malinowskinão pretendia apenas fazer com que as atenções de seus colegas sevoltassem para um dos muitos capítulos de rotina de algum relatoetnográ icopadrão.Asideiasdosnativosnãoeramapenasumadasmuitascuriosidades a ser investigadas e descritas, mas a pista central doverdadeirosigni icadodetudoaquiloqueoetnógrafoviaeobservavaemseu trabalho de campo. O sentido agregado por Malinowski a essadeclaração programática pode ser mais bem decodi icado à luz dos“pressupostosabsolutos”neokantianosdaescola ilosó icadeBaden,muitoem voga e bastante in luente nos anos de formação da posturaepistemológica de Malinowski. As ideias básicas dessa escola foramcondensadasnasprescriçõesmetodológicasdeWilhelmDilthey:

Arelaçãofundamentalemquesebaseiaoprocessodecompreensãoelementaréadaexpressãoparaaqualeleseexpressa.…Acompreensãotendeaarticularoconteúdomentalquesetornaseuobjetivo.…A expressãoda vidaqueo indivíduo apreende é, como regra, não apenasumaexpressão isolada,mas cheiadeumconhecimentodaquiloque sepossuiemcomumedeumarelaçãocomoconteúdomental.52

Osdadosdecampodiscrepantespodemseravaliadosecompreendidosde forma adequada – é o que vem a seguir, caso se deseje extrapolar acondição do etnógrafo – quando referidos a seu “conteúdo mental”, àsideiasqueseusautoresqueriamexpressarnosartefatosestudados.“Umacultura” é, em primeiro lugar, uma comunidade espiritual, uma

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comunidadedesignificadoscompartilhados.A conversão de Franz Boas, não obstante a base ilosó ica similar, foi

apresentada numa roupagem muito menos meta ísica, talvez por teracontecidonummomentotãotardio,apósaprolongadaexposiçãodeBoasaoclima intelectualmaissecularemundanodosEstadosUnidos.Boasvia(tal comoMalinowski o izera) na “relação do indivíduo com sua cultura”“as fontes de uma verdadeira interpretação do comportamento humano”.Mas,emvezdecoisasenganosascomo“valores”e“visãodemundo”(quesemdúvidatambémnuncaforamumobjetoconsistentedaspreocupaçõesde Malinowski, em desa io a seus próprios postulados), ele recorreu à“psicologia social” behavioristicamente prosaica da década de 1920:“Pareceumesforçoinútilprocurarleissociológicassubestimandooquesedeveria chamar de psicologia social, ou seja, a reação do indivíduo àcultura.”53

Quaisquer que fossem as relações entre os desempenhos práticos decampodeseusproponentes,asestratégiasanalíticasdeBoaseMalinowskisituam-seempolosopostosdoespectro ilosó ico.Malinowskivêa coesãointrínseca de “uma cultura” no projeto signi icativo que os “nativos”impõemeexpressamporseucomportamentoculturalmentepadronizado;ossereshumanosqueeleestudasãovistossobretudocomosujeitos.Boassituaotemanodomíniodospadrõescomportamentais.Seus“nativos”são,parainíciodeconversa,osobjetosreativostreinadosdacultura.

Os seguidores de Boas na escola da cultura e personalidade de inícioestavammaispróximosdoVolksgeist(espíritodopovo)deMalinowskiquedo namoro de Boas com o behaviorismo. Em seu ensaio seminal sobre oconceitodecultura,ClydeKluckhohnde iniu“umacultura”relacionando-aàs“de iniçõesdasituação”compartilhadasehistoricamentecriadas,enãoàs“formasdevida”distintasdequeelassãomanifestações.54A.L.Kroeberparecia atribuir importância teórica fundamental à noção de “ethoscultural”, a qualidade total de uma cultura, de inido como “o sistema deideaisevaloresquedominaaculturae,portanto, tendeacontrolarotipodecomportamentodeseusmembros”.55

A abordagemmais próxima da versão kroeberiana do Volksgeist podeser encontrada no conceito de estilo proposto por Meyer Schapiro paradenotar a manifestação da cultura como um todo, o signo visível de suaunidade. O estilo re lete ou projeta a “forma interna” de pensamento esentimentocoletivos.56Antecedenteshistóricosdaatitudedebatidapodemserencontradosemgrandenúmero,muitoantesdeteremsidoarticulados

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por Dilthey ouWindelband, profundamente arraigados no senso comumpopular pré-cientí ico. Foram citados repetidas vezes por Margaret T.Hogden em seu encantador estudo sobre as ideias antropológicas dosséculosXVIeXVII.57Naverdade,ohábitodede inir“nações”distintaspormeiodeseus“vícios,de iciências,virtudesequalidadeshonestas”,porseuethosouestilo–remontaàIdadeMédia.

No estágio mais maduro de sua história, a escola da cultura epersonalidadeacomodouoelo freudianodemãoduplaentrecivilizaçãoepsicologia humana para se livrar dos embaraçosos dilemas e dasconsequentes incongruências da teoria anterior. Tendo incorporado oparadigma psicanalítico da experiência anterior como, ao mesmo tempo,determinado pela cultura e determinando-a, a escola deixou de serassaltada pela perturbadora escolha entre a meta ísica alemã e obehaviorismo americano. Os teóricos da cultura e personalidade a inalencontraram seu elo perdido: o fato de ela estar localizada na esfera doinconsciente parecia fornecer à hipótese da cultura e personalidade adesejada prova de sua verossimilhança. O vínculo íntimo entre cultura epersonalidade agora parecia irmemente estabelecido. O novo espírito daescolafoiexpressodemaneiraadequadaporRalphLintonnoprefácioaotratadocodificadordeKardinerecolaboradores:

Otipobásicodepersonalidadeparaqualquersociedadeéaquelaconfiguraçãodepersonalidadecompartilhadapelamaiorpartedeseusmembrosemconsequênciadeexperiênciasanterioresqueelestêmemcomum.Nãocorrespondeàpersonalidadetotaldoindivíduo,masaossistemasprojetivos,ou,emoutraspalavras,aossistemasdeatitudesevaloresqueconstituemabasedaconfiguraçãodapersonalidadeindividual.Assim,omesmotipobásicodepersonalidadepodesere letir em muitas formas diferentes de comportamento e entrar em diversas con iguraçõestotaisdepersonalidade.58

Teóricaeempiricamente(como,porexemplo,nademonizaçãodaformajaponesa de educação es incteriana, por parte de Ruth Benedict, ou naspreocupações mórbidas de Gorer e Rickman com os hábitos russos emrelação a fraldas), a “con iguração” ou “tipo de personalidade” se tornou,emúltimainstância,otermoalternativopara“padrão”ou“ethoscultural”.Aescola temsidobastantecoerenteao longodesuahistória;asemânticainal, na verdade, foi pre igurada por escolhas conceituais iniciais que acolocaram,desdeoinício,embuscadeumateoriapsicológicaconveniente,de tipo freudiano, e tornou imperativa a união entre as duas teorias. Aevolução futura da escola já estava, de fato, contida in potentia nadeclaração de Ruth Benedict, em 1932: “Culturas são a psicologia

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individualampliadana tela,ganhandoproporçõesgigantescaseum longotempodeduração.”59

Oprocessodeconstruçãodeumateoriasemprecomeçadestacando-se,apartirdarealidadepercebida,a“caixa-preta”daescolhadoestudioso.Aseleção da caixa-preta determina de forma oblíqua quais variáveis setornam, para o pesquisador, os “insumos” ( inputs) e os “produtos”(outputs) do fenômeno investigado. Só eles icam expostos à avaliaçãoempírica e apenas eles exigem registro. O produtor da teoria acaba comduas séries de dados registrados sobre a mesa; a tarefa consiste emconstruir um modelo que dê conta das relações descobertas entre“insumos” e “produtos” – em outras palavras, que apresentem os“produtos” como função dos “insumos” (no sentido matemático, nãobiológiconemsociológico,dotermo“função”).

Aa iliaçãoíntima–defato,aidentidade–daculturaedapersonalidadenão foi “descoberta” pela escola emquestão; ela foi predeterminadapeladecisão da escola de selecionar a caixa-preta dos psicólogos comoestrutura inicial para seu processo de construção teórica: o espaçoexperimentalmente inacessívelentre os estímulos externos e as reaçõesmanifestas, extrínsecas a esses estímulos. Como fazem os psicólogos, aescola da cultura e personalidade tenta preencher o conteúdodesconhecido desse espaço com hipotéticas “variáveis intervenientes”, asquais, por sua vez, delineiam novas estratégias de pesquisa e conceitosteóricoscentrais.Pararesumirumalongahistória,oqueseapresentou,demodoequivocado,comoconclusõesempíricasfoinarealidadeumadecisãoaprioriintroduzidanaseleçãodepadrõesdiscrepantesdecomportamentocomo tema da pesquisa culturológica; resultado direto e inevitável, semdúvida,deseoptarpeloconceitodiferencialdecultura.

Claro que o vácuo entre insumos e produtos pode ser preenchido pormuitosmodelosteóricosdiversos,comodefatotemacontecidonasúltimasdécadas. Pode-se encontrar toda uma gama de modelos, das agonias daformação do id no embrião ao conhecimento consciente que modela acognição (a “etnociência”, recém-denominada “etnometodologia”) dosmembrosadultosdacomunidade.

Todosessesmodelos,nãoobstantesuadiversidade,podemtambémserclassi icados namesma categoria, já que são soluções alternativas para amesma questão estruturada na origem pela decisão comum quanto àlocalizaçãoda“caixa-preta”dacultura.Essadecisãoconstituioparadigmacompartilhado por todas as abordagens baseadas no conceito diferencial

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de cultura, independentemente de suas controvérsias e animosidadeslatentes ou manifestas. Embora Ward Goodenough, sem dúvida, não seconsiderasse um representante do mesmo tipo de antropologia da qualRobert Red ield foi por muitos anos reconhecido como porta-voz, asrecomendações de ambos aos colegas antropólogos – os dois ramos damesma árvore paradigmática – apresentam notável semelhança eoferecem um testemunho eloquente do papel decisivo desempenhadopelasopçõesconceituais.Assim,Redfieldlembraaseusleitoresque

ao tentar descrever uma pequena comunidade em termos de visão de mundo, o forasteirosuspendesuassugestõesdesistematizaçãodotodoatéterouvidoosnativos.Oforasteiroespera.Eleouveparasaberseumoumuitosdelesimaginaramumaordemparaotodo.Éparaconhecera ordemdeles, as categoriasdeles, a ênfasedeles nesta e não naquela parte que o estudioso osouve.Cadavisãodemundoé constituídadamatéria-primada iloso ia, anaturezade todasascoisas e suas inter-relações, e é em busca do ordenamento dessa matéria-prima pelo ilósofonativoquenós,osinvestigadoresforasteiros,osouvimos.60

E em uníssono com Red ield, embora empregando terminologiadiferente,Goodenoughreiteraasmesmasideias:

Aculturadeumasociedadeconsisteemqualquercoisaqueseprecisesaberouacreditara imdeoperardemaneiraaceitávelparaseusmembros.…Éaformadascoisasqueaspessoastêmemmente, seumodelo para percebê-las, relatá-las e interpretá-las. … A descrição etnográ ica,então, exige métodos de processar os fenômenos observados a im de podermos construirindutivamente uma teoria sobre a forma como nossos informantes organizaram os mesmosfenômenos.61

Parecequeoconceitodiferencialdeculturaandainescapavelmentedepar com o pressuposto de que a coesão intrínseca de cada unidade dacultura é ancorada “lá fora”, seja na formação subconsciente depersonalidadeshumanas,sejanasformastípicasdemapeamentocognitivoinculcadasnamentedosmembrosdacultura.Atentativamaisexplícitadetransformaropressupostotácitoemprincípiometodológicoelaboradotemsidoatéagoraexpressaemtermosdasabordagensalternativas“êmica”e“ética” – edição modernizada do dilema alemão da natureza-cultura-ciência,informaçãoecompreensãoetc.

Os termos – agora usados em abundância, às vezes de forma abusiva,pelosseguidoresdeHaroldGar inkel(quesedenominam,alternadamente,“etnometodólogos”, “sociólogos fenomenológicos”, “sociólogos da vidacotidiana” etc.) – foram introduzidos por Kenneth L. Pike, linguistadissidentequemarcousuaguinadaparaoestudodasociedadecomousodeferramentasemprestadasdesuaformaçãoemfonologiaestrutural.62

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A diferença entre a fonética (a abordagem “ética”) e a fonologia, ouestudo dos fonemas (a abordagem “êmica”), em linguística, pode serexpressa em termos brutos como a distinção entre o estudo dos sonsrealmente produzidos e de suas unidades elementares (que pode serrealizado sem conhecimento do verdadeiro signi icado das palavras nalinguagememquestãoeexpressoemtermospuramentefísicos)eoestudodosaspectosdossonsquesãodefatooperativosnacriaçãoetransmissãodepalavras,istoé,dassequênciassigni icativasdesons(oquesópodeserrealizado se a linguagem pesquisada for concebida – “compreendida” –como um arranjo ordenado de signi icados e suas formas sonoras).Segundo Pike, tomar o estoque de padrões comportamentais de umacultura, tal como vista de fora por um observador que desconheça oaspecto “semântico” do comportamento que descreve, seria o análogosociológico da fonética. Mas, para nos bene iciarmos dos avanços dalinguística estrutural, devemos ser capazes de construir um correlativosociológico da fonologia. Daí a necessidade de uma abordagem “êmica”comopostuladometodológicoessencial.

UmpressupostobásicodaestratégiadePikeéque,“quandoaspessoasreagem ao comportamento humano em suas próprias culturas, elas ofazem como se ele fosse uma sequência de partículas de atividadedistintas”.63 Essas partículas, que sozinhas transmitem o signi icadopretendido pelo ator e deduzem a resposta culturalmente prescrita doentendedornativo,podemservistas como “emes”da culturaemquestão.Aplicar a abordagem “êmica” ao estudo das culturas signi ica, porconseguinte, eliminar os componentes ou aspectos do comportamentovisívelquesejamsignificativos(nosentidoacimadescrito)paraosnativos.

Osegundoestágioconsistiránareestruturação,apartirdos“emes”edeseus usos contextuais (os quais são necessários para elucidar suasrelações paradigmáticas e sintagmáticas), da con iguração latente queconstitui a espinha dorsal, ou a gramática, da especi icidade epeculiaridadedacultura.Emoutraspalavras, embora,emúltimainstância,oantropólogováchegaraumateoriaconstruídaporelemesmo,estadeveserummodelodossigni icadosqueosnativosrealmenteempregamedasmaneiras pelas quais utilizam esses signi icados. Estamos, uma vezmais,nos domínios daVerstehende Soziologie (sociologia compreensiva) e daEinfühlung (empatia), mas agora as antigas questões se expressam nalinguageminspiradapelasinebriantesrealizaçõesdalinguísticaestrutural(como veremos, amaneira de Pike e seus seguidores não é a única pela

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qual as realizações dos estruturalistas podem ser abordadas pelosestudiososdasociedade).

O projeto de Pike suscita duas questões importantes. A primeira é denatureza puramente técnica: em que medida osbehavioremas, unidadesdistintas, do tipo semema, do comportamento humano observável sãoidenti icáveis. Essa questão exige uma longa série de estudos empíricos,quesemdúvidadevemsuperarinúmerosobstáculosparatersucesso(porexemplo,ofatodequequalquercomportamentohumanoempregamuitaslinguagens–gestos,roupas, lociemesmodiversascamadasdeexpressõesverbais).

A segunda questão é mais essencial. Seria a extração de unidadescomportamentais distintas e repetíveis a única condição que tornarialegítimooparalelocomportamento-linguagem?Ocomportamentohumanonão verbal não seria um fenômeno paralelo ao uso da linguagem nocontexto social (sociologia da comunicação verbal), em vez da destacadarelaçãoentredoissistemas isomór icosde “signi icantes”e “signi icados”?E, por conseguinte, seria o domínio dos signi icados subjetivos, vividos epretendidos,ocorrelativoadequadodocamposemânticodalinguagemtalcomoanalisadonoarcabouçodalinguística?

Aquestãototal,compósitaemultifacetadaestálongedeseróbvia;oqueémais importante,asoluçãoparecedependerdeumaopçãoteóricamaisoumenosarbitrária,enãodeumapesquisateoricamenteneutra.Seassimfor, então a tentativa de forçar a autoridade da linguística estrutural acorroborar uma versão modernizada do idealismo cultural neokantianoparece,paradizeromínimo,unilateraldemais.

Emgeral não sentimosnecessidade algumadenosdesculparpelousodo termo “linguagem” no plural. Nós consideramos um fato objetivo, defácil veri icação, evidente, não somente que existem muitas linguagens,mas que cada qual constitui, “na realidade”, uma entidade distinta,relativamente bem-de inida. Não esperamos encontrar obstáculosinsuperáveis ao estabelecermos fronteiras entre “comunidadeslinguísticas” ou “sistemas linguísticos”. Vemos as linguagens comoentidadesdistintasporqueelas são, por simesmas e independentementedequalquerinteressedepesquisa,entidadesdistintas.

Mas o mesmo não se dá com as culturas. É verdade que o conceitodiferencial de cultura foi de tal modo ixado ao atual paradigma quepoucos antropólogos veem “o fato” da pluralidade e singularidade dasculturascomoalgoqueexijadebateouveri icaçãodeprovas.Aindaassim,

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ao contrário da linguagem, o conceito diferencial de cultura não está (ou,de qualquer modo, não tanto quanto o termo “linguagem”) implícito narealidadedada,deformaindependentedasatividadesdospesquisadores.Em vez disso, ele está implícito na estratégia empírica escolhida pelosestudiosos da cultura, parece “natural” e acima de qualquer discussãoapenasnoarcabouçodecondiçõesdecampoespecíficas.Adesculpaparaaextensa citação de Manners e Kaplan apresentada a seguir é que elaprovavelmente contém a melhor análise da in luência exercida pelométododepesquisasobreaatitudeteóricageral:

Parecem ter vindo, com as contribuições positivas da ênfase na pesquisa de campo, certasconsequênciasnegativasparaodesenvolvimentodateoriaantropológica.Temhavidoumafortetendência de o antropólogo como indivíduo imergir tão completamente nas complexidades ecaracterísticas singulares dos povos estudados que se torna di ícil para ele debater a cultura,exceto em termos de sua singularidade ou feição especial. Na verdade,…muitos antropólogostêmvistoesseretratodosingularcomoaprincipalmissãoecontribuiçãodadisciplina.

Muitos outros, que estavamdispostos a trabalhar em bene ício de formulaçõesmais gerais,viram-se de talmodo intimidados pelosimples peso dos detalhes etnográ icos que desistiram,desanimadosdeumatarefaessencialà formaçãodeumateoria,ouseja,aabstração.Assim,demodoirônico,ariquezaempíricadaantropologiamuitasvezesfuncionoucomoobstáculo,enãocomoestímuloàformaçãodateoria.

Por outro lado, os particularistas, pluralistas ou humanistas extremados, ou ainda osrelativistas radicais, têm insistido na singularidade de cada cultura – seja em referência a seuespírito, feição,con iguração,estilo,padrão,eassimpordiante,sejapelaênfasenoevidente,deque “não há duas culturas exatamente iguais”. Porque estavam certos, no sentido de que nãoexistem duas coisas, sejam quais forem, exatamente iguais, sua oposição a generalizações,especulações sobre regularidades transculturais ou declarações de causa e efeito aplicadascomparativamente assumiram peso su iciente para desencorajar a livre formação de teoriasantropológicas.Sempre“omeupovonãofazissodessaforma”.64

Emborapossamparecerautodestrutivasevacilantesaspretensõesdosdiferencialistas, quando desnudadas por Manners e Kaplan, tudo indicaque elas não perdem sua atração sobre a mente dos antropólogos. Opêndulosoboqualalógicadassituaçõesempíricassustentatodaatividadeteórica aparentemente é irresistível. Pessoas bastante envolvidas napráticadecampoachamdi ícildesligar-seosu icienteparadeixardeladodetalhes que – foram doutrinados para isso – constituem a essência dequalquercontribuiçãoquepossamfazerparaoconhecimentohumano.Deformamuitonatural,nãoveemarelaçãoentreseusmétodosdecampoeoconceito de cultura que apreciam da maneira como o fazem Manners eKaplan. Estão mesmo convencidos de que a “singularidade” do queobservam e descrevem é um atributo do fenômeno descrito, e não dopróprio nível baixo da particularidade que escolheram ou herdaram de

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modoinconsciente.Assim,paradarumexemplo,RobertRed ield,emboraembarcando numa audaciosa aventura de tipologia generalizada,considerou possível e desejável absolver e desculpar aqueles que teriamdeixadodeseguirsuaorientação:

Quando se lê Radcliffe-Brown falando sobre os andamaneses, não se encontra um relatoimportantedecoisaalgumaforadaspequenascomunidadesqueeledescreve.Eraverdadequeessascomunidadesprimitivaspodiammesmoserobservadassemreferênciaamuitacoisaforadelas;podiamser entendidas,maisoumenos,porumhomemque trabalhasse sozinho.E essehomemnemprecisavaserhistoriador,pois,entreos[andamaneses]nãoalfabetizados,nãohaviahistóriaaaprender.…Oantropólogopodevernumsistemadessetipoevidênciasdeelementosde cultura comunicados a tal bando ou tribo por outros, mas compreende que o sistema, talcomoéagora,continuaaandarporsimesmo;e,aodescreversuasparteseseufuncionamento,nãoprecisasairdessepequenogrupo.65

Em outras palavras, não que “uma cultura” seja vista como entidadeisoladaesingularporque,porestaouaquelarazão,oconceitodiferencialde cultura foi aplicado. A cultura é de fato um sistema fechado decaracterísticasquedistingueumacomunidadedeoutra;eassim,emvezdeajudara forjar a visãodeumantropólogo, o conceitodiferencial re lete averdadeobjetivaporeledescoberta.

A perspectiva peculiar do campo cultural associada ao conceitodiferencial de cultura gera uma ampla gama de questões especí icas, emqueosinteressesdepesquisatendemaseconcentrar.Aquestãoprincipal,claro, é o fenômeno do “contato cultural”. Se qualquer cultura, porde inição,constituiumaentidadesingular,coesaefechada,entãoqualquersituação de ambiguidade, incerteza, falta de compromissos unilateraisvisíveis,emesmodeevidentefaltadecoesão,tendeaserpercebidacomoum “encontro” – e não como um “choque” – entre totalidades culturaisdistintaseconsistentes.Oimpactodoconceitodiferencialdeculturajáestátão profundamente arraigado no pensamento popular que nósempregamos e percebemos a noção de “choque cultural” como umaverdadeevidente,desensocomum.Umaolhadanopassadointelectualdomundoocidental,contudo,lançasériasdúvidassobreaorigematemporaleespontâneadessacrença.

MargaretT.HogdendescobriuqueavolumosaliteraturasobreviagensdeixadapornumerososperegrinosàTerraSantano inaldaIdadeMédianão continha prova alguma de que os europeus inteligentes da épocativessemvivenciadoalgocomparávelaochoquecultural,hojeemmodaejáintegrando o “senso comum”: “Eles expressavam pouca ou nenhumacuriosidadearespeitodeseuscompanheiros,poucointeressepelosmodos

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dos estrangeiros, pouca reação às diversidades culturais.” De formasimilar,nãoháevidênciadequeosíndioslevadosàEuropaporColombo–num estágio avançado do Renascimento – tenham provocado algumacomoçãonotávelentreopúblicoesclarecido. 66Anoçãodechoqueculturalaparentementesetornouparteintegrantedopensamentopopularapartirde experiências recentes da sociedade moderna; mas tambémdesempenhou papel ativo na articulação dessas experiências e namoldagemdesuaimagemmental.

Vendo o mundo pelas lentes do conceito diferencial, os estudiosos dacultura são forçados a buscar as raízes dequalquer espécie demudançaemalgumtipodecontatoentreaculturaqueestudamealgumaoutra.Aotentarorganizartodososdadosrelacionadosàcomunidadepesquisadaemtorno de um eixo de coesão interno, eles destroem as potenciaisferramentas analíticas necessárias para localizar as causas “internas” damudança.

Homogêneaecoesaéaculturadeumasociedadeque“mudadevagar”;comoacoesãodequalquerculturaéalcançadapela recriaçãoexitosa,noprocesso inicial de treinamento, domesmo tipo de personalidade básico,coesãoehomogeneidadesetornamsinônimosdemudançaemritmolento(a transformação não deve ser tão vigorosa a ponto de criardescontinuidades signi icativas entre as condições em que duas geraçõessucessivassãotreinadas).

Condições culturais inconsistentes, heterogêneas (hesita-se em usar otermo “cultura”, o qual implica a natureza sistêmica do todo), tornam-se,por outro lado, inextricavelmente vinculadas à presença contínua de“contatosculturaisintegraissecundários”(amisturadeindivíduoscriadosemculturashomogêneas,masdiferentes).67

Os defensores do conceito diferencial estão amiúde preocupadosdemais em justi icar a autoidentidade e a singularidadede “uma cultura”que estejam estudando para resistir à tentação de perceber qualquercontato e qualquer mistura de “culturas” como algo intrinsecamenteanormal, quando não indesejável e malé ico. Por vezes, essa atitudeencontra uma expressão ética, como na famosa metáfora do copoquebrado de Ruth Benedict. Na maioria dos casos, a mesma atitude seexpressa em termos empíricos supostamente descritivos; por exemplo,aceita-se amplamente que as condições de “contato cultural” tendem alevar a uma taxa relativamente alta de desordens mentais e doençaspsicossomáticas. Ninguém parece preocupar-se com o fato de que o ato

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crucialdeestabelecerumarelaçãoentredadosestatísticosrespectivosaochoque entre as expectativas incutidas nos imigrantes por suas culturasnativas e a nova realidade cultural é uma decisão teórica arbitrária, nãoum resultado empírico. O que é supostamente corroborado estavapresumido desde o início. Caso se empregasse outra teoria, o mesmofenômeno poderia ter sido explicado, digamos, por fatores peculiaresoperando na autosseleção de potenciais imigrantes, ou pela especialgravidadedeobstáculoseconômicos, sociais etc. colocadosno caminhodeumimigranteemcomparaçãocomoshabitantesestabelecidos.

O conceito diferencial de cultura não é um concomitante acidental doclima intelectual damodernidade. Ele con irma diversos pontos focais dopensamento moderno, emprestando-lhes uma aparência espúria deempirismo. Mas também ajuda a estender uma ponte ligando algumasdiscrepâncias desconcertantes entre esses pressupostos a uma série defatos refratários observáveis na realidade. As duas funções o tornamindispensável.

Paracomeçar,oaxiomadaigualdadebiológicadasraçashumanasedauniformidade genética da totalidade dogenus doHomo sapiens está emconstante e con lituosa divergência com a obstinada diferenciação dosdesempenhoserealizaçõeshistóricos.Essacontradiçãopodeserexplicadademodoconvenientepelascontingênciasdosvaloresetradiçõesculturais.No limite,o método assume o modelo da fórmula weberiana: crenças →comportamento → estrutura e processo social; uma fórmula bem maispersistente e fértil atémesmo do que poderia sugerir a ampla discussãosobreopapeldoprotestantismonoberçodamodernidade.68

Hagen apontaria para o divisor de águas entre as culturas queproduzem personalidades conservadoras e as que geram inovadores; 69F.S.C. Northrop 70 tentaria demonstrar a orientação estética das culturasorientais emoposição à racionalidadedoOcidente. E hostes de teóricos epesquisadores de campo tentariam enumerar incontáveis barreirasdeterminadas pela cultura aos modos de vida modernos.71 Em cada umdesses casos, a cultura, no sentido diferencial do termo, é considerada aprincipal responsável pelos diferentes destinos de povos na mesmamedidadotadosdopontodevistagenéticoeconfrontadosporumconjuntosupostamenteidênticodeoportunidadeseconômicas.

Emsegundolugar,oconceitodiferencialdeculturaàsvezespreencheovácuo intelectual deixado pela providência divina e pelo sobrenatural; ospoderes explanatórios dessas ferramentas intelectuais, antes onipotentes,

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reduziram-sebastante comoadventodaeramoderna,masa funçãoquedesempenhavam não desapareceu de forma alguma. A Idade Modernaproclamoua liberdadehumanaemrelaçãoaosgrilhõessobrenaturais.Damesmaforma,produziuumanovademandapornecessidadesproduzidaspelo homem para dar conta dos ingredientes involuntários, nãoimediatamente administráveis, da condição humana. Daí o singular apelointelectual do conceito diferencial de cultura, pelo qual “os sistemasculturais podem ser considerados, de um lado, produtos da ação e, deoutro,influênciascondicionantesdenovasações”.

A cultura, quando entendida como “processos selecionados,historicamente criados, que canalizam a reação do homem a estímulostanto internos quanto externos”, 72 ajusta-se às duas exigências a que oarti ícioexplanatóriodesejadodeveseconformar.Éaomesmotempoumaentidadefeitapelohomemeumaentidadequefazohomem;submete-seàliberdadehumanaerestringeessa liberdade;relaciona-seaoserhumanoem sua qualidade tanto de sujeito quanto de objeto. Armado do conceitodiferencial de cultura, é possível evitar os horrores gêmeos dosobredeterminismoedovoluntarismometodológico;podem-seexplicardeforma inteligívelosevidentes limitesda liberdadehumanasemdepreciarnemumpoucooprincípiodaliberdadedeescolhadohomem.

Em terceiro lugar, tomar a cultura como o principal diferencial dacondição humana ajusta-se muito bem ao papel predominante que opensamentomodernoatribui ao conhecimentoeà educação (pormotivosjáapresentadosantes).A crençanopotencialquase ilimitadododiscursointelectualedosesforçosdesocializaçãoestáprofundamentepresenteemquase todo diagnóstico de nossa época, bem como as tentativas deenfrentaroquevemoscomo“problemas”sociais,políticoseeconômicos.Oconceitodiferencialdeculturaé,aesserespeito,análogoecomplementarao também diferencial conceito de educação. Sua condição estáintimamente relacionada, e ambos são ixados aos próprios alicerces daformamodernadelidarcomarealidade.

En im,comoPeterBergerobservoucompropriedade,“nãosepodedarum doce ao dragão da relatividade e depois continuar tocando nossonegóciointelectualcomosenadativesseacontecido”.Paraobemouparaomal, esta é a era da relatividade. “A história apresenta o problema darelatividade comoum fato, a sociologia do conhecimento, comoumanecessidadedenossacondição.”73

Em vez de “sociologia do conhecimento”, sobre a qual se concentra a

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fúria polêmica de Berger, podemos também dizer “a informada mentemoderna”. Seria estranho se o conceito diferencial não empurrasse seuantecessorhierárquicoparaalémdoslimitesdaquiloqueéproduzidopeloesforço acadêmico legítimo. Quase todos os porta-vozes da “mentemoderna”proclamaram(emboraalgunso izessemcomsatisfação,outroscompesar) que o único elemento absoluto emnossa condição é o imdoabsoluto. Independentemente das razões, achamos cada vez mais di ícilacreditar em padrões absolutos e universais de bondade ou beleza.Tendemos a tratar tanto as normasmorais quanto os arroubos estéticoscomo questões de mera convencionalidade. Não admira que “culturascomparadas” nos pareçam coleções de curiosidades que compartilham,acima de tudo, a característica de se basearem apenas em opçõeshumanas,antigasouatuais.

Em suma, o conceito diferencial de cultura parece um constituinteindispensável da imagemdemundomoderna, intimamente relacionado asuas articulações mais sensíveis. Nessa íntima a inidade se encontra averdadeirafontedeenergiaepersistênciadesseconceito.

Oconceitogenéricodecultura

O conceito genérico de cultura alimenta-se de partes subestimadas e nãodeclaradas de seu correlativo diferencial. Nesse sentido, é um corolárioindispensável de seu principal adversário. Quanto mais êxito obtém oconceito diferencial emdividir o cenário humanonumamultiplicidade deenclavesautossuficientesesemrelaçãoentresi,maisforteéanecessidadedeenfrentaroproblemadaunidadeessencialdaespéciehumana.Oquese procura não é uma unidade biológica, pré-cultural, mas o alicerceteóricodarelativaautonomiaepeculiaridadedaesferacultural,emgeral,edoconceitodiferencial,emparticular.

Dopontodevistaconceitual,adiferenciaçãoculturalnãosechocacomopressuposto da unidade essencial pré-cultural. Pelo contrário, a ideia dediferenciação foi usada, pelamoderna visão igualitária, humanitária, paraexplicarvariaçõesempíricasinjusti icadasdaidentidadebásicanadotaçãobiológica das raças humanas. Não tanto no caso da unidade da própriacultura, toda ela situada no domínio do cultural; embora essa ideia nãoimpliquearecusaemreconhecerasvariaçõesculturaisesuaimportância,eladefatosigni icaumadecisivamudançadeênfase,dofocodeinteresseteóricoedepesquisa,e,acimadetudo,dotipodeassuntoquesedesejae

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seécapazdeabarcar.Seanoçãohierárquicadeculturacolocaemevidênciaaoposiçãoentre

formas de cultura “requintadas” e “grosseiras”, as sim como a ponteeducacionalentreelas;seanoçãodiferencialdeculturaéaomesmotempoum produto e um sustentáculo da preocupação com as oposiçõesincontáveis e in initamente multiplicáveis entre os modos de vida dosvários grupos humanos – a noção genérica é construída em torno dadicotomia mundo humano-mundo natural; ou melhor, da antiga erespeitável questão da iloso ia social europeia – a distinção entre “ actushominis” (o que acontece ao homem) e “actus humani” (o que o homemfaz). O conceito genérico tem a ver comos atributos que unem a espéciehumana ao distingui-la de tudo o mais. Em outras palavras, o conceitogenéricodeculturatemavercomasfronteirasdohomemedohumano.

Por motivos fáceis de compreender à luz da função discricionária dacultura (ver Capítulo 2), o traçado dessas fronteiras parece ter umaenorme importância emocional para os seres humanos. Nas soluçõesprimitivas registradas por antropólogos, ele se expressava no expedientesimples, embora altamente e iciente, de expandir a fronteira homem-naturezaentreacomunidadedaprópriapessoaeorestodomundo–quecompreendia,nocaso,tantotigresquantooutrastriboscommodosdevidaincompreensíveiseinescrutáveis.Asolução,contudo,permaneciae icienteenquanto o grupo que a empregava continuasse autossu iciente, ou seja,livre para não estabelecer relações normativamente padronizadas ereciprocamenteaceitascomosestranhos.

Mais tarde, a questão da demarcação passou para um novo campo, oque se estende entre a totalidade dos seres humanos, de um lado, e ascriaturasvivasnãohumanas,deoutro.Comaconstanteexpansãodaredede vínculos regulares e institucionalizados que se alastrava sobre todo ooikoumene (a parte conhecida do mundo habitável), estabelecer umafronteira absoluta num universo em permanente mudança e mobilidadeganhou importância fundamental.Omodo indutivodeenumerarossóciosaceitosdoclubehumanoteriasetornadoimpraticável–simplesmenteelenãoimpediriafuturasambiguidades;eraprecisoumarespostaabsolutista,aplicávelatodoouniverso.

Na era da substituição do parentesco e da a inidade por critériosterritoriaisnade iniçãodosgruposhumanos,houveumafortetendênciaasituarafronteiranoespaçogeográ ico.Daíofamoso“ ubileones” (“aquiháleões”)da cartogra ia romana, assimcomoCila eCaribdes (monstrosque

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guardavamasfronteirasconhecidasdomar)namitologiagrega.Daí,acimade tudo, os terríveis e repulsivos monstros ambíguos, metade humanos,empregados pelos geógrafos antigos emedievais para delinear os limitesda espécie humana (e assim de ini-la). Asmargens domundo exploradoeram invariavelmente habitadas por esses monstros nos textos dasmaiores autoridades da época: Plínio o Velho, Pompônio Mela, Caio JúlioSolino Polistor, o bispo Isidoro de Sevilha, Alberto Magno, Vincent deBeauvais. As fronteiras do oikoumene nas etimologias de Isidoro eramcheias de ogros assustadores; havia criaturas sem cabeça, com bocas eolhosnopeito,outrassemnariz,outras,ainda,dotadasdelábiosinferioresproeminentes, sob os quais se escondiam, para dormir, gárgulas comumpéde tamanho foradocomum,sobreoqualdescansavamdurantehoras,ou com bocas tão pequenas que só lhes permitiam sugar comida líquidaporumcanudo.74Aindamaisrepelenteseatemorizanteseramoscostumesdessas entidades demoníacas: o relato pormenorizado de Pedro oMártirsobreosantropófagosdiz:

Ascriançasquecapturam,elescastramparaengordar,damesmaformaquefazemoscomgaloseporcosjovens,ecomemquandoelasestãobemalimentadas:quandocomem,comemantesasentranhas e as partes extremas, como mãos, pés, braços, pescoço e cabeça. As outras, maiscarnudas,trituramparaestocar,comofazemoscomcarnedeporcoepresunto.…Asjovensquecapturam,elesmantêmparaprocriação,comofazemoscomasgalinhasparapôrovos.75

Dois acontecimentos paralelos izeram com que os esforços deestabelecimento de fronteiras passassem da dimensão espacial para atemporal: o primeiro foi a consistente eliminação dos espaços em branconomapadoplaneta e a resultante escassezdeterras capazes de abrigarseres fabulosos; o segundo, a emergente consciência dahistória e de suanaturezaunidirecional.

Nos tempos modernos, pitecantropos, sinantropos e australopitecosassumiramopapeldosantropófagos.Aalta intensidadedasemoçõesporeles produzidas, além de qualquer comparação com outros temascientí icos, só pode ser explicada de forma razoável por suas funçõesdelimitadoraslatentes.Fenomenologicamente,anoçãogenéricadeculturapertence à mesma categoria de antropófagos e australopitecos. Apermanenteatençãoaelesdedicada,excessivasobretudoemrelaçãoàsuaimportância puramente cientí ica, é testemunho eloquente de seusaspectossemióticosmaisgerais.Trata-sedaversãomoderna,numaescalareferidaàespéciehumana,dapreocupaçãoperenecomaauto-identidadedogrupo.

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Emsuaformamaissimples,oconceitogenéricodeculturaconsisteematribuiràprópriaculturaaqualidadedecaracterísticauniversaldetodososhomens,eapenasdestes.Nessesentido,étípicaadeclaraçãodeCliffordGeertz:

O homem é o animal que produz ferramentas, fala e símbolos. [Dessa forma, a articulação dapeculiaridade da natureza humana segue o padrão estabelecido por Leslie A. White em suadiscussãosobreosímboloedaferramenta,76e,pormeiodele,asideiasdeFriedrichEngels.]Sóeleri;sóelesabequevaimorrer;sóelenegaoacasalamentocomamãeeairmã;sóeleinventavisões de outrosmundos para viver no que Santayana chamou de religiões, ou prepara essasmassas de modelar da mente que Cyril Connolly chamou de arte. Ele não só é dotado de …pensamento,masdeconsciência;nãosódenecessidades,masdevalores;nãosódemedos,masde escrúpulos; não só de um passado, mas de uma história. Só ele [o argumento é concluídocomoosumáriofinaldeumjulgamento]temcultura.77

O modo com que Geertz apresenta essa ideia já generalizada pareceestar entre os mais abrangentes da categoria. Combina argumentosextraídos da moderna análise ilosó ica da condiçãoexistencial humanacom descobertas psicológicas e princípios metodológicos seminais dahumanidade emgeral. A cultura, tal comodescrita no parágrafo citado, émuitomais (oumuitomenos) que o agrupamento de normas e costumespadronizados dos diferencialistas; ela é uma abordagem especí ica,totalmente humana, da tragédia da vida, arraigada, emúltima análise, nahabilidadeespecí icadamentehumanadeserintencional,ativaecriativa.Outros proponentes do conceito genérico de cultura estão muito maispróximos da já mencionada abordagem tradicional e insípida do“denominadorcomum”,emborasituadanocontextodapassagemhistóricadomundoanimalparaohumano.78

MesmoafórmuladeGeertz,contudo,permanecenoplanodadescriçãofenomenal.Elesimplesmentedeclaraaspeculiaridadesmaisevidentesdaraça humana; evita qualquer tentativa de organizar princípios distintosnumaestruturacoesa;abstémseatédedesignarumdessesmuitosplanosde realidade como um lócus privilegiado doexplanans, e outros,respectivamente, como o lugar doexplanandum. Tais elementos têm sidocontinuamentefornecidosporoutrosestudiososdacultura.Otemaaindaéumdosmaispolêmicosde toda a ciênciada cultura, e inúmeras soluçõesalternativas,nemsemprecompatíveis, têmseapresentado.A seguir,umatentativadeclassificarasmaisinfluentes.

1) Uma alternativa é de inir a cultura, desde o início, como um conjunto

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único, total e indivisível de signi icados e instrumentos simbolizados,atribuívelapenasàhumanidadeemseutodo.Assim,deacordocomLeslieA.White, “a culturada espéciehumanaéna realidadeum sistemaúnico,singular; todasas chamadas culturas sãoapenasporçõesdistinguíveisdeumsótecido”. 79RobertH.Lowietemumavisãosemelhante:“Umaculturaespecí icaéumaabstração,umfragmentoarbitrariamenteselecionado.…Há somenteuma realidade cultural quenão é arti icial, ou seja, a culturadetodaahumanidadeemtodososperíodoseemtodososlugares.”80

Claro está que isso funciona melhor no discurso que na prática. Oproblema da noção “totalista” de cultura desse tipo torna-se evidente nomomento em que se tenta reformá-lo para que exerça o papel deferramenta de uma análise especí ica. O que signi ica exatamente “aculturadahumanidade”?Seriaesseumsistemastrictosensu,ouseja,umconjunto de unidades inter-relacionadas e que se comunicam? Se assimfor,oquesãoasunidades,senão“culturasespecí icas” (nacionais, tribais,grupais em geral), descartadas como “fragmentos arbitrariamenteselecionados”ou“apenasporçõesdistinguíveis”?Emquesentido(alémdopontodevistaanalítico)aculturadahumanidadecomoumtodoconstituidefatoumatotalidade,comoprodutodecomparaçõesempíricasesíntesesteóricas?

Umarazãopelaqualtendemosaconsideraressasperguntasincômodaseembaraçosaséaconhecidafaltadeunidadescorrespondentes,distintasdo ponto de vista analítico, entre os construtos teóricos da sociologia(de inida como uma abordagem socioestrutural do estudo da vidahumana).Asociologia,talcomoamadureceunoseiodacivilizaçãoocidentale tal como a conhecemos hoje, tem, da perspectiva endêmica, um viésnacional. Não reconhece uma totalidade mais ampla que uma naçãopoliticamente organizada; o termo “sociedade”, tal como ele é usado porquase todos os sociólogos, independentemente da lealdade às escolas, é,paratodososfinspráticos,onomedeumaentidadeidênticaemtamanhoecomposição ao Estado-nação. Expressões como “humanidade”, “espéciehumana” etc., quando aparecemna literatura sociológica pro issional, sãousadas num sentido inespecí ico, metafórico, taquigrá ico; ou entendidascomorótulosanalíticosvaziosparaumagregadodesociedadesde inidas;um agregado, para ser exato, mas não um sistema; um conjunto deunidades,masnãoasinter-relaçõesentreelas.

Porvezes,devemosadmitir,algunssociólogos(commaiorfrequênciaospsicólogos sociais) discutem regularidades, se não leis, relacionadas ao

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“homem” como tal, quaisquer que sejam suas especi icações nacionais,geográ icasouhistóricas.Trata-se,contudo,deum“homem”tomadocomoamostra aleatória da espécie, não um substituto para “a totalidade daespécie humana”; esse conceito é produto de um processo analítico deabstração,nãodesíntese,ecomdi iculdadepoderiaservirdetijolocomoqual construir o modelo de uma sociedade singular, para não falar daespéciehumanacomoumtodo.

O conceito de cultura como sistema social numa escala da espéciehumana ica, portanto, no vácuo, carecendo de alicerces “substantivos”para sua sustentação. Não admira que White ou Lowie não tenham idomuito longe, na verdade nenhum passo além de suas declaraçõesprogramáticas. Aparentemente, até que a sociologia desenvolva conceitosanalíticos de uma escala comparável, a irmações desse tipo estãodestinadas a se tornar declarações de fé, sem relevância direta para oprocedimento cognitivo real. Se usadas de forma prematura para aorientação analítica, levarão o estudioso pelo caminho já trilhado porcaçadoresdo“denominadorcomum”.

2) Outra alternativa inspira-se no modelo estrutural-funcionalista desistemasocial.Ocarátergenéricodoconceitodeculturaqueelapromoveescora-senopressupostodauniversalidadedospré-requisitosquedevemser atendidos para garantir a sobrevivência de todo sistema socialimaginável. Qualquer que seja o sistema que possamos escolher comoponto de partida, sempre poderemos apresentar um inventário denecessidades essenciais, a serem satisfeitas desta ou daquela maneira.Algumasdelassópodemsêlopormeiodeinstituiçõesarti iciais,feitaspelohomem; daí uma estrutura universal a ser preenchida por qualquercultura especí ica, independentemente de suas característicasidiossincráticas.

Emborahajaa inidadeentreaestratégiaaquiaplicadaeaquelacriadae cultivada por Talcott Parsons, algumas de suas aplicações sãoesclarecedoras e inventivas. Assim, por exemplo, EdwardM. Bruner, 81 aolado de “pré-requisitos” mais tradicionais e rotineiros, como controle daagressão e alocação de mulheres e propriedades, especi ica, comoelementosuniversaisdaculturahumana,a imposiçãodo lapsonecessárioentredesejoesatisfação;reprimirdesejosinadmissíveisnosubconscientee sublimá-los em motivos socialmente bené icos; fornecer satisfaçõespaliativasparaimpulsosreprimidospormeiodefantasia, literatura, teatro,

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contos populares, jogo, rituais religiosos; demarcar pessoas e grupos quepodem ser odiados; de inir pessoas aprovadas como objetos sexuais;desenvolver normas para regular a aquisição de bens. Clyde Kluckhohn,escrevendo uma década antes, foi um pouco menos imaginativo e maispreocupado em não se afastar muito do terreno seguro dos“denominadores comuns”; mas apresentou o equivalente a umaabordagem dos “pré-requisitos funcionais” da cultura como fenômenogenérico:

Osfatosdabiologiahumanaedocarátergregáriodahumanidadefornecem…certospontosdereferência invariáveis a partir dos quais se podem traçar comparações transculturais semsuscitarperguntasqueestejamelasprópriasemquestão.ComoassinalouWissler,oscontornosgeraisdoplanobásicodetodasasculturassão,edevemser,maisoumenososmesmos,porqueos homens, sempre e em toda parte, são confrontados por certos problemas inevitáveis quesurgem da situação “dada” pela natureza. De vez que amaior parte dos padrões de todas asculturas se cristaliza em torno dos mesmos focos, existem aspectos importantes em que cadaculturanãoé totalmente isolada, fechadaediferente,masrelacionadaecomparávela todasasoutras.82

Essa última citação, que pode ser classi icada na categoria agora emdebate, torna dispensável a genuína natureza de toda a abordagem dos“pré-requisitos funcionais” da cultura no sentido genérico. A abordagemem questão, na verdade, parece muito próxima das preocupações dos“colecionadores de borboletas”. A maioria dos autores está preocupadasobretudo em encontrar um arcabouço de referência conveniente paracomparar culturas basicamente distintas e fechadas. Esse arcabouçodeveriaassumiraformadeumalistadeitensoutítulosdecapítulos.Oquesepodechamarde “culturahumana” temapenas (seéque tem)ostatusontológicodeumderivadodemuitasentidades reais,ouseja,deculturasindividuais. Essa abordagem parece mais variável e menosdissonantemente distinta por estar mais bem ajustada, ao contrário daanteriormente discutida, ao instrumentalanalítico da sociologia hojedisponível. É feita sobmedida para a sociologia nacionalmente enviesadadaatualidade.

Oaspecto importanteéqueesse tipodegeneralidadenaculturaéumsubproduto, quando não um artefato, danão união da humanidade numtodo; de ela estar, pelo contrário, dividida em unidades distintas quedevem, em primeiro lugar, ajustar-se à vizinhança de outros gruposhumanos e evitar misturar-se com eles, perdendo assim sua própriaidentidade grupal. Em outras palavras, o elemento mais genérico nacultura é essa função divisora, diferenciadora. Nesse sentido, mais uma

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vez, o conceito que examinamos é o braço autêntico de uma sociologiadominada pelo paradigma do Estado-nação, de modo geral, e, emparticular,porsuasofisticadaversãoestruturalfuncionalista.

3) O mesmo viés, injetado, ainda na infância, na corrente sanguínea domodernoestudodaculturasobaformadevacinadurkheimiana,porsuasparteiras, Malinowski e Boas, dá cor ao ramo dos “universais éticos” doconceito genérico de cultura. Isso foi mais uma vez introduzido porKluckhohn em sua busca (no clássico estilo “coleção de borboletas” deKroeber, que mistura, como sempre, declarações sobre a realidade epostulados sobre metodologia) de “categorias, que tira as culturas dascondições de mônadas isoladas e torna possíveis algumas comparaçõesválidas”.Existem,comovemos,culturasnopluralecondiçõesnoplural.Poralgumarazão,contudo,preferimosqueelassejammônadasincompletas.Éonde entram as “categorias gerais”, que nos permitem fazer algumascomparações entre elas. O motivo pelo qual se espera que as culturaspercampartedesuanaturezamonádica,porteremsidocomparadas,devecontinuaraserosegredodaepistemologiadeKroeber.

Seja como for, Kluckhohn deposita suas esperanças de chegar acategorias comparativas nos universais éticos. Estes podem ser de doistipos:

• Regras que aprovamou proíbem tipos especí icos de atos (por exemplo, contar a verdade epraticaroincesto).

•Princípiosgeraisoupadrõesdeavaliaçãoque favorecemaestabilidadeea continuidadedosgrupos,eamaximizaçãodassatisfaçõesvivenciadaspelosindivíduos.83

A segunda frase, que expressa num só fôlego a “estabilidade dosgrupos” e a “satisfação dos indivíduos”, tornando-as dependentes dosmesmos“princípiosgerais”,emsuafrivolidadedescuidada,vaimuitoalémde Durkheim, chegando às raias da ingenuidade do utilitarismo. Mas adeclaraçãomaissurpreendentevememseguida:“Osuniversaiséticossãoo produto da natureza humana universal, a qual, por sua vez, se baseianumabiologiaepsicologiacomuns,enumasituaçãogeneralizada.”Quantoaoúltimoitem,reconhecemosoerrohabitualdeconferirstatusontológicoàquilo que é, em última instância, um arcabouço de referência analíticaaplicado universalmente por cientistas e enraizado no viés familiar doEstadonacional.

Oelementonovoebizarroéoprimeirodosdoisitens,cujapresençana

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declaração explanatória citada equivale, no seu efeito inal, a anunciar anaturezanãocultural,oumelhor,pré-cultural,docomponenteuniversaldacultura. O que é “genérico” na cultura supostamente constitui um corpoestranho, um elemento de fora, imposto aos fenômenos culturais porconjuntosdefatoresnãosubmetidosaumaregulaçãoculturaldeverdade.Kluckhohn não disse coisa alguma que nos ajude a resolver o dilema da(digamos) norma de que contar a verdade é algo determinado pelabiologia. E, em particular, como a proibição do incesto, o primeiro atorealmentehumano,oprimeiro lampejodeumaordemarti icial, feitapelohomem, imposta a ocorrências biológicas de outro modo distribuídasaleatoriamente – como essa própria encarnação de um ato cultural podeserdesmentidapelaonipresençadequalidadespré-culturais.

Quanto à última idiossincrasia, a maioria dos conceitos “universaiséticos” está carregada de uma visão estrutural-funcionalista do mundohumano.Issoévisível,porexemplo,naspalavrasdeDavidBidney:

Paratodasasculturas,aperpetuaçãodasociedadetemprecedênciasobreavidadoindivíduo,e,portanto, nenhuma sociedade tolera a traição, o assassinato, o estupro ou o incesto. Todas associedades reconhecem direitos e deveres mútuos no matrimônio e condenam atos queameacem a solidariedade familiar. De modo semelhante, todas as sociedades reconhecem apropriedadepessoaleproveemalgumastécnicasparaadistribuiçãodeexcedenteseconômicosaosnecessitados.84

Aassociaçãoéinevitável,jáqueaabordagemestruturalfuncionalistadaéticaéquaseaúnicaadmitidapelacorrentesociológicaatual.Asociologiamodernatratatodootemadaéticacomoumcoroláriodo“agrupamentodevalorcentral”,aversãoatualizadadaconsciencecollectivedeDurkheim,emtese responsável por manter funcionando a precária rede de vínculossociais entre indivíduos biologicamente egoístas. A associação é tãopróxima que não corremos o risco de deixar de lado uma parte muitogrande de seu conteúdo ao tratarmos os “universais éticos” como outronome para a versão indisfarçadamente estrutural-funcionalista, antesdiscutida,doconceitogenéricodecultura.

4)A prioridadedo social sobre o individual só faria sentido – embora osdefensoresdesseprincípiometodológiconaanálisedaculturarelutememadmiti-lo – se fosse possível ou, na realidade, imaginável haver umasociedadesemcultura.Seasnormasculturais são trazidasà luzporumasociedade em luta pela sobrevivência, a consequência disso é que essasociedade deve ter nascido de uma forma não cultural, na verdade, sem

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recursos culturais de qualquer tipo. Essa hipótese di icilmente seriaconsiderada palatável. Uma sociedade sem cultura parece umamonstruosidadecomparávelàproverbialmulasemcabeça.

Assim, a ideia de que um indivíduo culturalmente padronizado é umaprecondiçãodasociedade–damesmaformaqueumaculturabaseadanasociedade é precondição de um indivíduo social – vez por outra semanifesta no pensamento dos sociólogos. Se os homens criaram asociedade–tiveramtantoanecessidadequantoacapacidadedefazê-lo–,devem ser dotados das qualidades fundamentais para estruturar tanto asociedadequantoaformacomoapensamecomoescolhemsuaatitudeemrelação a ela. A cultura é tanto pré-social quanto socialmente gerada. Aoquetudoindica,dopontodevistahistórico,asduassurgiramecresceramaomesmotempoeemestreitacolaboração,alimentando-seeajudando-se,cada qual exteriorizando na realidade da outra a condição para seuprópriodesenvolvimento.

Quandocientistassociaissepõemaexplorararaizcomumdaculturaeda sociedade, a escolha mais certa e segura é a dotação psicológicahumana. A decisão de concentrar a atenção nas qualidades gerais dapercepçãohumanaéoprimeiropassodeumlongocaminhoque levaaosso isticados píncaros do moderno estruturalismo semiológico de LevVygotsky,JeanPiagetouClaudeLévi-Strauss.Oinício,contudo,émodestoerealista,comonumapalestradadaem1957porRobertRedfield:

Existe esse fenômeno da mente a que chamamos “autoconsciência”; todos os homens têmconsciência de si [do self ], distinguemumeu e ummim; alémdisso, relacionam-se comoutrosquetambémsãoconhecidosporsimesmoscomoeus[selves].Todososhomenslançamumolharsobreumnãoeu,umuniversoemqueaspessoassedistinguemumadasoutrascomopessoas,eemcategorias – algumasdelas, comooparentesco, universais. Em situaçõesnasquais se exigeuma escolha de lealdades, todos se dispõem a sentir e pensar mais íntima e gentilmente arespeito de seus grupos imediatos do que pensam e sentem a respeito de pessoas de gruposmaisremotos.85

A ideia básica pertence à tradição vinculada a Locke e Kant. O campoem que está ancorada é aquele cultivado com diligência pela psicologiafenomenológica de Alfred Schutz ou Erwin W. Strauss. Mas o contextoteórico ainda está bem dentro dos limites tradicionais estabelecidos pelaantropologia cultural americana. Pode muito bem ser que a mencionadadeclaração de Red ield represente o ponto mais elevado que aantropologiatradicional poderia atingir em sua busca de componentesgenéricosantesqueseassimilassemasrealizaçõesdafenomenologiaedo

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estruturalismo.

5)Entretodasasqualidadesdapsicologiahumana,emoposiçãoàanimal,umacaracterísticaemparticular foidiscutidapornumerososautores, emseparado e em profundidade, como um dos traços mais evidentes dossereshumanosecandidatomaisprovávelaopapeldealicercedaculturanosentidogenérico.Essacaracterística,objetodetratamentopreferencial,foi a capacidade humana de pensar simbolicamente; em particular, deproduzir símbolos arbitrários e atribuir-lhes signi icadosaceitosdopontode vista coletivo. “O homem difere do cachorro – e de todas as outrascriaturas–pordesempenharumpapelativonadeterminaçãodovalorqueo estímulo vocal deve ter, algo que um cão não pode fazer”, diz Leslie A.White.86

A ideia da linguagem como característica distintiva das criaturashumanas está estabelecida em nossa tradição intelectual desde temposimemoriais.Nahistória intelectualdoOcidente,remontapelomenosasãoTomásdeAquino,e,pormeiodele,aAristóteles.Aindaassim,sóhámuitopouco tempo as línguas dos povos de inidos como “primitivos”, até entãoinexploradas, foramregistradas,eseuvocabulárioeestruturagramatical,investigados. O impacto foi imediato e de amplo alcance. Por uma felizconcatenação de eventos, o inventário das línguas “primitivas” teve lugarmuitodepoisdoqueoutroscamposculturais,comoformasdematrimônioefamíliaouimplementosdetrabalho;portanto,muitodepoisqueasideiasevolucionistas – que haviam dominado o pensamento dos primeirospesquisadores de famílias emachados de pedra exóticos – entraram emdecadência,porvezestransformadasemobjetosdeescárnio.

Osestudiososdaslínguas,portanto,aocontráriodeseuspredecessores,não deixaram escapar o óbvio; perceberam desde o início que,independentemente do que se possa dizer do nível relativo dedesenvolvimento de uma sociedade ou de outra, suas línguas não podemser organizadas numa escala evolutiva; nãoexistem línguas “maisperfeitas”ou“maisprimitivas”quandoavaliadaspeloúnicocritérioquesepodeaplicarcomrazoabilidade:asegurançaee iciênciadatransmissãodeinformaçõesnocontextonativo.Talvezesseaspectododestinohistóricodaetnolinguística possa explicar, em parte, por que a linguagem, ou aproduçãodesímbolosemgeral,foidesdelogoaclamada,esemresistêncianotável, como o cerne universal e básico da cultura humana, como seualicerce.

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A descoberta inicial do papel singular da leitura e da produção desímbolos no modo de vida caracteristicamente humano inspirou umapesquisacadavezmaisengenhosasobreousodesímbolospelosanimais.A hipótese original foi submetida a um teste rigoroso, e muito poucodaquela verdade “óbvia” se manteve de pé. Grande número decaracterísticashumanasdointercâmbiosimbólicofoisendodescobertoemanimais, e não naqueles destacados por uma comunicação intraespéciemaisso isticada,comoabelhas,símiosegol inhos.Alinhadivisóriade inidae inequívoca entre o uso de símbolos por seres humanos e por animaisicoumaisembaçadaquandooscientistascomeçaramaexperimentar,emvezderegistrarsuasobservações;quandomudaramofocodeatençãodouso concreto de símbolos por parte dos animais em sua comunicaçãointraespécie para sua capacidademental e psicológica de usá-los quandoconfrontados com uma situação de aprendizagem, com um ser humanodesempenhandoopapeldeparceirosituacional.

Aprimeiravítimadesseexamemaisrigorosofoiacrençajámencionadana formulação deWhite: de que só os seres humanos usam símbolos. Sede inirmos os símbolos como “mediadores” na cadeia de comunicação,como entidades construídas de matéria diferente do que está sendocomunicado,entidadesemqueoconteúdodainformaçãoétraduzidopeloemissor e a partir das quais é retraduzido pelo receptor da mensagem,então a maioria dos animais possui símbolos de uso generalizado. Aindaassim,erapossívelestabelecertrêsdiferençasimportantesentreousodesímbolosporanimaiseporsereshumanos:

1) Na relação entre o símbolo e o que é simbolizado, que pode ser“natural” ou “arbitrária”. A distinção pode ser válida num duplo sentido.Em primeiro lugar, no da presença ou ausência de algum tipo desemelhança ísica entre o símbolo e seu referente. Em segundo, e maisimportante,nadiferençaentreumasituaçãoemquedeterminadosímbolo,mesmo sem ter a menor semelhança com seu referente, é produzido“automaticamente” numa associação causal com ele; e numa situação emque a criatura que utiliza o símbolo pode produzi-lo ou não quando seureferente ocorre, e, além disso, quando pode produzi-lo mesmo que nãohaja contiguidade temporal ou espacial, isiologicamente mediada, com oreferente.

2)Notipodereferenteaqueossímbolossevinculam.Ossímbolospodem

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conterinformaçõessobreoestado“subjetivo”doorganismoqueosproduzno momento em que estão sendo produzidos; ou podem transmitirinformações a respeito de coisas e eventos “objeti icáveis”, isto é,destacáveis, tantoespacialquantocronologicamente,doorganismoqueosproduz nomomento emque são produzidos.Outra formade dizer isso édistinguirentreouso“frio”desímbolos,nãoemocional(quandoépossíveldiscutir o “fogo” sem vivenciar o medo de uma chama ou a saída deemergência),edesímboloscomocomponenteintegral,inseparável,deumpadrão complexo e uni icado de comportamentos emocionalmenteorganizados(quandoogritode“fogo”sóaparecesimultaneamenteàfugareal).Nessaformadeseexpressar,adistinçãoqueoradiscutimosparecemuitopróximadaprimeira.

3)Na formacomoousodesímbolosé internamenteestruturado. Issodizrespeitonãotantoaumsímboloisolado,masaumsistemadesímbolos–osímbolo como elemento de um código que pode ser de inido como umaredepadronizadade relaçõesentre símbolos.Existemcódigos, comoodetrês cores dos sinais de trânsito, em que os símbolos não podem sercombinadosparaproduzirumnovosigni icado,eemquecombinaçõesdesímbolos que deveriam ser usados em separado só podem produzirconfusão(=superposiçãodesigni icadosincompatíveis).Eexistemcódigosde diferentes tipos, em que uma quantidade pequena de unidades podeproduzir, pela aplicação de regras de combinação, umamultiplicidade designi icadosquase in inita.Aessa segundaqualidade, típicada linguagemhumana,AndréMartinetdeuonomede“duplaarticulação”.

O que parece distinguir a linguagem humana de formas de atividade constatadas entre osoutrosseresanimados–quepoderíamosnossentirtentadosachamartambémde“linguagem”– não é o fato de que o homem se comunique por enunciados articulados em palavrassucessivas,enquantoasproduçõesvocaisemitidaspelosanimaissemprenosparecem,tantonoplano dos sentidos quanto no da forma, inanalisáveis. Tudo indica, portanto, que a linguagemhumananãoapenaséarticulada,masduplamentearticulada,articuladanosdoisplanos.87

A linguagem humana deve à dupla articulação sua riqueza elexibilidadesingulares,suacapacidadedeproduzir,quasesemlimitaçõestécnicas, semprenovos signi icados, e, assim, de introduzir semprenovasdistinçõessutisnouniversoreferidonosatosdecomunicação.

Essestrêsfatoresdistintivoscombinadossãoresponsáveispelasumáriapeculiaridade da linguagem humana em relação a todo tipo de uso desímbolos pelos animais; estes exibem seu signi icado, podemos dizer,

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aberta e imediatamente; são, em certo sentido, idênticos a seussigni icados,mesmono casodeumsímbolo “arbitrário”dopontodevistade sua semelhança com o referente. A transparência e a disponibilidadeimediatas do signi icado provêm do fato de que qualquer símbolo éunilateralmenteatreladoaum,esomenteum,tipodecontextosituacional;o signi icado do símbolo deriva de uma relação “um a um” entre umsímboloeumreferenteindividuais.

Nãoéoqueacontecenocasodossímbolosproduzidospelohomem,quesão arbitrários (no sentido de serem indeterminados), possuidores dereferentes objeti icados e integrados num sistema-código. “O signi icadoplenodapalavra”,comodisseColinCherryemseuclássicotratadosobreacomunicação humana, “não aparece até ela ser colocada em seucontexto.”88Masessecontextonãoéfornecidoporeventosnãolinguísticos,comoumestadoparticulardoorganismoprodutordesímbolosou facetasdeseuambienteimediatocapazesdegeraremoções.Ocontextodoqualosigni icado pode ser deduzido é feito de outras palavras – aquelasrealmente presentes na vizinhança imediata da mesma cadeia deelocuções, ou as que estão presentes unicamente in potentia – comoalternativassignificativasàspalavrasusadasdefato.

Graças a esse novo plano de relações estruturadas, o plano linguísticostrictosensu,acomunicaçãohumanapodedarcontanãoapenasdecoisasoueventos individuais,masdasrelaçõesentreeles;essasrelaçõessãoosverdadeiros referentes da linguagem humana. Como Claire e W.M.S.Russellexpressaram,averdadeiralinguagem(ahumana)“envolvealivrecombinaçãodesímboloslimitadaapenasporregraslógicasdegramáticaesintaxe, as quais expressam, elas próprias, relações entre símbolos, eportantosimbolizamrelaçõesentrecoisas,indivíduoseeventos”.89

Comoveremosadiante,essacapacidadeúnicadereproduzireproduzirnovasestruturas,enãoa simpleshabilidadede introduzir intermediáriossimbólicosnoespaçoentreaconsciênciadoeventoeoeventoemsi,dotaalinguagemhumanadeseupotencialgeradordeculturaeatransformanoverdadeiroalicercedaculturacomofenômenogenérico.Époressemotivoque a questãodo componente genéricoda culturahumana –da essênciada cultura – nos traz, de maneira inevitável, num estágio relativamenteprecocedenossainvestigação,aotemadaestruturaedaestruturação.Serestruturadoesercapazdeestruturarparecemserosnúcleosgêmeosdomododevidahumanoconhecidocomocultura.

Esseaspectopareceserdecrucialimportânciaparaqualquertentativa

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de avaliar a cultura no sentido genérico. A linguagem humana é umamistura singular de pensamento (inteligência, de acordo com aterminologia de Piaget) e produção de símbolos. As duas atividades nãosão de modo algum idênticas, nem tampoucoconectadas de formainextricável. Elementos da linguagem sonora, ou fala, se desenvolveramsegundo linhasdiferentesapartirdessesembriõesdepensamento, comobemargumentouVygotsky. Segundo ele, os sons produzidos pelos símiossuperiores, embora providos de signi icado simbólico, são singularmenteinadequados para evoluir na direção da “verdadeira linguagem” porestarem invariavelmente con inados a um contexto afetivo; e emoçõesintensas vão de encontro à regulação inteligente do comportamento. “Acorrespondênciaíntimaentrepensamentoefala,característicadohomem,estáausentenosantropoides.”90

A capacidade de produzir sons subordinada unilateralmente a algunseventos não simbólicos é uma qualidade generalizada nos animais.Elementos incipientes de análise e síntese – os dois processoscomplementares do pensamento – também podem ser encontrados nocomportamento de muitos animais. Mas apenas nos seres humanos, nosseres culturais, é que eles se encontram e se misturam. O puro uso desímbolos, antes de transcender o limiar da capacidade de estruturação,parece um beco sem saída; nenhuma quantidade de novos símbolosagregada àqueles já empregados é capaz de combiná-los para constituiruma verdadeira linguagem. Parece haver de fato um abismo qualitativoentre os símbolos comuns e a linguagem humana. A estrutura, portanto,maisqueousodesímbolos, talvezsejaoverdadeirocentrodegravidadedaculturacomoatributouniversaldossereshumanos.

Aconclusão inalaesserespeitofoiextraídaporJeanPiaget:“Enquantooutrosanimaissópodemsealterarmudandosuaespécie,ohomempodetransformar-se transformando o mundo, e estruturar-se construindoestruturas;eessasestruturassãodelemesmo,umavezquenãosãoparasempre predestinadas a partir de dentro ou de fora.” 91 Assim, apeculiaridade do homem consiste em ser ele uma criatura geradora deestruturas e orientada para a estrutura. O termo “cultura” no sentidogenérico representa essa excepcional capacidade. Essa é, contudo, umadeclaração elíptica, a menos que se especi ique o signi icado em que ostermos“estrutura”e“estruturação”têmsidoempregados.

Aquantidadedelivrosetextosconcebidosacimadetudocomodebatessobreosigni icadoprecisode “estrutura”crescesemparar,e seriadi ícil

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para qualquer um até enumerar e classi icar as de inições ou regras deusoqueelespropõemoua irmam terdescoberto.Masnãoé certoqueoresultadodesseesforçolentosejavaliosoobastanteparacontrabalançarotempogastocomele.

O termo “estrutura” fez uma rápida carreira nas décadas de 1950 e1960,esemprehámuitoscontendoresávidosporse juntarao cortègedecelebridades em ascensão; esse conceito elegante tende a sersobrecarregado de signi icados, já que um número muito grande defanáticos ofuscados por ouropéis tenta ampliar ou distender seu escopo,cada qual o puxando para seu lado, na tentativa de acomodar suaspróprias preocupações e temas de pesquisa. Os limites da aplicação dotermo, hoje difusos e contenciosos, provavelmente continuarão a lutuarainda por algum tempo, antes que surja alguma coisa parecida com umconsensusomnium. O que vem a seguir é, portanto, nadamais que outratentativa de análise fenomenológica do termo, tal como é entendido nopensamento moderno; uma tentativa de extrair o cerne da intençãoconstitutiva,necessária,doinvólucrodoincidentaledomutável.

Em 1968, Raymond Boudon, lançando um olhar cauteloso sobre aenxurrada de autodenominados estruturalistas, publicou uma apuradaanálisesobreosdiferentesusoseabusosdotermosobotítulosintomáticode “Para que serve a noção de estrutura?”, 92 querendo dizer, pode-seimaginar, que a noção nem sempre serve a uma causa justa. Boudonargumenta que essa palavra, em seu emprego atual, é ao mesmo tempomembrodeuma famíliadesinônimos,eportanto redundante, eum títulocumulativo para uma família de homônimos, e, por conseguinte, geraldemaisparaespeci icaralgumcontextopreciso.Seuvisívelressentimentoem relação a essa palavra superexplorada, expresso em particular nadeclaração introdutória das intenções do autor, não impede que ele sereconcilie com o conceito e, na verdade, ofereça ao leitor uma revisãoexemplar, ordenada e sistemática de um conjunto selecionado deestruturas cienti icamente formuladas. Ainda é sua crença, e o princípiodeclarado de todo o livro, que a palavra, quando colocada nos doisambientescontextuaismencionados,significaduascoisasquenadatêmemcomumalémdonome.

Como sinônimo de muitas outras palavras mais bem-estabelecidas,“estrutura” signi ica apenas “ser sistêmico” (em oposição a “ser umagregado”),ou“serorganizado”(comoalgodistintode“serdesordenado”).Ela é usada “para sublinhar o caráter sistemático de um objeto”. Como

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nome de família para um conjunto de homônimos, “estrutura” como taldi icilmentetemumsigni icadoquesepossadescrever;apalavraéusadapor vários cientistas para denominar suas teorias sobre o objeto queinvestigam; modelos hipotético-dedutivos de determinada parte darealidade, consistindo, acima de tudo, em pressupostos axiomáticos eregras de transformação. Nesse caso, “estrutura” é uma noção quase tãoamplaquanto“teoria”.

O signi icado mais especí ico de uma estrutura particular, não aestrutura como tal (ou seja, estrutura de parentesco ou estruturagramatical),“somentedeformaindiretaresultadaanálisedeummaterialparticular”. Ora, Boudon escolheu discutir “estrutura” em seu primeirocontextoemtermosde“definiçãointencional”,e,nosegundo,emtermosde“definiçãoefetiva”.93Omotivopeloqualfezissonãoestámuitoclaro.Talveztenhadecidido,deinício,de inirestrutura,mas,pensandomelhor,realizouum esplêndido estudo do que as entidades estruturadas realmente são;permaneceu, contudo, o arcabouço conceitual original, ofuscando amensagemmaisimportantedolivro.

OqueBoudondistingue comodois tiposdede inições sãode fatodoisestágios sucessivos na formulação da estrutura; em geral descobrimosprimeiro o caráter sistêmico, ou seja, estruturado, do objeto de estudo, edepois tentamos formular as regularidades reais que justi icaram nossaimpressãooriginal.Nosdoisestágios,a “de inição”ou,maisprecisamente,nossacompreensãodascondiçõesemquetemospermissãoparaaplicarotermo “estrutura” permanece amplamente a mesma. Adiante tentaremosenumerar tais condições. Sem entrar em detalhes neste estágio,presumimos nomomento que todos concordamos sobre o que queremosdizeraousarmosapalavra“estrutura”,como(emsentidogeral)antônimode “desordem”. Nesse sentido amplo, podemos dizer que a cultura comoqualidade genérica, como atributo universal da espécie humana, nacondição que a distingue de todas as outras espécies animais, é acapacidadedeimporaomundonovasestruturas.

Não importa o que possamos dizer a respeito da diferença entre umestado estruturado e um estado desordenado, o conjunto de estadosordenados é sempre menos numeroso que o de todos os estadosdesordenados possíveis. A estrutura, portanto, é um estado menosprovável que a desordem. Outra maneira de dizer isso é a irmar queestruturasempresigni icalimitaçãodepossibilidades.Alimitaçãopodeseratingida dividindo-se uma ampla categoria de elementos indiferenciados

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numa série de subcategorias diferentes umas das outras em termos daprobabilidadedeocorrência.

Dopontodevistabiológico, todasasmulheresnumamploconjuntodefaixas etárias estão aptas a ser parceiras sexuais. Divididas em mães,irmãs, ilhas do tio materno etc., discriminadas em termos de suaaceitabilidadeparaarelaçãosexual,oconjuntodeacasalamentospossíveissofreumareduçãosensível.Fisicamente,atemperaturadomeioambientehumanooscilanointeriordeumaamplagamadevaloresprováveis.Aoseintroduzirem artefatos mediadores entre o corpo humano e o ambientenatural (paredes, roupas etc.), a variação concreta nas vizinhançasimediatasdocorpoémaisumavezreduzidadeformadrástica.Emtermosisiológicos, as probabilidades de possíveis resultados de um duelo entredoisanimais(umdosquaishomo)sãodeterminadasporfatoresqueestãoalém do controle dos combatentes (destreza muscular, presas, garras);quando um dos adversários altera a capacidade de seu equipamentonatural,oudoequipamentodeseuinimigo,inserindoartefatosmediadoresnoprocessoda luta,asprobabilidadesrelativasdosvários resultadossãoalteradas.

Esses três exemplos representam três formas alternativas de“estruturação”:a)diferenciandoos signi icadosatribuídosaváriaspartesdo ambiente; b) introduzindo regularidadenumambiente de outromodoerrático e menos previsível; c) manipulando a distribuição deprobabilidadesparafazercomqueasituação“tenda”emfavordeumdoslados envolvidos. Todos três constituem os processos principais euniversais,de fato,aessênciadaculturahumana.É fácilperceberqueostrês, embora em diferentes proporções, implicam a participação de doistipos de padrão (signi icando, neste contexto, apenas regularidades): a)padrões que relacionam estados especí icos do ambiente a “pós-estados”doorganismohumano(osestadosdoambientesendo insumos,eos“pós-estados”doorganismo,oprodutodoserhumanocomouma“caixa-preta”cibernética);b)padrõesquerelacionamestadosespecí icosdoorganismohumano a “pós-estados” especí icos do ambiente (insumos e produtostrocando de lugar, com os ambientes no papel de “caixa-preta”). Oprocesso cultural de estruturar o universo de possibilidades abstratas é,portanto, subdividido em duas estruturações interrelacionadas: a) a docomportamentohumanoeb)adoambientehumano.

Nessesentido,podemosconceberoprocessoculturalcomoextensãoousubcategoria de uma relação de adaptação muito mais geral, em que se

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inseremtodososorganismosvivose–naoutraextremidadedaevoluçãobiológico-cultural – mecanismos autorregulados feitos pelo homem; emsuma, todos os “sistemas abertos”, ou seja, incapazes de sobreviver semalgum insumo de energia e/ou informação proveniente da parte douniversoqueseencontraalémdeseuslimites.

SegundoPiaget,esseprocessodeadaptação,forçosamenteiniciadopelociclo de vida do sistema aberto, consistia numa relação bifacetada deassimilaçãoeacomodação.94Aprimeiraéoaspectoexternodaadaptação;vários elementos do ambiente são assimilados pelo sujeito, seja do pontode vista energético, seja informativo, ou ambos. O segundo é o aspectointernodamesmarelação:aestruturaintrínsecadoprópriosistemapassapor constantes modi icações necessárias para que se perpetue ointercâmbio. A adaptação é atingida se, e apenas se, a assimilação e aacomodaçãoforemreciprocamenteequilibradas;oumelhor,adaptaçãoéoequilíbriodeassimilaçãoeacomodação.

Ora, descrevemos adaptação em termos amplos o su iciente para darconta dos dois fatores, em geral muito diferenciados – corpo e mente. Aadaptação, assim como suas duas facetas – caso seja descrita nos termosacima, e enquanto suasde inições foremmantidasdentrodouniversodesigni icadosqueessestermossustentam–nãoé“corporal”nem“mental”.Oqueemoutroscontextossedescrevecomocorporaloumentalpodeserapresentado como duas formas ou aplicações correlatas da adaptação,mantendo,contudo,umaestruturaidêntica;dopontodevistadade inição,comodoisreflexosdeumasóestrutura,impressosemdoistiposdiferentesdeveículo.

Édi ícilconceberdequemaneiraprocessosmentaiscomopensamentoou inteligênciapoderiamserde inidossenãopela indicaçãodeestruturasesuastransformações.Usara“mente”comoexplicaçãodocomportamentodeumsistemaparececonstituirumerrológico,devezque,comoa irmouAnatol Rapoport, “mente” é apenas umnome inventado para distinguir aclasse das coisas que se “comportam” ou que “realizam ações” daquelasque somente “participam de eventos”. Rapoport indica a “plasticidade dareação, a capacidade demodi icar a resposta a um dado estímulo” comosintomas reconhecíveis da “inteligência”; 95 em outras palavras, a únicacoisa que podemos a irmar razoavelmente sobre o conceito de“inteligência” é que ele pode ser aplicado sempre que os sintomas acimaestejammesmopresentes.

Demodosimilar,segundooclássicoestudodeA.M.Turing,amenosque

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possamos de inir os processosmentais de uma forma que nos obrigue aconcordar com a a irmação de que a únicamaneira de se ter certeza dequeumamáquinapensaéseressamáquinaesentir-sepensando,aúnicaformaalternativaderesolveroproblemada“máquinapensante”é testarseu desempenho numa situação que se possa, em geral, descrever comoexigindoumcomportamentointeligente.96

A noção genérica de cultura, portanto, foi cunhada para superar apersistente oposição ilosó ica entre espiritual e real, pensamento ematéria,corpoemente.Oúnicocomponentenecessárioeinsubstituíveldoconceitoéoprocessodeestruturação,comseusresultadosobjeti icados–asestruturasproduzidaspelohomem.

A contínua e in indável atividade da estruturação constitui o cerne dapráxis humana, omodohumanode ser e estarnomundo. Para tocar emfrenteessaexistênciaativa,ohomemrecebedois instrumentosessenciais– manus et lingua, como disse são Tomás de Aquino; instrumentos elinguagem, segundo a tradiçãomarxiana. Com esses dois implementos, ohomemmaneja–pelaestruturação–asimesmoeaomundoemquevive.Esse“manuseio”consisteemextrairenergiaegerarinformação.

Os dois componentes do modo humano de existência tendem a serpercebidos de diferentes maneiras. A energia é aquilo de que o homemnecessita; ao satisfazeressanecessidade, eleédependentede forçasquenão estão inteiramente sob seu controle. Esse estado de dependência épercebido pelo homem como ser um objeto, ser exposto a umamanipulaçãoqueelenãopodeevitarpornãopodersobreviveranãosersesubmetendoàscondiçõesqueessadependêncialheimpõe.Elevivenciaa informação como algo que deseja; ao gerá-la, submete à sua vontadeforças até então elementares e descontroladas. Esse estado de criação éporelepercebido comoestarno sujeito, comoalgoqueexpõeomundoàsuamanipulação.Daía contínuapersistência,nopensamentohumano,domundo caracterizado pelamultidenominada dicotomia espírito ematéria,menteecorpo;eainvariáveltendênciaaassociaraquelecomliberdadeeestecomservidão.

A cultura é um esforço perpétuo para superar e remover essadicotomia.Criatividadeedependênciasãodoisaspectosindispensáveisdaexistência humana, não apenas condicionando-se, mas sustentando-semutuamente; não se pode transcendê-los de forma conclusiva – eles sósuperamsuaprópriaantinomiarecriando-aereconstruindooambientedoqualelafoigerada.Aagoniadacultura,portanto,estáfadadaaumaeterna

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continuidade;nomesmosentido,ohomem,umavezdotadodacapacidadedecultura,estáfadadoaexplorar,asentir-seinsatisfeitocomseumundo,adestruireacriar.

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•2•

Culturacomoestrutura

Asegunda leida termodinâmicaproclamaa tendênciauniversalde todosos sistemas isolados apassarde estadosmais amenosorganizados; essapassagem se chama “aumento da entropia”, e, dentro dos limites dedeterminado sistema isolado, é considerada um processo irreversível; osistemanãopode,“porcontaprópria”,voltaraumestadomaisorganizado.Háuma interpretaçãodaentropia 1 comoaenergiaquedeve seraplicadapara trazer o sistema de volta à condição inicial. Essa quantidade cresceinexoravelmente em função do luxo do tempo. Nenhum sistema isoladopode extrair a energia necessária de seus recursos internos; quandomuito,eladeveserbuscadanoambientequecircundaosistema.

O único remédio contra a maximização inescapável da entropia(descrita com propriedade pela termodinâmica como “morte térmica)pareceserabriras fronteirasdosistemaao intercâmbiocomoqueanteseraseuambienteexterno,agoradeladesconectado.Essatransformaçãodeumsistemaisoladoemabertoequivaleàinclusãodoambientenaórbitadosistema;oumelhor,ao ingressodosistemaedeseuambientenumaredede relaçõesmútuas, constantes e regulares, ou seja, num “metassistema”mais amplo e espaçoso. O sistema inicial, inferior, agora irá constituiraquelapartedometassistemaemqueoprocessodeaumentodaentropiafoiinterrompidoouatérevertido–àcustadaoutrapartedometassistema,a “ambiental” (tenhamos clareza em relação ao signi icado puramenterelativo do termo “ambiente”, nesse contexto, de inível apenas como a“outraparte”dometassistema).

Éissoquedefatoocorrenocasodetodososorganismosvivos.SegundoofamosoadágiodeSchrödinger,ascriaturasvivas“sugamanegentropia”(= entropia negativa) de seus ambientes. Elas são, como numa outraexpressãocélebre,deAnatolRapoport,pequeninas“ilhasdeordem”nummar de desordem crescente. Omesmo se pode dizer de “organismos” de

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umtipodiferente–ossistemassocioculturaishumanos.Essa digressão não parece descabida. A analogia entre um organismo

vivo e uma sociedade humana ainda émalvista a ponto de ser objeto deconstanteemaliciosasuspeita.Muitoscientistasnãoaconsideramdignadeser usada numa discussão acadêmica séria. Essa descon iança quaseuniversaltalvezsejahistoricamentejusti icadapeloscaprichosdealgumascabeçasdoséculoXIX,intoxicadaspelasíndromebiológicaentãoemmoda(em particular pelas ideias bizarras de Novikov na Rússia, Schäf le naAlemanha,WormsnaFrança;emcertamedida,tambémasdeSpencernaInglaterra). Di icilmente se justi icaria hoje; é improvável que alguém vátão longe quanto, digamos, P. Lilienfeld, 2 para dizer que as mesmas leisbiológicas explicam e desmentem os processos de uma só célula e ocomportamentodeumindivíduohumano.

Agora somos so isticados o bastante (ou talvez mais conscientes decomopodeserdolorosoferirosdedos)pararejeitarcomdesdémasiscasda analogia simplista. Ainda assim, amoderna equação, ciberneticamenteinspirada, entre sistemas biológicos e sociais guarda uma semelhançaapenassuper icialcomoexpansionismobiológicodoséculoXIX.Oqueestáem jogo hoje não é a transposição descuidada de conclusões de umaestrutura para outra, de tipo muito diferente, garantida por umasemelhança apenas fenomenal, mas o doloroso esforço de penetrar emhomo e isomor ismos essenciais já assentados em profundidade. ComodisseA.Rapoport:

Argumentos baseados em analogias comuns di icilmente são conclusivos. Por exemplo, por serverdadequeaseleçãonaturalbene iciaasobrevivênciadaespécienãosepodeconcluirqueacompetiçãoeconômicasejaindispensávelparaovigordeumanação.Tampoucoéconvincenteajusti icativadapenacapitalcombasenaanalogiaentreestaeumacirurgiaaplicadaaumapartedoentedo corpo.Umaanalogiamatemática, contudo, é coisabemdiferente. Ela é evidênciadeumaestrutura semelhante em duas ou mais classes de eventos, e dessa semelhança se podededuzirmuitacoisa.3

Se há, por exemplo, um componente universal em cada caso no qualexista uma luta contra o aumento da entropia, ele certamente se situaentreasqualidadesgeraisdaestruturaedeseuprocessodeformação.Demodo semelhante, se estamos interessados na cultura, em sua qualidadedeinstrumentoantientropia,temosdecomeçarinvestigandosuaestrutura.

Oconceitodeestrutura

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Como já foi indicado no Capítulo 1, estrutura, em primeiro lugar, é umantônimo de “estado de desordem”. As duas noções estão intimamenterelacionadasaoconceitodeprobabilidade.Umestadodedesordem,a inal,é um conjunto de eventos em que as probabilidades de ocorrênciasconcretas são distribuídas de forma totalmente aleatória; tudo é possível,tudo pode acontecer com o mesmo grau de probabilidade; em outraspalavras,nadaéprevisível.

Numestadocompletamentedesprovidodeordem(estrutura),nenhumaquantidade de dados será su iciente para que se preveja uma novasequência de eventos (futuros estados do campo em questão). Estrutura,aocontrário,implicaalgumadiferenciaçãodeprobabilidadesreaisentreosestados teoricamente concebíveis. Alguns estados futuros do campo sãomais prováveis que outros. Os estados futuros de uma totalidadeestruturadasão previsíveis; quantomais estruturado (ordenado) for umcampo, menos informação será exigida para que se produza umprognósticorazoavelmenteconfiável.

A qualidade singular (na verdade rara) das totalidades estruturadas(sistemas) pode ser atribuída à presença de padrões passíveis derepetição. A natureza exata desses padrões muitas vezes é mal-compreendida. Há uma tendência nas ciências sociais a generalizar osatributos universais dos sistemas a partir de uma classe muito menosuniversal de atributos de um subconjunto de totalidades estruturadas,representadas sobretudo por organismos vivos (no sentido biológico)individuais. A característica peculiar desses sistemas consiste em seucaráter “defensivo”; em geral possuem limites estritos de tolerância àlexibilidadedesuasprópriasvariáveis,esua“sistemicidade”manifesta-semáxime na ação de unidades “equilibradoras” especializadas que (a)evitam oscilações excessivas de variáveis passíveis de prejudicar asobrevivênciado todoe (b)e trazema totalidadedosistemadevoltaaoslimites estabelecidos por parâmetros de fronteira rígidos e irmes. Essaqualidadedossistemasemquestãoindicasuafragilidade,aslimitaçõesdesua natureza sistêmica, sua vulnerabilidade às condições adversas quetendem a reduzir sua resistência antientropia; tudo se reduz, em últimaanálise, à circunstância de que, quaisquer que sejam as relaçõesconstantes entre as subunidades do sistema (que estão na base de seudesa io à lei da entropia), elas só se sustentam nos limites de inidos etraçadospelosparâmetrosdefronteira.

Essa“analogiaorgânica”injusti icadaépersistenteapontodequasese

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tornarendêmicanosconceitossociológicosdosistemasocial.Originadanostempos modernos, por obra de Durkheim e Pareto, há na teoria dossistemas sociais uma tendência estável a identi icar a questão dasobrevivência do sistema com a defesa de uma rede de relacionamentosrígidae in lexível.Essa tendênciaencontrousuaelaboraçãomaisamplaeso isticadanavisãodeParsonsarespeitodosistemasocial.SuafragilidadeintrínsecafoiapontadaporWalterBuckleynaseguinteobservação:

Enquanto organismosmaduros, pela própria natureza de sua organização, não podemmudarsuaestruturadadaalémdelimitesmuitoestreitoseaindapermanecerviáveis,essacapacidadeé o que distingue os sistemas socioculturais. No esquema evolutivo é uma grande vantagemadaptativadesseníveldeorganização.4

Ora, o problema da abordagem que estamos aqui debatendo não é opressuposto de que existem limites à viabilidade do sistema – fronteirasdentro das quais as subunidades sistêmicas permanecem relacionadasumas às outras demaneira de inível; na verdade, nesse sentido, existemlimitesaqualquersistemaeatodaestruturaimaginável.Tampoucopodeoconceito intuitivode “estreiteza”dos limites,queprovavelmentedesa iaráqualquer tentativa de especi icação empírica, servir como guia con iávelemnossoesforçodedesenredarasqualidadesuniversaisdaestruturadesuasmanifestaçõesorgânicasespecíficas.

Não parece que a intuição que nos impede de extrapolar o modelobiológico para o campo dos sistemas socioculturais seja signi icativa eproveitosamente articulada em termos de discrepâncias qualitativas e“substantivas”. No cerne da questão está, em vez disso, uma diferençaquantitativa,emboraevidenteobastanteparainspirar–e,defato,exigir–uma diferenciação das perguntas feitas sobre organismos biológicos, deumlado,esistemassocioculturais,deoutro.

Ao produzir imagens estruturadas de organismos biológicos, nossaatenção,emgeraldeformadeliberada,seconcentranamaneirapelaqualossistemastentamsemanter,comsucesso,dentrodoslimites.Nadahádeilegítimo nesse processo. Temos todo o direito possível de selecionar omesmo foco cognitivo ao lidar com sistemas socioculturais, como narealidade faz a maioria dos sociólogos quando procura equacionar afamosadúvidahobbesiana.Masesseéumpontodevistaqueabreànossaobservaçãoas fronteirasda “sistematicidade”,maisdoqueanaturezadoprópriofenômeno“sistêmico”.

Se“serestruturado”relaciona-seacimadetudoaresistiràstendências

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entrópicas que levam a um estado de desordem crescente, a questãocrucial é a capacidade de alguns setores escolhidos do mundo seestruturar, se “negentropizar”, em vez de apenas manter intacta econgeladaumaestrutura já“estruturada”.Daínossasobjeçõesànaturezaparcial da acusaçãodeBuckley.Quando elemenciona a “estrutura dada”dos organismos maduros, está falando de uma rede estabelecida derelações entre as partes. Mas a inaplicabilidade da abordagem biológicaaos sistemas socioculturais, que Buckley prega (de forma acertada) nãoresulta da concentração das atenções dos biólogos sobre uma “estruturadada”apenasnosentidoacimaexposto;ahipótesesubjacenteàcríticadeBuckleyéanaturezaestáticaeimóveldaestruturacomotal.Logicamente,ele cunha um termo distinto, “morfogênese”, para denotar um sistemaconstruído de tal forma que não dá preferência a qualquer “estruturadada”emparticular.Masquehaveriade“sistêmico”nessetipodesistema?

O atributo de possuir uma “estrutura dada” é a única qualidade quedistingue uma parte ordenada, de tipo sistêmico, da realidade de seuexterior caótico edesorganizado. Portanto, a estrutura é, por suaprópriade inição, algo relativamente estável e constante, resistente à erosãoentrópica.Ocernedoproblema,contudo,équeessaconstânciaendêmicanão se manifesta de maneira necessária no nível empírico, narepetitividade monótona de seus resultados fenomenais. Pelo contrário,umavariedadeempíricaamplaequaseilimitadaaindapodecorrespondera uma estrutura subjacente constante e até in lexível. Permitam-merepetir,nadaexistedeerrado,emtermos intrínsecos,emseconcentraraatenção, seja a de um biólogo, seja a de um sociólogo, na descoberta deuma “estrutura dada” (pressupor a existência de muitas – quantas? –estruturasnumsistema,emvezdeapenasuma,signi icarianaverdadeanegação da sistematicidade). O que de fato está errado é confundir osplanosempíricoeestrutural.

Se situamos a estrutura no plano empírico, e admitimos para ela aconstância de correlações estatísticas entre fenômenos, então, e apenasentão,torna-seenganosoextrapolarapartirdeorganismosbiológicosparasistemassocioculturais.Oqueparece consistirnafalhaseminaldaimagemde sistema social de Parsons não é o pressuposto da constância daestrutura,masa localizaçãodessaestruturanoplanodasrelaçõessociaisconcretas;e,porconseguinte,asuposiçãodequeadefesadaestruturadosistemaéequivalenteàdefesadaredeatualdesuasrealizaçõesempíricas.

Podemos voltar agora à discussão sobre a natureza dos padrões que

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constituem a característica distintiva das totalidades estruturadas.Sabemos que elas são aquelas em que “nem tudo pode acontecer”; oumelhor, em que a probabilidade de alguns estados, que a lógica daestrutura dada de ine como incoerentes, é minimizada. Portanto, asunidades do todo devem se interrelacionar. Em outras palavras, pode-sedizerqueexistecomunicaçãoentreasunidades.Naverdade,comunicaçãoé o traço de inidor da condição de “ser membro do sistema”. SegundoOscar Lange, um sistema deve ser de inido como um agregado de“elementoscomunicantes”:

Cada unidade do sistema comunica-se pelomenos com outra ou recebe comunicação de pelomenos outra unidade do sistema. Assim, não há no sistema unidades isoladas, que não secomunicamnemrecebemcomunicaçãodequalqueroutra.

Uma unidadex comunica-se com uma unidadey (mais uma vez,segundo Lange) se alguns componentes do produto dex se tornamcomponentes do insumo dey (estamos presumindo que o produto dequalquer unidade, tomado isoladamente, se relaciona de alguma formaconstanteaoseuinsumo).5

Essa associação íntima entre sistematicidade e comunicação (em seusentidomoderno, ampliado e generalizado) é a ideia guia da cibernética.Foi elaborada, em particular, porW. Ross Ashby, 6 que enfatiza de modoinsistentealimitaçãocomoprincipalcomponente–oconteúdo,naverdade– de qualquer ato de comunicação. Se, dado um estadoSx1 da unidadex,outraunidadeypodeassumirtodososestadosimagináveisS¹ncontidosnoespaçodepossibilidades,então,dizAshby,nãohácomunicaçãodeespéciealgumaentrexey.

O signi icado da comunicação é, em suma, coextensivo ao conceito delimitação. A generalidade radical do conceito moderno de comunicação,assimcomoseupapel fundamentalnacaracterizaçãodequalquer tipodeestrutura, foi a irmada de maneira explícita por Abraham Moles, quede ine comunicação como o “estabelecimento de uma correspondênciainequívocaentreumuniversoespaçotemporalA(x,y,z,t),oemissor,eumuniverso espaçotemporalB (x¹, y¹, z¹, t +t’ ), o receptor”. A de inição éampla o su iciente para acomodar grande número de noções em geralintroduzidasdeformaindependente.

Aquilo a que o termo “comunicação” se reporta não é apenas seureferente de senso comum – a troca de mensagens entre dois agentesdistintos–,mastambém:aanamorfose(transformação)deumedomesmo

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meio, quando ocorre entre o momento t et +t’ e permanece em“correspondência unívoca” com o estado domeio nomomento inicial t; atradução – ou “transferência de um espaço simbólico para outro”; aexplicação–ou “transferênciadeumespaçodeatributossimbólicosparaoutro”; e a compreensão – ou “transferência do campo fenomenal para ocampo dos símbolos combinados (reliés) numa estrutura”. 7 Todos essestiposderelaçãodecomunicação,assimcomooutros,semnome(aindaqueapenasisomórficos),podemconstituirumaestrutura.

Uma forma alternativa, portanto, de dizer que a estrutura é umalimitação impostaaumuniversodeeventospossíveiséa irmarqueelaéuma rede de comunicação no interior de um conjunto de elementos. Aforma alternativa de dizer que a comunicação consiste numacorrespondência inequívoca entre dois conjuntos de componentes éa irmar que o conjunto, o segundo na sequência (não necessariamentetemporal), pode ser descrito, em termos teóricos, como uma função doprimeiro –B =F(A). A estrutura, portanto, pode ser de inida como umconjuntoderegrasdetransformaçãode(eentre)umgrupodeelementosinter-relacionados.Umavezque as transformações geradorasde eventosde inidasnumespaçodadodeeventospossíveis sãosubmetidasa regras(padrões), o pool de ocorrências concretas é um subconjunto limitado douniversodepossibilidadestotal.

As ocorrências concretas estão situadas no plano da percepção (nívelfenomenal ou empírico). Omesmo não se dá com a estrutura, que não édiretamenteacessívelàexperiênciasensorial.Tampoucoelaéderiváveldoprocessamento dos dados experienciais, ou seja, pela computação dadistribuiçãoestatísticadecertasvariáveisnopooldeeventos registrados.A relação da estrutura com os fenômenos empíricos é re lexo da relaçãodos modelos abstratos com as impressões sensoriais (e vice-versa; seriainútil jogarnolixo,nestemomento,aantigadiscussãosobreprioridade, jáqueosdoisre lexossópodemseralcançadospornossoconhecimento–sóexistem para nós – em conjunto, ou não existem de modo algum). Oimportanteaquiéquenãohárelaçãoumaumentreumaestruturadadaeumconjuntocorrespondentedeeventosempíricos.

Umaestruturapodegerar conjuntosdeocorrênciasbastantediversos;e vice-versa, qualquer conjunto de eventos empíricos pode ser geradocomo produto de várias estruturas subjacentes, o que, claro, tornaimportante, em particular, a exigência de se evitar a confusão entre osníveis.

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Observemos também a conexão íntima entre a noção de estrutura, talcomo aqui a de inimos, e o conceito moderno de informação, como foielaborado, acima de tudo, por C.E.S. Shannon e W. Weaver. 8 Tanto aestruturaquantoa informaçãorelacionam-sediretamentecoma limitaçãoimposta ao universo de possibilidades. A mensuração da informaçãopropostaporShannoneWeaver,comosabemos,éhomólogaàmediçãodaentropia; quantomaior o grau de entropia em determinado agregado deelementos, mais informação é transmitida quando se atinge a descriçãoexatadoestadodoagregado.Emoutraspalavras,quantomaisestruturadoforumdeterminadoagregado(quantomaislimitadoforopooldeestadospossíveis), menos informação será necessária para eliminar de todo aincertezacomrespeitoaseuverdadeiroestado.

Se quisermos computar a quantidade de informação contida numamensagem especí ica, devemos subtrair o resíduo de incerteza quepermanecedepoisdamensagemdograudeincertezaqueexistiaantesdeela ser enviada. Uma vez mais, se desejarmos expressar quão“estruturado” certo agregado é, devemos deduzir a quantidade deinformação necessária para descrever plenamente seu estado daquantidade que teria sido necessária caso o agregado fosse de todoaleatório.

Uma conclusão possível merece nossa particular atenção por seucaráter seminal para o conceito genérico de cultura. Já vimos que, com ocrescimentodaentropianumagregado,oescopodainformaçãodisponível(ouseja, apossibilidadedeeliminara incertezaquantoao seuestado) sereduz.Poroutrolado,quantomaissucessotivermosemreduziraentropiado agregado, mais informação se tornará disponível de imediato. Ora, areduçãodaentropiasópodeseratingida,comonoslembramos,àcustadeum insumo de energia proveniente da área externa ao agregado(lembremo-nos da “sucção de negentropia”). O que se segue é aintercambialidade de energia e informação, a possibilidade de ampliar oescopodainformaçãoatingívelmedianteaplicaçãodeenergia.

Diversos estudiosos mostraram uma notável homologia entre asequaçõesqueexpressamatransformaçãodeenergiaeasquedescrevemo processamento da informação (princípio da dualidade energia-informação).9 Tenhamos em conta esse fenômeno, que parece defundamental importância para a compreensão adequada da cultura emsuafunçãoestruturante.

Outro comentário torna-se oportuno.Os teoremasbásicos da teoria da

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informação,quandonãoregistradosemtermosmatemáticos,estãomuitasvezes envoltos numa linguagem que sugere os fenômenos psicológicos(cognição, conhecimento), ou, na verdade, um pensamento consciente,como fatores constitutivos do próprio ato de originar a informação. Emsintonia com os referentes semânticos da palavra no senso comum –supér luosdopontodevistadateoriadeShannonedescartadosporestateoria–,otermo“informação”évezporoutrautilizadoemconjunçãocomum “observador” que é (ou era) incerto, para o qual a informação foipassada e que empregou a informação recebida para dispersar suaincerteza(subjetiva)etc.

Graças à origem vernacular do termo, é di ícil descartar de todo esse“observador” sem correr o risco de ser desastrado e arti icial nasdescrições não matemáticas dos fenômenos relacionados à informação.Inevitável como provavelmente ele é, aquele uso desafortunado podecontribuir para a tendência já difundida de interpretar a informação emtermos subjetivos e colocá-la a serviço do reforço e do apoio à teoriamentalisticamente centrada da cultura. Ainda assim, a presença de um“observador” ubíquo nas versões verbais da teoria da informação éredundantedopontodevista teórico,motivadaapenaspela conveniênciadaexpressão(outalvezpelodesejodeaproximarumanoçãoincomumdaexperiência do leitor). A noção de informação não exige, mais que a deentropia, o conceito da mente do observador como componenteconstitutivo. A “incerteza”, fundamento da teoria da informação, não é demodo algum um fenômeno subjetivo; ela signi ica a distribuição aleatóriaobjetivamente real das probabilidades de que certos membros de umconjuntodeeventosvenhamaocorrer.

Nem a “transmissão” de informação se refere a um verdadeirointercâmbio de conhecimento entre duas mentes conscientes; essaexpressão signi ica uma mudança ocorrida, mais uma vez, num sentidoobjetivamente real, na distribuição das probabilidades. A transmissão deinformação é acima de tudo uma transformação do meio descrito emtermos informacionais; é uma operação real, objetivamente tangível,realizada num setor da realidade objetiva. O aumento e o decréscimo novolume de informação disponível constituem um processo objetivo queprossegue e alcança sua forma completa, quer haja ou não a “mente doobservador”àsuavoltaparavigiá-loeapropriar-sedeseusbenefícios.

A relevância humana verdadeira, prática, das oscilações do volumedeinformação consiste, em última análise, na oportunidade – oferecida a

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qualquermentequeestejacolocadanaposiçãodeobservador–deavaliara situação, fazer a previsão certa e escolher o comportamento adequado.No arcabouço desse desenvolvimento auto-orientado, contudo, os sereshumanosnãoentramnoprocessoinformativocomofatoresoperativosquecodeterminamo volume real de informaçãodisponível. Eles entram (se éque o fazem) com outro papel, o de detentores da prática, produtores emanipuladores do ambiente. As pessoas que assumem o primeiro e osegundopapéisnãosãonecessariamenteasmesmas.

Condiçãoontológicaeepistemológicadaestrutura

O papel ascendente desempenhado pela noção de estrutura na lógica daciência moderna revive uma série de debates essenciais relacionados ànaturezada cognição edo conhecimento.Todos têmuma longahistória eocupamlugardedestaquena tradição intelectualdoOcidente,nascidadochoque seminal entre as duas principais correntes da antiga iloso iagrega. Duas delas, porém, merecem menção particular no presentecontexto, já que estão, de modo manifesto ou latente, na base da atualdiscordância inspirada pelo advento do estruturalismo como principaladversáriodoestablishmentpositivistanasciênciassociais.Aprimeiraéacontrovérsia entre o conhecimento do “certo” e do “contingente”; asegunda,entreaontologiado“transcendental”eadoobjeto“imanente”dacognição.

Platão foi o primeiro a articular esse paradigma, embora, como eracostume naquele estágio, em termos ontológicos. Em paralelo à distinçãoentre alma e corpo, “pensado” e “sentido”, havia duas camadas douniverso, com certeza intimamente entrelaçadas, mas ainda assimautônomas,cadaqualcomummododevidapróprio,distintoesingular.Aintercambiabilidade e a imutabilidade estavam, respectivamente, entresuascaracterísticasdistintivasmaisimportantes.

Platão resumiu a história pré-socrática da iloso ia grega como umprocesso dominado pelo choque entre duas grandes tendênciasrepresentadaspelos“ionianos”(Taleseseusdiscípulos)epelos“italianos”(Parmênides e sua escola); o tema principal da iloso ia se haviasedimentado,emsuavisão,apartirdessadisputacontínua,comoabatalhaentre “gigantes”e “deuses”: “Do ladodosdeusesestão todosaquelesquesempre acreditam que coisas não vistas constituem a realidadeverdadeira; do lado dos gigantes, todos os que sempre acreditam que o

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real nada mais é do que o corpo que eles tocam e manipulam.” 10 NaspalavrasdeumdospersonagensdoSofista,

Um lado tenta puxar para a terra tudo que está no céu e no desconhecido, literalmenteagarrando rochas e árvores com as mãos; pois eles se sustentam em cada tronco e em cadapedra,ea irmamcomenergiaqueaverdadeiraexistênciapertenceapenasàquiloquepodesermanuseadoeoferece resistênciaao toque.…E,demodocorrespondente, seusadversários sãomuitocuidadososemdefendersuaposiçãoemalgumlugarnasalturasdonãovisto,sustentandocom todo o vigor que a verdadeira realidade consiste em certas formas inteligíveis eincorpóreas.11

Por trásdessadiferençadeopiniãoestá, claro, adisputaa respeitodanatureza da realidade, surgida, em última análise, de uma arraigadadescon iança em relação à realidade do movimento e da mudança. “Asmuitas coisas que trazem os mesmos nomes das formas estão sempremudandoemtodososaspectos;eessassãoascoisasquevemosetocamos,enquanto as formas não são vistas.” Fica então estabelecido que há duasordensdecoisas:asnãovistas, isentasdequalquermudança,easvistas,quesempremudam.Por im,a irma-seserprovávelqueaalma,nãovista,se pareçamais com o divino, o imortal, inteligível, simples e indissolúvel,enquanto o corpo se parece mais com o humano, mortal, ininteligível,complexoedissolúvel.

“Osamigosdas formasassumema imutabilidadecomoamarcadoserreal;avariabilidade,comoamarcadovir-a-ser.…Asformasnãoadmitemqualquer espécie de mudança, enquanto as tantas coisas perceptíveisjamaispermanecemasmesmas.”EmFédonenaRepública,omundoidealémuitasvezesdescritocomoseexcluíssequalquermudança,eissosemprefoi tratado como condição necessária à existência do conhecimento.12 Aidentidade absoluta do “real”, do “verdadeiro” e do “imutável” era ofundamento da tradição platônica da teoria do conhecimento. O quedemonstra sua existência apenas pelo fato de ser acessível aos sentidosnão pode proclamar a verdadeira realidade: não tem bases sólidas parasustentar essa reivindicação, já que ela é acidental, casual,transitoriamente ilusória.Oqueérealdevesê-loparasempre,emvezdesubmetersuarealidadeaoperigosotestedacontínuapresençasensória.

Nesseponto,aprimeiraquestãofunde-secomasegunda.Platãoresolveointricadoproblemadamaneiracomoo“real”,vistoqueindependentedaautoridadeda evidência sensorial, podede alguma forma ser apreendidoassumindo a imortalidade da alma. A alma imortal é introduzida comoconclusãológicadofatodequeorealnoséacessível“apartirdedentro”:

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“Se a verdade das coisas está sempre em nossa alma, a alma deve serimortal;portanto,vocêcomeçaasercon iantenaprocuraearecuperaramemóriadaquiloquenãosabe,ouseja,dequenãoselembra”;“procuraeaprendizado nada mais são que reminiscências”; uma vez que a almaimortal“jáviutodasascoisas,tantonestequantonooutromundo,nadaháqueelanão tenhaaprendido”. 13 A forma é dadade uma vez por todas; acondição do imutável εἲδη deve ser superior à da modalidade de coisasque “mudam de forma”, deve desa iar as fronteiras das entidadesessenciais–quesópodemserreaisenquantopermaneceremidênticasasimesmas.

Essa linhadepensamentodeuorigemà ciência da lógica, tal como elasurgiu nos ensinamentos de Aristóteles e loresceu com a escolásticamedieval,sobaformadaciênciadasrelações“necessárias”,imutáveis,semas restrições da evidência sensorial. Atingiu novos patamares nosensinamentos de Descartes. Naquela época, a separação conceitual entre“certeza” e prova existencial estava concluída. A nova lógica, a dainvestigação empírica, encontrava-se emplena vigência,mas prevalecia aopinião,naverdadecodi icadaporDescartes,dequenenhumaquantidadede evidências empíricas da “existência” real de eventos pode acabarlevando a um conhecimento genuinamente “correto”. E vice-versa: sem oapoio do pressuposto platônico da imortalidade daalma reunindo overdadeiro conhecimentodas formas, a certezadeixoude serumaprovadaexistênciareal.

Descartesdistingue“aquelafaculdadedanossacompreensãopelaqualelatemaconsciênciaintuitivadascoisaseasconheceapartirdaquilopeloqualelaavalia, fazendousodaa irmaçãoedanegação”.Avaliaçõesdesseúltimo tipo devem ser inconclusas, já que dão conta de “naturezascomplexas”, contingentes, que podem aparecer mas também não, eportanto não podem ser consideradas certas. “A dedução nos é assimdeixadacomooúnicomeiodeagregarascoisasdemaneiraa tercertezadesuaverdade.…Aespéciehumananãotemdiantedesiumcaminhoqueleve ao conhecimento seguro, salvo os da intuição evidente e da deduçãonecessária”;sópodemoschegaràcertezanoscasosemquenãotenhamos“muito trabalho para determinar se elas [as naturezas que analisamos]realmenteexistemounão”.14

Toda a questão foi assimdespidade seu verniz ontológico e traduzidanuma linguagem epistemológica. Deixou de ser um problema de formasimutáveis;emvezdisso,tornou-seaquestãodacerteza,quesebaseia,em

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última instância, na evidência intuitiva, e que pode ser estendida, com aajudadalógica,aavaliaçõesobtidaspeladedução.

Os dois principais pilares do conceito platônico de conhecimento,contudo, continuaram intactos: a distinção entre “necessário” e“contingente”, e a identi icação do conhecimento verdadeiro, melhor,superior, absolutamente con iável, com a primeira categoria. Restou aoempirismomoderno,proclamandoquenihilestinintellectu,quodnonpriusfuerit in sensu (“nada está no pensamento que antes não estivesse nossentidos”), desa iar esses dois princípios essenciais da teoria racionalistadoconhecimento.

Oataqueatingiuamáximaintensidadequandoaspremissasempíricasreceberamtratamentopositivista.Aintuiçãofoiridicularizada,aevidência,descartada como um resíduo da meta ísica e o conhecimento humano,reduzido ao quepode ser derivado, pormanuseio apropriado, dos dadosprimários da experiência sensorial imediata. A regra que sustenta onominalismoatribui a conceitos e declarações gerais o papel auxiliar deregistros taquigrá icos, convenientes, de fatos-eventos essencialmenteindividuais. Não há espaço para verdades “autoimpositivas”, evidentes,muitomenos para “essências” perenes e imutáveis enraizadas em algumlugar da infraestrutura da cadeia de ocorrências contingente eempiricamenteacessível.

Asduasregrasmencionadasnãoimpedemqueseacomodeanoçãodeestruturano corpode conhecimentode inidopelaperspectivapositivista.Contudo, a noção deve passar por uma mudança bastante substancial;grandeparceladosatributosqueimputamosaoconceitodeestruturanãoé admissível segundo as regras da austeridade experiencial. Acima detudo, à estrutura se nega qualquer espécie de condição soberana, oumesmo superior, com respeito aos dados da experiência. A própriacontrovérsia sobreo statusda estrutura comoalgodistintodo statusdosregistros factuais trazuma lembrançasombriadameta ísica.Àestrutura,noarcabouçodoconhecimentopositivista,sedeveriaatribuirosigni icadodesimplesorganizaçãodedadosprimários;otipobemconhecidoapartirdos quadros estatísticos quemostram a distribuição de fatos observadossegundo um aspecto escolhido, ou melhor, que nos informam como oseventos observados são divididos pelo observador em classes de inidas,pormotivosdeparcimôniaeconveniência.Aestruturaéumresultadodamedição e uma forma de registrar as descobertas quanti icadas, o que éummododede inirdiferentedaquele,digamos,deLévi-Strauss, oqual é

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enfáticosobreafaltadeconexãonecessáriaentremedidaeestrutura.15O tolo desdém com que o positivismo tratou todos os dados que não

fossem observáveis inspirou ressentimento nos cientistas preocupadoscom a fragilidade e a precariedade manifestas do solo em que a fé navalidade do conhecimento humano deveria assentar, caso as premissaspositivistas fossem aceitas sem reservas. As conhecidas lacunas einconsequênciasdoraciocínioindutivo,alémdaóbviacontingênciadaquiloque,daperspectivapositivista,eraapresentadocomo“fatos”,empurrouaatividade acadêmica para muito longe do persistente ideal cientí ico de“certeza”.Omaiscelebrado,nesteséculoXX,foioataquefenomenológicoàfortaleza do positivismo. O objeto do verdadeiro conhecimento uma vezmais transferiu-sedo reinodo “transcendental”paraodo “imanente”.Nofamoso lema deHusserl,ZudenSachen selbst! (“ir às coisasmesmas”), as“coisas” foramrede inidas comoaessênciapuri icadadoobjetodiretodaBewusstsein(consciência);esta,porsuavez,comootipodeexistênciaqueumobjeto de conhecimento assume quando é conhecido, isto é, trazido àconsciência.Assim,atradicionaldicotomiaentre cogitoecogitatumpareceter sidoa inal transcendida;osdoisparceirosnoato cognitivo se fundememumsó,diretamenteacessívelaoexameacadêmico.

ComesseexpedienteHusserlesperadotaroconhecimentohumanodealicerces vigorosos; mais uma vez, alcançar o conhecimento necessário,essencial – “a existência contingente não pode mudar o que a razãoreconheceucomoaprópriaessênciadeseuobjeto”;conhecimentoquevaienglobar as essências objetivas das coisas, “independentemente dequalquer signi icado arbitrário que um sujeito lhesdeseje atribuir”. 16 Aofato da “existência” atribui-se mais uma vez o papel de hipótese a sercon irmada;maséirrelevanteabuscadeessências–aexistêncianãotemlugar entre seus atributos necessários. “Para mim, o mundo não passadaquilo de que tenho consciência e do que parece válido em taiscogitationes.”17Essepressupostotornapossíveladeclaraçãocategóricadeque “a análise da essência éeo ipso uma análise geral; a cognição daessência em termos de essência, em termos de natureza essencial, emtermosdecogniçãodirigidaaobjetosuniversais”.18

Nãoapenas as ideiasbásicasdeDescartes foram justi icadas,mas, emseus ataques virulentos à dissipaçãopositivistado conhecimento,Husserlaventurou-se num terreno pantanoso em que o próprio Descartes nãoteriasearriscado.Pode-sedizerqueHusserlaplicouaDescartesomesmotipo de tratamento radical que Fichte dedicou ao legado de Kant. A

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assustadora dicotomia entre o necessário e o existente foi posta de lado,em vez de ser resolvida. A έποχή (epokhé), a suspensão do problemaexistencialatingidadesdeo iníciodascogitationes fenomenológicas,nuncafoi na verdade revogada. A validade do conhecimento humano foiresgatada à custa da informação empiricamente acessível, sem utilidadeparaafenomenologia,damesmaformaqueasverdadesessenciaisparaopositivismo.

Não admira que o projeto hercúleo do mestre tenha se reduzido, naprática de seus discípulos heréticos, a uma regra metodológica que comdi iculdade se poderia declarar husserliana, mas era obviamenteespiritualista (manifesta,por exemplo,nade iniçãodeMauriceNatanson:fenomenologia é um termo genérico “para incluir todas as posições queenfatizam o primado da consciência e o signi icado subjetivo nainterpretaçãoda ação social”;19 nessa caricatura da posição deHusserl, omundo “lá fora”, sub-repticiamente readmitido ao domínio das avaliaçõesde initivas, é de novo categorizado nos velhos termos do “primado”subjetivoqueHusserlafirmava,semsucesso,terdescartado).

Abuscadacertezaeodesejodeconhecimentodonecessárioestavam,contudo,naprópria fontedo ramohusserlianode rebeliãoantipositivista.Pareceque,noarcabouçodesua irresistível intenção,aúnicamodalidadedisponívelpara“estrutura”eraada Sache,nosentidohusserliano,ouseja,uma das essências totalmente de iníveis e descritíveis em termos deintenções; esse era um método semelhante àdé inition intentionelle deBoudon.As intençõesparticularesconstitutivasdaestruturaseriamasdaordem, coerência e coesão lógica. A questão da existência, como no casodasoutrasSachen,seanulariapeloprincípiodaepokhé.Aúnicadisciplinaaquea estrutura, como “Sache”, se submeteé ado signi icado impostoporsuas intenções constitutivas. Como o pré-requisito da necessidade é aprincipal intenção, a estrutura só não pode ser o próprio epítome da“certeza”eda“necessidade”dascoisas.

Masasuspensãodomundofenomenaldi icilmenteseriaassimilávelnouniverso gerado pelos pressupostos da ciência. Como foi demonstradopelos ramos da fenomenologia destinados a produzir uma metodologiaprática das ciências sociais (Merleau-Ponty, Schutz, Natanson), anecessidade e a certeza, nosentido husserliano, são as primeiras vítimasde qualquer esforço de ampliar de modo su iciente os princípiosfenomenológicosparacobrirocampoconstitutivodasociologia.Poisessesdois ideais parecem estar deslocados, resistindo a qualquer tentativa de

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enquadrá-losnatarefadelidarcomarealidadefenomenalmenteacessíveldohomem.

Qualquer noção de estrutura destinada a ter uma chance de serassumida e utilizada na prática da ciência deve ser de inida de tal formaque garanta papel de destaque ao conjunto total das questões surgidascomaadmissãodaautoridadedaevidênciafenomenal.Mas,então,talvezanoção pura (cartesiana-husserliana) de certeza, oferecida peloconhecimentoapenasdonecessário,setorneinsustentável.Oquerestaàsantigas εἲδη platônicas é a ideia de constância, invariância, estabilidadeoculta por trás da corrente de fenômenos variáveis, diversi icados eaparentemente caóticos. A “essência” ainda é o objetivo supremo daciência, em desa io àsophrosyne positivista, mas agora macula-se pelaimpura relação de sangue com o plano fenomenal, irremediavelmenteinvestido da suprema autoridade legitimizante sob a regra positivistaampliada.

A posição atual, de certa forma montada na barricada que separaadversáriospordemaisradicais,foiexpressademodosucintoporJacquesMonod:

A estratégia fundamental da ciência na análise dos fenômenos é a descoberta de invariantes.Toda a ísica, aliás, como todo desenvolvimento matemático, especi ica uma relação deinvariância. … Seja o que ela for, há e haverá na ciência um elemento platônico que nãopoderíamosafastar semarruiná-la.Nadiversidade in initados fenômenos singulares, a ciênciasópodebuscarinvariantes.20

OqueMonoddeixoude lado foi a formaprofundamentenãoplatônicapelaqualoantigoobjetivoplatônicoagoraéperseguidoporcientistas:pormeiodarazãovoltadaparaouniversofenomenalenãoparasimesma.Naverdade,nadasobroudeesotériconanoçãode“constante”e“invariante”,a que Platão atribuíaa qualidade de um absoluto, acessível apenas pelamemóriadeumaalmaimortal;ou–mesmoquetiremos,generosamente,acapameta ísicadaterminologia idiossincrática–,ainda,acessívelporumarotaalternativa,emessênciadistintadaquelevaàdeterminaçãodedadosempíricos.

Para Monod, “os invariantes” que sua ciência, a biologia, procuravapodem ser descobertos na análise da substância viva em laboratório, esomente lá. São estruturas e funções dos organismos vivos, ixados “ali”,“transcendentais”,comoHusserlansiosamenteobservaria,eacessíveispormeiodaúnicarealidadequeaumsótempoosabreàmente inquisitivaedelaosesconde:mediantefenômenosquepodemserabordadosdoponto

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devista empírico. “É a reprodução,nevarietur, a cada geração celulardotexto escrito, sob a forma de uma sequência de nucleótidos noDNA, queasseguraainvariânciadaespécie.”21

A estrutura, de inida acima de tudo por sua invariância, masdi icilmente “necessária” no sentido de ser a única imaginável, a únicalogicamente possível, parece realizar também a tarefa cognitiva buscadaporLévi-Strauss.Suafamosafórmula,cunhadaemAestruturadosmitos,

Fx(a):Fy(b)≡Fx(b):Fa−1(y),

éprecisamentedessetipo.

Aqui, comdois termos,a eb, aosquais se atribuem tambémduas funções,x ey, admite-sequeexiste uma relação de equivalência entre duas situações respectivamente de inidas por umainversão de termos erelações, sob duas condições: (1) que um termo seja substituído por seuoposto (na fórmula acima,a e a−1); e (2)que se façauma inversãoentreovalor funçãoeovalortermodosdoiselementos(acima,yea).22

O comentário refere-se à lógica do pensamentomitológico, passível dedescoberta (se é que isso é possível) pela análise dos mitos; nenhummontante de análise fenomenológica de signi icados intencionais poderárevelar que as duas relações acima descritas são equivalentes, ou quaiscondições especí icas uma inversão deve preencher para que essaequivalênciasejaadmitidapela lógicadosmitos.Regras lógicasdessetipopodem ser invariantes, mas não são necessárias, ou seja, as únicasimagináveisquepoderiamgerarumalinguagemcapazdecumprirdefatoatarefadeordenaroUniverso.

Demodosemelhante,pode-seprovarqueoutraregralógica,formuladatemporariamentenumplanomenosabstrato(eportantomenosuniversal),como“ojaguarestáparaa ilhanãodisponívelcomoomorcegoestáparaojaguar” (ou, registrado via aplicação: “Em geral considerado responsávelporum furo corporal eum sangramento, omorcego se transforma…emresponsável por um fechamento corporal e uma reabsorção deexcrementos.”),23 talvez seja um princípio invariante da lógica dos mitos,mas com di iculdade se poderia considerá-la representativa datransformaçãoqueé“obviamente”ou“intuitivamente”verdadeira.

Umavezmais,NoamChomskyéexplícitoquantoaocaráterdecisivododivórcio entre “certeza” e “necessidade”, assim como ao segundomatrimônio contraído pela “certeza”, dessa vez com a “invariância”, por

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vezes denominada universalidade. Após descrever várias das muitasregras estruturais da linguagem, Chomsky extrai, de forma enfática, umaconclusãoqueseriadifícildescrevercomoplatônica:

Nãoexisteumanecessidadeaprioridequeissosejaverdade.Essascaracterísticasdalinguagem,severdadeiras,sãofatosempíricos.Érazoávelsuporquesejamaprioriparaoorganismo,jáquede inem para ele o que se deve considerar uma linguagem humana, e determinam o carátergeraldesseconhecimentoadquiridoda linguagem.Masé fácil imaginarsistemasde linguagemque se afastariamdessesprincípios.…Taisprincípios, podemosespecular, sãoaprioripara asespécies, …mas não são propriedades necessárias nemmesmo naturais de todos os sistemasimagináveisquepossamdesempenharasfunçõesdalinguagemhumana.24

Usandopalavrasdiferentes,asregras invariantesda linguagempodemparecer necessárias do ponto de vista da subjetividadeindividual dequalquermembrodaespécieHomosapienstalcomohistoricamentesurgiusobre a Terra; a cada ser humano elas são dadas de uma vez por todascomo constituintes indispensáveis de seu universo inteligível, e talvezpossam ser desnudadas pela “razão voltada para si mesma”; mas, nessesentido, o termo “necessidade” não acrescenta muito à noção deuniversalidade, que é um fato empírico. Essa necessidade “aqui e agora”,identi icáveldopontodevistadaexperiência,éelaprópriaumartefatodolongoprocessohistóricodedesenvolvimento,devendosuaposiçãoaprioriemrelaçãoaumaexperiênciaespecí ica,individualoudegrupo,aofatodeseraposterioriemreferênciaaumaexperiênciacoletivadaespéciequeétão longa quanto a história. A história da espécie levou à cristalização dealgumasestruturascomoelementosconstitutivosdouniverso inteligívelesignificativodecadaumdeseusmembros.

Podemosdizerqueoprocessodevidado serhumanocomopessoa (aentidade individual de inida por seus valores e pelos ins que persegue,teleologicamente organizada, orientada para o futuro) só é possível, e defato só se concretiza, no arcabouço de sua existência como sujeitoepistêmico;essaexistência,porsuavez,está imersanummundohumanoestruturado e organizado do ponto de vista histórico, no qual se tenhaalcançadooisomor ismodopensamentoedapráticahumanos.Emtermosmais gerais, a relação entre a atividade do indivíduo e o arcabouçoestrutural fornecidopelouniversoemqueelevivepodesercomparadaàrelação entre o operário e a máquina, tal como descrita por Marx nosGrundrisse:

A atividade do trabalhador, limitada àmera abstração, é determinada e regulada de todos oslados pelomovimento domaquinário, e não o contrário. O conhecimento que obriga as partes

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inanimadas da máquina, por sua construção, a trabalhar da forma adequada, como umautômato, não existe na consciência do trabalhador, mas age sobre ele pormeio damáquina,comoumaforçaestranha,comosefosseopoderdaprópriamáquina.25

Essarelaçãodialéticaentreopensamentoquetornarealouniversodosseres humanos e o que o torna inteligível e acessível a uma interaçãosignificativaéapresentadaemtermosmaisgeraisemAideologiaalemã:

A estrutura social e o Estado evoluem de modo contínuo a partir do processo de vida deindivíduos de inidos, não como estes podem aparecer em sua própria imaginação ou na dosoutros, mas como eles realmente são, ou seja, da maneira como trabalham, produzemmaterialmente e agem sob limitações materiais, pressupostos e condições de inidas,independentesdesuavontade.26

Emoutraspalavras,osindivíduosevoluemapartirdoprocessodevida,nãocomopessoas,mascomoseresepistêmicos,oumelhor,produtoresdeepistemes.Comopessoas,elespodemvivenciarochoqueentreseuprojetoorganizado segundo valores e o veículo transcendental, organizadosegundoalei,aqueoprojetodeveseraplicado;podematétentarsuperara oposição da maneira típica de uma pessoa, ou seja, reduzindo os doispolosdaoposiçãoaomesmoprincípio ilosó ico,aquelequeorientao ladoesquematizante, signi icativo e organizado segundo valores. Comoentidades epistêmicas, contudo, os indivíduos participam do Universo àmedida que se submetem inteiramente a um conjunto de regras detransformação estruturantes-estruturadas; não fossem eles participantes,di icilmente poderiamnem sequer existir, fosse como pessoas pensantes,fossecomoorganismosvivos.

Maurice Godelier parece acertar namosca ao indicar que, se a futuraciênciadohomemse concentrarnas leisquegovernamo surgimentoe aevoluçãodasestruturastalcomocriadaspelouniversohumano,etambémcomosuascriadoras,asoposições,hojeconsagradase insuperáveis,entrepsicologia e sociologia, sociologia e história, história e antropologia (nosentido de Lévi-Strauss) se tornariam estéreis. 27 Então, acrescentemos, oprograma original de Marx estará redimido; e entre as oposições queagora pairam sobre a ciência do homem, que serão superadas, a supostacontradiçãoentreindivíduoesociedadeterápapelpreeminente.

Recapitulando:aestruturabuscadapelacompreensãoestruturalistadaculturaéoconjuntoderegrasgeradoras,historicamenteselecionadaspelaespéciehumana,quegovernamaumsótempoaatividadementalepráticadoindivíduohumanovistocomoserepistêmico,assimcomooconjuntode

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possibilidades em que essa atividade pode operar. De vez que esseconjunto de regras se condensa nas estruturas sociais, ele parece aoindivíduoumanecessidade transcendental semelhante à lei; graças à suainexaurívelcapacidadedeorganização,évivenciadopelomesmoindivíduocomo sua liberdade criativa. Este é, contudo, o pressuposto básico doprojetoaqui emdebate:queambosos elementosdaexperiênciahumanafundamental – suaexistência e suaessência, suasmodalidadesobjetiva esubjetiva–crescem,emúltima instância,domesmotronco;epara issosedeveesepoderastrearoseupassado.

Síntesedoprojetoestruturalista

Deveria estar clara agora a posição do autor, de que a abordagemestrutural, tal como descrita nos parágrafos precedentes, abre novospanoramasparaaanálisesociológica.Emparticular,elaprometeresolverváriosproblemasbastantedesagradáveis,atéagoravistoscomoobstáculosemtese insuperáveisnocaminhodaciênciaqueseocupadasociedadeeda cultura. Deve-se enfatizar, contudo, combastante vigor, quanto a essadeclaração, que o autor não pretende apresentar a abordagemestruturalistacomoumsubstitutodetudoaquiloqueasociologiainventouetentou fazeratéagora.É fácilapontar inumeráveisproblemasanalíticosdemáxima importância que podem ser enfrentados, demodo e iciente eproveitoso,comasferramentasjáempregadaspelossociólogos.

Parece que a perspectiva de ummodelo teórico abrangente, capaz dedar conta de todo e qualquer problema cognitivo suscitadocomlegitimidade por um cientista social, pertence à categoria das utopiasatraentes,poréminatingíveis.Apráxishumana,comseusmúltiplosníveise facetas – a derradeira fonte de todos os interesses que possam serreapresentadoscomoquestõescognitivas–,escapaaqualquertentativadereduzirsuavariabilidadeaumsóprincípio.

O princípio da natureza estruturada-estruturante da própria práxis,submetido à regra de um tipo de “metagramática generativa”, não éexceção.Por isso,emvezde lançaroutromanifestorevolucionário (oquese tornou muito frequente na sociologia recente), parece bem maisrazoávelenumeraressesproblemasdiscutíveiseemaranhadosdaciênciasocial; segundo a opinião generalizada, se não universal, eles ainda nãoforam tratados demaneira intelectualmente satisfatória, porém têmmaischance de ser resolvidos se abordados da forma imaginada pela visão

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estruturalistadacultura.

1) Primeiro – e talvez o mais atraente – vem a chance de lidar, pelaprimeiravezdemaneiraséria,comoproblemadosuniversaisculturaisesociais (não confundir, enfatizemos, com generalizações a priori, ao estiloMurdock, deriváveis do tratamento estatístico de dados fenomenais). Oproblemaébemmaisimportantepelofatodesersimplesecompreensíveldesde o começo. A patente falta de sucesso na busca dos universais daexistência humana e também a absoluta falta de ferramentas analíticasrelevantes para a tarefa constituem uma doença endêmica das ciênciassociais.

Compouquíssimasexceções,todososconceitoseferramentasanalíticashoje empregados pelos cientistas sociais são adequados a uma visão domundohumanoemque a totalidademais abrangente é uma “sociedade”,noção equivalente, para todos os ins práticos, ao conceito de “Estado-nação”. Acima do plano do Estado-nação, podemos fazer apenas“comparações” que acabarão por nos levar à descoberta de distribuiçõesestatísticas de características signi icativas apenas no nível doEstadonação;oupodemosaplicarasabordagensdateoriados jogos,cujosobjetos devem satisfazer uma condição só para se tornar analisáveis nostermosqueateoriaestipula:devemser“uni icados”emsuaconformidadeàsregrasdojogo.

A reconhecida inaptidão das ciências sociais para transcender suaspróprias limitações no campo dos universais consagrou na prática, pormuitas décadas, a confusa e perigosa distinção entre a sociologia, comoempreendimento cientí ico, e a antropologia ilosó ica, como ramo dasartes.Parecehaverpoucajusti icativaparaessadivisão,pelaqualapenasosassuntoshumanossituadosabaixodoplanodoEstado-naçãosetornamacessíveisaotratamentocientí ico.Di icilmentesepodelegitimaranotávelcapacidade de sobrevivência dessa distinção sem referência ao pecadooriginal,cometidonumestágioinicialdoprocessodeinstitucionalizaçãodasociologiamodernacomociênciaestabelecidadopontodevistaacadêmico.De outra maneira, o importante divisor de águas entre o tratamentoartístico e o tratamento cientí ico da dupla condição existencial humanadi icilmente iria se sobrepor às fronteiras do Estado nacional comoorganização.

Gideon Sjöberg eTedR. Vaughanmostraram, com competência, que alagranteinibiçãodasociologiaemlidarcomquestõessuprassocietaisdata

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dos anos de formação da ciência social moderna.28 Eles consideraramDurkheim e Weber os principais responsáveis pelas a lições até agoraincuráveis da sociologia. A decisão de Durkheim de ixar sua visão daexistência humana à estrutura da sociedade, percebida como naçãopoliticamente organizada, ajustava-se muito bem à lógica inerente à suateoria do homem, a qual, deve-se observar, tinha raízes no passado dailoso ia social francesa, em Jean-Jacques Rousseau e, mais para atrásainda,emBlaisePascal:navisãoqueeles tinhamdoserhumanodivididoemmetades incompatíveis, a bestial e egoísta e a divina e altruísta; e, demodoparticular,noestratagemateóricodeRousseau,deconciliaçãoentreambas: a ideia de moralidade percebida como alcançável somente pelavontade comum, elemento constitutivo da sociedade politicamenteorganizada.

Assim,muitoantesdeDurkheim,atradição ilosó icafrancesainvestiuoEstado-nação da condição de suprema autoridademoral e anunciou aorigem fundamentalmente moral de tudo o que é social no indivíduohumano. Sobrou para Durkheim somente codi icar o conhecimento já desenso comum naquilo que no futuro seria tomado como a linguagem daciência social. Foi apenas lógico, portanto, que se negasse às entidadessupranacionais um lugar de direito no sistema sociológico. Elas sópoderiam ser admitidas se fossem capazes de garantir sua condição defontes de autoridade moral. Mas, como vimos, essa fonte já havia sidoidenti icada, por de inição, como uma comunidade politicamenteorganizada.

Há, portanto, um travo de argumentação circular na declaração deDurkheim, que Sjöberg e Vaughan citam sem observar a tautologiaintrínseca: “Em contraste com a nação, a humanidade como fonte demoralidade sofre desta insu iciência: não há sociedade constituída.” 29Enquanto a integração moral continuar a ser a maior preocupação e oprincipal tópico organizador da sociologia, o Estado-nação prosseguirácomoaencarnaçãoempíricada“sociedade”emsuaformamaiselevada–equalquer conceitoque se re ira a entidades supranacionais permanecerá“cientificamente”oco,quandonãoilícito.

SjöbergeVaughanassociamseuviésrestritivo,característicodeWebere Parsons, na mesma medida que de Durkheim, com a preferência dossociólogospor ideologias con inadasdopontode vista nacional.Qualquerqueseja,contudo,adireçãoemqueaponteacorrentecausal,asociologiahojedominantenãotemutilidadeparauniversaishumanos,tampoucouma

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linguagem relevante para a tarefa de descrevê-los. Robert A. Nisbetmostrou-nos admiravelmente que a sociologiamoderna começou quando“a ideia de Estado abstrato, impessoal e legal é desa iada por teoriasbaseadas na presumida prioridade da comunidade, da tradição e dostatus”.30

Talvezhajaumaconexão íntimaentreaprioridadedacomunidade(ouEstado-nação) sobre o indivíduo como pedra angular da sociologia e aincapacidade endêmica de os sociólogos formularem o problema dosuniversais, em vez de meras “classi icações comparativas”. Os universaisgenuínos só podem serestabelecidos, se é que o podem, no plano dosfatoresoperativosnamoldagemtantodos“seresepistêmicos”quantodos“atoresnapráxis”, ou seja, tantodos indivíduoshumanosquantode suasredesderelacionamentos.

Outra limitação inerente que contraria muitas tentativas da sociologiaatualdelidardeformasigni icativacomaquestãodosuniversaishumanoséaaceitaçãotácitaecomplacentedainstitucionalizada“divisãoemramos”da sociedade. As populações intracastas de sociólogos duplicam o “poderde especialização” estabelecido; somos sobretudo sociólogos da indústriaou da educação,ou da religião,oudapolíticaetc.Nessascircunstâncias, éapenasnaturalqueasestruturasouregrasgenerativascomunsatodasasesferasdaatividadehumanatendamasernegligenciadas.

A aceitação das fronteiras institucionalizadas de um domínio envolve,embora apenas de modo inadvertido, a adoção de valores funcionaisoperativos em sua institucionalização: implica, por conseguinte, aapropriação do arcabouço de referência analítica relevante. Paraidenti icar as verdadeiras universalidades, é preciso transcender asfronteiras que – implantadas no plano super icial, fenomenal – deixam oobservador cego à infraestrutura compartilhada por todos os camposinstitucionalizados. As mesmas regras generativas governam a práxishumana na política, na indústria, na religião e em tudo o mais; sãoanterioresàsdivisõesfuncionais,esuaorigemsópodeser identi icadasea visão do analista for ampliada para abarcar, num único esforço deesquadrinhamento,atotalidadedapráxishumana.Aindaqueconcentrada,para ser empiricamente viável, em um setor escolhido da práxis, asociologia deve ser organizada pela estratégia de deixar de lado osaspectos fenomenais que devem seu nascimento e sua presença àdiferenciação funcional.Umavezmais,aabordagemestruturaldaculturaofereceoquepareceseropontodevistacorretoehámuitoprocurado.

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2) Outra chance oferecida pela abordagem estrutural é a de uma novaperspectiva do conceito de função, exaurido até atingir umdesencantofrustrante. Os usos tradicionais do termo, quase sem exceção, têm sidoagourentamente reminiscentes do télos aristotélico; de Malinowski aParsons,aideia,senãooconceito,de“pré-requisitossistêmicos”temsidoacompanheira indispensável da noção de função. Logicamente, se não dopontodevistagenético,oconceitodesistemasocietaltemprioridadesobreoidiomadafunção:naverdade,éaesseconceitoqueoatualsigni icadodefunçãodevesuainteligibilidade.

Quaisquer que sejam os argumentos contrários à acusação deteleologismo, a verdade é que, para fazer algum sentido, o conceito defunção só deve ser introduzido como um elo sucessivo numa cadeia deraciocínio que começa numa declaração existencial sobre uma sociedadeconsumada,“concluída”,que“tende”asobreviver;eque,para“atingirseuobjetivo”, “impõe” padrões especí icos, “promulga” determinados valoresetc.Sejaqualforautilidadedanoçãodefunçãocomorecursoheurístico,afragilidade endêmica de seus fundamentos teóricos continua uma fonteinesgotáveldeembaraçoparaseusdefensores.

A sequência lógica que essa noção em sua interpretação atualinevitavelmente presume é, além do mais, conducente a uma brechaintransponível entre as dimensões sincrônica e diacrônica da análisesociológica:seaexistênciadeumsistemasocietalmaduro,capazdegerarefetivamenteseus“pré-requisitos”,éaprincipalcondiçãoparaqueaideiade função seja aplicada de forma signi icativa, então a análise sociológicaorganizadaemtornodessa ideiaé incapazdeexplicarcomrazoabilidade,emprimeiro lugar, comopôde surgir a sociedade; tambémnão consegue,salvo por excentricidades improváveis, tornar inteligível a dinâmicacontínuadaformacomunaldecoexistênciahumana.

Qualquer que seja o fator que a teoria sociológica acabe selecionandocomo conceito analítico central, seria prudente ter cuidado com escolhasinatas na discussão estéril sobre prioridades societais-individuais. Talconceitodeveserumfatoroperativoemambososníveis.Deveexplicarasduas facetas, inextricavelmente interligadas, da existência humana:subjetiva e objetiva, determinante e determinada, criativa e criada,socializante e socializada.Então, e só então, pode ser utilizado naconstrução de modelos ao mesmo tempo sincrônicos e diacrônicos, e noestabelecimento de uma ponte entre os níveis, até então isolados, dasituaçãoindividualedaestruturasocial,deumaformaquenãoimponhaa

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falsaquestãoda“prioridade”deumadasduasmodalidadesdaexistênciahumana.

Aideiadefunção-signopareceseracandidataóbviaaconceitoanalíticocentral, equipadocomtodososméritosexigidos.De fato,o signo, como“oatoderemoveraumsótempoduasmassasamorfas”,decriaretransmitiro signi icado, que é “uma ordem tendo o caos dos dois lados”, 31 écoextensivoemsuasmodalidadesàprópriapráxishumana;comoconceitoanalítico, é como se fosse o re lexo especular da práxis, iel no sentidoideal, embora raro, de codimensionalidade. Analisando padrões culturaisem termos de sua função-signo (ou seja, em termos semióticos), nós osrelacionamosdiretamente à práxis humana, semprejudicar a questãonoplano analítico. É um conceito dinâmico de função, capaz não somente depreservar,masdegerarformas;algodeterminável,nãoemrelaçãoaumaentidade concluída, in lexível e, por suposição, estabilizada, mas a umprocesso,àcadeiainfinitaeirrestritadaatividadehumana.

Nessesentido,afunçãodospadrõesculturaisconsisteemcriarordemeorientação; ou melhor, no processo em duas fases de ordenamento doambiente societal e do comportamento humano neste ambiente. Nenhumdos dois lados reciprocamente constitutivos da práxis humana reivindicaprioridadesobreoladooposto.

Ora,afunção-signodospadrõesculturaiséefetuadapelasoperaçõesde“discriminação”ou“delimitação”, 32dirigidasaomesmotempoaoambientedeaçãoeaoprogramaorientadordaação.Essasduasoperaçõesbásicasordenam, por diferenciação, os planos de outro modo amór icos da“realidade”edo “mapacognitivo-motor”.Daí, “um termo-objetoúniconãotemsigni icadoalgum;qualquersigni icadopressupõeaexistênciadeumarelação; é só no plano da estrutura que deveríamos buscar as unidadessignificativaselementares,nãonodoselementos”.33

Éarelaçãoentreváriossignosaplicáveisnumasituaçãoquecontacomosignificativa;exatamenteessarelação–apresençadeumsignorepresentaao mesmo tempo a ausência de outro – que é acessível ao tratamentofuncional. O valor-signi icado de qualquer signo-padrão “depende de suaoposiçãoaoutroselementos,deelesseremdiferentesdeoutroselementos.Portanto, eles não são caracterizados por alguma qualidade positivaprópria,masporsuaqualidadeoposicionaleporseuvalordiferencial”.Ossignos devem sua funcionalidade à capacidade ativa, regulatória – àfaculdade de remoldar tanto a mente cognitiva quanto seu objeto. NaspalavrasdeLuisJ.Prieto,osigno

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coloca-seemrelaçãonãoapenascomapossibilidadequeseefetua,oucomaspossibilidadescomasquais aquelaqueele signi ica se relaciona,mas com todas aspossibilidades envolvidas. Issonão pode ser de outra forma, já que o signo indica a possibilidade que se efetua, ou aspossibilidadescomqueeleserelaciona–esóofazporqueissoeliminaoutraspossibilidades.34

Para tomaroexemplomais simplespossível,umaplacade “Proibidaaentrada”sóésigni icativaquandoháoutrasportassemumaplacadessas,jáqueafunçãodosigno“Proibidaaentrada”nãoédesignarumarelaçãopeculiar um a um, entre a ideia transmitida pela inscrição e portasespecí icas que tenham a placa; consiste na diferenciação ativa entre aspessoasqueseaproximamdaportado ladocomaplacaeasquedelaseaproximam do outro lado; assim como em informar todos os leitorespotenciaissobreadiferençaentreaspessoasquemoramatrásdaplacaeasqueestãoprivadasdessetipodeproteção.

3)Empartecomoconsequênciadasobservaçõesanteriores,aabordagemestrutural da práxis humana promete uma nova chance de soluçãosatisfatória para o controverso paradigma da estrutura social-cultural.Quaisquerquesejamasconhecidasdiferençasentreasmuitasde iniçõesdisponíveis, respectivamente, de cultura e estrutura social (e de modoindependente da intensidade dossentimentos provocados pelo debatepermanente, que tende a ampliar distinções de importância relativamenor), os dois conceitos, sempre que aparecem como antônimos, sãoracionalizações da natureza dual, constante e comumente vivenciada dacondição humana; de um lado, os seres humanos vivenciam sua própriaexistência como um conjunto de restrições implacáveis, recalcitrantes,resistindodesa iadoramenteaqualquer tentativademoldá-las segundoavontade humana; de outro, eles sempre aprendem sobre seus própriosprojetos intelectuaise seudesejo in luenciadoporemoções,queparecemdiretamente administráveis, lexíveis, maleáveis – como o reino daliberdademanifestadonacriatividade.

Essa distinção vivencial básica, raiz declarada da maior parte dailoso iaocidental,éumsubprodutoepistemológicodochoqueentre SeineSollen, entre o que é e o que deveria ser; numa sociedade perfeitamenteintegrada, livre de signi icados ambíguos e da necessidade de escolha(como, por exemplo, no mundo arti icial criado por Kurt Goldstein paraseuspacientespsiquiátricosa ligidospelaperdadacapacidadedepensar“abstratamente”), essa distinção nem teria sequer ocorrido aos homens.Mesmoassim,elatemestadopresente,desdeaépocadospoetaslíricosda

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GréciaAntiga,nafórmulaintelectualdaexperiênciahumanacaracterísticadacivilizaçãoocidental.Amesmaexperiênciabásica,dependendodo focode interesse ou do nível de análise, está subsumida em outros pares deoposições seminais, como sujeito e objeto, espírito e matéria, mente ecorpo,normaerealidade,valorefato.

Todas as três categorias do conceito de cultura que distinguimos noprimeiro capítulo pertencem àmesmametade do universo semântico dodiscurso ilosó icoqueemoutroscontextoséorganizadaportermoscomomente, norma, espírito, valor etc. Essa metade explica o universo denormasoupadrõesnormativoscujaorigemsepodeatribuir,emprincípio,àcriaçãohumana–talvez,emúltimainstância,àcapacidadegenerativadamente humana; enquanto a estrutura social, embora reduzida a umconjunto de normas comportamentais institucionalizadas, é tratada comoum adversário potencial da normain actu, comouma entidademais rija,maisresistente,emcertosentido“maisreal”(oumesmo“substancial”).

Ora, ao longo da história da civilização ocidental há uma tendênciamanifestaeobstinadaareduziramencionadadualidadedenossaimagemdomundo aum só elemento, pela representaçãodeumadversário comocorolário do segundo.Nosso breve retrospecto dos destinos históricos dadicotomia platônica ofereceu-nos um insight super icial sobre as formasespecíficaspelasquaisessatendênciapodesemanifestar.

No interior do arcabouço analítico agora em debate, os estratagemaspropostos assumem, compreensivelmente, a forma de assertivasontológicas. As alternativas vão do conceito de geração inequívoca dasuperestruturapelainfraestruturasocietal(emalgunsramosdomarxismode tendência positivista) até seu exato oposto, uma visão da estruturasocial “tipi icada” e, portanto, um monótono sedimento dos padrõesculturais normativos (tanto em Parsons quanto em Berger e Luckmann,apesardasdiferençasquepossamapresentaremoutrosaspectos).

Mas até os adversários diretos concordam, como podemos ver, que arelação entre a estrutura social e a cultura é a de determinação ougeração, por vezes suplementada por uma relação funcional. A históriadessedebatelembra-nososmovimentosirregularesdeumpêndulo,enãouma cadeiade soluções conclusivas; só a reconhecida amnésiada ciênciasocial com respeito a seu próprio passado pode explicar o fatosurpreendentedequeumgrandenúmerodeteóricosaindaesperachegara algo esclarecedor pela exploração de becos sem saída para semprepercorridos,deumladoparaoutro,porseuspredecessores.

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Uma vez mais a abordagem estrutural, semiótica, da práxis humanaoferece a chance de uma nova e convincente solução para o antigoproblema. A pista é fornecida pela dialética entre signifiant esignifié,analisada de modo convincente por Ferdinand de Saussure. 35 Os doisaspectos fundidos são distinguíveis em todos os signos, não só oslinguísticos.

É provável que, no ato cultural, visto da perspectiva semiótica, os doisaspectos intimamente vinculados, embora distinguíveisdo ponto de vistaanalítico, possam se organizar em duas estruturas isomór icas: uma emgeralchamadadecultura,aoutratratadasobotítulode“estruturasocial”.Se agora vemos a segunda comouma rede de dependências e restriçõesintegrada ao luxo de energia (o aprendizado dos princípios constitutivosessenciais de qualquer totalidade autorregulada e autoprogramada,incluindo a sociedade humana, a partir da cibernética), então a primeirapodeserinterpretadacomoocódigopeloqualainformaçãodasegundaéexpressa, transmitida, decifrada e processada. As duas participam emconjunto do esforço humano básico para reduzir a incerteza da condiçãohumana, ordenando-a, tornando-a mais previsível e, portanto, maisadministrável.36 Caso essa interpretação se sustente, cultura e estruturasocial têm uma relação de signi icação (que é, permitam-me repetir demodoenfático,umprocessoativodoprincípioao im);eosmétodosexatos,elaborados para analisar conjuntos isomór icos, podem ser empregadosnesseestudo.

4) Apesar das interpretações equivocadas, também está presente noequipamentoanalíticodoestruturalismomodernoachancedeestabeleceruma ponte sobre o abismo conceitual entre sincronia e diacronia. Asinúmeras e frequentes declarações em contrário (o próprio Lévi-Straussesteve por algum tempo entre os principais culpados, responsável pelaatual associação entre estruturalismo e descrença na contribuição doconhecimento histórico à descrição de sistemas) foram provocadas pelapaixão – compreensível, embora não necessariamente convincente – dospregadores devotos por uma ideia sem dúvida revolucionária. A defesacontra a ortodoxia truculenta parece exigir, de maneira enfática, que sevejatodaambiguidadecomotabu.

Uma vez que a heresia se transformou há muito tempo em rotinarespeitável, tornou-semanifesto que a análise sincrônicamais so isticadanão exige o abandono da perspectiva diacrônica; pelo contrário, deve

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existir “alguma conexão entre processo diacrônico e regularidadessincrônicas, já que mudança alguma pode produzir um estadosincronicamente ilegítimo, e todos os estados sincrônicos resultam deprocessosdiacrônicos”.37

Além disso, aspectos genéticos e estruturais só se tornamcompreensíveis em sua recíproca interdependência processual eanalítica,38 e as mudanças socioculturais, assim como a estrutura dossistemas sociais e culturais, são analisáveis com o mesmo conjuntoconceitual.39 A ferramenta conceitual que mais amiúde nos ocorre comrelação a isso é a dos signos “não marcados” e “marcados” (a oposição“primitiva” de Trubetzkoy entre membros “merkmaltragend” e“merkmallos”).40

Osigno “nãomarcado”, emgeral omais simples e super icialdosdois,denota indiscriminadamente toda a classe de fenômenos; então, umatributo característico de só uma subclasse torna-se, por algum motivo,importante;assim,partedasaplicaçõesdosignonãomarcadorecebeuma“marca” para distinguir apenas essa subclasse. O signo nãomarcado, atéentão monopolista, está agora em oposição ao novo signo marcado; atéentão neutro em relação à característica marcada, ele agora transmite ainformaçãosobresuaausência.

Victor V. Martynov 41 desenvolveu uma teoria razoavelmenteconvincente usando o conceito de “marcadores” para mostrar como osprocessos diacrônicos de mudança são muitas vezes gerados por umaestruturasincrônicaemvirtudedesuasregrasendêmicas.Nãohádúvidade que nenhuma consideração séria impede a substituição de termoslinguísticos por itens culturais nosmodelos deMartynov. Voltarei a esseaspectomaisadiante.

Hámuitomaisnagrandepromessaestruturalistadoqueconseguimosmostrar enumerando apenas alguns de seus aspectos principais. Nãoadmira que, a despeito das críticas diretas expressadas pelos maistradicionaisrepresentantesdaantropologiaedasociologia,as ileirasdosacadêmicos que tentam aplicar as conquistas da linguística à análisesociocultural cresçamacadaano.Naantropologia,aaplicaçõesdas ideiasestruturalistas trouxe realizações notáveis, das quais os trabalhos deEdmundLeacheMaryDouglas,naGrã-Bretanha,constituemtestemunhosconvincentes.

Mas o argumento contra a analogia linguística tem sido cada vezmaisreforçado, e nem tudo nele pode ser descartado como um tributo à

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conservação da ciência institucionalizada. Os que tentaram fazer isso, etambém os que não o izeram, advertem-nos contra a prática de atribuiresperanças exageradas à aplicação de métodos linguísticos a fenômenosnão linguísticos, embora humanos. Como em geral acontece, a linguagemontológica é preferida em relação àmetodológica; adversários do projetode Lévi-Strauss enfatizam, em primeiro lugar, a peculiaridade qualitativados domínios culturais não linguísticos, que em tese reduzem qualquertentativadeextrapolarametodologiaestruturalistaparaaanáliseculturalmaisgenérica.

Duas questões de debate aparecem de forma confusa namaior partedas críticas. A primeira é se os domínios não linguísticos da culturahumana são construídos da mesma forma que a linguagem; assim, seprocedemos de maneira adequada quando tentamos distinguir neles omesmo tipo de unidades e relações que Saussure, Jakobson, Hjelmslev eoutrosdescobriramnaáreadalinguagem.

A segunda é: se toda a cultura humana, incluindo a linguagem, seoriginadomesmoesforçohumanouniversal dedecifrar a ordemnaturaldo mundo e impor-lhe uma ordem arti icial, e se, ao fazê-lo, todos oscampos da cultura são submetidos aos mesmos princípios lógicos queevoluírampara seadaptaràspropriedadesdouniverso; seria justi icado,portanto,aplicaràanálisesocioculturalosprincípiosmetodológicosgeraisquealcançaramomaisaltoníveldeelaboraçãoeso isticaçãonalinguísticaestrutural?Nãoénecessáriodizerqueuma respostanegativaàprimeiraquestãonãopressupõenecessariamenteumarejeiçãodaúltimapergunta.Porinfortúnio,muitoscríticospensamocontrário.

Só houve até agora alguns poucos exemplos de defesa da relevânciacientí icadoprimeiroelemento.Umdosmais in luenteséodeKennethL.Pike,42 cuja contribuição já foi apresentada. Pike preocupa-se com oproblemaopostoaodosestudiososdosegundoproblema:nãocomoqueésigni icado pelos itens culturais, o modo como os fenômenos culturaisorganizameordenamocampocognitivoeoperacionaldocomportamentohumanoetc.; mas se dedica a provar que – a despeito de sua funçãosemiótica – existem, em todo comportamento humano institucionalizado,unidades elementares análogas às da linguagem. A proposição de Pike équetodaculturaélinguagemnosentidoformaldapalavra.

OproblemadoargumentodePikeéque,emboraalinguagemsejaumapartedacultura(especializadaemtransmitir informação),aculturanãoéuma linguagem; se não por outras razões, pelo menos porque os

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fenômenos culturais desempenham muitas outras funções além deinformaralguémdealgumacoisa.Seriamesmomuitoestranhoseaculturafosse construída segundo os princípios constitutivos feitos sob medidaapenas para a função comunicativa. É verdade que os seres humanos, oquequerque façam, sempre constroemuma série de coisas diferentes apartir de uma quantidade limitada de materiais básicos (a in indávelvariedade de cada culinária nacional, por exemplo, é em geral alcançadacomaajudadealgunspoucosingredientesbásicos).Masdeclararessefatonãonosaproximarianemumpoucodacompreensãodaculturahumana.Oúnico resultado possível talvez seja uma nova versão dos espúrios feitosclassi icatório-comparativos dos colecionadores de borboletas: o“conhecimento” de que, digamos, a “linguagem da cozinha” é feita dos“fonemas”sal,açúcarepimenta,enquantoa“linguagemdosgestos”éfeitade mãos que se elevam e cabeças que se abaixam. Não se sabe,caminhandonessadireção,seconseguiremosatingiralgumacoisaalémdedesacreditaraprópriaideiadeanalogialinguística.

Alémdomais,odestinodessaanalogianãodependedePiketersucessoem discriminar “unidades êmicas” em toda parte; nem de Charles F.Hockettacertarounãoquandodeclaraque“facilmentedemonstrávelquenem todo comportamento cultural consiste em combinações de unidadesdistintas do tipo encontrado na linguagem ao analisarmos a fala comocombinaçõesdefonemasdistintos”.43

O que parece importante e proveitoso, de fato, é o segundo problemadosdoismencionados.NormanA.McQuown tinha isso emmentequandodeclarou:

Os princípios gerais que menciono são de tal generosidade que, sem dúvida, constituematributos do Universo e não dos seres humanos em particular, ou da cultura humana emparticular,oudaestruturadalinguagememparticular.…A inal,todasascoisastêmalgumtipodeestrutura,eoselementosdessaestruturaopõem-seoucomplementam-seunsaosoutros,ouestão em variação livre entre si, ou exibem padrões de congruência, ou parecem elegantesquandodescobrimoscomoacoisafuncionademaneirageral.44

A oportunidade oferecida pelos princípios estruturais descobertos porlinguistasconsiste,emresumo,nisto:nabuscadas leisgeraisnecessáriasque regulam a cultura humana, podemos agora descer até o sistemainconsciente que precede e condiciona todas as escolhas socioculturaisespecí icas, passíveis de uma abordagem empírica. A única alternativadisponível é o projeto tipi icado pela declaração de Margaret Mead: “Assemelhançasmais generalizadas, emmatéria de comportamento cultural,

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que ocorrem em diferentes partes do mundo, em diversos níveis dedesenvolvimento cultural”, deveriam ser explicadas assumindo-se, emhipótese, uma possível organização biológica que nenhuma imaginaçãoculturalpodeultrapassarouignorar.45

O que se propõe aqui é relacionar as similaridades ex post facto,situadasnoplanodosusosedesempenhosculturais,ànaturezabiológicauniversal, pré-humana; esse procedimento só pode resultar na convicçãode Murdock quanto ao fundamento biológico do interesse humanoaparentemente universal pelo Sol, a Lua, a chuva e o trovão. Em vez detentardescobrirasleisculturaisgeraisnaesferadasrelaçõesnecessárias,endêmicasegenerativas,pedem-nosparasituá-lasnocampodoacidentaledoexterno.

A aplicação direta das descobertas dos linguistas estruturais à culturacomoumtodoélimitadapordiferençasimportantesentreossubsistemaslinguísticosenãolinguísticosdaculturahumana.

1) Em geral, presume-se que o processo linguístico é uma “comunicaçãopura”;aúnicarazãopelaqualaspessoasusamdispositivos linguísticoséodesejodetransmitirumasàsoutrasalgumasinformaçõesqueconsideramúteisou importantes.Aversãomais radicaldessaopiniãodiz apenasquecada evento discursivo não tem outra função a não ser transmitir umamensagem; trata-se, assim, de uma atividademuito especializada, e tudoaquilo em que ela consiste pode ser interpretado à luz da comunicaçãopretendidaoudaintençãodeprovocarumareaçãoespecífica.

Nem todos os linguistas e psicolinguistas estão preparados paracorroborar essa declaração. Para dar um exemplo das objeções bastantepesadas à imagem radicalmente “comunicativa” da linguagem, podemoscitar a lista dos atributos onipresentes nos eventos discursivos (de A.T.DittmaneL.C.Wynne)que,noentanto,nãopodemservistoscomopartesdo sistema da linguagem stricto sensu.46 Esses autores distinguem, entreoutros: caracterizadores vocais (voz embargada, risos ao fundo etc.),segregados (sons que não são palavras), quali icadores ( crescendo, pianoetc.), qualidade da voz (tempo, ritmo, precisão de articulação etc.),ambiente vocal (fadiga etc.). Pela sua imperfeição, nenhum dessesfenômenos deve ser tratado como parte da linguagempropriamente dita(podemos acrescentar): em vez de serem signos arbitrários, reservandoseu signi icado para suas relações com outros signos, estão muito maispróximosdoqueCharlesPiercedescreveuaofalarde“índices”;podemser

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lidos pelo receptor, se ele estiver familiarizado com algum tipo deconhecimento psicológico e isiológico, como uma informação sobre oestadodoemissor;masoconhecimentodalinguagemdi icilmenteajudariaa decodi icá-los. Diríamos, acompanhando Karl Buhler, 47 que, emborapossuam a qualidade daAusdruck (fonction émotive, segundo Giulio C.Lepschy),48 eles não são dotados deintenções conotativas ou denotativas,comoossignoslinguísticos.Masdefatoparticipamdecadaatodiscursivo,tornando-omenoshomogêneodoquepoderiapareceràprimeiravista.

Outra diferença entre as linguagens naturais e o modelo apenascomunicativofoiapontadaporS.K.Shaumian,famosolinguistasoviético:

Nãodevemosesperaratingirascausasdamudançalinguísticaapenaspelaexploraçãoimanente.A linguagem estrutural é afetada por fatores psico ísicos e sociais, externos de seu ponto devista;suain luêncianãopodeserlevadaemconsideraçãoporque,noqueserefereàestruturalinguística,elaéacidental.49

Senemoprocesso linguísticopodeservistocomo“comunicaçãopura”,isso tambémé duvidoso no que se refere aos campos não linguísticos dacultura.Compoucasexceções(comoalinguagemdosgestoseaetiqueta–nãoporacasoapalavra“linguagem”temsidoespontaneamenteaplicadaaessesfenômenos),aculturanãolinguísticaoperacomumtipodematerialque se relacionapor simesmoanecessidadesnão informativas, de certaforma, “energéticas”. Embora possamos considerar eventos culturais nãolinguísticos como transmissores de informação, a razãoinformação/energiaé,nessecaso,muitomenosfavorávelà informaçãodoque no de atos linguísticos. Isso signi ica que o papel dos elementos nãoinformativos nesses eventos é maior do que nos atos discursivos, e,portanto,quasequeporde inição,muitomaisin luentenaformataçãodospróprioseventos.

Emprimeirolugar,as“necessidadesenergéticas”estabelecemoslimitesda liberdadeno ajustamento dos usos de determinadomaterial para inssemióticos. Em segundo lugar, no caso de choque ou fricção entre asfunções informativa e energética, nem sempre é a primeira que leva amelhor.

Pelo menos em um de seus artigos, Edmund Leach (embora sejapossível encontrar elementos contrários em outras obras suas) parecesugerir que uma extrapolação direta da linguística estrutural para aanálisedaculturahumanaemsuatotalidadeégarantidapelofatodeque“as convenções padronizadas da cultura, que tornam possível a

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convivência dos seres humanos numa sociedade, têm a qualidadeespeci icamente humana de serem estruturadas ‘como’ a linguagemhumana; e de que a estrutura da linguageme a da cultura humanas, emcerto sentido, sãohomólogas” (embora sempre sepossaperguntar oquesigni icam as aspas na palavra “como” e qual o sentido de “em certosentido”).50 A análise de Leach evita características importantes dossubsistemasdeculturanãoverbais,emborasemióticos–que,parausaraspalavras de Roland Barthes, “têm uma substância de expressão cujaessência não é signi icar”; Barthes propõe chamar de “funções signos”essessignossemióticoscujaorigeméutilitáriaefuncional.51

O aspectomais importante é que os ramos não linguísticos da culturanão podem ser esgotados por qualquer descrição ou formataçãoorganizada apenas em torno da função informativa. Duas funçõesautônomas interferem constantemente uma sobre a outra, e nenhumfenômenoculturaléredutívelaumasófunção.Cadasistemacultural,pelasescolhas que faz, ordena o mundo em que vivem os membros darespectiva comunidade; executa uma função claramente informativa, ouseja,reduzaincertezadasituação,re letee/oumodelaaestruturadaaçãosinalizando/criando a porção relevante da rede de interdependênciashumanas chamada “estrutura social”. Mas tambémmodela o mundo dosseres concretos que, para sobreviver, devem satisfazer suas irredutíveisnecessidades individuais. Esse duplo aspecto é discernível sob as formasde abrigo, vestimenta, culinária, bebida,meios de transporte, padrões delazeretc.Tentaremosdesenvolveressetemaadiante.

Outra observação, contudo, justi ica-se nesse contexto. É bem possívelqueosmateriaisbásicosqueservemcomoobjetodaatividadeordenadorahumana tenham se colocado, em primeiro lugar, na órbita do universohumanoemvirtudede suasaplicações “energéticas”.Masavariedadedeformas que depois adquirem e a pródiga abundância de empregosso isticados e elaborados que se agrupam em torno deles têm pouco emcomum com seus usos básicos. Podemos arriscar a hipótese de que, se ofato de os seres humanos produzirem artefatos de algum tipo pode seratribuído a necessidades humanas basicamente não informativas, adiferenciação de sua forma e a maior parte das complexidades de suaárvore genealógica devem se referir, para serem explicadas, à funçãosemiótica que desempenham em relação à estrutura social (ou seja, emrelaçãoàtarefadeordenar oambientehumano).Omaisrecenteexemplofoi fornecido pela irrupção imaginativa, violenta e tecnologicamente

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(energeticamente)dispendiosaedescabidadosprodutoresdeautomóveis.Senãohouvesseumafunçãoestrati icadoravinculadaaosautomóveisemseu papel de signo, não conseguiríamos entender por que produtosso isticadosdaindústriamodernasãoconsideradosdescartáveisapósdoisanosdeuso.

Para resumir: ao contrário do caso da linguagem, ao analisarmos ossubsistemasnão linguísticosda cultura, temosde aplicardois arcabouçosanalíticosdereferênciacomplementares,emboraindependentes.Nenhummodelo único e qualitativamente homogêneo pode explicar todos osfenômenosempíricosdacultura.

2)Asegunda limitaçãodizrespeitoà “leidaparcimônia”.Muitasvezessepresume que, no desenvolvimento histórico das linguagens naturais, osfatoresmaisativossãoosdaeconomiacrescente;nãoapenasasdistinçõesdestituídas do suporte das discriminações isomór icas de signi icadotendem a se contrair e desaparecer, mas tipos alternativos de oposiçõesexpressivas tendem a se coagular, diminuindo assim o número total depadrõesoposicionais.LouisHjelmslevchegouatéade iniralinguagem,emoposiçãoatodososfenômenosculturais,àexceçãodealgunspoucos(comoa arte ou os jogos), “como uma estrutura em que os elementos de cadacategoriacomutamunsporoutros”.52Otermocentral“comutação”signi icauma correspondência entre as distinções que aparecem no plano da“expressão”eaquelasdiscerníveisnoplanodo“conteúdo”.ÉdeHjelmsleva a irmação de que oposições expressivas não sustentadas pordiferenciações isomór icas de signi icado, e vice-versa, são apenasfenômenos“extramodelares”,enãofatoslinguísticospropriamenteditos.

Mesmo nas linguagens naturais, a quantidade dessa espécie deredundância (que não deveria ser confundida com outro tipo deredundância, aeufuncional, que garante a decifração adequada demensagens) parece, contudo, bastante signi icativa. B. Trnka, um dosfundadores da famosa Escola de Praga, assinala que existe em cadalinguagem uma variedade de fonemas que “estão em distribuiçãocomplementar um ao outro, não havendo um ambiente no qual ambosocorram”. Isso quer dizer que “sua capacidade sempre presente epotencialdediferenciarpalavrasnãoéutilizada”.Trnkachegaapontodeconcluir que, “falando em termos estritos, a verdadeira função dosfonemas não é preservar o signi icado das palavras umas em relação àsoutras,masapenasdedistinguiros fonemasentresi”. 53Amaiorpartedo

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poderdedistinçãopotencialdosfonemaspermanecesemusoemtodasaslínguasvivas,signi icandoque,aoenfrentarmosumaoposiçãonoplanodaexpressão,estamosautorizadosasuspeitardaexistênciadeumaoposição“comutativa”noplanodoconteúdo–masnãopodemostercertezadequeelaexista.HarryHoijerenfrentouamesmaquestãodopontodevistadasrelíquiasedosarcaísmosabundantesemtodasaslínguas:

Há padrões estruturais como esse que, em muitas línguas indoeuropeias, dividem ossubstantivos em três grandes classes:masculinos, femininos e neutros. Esse padrão estruturalnão tem um correlato semântico discernível. … Quaisquer que possam ter sido as implicaçõesdessepadrãoestruturalnaorigem–e issocontinua indeterminado–,agoraestábemevidenteque o padrão só sobrevive como um dispositivo gramatical, importante nessa função, mascarentedevalorsemântico.54

Independentementedoque sepossadizer em relação à linguagem, asexceções à “lei da parcimônia” são muito mais amplas no caso dossubsistemas culturais não linguísticos. A capacidade discriminatória dositens culturaisdisponíveis emdadomomentoparaqualquer comunidade,emregraultrapassaseuusoconcreto.Pode-seconsiderarquearealidadeempírica de cada cultura é cheia de signos “ lutuantes” à espera de quelhes seja veiculado algum signi icado. Isso é determinado, ao menos emparte, pela situação especí ica dos códigos não linguísticos: embora todacomunidadegeogra icamentecondensadaemgeraluseumasó língua,elaé exposta a muitoscódigos culturais superpostos, institucionalmentedistintos,masempregadospelasmesmaspessoas,aindaqueemdiferentescontextos de papéis. Os signos lutuam livremente sobre fronteirasinstitucionais, mas, quando separados de seu contexto sistemáticointrainstitucional, perdem o vínculo “comutativo” com seus signi icadosoriginais.55

O único conjunto disponível como arcabouço de referência semânticocomumpara todos os subcódigos usadospelosmembrosdedeterminadacomunidadeéaestruturasocialdacomunidadecomoumtodo.Éverdadeque alguns signos signi icativos no interior de subcódigos “institucionais”especializadostambémadquiremumaqualidadediscriminatóriaadicionalno “supercódigo” comunal (como acontece, por exemplo, com os signosoriginados no arcabouço de subcódigos “pro issionais”, em geral tambémindicativosdaposiçãoocupadanaestrati icaçãosocietalmaisampla);masessanãoé,demodoalgum,umaregrageral.

Por outro lado, embora a criatividade humana seja em larga medidainspirada pela demanda de novos signos para substituir os antigos,

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esvaziadosemfunçãodafrequência,nãoépossívelreduzi-laapenasaestacausa.Apenasaseucaráter(aomenosemparte)espontâneoeimotivado,acriatividadehumanaproduz itensculturaisemnúmerosqueexcedemademanda semiótica real. São signos “imaginários”, potenciais, que até omomento não se “comutam” com quaisquer distinções reais na estruturadarealidadehumana.

Em terceiro lugar, há tambémo importantíssimopapel desempenhadopela tradição – pelos atrasos no “esquecimento” cultural. Odesenvolvimentodequalquerculturaconsistetantonainvençãodenovositensquantonoesquecimentoseletivodosantigos:daquelesque,nocursodo tempo,perderamseusigni icadoe,não tendoencontradonova funçãosemiótica, arrastam-se como relíquias do passado, explicáveis, masdestituídas de sentido. Porém, alguns itens se recusam a desaparecermuitodepoisde jánão teremsentido.Sobrevivendoàsvezesapenaspeladessincronia entre a mudança de um sistema e as instituiçõessocializadoras, desa iam a crença funcionalista na utilidade universal detudoquesejarealealimentamomitodurkheimianodaalmacoletiva.

Emsuma,nemtodososelementosnumarealidadeculturalempíricasãoexplicáveis com referência a seu papel semiótico. Uma vez mais, o quepode ser dito sobre uma cultura do ponto de vista de sua verdadeirafunçãosemióticanãoexaureariquezadesuaexistênciaempírica.

3)Outra conclusão procedente da natureza comunicativa da linguagem éque os atos discursivos podem ser de inidos como eventos surgidos daintenção de transmitir uma mensagem. A equipe de linguistas francesesliderada por André Martinet avançou bastante no sentido de de inir alinguagemcomoumdos“tiposdefenômenosocialmuitoamplo,eatéagoranão muito bem delimitado, que se de inem pela intenção de comunicar,veri icável por critérios comportamentais”. Embora a sentença anteriorsugira que, segundo a opinião dos autores, a intenção de comunicar nãodistingue apenas a linguagem, outra a irmação testemunha o contrário:“Antes que se decida que a arte é uma linguagem, é razoável investigarcom cuidado se o artista procurou, antes demais nada, comunicar-se ouapenas se expressar.” 56 A ideia da intenção de comunicar comocaracterística de inidora dos fenômenos linguísticos está tãoentrincheiradanopensamentodosestudiososqueLévi-Strauss, ao tentaroriginalmente expor a natureza linguística do sistema de parentesco,parecia presumir que esse sistema tenta atingir, à sua própria maneira

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simbólica,éacirculaçãodemulheres,ousuatrocaentreoshomens.57Agora parece duvidoso que a função comunicativa seja de fato amais

geral, aquela em relação à qual todas as funções mais especí icasexecutáveisnasociedadehumanasãosubordinadaseparticulares.Talvezseja isso, mas só se de iníssemos comunicação segundo o espírito damoderna teoria dos sistemas, e não na tradição da “troca”, de “fazercircularalgoparaoutroporintermédiodealguém”.Amodernateoriadossistemas relaciona a noção de “comunicação” aos conceitos de“dependência”, “ordem” e “organização”. Esses conceitos, por sua vez,foramde inidoscomoumtipode limitação impostaaoespaçodeeventos,que de outromodo seria ilimitado (isto é, desorganizado, caótico).58 Doiselementos são membros do mesmo sistema (= comunicam-se entre si)quando nem todos os estados do primeiro forem possíveis enquanto osegundo permanecer em determinado estado. Em linguagem maisdescritiva, podemos dizer que um elemento “in luencia” os valores que ooutropodeassumir.

Em resumo, falamos de comunicação sempre que há alguns limitesimpostos ao que é possível ou ao que pode acontecer e à probabilidadedessa ocorrência. Falamos de comunicação sempre que um conjunto deeventoséordenado,oquesigni ica,emcertamedida,previsível.Seformosagora da perspectiva sociológica para a linguística estrutural, e não ocontrário, veremos a totalidade da atividade humana comouma tentativadeordenar, organizar, tornarprevisível e administrável o espaçode vidados homens, e a linguagem se revela para nós como um dos dispositivosdesenvolvidospara serviraessepropósitogeral:umdispositivo feito sobmedida para a comunicação no sentido mais estrito. Em vez de toda acultura ser um conjunto de particularizações da função comunicativaencarnada na linguagem, a linguagem transforma-se num dos muitosinstrumentos do esforço generalizado de ordenar, elaborado apenas pelacultura como um todo. A abordagem sociológica da linguagem e suasfunções não é alheia às intenções originais do próprio Saussure, pelomenos de acordo com alguns de seus seguidores – emprimeiro lugar, A.Meillet.59

Pareceque,paraevitarmal-entendidoscausadospelaambiguidadedotermo “comunicação”, é melhor falar de “ordenamento” como funçãosuperiorda cultura comoum todo.O efeitodiretodeumato linguístico éordenar de determinada maneira o campo cognitivo do receptor damensagem; como consequência disso, podem resultar outros atos

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comportamentais, os quais organizam o próprio espaço da ação – masessesatos,emboraefeitosda fala,nãopertencempropriamenteàmesmaesferadalinguagem.

Por outro lado, os eventos culturais em sentidomais amplo (dosquaisos atos puramente linguísticos podem ser uma parte) só são realizadosquandoseatingeoordenamentoparticular.Acerimôniainstitucionalizada,emtermosculturais,dedirigir-seaumapessoaecumprimentá-laorganizaoespaçocomportamentalparaa interaçãoquese segue–assinalandoospadrões de conduta apropriados e estimulando os participantes aescolherem esses padrões em vez de outros. Cada participante estáconsciente do fato de que é provável que o parceiro escolha padrõesparticulares, e esse conhecimento possibilita-lhe planejar suas própriasaçõesemanipularasituaçãocomoumtodonoarcabouçodasopçõesquelhesãooferecidas.

A maneira sociocultural especí ica de ordenar por limitação estácorrelacionada60aumacaracterística fundamentaldacondiçãohumana:ovínculoentreaposiçãodoindivíduonogrupoeseuequipamentobiológico,“natural”, é mediado. Isso signi ica que o status “social” de um indivíduonão sedetermina, de formanãoambígua, por seus atributosnaturais emgeral, e em particular por sua bravura e seu poder ísicos. O querepresenta, por sua vez, que os índices de qualidade de vida de umindivíduo, herdados ou desenvolvidos, mas sempre biológicos, noarcabouço danatureza, tornam-sesocialmente irrelevantes, quando nãoilusórios. Músculos da cauda desenvolvidos decerto lhe garantiriam umacondiçãode respeito se ele fossemembrodeum rebanhode alcesoudeumbandodepássaros.Contudo,sãoprofundamente ilusórioscomosinaisdaposiçãodeumindivíduonumasociedadehumana.

Amediaçãoteveiníciocomaproduçãodeferramentas.Desdeentão,osseres humanos cercaram-se de artefatos que não são encontrados emcondiçõesnaturais,produtosdesuaatividadedeprojetar.Umavezcriadose apropriados, esses artefatos destruíram a homologia anterior entreordem natural e social,mudando inteiramente a capacidade de ação dosindivíduos e dando vida a um novo conjunto de oportunidades eprobabilidades ambientais. Portanto, um decisivo valor adaptativo foiconferido à regulação (assim como à orientação) da rede de relaçõesespeci icamente sociais (que neste contexto signi ica, simpli icando, “nãonaturais”).61

Essas duas exigências da condição especi icamente humana –

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ordenamento e orientação –, em geral, são subsumidas a dois tópicosdistintos: estrutura social e cultura. 62 Ainda está por ser escrito o estudohistórico das circunstâncias que levaram à petri icação das duas facesinseparáveisdamesmamoedaemdois arcabouços conceituais,por longotempodesconectados.Quaisquerquesejamasrazões,contudo,umesforçocapaz de consumir um volume desproporcional de tempo foi investidopelos estudiosos na resolução daquilo que, diante de um exame maisminucioso, parece um problema enganoso e arti icial. De acordo com aconhecida tendência humana a hipostatizar distinções puramenteepistemológicas,osdoisconceitosanalíticoscunhadospara“descrever”osdois aspectos indivisíveis da atividade humana de ordenamento foramtomadoscomodoisseresdistintosemtermosontológicos.

Ofatobásicoapartirdoqualnospropusemoscomeçaré:substituirumambiente natural por outro arti icial equivale à substituição da ordemnatural por uma ordem arti icial (não natural, criada pela atividadehumana).Anoçãodeordeménivelada,eoníveldeordenamentosemedepelo grau de previsibilidade, ou seja, pela discrepância entre o índice deprobabilidade dos eventos admitidos pelo sistema e o daqueles que osistema tenta eliminar. Em outras palavras, ordenar signi ica dividir ouniverso de eventos abstratamente possíveis em dois subconjuntos:aqueles cuja ocorrência émuito provável e os improváveis de acontecer.Ordenardissipauma incerteza até então inexistentequanto ao cursodoseventos esperados. Isso só pode ser realizado pela seleção e escolha deuma quantidade limitada de opções “legalizadas” a partir de umavariedade ilimitada de sequências. A compreensão da forma como seatinge o ordenamento de um sistema encontra-se nas clássicas, emboraesquecidas, observações de Franz Boas sobre o vínculo íntimo entre ossigni icados estatístico e moral da “norma” no processo de geração emanutençãodaordem:

Osimples fatodeesseshábitosseremcostumeiros,enquantooutrosnãosão,érazãosu icientepara eliminar os que não são costumeiros. … A ideia de propriedade surge simplesmente dacontinuidade e da repetição automática desses atos, o que produz a noção de que maneirascontráriasaocostumesãoincomunse,portanto,impróprias.Pode-seobservaremrelaçãoaissoqueosmausmodossempresãoacompanhadosporsentimentosbastanteintensosdedesprazer;e a razão psicológica desse desagrado é que as ações em pauta são contrárias àquelas que setornaramhabituais.63

Voltemosnossa atençãopara umaspecto: Boas nãodistingue entre asfaculdadesdoestabelecimentodaordemeasdaorientaçãonaordem,sem

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dúvidapresumindo,demodotácito,que,dealgumaforma,nósapreciamoseavaliamospositivamenteohabitualeoesperável, aomesmo tempoquedesprezamos e rejeitamos o incomum e o imprevisto (conjecturacorroborada pelos psicólogos); e supondo que essa singular capacidadehumana explica tanto a necessidade de ordem quanto a e iciência dafunção orientadora da cultura. Um só veículo é su iciente para atingirambos os ins, já que: (a) ordenar (estruturar) signi ica tornar o setorordenadosignificativo,istoé,chegaraumasituaçãoemquealgunseventosconcretosemgeralseguemumacondiçãoparticular;(b)algunsseresparaosquaisosetorésigni icativosabemquetaiseventos,defato,seguemessacondição. Em outras palavras, o setor é signi icativo para aqueles diantedos quais ele tem signi icação se, e apenas se, eles possuem algumainformaçãosobreastendênciasdinâmicasdessesetor.Adivergênciaentreainformaçãodefatonecessáriaparadeterminarcompletamenteosetorea quantidade de informação de que se precisaria caso o setor fosse“desorganizado”medeograudesua“significação”.

Chegamosatéaqui semdistinguir conceitualmenteosdois aspectosdoesforçohumanodeordenação:introduzirsigni icadonumuniversoquedeoutra forma estaria desprovido de sentido e fornecer-lhe os índicescapazesdeassinalarerevelaressesigni icadoàquelesquepodemler.Aoque tudo indica, ambos oslados dessa dupla empreitada podem serdescritos e compreendidos num único arcabouço analítico. Surge então oproblema de saber se cabe introduzir algum outro arcabouço dereferência ou conceitual, além daquele necessário à análise da própriaatividadeordenadora, a imdeexplicara relaçãoentreestrutura social ecultura.A sistemáticadomundoemqueviveméde tal forma importantepara os seres humanos que parece justi icado atribuir-lhe um valorautotélico. Di icilmente seria necessário (se é que não seria redundante)buscaroutraexplicaçãoparaessaexigênciaapontandoparaumpropósitoaoqual“tornaromundosignificativo”supostamentesirva.

Por conseguinte, parece que a lógica da cultura é a lógica do sistemaautorregulador e não a do código, nem a da gramática generativa dalinguagem–estaúltimaéumcasopeculiardaanterior,enãocontrário.Aconclusãomaisimportantequesesegueé:sósejusti icaextrapolar(paraas esferas não linguísticas da cultura) as características mais gerais dalinguagem,exatamenteaquelasquetipi icamainteraçãolinguísticaemsuacapacidade como exemplo de uma classe mais inclusiva de sistemasautorreguladores. Seria melhor, portanto, buscar inspiração diretamente

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na teoriadossistemas. Issonãosigni ica, contudo,quedeveríamosdeixarde nos apropriar das impressionantes realizações da análise linguísticasobre a natureza do signi icante, mas representa que, embora nospermitindo a inspiração nas realizações da linguística, devemos estarconscientes de que seu poder de prova não émaior que o das analogiasemgeral.

4)Emseuusocomum,o termo “signo”querdizerapenasaliquid statproaliquo(“algoqueestánolugardeoutracoisa”),eaatençãodosestudiososdo“signi icado”tradicionalmentesevoltouparaascondiçõessobasquaisalgo“representa”outracoisa.Encerrando–àluzdateoriadoaprendizado– a longa linha de desenvolvimento das interpretações behavioristas dosigno (que teve início comWatson e passou pelas obras clássicas de C.K.Ogden e I.A. Richards e CharlesMorris), Charles E. Osgood de iniu-o, em1952, como algo que “desenvolve num organismouma reação demediação, sendo esta (a) uma parte fracionada do comportamento totalinspiradopeloobjetoe(b)produtoradeumaautoestimulaçãodistintaquefaz a intermediação das respostas as quais não ocorreriam sem a préviaassociaçãodospadrõesnãoobjetaiseobjetaisdeestimulação”. 64Assim,daperspectivabehaviorista,resolveroproblemadosigni icadoémostrarqueum “não objeto”, por sua associação com “o objeto”, evoca reaçõessemelhantesàsquesãoestimuladaspeloobjeto.

Paraopsicólogoqueumbehavioristachamariade“mentalista”,“quererdizer” signi ica “transmitir para”, o que difere substancialmente dade iniçãobehavioristanos termos empregados,mas continua apertenceraoarcabouçodaúnicaquestãocomaqualqualquerpsicólogosepreocupa:exatamenteoqueéumsignoparaalguémparaquemelejáéousetornaum signo? Como vimos, para um sociólogo ou para um “culturalista”, aprincipalquestãoéoutra:comoesse“algo”adquireumpodernãonatural,não intrínseco,designi icaroutracoisae,assim,dedesempenharopapeldesigno?Éporissoque–tecnicamente–oproblemadossócio-logosedosculturo-logos é muito próximo daquele enfrentado pelos linguistasestruturais que tentam resolver a questão das condições a serempreenchidas por um “não objeto”, não para evocar reações “naturais”quando se trata de um “objeto” concreto, mas para ser capaz de evocaralgumaresposta,sejaelaqualfor.

Algunslinguistaschegaramapontodeestabelecerumadistinçãoentredois tipos diferentes de informação em tese subjacentes a essas duas

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questões. Assim, de acordo comBerzilMalmberg, pode-se dizer que umamensagem contém informação num duplo sentido.65 Ela tem seu“signi icado”, que é a interpretação popular tradicional do conceito; amensagem “nos dá informação sobre alguma coisa”. Mas também podeimplicar o quepodemos chamar aqui deinformaçãodistintiva, ou seja, ascaracterísticasparticularesquetornampossívelparaoreceptoridenti icaros signos – ou mais exatamente seu nível de expressão, pois essainformaçãonãosupõenecessariamenteacompreensãodamensagem.

O segredo de dar signi icado, transmitir a informação, e assim pordiante, está, em primeiro lugar, nas relações entre os próprios signos-corpos(relaçõessintáticas,segundoaclássicatipologiatríplicedeCharlesMorris). V.A. Zvegintsev considera adequado até mesmo de inir alinguagem,osistemanaturaldesignosmaisdesenvolvidoeespecializado,pelas qualidades das peculiares relações intersignos. Graças a essasrelações a linguagem desempenha o papel de um “instrumento dedistinção, um sistema de classi icação que aparece no curso da atividadehumanadafala.…Aodissecarocontinuumpercebidoesentidodomundoem unidades distintas, a linguagem fornece aos homens signi icados quelhespossibilitamcomunicar-sepormeiodafala”.66

Aquichegamosàprimeiracaracterísticaimportantedossignos:elessãodistintos, diversos,diferentesentresi,eserdiferenteéaprópriacondiçãopara desempenhar o papel de signos, para que sejam percebidos comosignos, para “querer dizer” e “transmitir a”. Torna-se claro, nessemomento, como pode ser ilusório limitar a discussão dos signos à suarelaçãocomoobjetosigni icado.Nadasepodeaprenderdanaturezadossignos estudando-se a relação entre um único signo e um único objetosigni icado. Sem dúvida a diversidade e a diferenciação dos signos, queparecem constituir seu primeiro traço distintivo, não podem serdescobertas no arcabouço de uma correspondência do tipo “um únicosigno – um único objeto”. Para que essa correspondência chegue a serpossível, os signos devem, em primeiro lugar, estabelecer determinadasrelaçõesentresi.

RomanJakobsona irmarepetidasvezesquefoiCharlesS.Peircequemdescobriu essas condições iniciais de qualquer fenômeno signi icante, ouseja,significativo.Foielequemdecidiuque,

parasercompreendido,osigno–emparticularosigno linguístico–exigenãoapenasquedoisprotagonistasparticipemdoatodaparole; cabe, alémdisso, haveruminterpretante.…A funçãodesseinterpretanteépreenchidaporumoutrosigno,ouumgrupodesignosquesãoatribuídos,deformaconjunta,aosignoemquestão,ouquepoderiamsersubstituídosporele.67

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TípicadasapresentaçõesmaisrecentesdesseproblemaéaformulaçãobastantesimplesdeA.J.Greimas:“Asigni icaçãopressupõeaexistênciadarelação:o surgimentoda relaçãoentreos termoséa condiçãonecessáriada signi icação. … É no plano das estruturas que cumpre procurar asunidades signi icativas elementares, e não no plano dos elementos.” 68André Martinet e seus discípulos são até mais explícitos e precisos: “Ainformaçãonãoédadapelaprópriamensagem,maspor sua relaçãocomasmensagensàsquaiselaseopõe.”69

As perspicazes conjecturas de Peirce, no curso do tempo, foramreforçadasecorroboradaspelamodernateoriadainformaçãoetornaram-se as bases inabaláveis da compreensão contemporânea dos signos e dafunção signi icante. Considerado em si mesmo, um signo não temsigni icadoalgum;oquetemsigni icadoéumadiferençaentresignosquepoderiamserusadosalternativamentenomesmolugar.Portanto,qualquerinformação é e pode ser transmitida pela presença ou ausência de umsignoparticular,nãopelasqualidades imanentesdosignoemsi. Isso,porsua vez, signi ica que os atributosmais importantes e de inidores de umsignosãoexatamenteaquelesqueodiscriminamdesignosalternativos,eessacapacidadediscriminatóriaéaúnica coisaquecontana transmissãode informações – ou seja, na transformação do caos num sistema designificação,ou,emtermosmaisgerais,nareduçãodoníveldeincerteza.

Ora, se a cultura humana é um sistemade signi icação (e deve ser, seuma de suas funções universalmente admitidas é ordenar o ambientehumanoepadronizaras relaçõesentreoshomens),oquesea irmouatéagorasobreanaturezadosigni icanteé relevantedemaisnestecontexto.Isso quer dizer que tentar estabelecer o signi icado de um item culturalanalisando-o isoladamente,emsimesmo,àsvezesé irrelevantee sempreincompletoeparcial.

Maséexatamenteisso,desdeMalinowski,oquefazemosfuncionalistas.Oueles tentam, tal como fezopróprioMalinowski, explicaros fenômenosculturaisrelacionando-osàsnecessidadesindividuaisqueemhipóteseelessatisfazem – a esse hábito,George Balandier com propriedade retorquiuque “o lugar que Malinowski concede às necessidades, quali icadas de‘fundamentais’,pode levaraqueseencontreaexplicaçãodos fenômenossociaispormeiodeumprocedimento(bastantealeatórioemuitosuspeitodo ponto de vista cientí ico) de redução da ordem sociocultural à ordempsicofisiológica”,70oquede fatoocorre;ou–destavezsegundoatradiçãodurkheimiana–elaboramumconceitoantropomór icoda“necessidadedo

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sistema”a imdedeclararumafunçãorazoávelparacadapadrãoculturalsingular. Ambas as abordagens contradizem o imperativo metodológicopara relacionar signi icados a oposições entre signos e não a cada signotomadoemseparado.Osigni icadodeumsignonãosetornatransparentenocontextodealgumasentidadesnãosemióticas,masnodeoutrossignoscomosquaisaquelequeestásobanáliseserelacionadeformasistemática.

Tendoconcentradonossaatençãonasdiferençasentre itensepadrõesculturais em seu papel semiótico (de transmissão de informação), nãodeveríamos, contudo, concluir que toda diferença de formato ísico dositens esteja necessariamente carregada de signi icado. Signi icantes sãoapenasasdiferençasqueexistementreitensalternativos,ouseja,aquelesquepodemsubstituirunsaosoutrosnamesmasituação,nomesmo lugarnacorrentedasinteraçõeshumanas.

Aessacategoriaimportanteemtermossemióticospertencemdiferentespadrõescomportamentaisempregadosporduaspessoasaosedirigirumaà outra, por trajes sociais e informais, por minissaias e saias “simples”,pelasportascomesemoavisode“Éproibidaaentrada”,oudoisladosdamesma porta com esse aviso em apenas num deles. Trata-se de itens“paradigmaticamente opostos”, ou seja, substituíveis na mesma seção dacorrentecomportamental.Semprequedois itensculturaissãoopostosemtermos paradigmáticos, podemos, inversamente, suspeitar que elestransmiteminformaçõessobrealgumarealidadenãosemiótica.Antesquequalquer dos dois itens paradigmaticamente opostos fosse empregado, asituação era incerta, pois cada um deles tinha, até certo ponto,possibilidadedeaparecer;depoisqueumdelesapareceu,emvezdooutro,aincertezafoireduzida,eassimseatingiuaordem.

SegundoaconhecidatipologiadeN.S.Trubetzkoy,71osdoismembrosoutermos de uma oposição signi icativa podem diferir entre si de trêsmaneiras alternativas: cada um pode possuir, além da parte comum aambos,tambémumelementoquenãoaparecenooutro.SãoasäquipollentOppositionen(“oposiçõesequipolentes”,ou“equitativas”);oucadamembrotem a mesma qualidade, porém em graus diferentes – são as graduelleOppositionen (“oposiçõesgraduais”); ehá tambémuma terceira categoria,chamada “privativa”: “São oposições aquelas em que um dos membrosserá assinalado por umamarca e o outro pela ausência damarca.” Essetipo de oposição, em que os membros são correspondentemente“merkmaltragend”e“merkmallos”(Trubetzkoy),“marcados”e“semmarca”(“A linguagempode se contentar comaoposiçãodequalquer comnada”,

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segundo Jakobson72), “intensivos” e “extensivos” (L. Hjelmslev), emboraestatisticamentemenosfrequentequeaoposiçãoequipolente,édotadodealgumas características particulares que devem concentrar a atenção dequalquerestudiosodacultura.

Amaisimportanteconsisteno“duplosigni icado”dotermosemmarca:ele “representa” toda a categoria ouumapartedela – a que icoudepoisque o termo marcado “eliminou” o outro. Assim, o termo sem marca éindicativodecertacategoriadeentidades,masnadadizsobreapresençaou ausência de determinado traço cujo aparecimento é signi icado pelotermomarcado(éneutroemrelaçãoaessetraço). JosephH.Greenbergétão fascinadocoma “naturezaonipresentenopensamentohumanodessatendência a considerar sem marca um dos termos de uma categoriaposicional, de maneira que ele represente toda a categoria ou, parexcellence,otermoopositivoàcategoriamarcada”, 73quechegouadeclarara oposição privativa como uma das mais pertinentes “universais dalinguagem”.

Há razões para presumir que a oposição “marcado-semmarca”,muitomais uma forma geral da atividade humana de ordenamento que umarti ício linguístico especí ico, desempenha um papel crucial nofuncionamento da cultura em geral e de sua dinâmica em particular. Apropósito,parecequeessetipopeculiardeoposiçãofezcomquegeraçõesdeantropólogosnegligenciassemfunçõesdistintivasdeentidadesculturaise os induziu a se concentrar na análise de itens singulares. Isso ocorreuporque, por sua própria natureza, a categoria sem marca só revela seucaráterquandodeliberadamenteconfrontadacomumacategoriamarcada.Emgeral, contudo, não a percebemos em termosdedistinção; ela denotaum estado de coisas “normal”, universal, uma “norma” no sentidoestatístico, cuja própria prevalência inspira o pressuposto tácito de quedeve haver algumas “necessidades humanas gerais” que tornaramdesejadaeinevitáveldeterminadacategoriasemmarca.

A falta de marca é um cenário, não uma característica distintiva.Tínhamosumnome especial para “minissaias”,mas não para o resto das“apenassaias”;estávamosprontosaadmitirqueasminissaias,dealgumaforma, distinguiam suas usuárias, que transmitiam uma mensagemespecí ica, eram carregadas de um valor simbólico particular etc. Aomesmo tempo,di icilmenteocorreriaàmaiorpartedaspessoasque,umavez que as minissaias apareceram, o mesmo se pode dizer das “apenassaias”; quanto a estas, continuamos convencidos de que desempenham

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alguma função isiológica (proteger a temperatura do corpo) – e talvezumafunçãovagamentemoral,difundidaeuniversaldemaispara levantarsuspeitas quanto a seu caráter sectário-discriminatório. Levou algumtempo para que as minissaias se tornassem tão comuns e “normais” apontode se transformarnumnovo cenário semioticamente neutro e, porsuaprópria frequência, limítrofeda “normalidade”, paraqueparecessemdesprovidasdequalquercapacidadedistintiva.Assim,estavapreparadooterrenoparaotriunfalsurgimentoda“máxi”.

Num tratado extremamente estimulante escrito por VictorMartynov, 74encontramosaseguintehipótese:seaestruturanucleardeumasentençasemioticamente relevante é SAO (Sujeito-Ação-Objeto), então podemospassardeumasentençaV’paraumasentençaV”modi icandoumdostrêsmembrosdaestrutura.“Modi icadores”sãoosnovossignosacrescentadosa um dos termos polares; “atualizadores” são os acrescentados aoelementocentral.Observemosque tantoos termosmodi icadosquantoosatualizadosrelacionam-seasuasversõesanterioresdamesmaformaqueos signos “marcados” se relacionam aos “sem marca”: S” é o membromarcadodaoposiçãoS”–S’etc.Essaé,naverdade,aúnicaformadecriarnovossignificados;elasemprelevaacortaralgumapartedeumacategoriaantes indiscriminada pela eliminação de uma característica especí ica dedeterminadosubconjuntodeumasériemaisampla.

Algumasvezesossignosmaisantigosabsorvemseusmodi icadoresouatualizadores(quandosãocomfrequênciausadosemconjunto),enquantotransformamseupróprio formato.Esseprocesso foidenominadoporA.V.Isatchenko“condensaçãosemântica”75epareceresponsável,aomenosemparte,pelasdi iculdadescomqueemgeralsedefrontaqualquertentativade encontrar as raízes comuns de signos diversi icados. Ainda assimtendemos a suspeitar que “acrescentar marcas” (modi icadores ouatualizadores) a signos já existentes (= introduzir distinções mais inas,maissutisemaisdiscriminatóriasnumacategoriaantesindivisa)forneceoprincipal caminho, senãooúnico, para a rami icação e o enriquecimentodequalquercódigosemiótico.

Martynov também observou que asmarcas podem ser caracterizadasporsuapeculiar“capacidadedeperambular”dentrodaestruturanuclear:modi icadores podem transformar-se em atualizadores, e vice-versa (ohomemnoescritóriodeverespeitarseuschefes–ohomemdeverespeitarseus chefes no escritório – o homem deve respeitar no escritório seuschefes), o que signi ica que omesmo signi icado “marcado” da relação in

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toto, ou outros semelhantes, pode ser expresso de modo intercambiávelmarcandoosujeitodaação,seuobjetoouopadrãodaaçãoemsi.

Ora, há uma notável homologia entre a estrutura nuclear de umasentença, analisadaporMartynov, e a estruturanuclearda relação social(=relaçãoentrepapéissocialmenteinstitucionalizados),talcomoanalisadapor, digamos, S.F. Nadel. 76 Opadrão comportamental e um papel socialcorrespondente não apenas são intrinsecamente interconectados,mas defato constituem duas maneiras complementares de conceptualizar omesmo processo de interação repetitivo e recorrente. A relação de trocaentre dois indivíduos (ou, mais propriamente, duas categorias deindivíduos) ganha relevo pela troca da de inição social do papel e, aomesmotempo,dopadrãocomportamentaladscrito.Naprática–podemospresumir –, o surgimento de um subpadrão de comportamentomarcado,discriminado, leva,por conseguinte, àdistinção,no interiordopapelmaisamplo,deumanovacategoriamarcadaemaisestrita.Novospapéisnumaestruturasocialrami icadaparecemser institucionalizaçõescategorizadasde uma nova função, mais especializada e especí ica. Os arti íciosoperativos básicos no processo que leva da estrutura nuclear R′ 1A′R′2para a estrutura nuclear R′1A″R″2, mais especí ica, são uma vez mais“modificadores”e“atualizadores”–emsuma,marcadoresemarcados.

5) Um dos axiomas básicos da linguística estrutural é que a forma deexpressão é fundamentalmente arbitrária em relação ao conteúdodenotado. Nos termos propostos por Saussure, o signifiant é “imotivado”pelosignifié. Nem todos os linguistas de peso concordariam com essaa irmação.UmdosprimeirosaprotestarcontraoradicalismodaatitudedeSaussure foiÉmileBenveniste: “Entreo signi icanteeo signi icado,o laçonãoéarbitrário;aocontrário,eleénécessaire.…Emconjunto,osdoisestãoimpressos nomeu espírito; juntos, eles evocamum ao outro em todas ascircunstâncias.”77 Depois, os mesmos argumentos foram expostos porRoman Jakobson. A essência do argumento é o vínculo íntimo entre um“pensamento”ou“ideia”,deumlado,eumgrupodefonemaspormeiodoqual essa ideia é expressa e transmitida, de outro. A emissão de certossons evoca, caso decifrada da forma correta, determinada ideia; e essaideianãopodeexistirsenãoemsuaformaexpressivaaceita;suaexistênciaémediadaerealizadapelosignifiant.

Apesardacontrovérsiaqueotemaprovocanocampodalinguística,nãohádúvidadeque, em fenômenos socioculturais,os “signos culturais” e as

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relações sociais correspondentes são, em muitos casos, reciprocamentemotivados,enãoarbitráriosmutuamente.Suasrelaçõesrecíprocaspodem,claro, assumir todas as tonalidades do espectro, desde o acidental emtermosgenéticos ao interligadoaopontoda identidade.Masa frequênciadas relações próximas ao segundo polo do continuum provocouinumeráveisultrapassagensdasfronteirasanalíticasentreasociologiaea“culturologia”(qualquerquesejaseunomeinstitucionalizado);e–piordetudo – grande volume de esforços desperdiçados em falsos problemas,comodefinirsea“essênciaúltima”dasociedadeéculturalousocial.

Todos os fenômenos da vida humana parecem ser socioculturais nosentido empregado porBenveniste ou Jakobson; a rede de dependênciassociaischamada“estruturasocial”éinimaginávelemqualqueroutraformaque não a cultural, enquanto a maior parte da realidade empírica dacultura sinaliza e traz à luz a ordem social concretizada pelas limitaçõesestabelecidas. O famoso princípio de G. Ungeheuer, “Pelo ‘canal’ luemapenas os veículos do signo”, 78 é irrelevante no caso da comunicação emsentido amplo, que representa a esmagadora maioria dos fenômenossocioculturais.

Ao escolher determinado padrão cultural, criamos no setor dedeterminada ação social a rede de dependências que pode sergeneralizadanummodelototaldeestruturasocial.Nãoépossívelchegaraqualquer coisa generalizável nesse conceito a não ser da maneirapossibilitadapelosrecursosqueospadrõesculturaistornamdisponíveis.Aestrutura social existe mediante o processo sempre contínuo da práxissocial;eessetipoparticulardeexistênciaépropiciadopelofatodeapráxisserpadronizadaporumaquantidadelimitadademodelosculturais.

Se me pedissem que expressasse o “projeto estruturalista” numapequenafrase,euapontariaa intençãodesuperaraconhecidadualidadeda análise sociológica, evitando ao mesmo tempo a tentação de cair emumadesuasduasalternativasextremistas.Houvetentativasdeadaptarométodo estruturalista aos idiomas espiritualistas tradicionais com oarti ício singulardepostularodomíniodo “signi icado”mentalisticamenteinterpretado como o campo semântico dos signos culturais. É minhaconvicção que a promessa estruturalista só pode passar da possibilidadepara a realidade caso se compreenda que o papel desempenhado pelocamposemióticonaanálise linguísticaéassumido,nomundodasrelaçõeshumanas,pelaestruturasocial.

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Culturacomopráxis

Os antropólogos britânicos, por motivos descritos no Capítulo 1, veempouca utilidade para o conceito de cultura. Ao contrário de seus colegasamericanos,queconsideraramútildescreveroque ouviam em termosdecultura,ageraçãodeRadcliffeBrownouEvans-Pritchardrelatoucomêxitoo que viu em termos de estrutura social. O uso conceitual britânico foiresumido de maneira adequada por Raymond Firth: estrutura social éaquela parte do alinhamento social – da mesma forma que das relaçõessociais – “que parece ser de fundamental importância para ocomportamento dos membros da sociedade, de modo que, se essasrelações não operassem, não se poderia a irmar que a sociedade existedaquelaforma”.1

Muito pode ser dito sobre a utilidade heurística de uma de inição tãoobviamenteintuitiva,emquetermoscruciaiscontinuamnãoespeci icados,eolimiarcrítico,subdeterminado;masaintençãoessencial icabemclara,e a de inição de fato não é ambígua se considerada pelo que realmenterepresenta: a placa de orientação no cruzamento vital que leva a umateoriadaintegraçãosocial.

A identidade de uma sociedade tem raízes, em última instância, numaredemaisoumenosinvariantederelaçõessociais;anatureza“societal”dasociedade consiste acima de tudo numateia de interdependênciasdesenvolvidaesustentadapelaenainteraçãohumana.Asrelaçõessociaissão elas próprias o “núcleo duro” da interação concreta (tal como aestruturasocialéonúcleodurodaorganizaçãosocial–da“formacomoascoisassãofeitasnacomunidadeaolongodotempo”).2Elassãooesqueletopermanente,duradouro,poucosujeitoamudanças,dapráticasocietal.Sãopadrões,ofulcrodeestabilidadenumcasulodeeventosflutuantes.

Por um tempo considerável, a maioria dos antropólogos britânicosparecia muito satisfeita com esse compromisso teórico centrista; poucas

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vezes indagaram, se é que chegaram a tanto, como esses padrõessurgiram,ouqualaverdadeiranaturezadessespadrões,oqueosmantém“em ação”. A noção de estrutura sem dúvida era bastante próxima, dopontodevistasemântico,daintuiçãoacercadecoesãoeequilíbrio.Evans-Pritchard tornou essa associação explícita; para ele, o próprio uso dapalavra “estrutura” “implica que existe algum tipo de coerência entre aspartes, pelo menos a ponto de se evitarem a contradição e o con lito, erepresenta que ela tem maior durabilidade que a maioria das coisastransitóriasdaexistênciahumana”.3

Uma vez mais, porém, pouco se disse a respeito da origem dessacoerência edos fatores responsáveispor suaperpetuação. Se aperguntafosse feita de maneira sistemática, a resposta talvez se situasse a poucadistância da “ação societal” durkheimiana, seja sob a forma dementalitécollective, seja – menos metaforicamente – de ritos, usos, socializaçãotradicionalizada etc. O aspecto importante é que, a despeito dos fatoresassinalados,elesseriam,quasesemexceção,gravadosnocerne“material”das interaçõeshumanasempiricamenteobserváveis; abuscade causaseforças motoras só com alguma di iculdade levaria os exploradores paraalémdodomíniodasinstituições.

Mas, desde o início, esse “além” tem sido o território nativo daantropologia norte-americana. Mesmo que os antropólogos de tradiçãoamericana debatam explicitamente o conceito de estrutura social (emcomparação com os britânicos, poucos o fazem), eles se apressam emenfatizar que o veem de maneira diferente. Para Red ield, a estruturasocial“podeserencaradacomoumsistemaético”.Segundoele,eramelhorenxergar a estrutura social “nem tanto como tessitura de pessoas –conectadaspelos iosdesuateiasocial,asrelaçõessociais–,mascomoosestados mentais das pessoas, característicos e inter-relacionados, comrespeitoàcondutadehomensemrelaçãoaoshomens”.4

Aestruturasocialfoiassimreduzidaaumconjuntodepreceitosmorais,ea integraçãodenormaseexpectativas foisubstituídapelaquestãomaisampla (ou, talvez, apenasdiferente)da integraçãoda sociedadecomoumtodo. A.L. Kroeber desenvolveu a dicotomia profundidade-super ície doethos-eidos como correspondente à relação estrutura social-organizaçãosocial,deRadcliffe-Brown:peloquenosensinaram,oeidosdeumacultura“seria sua aparência, seus fenômenos, tudo sobre ela que se possadescreverdeformaexplícita”;arealidadeoculta,maisprofunda,quedáàsuper ície fenomenal sua consistência e regularidade, é o ethos, “a

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qualidade total” da cultura que, a um só tempo, resume “aquilo queconstituiria a disposição ou o caráter de um indivíduo” e “o sistema deideais e valores que dominama cultura, e portanto tendema controlar otipo de comportamento de seus integrantes”. Em sua existência um tantoetérea,semelhanteàdeumespírito,oethoséaqualidade“queatravessatoda a cultura – como um sabor –, em contraste com o agregado deconstituintes distinguíveis, o eidos, que consistem em sua aparênciaformal”.5Afunçãoúltimadomundodos“é” icaassimtransportadaparaouniverso dos “devia”, e o mistério da aparente coerência do planoobservável, fenomenal, encontra sua explicação conclusiva no campo dasnormaseavaliaçõesmorais.Aemergênciaeacontinuidadedeumsistemasocial tornam-se acima de tudo um problema de intercâmbio mental,educação,doutrinaçãomoral,formaçãodepersonalidade.

A controvérsia entre antropólogos britânicos e americanos tem umsigni icadomuitomaior do que poderia sugerir a natureza transitória dochoque entre dois cursos genéticos separados por acaso. Ela re lete eresumede alguma formaumdebatemuito antigo, atéhojenão resolvido,sobre a natureza da integração social, que não deixa de fora quasenenhuma das grandes escolas das ciências sociais. Essa disputa, por suavez, parece representar apenas uma das muitas facetas do dilemaprofundamente arraigado nas experiências humanasmais básicas e que,portanto,assombraatotalidadedaautorre lexãohumana,comso isticadossistemas ilosó icosnumdospolos,eaapreensãorealistadavidacotidiananooutro.Parece,portanto,nãoserdemuitaajudatravaressacontrovérsianos limites estritos do debate original. Para que se apreenda demaneiraplenasua importância,adisputadeveservistadeumaperspectivamuitomais ampla, baseada, em última análise, na percepção humana – emessênciaintuitiva,maspersistente–doprocessoexistencial.

A irredutíveldualidadedaexistênciahumana talvezsejaaexperiênciamais generalizada, in initas vezes repetida, de qualquer indivíduo – pelomenos de qualquer indivíduo imerso num contexto social pluralista,heterogêneo,repletodechoquesentredesejoseadurarealidade.Amaiorpartedahistóriadafilosofiapareceumesforçosempreinconcluso,emboramuitas vezes otimista, de explicar essa dualidade, na maioria dos casosreduzindo-a a um só princípio (no sentido genético ou lógico,epistemológicoouprático).

A “dualidade” é uma das impressões que “recebemos” do universo darealidade,queparecemrecairemduasdivisõesmuitodistintas,diferindo

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quantoaumasériededimensõesfundamentais.Parecempossuirdistintas“substâncias”, “modos de existência” especí icos; transmitem informaçõessobre si mesmas, abrem-se ao insight humano por diferentes canais depercepção;e,oqueémaisimportante,parecemtolerareadmitirgrausdemanipulação humana diferenciados, demonstrando níveis diversos demaleabilidadediantedavontadedoshomens.

A experiência, em sua essência, é intuitiva, pré-teórica, inexprimívelnumdiscursoarticulado,amenosqueseguidadeconceitosexplicativos.Jáque cada conjunto só continua signi icativo no campo semântico de umuniversodiscursivoescolhido,equenenhumuniversodiscursivocontématotalidade da experiência humana, todas as articulações conhecidas eprováveisdaexperiênciabásicasedestinamapermanecerparciais.Cadaarticulação “projeta” a certeza intuitivamente acessível num plano dereferência distinto; em função de sua raiz comum, todos os planospertencemaumasófamília–mascrescemdepressa,parasetransformarem entidades autônomas a ponto de desenvolver sua própria lógicaargumentativa,supostamentedesconectada.

Assim, estamos diante de domínios da discussão ilosó ica ou cientí icaem aparência soberanos, adequadamente denominados questões deespíritoematéria,menteecorpo,liberdadeedeterminação,normaefato,subjetivo e objetivo. Não importa o nível de so isticação e sutilezaintelectual atingido pelas intricadas de inições atribuídas às respectivasdistinções, elas têm uma linhagem comum, originada numa experiênciaprimitiva,emboraemsimesmainarticulada.

Ao que parece, foi William James quem mais se aproximou de umaapreensão abrangente da totalidade dessa divisãomultifacetada: nós nospercebemos comopessoas, a irmouele, “emparte conhecidas e emparteconhecedoras, em parte objetos e em parte sujeitos”. 6 Omim e oeu deJames sustentam-se contra o panorama de argumentos tão dísparesquanto os que se manifestaram nos estudos existencialistas de Jaspers,Heidegger ou Sartre; nas pesquisas pseudofenomenológicas sobre anaturezadavidasocialrealizadasporMerleau-PontyouporSchutz;ounoarrojo da revolução behaviorista em psicologia – embora apenas osexistencialistas fossem audaciosos o bastante (com resultados não muitoencorajadores) para abandonar o esforço de reduzir a dualidade a umdenominadorcomumunificador.

A tese que pretendo desenvolver neste capítulo é que a controvérsiasobrecultura–estruturasocialpertenceorganicamenteàfamíliadostemas

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originados na experiência básica da natureza dual da condição daexistênciahumana.

Sedesprezarmosasmaisantigasmanifestações ilosó icasdadualidadeexistencial, o moderno tratamento ilosó ico do dilema que dá relevânciaaos problemas práticos das ciências sociais 7 remonta pelo menos aoneokantianismo alemão do im do século XIX. A distinção deWindelbandentre o imanente eo transcendente desempenhou nisso papel crucial edecisivo,contendoinnuceasideiasessenciaisdaVerstehendeSoziologie,daantropologiaculturaledafilosofiafenomenológica,todasposteriores.

Atranscendênciafoide inidaporWindelbandemrelaçãoàexperiênciaimediata, interpretada apenas como um estado de consciência; assim, apenumbrada“transcendência”abarcavaa totalidadedomundoempírico,esóosvalores,os“deves”,as formas ideais,eramdeixadosaoalcancedaacessibilidade imanente. Windelband, contudo, teve o cuidado de nãovoltar ao campo reconhecidamente estéril da querela meta ísica entre“idealismo”e “materialismo”.EleassumiuesseproblemaapartirdeondeDescartesdeixaraaherançadePlatão.Aprópriapresençadoimanenteaolado do transcendente, do empírico, do ísico, era para ele umacaracterística distintiva da forma humana de existência nomundo; seria,portanto, algo por de inição signi icativo, ou seja, próprio da existênciacultural.Aocontráriodosfenômenos ísicos,existindonosentidoimanente,impregnado de signi icado, a vida humana só deve ser apreendida eavaliada se for abordada com um insight também imanente; para serefetiva,ametodologiadacogniçãodosassuntoshumanosdevepermutaranatureza imanente desses assuntos. “O caráter especial da vida écompreendidopormeiodecategoriasquenãoseaplicamaoconhecimentoda realidade ísica. … Essas categorias são signi icado, valor, propósito,desenvolvimento,ideal.…Signi icadoéacategoriaabrangentepormeiodaqualavidasetornacompreensível.”8

A totalidade dos signi icados constitui o domínio do espírito, que nãopertence ao mundo dos fenômenos nem ao universo da psicologiaindividual,enãoseesgotaemnenhumdeles.Oespíritoésupraindividual;ele torna possível o processo de vida humana individual, conjectural,precisamente porque esse processo compartilha o mundo do espírito,mergulha no oceano dos signi icados totalizados no e pelo espírito. Aocontrário da crença de muitos sociólogos, o enigma das “representaçõescoletivas”, longede ter sido inventadoporDurkheim, eraum constituintelegítimoe importantedopensamentoeuropeudaépoca.Nossapercepção

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desuaabsurdaincongruênciaé,mesmoqueinconscientemente,umefeitoposteriordainsistênciapositivistanaidenti icaçãodaexistênciaadmissívelcomaacessibilidadeempírica,sensível,dotipoevento.

Contudo, apresentada a partir dessa perspectiva sobre a modalidadeexistencialdoespírito,aquestãoserádi ícildeexprimir,quantomaisdeseevidenciar, na linguagem de Windelband ou Dilthey. O espírito, emde initivo, não é uma soma de consciências individuais, assim como osigni icadonãoéaopiniãodamaioriadaspessoas.Tampoucoéumailusãometa ísica – se a inexorável ausência de evidências for o traço de inidordasentidadesmeta ísicas;naverdade,eleéacessívelaoconhecimentoeàcompreensão humanos, embora – como diria Rickert e aperfeiçoariaHusserl–pormeiodosentimentodeautoevidência,enãopelapercepçãosensorial.

Portanto, não aSeele (“alma”), mas oGeist (espírito) é o verdadeirofulcrodacompreensãodavidaedaprópriacapacidadedeviver.Nãoéa“alma”dooutroquecompreendemosaoapreenderosentidodeumeventosocial, já que a alma do outro, quando tratada como fenômeno empírico,nãoéquantitativamentediferentedeoutrosfenômenosempíricose,assim,deve permanecer inacessível ao nosso entendimento. O que de fatocompreendemos é apenas o componente do “espírito” penetrando as“almas”dosindivíduos,jáquenósmesmostambémparticipamosdele,ejáque somente o objetivo, o universal, o invariante é passível decompreensão. Sem esquecer sua soberania, sem ser solúvel namultiplicidade de “almas” individuais, o “espírito” subjaz à existência detoda“alma”.MaisumavezcitandoDilthey:

Cadaexpressãosingulardavidarepresentaumacaracterísticacomumnodomíniodessamenteobjetiva.Cadapalavra,cadasentença,cadagestooufórmulaeducada,cadapeçadearteecadafeito histórico é inteligível porque as pessoas que se expressam por meio deles e as que oscompreendemtêmalgoemcomum.

Assim,

a ordem de comportamento estabelecida no interior de uma cultura torna possível quecumprimentosoureverênciassigni iquem,porsuasnuances,certaatitudementalemrelaçãoaoutraspessoas,eassimsejamentendidos.…Aexpressãodavidaqueoindivíduoapreende,emgeral,nãoéapenasumaexpressãoisolada,masestáplenadoconhecimentodaquiloqueuneedeumarelaçãocomoconteúdomental.9

Asatitudesmentaisdaspessoascomoindivíduos,intercomunicáveisemfunçãode seuvínculo como território comumdoespírito, fornecemoelo

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mediadorentreodomíniodossigni icadoseainteraçãohumanaconcreta,assimcomosuacompreensão.Ovocabuláriopodeserdiferente;as ideias,porém,guardamsemelhançamarcantecomoethosdeKroebere,demodomais geral, com a forma pela qual o conceito de cultura é usualmenteabordadopelaantropologiaamericana.

Na verdade, com ou sem a ideia bastante incômoda de “espírito”, aimagemdaculturacomoentidadeirredutívelaosfenômenospsicológicos–embora tornando-os possíveis em sua capacidade comunicativa,intersubjetiva –, em suma, o conceito alemão deGeist, está ampla eirmemente entrincheirada emmuitas tradições da ciência social. Foi emseu nome que Kroeber se opôs com tenacidade ao reducionismopsicológico na ciência da cultura, enfatizando repetidas vezes que “milindivíduos não fazemuma sociedade”, e ridicularizando as a irmações deque“civilizaçãoéapenasumagregadodeatividadespsíquicas,enãoumaentidade para além delas”; e que, em consequência, “o social pode sertotalmentedissolvidonomental”.10

Foi Kroeber quem deu aos incansáveis esforços para desembaraçar ocorpo da cultura de sua âncora individual, psíquica, o nome de natureza“superorgânica”dacultura.Aproposta foiapoiadacomentusiasmo,entremuitos outros, por Leslie A.White, aparentemente parafraseando o temapersistente de Durkheim: “A cultura pode ser considerada, do ponto devistadaanálisee interpretaçãocientí icas,algosuigeneris,umaclassedeeventos e processos que se comporta nos termos de seus própriosprincípioseleis,eque,porconseguinte,sópodeserexplicadaemrelaçãoaseuspróprios elementoseprocessos.” 11 Assim, a cultura é uma realidadeem si mesma, diferente tanto dos constituintes “duros”, materiais, domundohumanoquantodeseusdados“leves”,mentais,introspectivos.Masqual a condiçãoexistencialdessa realidadepeculiar,postuladapor tantosestudiosos da sociedade? As respostas a essa questão insistente recaememtrêscategoriasamplas.

Aprimeiraéotãodiscutidotourdeforce durkheimiano,voltadoparaaredução inequívocae exaustivado cultural ao social. “Umasociedadenãopode criar-se nem recriar-se aomesmo tempo que cria um ideal.” Longede ser a principal fonte dos eventos culturais, o indivíduo humano “nãopoderia ser um ser social, ou seja, não poderia ser um homem, se nãotivesseadquirido”esseideal.12Longedesernova,aideiaremontaaBlaisePascal e Jean-Jacques Rousseau, mas foi Durkheim quem a revestiu detrajesquaseempíricos,abrindocaminhoparaaconjecturaessencialmente

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filosóficanosdomíniosacadêmicosdasociologiaedaantropologia.O que depois se discutiu sob o título de cultura foi apreendido por

Durkheim como o ideal, “algo acrescentado ao real e acima dele”,impingindo-seàsmenteshumanasemvirtudedeseuvínculoíntimocomaprópria sobrevivência da sociedade, isto é, com a natureza humana daexistência do homem. Rendendo-se à pressão damentalité collective eapropriando-sedeseuspreceitos,ossereshumanosvêmaserasociedadee a nela permanecer. Podemos dizer que a cultura foi ampla eexitosamente projetada no plano societal somente porque a sociedadeestava “espremida” no campo da cultura. Em Durkheim, nem sociedadenem cultura são fatos “básicos”, no sentido histórico ou lógico do termo.Elas se fundem numa só, e apenas podem ser descritas em termosrecíprocos.

Os teóricos da cultura e personalidade caminharamno sentido oposto.Tentaram reduzir a totalidade da cultura à totalidade da personalidadehumana. O conceito tradicional de ethos era, para Kardiner, coextensivoaosconstituintesde inidoresdeuma“estruturadapersonalidadebásica”.Essaestruturaéconstantementecriadaeperpetuadaporeventosdetipopróximo aos rituais e cerimônias coletivas de Durkheim. Dessa classecomum, contudo, Kardiner selecionou um subconjunto de itens um tantodiferentes – aqueles a que Freud atribuíra particular relevância namoldagem da personalidade humana. Assim, a atenção se concentra nosprocessosdetreinamentoinfantil,nasformasdegrati icaçãoindividual,nacriação e canalização da frustração. Ao determinar os elementos de seumodelo teórico de cultura, os teóricos da cultura e personalidadeestabeleceram o que é a “caixa-preta” dos psicólogos – o espaçodiretamente inacessível entre estímulos e respostas tangíveis em termosempíricos.

A cultura, tal como a personalidade, é o mecanismo responsável porprocessar os estímulos, transformando-os em padrões comportamentaisadequados.A culturanão se reduzàpluralidadedepsiques individuais–KardinereseuscolegastiveramocuidadodeevitaroqueKroeberde iniucomoarmadilhamortal;umavezmais,nemaculturanemapersonalidadesãofatosbásicos,sejadopontodevistalógico,sejahistórico.Elesfundem-seemumsóesãointeligíveisapenasemtermosrecíprocos.

A terceira é a solução metodológica tentada originalmente por MaxWeber.PoucopodemosaprendernostextosdeWebersobreaverdadeiramodalidadedeexistênciadacultura.OconceitodeGeisteoutrossimilares,

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rescendendo agourentamente a meta ísica, entrariam em choque com aintenção deWeber de estabelecer o status cientí ico da sociologia. Aindaassim, com toda a forte ênfase na “compreensão interpretativa” comoprincipalcaracterísticadistintivadasociologiacientí ica,econcebidacomoo objeto particular da exploração sociológica, Weber dedicou sua obra-prima,Economia e sociedade, a “estabelecer umadiferençaprofunda”, emoposição a Simmel, “entre signi icados subjetivamente pretendidos eobjetivamente válidos”. 13 Mas seu maior afastamento das tendênciasilosó icaspredominantesnaAlemanhade sua época, representadaspelaescola de Heidelberg,consistiu na renúncia total a qualquer interesse namodalidadeexistencialdos“significadosobjetivamenteválidos”.

A diferença resumida na citação de Weber não era mais a oposiçãoentre experiênciamental e espírito, cada qual dotado de um atributo darealidade.AdicotomiadeWeberésustentadacomconsistêncianointeriordocampodametodologia.Elafoigeradapelointeressenaobjetividadedasociologiacomoaciênciada“compreensão”,eWeberestavadeterminadoa resolver as questões pertinentes sem se comprometer com qualquerposiçãoontológicaespecífica.

Aindaassim,abuscadeumasuperestruturadesignificados,inexaurívelporqualquerquantidadedeexperiênciasmentaisaleatórias, singularesevoláteis,avulta,amplaepersistente,nainvestigaçãodeWeber.Situadanaesfera metodológica, ela agora leva a um “tipo puro, teoricamenteconcebido, de signi icado subjetivo atribuído ao atorou atoreshipotéticosnum determinado tipo de ação”, distinto do “signi icado real existente nocaso concreto de um ator particular”. “O signi icado adequado a um tipopuro e cienti icamente formulado de fenômeno comum” é diferente nãoapenas dos signi icados “privados” de fato pretendidos, mas até de suamédia calculada em termos estatísticos, acessível, digamos, por meio depesquisasporamostragem;nãoháumcaminhoque levedadescriçãodesigni icados individuais, subjetivos, à construção dos “tipos ideais” – querepresentam signi icados objetivos de determinadas ações e que servemaossociólogoscomotiposquetêm“oméritodacompreensibilidadeclaraedafaltadeambiguidade”.

Os tipos puros são válidos do ponto de vista objetivomesmo que nãotenham“sidoparteconcretada ‘intenção’conscientedoator”.Otipoidealdeveserconstruído“antesquesejapossívelatéinvestigarcomoaaçãoseproduziuequemotivosadeterminam”.Aprioridadeeasuperioridadedosigni icado objetivo em relação ao subjetivo tornaram-se, portanto, de

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naturezametodológica,masdeformaalgumadeixaramdeserprioridade.Seja qual for a solução procurada e proposta para o tormentoso

problemadacondiçãoexistencialdo“superorgânico”, aideiadeautonomiada cultura (como conceito, a despeito do termo usado para explicá-la)forneceumdospoucospontosdeconcordânciaentreteoriasque,deoutromodo,seriammuitodivergentes.Oquesepresumedeformatácitaéumaautonomiatotalemrelaçãoaosdoismundosexperimentalmenteacessíveis–odosobjetosmateriaiseodamentalidadesubjetiva.

A segunda oposição é enfatizada de modo intenso pelos clássicos dasociologia “orientada para o signi icado”, já que, nesse caso, a ameaça dedissolver o cultural no psicológico é mais evidente. Florian Znaniecki, osociólogo mais veemente em de inir a sociologia como “ciência cultural”,buscou dissociar-se de todos os tipos de reducionismo psicológico. Comuma determinação poucas vezes encontrada na literatura sociológica,Znanieckipromulgouoquevemaserumaacusação inaldainterpretaçãosubjetivadossignificadoscomoobjetodosestudossociológicos:

Adoutrina epistemológica segundo a qual a consciência queum indivíduo temde suaprópriavida mental é o alicerce de todo conhecimento foi desmentida de maneira conclusiva pelodesenvolvimento da pesquisa cientí ica no domínio da cultura – o próprio domínio de que elaextraiamaioriadeseusargumentos.

Noqueserefereaosobjetosdosestudossociológicos,

é totalmente impossível considerar que qualquer um desses dados esteja contido na mentedesses indivíduos, já que as expressões simbólicas e as performances ativas destes últimosfornecemevidências conclusivas de que para cada umdeles apareceu umdado cultural comoalgo que existe de forma independente de sua experiência atual, algo que foi e pode servivenciadoeusadoporoutros, tantoquantoporsimesmo–querexista,quernãonouniversonatural.14

A im de que não reste dúvida para os leitores, Znaniecki resume seuargumento com a proposição inequívoca da “irredutibilidade dos dadosculturaistantoparaarealidadenaturalobjetivaquantoparaosfenômenospsicológicos subjetivos”. 15 Znaniecki talvez seja o sociólogo maisfrequentemente acusado de apresentar uma tendência subjetivista. Osdados culturais desfrutam, sim, de uma existência por direito próprio,embora de um tipo diferente da realidade típica do “universo natural”. Acultura não é apenas intersubjetiva, mas é subjetiva em seu própriosentidoespecífico.

Podemos agora concluir nosso breve resumo das ideias básicas

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subjacentes aos diversos usos do termo “cultura” ou seus análogos.Embora cultura pareça pertencer a uma grande família de conceitosoriginários da parte “interna” da experiência universal da dualidade domundo, é diferente de seus parentes na tentativa de transcender aoposiçãoentreosubjetivoeoobjetivo(elacompartilhaessadistinçãocomo conceito deGeist). Sua persistência no pensamento humano sobre omundodeve-seao fatodesuasraízesestaremencravadasnaexperiênciahumana primeva da subjetividade. Mas ela difere dos outros brotos damesma raizporque está enxertadano troncoquenasceda raiz oposta, odaexperiênciadaobjetividadedura,inexpugnáveleinflexível.

Não importa comosejade inidaedescrita, a esferada cultura sempreseacomodaentreosdoispolosdaexperiênciabásica.Aomesmotempo,éo alicerce objetivo da experiência subjetivamente signi icativa e a“apropriação” subjetiva de um mundo que de outra forma seriadesumanamente estranho. A cultura, tal como a vemos em termosuniversais,operanopontodeencontrodoindivíduohumanocomomundoque ele percebe como real. Ela resiste com teimosia a todas as tentativasde associá-la de modo unilateral a um dos polos do arcabouçoexperimental.

O conceitode culturaé a subjetividadeobjeti icada; éumesforçoparacompreender omodo como uma ação individual é capaz de possuir umavalidadesupraindividual;ecomoarealidadeduraeconsistenteexistepormeio de umamultiplicidade de interações individuais. A ideia de culturaparece encaixar-se no modelo postulado por C. Wright Mills para ainvestigação sociológica centrada na ligação entre biogra ia individual ehistória social.Emsuma,o conceitode cultura,quaisquerque sejamsuaselaboraçõesespecí icas,pertenceà famíliadostermosquerepresentamapráxishumana.

Oconceitodecultura,portanto,transcendeodadoimediato,ingênuo,daexperiência privada – a natureza inclusiva e autossustentável dasubjetividade.16Oníveldeso isticaçãoaqueeleelevaaautopercepçãodacondiçãohumanaéretiradodosoloplanodaingenuidadedesensocomumpeladiferençaquantitativaentreindivíduoecomunidadehumana.ComoI.Mészárosafirmou:

Adiferençamaisimportanteéque,emboraoindivíduoestejainseridoemsuaesferaontológicaedestacadodasformasdadasdeintercâmbiohumanoquefuncionamcomopremissasaxiomáticasdesuaatividadevoltadaparaum im,ahumanidadecomoumtodo–oser“autotranscendente”e “automediador da natureza” – é “autora” de sua própria esfera sociológica. As escalastemporaissãoalgobasicamentediverso.Enquantoasaçõesdoindivíduoestãocircunscritaspor

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seu tempo de vida e, mais ainda, por uma série de fatores limitadores de seu ciclo vital, ahumanidade como um todo transcende essas restrições temporais. Por conseguinte,instrumentos de mensuração muito diferentes tornam-se adequados à avaliação da“potencialidade humana” – termo aplicável, estritamente falando, apenas à humanidade comoumtodoeàavaliaçãodasaçõesdoindivíduolimitado.17

Onde Mészáros emprega “humanidade”, preferiríamos o conceito decomunidade,jáqueaqueleimplicaanoçãodoserhumanocomoumspeciesspecimen,enãocomomembrodeumgrupoquesemantémunidoporumarededecomunicaçãoeintercâmbio.Aideiadecriatividade,deassimilaçãoativadouniverso,deimporaummundocaóticoaestruturareguladoradaaçãohumanainteligente–aideiairrevogavelmenteembutidananoçãodepráxis–sóécompreensívelseencaradacomoumatributodacomunidade,capazdetranscenderaordemnaturalou“naturalizada”edecriarnovasediferentes ordens. Além do mais, a ideia de liberdade, por sua vezassociadaànoçãodecriatividade,adquireumsignificadodiferentequandoconsiderada uma qualidade da comunidade ou quando debatida emtermos da solidariedade humana individual. No primeiro caso, é aliberdade de mudar a condição humana; no segundo, é a liberdade emrelação à coerção e à limitação comunais. A primeira é uma modalidadereal, genuína, da existência humana; a segunda, com muita frequência,emanadadeslocadanostalgiadeumanovaordenaçãohumanadomundo,mais conveniente, colocada no domínio ilusório do individualismo peloimpacto ofuscante de uma sociedade alienada, ossi icada, imóvel. Acomunidade,enãoahumanidade,muitasvezesidenti icadacomaespéciehumana,éportantooveículoeoportadordapráxis.

Ao contrário, contudo, da absolutização da comunidade proposta porDurkheim,apráxis comunal seriaquase impossível seos sereshumanos,comomembrosdaespécie,nãofossemcapazesdeproduzircriativamentecomunidades poderosas. Marx estava consciente dessa verdade, nãoimporta quão equivocadas possam ser as conclusões extraídas de suaênfasenacomunidadecomolócusderradeirodacompreensãodacondiçãohumana.Foiporissoqueeleincluiuasociabilidadeentreosatributosmaisessenciaiseinalienáveisdanaturezahumana.

Em vez de propor a sociabilidade como alternativa à universalidade,comoRichardSchacht sugeriu,18Marx tomouumasériedecaracterísticasuniversais, ancoradas na espécie como precondições da práxis social,sendo a sociabilidade uma das qualidades evidentes. Mais uma vez, aocontrário de Durkheim, para quem tudo que é humano só é possível se

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tiverorigemsocietal,Marxviaasociedadecomoumfatormediadorentreasqualidadeshumanasuniversaiseacondiçãoempíricadeumindivíduohumano. Pode-se mostrar que todo o resto das diferenças signi icativasentreaminoriamarxianaeamaiorpartedasociologiacontemporânea,deinspiraçãodurkheimiana, são inexoravelmentepredeterminadospor essadiscordânciaseminal.

Cada análise do fenômeno da cultura, ao que parece, deve levar emconta essa precondição universal de toda práxis especí ica em termosempíricos.Asqualidadesquetornampossívelavidasocialdevemsertantológica quanto historicamente pré-sociais, assim como a capacidadelinguística é anterior à competência linguística. De vez que toda práxiscultural consiste em impor uma nova ordem, arti icial, à ordem natural,devem-se procurar as faculdades essenciais geradoras de cultura nodomíniodasnormas reguladoras seminaisencravadasnamentehumana.Comoo ordenamento cultural é realizadopela atividadeda signi icação –dividir os fenômenos em classes, distinguindo-os –, a semiótica, ou teoriageral dos signos, fornece o foco para o estudo da metodologia geral dapráxiscultural.

O atoda signi icação é o ato deproduzir signi icado.O signi icado, porsua vez, longe de ser redutível a um tipo de estado mental, subjetivo, étrazidoàluzpelo“atodedestacaraomesmotempo duasmassasamorfas”;naspalavrasdeBarthes,osigni icadoé “umaordemcercadadecaosportodososlados,masessaordemé,emessência,umadivisão”;“signi icadoéacimade tudoumadesignaçãode formatos”. 19 Segundo Luis J. Prieto, eleemana “graças às correspondências entre as divisões de umuniverso dodiscursoe asdooutro”, sendoqueouniversododiscursoé trazidoà luzpor um ato de indicação que divide um domínio entre uma classe e seucomplemento negativo.20 Vista em suas características mais gerais euniversais,apráxishumanaconsisteemtransformarocaosemordem,ouem substituir uma ordem por outra – e ordem, aqui, é sinônimo deinteligívelesignificativo.

Da perspectiva semiológica, “signi icado” quer dizer ordem e somenteordem.Ele sedestacadaperformancedeum indivíduooumesmodeumatorcoletivo,quer interpretadosdopontodevistamental,quervistos(nocasodosbehavioristas) comomecanismos reativos.Nãodependemaisdefazer surgir uma ideia associada ao signo, como para C.K. Ogden e I.A.Richards;neméumpadrãodeestimulaçãoqueevoque reaçõesdapartedoorganismo,comoparaCharlesE.OsgoodouCharlesMorris.Eleé,antes,

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uma organização cultural do universo humano que torna possíveis essasduasconsequências.

Nesse sentido, a imensa e abundante criação de Claude Lévi-Strausspodeservistacomoabusca tortuosadasregrasgenerativas daordem.Aquestãocontroversadacondiçãoexistencialdessasregras–apesardesuaimportânciadopontodevista ilosó ico–pareceirrelevanteparaoestudodametodologia da práxis humana, assim como a natureza existencial deuma língua como sistema é irrelevante para o estudo de sua estrutura.Temerosos de que querelas ontológicas infrutíferas consumam a melhorparte de nossos esforços para compreender o mecanismo da práxiscultural humana, seria melhor tratarmos com delicadeza oumetaforicamente as contínuas referências a l’esprit ou aoinconscient nostextos de Lévi-Strauss; com a questão ontológica em suspenso, abre-seumaperspectiva virtualmente ilimitada sobre a práxis humana, pormeioda declaração seminal de que, “entre todas as formas” de cultura, “hádiferençadegrau,nãodenatureza;degeneralidade,nãodeespécie.Paracompreendersuabasecomum,éprecisorecorrermaisacertasestruturasfundamentais do espírito humano do que a esta ou aquela regiãoprivilegiada do mundo, do que a este ou aquele período histórico dacivilização”.21

Oculturaleonatural

TalveztenhasidoessabuscadeuniversalidadequeorientouLévi-Strausspara começar seu estudo antropológico com a proibição do incesto. Nemtanto porque essa proibição esteja entre os exemplos mais óbvios de“universais”,nosentidodeMurdock,emvirtudedesuapresençaemtodasascomunidadesculturaisconhecidas,masporqueelaconstituioatomaiselementar de independência da cultura em relação à natureza, o passomaisdecisivodeumuniversogovernadosomenteporleishumanasparaodomínio humano em que uma nova ordem, até então ausente, é impostasobreomonopólioanteriordaordemnatural.

Focalizada do ponto de vista mais geral, a proibição do incesto exprime a passagem do fatonatural da consanguinidade para o fato cultural da aliança. … Considerada interdição, aproibiçãodoincestolimita-seaa irmar,numdomínioessencialparaasobrevivênciadogrupo,apreeminência do social sobre o natural, do coletivo sobre o individual, da organização sobre oarbitrário.22

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Aproibiçãodoincestoofereceopontodeencontromaisevidenteentrenaturezaecultura:anaturezaimpõeanecessidadedealiançasemde inirseu formato; a cultura determina sua modalidade. ODasein é natural, oSosein, cultural. Este parece ser um padrão universal para os laços queunem os fenômenos culturais a seu alicerce natural, mas o padrão estálonge de ser tão transparente no domínio explorado em As estruturaselementaresdoparentesco.

A contribuição da natureza resume-se, no caso sob análise, a duascoisas: (a) a necessidade, ligada à “sobrevivência” (que pode serinterpretada funcional ou logicamente), de criar algum padrãofrouxamentedelimitado;(b)omaterial(porexemplo,aconsanguinidade)apartirdoqualossignosformadoresdepadrõespodemserconstruídos.Orestopertenceàpráxiscultural.

“Asestruturasmentais”,queLévi-Straussconsiderasubjacentesatodoordenamento cultural, constituindo assim os verdadeiros universais dacultura, são três: (a) a exigência de uma regra; (b) a reciprocidade comoforma mais imediata em que a oposição entre mim e o outro pode sersuperada;e(c)ocarátersintéticodadádiva–ofatodequetransferirumvalordeum indivíduoparaoutro transformaasduaspessoas envolvidasemparceiraseacrescentaumanovaqualidadeaoobjetotransferido.Essestrês princípios são su icientes para explicar e compreender a capacidadedecriaçãodaordempresentenaproibiçãodoincesto.

A interdição do incesto pode ser descrita em termos positivos, e nãonegativos, como a oferta recíproca de uma “dádiva” – irmãs – quetransforma os irmãos ofertantes em aliados, e as mulheres trocadas emvínculo da aliança. Lévi-Strauss parece acreditar que os três universaisbastamparacompreendera totalidadedoprocessocultural–nãoapenasuma, embora fundamental, regrado incesto,mas a criação emanutençãodaestruturasocialemtodososseusaspectos–,embora,peloqueeusaiba,elenuncaostenhaempregadoaoanalisaroutrasestruturasquenãoadeparentesco. Sua su iciência num contexto mais amplo ainda deve serprovada. Parece que, para garantir sua aplicabilidade às estruturas desociedades complexas, consideravelmente distantes da contiguidade dosvínculos de sangue e a inidade, deve-se ampliar de forma drástica osignificadotantodereciprocidadequantodedádiva.

Ainda assim, o tema apresenta inúmeras di iculdades e exige amplaspesquisas,que,porinfortúnio,nãopodemserempreendidasnoarcabouçodestelivro.DetodososuniversaispostuladosporLévi-Strauss,apenasum

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será tratado aqui com maior profundidade: a exigência crucial de umaregra.Ésobretudoaregraquedestacaumaparceladouniversonaturaleatransformanoveículodapráxiscultural.

Em sua notável análise das características universais das cosmologiasantigasemodernas,MirceaEliadeencontraumadistinçãomarcanteentrea condição cosmológica das “ilhas de ordem”, subordinadas a regrascriadaspelohomem,eorestodouniversopercebido.

O mundo que nos cerca, … o mundo em que se sente a presença e a obra do homem – asmontanhas que ele escala, as regiões habitadas e cultivadas, os rios navegáveis, as cidades, osrefúgios –, todos têm um arquétipo extraterrestre, seja este concebido como um plano, umaforma ou pura e simplesmente um “duplo” que existe num plano cósmicomais elevado. Masnemtudonomundoquenoscercatemumprotótipodessetipo.Porexemplo,regiõesdesérticashabitadaspormonstros,terrasnãocultivadas,maresdesconhecidosemquenenhumnavegadorousou aventurar-se não compartilham com a cidade de Babilônia, nem com o nomo egípcio, oprivilégio de um protótipo diferencial. Correspondem a um modelo mítico, mas de outranatureza:todasessasregiõesermas,nãocultivadasesemelhantessãoassimiladasaocaos;aindaparticipamdamodalidadeindiferenciada,semforma,dapré-criação.

O que vale para a dimensão espacial também se aplica ao lapso detempoquedivideas“ilhasdeordem”:

A coroação de um rei do “carnaval”, a “humilhação” do soberano verdadeiro, a subversão detodaaordemsocial,…cadacaracterísticasugereumaconfusãouniversal,aaboliçãodaordemedahierarquia,a“orgia”,ocaos.Testemunhamos,pode-sedizer,um“ déluge”queaniquilatodaahumanidadeafimdeprepararoterrenoparaumanovaeregeneradaespéciehumana.23

A primeira e mais fundamental distinção produzida pela atividadehumananomundoéaquelaentreodomíniomodeladopelapráxishumanae todo o resto. A criação começa com a práxis. As regiões inacessíveis àpráxis,ouaquelasintroduzidasàforçaentreáreasporelareguladasparasublinhar as fronteiras da ordem, são deixadas para trás como domíniosdoamorfo,doindefinido,docaos.

Ao analisar a “linguagem alimentar”, Roland Barthes enumera umasérie de regras funcionalmente distintas que parecem ter um alcancemuitomaisamploeconstituiroscomponentesgenerativosnecessáriosdequalquer sistema cultural. Em primeiro lugar, Barthes cria “regras deexclusão” (no caso da linguagem alimentar, esse papel é desempenhadopelos respectivos tabus); a criação de uma ordem cultural começa pelaimposição de uma regra que especi ica o domínio ao qual se aplicam asregrasdedeterminadouniversodiscursivo–delineandoaomesmotempooterritórionãoreguladodocaos.

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Asclassesderegrasremanescentesvalemnaáreajáescrupulosamentecircunscrita.Asoposiçõesreguladassósãosigni icativasdentrodoslimitesestabelecidos pela regra de exclusão; o que émais importante, as regrasdeassociaçãosómantêmseupoderregulatórioseempregadasdentrodaáreacircunscrita;easregrasdoritualsãoinúteisnaorganizaçãoe icientedo domínio a menos que se impeça de forma efetiva a transgressão desuas fronteiras. Qualquer que seja o nosso ponto de partida, chegamosinevitavelmente à mesma conclusão: o papel das regras de exclusão écrucial, fundamental mesmo, funcionando como precondição daaplicabilidadedetodasasoutras.

Numensaiomuitopoucocitado,EdmundLeachdesenvolveuere inouaideia seminal de vínculo íntimo entre a necessidade de um sistema deconceitos claroe funcionaleadepreencherou reprimiros “preceitosdefronteira”.Em funçãodocaráterparaoqualoensaio foiencomendado,adiscussãolimitou-seaosconceitos“verbais”;noentanto,nadanacadeiaderaciocínio apresentada por Leach impedia a ampliação das descobertasbásicas aos fenômenos culturais em sua totalidade, ou, em todo caso, emsuafunçãocomunicativa,semiótica.

A mesma informação – a mesma percepção de uma parcela daestrutura social – pode ser criada e transmitida de maneira e icaz comuma expressão signi icativa ou com um signo-padrão comportamentalsigni icativo; di icilmentepoderíamos imaginardois conjuntosdistintosderegrasgenerativasdistintosemtermosqualitativosqueserelacionemaosdoiscódigosintercambiáveis;ospadrõesdeclarezapelomenosprovêmdamesma necessidade superior de ordem, e não da estrutura especí ica deum código semiótico único. Podemos, portanto, despir o argumento deLeach de seu traje linguístico circunstancial e aplicá-lo aos fenômenosculturaistoutcourt.

Ordenar envolve transmutar o que é fundamentalmente um feixe depercepção contínuo, informe, num conjunto de entidades distintas. Nessesentido, omundonão é pré-humanamente “dado” como algo ordenado; aimagem e a subsequente práxis da ordem lhe são impostas em termosculturais. “Porque minha língua-mãe é o inglês”, diz Leach, “pareceevidentequebosqueseárvoressãocoisasdiferentes.Eunãopensaria issosenãotivessemmeensinadoqueéassim.”Adeclaraçãoseguinte,contudo,parece de longe a mais importante, de vez que elucida o papeldesempenhado pelas regras de exclusão na criação e imposição dequalquer ordem cultural: “Se cada indivíduo deve aprender a construir

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seupróprio ambientedessamaneira, é extremamente importante que asdiscriminações básicas sejam claras e desprovidas de ambiguidade. Nãodevehaverdúvidaalgumasobreadiferençaentremimeele, ouentrenóseeles.”24

Não podemos acreditar que a distinção endêmica, inata, do mundoacabará por se justi icar no caso de uma confusão semiótica; não hárelações “naturais” entre signos-padrão e partes domundo; a lucidez e ocaráterunívocodos limitese linhasdivisóriasdevemserpreservadospormeios culturais. Leach apresenta o tabu como um dessesmeios: “O tabuinibe o reconhecimento dessas partes do continuum que separa” ascategorias“nomeadas”ou,demodomaisgeral,culturalmentemarcadas.

Nessa última declaração, dois fenômenos analiticamente distintos,embora aparentados, foram colocados no mesmo saco. É verdade que“apreender” nomeando e empregando “gradientes de generalização”“adquiridos” e “especí icos da espécie”25 deixa partes substanciais darealidade em seu estado “prístino”, pré-cultural, não nomeadas,irrelevantesedesprezadasdopontodevistacultural.Essaspartes,atéquesejamprocessadaspeloprocedimento semióticodapráxis cultural, quasenão existempara os seres humanos; despercebidas, inacessíveis à práxishumana,essesnão-seresconceituaisnãopodemprejudicararegularidadedapartedomesticadaeassimilada,emtermosculturais,douniverso.Nãohá necessidade de “suprimi-las”, nem base para o tabu; na verdade, asupressão de algo que, do ponto de vista cultural, é quase inexistenteresultaria em problemas técnicos insuperáveis. “Não-coisas” nãoconstituem, nem podem constituir, o alvo do tabu. Elas fornecem, em vezdisso, uma terra virgem in initamente ampla para a futura assimilaçãocultural, obtida, na maioria dos casos, pela investigação e argumentaçãocientíficas.

Apoderosa armado tabunão encontra suamarcana área carentedesigni icado conferido pela práxis, mas, ao contrário, nas regiõesinspiradoras de assombro e ansiedade, sobrecarregadas de signi icados,em particular de signi icados logicamente contraditórios. A obstinadacontinuidadedarealidaderesisteatodasastentativasdefragmentá-laemdivisões nítidas e de inidas; as operações de inclusão produzem, demaneira inexorável, categorias sobrepostas. Não é tanto a “terra deninguém”, e sim a “terra de homensdemais” que cria a ameaçamortal àprópria sobrevivência da práxis cultural. O tabu é uma tentativa dedescartar signi icados confusos, redundantes, e não de explicar áreas

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desérticasculturalmentetranslúcidas.Areconhecidaambiguidadedocomplexoatitudinalassociadoaotabué

um equivalente do caráter equívoco de situações e objetos a que o tabufornece uma resposta institucionalizada ou instintiva. O complexo uneatitudes de outro modo incompatíveis: respeito e repulsa, admiração edesdém, atração e ódio, curiosidade investigativa e impulso de fuga –abiance eadiance, nos termos de Holtz.26 O complexo atitudinal do tabulembra o que a literatura sociológica, desde Durkheim, chamou de“sagrado”; a discriminação convincente entre as duas noções não é coisafácil. Fica-se imaginando se o hábito persistente de debater as duascategorias em separado temmuito fundamento além da concatenação detradiçõesintelectuais.

As regras de exclusão-inclusão, fundamentais para manter ainteligibilidade e a signi icação do universo humano, fornecem o própriofocodosagrado.Essahipótesedequeeleseoriginadoatodeestabelecero tabu, promovido pelas regras de exclusão-inclusão, parece ter maisprobabilidadedoque a sociedademíticadeDurkheim, que erige redutossantificadosparaforçarseussúditosàlealdadeinterna.

A concentração das crenças mágicas e religiosas em alguns objetosescolhidos, de caráter peculiar, atraiu há muito tempo a curiosidade deetnógrafoseantropólogos.Aconjecturadequeaambiguidadedacondiçãoexistencial é um dos principais critérios na seleção de objetos a que seatribuiumpodersobrenaturalemisteriosonãotemorigemrecente.Lévy-Bruhl analisou a atitude peculiar dos Maori em relação ao sanguemenstrual (compartilhada, por assim dizer, por uma multiplicidade deoutros povos) como originária do sinistro signi icado desse sangue comoumserhumanoinacabadoeincompleto;elepoderiasetransformarnumapessoa,masnãoofez,destruindoassimumavidaqueaindanãonasceu;osangue menstrual seria a manifestação exemplar da ambiguidadeexistencial e conceitual, como só pode ser amorte do que nunca viveu.27Como tal, pertence à mesma categoria de fenômenos aparentementedistantes, masque continuam a se manifestar, como a recusa de comercarnede animaisdomésticos, o cultodadeusa-mãe, a ansiedade suspeitaprovocada por pessoas marginais, o agourentoubi leones nos mapas dasantigasoikoumene (“terras não habitadas”), ou o Cérbero tricéfalo quevigiavaavulnerávelfronteiraentre“este”mundoeo“outro”.

Embora os objetos de tabu tendam a aparecer sempre que umadistinçãometiculosa, ielmenteobservada,sejadotadadeumasigni icação

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particular no curso da práxis histórica, algumas fronteiras parecembastante sensíveis ao estabelecimento de tabus de uma forma quaseuniversal,independentedecontingênciashistóricas;talvezelasconformemo arcabouço invariante, supra-histórico, de uma práxis humanahistoricamente mutável. Essas fronteiras em particular estão semprepresentesnaspráticassagradashumanas,nãoporqueaprópriarealidadeàsuavoltasejamais luidaemenosdistintadoqueemoutroslugares,masporque seu caráter inequívoco é enfatizado de modo um pouco maispassional pela maioria das comunidades humanas conhecidas do queoutras linhas divisórias. Leach examinou de forma convincente algumasdessas fronteiras defendidas com veemência e de maneira quaseuniversal:

Emprimeiro lugar,asexsudaçõesdocorpohumanosãouniversalmenteobjetosdeum intensotabu – em particular, fezes, urina, sêmen, sangue menstrual, chumaços de cabelo, aparas deunhas, sujeira corporal, cuspe, leite materno. Isso se encaixa na teoria. Tais substâncias sãoambíguasdamaneiramaisfundamental.…Fezes,urina,sêmen,eassimpordiante,sãoaomesmotempoeuenãoeu

– são os componentes destacáveis do “eu” fundamentalmente indivisível;quando separados, transformam-se no componente do mundo externo –pertencemaosdoisladosdafronteira,eessadualidadeinsuperávelsolapaasegurançadafronteira.

Noextremooposto,considere-seocasodasantidadedosseressobrenaturais.…Ofossoentreasduas categorias logicamentedistintas, este mundo/outro mundo, é preenchido pelaambiguidade do tabu. Esse fosso é superado por seres sobrenaturais de um tipo altamenteambíguo–deidadesencarnadas,virgensmães,monstrossobrenaturaismetadehomem,metadefera. Essas criaturasmarginais, ambíguas, são dotadas do poder especí ico demediação entredeuses e homens. São objeto dos tabusmais intensos, mais sagrados que os próprios deuses.Numsentidoobjetivo,aVirgemMaria,mãehumanadeDeus,éoprincipalobjetodedevoçãonaIgrejacatólica.28

Bem, o próprio Jesus Cristo, cujo culto por todo o mundo cristãocertamente supera o culto do Deus-Pai, tem a condição profundamenteambígua de ser ilho de Deus e mãe terrena; ele próprio usava o nomenada ambíguo de “ ilho do homem”; a inserção da ambivalênciafundamental na de inição aceita coincidiu com a elevação de Cristo aoprópriotopodahierarquiasagrada.

Aterceirafronteirademáximaimportânciaestabelecidapelaatividadehumana nomundo é aquela entre “nós” e “eles”. A supressão dos casosintermediários, ambivalentes, é condição necessária à coesão do grupo –

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porexemplo,àaplicaçãodetiposcomportamentaissingênicos,emoposiçãoa tipos biocenóticos, adequados às relações com estranhos. 29 A própriaexistência de casos limítrofes nessa área fundamental gera uma enormetensão entre dois conjuntos de padrões comportamentais e atitudinaisincompatíveis–comparávelàtensãoquefazopeixeesgana-gatoafundaracabeça na areia quando, tendo se aproximado da fronteira territorial deseu ninho, é incapaz de escolher entre a postura belicosa do nativo,expulsandoo intrusode seu lar, e a posiçãodefensiva de umvagabundonumaterradeestranhospoucohospitaleiros.

Observemos,nessecontexto,queaobjeçãosuscitadaporLeachà forteênfasedeLévi-Straussnatendênciainatadaculturaaestabelecerdivisõesdo tipo “ou este ou aquele” – “não basta ter uma discriminação eu/ele,nós/eles; tambémprecisamos de uma escala graduada perto/longe,maiscomo eu/menos comoeu”30 – está em óbvia contradição com o cerne deseu próprio argumento. O caráter gradual, intermediário, da condiçãoexistencialéaprópriacausadoterremotoconceitual-comportamentalparaoqualotabueosagradofornecemoremédioadequado.

A semelhança com uma escala graduada vem da possibilidade e dapronunciada tendência da conceituação cultural a organizar diversasfronteiras em sequência, ou mesmo numa série de circunferênciasconcêntricas, cujo centro é o olho do ego: a fronteira “eu/ele”, nessesentido,émais“estreita”queolimite“nós/eles”,oqual,porsuavez,émaisestreitoqueaúltima fronteira, “estemundo/outromundo”.Muitosoutroslimiares serão deixados para trás, sem encontrar seu lugar nessecontinuum “centrado no subjetivo” – como, por exemplo, as fronteirasentre diferentes estados e formas da matéria, que izeram de seustransgressores (alquimistas, fundidores do ferro, ferreiros) igurassemissagradas, semimarginais. Qualquer que seja a importância domapeamentoegocentradodasdivisõesdomundo(elaborado,entreoutros,porAlfredSchutz,emsociologia,eKurtLewin,empsicologia),oatoeseuprodutosãocolocadosempráticaempregando-seumasériedeoposiçõesde inidas do tipo este ou aquele, e essas oposições apenas constituem ofocodostabusedosagrado.

Casofosseaomenosimaginável,anaturezagraduadada“eudade”eda“nosdade”, se de todo imaginável, solaparia o próprio alicerce daorientação humananomundo. “Nós” jogamos uns comos outros um jogoque não é de soma zero, ou pelo menos tentamos ou ingimos fazê-lo,enquanto com “eles” o jogo de soma zero é o que se deve esperar e

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desejar. “Nós” compartilhamos omesmo destino, icamos ricos ou pobresjuntos, enquanto “eles” vicejam em nossa calamidade e se magoam comnossosucesso.Espera-sede“nós”queajudemosunsaosoutros,enquanto“eles” icam à espreita de nossos deslizes. “Nós” entendemos uns aosoutros,temososmesmossentimentosepensamentos,enquanto“eles”sãoimpenetráveis,incompreensíveis,sinistros.

As fronteirasdo “gruponós”–averdadearticuladapelomenosdesdeSumner–delineiamoslimitesdenossasegurançaintelectualeemocional,e fornecem o arcabouço em que é possível abrigar nossas lealdades,nossos direitos e deveres. Aqui dentro a ordem é conhecida, previsível eadministrável. Lá fora, tudo é escuridão e incerteza. Ainda assim, se asfronteirasentre“aqui”e“lá”sãoassinaladasdeformaclaraesemmargemde erro, o “gruponós” podedesempenhar-se razoavelmente bemmesmonavizinhançado“eles”.Ogrupo,defato,teriainventado“eles”seestesnãoexistissem. Qualquer “grupo nós” precisa de seu próprio “eles” comocomplemento indispensávele instrumentodeautode inição. “Eles”são,deseu modo peculiar, úteis, funcionais e, portanto, toleráveis, quando nãodesejáveis.Masnão sepodepensarnumusobené icoqueo “gruponós”possafazerdeseus“dedentro-defora”quenãodeixeoshomensaquioulá.

IanHogbinfala-nosdeumdonodearmazémBusama,Yakob,que ingiaserumrespeitávelempresáriode tipoeuropeu, embora radicadoemsuaaldeianativa:

Aspessoasdesaprovavam-notãointensamentequesempremexingavamporfalarcomele.Nãose mostravam indignadas quando eu passava uma hora ou duas ao lado de animais, mascostumavamcriticar-mecomseveridadequandoeucompravadeleummaçodecigarros.“Eleéumnegroquesecomportacomosefossebranco,evocênãodeveriaencorajá-lo”,diziam-me.31

Numa cultura totalmente diferente, a dos Estados Unidos na era domacartismo, um professor universitário, Morton Grodzins, explicitou aodiosavilaniados“Yakob”políticos,osdesleais:

As lealdades fornecem [ao indivíduo] umaparte da estrutura sobre a qual ele pode organizarsua experiência. Na ausência dessa estrutura, ele não conseguiria produzir respostas fáceis,habituais.Seriaconfrontadopelatarefaintermináveledesesperadamentecomplicadadetomarnovas decisões a cadamomento da vida. Logo degeneraria em inconsistências extravagantes ealeatórias,ounumestadodeconfusãoeindecisão,condiçõesquesefundemnainsanidade.32

Os nomes dados aos marginais lutuam de uma época para outra, deuma sociedade para outra; re letem seleções singulares de conceitos e

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imagens, historicamente forjadas, típicas dedado código cultural emumaépoca determinada. Às vezes as pessoas apontadas como ambíguas, eportantomarginais,sãochamadasdebruxasoufeiticeiras:“Osfeiticeiroseseus acusadores”, escreveu Philip Mayer, “são indivíduos que deveriamgostar uns dos outros, mas de fato não gostam. … O feiticeiro éessencialmenteuminimigooculto,masumamigoaparente.”Oqueémaisimportante, “os feiticeiros voltam-se contra seus vizinhos e parentes; nãoameaçam estranhos nem pessoas distantes”, 33 embora, de modo curioso,acredite-se que eles sejam cheios de um poder maligno emanado, porassimdizer,detudoàsuavolta,deformacegaeespontânea.Noarcabouçoda cosmologia aceita, a “vitimização”, que Kenneth Burke considera oconcomitanteindispensáveldacoesãosocial,34materializava-senaimagemdosfeiticeiros.Masacosmologiasóforneciaosveículosparaaoperaçãodeuma regra que transcendia toda ideologia especí ica. Como disse AldousHuxley:

Na cristandade da Idade Média e início do da era moderna, a situação dos mágicos e seusclienteseraquaseanálogaàdos judeussobHitler,doscapitalistassobStálin,doscomunistaseseussimpatizantesnosEstadosUnidos.Eramvistoscomoagentesdeumapotênciaestrangeira,impatrióticosnamelhordashipóteses e, napior, traidores, hereges, inimigosdopovo.Amorteera a penalidade adequada a esses quislings1 meta ísicos do passado; e, na maior parte domundocontemporâneo,amorteéapenalidadequeaguardaosadoradoresdodiabopolíticoseseculares conhecidos aqui como vermelhos, lá como reacionários. … Tais padrões decomportamentosãoanterioresàscrençasque,emqualquermomentodado,parecemmotivá-los,e a elas sobrevivem. Poucas pessoas hoje acreditam no diabo; mas muitíssimas gostam de secomportarcomofaziamseusancestraisquandoodemônioeraumarealidadetãoinquestionávelquantoseuoposto.35

Overdadeiroalvodesses“muitíssimos”éaáreaagourenta,maligna,emque o “aqui” encontra o “lá”, o “dentro” encontra o “fora” e o “certo”encontra o “errado”. Osmarginais são alternadamente odiados e dotadosde poderes sobre-humanos porque encarnam essa fonte perene domaisintensoepungentedosmedoshumanos.

Oconceitodemarginalidadejátemumalongaeimpressionantehistóriaintelectual. Na forma anglo-saxã, provavelmente é descendente direto de“der Fremde” , o conceito a que dois grandes intelectuais – cujas própriasvidasoferecemumcaso-padrãoparaosestudiososdamarginalidadeedeseupapelsociocultural–atribuíramlugardedestaqueemseusistemadeciênciasocial(GeorgSimmel,emSoziologie,1908,eRobertMichels,emDerPatriotismus, 1929). Para ambos, “der Fremde” (“o estranho”, não “oestrangeiro”nem“oforasteiro”,erao“forasteiroinato”,o“intrusointerno”

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queosfascinavacomotemasociológicofundamental)eraumadas“zeitlosesoziale Formen” (forma social sem tempo). ParaMichels, em 1929, numanotável antevisão de descobertas muito posteriores, feitas na década de1960,agrandeimportânciadoestranhoconsistiaemser“orepresentantedo desconhecido. Este desconhecido signi ica ausência de associação, quevai da antipatia aomedo.Umditado holandês diz: ‘O desconhecido não équerido’(onbekedmaaktonbemind). A xenofobia surge do sentimento dediferença,istoé,dafaltadeligaçãoentreosdoisambientes.”36

Tanto para Simmel quanto para Michels, o problema do estranhosigni icava, emprimeiro lugar, sua vulnerabilidade, a precária fragilidadede sua condição na comunidade, assim como o impacto de sua fraquezanas atitudes e no comportamento em relação ao estranho do gruporesponsávelporcolocá-loemseunichopeculiar.Mas,aomesmotempo,opapeliconoclástico,sacrílego,doestranhoforacadavezmaisenfatizado.Oestranho,diria Alfred Schutz, comete o imperdoável pecado de solapar aWeltanschauung relativamente natural de Scheler, aquela que “assume,paraosmembrosdogrupodedentro,aaparênciadeumacoerência,umaclareza e uma consistênciasuficientes para dar a qualquer pessoa umachance razoável de compreender e ser compreendida”. A ofensa doestranhoconsistenofatodeele“nãocompartilhar…pressupostosbásicos[e] terdecolocaremquestãoquase tudoqueparece inquestionávelparaosmembrosdogrupoconsiderado”.37

A raiz suprema da ameaça representada pelo estranho está, portanto,um pouco deslocada; ela se encontra agora em sua tendência a fazerperguntas bizarras que não ocorreriam a uma pessoa “normal”, acontestar as próprias distinções que, para as pessoas “comuns”, sãoatributos do universo em si, e não de suas visões de mundo. A própriaexistênciadoestranhonãoapenasobscureceadesejadaclarezadadivisãonós-eles;oestranho,comosenãobastasseoprimeirocrime,torna-se,querqueira,quernão,oepicentrodeumterremotototal,pois tendeadesa iarnãosóuma,mastodasasdistinçõesquetornamomundointeligível.

A palavra “estranhos” transforma-se no nome de um tipo decomportamento, e não uma forma de condição existencial. Uma pessoa aquem aWeltanschauung relativamente natural do grupo a que elapertence isicamente (mas nem sempre em termos mentais) “não é umabrigo, mas um campo de aventura”, 38 tem uma semelhançaimpressionante como intelectual francoatirador, indeciso,mannheimiano,esse “desmascarador, detector de mentiras e ideologias, relativizador e

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desvalorizador do pensamento imanente, desintegrador deWeltanschauungen”.39Avitimização,preservandoacoesãodacomunidadeesemprepairandosobreperigosas terrasde fronteira, évistaaqui comoseestivesseconcentradaemtornodeum fenômenomuitomaisamplodoquegruposde fronteiraambíguosemtermosexistenciais;elarecaisobretodosqueousamquestionarocaráter “natural”, supra-humano,de initivodaordemimpostasobreepelapráxiscomum.

Vale notar que os estudiosos que lidam com o fenômeno damarginalidade muitas vezes caem na armadilha dos preconceitospopulares:acrençabastantearraigadadequeultrapassarasfronteirasdedomínios existencialmente distintos atesta o poder sobre-humano dotransgressor; o ato de transpor limites, entrando em territórios que nãosão próprios – talvez moldado segundo a imagem de senso comum,arquetípica, da violaçãoda oposiçãoprimordial entremacho e fêmea –, évistocomoaprincipalmedidadeperspicácia,destrezaepotênciadinâmicadotransgressor.

Os cientistas, longe de estar imunes às mandalas quase arquetípicas,poucasvezestiveramêxitoemvarrerosvestígiosdorespeitosupersticiosopelos vagabundos sem-teto culturais. Foi o grande Gilbert Murray quematribuiu a milagrosa erupção de criatividade helênica à marginalidadeendêmicadosconquistadoresnórdicosdoEgeu. 40 Sociólogos da Escola deChicagocostumavam icarquaseemocionadoscomoseupróprioesquemado“tipodepersonalidademarginal”.Omarginalhumano–diziaahistóriacontadaporRobertPark – “vive emdoismundos, e emambos émais oumenosumestranho”. Por essa razão, suapersonalidade tendea levá-lo à“instabilidadeespiritual,à intensi icaçãodaautoconsciência,à inquietaçãoeàdoença”.Atéaquicaminhamosnoslimitesdodiscursoempírico.Masderepentenospedemparasaltaratéumaconclusãoinesperada:“Énamentedo homem marginal … que podemos estudar melhor os processos decivilizaçãoeprogresso.”41

Seguindo essa receita, Peter Gay atribuiu o meteórico surto decriatividade cultural da República de Weimar à inquietação de algunsoutsiders que por acaso se encontravam do lado de dentro. 42 É di ícilsubestimar a surpreendente a inidade entre a crença persistente napotência artística dos híbridos culturais e a fé também persistente nasinsuperáveis proezas sexuais do negro americano; ou, nesse sentido, naastúcia supranatural desses perenes marginais, os judeus, e noconhecimentomágicodosciganos.

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No estudo mais abrangente sobre os marginais até hoje publicado,Everett V. Stonequist expressa compaixão e piedade apenas pelos“híbridosraciais”.Aomesmotempo,reconhececomrespeitoopapel-chavesupostamente desempenhado pelos “híbridos culturais” de impulsionar oprogressodahumanidade:

Graças à sua situação intermediária, o homemmarginal torna-se um crítico hábil e preciso dogrupodominanteesuacultura.Issoporquecombinaoconhecimentoeacompreensãodequemestádentrocomaatitudecríticadequemestáfora.…Eleéhábilemobservarascontradiçõesea “hipocrisia” da cultura dominante. O fosso entre suas pretensões morais e suas realizaçõesconcretaséalgoquelhesaltaaosolhos.43

A rocha catapultada contra os “intelectuais desarraigados”, com aintenção de matar e destruir, fora recolhida, remodelada e transmutadaem cetro de poder único e benevolente. O ânimo autocongratulatório,sendo o exato oposto do temor popular, encontra sua última e maiorexpressãonalinguagemdeKarlMannheimcomsua“perspectivacognitivaprivilegiada”. Os intelectuais deviam ter orgulho de se ver livres dagroepsbewussyn(consciênciadogrupo),traçode inidordeumserhumanoparaosafricâneres; épor causadesse supostohandicapqueelespodemdesrespeitar as lealdades paroquiais de nações, comunidades, classes,raças.Equemépoderosoobastanteparaatravessarfronteirasterrestres,semdúvidaécapazdeconversarcomoabsoluto.

Kathleen Tamagawa, por exemplo, nos conta o que é de fato ser ummarginal:

Osfatosforamestes:nosEstadosUnidos,euerajaponesa.NoJapão,eueraamericana.Eutinhaumpaiorientalquedesejavavivercomoumocidentaleumamãeirlandesaquedesejavavivercomo uma japonesa. … Comecei a perceber que as pessoas pensavam em termos de grupos,sociedades, nações e raças inteiras, e que todos pensavam de forma diferente. O não aceito, oinesperado, comoeu,devepermanecerparasempre forade tudo isso.…Seriaeuumabonecajaponesaouumaameaça?44

Por trás da história deprimente de um self dividido e atormentadoespreitaoritualdetabudecomunidadesávidasporpreservarseuslimitesterritoriaisdos intrusosqueincansavelmente incamsuastendasentreasrochas da fronteira. Governadas pela onipresente lei domenor esforço, 45as mentes humanas tendem a submeter sua práxis a preceitos simples,diretos, do tipo este ou aquele.Mas o sucessodadicotomização implica asupressãodocentro.Em1954,umgrupodecientistassociaisamericanosrelacionou diversos arti ícios usados por grupos fechados para garantir

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suasfronteiras:

Iniciações rituais intragrupos; cerimônias de limpezapara reapresentar ummembrodo grupodedentroàsuasociedadeapósumaausência;atividadessecretassóparaintegrantesdogrupodedentro; cerimôniasde localizaçãona terranatal; cultivodeconceitosdeautode inição, comoetnocentrismoouracismo;designaçãodeagentesdecontatoou“manipuladores”deforasteiros;grandevalorizaçãodalínguaoudialetodogrupo;instituiçãodebarreirasjurídicas.46

Por outro lado, Florian Znaniecki, em seu estudo sobre a sociologia daeducação, assinalou as muitas precauções e os expedientes com quequalquer grupo justi ica sua decisão de conceder a um recém-chegado otítulo de “membro pleno” – e em particular os cuidadosos rituais doperíodo de transição, em que o “candidato” é mantido a uma distânciasegura e ao mesmo tempo sob estrita vigilância.47 Está claro que há umdenominadorcomumatodaessaengenhosavariedadedemeioseformas:a tendência do grupo a dividir o mundo nítida e claramente em duaspartes, e apenas duas, de modo a não dar margem a situaçõesintermediárias, confusões e interpretações con litantes. Alguns poucosexemplosbastamparamostrarcomoessatendênciaapresenta-sequandoemação.

OsNuer, comonos revelouEvans-Pritchard,haviamdecididoque seusmonstros-crianças de aparência animal eram hipopótamos colocados porenganonoventrehumano;essadecisãohabilitava-osa jogarosbebêsdeaparência estranha no rio mais próximo, onde viviam seus verdadeirosparentes,oshipopótamos.

Osjudeusseguidoresdatradição,desejososdemanterseugrupobem-de inido e limpo, eliminaram o próprio perigo que poderiam representarosmonstrosmetade judeus; resolveramqueos ilhosdepais gentios sãojudeus, se nascidos de mãe judia, mas os descendentes de mães gentiassãogentios,sejaquemforopai.Explicandoporqueessaherançadoguetodeveria ser adotada e cristalizada pela lei do Estado, o primeiro-ministrode Israel a irmou que “a permissão para casamentos mistos não seráconcedidaporestepaís”.Trintaecincoanosantes,em15desetembrode1935, as autoridades de um país muito civilizado da Europa Centraldecidiram,pormotivosideologicamenteopostos,masidênticosdopontodevista estrutural, que “quaisquer casamentos entre judeus e cidadãos desangue alemão ou aparentado de hoje em diante estão proibidos. Oscasamentosrealizadosemdesrespeitoaesta leisãoinválidos,mesmoquecelebradosnoestrangeiro,comoformadecontorná-la”.48

A maneira de resolver o desagradável problema da marginalidade

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di icilmente se limita a uma tradição cultural ou a um período históricoespecí icos.NaEuropa, suasdiversasversõespodemserencontradasemquase todas as épocas. Na IdadeMédia, por exemplo, era um inabalávelartigo de fé que, “embora, num sentido ideal aristotélico, cada formaestivesseemlutaparaseaperfeiçoar,oprocessodeaprimoramento(sedefatoenvolvessemovimentooumudançanosentido terreno)só teve lugarnointeriordasfronteirasconceituaisdecadacategoriadaescala,enãodeuma categoria para outra”. Por assim dizer, “a transmissão vertical decaracterísticas durante ‘trechos’ do tempo (a manutenção da tradiçãocomo seu produto inal, a uniformidade culturo-temporal) erauniversalmenteconsideradaboa.…Poroutrolado,adifusãopropriamentedita, ou a transmissão lateral, horizontal e terrena da cultura, eraconsideradamá”.49

Essa visão do mundo simétrica, coerente, tinha sua contrapartida, napráxis, em corporações simétricas, coerentes, em que qualidadesreciprocamente contrastantes eram fechadas de modo hermético, sem amenortendênciaàosmose.Àmedidaquetodosseligavamdeboavontadea seu próprio lugar, ninguém se sentia perturbado com a esquisitice dosoutros. O resultado da coesão quase perfeita atingida pela práxis foi apeculiar cegueira cultural que deu fama à Idade Média, a misteriosaimunidadequefezcomqueosperegrinosaoSantoSepulcroignorassemocaráter estranho dosmodos de vida com que travaram contato ao viajarporterrasestranhas;issofezaEuropaolharcomequanimidadebovinaasestranhas criaturas trazidas por Colombo da outra costa do Atlântico; einspirou a elite intelectual da época a condenar a excessiva sensibilidadediantedosmodosdosforasteiroscomoturpiscuriositas.

Com o advento do mundo moderno, em constante mudança, muitoinstável,aperpétuaestabilidadedostiposnãopodiamaisserconsideradaumdado,nemerasuficienteparaafastarospoucosdesvioscomaajudadebrevespreceitosmorais.Aregularidadedomundohumano,longedeestargarantidademaneiraautomática, tornou-seumaquestãodepreocupaçãocontínua e ativa. A proximidade ísica dos outros agora adquiriacaracterísticasameaçadorasquandocombinadacomaosmoseculturaleanovaeapreensivaconsciênciadamutabilidadeedopodertransmutacionaldasformas.

Embora os judeus fossem temidos e desprezados na Idade Média(sempre houve uma marginalidade embutida no fato de ser judeu nomundo cristão: in iéis autores de pelo menos metade das Sagradas

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Escrituras;parenteseassassinosdeDeus;paisdosagrado,rejeitandosuaprole e por ela rejeitados), só a decadência da ordem medievaltransformou o Judengasse (bairro judeu), símbolo do privilégio e daautonomia corporativa, desejado acima de tudo pelos próprios judeus econcedido a seu pedido, no con inamento de um guetomurado, que teveinícioemRoma,em1555,porobradopapaPauloIV.50

Raymond Aron expressou a opinião de que o antissemitismo – umfenômenomodernostrictosensu–surgiuemconexãocomacoincidênciaentreosjudeusquedeixaramseuisolamentoeoadventodamodernidade;todosquetinhammotivosparatemeramudançaesesentiamameaçadospelagradualcorrosãodoqueanteseraaordemcon iável,majestosamenteimutável, podiam transformar essa ansiedade numa arma apontada paraas pessoas que, por sua recente marginalidade, re letiam de modo maisamplooadventodocaos.

Asúbitatorrentedecaçaàsbruxas,estranhamenteforadelugarnaeradoracionalismobeligeranteedotriunfanteprogressodaciênciaempírica(a evidente contradição que Trevor-Roper trouxe a público de forma tãoadequada),setornainteligívelquandosituadanomesmocenáriodetotaleintensaansiedadeenraizadanadecadênciadaordemhabitual.

De modo semelhante, a entrada de paquistaneses e caribenhos nasIlhasBritânicas coincidiu comodesaparecimentodopoder imperial, que,para muitos britânicos, funcionava como matéria-prima a partir da qualerapossívelconstruirapercepçãodeumaordemsegura.Talvezsetenhaconsolidadoumatendênciaaconcentraremcaribenhoseasiáticosopoderassustadordo“inimigoinvisível”,quetornaoperigoparaofuturodaGrã-Bretanhamaiorhojeque“nosanosemqueaAlemanhaimperialconstruíacouraçados,oudorearmamentonazista”.51

OséculoXIX testemunhou inúmeras tentativasde evitar que ahíbridamodernidade solapasse a construção harmoniosa do universo humano. Ovaloreo signi icadoverdadeirosdessa tendência só se tornamacessíveisse voltamos nosso olhar, das tolices lamentavelmente “cientí icas” de umGobineauoudeumHoustonChamberlain,paraasdeclaraçõesdaspessoasqueestabeleceramopadrãodoclimaintelectualpredominante.

Madison Grant, por exemplo, ao a irmar com todas as letras que “ocruzamento entre um branco e um indiano produz um indiano, ocruzamento de um branco com um hindu é um hindu, e o cruzamentoentrequalquerumadessasraçaseuropeiaseumjudeuéumjudeu”, 52eramuito mais representativo da vontade popular de restauração da

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univocalidade do que os excessos dos pais das teorias raciaismodernas.Naverdade,Grantestavaalinhadocomofolcloreintelectualdesuaépoca.Osdoutosmembrosda SociedadeAntropológica de Londres, numdebaterealizado em 1865, estabeleceram algumas premissas simples que,segundo Fred Plog e Paul Bohannan, diziam o seguinte: “Se ‘nativos’ setornam ‘civilizados’, esse fato pode ser atribuído a ancestrais ‘civilizados’(talvezilegítimos);amisturapodeser‘nominal’oupuramentesuper icial.”Umavezqueamistura real, genuína,dasessências “nativa” e “civilizada”só pode produzir um monstro, “eles parecem imitar e manter todos osvícios dos brancos, mas poucas de suas virtudes. … Falando claramente,descobriquetodanegracristãeraumaprostituta,equetodonegrocristãoeraumladrão”.53

Omonstrosinistroeaterrorizantedetodasasambiguidadesé,contudo,ummonstrooculto–dotipoqueaspessoastalveznãoconsigamlocalizaratempo.Eraissoquepreocupavaumcruzadoantissemitafrancês,ÉdouardDrumont: “É fácil avaliar que os judeus que não se distinguem por seuscostumes são muito mais e icazes por serem menos visíveis. No serviçopúblico, na diplomacia, nos escritórios dos jornais conservadores,mesmosobabatinadeumsacerdote,elesvivemsemprovocarsuspeitas.”54

A solução mais e icaz, embora mais simples, seria, claro, marcar deformaevidenteasperigosas áreasdeambiguidade. Já em1815ChristianFriedrich Rühs propôs que “essas pessoas de todo mundo a quem oshomens…chamamdejudeus”(expressãocunhadaporErnstMoritzArndt)deveriam usar uma estrela amarela costurada na roupa. 55 A ideia seriaaperfeiçoadapeloslegisladoresnazistas,osquaisdecretaramqueaestreladeDavideveriasera ixadatantoàsroupasdosjudeusquantoàsentradasde suas casas, e tornaram obrigatório o acréscimo de Israel e Sara aosnomesdehomensemulheresjudeus.

O método parece infalível, porém não é o mais conveniente e nemsemprepraticável.Aalternativaéumaespéciede“marcaçãopsicológica”,que consiste em cultivar de forma deliberada – na verdade, levando aproporções histéricas – o medo instintivo da ambiguidade. Há umprovérbio que diz que omedo tem olhos grandes; ométodo consiste emtorná-los osmaiores possíveis. Pode-se fazermuitomenosmal colocandono ostracismopessoas injustamente suspeitas do que deixando dereconheceruminimigodisfarçado.Seaspessoasnãopodemusarluzesdeadvertência,muitasvezessecontentamcomfeixesdirecionaisdebusca.

Anaturezadeumavíboraérastejar,terpeleescamosa,dentescôncavosemóveisqueexsudam

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umapeçonhavenenosa;eanaturezadohomeméserumanimalcognitivo,religiosoesociável.Toda a experiência nos ensina isso; e, pelo que eu saiba, nada desmentiu essa experiência. Sealguémdesejaprovarqueanaturezadavíboraé terasasevoz suave, eadeumcastor, viversozinhonotopodamontanhamaiselevada,cabeaeleprová-lo.56

Quemignoraessaadvertênciaenãoseconvencedotremendopoderda“natureza” – que acabará cobrando seus direitos – é informado daexperiência angustiante de um duque francês que “se casara com umaRothschildapesardaslágrimasdesuamãe.Elechamouseu ilhinho,tiroudo bolso um luís de ouro e mostrou-lhe. Os olhos da criança searregalaram. ‘Veja você’, continuou o duque, ‘o instinto semita se revelaprontamente.’”57 Normas político-morais (“deve-se icar com sua própriagente”)eapropensãocognitivaaoestereótipo,alémdosmitos,colaborampara manter livres de transgressores as fronteiras vitais do universohumano.

A srta. Hazel E. Barnes, tradutora americana deL’Être et le néant ,escolheu de modo adequado o termoslimy (“lodoso”) como equivalenteinglês do famosole visqueux sartriano. A última edição doWebster’s NewInternationalDictionarydizqueapalavrasigni ica“viscoso,pegajoso”,masacrescenta seus outros signi icados: “vil, ofensivo, vulgar”. Di icilmenteencontraríamosoutrotermoemqueaimagemdeumasubstânciaamorfa,gelatinosa e gotejante se fundisse de modo tão pleno e preciso aosentimentodeenojadarepulsa:

Seoobjetoque tenhonasmãosé sólido,possodeixá-lo cairquandoquiser; sua inérciaéparamimosímbolodemeupoderabsoluto.…Maseisaquiaviscosareversãodostermos;opara-siésubitamentecomprometido,euabroasmãos,queroqueoviscososevá,eelesegrudaemmim,meatrai,mesuga.…Nãosoumaisosenhorquedetémoprocessodeapropriação.Elecontinua.Emcertosentido,écomoasupremadocilidadedopossuído,afidelidadedeumcãoquesedáasimesmo ainda que não sejamais desejado; em outro sentido, existe por baixo dessa docilidadeumaapropriaçãosubreptíciadopossuidorpelopossuído.58

Essaéuma“possessãovenenosa”;“oviscosoécomoolíquidovistonumpesadelo,emquetodasassuaspropriedadessãoanimadasporumtipodevida e se voltam contramim.” É um pesadelo porque “tocar no viscoso écorrer o risco de se dissolver na viscosidade”. A armadilha do visco estáem sua luidez; “essencialmente ambíguo”, sem dúvida, “aberrante”,“imitaçãodaliquidez”.Seumododeserétraiçoeiro,ávido,cobiçoso,eéporissoque,“enquantodurarocontatocomovisco,tudosepassaráparanóscomoseaviscosidadefosseosigni icadodomundotodoouoúnicomododeserdoser-para-si”.

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Percorremos um longo caminho desde a tentativa de Frazer paraexplicar a crença primitiva nas qualidadesmágicas das fezes, do sanguemenstrual ou das aparas de unhas e de cabelo por referência à lógicaaberrante da magia que supostamente dominou o pensamento primitivoaté ser superada pela modernidade triunfante. O que antes nos pareciaumade iciênciadeploráveldamenteimatura,queacabariarecuandocompouca resistência diante da força da razão moderna, nós agora vemoscomoexemplo–claro, jáqueestranho–deumaregrabemmaisgeraldapráxishumana, cujaesferadeaçãoseestendemuitoalémdodomíniodacultura “primitiva”. Esse aspecto foi ampla e lucidamente explorado porMaryDouglas:

Quandore letimoshonestamentesobreaformadiligentecomoexecutamosastarefasdelimpare esfregar, sabemos que nossa maior preocupação não é tentar evitar a doença. Estamosseparando, estabelecendo fronteiras, dando visibilidade a declaraçõessobre o lar quepretendemos criar a partir de nossa casa material. Se guardamos o material de limpeza dobanheiro longe domaterial de limpeza da cozinha,mandamos os homens para o lavatório doandardebaixoeasmulheresparaodecima,estamos fazendoessencialmenteomesmoqueaesposa bosquímana quando chega a umnovo acampamento. Ela escolhe onde vai instalar suafogueiraedepois incaumavaretanochão.Issoorientaafogueiraelhedáumladodireitoeumesquerdo.Assim,olarédivididoemáreasmasculinaefeminina.…Adiferençaentrenósnãoéquenosso comportamento sebaseiana ciênciaeodelesno simbolismo.Nosso comportamentotambémtemumsigni icadosimbólico.Averdadeiradiferençaéquenão transportamosdeumcontextoparaoutroomesmoconjuntodesímboloscadavezmaispoderosos;nossaexperiênciaéfragmentada.Nossosrituaiscriamummontedepequenossubsímbolossemrelaçãoentresi.Osdelescriamumuniversosó,simbolicamentecoerente.59

A diferença é entre dois tipos de estrutura social, não entre duasdiferentes estruturas da práxis humana. Em ambas há a mesmatruculência endêmica contra o viscoso, a mesma e icácia e coerência emimporaomundocircundanteoquepodepassarporumaordemhumana.Somente num caso o “mundo circundante” é pequeno e confortável obastanteparaserabrangidoporumsóconjuntodearti íciosregulatórios;no outro ele consiste emmuitos planos intercruzados, cada qual levandouma vida parcialmente autônoma e oferecendo campos semânticostambém em parte autônomos para ancorar os signi icados. Umamultiplicidade de códigos simbólicos, em vez de um código coerente eunificado;masoprocedimentodesignificaredecifrarsignoscontinuamaisoumenosomesmo.

MaryDouglaséumadurkheimianaenérgicae iel,aomenosemPurezaeperigo;elaacreditacom irmezaque,nasociedade,nihilestinsensu,quodnon prius fuerit (“nada está nos sentidos que aí já não estivesse”). A

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estranha persistência com que os seres humanos de todas as épocasenfrentamadesordememseuslaresenasvulneráveisáreasadjacentesaseus corpos é responsável – postulaela – pelos requisitos perenes dasolidariedadesocietária.Éa“sociedade”queseesforçaporsobreviver,ouseja, pormanter sua estrutura intacta, ou forçar as pessoas a respeitá-lacomseu comportamento, trazendoamensagempara seus larespormeiodeumasériedebatalhassimbólicas,ritualísticas,contraadesordememsi.

Não haveria motivo para as pessoas temerem a desordem se ela nãofosse uma desordem “societária”; na verdade, elas di icilmenteidenti icariam qualquer arranjo como algo “desordenado” se o único“objetivo”dadesordem–umaviolaçãodaestruturasocial–nãofosseumexercíciosimbólicodelimpeza.Cortarasunhassóéumeventoameaçador,que inspira medo, porque simboliza a transgressão das fronteiras dogrupo. Diríamos que há um sistema semiótico que transforma defecarprivadamentenumsignifiantdosignifiédedefenderaestrati icaçãosocial.“Nãopodemos,talvez,interpretarosrituaisreferentesaexcrementos,leitematerno, saliva e todo o resto, a menos que estejamos preparados paraenxergar no corpo um símbolo da sociedade, e para ver os poderes eperigos creditados à estrutura social reproduzidos, emmenor escala, nocorpo humano.”60 A ubíqua metáfora de Menênio Agripa é realmenteimortal.

Seria di ícil, contudo, imaginar como a sociedade (ou de fato qualquertipo de rede regulada de relações humanas) seria possível se nãohouvesse uma propensão a regular a práxis incrustada nos animaishumanos. Pode-se traçar uma linha longa e quase contínua dos animaisinferiores até o homem, delineada pela natureza mutável do processoadaptativoorganismo-ambiente.

Essalinhatemumparalelonoplanodasqualidadesmentais,ouseja,dainteligência: “As funções mais generalizadas do organismo”, diz Piaget,“organização, adaptação e assimilação, são todas reencontradas quandonosvoltamosparaodomíniocognitivo,ondeelasdesempenhamomesmopapel essencial.”61 As duas estruturas – de adaptação corporal e dasoperaçõesdainteligência–sãodefatoisomór icas, jáqueasubstânciadainteligência,que implica tantoorepertório instintivo,hereditário quanto oinsumodoaprendizado,nãopassadoprocessodeadaptaçãoassimilatório-acomodatício realizado sem mudanças “materiais” e irreversíveis noambienteesemalteraçãoorgânicadocorpoemadaptação.

A ampliação da capacidade operativa do organismo no processo de

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evolução parecia vir acompanhada de uma mudança consistente nacomposiçãoda inteligência.A transformaçãoocorria empelomenosduasdimensões:(a)aumentodonúmerodeoposiçõesqueoorganismoécapazde distinguir signi icativamente, ou seja, como outorgantes de modosdistintosde comportamento; (b) reforço relativodopapel desempenhadopelas discriminações comportamentais aprendidas por ontogênese, emcomparação com o repertório instintivo da espécie. Em ambas asdimensões o processo alcançou o auge na espécie humana. Mas as duastendências de desenvolvimento, caso combinadas, produzem tanto anecessidade quanto a capacidade de suplementar (ou, de fato, desubstituir)aordemnaturalcomumaordemartificial.

Quanto mais oposições um organismo é capaz de distinguirsigni icativamente, mais “rico” se torna seu ambiente assimilado, e maisevoluída ica a correspondente estrutura interna de organização; mas oorganismoémenostoleranteaoscilações,mesmoquesutis,deseuestadoambiental. Os vermes, que distinguempoucas oposições,muito genéricas,como seco-úmido ou claro-escuro, podem sobreviver a uma série bemampla de revoluções ambientais sem alteração notável de estrutura; decertamaneira,dopontodevistadaespécie,são“perfeitamenteadaptados”aumespectroquaseilimitadodecondiçõesbastantediversas.

Essa situação confortável e estável, contudo, muda de forma drásticacomoaumentogradualdonúmerodeoposiçõescognitivamenteacessíveiscorrespondentes a padrões comportamentais diversi icados. O organismotorna-semaisseletivoemrelaçãoàgamadeambientesdisponíveis,e,aospoucos, é menos tolerante a suas lutuações; a maior dependência emrelação ao ambiente instável caminha emparelhada com o ganho emtermos de lexibilidade comportamental. Quanto mais “especí ica” for aadaptação da espécie quanto à biologia, menos provável será a respostaevolutivaopostaaumnovoconjuntodedemandasambientais.

Em suma, o organismo mais rico em termos cognitivos ecomportamentais tem uma capacidade de sobrevivência reduzida. Só háuma forma de compensar essa desvantagem paradoxal: passando o focodaadaptaçãodaespécieparao indivíduo,do instintoparaoaprendizado.Todavia, mesmo o poderoso instrumento do aprendizado (tornar-sesensívelanovasoposiçõessemióticasefazê-lassignificativas,ouseja,fixar-lhes os padrões opostos de resposta) teria um valor adaptativo apenaslimitado,aindacon inadoaumtipoúnico(emboraamplamenteconcebido)de ambiente ao qual a espécie se ajusta em termos sensoriais e de

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impulsos.O genuíno “aumento das possibilidades adquiridas pelo organismo no

cursodaevolução”,emquePiaget,seguindoRensch,vêamelhorformadeavaliaçãodoprogressoevolutivo, 62sósetornapossívelseacapacidadedeaprender for suplementada pela crescente capacidade da espécie demanter o ambiente (agora incomparavelmente mais rico em seusigni icado, e portanto menos capaz de permanecer “estável” por simesmo) dentro dos parâmetros que delineiam as fronteiras de suaadaptação evolutiva. A otimização das condições de vida numa espéciesensível, rica em termos semióticos e diversi icada da perspectivacomportamental, sópode ser alcançada, se équepode, pela criaçãoativade um ambiente estabilizado arti icialmente (isto é, com a atividade daespécie). Em outras palavras, ela exige uma práxis reguladora. A práxishumana, com suas regras generativas funcionalmente inevitáveis, pareceser um pré-requisito da sociedade humana, mais que seu artefatomotivadodopontodevistasimbólico.

Fezesesanguemenstrual,pedaçosdeunhasechumaçosdecabelonãoprecisamsimbolizarcon litosderuanemgolpesdeEstadoparasetornarperturbadores,misteriosos oumesmo aterrorizantes. São o que são paranós – quase instintivamente – graças à sua condição semiótica “viscosa”.Seu lugar não é aquinem ali; eles ultrapassam a fronteira cujaambiguidadeéopróprioalicercedaordem.Compartilhamessaqualidadetraiçoeira com raposas ou camundongos, cujo lugar é a “selva”, mas quenos impingem sua comensalidade; ou com os estranhos, que tentamconciliar o inconciliável, forasteiros e nativos ao mesmo tempo. Sua“viscosidade” pouco tem a ver com sua substância; ao contrário do visco“natural”, é produto da práxis humana. A qualidade da “viscosidade”preencheasáreassobrepostasdasdistinçõescriadaspelohomem,emborasem dúvida num grau variável. Nisso, no sentido semiótico e não comosímbolos, o visco tem como origem a atividade da sociedade. Ou, maisprecisamente,apráxisregulatóriahumana.

Umexemploesclarecedordaqualidadeendêmicadapráxishumanadegerarvisco foianalisadoemprofundidadeporLeachnumestudoclássicointitulado “Magical hair”. Se um estilo de penteado peculiar é escolhidopara signi icar o status social de um indivíduo (como um signodiscriminador entre esta e todas as outras partes da estrutura social),então a pessoacom esse penteado pertence a uma categoria diferente(de inidaporumconjuntodistintodedireitosedeveres)quealguémsem

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o penteado.Mas então o procedimento de criar o penteado, que envolvecortarocabelo,éumpoderosoatocriadorqueconfereàpessoasuanovaqualidade de inidora. Assim, os chumaços de cabelo, além de suaviscosidade“natural”,adquiremoutra,geradapelapráxis,eseuspoderesseampliameintensi icam.Sustentam-senãoapenassobreosdoisladosdafronteiraquasepré-culturalentre“mim”e“não-mim”;estãodosdoisladosde uma muralha intransponível, destinada a manter separadas duasposições sociais distintas. “O ato da separação … não apenas cria duascategorias de pessoas,mas tambémuma terceira entidade, a coisa que éritualmenteseparada.”63

Poderíamos dizer que essa condição é tão insustentável como a dosanguemenstrual, embora o padrão tenha se invertido: se o sangue nãotivesseescorrido,umnovoserhumanoterianascido;seocabelonãofossecortado, a pessoa permaneceria em sua condição anterior. Sanguemenstrual signi ica amortedonascituro;ocortedecabeloritual signi icarenascer da morte. A magia dos chumaços de cabelo recai na mesmacategoriadamísticado“honrarouniforme”,dodesdémpelo“novo-rico”edaadmiração,ancoradanomedo,queprovocamosagentesduplos.

Antesdapercepçãohumanadaviscosidadeexiste,portanto,apráxis.Arelaçãoentreambasofereceumprojetoamploemultidimensionaldoqueparece ser a promessa de uma pesquisa frutífera, rica em descobertassigni icativas. A perspectiva que advogamos sugere, em parte, areorganização de numerosas descobertas adquiridas sob outrosarcabouços analíticos; em parte, contudo, ela exige o estabelecimento deumprojeto totalmentenovo.Nosdoiscasos,a tarefaultrapassao limitadovolume deste estudo. Só se pode esboçar o que deve ser feito em linhasamplasegerais.

1)A primeira dimensãoda relação que se procura pode ser condensadana ideia de “densidade cultural”. Como bem sabemos, cada cultura érelativamentericaemdistinções inasesutisemumapartedeseucampocognitivo,emborarelativamentepobrenasdemais.Asáreasdeparticularconcentraçãodeoposições signi icativas, emque até asmenoresnuancessão observadas e assinaladas, sem dúvida constituem o cerne do tipo depráxis determinado. Algumas dessas áreas não podem ter sua origemfacilmenteatribuídaàtecnologiadasobrevivênciabiológica;aoqueparece,quantomais é assim,maispróximaestá a sociedade emquestãodoníveldamerasubsistência.

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Emsociedades com tecnologiaprimitiva, emqueo setormaisprecárioda práxis é aquele que tem relevância direta para a relação homem-natureza, as áreas de viscosidade que são objeto de tabu tendem a seconcentraremtornode fenômenosnaturais.Emsociedadesque,comonoiníciodofeudalismonaEuropaOcidental,parecemseorganizarsobretudoem torno da práxis de manter alguns estômagos cheios emmeio a umamaioria subnutrida, o repertório cultural é engenhoso em multiplicardistinçõessociaissutiseemfazerdamobilidadesocialumtabu(podemosver um quadro não muito diferente em nossa era moderna seconsiderarmosahumanidadecomoumasociedadeglobal).

Com as diferenças de classe perdendo um pouco de sua antigaimportância em condições de relativa abundância, e com entusiasmantesmudançasrápidasoferecendomaiorresistênciaàassimilaçãosigni icativa,talvez o foco da densidade cultural passe para as áreas intergeracionais,hipótese de que é testemunha eloquente a atual corrente mística econtagiosadageraçãoadolescente“viscosa”.Todosessessãotiposamplosde focos de densidade que não excluem – de fato, implicam – umaexuberantediversidadedeescolhasmaisespecí icasfeitasconcretamenteno interior de cada tipo. Tampouco queremos sugerir, neste estágioincipiente da pesquisa, qualquer espécie de determinação tecnológica ousócioestrutural dos fenômenos culturais; nada é mais estranho a nossasintenções,jáqueopressuposto,repetidasvezesenfatizadonesteestudo,édequetodasessasfacetasdaexistênciadohomemtêmorigemnamesmaraizdapráxishumana.

Ao analisar a práxis, seria melhor desa iar e abandonar a difundidatendênciaadividiras facetasanaliticamentedistinguíveisdoprocessoemcausaseefeitos.Sealguémdesprezaounãoconseguerealizaressatarefa,a penalidade inevitável é outra rodada de discussão estéril entre duasposiçõesbem-fundamentadas,mastambémunilaterais.

Sabe-se bastante bem, por exemplo, que a frequência e a so isticaçãodosritesdepassagedeVanGennep,ou,comodizRaymondFirth,dosritostelécticos (“despir o velho e vestir o novo”),64 reduziram-se de mododrástico com o advento da sociedade moderna, complexa e de grandemobilidade.Ofenômenofoicomentadoporumasériedeantropólogos.Emsua festejada teoria das cerimônias, Max Gluckman vinculou – aliás, demodocorreto–aorigemdasúbitadesapariçãoderitosantesonipresentesao fato de a passagem para um novo papel estar associada, em nossasociedade, namaioria dos casos, a umamudança no conjunto de pessoas

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em interação; tanto os novos quanto os velhos grupos conhecem oindivíduoemquestãonumúnicopapel,demodoqueoanúnciopúblicodeumanovaqualidadesocialdesse indivíduo (queéaessênciados ritosdepassagem)setornariasupérfluo.

O raciocínio subjacente, sem dúvida, é o seguinte: a onipresença e aelevadafrequênciadosritossãoprodutodasexigênciasdeumasociedadepequena e autossustentável, em que os indivíduos acumulam múltiplospapéis, cada qual desempenhado num contexto de interaçãofuncionalmente distinto, porém no mesmo grupo; mas, numa sociedademoderna, complexa, embora eles se encontrem em planos diversi icados,osespectadores,destinatárioseparceirosdecadapapelqueumindivíduopodedesempenharmudamcomopapeldesempenhadonaquelemomento;os ritos, portanto, não apenas perdem sua função, tornando-seredundantes, como também veem-se desprovidos de signi icação para opúblico desconhecedor de seu contexto estrutural. Por conseguinte, elesdeixamde ser “determinados” pela estrutura da sociedade, e aos poucosvãodefinhando.

Emborasepossaconsiderá-laconvincenteeaceitável,essaexplicação–apesardetodaasutilezaedore inamentodanoçãodedeterminaçãoqueemprega–nãopassarianotestedametodologiadapráxis.Éverdadequeocontextodeumarededeintensainteraçãosocialemcamadasmúltiplas,depequenaescalaeautossustentável, “pressiona”paraque se concedamevidência e alta visibilidade aos signos indicadores de cruzamentoscomportamentais. Ainda assim, a facilidade e a versatilidade com que osindivíduos passam de um papel para outro, certos de que a respostaadequada de seus companheiros virá, é um feito pelo qual os ritos depassagemdevemserconsideradosresponsáveis.

O tipo de sociedade emdiscussão é criado e perpetuado, entre outrascoisas, pela práxis dos ritos. Essa aparente reciprocidade de in luênciasmuitas vezes é tratada com um conceito que desa ia a lógica, o de“interação de causa e efeito”, o qual ridiculariza, em vez de resgatar, odeterminismo convencional. Toda ideia de causa em relação a efeitopresume a existência da primeira independentemente da ocorrência ounãodosegundo;masessenãoéocasonoexemploanalisado,assimcomonãoé,naverdade,emqualqueroutrocampodapráxis.

Da mesma forma, a relação que tentamos compreender resiste a sertratada em termos convencionalmente funcionais. O projeto dofuncionalismo como metodologia explanatória mira um alvo

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contraproducente. Ele não se contentaria em moldar a rede decomunicaçãoentreasunidadesdeumsistemaacessíveldopontodevistaempírico,ouimagináveldaperspectivalógica;desejaserresponsávelpelaocorrência de algumas dessas unidades em termos de “exigências”, “pré-requisitos” ou simplesmente determinação por outras unidades do“sistema”comoumtodo,comoumasupraentidade.

I.C. Jarvie observou, aliás de maneira correta, que, ao selecionar osistema como principal fonte de referência, o projeto funcionalistadi icilmente poderia concretizar suas próprias pretensões; ele “não vaialémdos fatosqueprocura explicar”; 65 assim, o que oferece não é o queestamos acostumados a entender por “explicação” (redução a uma regramaisgeraldoqueocasoexplicado).

Emboraesseaspectopossaserimportante,ascausasdainconveniênciaendêmicadoprojetofuncionalnotratamentodapráxishumanasãomuitomaisprofundasqueainabilidade,aindadiscutível,dofuncionalismodianteda tarefa de deduzir “funções” a partir de “pré-requisitos” (em vez depostular “pré-requisitos”apartirdapresençade “funções”,oqueele faz,em oposição a seu projeto explícito). Essas causas vão tão fundo quechegam ao próprio pivô da metodologia funcionalista, a classi icação dasunidades analíticas em dependentes e independentes, herança dametodologiadeterministaabsorvidaeassimiladapelofuncionalismo;comodiriaErnestNagel, nasMs (“metas”) e CEs (“coordenadasdeEstado”) dosistema.66

As Ms foram especi icadas de muitas maneiras diferentes; entre ossubstitutos mais populares podemos apontar a sobrevivência dedeterminadaredederelaçõessociais,aestabilidadedeumvalordegrupocentral, a manutenção de um corpo político em particular. Em cada umdessescasos,aposiçãometodológicaébemsemelhante:algunspadrõesdepráxis humana passíveisde repetição são “explicados” assinalando-se opapelporelesdesempenhadoaserviçodeuma“M”.

Nesse sentido, o arcabouço lógico essencial do raciocínio apresentanotável semelhança com o que é consagrado pela tradição determinista:em alguns eventos investigados, um deles é dotado de papel superior, ooutro,depapel subordinadoouderivado.Aúnicadiferençaentreosdoisprojetosexplanatóriosconsistenofatodeodeterminismobuscardeduzirosegundo eventoa partir do primeiro, enquanto o funcionalismo praticaumaredução do segundoaoprimeiro.Quando,porém, confrontada comametodologia dialética da práxis, essa diferença, independentemente das

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paixões intelectuais que provoca, revela-se de pouca importância. Ametodologiadapráxisopõe-sedeformaradicalaotratamentopreferencialdequalqueraspectodistintodoprocessosocialemtermosanalíticos:dessaperspectiva, a “estrutura social” e as facetas “culturais” (no sentidoideacional da distinção) do processo são tão inseparáveis e resistentes aqualquer “hierarquização” quanto o signifiant e osignifié num evento-signo.

A diferenciação das comunidades culturalmente distintas do ponto devistade seu focode “densidadecultural” (opontoemque se concentramasmais intensasatividadesantiviscosidade)podesermaisbemexplicadaseenfrentarmosoproblemaapartirdametodologiadapráxis.Asprópriasregrasdapráxis,quetranscendemasfronteirasdequalquercomunidadecultural tomada de modo isolado, podem ser “explicadas”, à maneiradeterminista, por referência às suas raízes biológico-evolutivas ou ao seusubstrato biológico-neuro isiológico; ou em termos funcionais, quando sedestaca sua correspondência à natureza pré-humana do Universo, e, porconseguinte, seu valor adaptativo.Masnemoprojetodeterministanemofuncionalista podem dar uma explicação para o uso especí ico que seatribuiaessasregrasemculturasparticulares,pelomenosumaexplicaçãoimuneàacusaçãodeinconsistênciaeunilateralidade.

Seria proveitoso ter em mente as advertências de Boas, hoje fora demoda,emrelaçãoaodesprezoàhistória, semnecessariamente concordaremtudocomestequeéumdosmaisin luentesadversáriosdosuniversaisculturais. O que desa ia todas as tentativas de aplicar as abordagensdeterministas ou funcionalistas com coerência à práxis histórica é suaessencial imprevisibilidade,nãonecessariamenteemcontradiçãocomsua“inevitabilidade” (como no caso da evolução biológica ou, na verdade, dodesenvolvimento da inteligência, a junção particular que Piaget, seguindoLalande,chamavade“vecção”).67

Oqueocorreu (seéqueocorreualgumacoisa) foi “determinado”pelapura lógicado arcabouço analíticodeterminista;masnadaque aindanãotenha ocorrido, nada que ainda não tenha sido realizado, pode serdeduzidodemaneira inequívocaapartirdoquejásepetri icounumfato,vistoqueeventosanterioreslimitammasnãodeterminamsuassequênciasemprocessoscomoaevoluçãobiológica,oaumentodoconhecimentoouatotalidadedahistóriahumana.Nadasenãoosuniversaisformaisdapráxis,suas “regras generativas”, constitui o núcleo duro, invariante, da históriahumana; e talvez só se possa a irmar racionalmente isso à medida que

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con inemosnossavisão,demaneiradeliberada,aotempodeexistênciadenossa espécie, o que em si mesmo constitui um evento histórico numcontextomaisamplo.

2)Asegundadimensãodevariaçãonasreaçõesàviscosidaderelaciona-seàmatériadeque são feitos os sinaisde advertênciaquedizem “Cuidado,pistaescorregadia”.Trata-sedeexemploespecí icodeumtemamuitomaisamplo, da diversidade de substâncias a partir das quais os itens-signosculturais são fabricados, e da relação desse veículo com as distinçõessocioculturaisqueessesitensassinalameproduzem.

Tratamos desse problema, apresentado de maneira mais geral, noCapítulo 2; apontamos então que, qualquer que seja a posição nalinguagem, os signos culturais não linguísticos não passam no teste daarbitrariedade dosignificant em relação aosignifié. A maioria dos itensculturais, independentementedosartefatosdapráxisoudeseuspadrões,relaciona-sedemaisdeumaformacomoprocessohumanodevida,enãoapenasdemaneirasemiótica.Nopresentecontexto,o importanteéqueopeso relativo atribuído a formas especí icas podemudar, dependendo dealteraçõesnofocodadensidadecultural.

Em seu abrangente levantamento dos estudos sobre comportamentoagressivo,R.CharlesBoelkineJonF.Heisermencionamaameaçaaostatuscomoumdosmaioresestímulosàreaçãoagressiva.Aposiçãoestabelecidadeumindivíduoéperpetuadaefortalecidaporumaabundânciadesignospadronizadossobretudonoritualdainteração:

Entre dois homens de diferentes posições numa mesma organização, o de categoria inferiorprestará deferência ao superior abrindo-lhe as portas; caminhando atrás dele, e não à suafrente,noscorredores;dando-lheaveznobebedouro,norestauranteounobar;falandomenoseouvindomais;edetantasoutrasmaneirasqueseriamdemaisparamencionaraqui.68

Boelkin e Heiser concentram essa descrição em signos destinados agarantir diretamente o status de um indivíduo, ou seja, pela conduta dosoutros em relação a ele e para ele orientada. Mas, do ponto de vistasemiótico, estes pertencem à mesma categoria de outros signosreguladores, responsáveis pelo estabelecimento e a guarda de fronteiras,bem como pela continuidade dos arranjos de eventos signi icativos,previsíveis e, portanto, seguros. O que está ameaçado pela retirada dossignos de deferência do status “individual” é a sensação de certeza eadministrabilidadedasituação.Masamesmasensação, fundamentalpara

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a interação, estará em perigo se algum outro “portão” construído emalgumadas“zonasdefronteira”(termosdeKurtLewin) 69egovernadoporregras impessoais, dispersas, ou por “porteiros” personalizadosespecí icos, sair de controle. Podemos assim postular uma ampliaçãosimilar do escopo da “violação de fronteira” a que se aplica o seguinteresumodeBoelkineHeiser:

Um superior detecta, em primeiro lugar, os elementos de um desa io quando um inferiorimediato deixa de agir comdeferência eassumepadrõesde comportamento coerentes comosque prevalecem entre os de mesma categoria [ou seja, engendra uma situação tipicamente“viscosa”].Reconhecendoumaameaçaaseustatus [ou,maisgenericamente,aviolaçãodeumaordem baseada no caráter inequívoco das discriminações], o indivíduo ameaçado [em suasegurança cognitivo-emocional] pode dar início a uma variedade de medidas repressivasdestinadasa“colocaropretensiosoemseudevidolugar”.

Apredisposiçãoareaçõesagressivaséprovocadaeestimuladaporumavariedadedeeventosquedi icilmentecompartilhamalgumacaracterísticaentre si, com exceção da incidência da “violação de fronteiras”. Com umdiscernimento admirável, Thelma Veness 70 explica a agressão comumprovocadapela violaçãodo espaçopessoal em condições de superlotaçãopostulandoummedoendêmicodeperdadaidentidade.Tudoqueentrano“espaçopessoal”logosetornaviscosoeliberaoimpulsodeestabelecerumtabu.

Ora,deveríamostercuidadoemadotaranoçãode“espaçopessoal”emsentidomuito literal; a tendência demuitos psicólogos, emparticular dosetologistas, a de inir o conceito no sentido imediato, topográ ico, de“proximidade ísica”, ébastantecompreensível tendoemvistao interesseque eles têm por propensões comportamentais de base ampla, que osseres humanos compartilham com outros animais;mas o espaço em quevivem os homens émuito simbólico; e a tendência a discriminar, que nocaso dos animais só pode se materializar nos ambientes fornecidos pelanatureza, é estabelecida pelos seres humanos sobre uma tela simbólicaquemuitasvezesresisteaqualquer tentativadesituá-lanoespaçoounotempo “ ísicos”. Assim, “espaço pessoal” signi ica a segurança do status etambém a do corpo; é o “espaço da vida”, delimitado pela proteção dasfronteiras do grupo e pela inviolabilidade do território de caça oupastagem – enquanto uma ampla área de fronteiras conceituais éimpensável fora de um universo simbólico e, assim, na melhor dashipóteses,sótemumapequenarelaçãocomomundoanimal.

Uma vez mais, o problema diante do qual muitas fronteiras

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simbolicamentemarcadassãoconsideradasvulneráveis, eportantooquemais produz visco, depende, em última instância, da práxis humana, talcomo a tolerância ao cruzamento de fronteiras e ao uso ilícito de sinaisinconvenientes, impróprios e, portanto, confusos. O material com que ossignossãomoldadosé,acimadetudo,umaquestãotécnica.Mas,apesardealgumas substâncias perenes universalmente fornecidas pela natureza(cabelo, ornamentos faciais, modelagem de braços e peito etc.),71 queconstituem a primeira opção em muitas circunstâncias, quase todos osmateriaisvariam,dependendodo tipodesubstânciaprocessadanocursodapráxis.

O importante, aqui, é que nenhuma diferença “natural” é percebidanecessariamenteeemtodasascircunstânciascomoumpostodefronteira;elasósetornaissoquandoumsigni icadosociallheéatribuídopelapráxiscomunal. Nãomuito tempo atrás a roupa dos jovens era a roupa comum“dos adultos” cortada em tamanho menor, porque os jovens eramsocialmentede inidoscomo“gentegrande”emminiaturaeavaliadospelaproximidade em relação aos padrões estabelecidos para os adultos. Ospadrõesdealfaiatariapassarampordrásticasmudançasemconsequênciado abandono do antigo conceito de “aprendizado” e do acúmulo dedistinçõessociaissignificativasemtornodasfronteirasintergeracionais.

De modo similar, existem amplas evidências de que a cor da pelepassava despercebida no Mediterrâneo antigo e não era consideradaimportante o bastante para merecer registro; na miscelânea racial doImpério Romano, as diferenças sociais não se sobrepunham às divisões“naturais”, e as distinções “naturais” entre os homens passavam pura esimplesmentedespercebidas, atraindopoucaatenção.DizRolandBarthesqueénecessárioummitopara“transformarhistóriaemnatureza”, 72paraacreditarqueoprodutodapráxishumanaéumaleinaturalinescapável.Édifícilimaginarumaexceçãoaessaregra,mesmonocasodediferençastão“obviamentenaturais”,postoquequasepan-históricaseuniversais,comoaqueexisteentrehomensemulheres.

A práxis moderna corrói com vigor nossa crença aparentementeinabalável na irrevogabilidade dessa distinção estabelecida ao desa iaroposições sexuais consagradas em matéria de vestimenta, papéis nonamoroeno intercurso,hábitossociais,hierarquiadedeferênciaetc.Nãoque os signos de fronteira tenham se tornado de repente ilegíveis outenhamperdidoseupoderdeatraçãocomumarecentemudançanamoda:oquedefatoocorreunessecaso,comoemtodososcasossemelhantesde

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signosespecí icosqueperdemseupoderdesigni icação,foioafastamentodaprópriafronteira;ossignos,semdeixardeexistirnosentido ísico,nãosão mais marcos fronteiriços, e seu oscilar desordenado não leva à“viscosidade”dasáreasinvadidas.

3) A última dimensão que desejo comentar é a da diferenciação entreindivíduos e grupos no interior de um todo que pode ser racionalmenteconsideradoumaculturaúnica.Nãoháuniformidadenograudetolerânciaà viscosidade de inida em termos culturais. O problema da reação àviscosidade é coextensivo aos temasdenominados reações à incerteza ouao sentimento de insegurança, como a ação sob estresse, o impacto detentativasfrustradasetc.Muitosetemescritosobretodosessestópicos,ehá um acordo bem amplo entre os psicólogos de que as variáveisindividuais (a biogra ia pessoal, com ênfase particular na infância e naexperiência pré-natal, assim como as variações genotípicas individuais) ede grupo (frequência e qualidade das interações, acessibilidade dainformação, relações de dominação etc.) modi icam o comportamentohumano nos sentidos já mencionados, embora haja muito menos acordoemrelaçãoaovolumeesobretudoaomecanismodaintervenção.

Concorda-se, contudo, que a tolerância a situações ambíguas éinversamente proporcional à insegurança pessoal e de grupo, embora sepossam reunir evidências também abundantes para sustentar a tese daexistência de uma relação íntima entre insegurança e criatividade,presságio de uma falta de respeito quanto às divisões consagradas pelatradição. Duvido que o progresso de nosso conhecimento mais corretosobre o problema tenha deixado obsoleta a conclusão a que chegouGordonW.Allport,em1954:nocasodequalquercondensaçãoparticularde intolerância à ambiguidade, “a compreensão máxima do problema sópode ser alcançada pelo conhecimento do contexto histórico em cada umdos casos”73 – o que signi ica recorrer à práxis. Em vista do caráterinconclusivodasdescobertaspsicológicas,oqueseseguedevesertratadocomoumasondagemdoterreno,enãocomoumahipótesearticulada.

Talvezofracassoemsechegaraumavisãouniversalmentesustentadado tema emquestão se deva a uma confusão despercebida, presente emalguns estudos sobre a reação à ambiguidade. Uma vez que, pormotivosóbvios, a visão de determinado pesquisador se reduz a um só tipo deambiguidade, por mais genérico que ele seja, o que se toma por atitudetoleranteàambiguidadeemsisópodeatestaruma“guinadatemática”na

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sensibilidade ao viscoso. Pela mesma razão, talvez todo o esforço deordenação do universo de um indivíduo ou grupo, em desa io à atitudetípica de sua vizinhança social mais ampla, seja condensado numa únicadistinçãoounumconjuntodelas;eporumaboarazão,comcerteza,jáquea preservação dessas distinções, e somente delas, pode decidir todo oresultadodapráxisdogrupo–porexemplo,garantirparaogrupoabuscado lócus na estrutura social que forneça o ponto focal DAE da sua visãogeraldemundo.

É questionável se os grupos ou categorias de indivíduos podem serclassi icados de acordo com a intensidade global dos ressentimentos atodos os tipos de ambivalência. Isso porque (graças às peculiaridades dapráxisdogrupooua idiossincrasias individuais)os focosdeambiguidadede que as pessoas mais se ressentem, ou os tipos de viscosidade maisobsessivamentetemidos,estãosituadosemlocaisdiferentes.

A percepção da veemente intolerância apresentada pelosmovimentosradicais pode basear-se, ao menos em parte, numa espécie de ilusão deótica.Umavezquea totalidadedaexistência socialdogrupodependedapromoção de suas inalidades ainda não atingidas; e já que essasinalidadessóexistemcomoumprojetoaindapoucoasseguradopelavisãodesensocomumdarealidade(aocontráriodeseusadversáriosmaisbem-estabelecidos, que são aceitos pela “razão” popular), depreende-se queuma intensidade emocional singular deve ser concentrada nessa tarefaúnica, e cabe tomar um cuidado incomum para preservar a pureza dogrupoeaclarezadesuasfronteiras.

Atotalidadedapráxisdogrupodefatoseacumulaemtornodalinhadefronteira“eu-eles”(àcustadasoutrasfronteiras,queseriamvulneráveisesensíveis; daí a notória dissolução do indivíduo em seu grupo namaioriadosmovimentos radicais), comoumsó “nós”, escolhidoemdetrimentodetodososoutros,tãovariadosemcircunstâncias“usuais”.Talvezalógicadapráxispeculiar,maisqueaautosseleçãodeindivíduospeculiares,expliquedeformainteligívelaestranhacondutadosgruposradicais.Naverdade,asituação de um grupo em guerra radical com a sociedade deixa poucoespaço para uma atitude liberal, o que foi adequadamente de inido porBarthes como “uma espécie de equilíbrio intelectual baseado em lugaresreconhecidos”.74

Apráxisdeummovimentoradicalrefere-seao“desreconhecimento”delugares reconhecidos; acima de tudo, estão longe de se reconhecer oslugaresea realidadeprojetadadentrodaqualomovimento radicalpode

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sersituado.Avisãojábastanteaceitadaforteintolerânciadosindivíduosegrupos radicais em relação à ambiguidade di icilmente pode serequiparadaànotóriaprestezademuitosmovimentosradicaisemdesa iare ultrapassar outras divisões consagradas; a totalidade de sua supostaintolerância é descarregada na vigilância expressa na famosa fórmula“quem não está conosco está contra nós”, destinada a eliminar aviscosidadenumaúnica,porémvital,fronteira.

Neste ponto, estamos diante de uma distinção importante que,malgrétout, deve ser estabelecida no interior do “campo radical”. Como reza asabedoria popular, exacerbada por muitos intelectuais de mentalidadeliberal,lesextrèmessetouchent,eoradicalismodedireitaedeesquerdasedissolvenumaimagemabrangentede intolerânciabelicosa,militante.Elesdefatoseencontram–masapenasdaperspectivadoliberalismo,queéaWeltanschauung de ummundo seguro e bem-estabelecido, em que todosserestringemaoseulugarjáreconhecido;atolerânciaéampliadadeboavontade, já que di icilmente é necessária. Quando se aplica a perspectivadetolerância(emrelaçãoàordemestabelecida,oumelhor,atodomundo,jáquetodomundoareconhece)versus intolerância(emrelaçãoàordemestabelecida, ou melhor, à maioria, uma vez que esta a reconhece), osradicalismos de direita e de esquerda de fato se aproximam de formasuspeita.

Nessa perspectiva, o esforço de estabelecer uma linha nítida entre osdoissefrustra.Emcertosentido,ofracasso inalestáembutidonopecadooriginaldeselecionarumaperspectivacognitivainadequadaparaatarefa.Aocontráriodaopiniãoquevemganhando terrenonaciênciaacadêmica,parece haver critérios razoavelmente claros para sustentar a tradicionaldistinção entre os radicalismos de direita e de esquerda (embora nãoentreorganizaçõesquereivindicamessesrótulos),não importaonúmerodeMussolinis eDoriots quepossamaparecer comoprovapersuasiva emcontrário.

Queremos sugerir as seguintes distinções: o traço distintivo doradicalismodedireitaéumaintolerânciadifusa,nãoespeci icada,amorfaedispersa. Sua sensibilidade à ameaça da viscosidade não é produto doprojeto que ele tenta impingir ao mundo, mas que julga estar emdiscordância com a realidade; pelo contrário, ele escolhe a realidadehabitual, espalhada por toda parte, bem-sustentada, espelhada emdiversoseventosquesereforçam,previsívelediscretamenteóbvia,comooúnicouniverso tolerável (ou, na verdade, habitável). Ele carece, de forma

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endêmica,dequalquerprojetoquesedesviedasrotasmuitotrilhadas;naverdade,émotivadoemseuradicalismopelomedointrínsecodoincomum,do estranho, do ainda não materializado, do desconhecido; é o medo daideiaqueseerguecontraarealidade.

Oradicalismodedireitanãopodetranscenderopontodevistadoreal;éporissoque icaaterrorizadoporumaideiaquequestioneomonopólioea sabedoria indisputáveis do real, e assim exige aminuciosa investigaçãodoóbvio,ouseja,do inescrutável.A intolerânciadadireita,portanto,étãodesprovidadefocoquantoaprópriarealidadequedefende.Emvezdisso,jaz à espreita em diversas emboscadas montadas onde quer que arealidadepossaencontrarseuprópriofuturo.

Há um tipo (mas não uma classe) social cujo status o predestina aopapeldeprincipalabastecedordoradicalismodedireita.DesdeMarx,essetipotemsidochamadodepequeno-burguês.MaisumavezcitandoRolandBarthes, “o pequeno-burguês é um homem incapaz de imaginar o outro.Quandosevêcaraacaracomele, icacego, ignora-oeonega,ouentãootransforma em si mesmo. … Isso porque o outro é um escândalo queameaçasuaessência”. 75Nãoháespaçoparaooutrono initouniversodesigni icados do pequeno-burguês, já que sua essência é o espelhar-seuniversal, interminável, monotonamente repetido, de um e do mesmopadrão existencial; é o médio elevado às alturas absolutas dauniversalidade.Omodode ser domédio é o viscoso; ele é o protótipodaviscosidade.

Omédioruminasobretudoqueencontra.Devora,digeree transformagrotescamente tudoque lhe cai à boca.Tal comoa relva alpinadevoradapor um bando de ovelhas vorazes, o mundo suavizado pelo médiotransforma-se numa uniformidade monótona, numa charneca sombria.Tudo que é borrifado com imprudência na traiçoeira super ície calma epací ica domédio desaparece para sempre; omédio ganha sua força (naverdade perpetua sua existência) desintegrando tudo à sua volta paratransformaremseupróprio corpo, cadavezmaior,que jamaisatingeumlimite.

O médio não é a única entidade que cobiça e se expande; seu traçodistintivo, porém, consiste no fato de a gula ser o único modo desobrevivência à sua disposição. Pode escolher entre engolir e assimilartudoaquilocomque fazcontatooumorrer.Paraomédio, todoorestodomundo se divide entre a substância a ser engolida e o inimigo a sercombatido de maneira incansável e impiedosa. Não há espaço para

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distinções sutis nem para contemplar os matizes e nuances da tela.Consistindoelemesmonumageneralidadepuraesemforma,opequeno-burguêsnãoconseguedeixardeverseuinimigocomooarqui-inimigo,umpoder satânico onipotente, uma concentração generalizada de todas assuasameaçasgenuínasoufantasiosas.

Foi o pequeno-burguês que se agarrou com avidez à fórmula simples(pois generalizada) de Dan Smoot sobre as complexidades da políticamundial: “Considero o crescimento do Estado de bem-estar socialequivalente ao socialismo, e o socialismo ao comunismo.”76 Ou leiamatentamenteasestatísticasdoBulletindaJohnBirchSociety,queestimouocontrolecomunistasobreosEstadosUnidoscomode20-40%em1958,30-50% em 1959 e 40-60% em 1960 (a estimativa correspondente para aGrã-Bretanha, em 1960, foi de 50-70%). 77 Ou absorvam as notíciaseletrizantes da concentração do inimigo ao estiloall-inclusive, em querebeldes religiosos, separatistas caribenhos, Harold Wilson, 2 jornalistas,professores universitários, entusiastas dos direitos civis, adversários dotimedecríquetedaÁfricadoSuleestudantesbaderneirossereúnemesemisturamdeformaconvenienteparaproduzirumasubstânciainfernal.

A mistura concisa de tudo que é bizarro e fora da média num únicocomposto, fácil de apreender, fácil de identi icar e poderoso o bastantepara manter elevada a necessidade de vigilância resulta numa “crençahistérica”, de inida por Neil J. Smelser como “um credo que dota umelemento ambíguo no ambiente do poder generalizado de ameaçar edestruir”. Talvez pareça que o aguçamento de paroxismos histéricosdi icilmenteserviriadeinstrumentodecuraseaansiedadeprofundafosseamoléstiaquesepretende tratar;emvezdeacalmarasmentesafetadaspelo terror, isso expandiria o medo até limites quase insustentáveis aoin lar o perigo real ou ilusório. De fato a histeria é um remédio, emuitoe icaz nesse sentido. Ela suaviza a doença de duas maneiras: primeiro,maisumavezcitandoSmelser,aoestabelecercertonívelde“estabilidade”:

A crença histérica elimina a ambiguidade que produz a ansiedade ao apresentar uma ameaçaqueégeneralizadaeabsoluta.Assimaameaça,originalmenteapenasambíguaeprecária,ganhaacertezadeprejudicaredestruir.Dessamaneira,umacrençahistéricaestruturaasituaçãoeatornamaisprevisível,aindaqueoprocessoestruturanteresulteempessimismoprofundoouemmedos terríveis.Numambienteambíguo,umapessoaéansiosaporquenão sabeoque temer;sustentandoumacrençahistérica,apessoapelomenosconheceaquiloqueteme.78

O fenômeno é muito mais geral do que a propensão do pequeno-burguês a generalizar seu temorem relaçãoao foradamédia, jáque, tal

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comooheróideOzeroeo in inito aprendeucomalgumsofrimento,“todador ísicaconhecida era suportável; quem conhecesse exatamente deantemão aquilo por que ia passar suportava-o como a uma operaçãocirúrgica–porexemplo,aextraçãodeumdente.Ruimmesmoeraapenasodesconhecido”.Alémdisso,porém,ahisteriateme icáciacomprovadaemlidarcomotipodeansiedadequeemanadapresençadoviscoso:aojuntá-lo com um inimigo aberto, indisfarçado, supostamente bem-conhecido, acrençahistéricaprivaoviscosodesuapeçonhamaisvenenosa,atraiçoeiracarência de uma forma distinta, e assim faz com que tudo volte ao lugar“certo”,incluindoaintegridadedoegoameaçado.

Em suma, como Clyde Kluckhohn postulou no caso de um dessesinimigos generalizados, capazes de explicar tudo, “uma das ‘funções’manifestasdacrençanabruxariaéqueelafornecerespostasaperguntasque de outra forma seriam desconcertantes – e, por seremdesconcertantes,perturbadoras”.79

Ao examinar os movimentos sociais de direita, “que se baseiam nopressuposto de que a humanidade está sendo conquistada por umaconspiraçãopoderosaedifundida”,HansTochassinalaque,paraohomemda rua, que “por vezes mostra uma distinta predileção por teorias queincluamcomplôs”,

alémdefornecerumalvoconcretoparaastensões,asconspiraçõespodemsimpli icarosistemade raciocínio daquele que crê e suaconcepção de causação social. … Numa conspiração, acausação torna-se centralizada (pelo fato de que todos os eventos podem ser atribuídos a umgrupodeconspiradores),alémdeintegrada(jáqueosconspiradoresemtesesabemoqueestãofazendoedesejamqueseconcretizemasconsequênciasdesuasações).80

A teoria da conspiração preenche o requisito da generalização que seoriginanomodoexistencialdopequeno-burguês;ovínculo íntimo,muitasvezesenfatizado,entreopequeno-burguêseoradicalismodedireitanãoéde modo algum acidental. Orrin E. Klapp, contudo, chama nossa atençãopara válvulas de escape alternativas, utilizadas com a inalidade dedescarregar a mesma e excessiva ansiedade pequeno-burguesa semrecorreraumcomplô implacáveleonipotente.Pessoasque“nãosabemoque é errado, em especial quando existe prosperidade material, mas aomesmotempotêmasensaçãodeestarsendoenganadas”,podemtentarsesalvar da ansiedade profunda,mas indeterminada, com a prática do ‘ egoscreaming’,apreocupaçãocomtrajeseornamentos,asrebeliõesdeestilo,ainquietaçãocomgestosemocionais,enãocomefeitospráticos,aadulaçãodeheróis,ocultismoecoisasdessetipo”.81

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Há uma evidente diferença de ênfase entre a primeira solução e asegunda: a primeira orienta-se para fora, a segunda, para dentro. Opequeno-burguês pode tentar ressaltar a estranheza do outro; podetambémpôr-seatrabalharnoextremooposto,natentativadeassumirsuaprópria identidade reforçando-a com sinais de alerta redundantes.Qualquer que seja o caminho escolhido, intenções e resultados sãosemelhantes: a demarcação nítida e clara da fronteira “nós-eles”,reforçando a postulada e visível oposição entre o “nós”, o universal, e o“eles”,oesquisito,orepelente,oinassimilável.

Tratamos até agora demecanismos defensivos destinados a restauraroureforçarbarreirasou identidadesenfraquecidasousolapadas,oqueéumapráxistípicadedireita;oudearti ícioselaboradosparasalvaguardaruma identidade frágil, incipiente, ameaçada por um projeto novo eincomum, que é a característicade inidora de uma práxis de esquerda.Mas uma nova tendência, amiúde associada ao conceito demodernidade,temganhoímpetonomundoocidental.Emvirtudedapropensãonaturalaclassi icartudoqueébizarroemcategoriasjásigni icativas,essatendênciamuitas vezes é descrita como um novo espécime de uma categoria jáassimilada emnossa imagemdemundo, seja como “nova esquerda”, sejacomo“neofascismo”.

A tendência em questão di icilmente cairia em uma dessas classes. Arazãopela qual é possível contestar com facilidade qualquer tentativa deidenti icá-la comumdos extremos do espectro – e a rapidez comque sereúnemargumentoscontraqualquerofertadeclassi icaçãoinequívoca–éo fato de que as características que a destacam não se situam no eixoesquerda-direita. A tendência da modernidade vai contra ambas e lhesdevolve sua controvérsia e seu argumento comum com a leniênciaindolenteedescuidadadoliberalismomaisobsoleto.Essatendêncianãosedistingue pelo lugar em que propõe erguer os redutos e as torresantivisco; ela nega a própria necessidade de luta, nega a viscosidade doviscoso;estendepontesonde issoeraconsiderado impossível, transcendeo intransitável, consolida o imiscível. O projeto de descobrir os paisfundadoresdosurrealismo,movimentopioneirodoModernismo, tal comodescritoporAlfredWillener,podeservircomopadrãobastantetípico:

Estabelecercontatosentreesferasatéentãovistascomoestranhasentresi,a imdepromover,apartir do choque resultante, adestruição da sensibilidade. … Não há barreiras entre camposdiferentes, ou, pelo menos, as separações que ainda sobrevivem podem ser derrubadas, e otrabalhodederrubá-lasdeveseriniciado.82

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Sem dúvida cabe distinguir com cuidado as formulações incisivas davanguarda–dirigidasdemodoabertoedesabrido“contraotododeumasociedade próspera e que funciona bem”, contra todos os princípios deordem signi icativa até hoje consagrados (assim separando a vanguardadas massas e limitando o pool de seus potenciais militantes a “minoriasativas, sobretudoentre a intelligentsia jovem de classe média)83 – damudançatalvezmenosespetaculareperturbadora,porémmaisprofunda,que corrói hábitos populares estabelecidos. A “minoria ativa” davanguardachegariaapontodeproclamar“airreverenterejeiçãodotempolinear, da lógica, da própria história”, e exigir um “novo estilo de vidaprimitivo” que “é a entrega a um jogo in indável: um jogo que devequebraratéaregradequetodasasregrasdevemserquebradas”.84

Dadaanarcisísticafaltade limitesdavanguardaeossádicosarroubosque parece experimentar ao colocar em teste a resistência dos outros, a“maioria” tende a ser atraída para a ilusão das protetoras couraçasenferrujadaseforademoda;aprecipitaçãoultrafervorosaeintransigenteexibida com profusão pela vanguarda na verdade pode levar àressurreição das tradicionais reações pequeno-burguesas à situação deconfusãoeincerteza,oquenovamentetornaráaindamenosinteligíveisastendências genuínas da sociedade moderna. Embora seja compreensível,nessas circunstâncias, negligenciar os novos padrões de práxis quepermeiama vida atual seriaumerro imperdoável.Oqueparece emergirdemodolentoetalvezerráticoéumnovoníveldetolerânciaemrelaçãoàviscosidadeeàultrapassagemdefronteirasdesignificadovital.

Aindanãoestánada claro seapenasas fronteirasespecí icas, atéhojereconhecidas e consagradas, são as vítimas destacadas do atual levantesemiótico; ou se a turbulência de agora pressagia uma revisão total dospadrõesdepráxisdopassado.Pelaprimeiravez,porém,háaomenosumachance, embora reduzida, de que o princípio “da busca da paternidade éproibido”, proclamado com orgulho pelo código napoleônico dois séculosatrás, possa se transformar no estilo de ação e de pensamento humanos.Ainda é cedo demais para proferir o julgamento inal. Se essa chance sematerializar, a cultura humana assistirá a uma revolução jamais vista nopassado,devezqueoúnicoaspectodelaatéagoranuncaquestionado–eque invariavelmente emergiu vitorioso e intacto das águas profundas detumultoseagitaçõesrevolucionárias–éaestruturadapráxishumana.

Culturaesociologia

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A cultura tem tido um tratamento reconhecidamente duro por parte dasociologia. Quando não é reduzida a um “ramo” do que por tradição eratido como o domínio de um estilo intelectual (belles lettres,música e artere inadas, atividades de lazer) ou ampliada para abarcar a totalidade daexistência humana e/ou social, agora, namelhor das hipóteses, é tratadadeumaformaqueinevitavelmenteatornaredundante.

Trazido para o reino do moderno discurso sociológico sobretudo pelaantropologiaculturalamericana,oconceitodeculturadeiníciofoiadotadoparaexpressarapremissateóricometodológicadaordemsocialsistêmicacomo, acima de tudo, uma realização obtida por normas internalizadas,comuns, mutuamente coerentes. O mesmo curso da interação humana,rotineiro, monótono, repetitivo e previsível, o qual os antropólogosbritânicos trataram com sucesso sob o rótulo de “estrutura social”, foiorganizado em termos cognitivos por seus colegas americanos no planodasnormasenãodosatores.

É verdade que essa funesta compreensão da cultura fora gerada naInglaterra. Foi sir Edward Tylor quem convidou os cientistas sociais aexaminara“condiçãodacultura”como“umtemaadequadoaoestudodasleis do pensamento e ação humanos”, capaz de explicar “a uniformidadequepermeia tão amplamente a civilização”, assim como seus “estágiosdedesenvolvimento ou evolução, cada qual resultado da históriaprecedente”.85 Mas foi sobretudo o meio século de experiência e debatenorte-americanosqueKluckhohneKellyresumiramem1945,de inindoacultura como “um sistema historicamente criado de projetos implícitos eexplícitos para o viver, que tende a ser compartilhado por todos ou poralguns membros determinados de um grupo num ponto especí ico dotempo”.86 Havia uma irme opinião entre os antropólogos americanos deque a cultura “apresenta regularidades que permitem sua análise pelosmétodos da ciência”, 87 ou seja, ela é uma entidade ordenada que secomportadeformasistêmica.

Interpretadasegundooespíritodousoamericanojáestabelecidocomo“reciprocidadedeorientaçõesnormativas”,anoçãodeculturafoiabarcadapela teoria parsoniana da ação acima de tudo comotradição cultural.88Objeto ou elemento de orientação do ator, a cultura é vista aí como umarealidade que precede a ação,moldada e estabelecidamuito antes que averdadeira ação possa de fato começar. Trabalhando sobre a forma pelaqual o conceito de cultura é empregado, Kluckhohn o descreveria como“um condensado de história”, e insistiria em seu “caráter sistêmico”,

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observando que a cultura não pode “ser usada como instrumentoconceitual de previsão, a menos que se leve na devida conta essapropriedade sistêmica”. 89 Ao mesmo tempo, o termo “cultura”, quandousado dentro dos limites de pensamento estabelecidos pelas ideiasseminais de Tylor, não transmite informação alguma que o conceito de“sistemasocial”jánãocontivesse.

Tal como a noção de sistema social, o termo “cultura” responde ànecessidade de expressar a vaga ideia de elementos da vida humanaentrosados, encaixados, a hipótese de uma congruência intrínseca dabiogra ia individual humana, assim como de uma grande coerência nainteração dos “indivíduos”; representa a esperança na previsibilidadeessencial das reações humanas diante das contingências padronizadas,esperança construída sobre o pressuposto da natureza determinada daatividadeexistencialhumana.90

Averacidadedaúltimaa irmaçãonãoéassimtãoóbvia.Oempregodapalavra “cultura”nãoseria indicativodequeohomemévisto “aomesmotempo como escravo e senhor de suas próprias criações passadas”? 91 Osviciadosemsociologiadaculturanãoestariamávidosdemaisporenfatizaroaspectocriativodoequipamentocultural?Emgeral,nãoseadmitiaqueacultura, como característica humana singular, representava em primeirolugarapeculiarcapacidadehumanadecriarseuprópriomundo?Olugarde destaque atribuído a essa capacidade não seria considerado avantagemprincipaleconscientedaabordagem“culturalista”emrelaçãoaomecanismoinertedodeterminismobehaviorista?

A uma segunda aproximação, porém, torna-se evidente o caráterespúrio do elemento de atividade, criatividade e liberdade supostamenteassociadoaoconceitodecultura.Aideiadecriatividadeéemgeraltratadaporumareferênciaritualizadaàorigem“humana”detudoqueécultural,em oposição a “natural”. Vez por outra, aponta-se uma circunstânciaadicional – o elementoda escolha rati icadopela evidentediversidadedemodosemaneirashumanos.Masnemare lexãoacrescentamuitaforçaàafirmaçãodanaturezaendemicamente“ativista”doconceitodecultura.

No que se refere à “origem humana” da cultura, ela sustenta acriatividadedohomemdemodo tãoe icazquantoo fatode seusgrilhõesse terem transformado em salvaguardas, “feitas pelo homem”, daliberdade do condenado. Sir Peter Medawar havia captado a própriaessênciadoargumentodo“feitopelohomem”aoanunciarquea“distinçãofundamental entre as fontes da ação nos camundongos e nos homens”

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(aquela que o conceito de cultura em geral sustenta) é que “oscamundongosnãotêmtradições”,oquelevaàconclusãodequesomenteaevolução humana “não é mediada pela hereditariedade”, mas pela“transferência de informações por canais não genéticos de uma geraçãoparaoutra”.92

A segunda re lexão não faz muita diferença: a liberdade humana deescolha é reconhecida apenas em retrospecto, quando a decisão já foitomada e em seguida incorporada pela cultura, isto é, quando suasconsequênciascomeçaramase imprimirsobreocomportamentohumanocomumpoder capaz de lembrar o da natureza. Para ser “cultural” – emcontraste com idiossincrático, aberrante, irregular e inadequado aotratamentocientí ico–,umitemdevetersidoengrenadoaalgumaespéciede arranjo ordenado; deve existir como elemento da realidade, comorealização convincente. Só essa realidade pode ser submetida àinvestigação da ciência, e o tratamento cientí ico do fenômeno da culturasemprefoi,eserá,aambiçãoinabaláveldossociólogos.

Em uma pro issão de fé culturalista, David Kaplan e Robert Mannersadmitiram com relutância que “devemos modi icar nosso desejo deperfeição teórica e aceitar algo menos do que 100% de certeza”;93 elesconcordaram melancolicamente com Anatol Rapoport: o objetivo docientista social “deve ser menos ambicioso que o do ísico”;94 mas nãocapitulariam se lhes pedissem que aceitassem que a ísica e a sociologianãopertencemnecessariamenteaomesmocontinuum,equeaquiloqueassepara é mais que a natureza quantitativa. Objetariam com violência sealguém tentasse questionar sua certeza de que a ísica fornece o idealinsuperável que todo esforço acadêmico deveria imitar, se não em seumétodoeestratégiadepesquisa,aomenosnotipodeprecisãoepoderdeprevisão que ela alcançou, e na capacidade de controle de que dotou oshomens.

Tenhamosclarezaquantoaoalvodenossoataque.Temcirculadomuitatolice sobre a condição ilosó ica da ciênciamoderna, graças sobretudo àmilitância ferrenha dos convertidos à versão especí ica, schutziana, da“fenomenologia”. (É incomum que esses militantes sejam tão profundosquanto as obras que avaliam com uma ingenuidade que passa porautoa irmação; suas opiniões sumárias sobre o “positivismo” – e, pode-sesuspeitar,seuconhecimentosobreele–assentam-secadavezmaisapenasem citações de Schutz e, à guisa de reforço recíproco, de seuscompanheirosdecrença. 95Nãosepoderesistirà tentaçãodemostrarum

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paralelo histórico. É verdade que os precedentes de um comportamentodesse tipo não são numerosos na história da ciência,mas são comuns nahistória das igrejas, sejam elas sagradas ou seculares. Os devotos docristianismo podiam aprender a respeito das posições dos primeiroscríticos dessa religião, comoCelso, apenas a partir de fragmentos citadosnostextosdosPadresdaIgreja.Comodisseumdeles,Tertuliano:“Depoisde Jesus Cristo, não precisamos de curiosidade, assim como depois doEvangelho não precisamos de busca.”) Nem Kaplan e Manners nem osoutros autores que citamos representam algum campo particular,estritamente circunscrito, da ciênciamodernaque se possa com sensatezisolar do restante do conhecimento cientí ico atribuindo-lhe um rótulorestritivo,como,porexemplo,positivismo.Suacondutaeospostulados queessesintelectuaisapresentamsãonãoapenaslegítimosetípicosdaciênciamoderna em sua totalidade, como constituem a única conduta e o únicoprojeto metodológico admissível no arcabouço cientí ico tal como elehistoricamentesurgiunoOcidente.

A ciência moderna é a única herdeira e a única elaboração lógica daposição grega do Τέχυη (“cosmo”), que presumia a existência objetiva eautossustentada do cosmo como suporte da capacidade e da ambiçãomanipulatórias dos seres humanos quando orientadas para o objeto. OelaboradolouvordeFrancisBaconàutilidadedaciênciacomoúnicofulcrosegurodeconhecimentotecnológicoeacelebradaexpressãoconvencionaldeAugusteComte“saberparaprever,preverparapoder”,longedeseremapenas pronunciamentos sectários de determinada escola ilosó ica,re letem com idelidade o tipo de atitude em vigor no berço da ciênciacomo tal; e continuamuitopresenteentrenós,permeando todooesforçocientí ico.Aciênciapositivaé,nessesentido–naquelequefoiatribuídoaotermopelopróprioautordoCursode iloso iapositiva –,umprojetomuitoamplo e seminal para ser reduzido ao (ou pior, confundido com)banimentoidiossincráticoearbitráriodasentidadesnãosensíveisporumSkinner.Suaspremissasessenciaisaindasãoapedrade toquedaciênciacomoumtodo.Esseaspectodeveriaserconsideradoaltamenteimportante,pois o que está em jogo não é apenas a sutileza da de inição. A neblinaterminológicageradaempartepeloesquecimentohumano,empartepelasvicissitudes da luta sectária, tem se espalhado numa velocidade queultrapassaadiscussãobem-informada.

O projeto baconiano-comtiano da “ciência positiva” destinava-se acimade tudo, como apontou Jürgen Habermas, a “libertar o conhecimento do

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interesse”.96Issonãosigni icaqueaatividadecognitivaresultantetenhasedesvinculado,de fato,de todosos interesseshumanos.Aprópria ideiadeum conhecimento “livre de interesses” (ou, mais tarde,wertfrei, ou“neutra”) foi atribuída à intenção prática e utilitária dos seres humanos.Desde o início, esse conhecimento foi um corajosotour de force voltadopara odescobrimento – no interior da ordem cósmica, autossustentada –dosprincípiosorientadoresdaatividadedesucesso.

Mesmo quando consciente de sua motivação, esse conhecimento deveesconder o verdadeiro impacto do interessemotivador sobre o curso desuainvestigaçãosobreaformadosfatosqueregistrava,sobreaestruturadasteoriasqueelaborava;deoutromodo,opropósitodetodooesforçoeaautoridade de qualquer resultado de sua atividade teriam morrido noberço.Assim,eledevialançarumolharcegosobreseuprópriotrabalho,e,de maneira discreta, porém imperturbável, recusar-se a concentrar aatenção no processo de investigação. Esse conhecimento gostaria de terseu espelho (ou pelo menos ingir tê-lo) adelgaçado até o ponto datransparência inequívoca; se possível, dissolvê-lo de todo no objetotranscendental em que a única autoridade e a única esperança deconhecimento seguro e idedigno estão investidas. Não é ao interessehumano que se nega o status no reino da ciência; o interesse pode servisto,porassimdizer,comoobjetodainvestigaçãocientí ica–enessecasonãohaveriacontestaçãoàsualegitimidade.

Emambososaspectosemqueosvaloresentraramnainvestigaçãoenodiscurso sociológico rotineiros – como objetos de ação e como atitudesmotivadoras dessa ação97–, eles estavam permeados pelo interessehumano; mas o interesse de que estavam imbuídos era o de objetoshumanosda investigação.Aposturacientí icaemsinãofogeàquestãodanatureza do objeto de estudo,mas decide sem concessões à natureza dosujeito investigador. É o sujeito que deve serwertfrei – o ideal cientí icoestáali“paraforneceraeleumapuri icaçãoextáticadaspaixões”. 98 Nadapodeimpedirosujeitoinvestigadordesesubmeter,comobediênciaeboavontade,àrealidadeinquestionáveldoobjetotranscendental.

É preciso distinguir, portanto, entre as características acidentais desteoudequalqueroutrocorpodepráticacientí ica,destaoudeoutra iloso iacientí ica, por um lado, e, por outro, os atributos necessários da posturacientí ica em si, universais o su iciente para envolver estratégias tãodistintasquantoasdasciênciasempírico-analíticasedahermenêutica.Sãocaracterísticas do tipo inclusão ou exclusão, evidências “factuais”

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admissíveis da experiência objetiva dos seres humanos investigados,circunscrevendo o corpus de impressões a que se atribui o status de“dados primários”; ou as regras que determinam amaneira pela qual osconceitos devem se ligar a esses dados a im de serem admitidos nodiscurso cientí ico; todos pertencem à primeira categoria. Radicais eintransigentescomopossamserasatitudesassumidasemrelaçãoaessesassuntos, elas continuam no interior do vasto território da “ciênciaobjetiva” tal como delineado pelos princípios seminais baconiano-comtianos.

Além do pressuposto do abismo intransponível entre o dever ser“abstrato”eoser“real”,oreconhecimentodasupremaciaincondicionaldoobjetonoprocessodecogniçãoeveri icaçãoeopostuladoda indiferença,daneutralidadeedaimparcialidadetotaisdapartedosujeitocognoscenteintegram a segunda categoria; eles, na verdade, são constituintesindispensáveisdaatitudecientí ica.Oúltimopostuladodota todosignodeumaautoconsciênciareprimida;mas,comoHabermasobservou,essafalsaconsciência tem uma importante função protetora: remove o escudo doautoengano, enada icaráquepossadecepcionare exporo incongruenteabsurdodeumagenética“soviética”oudeuma ísica“fascista”. 99Aciênciapositiva, com todos os seus pressupostos – mesmo com sua cegueiravoluntária,obstinadaepertinaz–,éaúnicamaneirapelaqualointeressehumanonaperíciatécnicapodeserrecompensado.

Aceitar isso não signi ica, contudo, acatar o positivismo, a menos queeste se de ina como atitude cientí ica. Do ponto de vista histórico, opositivismo já foi uma escola predominante em iloso ia, a irmando que aciência é o único conhecimento que vale a pena, a única fonte dedeclaraçõescon iáveisobastanteparamereceraatençãohumana;queacognição só não é um esforço fútil (ou mesmo deletério) quandosubordinada às regras da ciência positiva; e que não há nada a serapreendido e cognitivamente apropriado além do tipo de realidadeacessívelpormeiodaciênciapositivaesustentadaporseuspressupostos.

De vez que a regra que proíbe extrair conclusões normativas dea irmações sobre a realidade sempre foi a pedra de toque da ciênciapositiva, há no argumento positivista uma insu iciência irredutível einerente.Opositivismoé emsimesmoumaatitudenormativa; e essa é aespécie de modalidade que ele menospreza como cognitivamentesupér lua e irrelevante. Desdenhoso dos meios que lhe poderiam terfornecido o tipo de autoridade atribuído de modo arbitrário à realidade

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transcendental,opositivismoestádestinadoaprosseguircomoatodefé.Pode-se apresentar um argumento poderoso em favor da hipótese de

queopositivismoéaautoconsciênciadasociedadealienada.Épossívelverumacongruênciamarcanteentreotipodevidageradoporessasociedadee os pressupostos positivistas seminais sobre a natureza do universo e aorigem e função do conhecimento. A sociedade alienada estabelece umadistinção aguda entre as esferas pública e privada da vida humana.Masdessa separação emerge a esfera privada dividida em duas partesseparadas por uma brecha intransponível e em constante expansão. Ofenômeno chamado sociedade é comprimido entre as metades,alimentando-se dessa issura, vicejando na incurabilidade da ferida eexcluindoos signi icadosgeradosde formaespontâneaemcadaumadaspartes.

A primeira metade da esfera privada é o talento da pessoa, com suacapacidade de trabalho especí ica; a segunda é a satisfação de suasnecessidades singulares. Tendo sido irremediavelmente cortado o laçonatural entre ambas, o único caminho (sempre secundário) que leva daprimeiraàsegundacruzaagoraaesferapúblicapormeioda“sociedade”.Oesforçocontínuoeinconclusodefecharabrechaentreasduasparteserestaurar a unidade primeva pode ser visto como a fonte inexaurível dapreocupação dos seres humanos com a sociedade e da persistentetendênciaahipostasiarosocial.

Aseparaçãoentrecriaçãoecontrole–aprópriaessênciadaalienação–estánabasedarealidadesocialedesuaimagemmental.Oatodecriaçãoéoúnicocaminhoabertoaohomemparacontrolarsuaexistêncianomundo,ou seja, para concretizar o processo em duas fases de assimilação eacomodação.100 Como o controle foi arrancado do ato de criação etransplantado para a esfera do transcendental, os restos truncados dotrabalho humano se apresentam a seu sujeito como um ato esvaziado doseu signi icado original e inato. A própria subjetividade torna-se trivial esem sentido, já que nenhum signi icado óbvio e autoimposto pode terorigemnapartedoprocessodevidaquerestoucomodomínioprivado.Aesferatranscendentaldopúblico–“asociedade”–torna-seoúnicolocaldecontrole. A única forma pela qual uma pessoa pode consumar suaexistência (que sem isso seria deformada e imperfeita) é utilizar-se dosrecursos de controle acumulados na esfera pública. O processo de vidasubjetivo da pessoa só pode completar-se transformando o sujeito emobjetodecontrole;apessoasóseapropriadesuasubjetividadeilusóriaao

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reconheceraautoridadeinquestionáveldopúblico.A iloso ia do positivismo re lete ielmente a realidade do mundo

alienado dos seres humanos. Ela torna uma virtude dissolver o sujeitocognoscente na transcendentalidade do objeto cognoscido. Recria, nouniversoidealizadodamente,oquejáseefetivounarealidadedacondiçãohumana:oexpedientedetransformaramelhorpartedosujeitoemobjetode controle autoritário e tornar o resto irrelevante e sem signi icado. Aharmoniaíntimaentreavisãopositivistadoaspectocognitivodasrelaçõesdohomemcomoseumundoearealidadealienadadeseuaspectopráticotalvezconstituaacausamaisimportantedavitalidadesurpreendenteedaforçaadmiráveldoargumentopositivista.

Quem sabe o lorescimento daciência positiva tenha seus alicerces(comoHabermasargumentaria)naimortalidadedointeressehumanopelatécnica; o sucesso marcante dopositivismo como iloso ia mundial sebaseia, sem dúvida, na histórica supressão temporária da criatividadesubjetiva expropriada de controle e na redução da criatividade a meratecnicalidade, que tem sido a consequência de sua supressão. As ideiaspositivistasencontramumarespostacalorosaesolidáriana“autoevidênciaintuitiva”, ou em qualquer coisa que passe por isso para um membro deuma sociedade alienada; mas essa autoevidência intuitiva não emana deuma“atitudenatural”supratemporal(oumelhor,parecequeassiméparaosinvestigadores ilosó icosdoabsoluto);“simplesmentesigni icaacertezasubjetiva”, como nos lembra Piaget; 101 e a certeza subjetiva, com muitafrequência, pode ter origem na repetitividade e na coerência daexperiênciadesensocomum, talcomo iluminadaeorganizadaemtermosdepercepçãopeloconhecimentodesensocomum.

Opositivismoé,portanto,maisquea iloso iados ilósofospro issionaise que a práxis dos cientistas pro issionais. Suas raízes epistemológicas,assim como seus brotos axiológicos, estão intimamente interligadas naprópria texturadoprocessodevidahumanonumasociedadealienada.Ograu de difusão dos princípios básicos do positivismo, graças às raízesincadas na práxis alienada, é demonstrado pela disposição ingênua comquemuitos críticosda restritiva epistemologiapositivista aceitam, tácita edocilmente, o expediente de transformar a necessidade em virtude: aformapelaqualopositivismoreduzarelaçãomultifacetadadosujeitocomseu mundo (com seu mundo alienado, devo repetir), a sua plataformacognitiva.Esseerro,inspiradonaspráticasrestritivasdamentepositivista,consisteemacreditarqueabatalhacontraopositivismodevesertravada,

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disputadaevencidaapenasnesseplano.Oerrosóécompreensívelporquetanto os positivistas quanto seus inimigos desejam basear-se no mesmosensocomumdasociedadealienada–erecorreraele.

A tragédia das concepções positivistas, frágeis e descon iadas demais(apesar da violência compensatória de seu vocabulário) para reconhecerseu erro, consiste no dilema de: (a) transformar-se, a inal, em outraciência, feita de acordo como positivismo (coma suprema autoridade doobjeto-realidade inquestionada e os focos cognitivos meramenterearranjados); ou (b) arriscar-se à dúbia companhia de colegas nãorequisitadoseindesejados,quandochegaapontoderejeitarnãoapenasoimperialismopositivista,masaprópriaideiadeciênciapositiva.

Podem-sedistinguirduascategoriasessenciaisemqueclassi icaressasconcepções infelizes. Ambas presumem o que se espera de uma mentemoldada pela sociedade alienada e treinada na “obviedade do self”positivistaedesensocomum:quearelaçãoentreoindivíduoeseumundoseja–aomenosparafinsdeinvestigação–essencialmentecognitiva;istoé,elapodeseralteradaporumaoperaçãorealizadanocampodacognição.Alutacontraopositivismodevesertravadaemtermosde“ilusões”,“mitos”,“hipóstases”,“falsaconsciência”–eseurepúdio.

A frequência e a intensidade dos ataques antipositivistas sãoestimuladaspela insatisfação comaprópria realidade social,maisdoqueapenas com suas re lexões ilosó icas; com a práxis da subjetividadesuprimida e da privacidade difamada, mais do que com o desprezoepistemológicodos ilósofospelotema.Masotriunfoda iloso iapositivistaalcança seu apogeumais sensacional na e iciência com que ela serve depara-raios, interceptando relâmpagos cujo alvo é omundo social que elaacaboudedescrever.Comosmísseisdesviadosdatrajetóriaplanejada,osprincipais bastiões da realidade alienada, o verdadeiro alicerce dasupremacia intransigentedosersobreodeveserpodeemergir,edefatoemerge,incólume.

Ardentecomoéaodesa iaro feitioespecí icodaciência socialpositivaque ganhou ascendência ao ser elaborada com base nas ideias deDurkheim,aposturada“pessoaepistemológica”quasechegaaquestionaros verdadeiros princípios seminais do positivismo. A rejeição da crençapositivistanasupremaciadosersobreodeveserestáforadequestão,damesma forma que qualquer dúvida quanto à virtude da neutralidade devalores do investigador. Não apenas a tendência em discussão continuasilenciosa em relação às virtudes ou vícios de nossa sociedade, ou de

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qualquer outra, como ela se priva dos meios intelectuais que poderiamcapacitá-la a incorporar, como seu componente legítimo, qualquerdeclaraçãonessesentido.

Graçasànaturezapuramenteformal,sóbria,desuascategoriasbásicas,elanãopodeproduzirumfulcroresistenteobastanteparasustentarumareprovaçãoàformaassumidaporqualquersociedadehumanaemtermoshistóricos,assimcomonenhumamedidaquesepossautilizarparaavaliaras qualidades de uma sociedade. O que essa escola busca de formaexplícita é uma revolução do pensamento. É contra os colegas cientistassociais que ela dirige suas lechas mais venenosas e seu ódio maisapaixonado. São eles que ela se propõe a curar e reformar. De outramaneira, seria impossível ver como qualquer outra coisa pode serremodelada, mesmo em consequência de uma reforma de pensamentoabrangenteeexitosa.Talcomoé,aescolanãoprometeensinaràspessoascomodeveriam construir sua sociedade; seu único objetivo é descobrircomo elas de fato têm feito isso desde tempos imemoriais, semnenhumaesperança de que a consciência recém-adquirida venha a fazer qualquerdiferença para o que é, em tese, o atributo epistemológico, genérico, domodohumanodesereestarnomundo.

O único impacto animador (embora transitório e efêmero) da reformade pensamento pretendida pode ter sido outro despertar da já ampliadaconsciência da natureza do mundo social em que vivemos; somosconvidados, contudo, a recuar para a posição pré-marxista (que seimaginava abandonada), pela qual a alienação, damesma forma que suaforça insuperável, era vista, muito ao estilo dos philosophes, como umaoperaçãoessencialmentemental.FoiaopiniõessemelhantespropostasporBrunoBauereautoresdementalidadeparecidaqueMarxrespondeu:“Asideias nunca levam além da situação estabelecida, só além das ideias deumasituaçãoestabelecida.Ideiasnãopodemrealizarabsolutamentenada.Para se tornar reais, as ideias exigem homens capazes de aplicar umaforçaprática.”Enovamente:

Nenhuma forma, ou produto da consciência, pode ser dispersada pela crítica mental, peladissolução na “autoconsciência” ou pela transformação em “aparições”, “espectros”, “fantasias”etc.,massomentepelasuperaçãopráticadasrelaçõessociaisconcretasquederamorigemaesseengodoidealista.…Nãoéacrítica,masarevoluçãoqueéaforçamotrizdahistória,assimcomodareligião,dafilosofiaedetodososoutrostiposdeteoria.102

Marx de iniu essa revolução, no curso domesmo argumento, como “acoincidênciadamudançadecircunstânciascomaatividadehumana,oua

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automudança”.103A esperança (se é que algum militante dessa escola ainda tem

esperança) de devolver à subjetividade inibida e mutilada a dignidadeperdida (ou, nesse sentido, jamais apropriada) pelos meios que a escolaoferece é fútil e ilusória. Semdúvida não foram a iloso ia de Comte e osprincípios metodológicos de Durkheim que subordinaram o mundosubjetivodo indivíduoaodespotismoarbitráriodasociedade“objetiva”.AtiranianãotenderáadesaparecernomomentoemqueComteeDurkheimforempublicamenteestigmatizadoseexpostosaoridículo.

Aomenosemumaspectoessaconcepçãoantipositivistapareceapoiaromundo alienado de modo mais consequente e abnegado do que seusinimigos ilosó icos. Ela compartilha com o positivismo a exigênciaconstante de neutralidade e indiferença em relação a valores nopensamento cognoscente.Mas estende o campo em que essa regra deveviger até limites com que o positivista comum, ou melhor, o praticanteusual da ciência positiva, não ousaria sonhar. A indiferença da ciênciapositiva limita-se à sobriedade em relação a valores, ideais e tudoomaisque o ato de canonização da realidade transcendental relegou à selvaextracientí ica do deve ser. Mas a ciência positiva irá desprezar comindignaçãoqualquerconselhoparaverdemaneiraequânimeoproblemadoverdadeiroconhecimentoda “realidade”.Pelocontrário, todooprojetoda ciência positiva, e de fato da ciência como tal, baseia-se na crençainabalável na possibilidade essencial de selecionar, a partir damultiplicidadederelatoscontraditóriosdarealidade,aquelequesejamaisverossímil,adequadoedignodeconfiançadoquetodososdemais.

Os exploradores da “pessoa epistemológica” não se contentariam comisso. O que foi reverenciado como “a realidade social” pelos cientistassociais positivistas é degredado ao status de subproduto contingente,variável, do trabalho “tipi icador” dos “membros”; porém, o aspectomaisimportanteéqueoatributodarealidadenãosebaseiaemseusubprodutoobjetivo, palpávele perceptível (se assim fosse, então a escola emdiscussão teria sido apenas uma das muitas teorias atuais do processosocietário, que di icilmente poderia ser considerada excepcional em suarebeldia); a realidade é a única característica das visões compartilhadasque seus membros têm da esfera de negociação ou da “realização emcurso”.

Essas visões, contudo, são reconhecidamentediversas; nadaháque asimpeçadesercontraditóriasentresi.Mastambémnadaháquedistingaa

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verdadeira da falsa; de fato, a escola teria di iculdades em expressar ade iniçãodeverdadenalinguagemqueconsidera legítima.Nãoapenasostermos“certo”e“errado”,mastambém“verdadeiro”e“falso”estarãoforade lugar se forem incluídos à força nesse vocabulário. Não se podepermanecer leal aos axiomasdessa escola e declarar que uma “de iniçãode situação” especí ica está errada; ou, na verdade, tentar apresentar oproblemadequedeterminadoportadorde uma “de inição” particular foienganado, ludibriado, traído ou – pura e simplesmente – revelou suaculpabilidadeouestupidez.Assim,aescolapodeoferecerpoucaorientaçãoa uma pessoa em busca de um objetivo perdido. Quando tudo vale amesma coisa, já que é “vivenciado”, não se pode con iar que algo seja aformacertadeescaparàsituação.

O laço mais íntimo entre o positivismo e a nossa sociedade alienadaencontrou sua expressão na pro issão de fé positivista de que o únicoconhecimentoválidoéaqueledesprovidodeinteressee,portanto,wertfrei.Essa complacenteaquiescênciadacondiçãohumanaemqueaposiçãodecontroledoprocessodevidaestáalémdoalcancedapessoaqueviveessavidafoihonestamenteaceitapelospretensoscontestadoresdopositivismo.Suasincursõesantipositivistassedesviaramparaatingirocultopositivistadaverdadeobjetiva–únicoredutoincontroversoda iloso iaqueforneceuà nossa civilização o seu maior recurso: a ciência positiva. É como se oscontestadores recentes do positivismo se empenhassem em dissolver osedimento mais valioso da erosão positivista do intelecto, apenas paraexpor os princípios seminais da iloso ia, que em suposição condenam:aquelesquedevem tanto suaorigemquanto suapersistência à realidadedasociedadealienada.

Nenhum ataque a esses princípios pode ser totalmente exitoso selimitado apenas à crítica ilosó ica, se a iloso ia positivista for destacadacomo o único alvo, enquanto a sociedade alienada, à qual ela deve seuânimo e sua in luência irresistível sobre o senso comum, é aceita demaneiratácitacomorealidadeincontestável.Opositivismoascendeedecaicom a sociedade que dá força ao seu argumento sobre o lócustranscendental de toda autoridade, seja ela prática ou cognitiva. A formade demolir os alicerces da ascendência positivista não passa peloquestionamento do direito humano de fundir interesse e conhecimento,masconsisteemdesa iaropresumidomonopóliodo “real”como fontedoconhecimento válido. Isso não signi ica que o conhecimento do real nãoseja válido; as leis “naturais” da economia política, diria Antonio Gramsci,

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sustentaram-se bem enquanto as massas humanas se comportavam demodo rotineiro,monótono,mecânico e habitual numa sociedade alienada;enquanto o fazem, pode-se com facilidade con iar na evidenterepetitividade dos fenômenos observados como a base de umconhecimentofidedigno.

Mas essa base supostamente segura vira uma confusão no momentoexato em que as massas emergem de sua conformidade comatosa paraembarcarnumaaventura“incomum”,“ilegal”,“improvável”,“injusti icável”.A ciência positiva pouco nos pode dizer sobre esses súbitos surtos decriatividadedasmassas,muitomenos“prevê-los”damaneiracomoantevêo comportamento de uma solução numa proveta. A ciência positiva faz oseumelhor trabalhoquando analisa o real,mas temo seupiormomentoquando lhe pedem para discutir o possível. Ao que se espera, a ciênciapositiva, com todas as suas inquestionáveis realizações, não é o únicoconhecimento de que os homens necessitam ou que podem criar. É aqui,pensamosnós,queentraoconceitodecultura.

Começamosessasconsideraçõescomaqueixadequeaideiadecultura,tal como apropriada e utilizada pela ciência social, fora indevidamentereduzida para cobrir apenas o aspecto previsível, rotineiro,institucionalizado do comportamento humano. Feito isso, o fenômeno dacultura foi acomodado com sucesso no campo da “realidadetranscendental”, onde pode ser tratado da forma adequada pela ciênciapositiva–esóporela.Aciênciapositivaencontrounoconceitodeculturaum parente muito favorável, que parece um epítome condensado, masproveitoso, do interesse que – explícita ou implicitamente – pôs emmovimentooprojetocientífico.

KaplaneManners,seguindoousouniversalmenteaceito,descreveriama cultura como “o mecanismo primário pelo qual o homem começaadaptando-se e termina controlando seu ambiente”104 – a irmação quaseperfeita da visão utilitária, submissa, da “função técnica” produzida pelasociedadealienada:vocênãopodealcançarseusobjetivosamenosquesesubmetaàautoridadedoreal;entãoserácapazdecontrolá-lo,ouseja,deempregarsuasregrasparafazeroqueconsideramelhorparavocê,istoé,cortarafatiamaisgrossaparausopessoal.

Aculturaéumaadaptaçãoà realidadedura, in lexível,quesópodesetornar utilizável caso adaptada. As repetitivas declarações sobre anatureza “criativa” dessa adaptação soarão falsas enquanto o paradigmaseminaldarealidadetranscendental,supremaeesmagadora,permanecer

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inquestionado. A criatividade resume-se à adequação, à habilidade edestreza exibidas por pessoas astuciosas ao transformar um ambienteinóspitoembene íciopróprio.Aengenhosidadedeumcorretordevaloresou de um comerciante sagaz fornece o padrão já pronto para esse tipoespecí ico de criatividade que omundo alienado, duro, cruel emanchadode sangue transforma em condição de sobrevivência dos homens. Masdesejamosobjetar,comHabermas:

Asociedadenãoéapenasumsistemadeautopreservação.Umaforçanaturalsedutora,presenteno indivíduocomo libido,destacou-sedosistemacomportamentaldeautopreservaçãoeanseiapelarealizaçãoutópica.…Oquepodeparecerpurasobrevivênciasempreé,emsuasraízes,umfenômenohistórico. Pois está sujeito ao critériodaquilo que a sociedadedesejapara simesmacomoaboavida.105

A atividade humana no mundo transcende a pura lógica dasobrevivência em pelo menos dois aspectos importantes: o valor desobrevivência de um projeto em que os seres humanos se engajam emgeraléempurradoparabaixona listadoscritériosqueelesaplicamparaavaliaradesejabilidadedoprojeto;eoqueosmoveé sempreumestadoideal quedeveria ser atingido, em vez do reconhecimento do quepoderiaseralcançado.

Essa qualidade notável da espécie humana (precisamente acaracterística singular que queremos assinalar ao declararmos que oshomens são os únicos “animais dotados de cultura”) foi há muito tempodebatidaemprofundidadeporKarlMarx:

Éverdadequeoanimaltambémproduz.Constróiparasiumninho,umabrigo,comoaabelha,ocastor,a formigaetc.Masele sóproduzaquilodequenecessitade imediatoparasimesmoouparasuaprole;produzdeformaunilateral,enquantoohomemproduzuniversalmente;produzapenas sob a pressão da necessidade ísica imediata, enquanto o homem produz livre danecessidade ísica, e portanto sóproduzde fatoquando está livre; produz apenas a simesmo,enquantoohomemreproduz todaanatureza.Seuprodutopertencede imediatoaoseucorpoísico,enquantoohomempodeseparar-selivrementedeseuproduto.Oanimalsóconformaascoisassegundoospadrõesenecessidadesdaespécieaquepertence,enquantoohomemsabecomoproduzirsegundoamedidadecadaespécie,esabeemtodapartecomoaplicaraoobjetoseupadrãoinerente:portanto,ohomemtambémconformaascoisassegundoasleisdabeleza.

Assim,étrabalhandosobreomundoobjetivoqueohomemsea irmapelaprimeiravezcomoumente-espécie.Essaproduçãoésuavida-espécieativa.Pormeiodelaanaturezaaparececomoseutrabalhoesuarealidade.Oobjetodotrabalho,portanto,éaobjeti icaçãodavida-espéciedohomem;poiseleseduplicanãoapenasdemodo intelectual,emseupensamento,mas tambémdemaneiraativanarealidade,eassimpodecontemplarsuaimagemnummundoquecriou.106

A criatividade humana está em suamelhor forma quando o homem élivre – livre da necessidade imediata de garantir os meios de sua

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sobrevivência,livredaintensapressãodesuasnecessidades isiológicas.Aordem das coisas é exatamente o reverso daquela que está implícita naidenti icaçãodaculturaenasobrevivênciaadaptativa.Nãoapenasé falsoque a criatividade humana seja solicitada pela pressão de um ambientehostil, mas também é verdade que essa criatividade só se desenvolveplenamentequandoapressãoarrefeceouésuprimida.

AmodernaabordagemdomesmotemaporAbrahamH.Maslowvemdepronto à mente: a distinção entre “necessidades de de iciência”, que osseres humanos compartilham com outros animais, e “necessidades decrescimento” (“O crescimento é visto não apenas como uma satisfaçãoprogressiva de necessidades básicas até o ponto em que elas‘desaparecem’; mas também sob a forma de motivações de crescimentoespecí icas sobre e acima dessas necessidades básicas, ou seja, talentos,capacidades,tendênciascriativas,potencialidadesconstitucionais”),quesóse apresentam quando as motivações de de iciência são descartadas.Enquanto as necessidades de de iciências básicas, animais, motivam ohomem,

oobjetivofundamentaldoorganismoélivrar-sedanecessidadeirritante,eassimalcançaro imdatensão,oequilíbrio,ahomeostase,aquietude,oestadoderepouso,aausênciadedor.…[Docontrário],oapetiteporcrescimentoéestimulado,enãoaliviadopelasatisfação.…Ocrescimentomotiva,…mantéma tensãono interessedeobjetivosdistantesemuitasvezes inatingíveis.…Anova experiência é validada porsi mesma, e não por critérios exteriores. É autojusti icante eautovalidadora.107

Só as motivações de crescimento, como a cultura, são de fatoespeci icamente humanas. O rebuliço adaptativo dos homens, motivadopelasobrevivência,nãoéaindadetodohumano;suasatividadespráticas,obrigatórias, só adquirem signi icado humano quando limpam o terrenopara o modo genuinamente humanode ser e estar no mundo. Ahumanidadeéoúnicoprojetoconhecidoquevisaaultrapassaroplanodameraexistência,transcenderosdomíniosdodeterminismo,subordinaroéaodeveser.

Aculturahumana,longedeseraartedaadaptação,éamaisaudaciosadetodasastentativasdequebrarosgrilhõesdaadaptaçãocomoobstáculofundamental à plena revelação da criatividade humana. A cultura,sinônimo da existência especi icamente humana, é um audaciosomovimento a im de que o ser humano se liberteda necessidade econquistea liberdadeparacriar.É–parafraseandoSantayana–umafacacomapontaaguçadasemprepressionandoofuturo.

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Apresentadadeumaformaumpoucodiferente,aculturarepresentaoque ErwinW. Strauss tinha emmente quando chamou o homemde “serquestionador” que “irrompe no horizonte dos fenômenos sensoriais” e“transcendeopresenteimediato”.108OuoqueparaMauriceMerleau-Pontysigni icava a “ambígua dialética humana”: “ela se manifesta em primeirolugarpelasestruturassociaisouculturaiscujoaparecimentoprovocaenasquais aprisiona a si mesma. Mas seus objetos de uso e seus objetosculturais não seriam o que são se a atividade que provoca seuaparecimento também não tivesse como signi icado rejeitá-los eultrapassá-los.”109 A cultura constitui a experiênciahumanano sentidodesempre enfatizar a discordância entre o ideal e o real, de tornar arealidadesigni icativaaoexporseus limitese imperfeições,demisturarefundir, de maneira invariável, conhecimento e interesse; ou melhor, acultura é ummodo de práxis humana em que conhecimento e interessesãoumacoisasó.

Ao contrário da postura da ciência positiva, a cultura tem sucesso efracassasobreopressupostodequeaexistênciareal,tangível,consciente–aúnicajárealizada,sedimentada,objeti icada–nãoénemaúnicanemamais autorizada; muito menos é o único objeto do conhecimentointeressado.Ocaráterinacabado,incompletoeimperfeitodoreal,suafaltade irmeza e sua fragilidade sustentam o status da cultura, da mesmaforma que sua autoridade suprema, inquestionável, é o esteio da ciênciapositiva.

Numasociedadealienada,essanaturezanãoalienadadaculturatendeaserobliteradaouescondida.Comooscentrosdecontroledopoderestãoafastados para além do alcance de uma pessoa (na condição de pessoa),todos os postulados salientes, descontrolados e refratários da cultura seapresentam como aberrações irrelevantes, bizarras. Como diz HerbertMarcuse,

os modos de pensamento e de pesquisa que predominam na cultura industrial avançadatendem a identi icar os conceitos normativos com sua realização social preponderante, oumelhor, tomam como norma a maneira pela qual a sociedade traduz esses conceitos emrealidade, tentando, namelhor das hipóteses,melhorar a tradução; o resíduo não traduzido éconsideradoumaespeculaçãoobsoleta.110

O correlativo intelectual da tirania da realidade transcendental numasociedade alienada é o fato de que os postulados culturais só podemmanterseustatusesuadignidadeintelectuaiscomosupostosatributosoudescrições da realidade. Presume-se que sejam incorporados ao ser

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consumado. O que quer que se distinga demodo su icientemente visívelpara desa iar esse pressuposto é banido para o reino da “subjetividadeirredutível”, transformado em assunto apenas pessoal, incomunicável, nodrama eterno das ânsias trágicas e solitárias de um self incompleto,aliviadoapenaspelaconsoladora iloso iadotipodeliberdadealcançávelàparte das realidades societárias e apesar delas; nessa aparênciaprofundamente personalizada e subjetiva ao extremo, é expulso dosdomínios da cultura como projeto coletivo da humanidade. É privado domais importante de todos os atributos da cultura: sua capacidade crítica,baseada em sua supremacia sobre o real, presumida e tenazmenteperseguida.

Transformaroconteúdoirrealizadodaculturaemautoaperfeiçoamentoe autolibertação da pessoa subjetiva signi ica sucumbir à supremaciainabalável do real no plano societário, inter-humano. O correlativopositivistadasociedadealienada,diriaMarcuse,

refere seus conceitos e métodos à experiência restrita e reprimida das pessoas no mundoadministrado, e desvaloriza os conceitos não comportamentais como confusões meta ísicas.Assim, a validade histórica de ideias como liberdade, igualdade, justiça, indivíduo estavaprecisamenteemseuconteúdoaindainconcluso–nofatodenãopoderemsereferiràrealidadeestabelecida,quenãoasvalidounempoderiavalidá-lasporseremnegadaspelofuncionamentodasprópriasinstituiçõesquesupostamenteasconcretizariam.

Opapelhistóricodaculturaestánessanegaçãoenoesforçoincessantederefazeressasinstituições.Aculturasópodeexistircomocríticapráticaeintelectualdarealidadesocialexistente.

Ora,asociologia,talcomosurgiueganhouformahistoricamente,éumaciência positiva, ávida por compartilhar as esperanças e ansiedades detodas as outras disciplinas acadêmicas irrepreensíveis. Ela aceita avalidadeuniversaldos critériosda ciência.Concorda comWeber, emque“a sociologia é uma questão de descoberta, não de invenção”. 111 Visa àexplicaçãodeumtipoderealidade,não importaoquesepossadizerdascaracterísticaspeculiaresedasingularidadedessetipoparticular.

O positivismo tornou-se uma etiqueta que é elegante e satisfatórioacrescentaraqualquercoisaquedesagradenaspremissasmetodológicasexplícitas ou implícitas de outros sociólogos; essa circunstância nãodeveria, contudo, diminuir nossa vigilância diante da verdade de que ospositivistas–sejamgenuínosouimaginários,assimcomoseusadversáriosVerstehende – aprovam sem reservas os princípios fundamentais dequalquer ciência positiva, tais como a neutralidade de valores ou a

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natureza causal da explicação. (Como a irma Runciman, “a ação humananãoémenosexplicável–naverdade,émais–quandoseoriginadabuscaautoconscientepormeiosmaise icazesparaseatingirum im livrementeescolhido”.112) Seja pela louvável modéstia dos sociólogos, seja pelo seucomplexo de inferioridade ainda incurado, em geral tendemos anegligenciar e subestimar a vasta quantidade de conhecimentotecnicamentevaliosoqueasociologiatemacumuladoenquantopermanececonfinadanoslimitesdaciênciapositiva.

Entretanto, quanto mais precisa e tecnicamente sagaz se torna asociologiaemsuabuscadoregistrofactualedaexplicaçãocientí ica,maisprovável é a sucessiva erupção de dissensões, tendendo sempre a nadamenos que uma total rejeição do projeto sociológico. É como se umatendênciaquaseneurótica ao autoinsulto e à autointimidação tivesse sidoixadaàprópriaestruturadasociologiacomopretensaciênciadaatividadehumana. É como se o seu desenvolvimento devesse para sempre sertortuosoecheiodereviravoltascomotemsidoatéagora.

Odramaestranhoesingulardoregistrocíclicodasociologiaéum fatotrivialdemaisparasertratadocomamplitude.Oque,contudo,seconhecemenos–eaindaémenosclaramentecompreendido–équeamaioriadosesforçosparasedesvencilhardasexaustivasrevoluçõesdarotinaa imdecolocarasociologianumatrilharetasecompletaporqueelessão,desdeoprincípio, adulterados pela compreensão equivocada da verdadeiranatureza do projeto sociológico. Esses esforços consistem em in indáveisrealinhamentos do foco da realidade – de situações humanas a suasdefinições,edevoltaaoinício.

Qualquer que seja a localização atual desse foco, ele é sempreapresentado ao estudioso como uma realidade consumada, completa,intrinsecamenteexaustiva,ouseja,transformadanacondiçãoemquepodesermanipulada pormeio da ciência positiva. Sempre se coloca diante damente inquisitiva a tarefa de apreender a realidade humana em suaqualidade (parafraseando a notória máxima de Hegel) de “um cadáverdeixadoparatrásporseuimpulsodeviver”.113

Masaquestãoéque–noqueserefereaosassuntoshumanos–nossacrença de que o horizonte cognitivo, tal como circunscrito por suametodologia,ésu icienteparaabrangera totalidadedostemasrelevantessó pode se sustentar no pressuposto de que o mundo humano manteráinde inidamenteseucaráter “natural”; issoequivaleàsuposiçãodequeasociedade continuará a ser alienada. Só assim pode a lógica da vida

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humana reforçar com continuidade a aceitação da supremacia do sersobreodeverser.

Aculturacomorejeiçãocríticadarealidadeseriaentãovista,emtermosracionais,nãocomoumramoautônomo,bem-fundamentadoefidedignodasociologia, mas – no máximo – como um entre muitos objetos do estudopositivo. Seria fácil detectar nessa difamação intelectual da cultura umre lexo mental de sua degradação prática. O desaparecimento daimaginaçãosociológica,observadocompesareansiedadeporWrightMills,éapenasocomplementonecessáriodeumarealidadesocialquedefendecom muito sucesso seus próprios princípios estruturais. Com osinstrumentosdecontrolelongedoalcancehumano,nãohádi iculdadeemdissolver o apelo cultural por liberdade, igualdade e proteção dasubjetividadenaconsagraçãodesupostasliberdades,daequidadesocialedoindividualismoespúriodasinstituiçõesexistentes.

O mesmo ocorre com a postura cultural em si, o desa io do presenteorientado para o futuro; a louvação sincera do futuro é reduzida àaquisiçãodeinovações–oporvircapturado,materializado,encapsuladoeixado aopresente já realizado e inito.O estilo demodismospassageiroscomprimidos na proximidade super icial do presente vem a substituir aorientação para o futuro que caracteriza a norma cultural dominante.Alguns autores seguem os publicitários ao transformar o embuste emcrença pública e chamar de “choque do futuro” o que é somente afalsidade,otédioeadeformidadedeumpresenteachatado,abandonadoeprivado da cultura que lhe confere signi icado. O resultado é “ainsegurançadoprogressomodernoque,estranhamente,nãotempassadonemfuturo,eassimestáobcecadocomaconformidade”.114

A cultura é a única faceta da vida e da condição humana em que oconhecimento da realidade e o do interesse humano peloautoaperfeiçoamento e pela realização se fundem em um só. Oconhecimentoculturaléoúnicoquenãotemvergonhadeseusectarismoedo viés dele resultante. É, na verdade, o único conhecimento audacioso obastanteparaofereceraomundoseusigni icado,emvezdeacreditar(ouingir acreditar), com ingenuidade, que o signi icado está ali, já pronto ecompleto,àesperadeserdescobertoeaprendido.Acultura,portanto,éoinimigonaturaldaalienação.Elaquestionaconstantementeasabedoria,aserenidadeeaautoridadequeorealatribuiasimesmo.

Nossa ideia, portanto, é que, em vez de considerarmos o papel dacultura como uma entre muitas categorias – ou melhor, objetos – da

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investigaçãosociológica,deveríamossondarovastoespaçocognitivoqueaapropriação da postura cultural pela sociologia pode deixar em aberto.Assumiraposturaculturalnãoexigea rejeiçãodaatitudequesustentaoprojetodaciênciapositiva.Masimplicatranscenderoespectrodequestõeseferramentasmetodológicasqueessaatitudeconsenteemlegitimar.

Semdesa iarabuscacientí icadaverdadecomoumacorrespondênciaentre conhecimento e realidade, a postura cultural recusa-se a consentircom a atitude limitadora da ciência positiva e sua pretensão de quesomente a realidade já realizada, consciente, “empírica”, alcançável, damesmaformacomonosapropriamosdopassado,podeseradmitidacomopadrão do conhecimento válido. Embora abrangendo o futuro em suaqualidade singular de irredutibilidade ao passado, a postura culturaladmiteumamultiplicidadederealidades.Oconjuntodeuniversosqueelaexplora da forma como as ciências positivas investigam o real tambémcontémosmundos possíveis, potenciais, desejáveis, ansiados,mesmoqueainda improváveis. Esse conceito da sociologia é muito próximo dasugestão,feitaalgunsanosatrásecommuitahesitação,porJohanGaltung,à qual, lamentavelmente, nossa disciplina parece ter dado pouca atençãoatéagora.ÉideiadeGaltungqueumadastarefasdosociólogo

énãoapenasdescobrirmecanismosparaexplicaroempiricamenteexistente,epreveroquevaiacontecer.Tambéméfugirdacamisadeforçadoempiricamenteexistenteedoâmbitoestreitodas previsões para o espaço total do socialmente possível. Ou seja, presume-se que a ordemsocial empiricamente encontrada seja apenas uma de muitas ordens possíveis e, ainda quetenha sido encontrada, não deveria ganhar uma preeminência indevida. … Não se discute oobjetivo de previsão em ciência, mas se deveria debater, pelo quesentimos, o tipo depensamentoquesempreindaga:“Dadasestascondições,queiráacontecer?”;enunca“Qualéoespectro total de variação possível e quais são as condições para que se obtenham diferentesestadosdosistemasocialdentrodesseespectro?”.Devem-sedescobrirmecanismosparaexplicareprever,eelestambémsãoindispensáveisparaabriroespectrodepossibilidadesàquelesquedesejamformarumaordemsocial.115

Aculturaésingularmentehumananosentidodequesóohomem,entretodasascriaturasvivas,écapazdedesa iarsuarealidadeereivindicarumsigni icado mais profundo, a justiça, a liberdade e o bem – seja eleindividual ou coletivo. Assim, normas e ideais não são relíquias de umpensamentometa ísicopréracionalquedeixaohomemcegoàsrealidadesdesuacondição.Pelocontrário,elasoferecemaúnicaperspectivaapartirda qual essa condição é vista como a realidade humana e adquiredimensõeshumanas.Sóadotandoessaperspectivaeseapropriandodelaéque a sociologia pode ascender ao plano das humanidades, além de ser

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umaciência,eresolver,portanto,oantigodilema,aparentementeinsolúvel,queassombrasuahistória.

Então, e somente então, poderá a sociologia entrar em contato diretocom a práxis humana (a alternativa, como disse Jules Henry, seria aseguinte situação: “Em toda parte as disciplinas humanas fogem dahumanidadedos sereshumanos.Está claro, então,queos sereshumanosse afastarãodasdisciplinashumanas.”). Apráxis nãodistingue entre o é,que está “lá fora”, poderoso e não problemático, e o deve ser, que está“aqui dentro”, frágil e cheio de dúvidas. Também não distingue entre oconhecimento, louvável e idedigno, e o interesse,mutilado e infame. Pelacultura, o homem se encontra num estado de revolta constante, no qual,como diria Albert Camus, ao mesmo tempo realiza e cria seus própriosvalores, sendo a revolta não uma invenção intelectual, mas umaexperiênciaeumaaçãohumanas.116

Àmedidaqueapráxishumanaretémsuanaturezaderevoltasacrílega,incontrolável, as profecias de Cassandra de um mundo privado designi icadopodem ser e, de fato, são desvalorizadas,perdem seu impactosinistro e paralisante. A falta de signi icado domundo não passa de umaformadistorcidadedizerqueasociedadealienadaforçouohomemaumaobsequiosa rendição do certo e da capacidade de atribuir signi icado aomundo – as faculdadesde que apenasele pode usufruir. O conhecimentohumano, cujos limites são tarefa e perspectiva apenas daqueles que sededicam à ciência positiva, é culpado de apoiar e implementar essarendiçãodesumanizante.

Como disse um dissidente romântico do marxismo, AnatoliLunatcharsky:

Marxnãopoderiaserumpensadorcosmocêntrico,jáqueapráticahumanaeraparaeleoúnicomundo real. … A única coisa de fato conhecida é a espécie humana – cuja vida, a energiapulsante,tensionada,sentimosdentrodenósmesmos.Essaéparanósaforçaquecriatodasascoisas,afontedenossoalento,averdade,abeleza,obemvivos–esuaraiz.117

1ReferênciaaodinamarquêsVidkunQuisling,queem1940sealiouaosinvasoresalemães,sendoporissoconsideradooprotótipodotraidordapátria.(N.T.)2 HaroldWilson (1916-1995): político e economista britânico, por duas vezes ocupou o cargo deprimeiro-ministro(1964-70e1974-74)peloPartidoTrabalhista;foiumdosartí icesdaadesãodaGrã-BretanhaàComunidadeEuropeia(1973).

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•Notas•

Introdução

1. Ver Reinhart Koselleck, “Richtlinien für das Lexikon politisch-sozialer Begriff der Neuzeit”,Archiv für Begriffsgeschichte, v.9. Ver também Odo Marquard, Abschied Von Prinzpiellen:PhilosophischeStuden,Stuttgart,PhilipReckan,jun1991.2.JohnCarroll,Humanism:TheWreckofWesternCulture,Londres,FontanaPress,1983,p.2.3.FriedrichNietzsche,TheWilltoPower,Londres,Weinfeld&Nicholson,1968,p.476[trad.bras.,

Avontadedepoder,RiodeJaneiro,Contraponto,2008].4. H.G.Wells,Anticipationsof theReactionsofMechanicalandScienti icProgressuponHumanLife

andThought,Londres,Chapman&Hall,1901,p.317.VeradiscussãodeJohnCareysobreotemaemThe Intellectuals and the Masses: Pride and Prejudice among the Literary Intelligentsia 1880-1939,Londres,Faber&Faber,1992,cap.“H.G.Wellsgettingridofpeople”.5. Ver Paul Ricoeur, “Autonomie et vulnérabilité”, in Antoine Garapon e Denis Salas (orgs.), La

justiceetlemal,Paris,OdileJacob,p.166-7.6.Ibid.,p.178.7. Ver Talcott Parsons e Edward Shils (orgs.), Towards a General Theory of Social Action:

Theoretical Foundations for the Social Sciences , Nova York, Harper & Row, 1951, p.16, 24 (grifosnossos).8.GeorgSimmel, “On the conceptand the tragedyof culture”, in Con lict inModernCulture and

OtherEssays,TeachersCollegePress,1968,p.29e30.9.GeorgSimmel,“Theconflictinmodernculture”,ibid.,p.11,15.10.CorneliusCastoriadis,“Ledélabrementdel’Occident”, Lamontéed’insigni icance,Paris, Seuil,

1996,p.87e85.11.MarcFumaroli,L’Étatculturel:Essaisurlareligionmoderne,Paris,Fallois,1991,p.42,171-2.12. Cf. Paul Virilio, “Un monde superexposé: Fin de la histoire, ou in de la géographie?”, Le

MondeDiplomatique, ago 1997, p.17. A ideia de “ im da geogra ia” foi apresentada pela primeiravez, pelo que sei, por Richard O’Brien(cf. seuGlobal Financial Integration: The End of Geography,Londres,ChathamHouse/Pinter,1992).13. Michael Benedikt, “On cyberspace and virtual reality”,Man and Information Technology

(palestras realizadas num simpósio internacional organizado pela Comissão sobre Homem,Tecnologia e Sociedade da Real Academia Sueca de Ciências da Engenharia [IVA], em 1994),Estocolmo,1995,p.41.14. TimothyW. Luke, “Identity,meaning and globalization: Detraditionalization in postmodern

space-time compression”, in Paul Heelas, Scott Lash e Paul Morris (orgs.), Detraditionalization,Oxford,Blackwell,1996,p.123e125.15.PaulVirilio,TheLostDimension,NovaYork,Semiotext(e),1991,p.13.16. Cornelius Castoriadis,L’Institution imaginairede la société, Paris, Seuil, 1975. Aqui citado da

traduçãoinglesadeKathleenBlamey(Cambridge,Polity,1987,p.218-19).17. Friedrich Nietzsche,Beyond Good and Evil , apud Geoffrey Clive (org.),The Philosophy of

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Nietzsche,NovaYork,MentorBooks,1965,p.211.18.ErnestGellner,NationsandNationalism,Oxford,Blackwell,1983,p.48-9.19. Frederick Barth in Frederick Barth (org.),Ethnic Groups and Boundaries: The Social

Organization of Cultural Difference, Bergen, Universitets Forlaget, 1969, p.14-5. Eis o que EliasCanetti tinha adizer sobreopapel, o absurdoeos custosdas fronteiras: “Osheróisquepor elasmorreramesuaposteridade,queampliaramas fronteirasapartirdas tumbas.Murosemlugareserrados,eondeelesrealmentedeveriamsererguidossenãodevessemestaremoutroslugares,hámuito. Os uniformes dos agentes de fronteira mortos e os prejuízos em passes di íceis,transgressões e deslocamentos eternos, e detritos incon iáveis. O oceano arrogante; tempestadesincontroláveis; pássaros de um país para outro, uma proposta de exterminá-los.”The HumanProvince,Londres,Deutsch,1985,p.20.20. “La douceur d’être inclu”, in F. Thelamon (org.), Sociabilité, Pouvoirs et Société , atas do

Colóquio deRouen, nov 1983, Rouen, Université de Rouen, 1987, p.19. A alternativa àdouceur d’être inclu éla cruauté d’ être exclu (p.31). Pode-se imaginar que seja precisamente o medo dacrueldadedaexclusãoquetornetãodoceaexpectativadepertencer;aexperiênciadaexclusão(àsvezesfrutodaexpulsão,outrasdodesaparecimentooude inhamentodasestruturasquetornavamopertencimento seguroe irre lexivo)precedeaadoçãoconscienteda inclusãocomo ime tarefa;ela cria a sedede identidade edesencadeia abusca ativapelodocenéctardopertencimento; ouseja,daconfirmaçãoautorizadadaidentidade,imprimindosobreelaumvistodeentrada.21.ErnestRenan,de“L’avenirdelascience”,PagesChoisis,Paris,CalmanLevy,1896,p.27e31.22. Robert Muchembled,L’Invention de l’homme moderne: Sociabilité, moeurs et comportements

collectives dans l’Ancien Régime , Paris, Fayard, p.12, 13 e 150. A ideia dos efeitos bifacetados,profundamente diferenciados, do “processo civilizador” (voltada, de forma polêmica, contra omodelo “gradualista” popularizado por Norbert Elias) foi também perseguida de maneirasistemática por Muchembled em suas outras obras (ver, em particular, La violence en village:Sociabilité et comportements en Artois du XVeme auXVIIeme siècle, Paris, Bregnols, 1989). De acordocomMuchembled,asmutaçõesmaisprofundasnospadrõesdesensibilidadeecomportamentonocotidiano eram limitadas a uma pequena elite; funcionavam ao mesmo tempo como veículo deautodistanciamentoe comopontodevistaparaumanovaperspectivaapartirdaqualo restodapopulação era visto de cima como uniformemente vulgar e, pelo menos no período inicial,incivilizável.Ore inamentocomoestratégiadaelitesejustapunhaaocon inamento,aopoliciamentoe à vigilância universal como estratégia a ser empregada no trato com as “massas”. O processocivilizador é mais bem entendido como a “recomposição” da nova estrutura de controle edominação nomomento em que as instituições pré-modernas de integração social semostraraminadequadaseforamaospoucosdesmontadas(desenvolviessadiscussãocommaiorprofundidadeemLegislatoreseintérpretes,RiodeJaneiro,Zahar,2010).23. Gellner, op.cit., p.34. Relembremos que Renan (embora suas opiniões sobre o tema sejam

recordadassobretudopeladescriçãodanação,comfrequênciacitada,como“unplébiscitedetouslesjours”)jamaisaceitariaquelepeuple(nãoépornadaqueeleovia,etemia,como“lamasselourdeetgrossière”)pudessevotarnesseplebiscitodedireito.Eleconsideravaa liberdadedeeducaçãoumabsurdo;oqueosobjetosdaaçãoeducacionalnecessitavameradeautoridade,nãodeliberdadedeescolha, que eles de qualquer forma não saberiam como exercer. Até que a educação atinja seupropósitoeosaprendizessejammoldadosepreparadosdemaneiraadequada,“pregaraliberdadeépregaradestruição;écomose,emrespeitoàsleisdosursosedosleões,alguémabrisseasjaulasdo zoológico” (cf. Renan, op.cit., p.28-34). Quase um século antes de Renan (em 1806), Fichtepostulou que a nova educação devia consistir nisso, “que ela destrói totalmente a liberdade deescolhanosoloemquetentacultivar,eproduz,aocontrário,umanecessidadeestritanadecisãodavontade.…Sevocêquer in luenciá-lo[oobjetodoesforçoeducativo]dealgumaforma,devefazermaisdoqueapenasconversarcomele;devemoldá-loemoldá-loemoldá-lode tal formaqueelesimplesmentenãopossa terumavontadediferentedaquelaquevocêquerqueele tenha” (apudElieKedourie,Nationalism,Londres,Hutchinson,1960,p.83).24.MauriceBarrès,Scènesetdoctrinesdunationalisme,Paris,ÉmilePaul,1902,p.443.

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25.Ibid.,p.8-13.26.Ibid.,p.16e20.27.VerCharlesTaylor,“Canliberalismbecommunitarian?”,CriticalReview,v.8,n.2,1994,p.257-

62.28. Alain Touraine, “Faux et vrais problèmes”, in Michel Wiewiorka (org.), Une société

fragmentée?–Lemulticulturalismeendébat,Paris,LaDécouverte,1997,p.312,306e310.29.StuartHall, “Whoneedsidentity?”, inStuartHallePaulDuGay(orgs.), QuestionsofCultural

Identity,Londres,Sage,1996,p.3-4.30.CorneliusCastoriadis,ImaginaryInstitutionsofSociety,Cambridge,PolityPress,1987,p.163.31. Jorge Luis Borges, “Averroes’ search”, Labyrinths, Harmondsworth, Penguin, 1970, p.187-8

[trad.bras.,“AbuscadeAverróis”,ElAleph,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,2008].32. Clifford Geertz, “Distinguished lecture: Anti-anti-relativism”, American Anthropologist, n.2,

1984, p.263. Resumindo o longo debate sobre os limites linguísticos de todas as crenças, LeszeckKolakowskiassinalaque“alegitimidadeésemprerelativaacertojogo,cultura,propósitoindividualoucoletivo.…Não temos ferramentasquepossamnoscapacitaraabrirà forçaoportãoque levaalém da linguagem, além das normas culturais contingentes, além dos imperativos práticos queformamnossopensamento”.HorrorMetaphysicus,Varsóvia,PWN,1990,p.9.33.AnthonyGiddens, “Thefutureofanthropology”, DefenseofSociology:Essays, Interpretations,

andRejoinders,Cambridge,PolityPress,1996,p.121-6.34.WojciechJ.Burszta,CzytanieKultury,Lódz,1996,p.73,68e70.35. Cf. RichardRorty, “On ethnocentrism:A reply to CliffordGeertz”, Objectivity, Relativism and

Truth,Cambridge,CambridgeUniversityPress,1991,p.202-4.36. Ver a entrevista deMichael Bess comMichel Foucault inHistory of the Present, primavera

1988,p.13.37. JeffreyWeeks, “Rediscoveringvalues”, in JudithSquares (org.), PrincipalPositions , Londres,

Lawrence&Wishart,1993,p.192-200.

1.Culturacomoconceito

1.W.J.M.Mackenzie,PoliticsandSocialScience,Harmondsworth,Penguin,1967,p.190-1.2. Cf. E.E. Evans-Pritchard,Social Anthropology, Oxford University Press, 1951, p.40 (grifos

meus).3. Cf.Culture: A Critical Review of Concepts and De initions, Papers of the Peabody Museum,

Cambridge,Mass.,1952.4.Cf.“Aformalanalysisofdefinitionsof‘culture’”,inGertrudeE.DoleeRobertL.Carneiro(org.),

EssaysintheScienceofCulture,NovaYork,Crowell,1960.5.Culture,Language,andPersonality,UniversityofCaliforniaPress,1949,p.79-80.6. Para exposições ilosó icas dessa teoria, cf. por exemplo L. Wittgenstein,Philosophical

Investigations,Oxford,Blackwell,1953[trad.bras., Investigaçõesfilosóficas,SãoPaulo,NovaCultural,1999,Col.OsPensadores];GilbertRyle,“Ordinarylanguage”,PhilosophicalReview,1953,p.167s.;ouG.E. Moore, “Wittgenstein’s lectures in 1930-33”, Philosophical Papers , Londres, Allen & Unwin,1959.7.GilbertRylee J.N.Findlay,Symposium,Proceedingsof theAristotelianSociety, supl.v.35,1961,

p.235.8.Paraadiferençaentrelinguagemefala,dessepontodevista,cf.ibid.,p.223s.9. A.J. Greimas,Sémantique structurale, Paris, Larousse, 1966, p.44 [trad. bras.,Semântica

estrutural,SãoPaulo,Cultrix,1973].10.LuisJ.Prieto,Messagesetsignaux,Paris,PressesUniversitairesdeFrance,1966,p.18,20.11. J. Burnet, “Philosophy”, in sir Richard Livingstone (org.), The Legacy of Greece, Oxford

UniversityPress,1969,p.76.

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12. Cf. Harry Levin, “Semantics of culture”, in Gerald Holton (org.), Science and Culture, Boston,HoughtonMifflin,1965,p.2.13.DeAnima,IIi.,1[trad.bras.,DeAnima,SãoPaulo,34,2006].14.Cf.Phaedo,245C-246A.15.RobertA.Nisbet,SocialChangeandHistory,OxfordUniversityPress,1969,p.9,22.16.Cf.Republic,352D-354A[trad.bras.,Arepública,SãoPaulo,NovaCultural,2008].17. Cf.Paidea,Die Formung des grieschischen Menschen, Berlim,Walter de Gruyter, 1959 [trad.

bras.,Paideia,aformaçãodohomemgrego,SãoPaulo,MartinsFontes,1995].18.EducationinthePerspectiveofHistory,NovaYork,Harper,1960,p.80.19.Aristóteles,NicomacheanEthics,1.9.20.E.H.Diels,DieFragmentederVorsokratiker,Berlim,1903,v.53.21. Cf. “Conceptsandsociety”, reed. inDorothyEmmeteAlistairMacIntyre (orgs.), Sociological

TheoryandPhilosophicalAnalysis,Londres,Macmillan,1970,p.13941.22.Soziologie,Leipzig,DunckerundHumblot,1980,p.732-46.23. Segundo o pertinente resumo do conceito de Simmel por Donald N. Levine, “Some key

problemsinSimmel’swork”,inLewisA.Coser(org.), GeorgSimmel,EnglewoodCliffs,N.J.,Prentice-Hall,1965,p.108-9.24.OntheTheoryofSocialChange,UniversityofChicagoPress,1962,p.65,75.25.Reed.inEdwardSapir, Culture,LanguageandPersonality,UniversityofCaliforniaPress,1949,

p.90.26.Segundoaregraformuladapelopreeminente ilósofosocialpolonêsKazimierzKelles-Krauz

como a lei do “retrospecto turbulento”; cf.PismaWybrane, v.1, Varsóvia, Książka i Wiedza, 1962,p.241-77.27. “Remarks on a rede inition of culture”, in G. Holton (org.), Science and Culture, Boston,

HoughtonMifflin,1965,p.225[trad.bras.,Culturaesociedade,SãoPaulo,PazeTerra,v.1,2010].28. Cf. a formulação dessa regra, ao estilo legal, por Karl Marx in Karl Marx e F. Engels, The

GermanIdeology, Londres, LawrenceWishart, 1968, cap.1 [trad. bras.,A ideologiaalemã, SãoPaulo,Boitempo,2007].29.Cf.Heródoto,inC.Hude(org.),OxfordText,I.193-4,202-4;II.35;IV.75.30.Navisãomedievaldasdiferençasculturais,odesviopertencia,conceitualefuncionalmente,a

umacategoriadefenômenosintelectuaisinteiramentedistinta.31.Plan de deux discours sur l’histoire universelle, Paris, Guillaumin, 1844, p.645. Apud Marvin

Harris,TheRiseofAnthropologicalTheory,Londres,Routledge&KeganPaul,1968,p.15.32.AnEssayConcerningHumanUnderstanding,Oxford,ClarendonPress,1894,p.66.33. “The transition to humanity”, in Sol Tax (org.), Horizons of Anthropology, Londres, Allen &

Unwin,1965,p.47.34.RuthBenedict,PatternsofCulture,Londres,Routledge&KeganPaul,1961[1935],p.170.35.Ibid.,p.171.36.Habitat,Economy,andSociety,Londres,Methuen,1963[1934],p.7.37.TheEvolutionofCulture,NovaYork,McGrawHill,1959,p.3(grifosmeus).38.TheoryofCulturalChange,UrbanaUniversityPress,1955,p.184.39.Essaé,muitoobviamente,apenasumadasexplicaçõespossíveis.Outra,sempreplausível,é

umatendênciaonipotenteaprojetaroconceitohierárquicodeculturanumaimagem“nós-grupo”,agora incorporando a totalidade da espécie humana. Nossos padrões são convincentementesuperiores(mais e icientes, mais convenientes, mais humanos etc.); por que, então, alguém iriarejeitá-los?40. “Culture and environment: the study of cultural ecology”, in Sol Tax (org.), Horizons of

Anthropology,p.140-1.41. “The superorganic: science ormetaphysics”, in Robert A.Manners e David Kaplan (orgs.),

TheoryinAnthropology,Londres,Routledge&KeganPaul,1969,p.22.

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42.ApudDavidF.Aberle,“Thein luenceof linguisticsonearlycultureandpersonalitytheory”,inTheoryinAnthropology,p.311.43.MirrorforMan,NovaYork,McGrawHill,1949,p.23(grifosmeus).44.Aberle,op.cit.,p.305-6.45. Marvin Harris,TheRise of Anthropological Theory, Londres, Routledge& Kegan Paul, 1968,

p.17-8.46.Cf.ManandCulture,NovaYork,Crowell,1923,p.50s.47.“Thecommondenominatorofcultures”,inRalphDinton(org.), TheSceneofManintheWorld

Crisis,ColumbiaUniversityPress,1945,p.145s.48.“Socialanthropology,pastandpresent”,inRobertA.MannerseDavidKaplan(orgs.),op.cit.,

p.51-2.49.ApudSolTax,AnAppraisalofAnthropologyToday,UniversityofChicagoPress,1953,p.109.50. Rethinking Anthropology, Londres, Athlone Press, 1966, p.2, 6 [trad. bras.,Repensando a

antropologia,SãoPaulo,Perspectiva,s.d.].51.ArgonautsoftheWesternPacific,Londres,Routledge&Sons,1922,p.25.52.GesammelteWerke, v.VII, Stuttgart, Teubner, 1926, p.207-9; ed. ingl., H. P. Rickman (org.),

WilhelmDilthey,PatternandMeaninginHistory,NovaYork,Harper&Row,1962,p.119-21.53.Race,Language,andCulture,Londres,Macmillan,1948[1932],p.258-9.54.Cf.ClydeKluckhohn,CultureandBehavior,NovaYork,FreePress,1962,p.52.55.Cf.Anthropology,NovaYork,Harcourt,Brace,1948,p.293-4.56.“Style”,inSolTax(org.),AnthropologyToday,UniversityofChicagoPress,1962,p.278.57. Early Anthropology in the Sixteenth and Seventeenth Centuries , Filadél ia, University of

PennsylvaniaPress,1946,p.179s.58.ThePsychologicalFrontiersofSociety,NovaYork,ColumbiaUniversityPress,1945,p.viii.59.“ConfigurationsofcultureinNorthAmerica”,AmericanAnthropologist,v.34,1932,p.24.60.TheLittleCommunity,ViewpointsfortheStudyofaHumanWhole ,UniversityofChicagoPress,

1955,p.88.61. 1957, apudWilliamC. Sturtevant, “Studies in Ethnoscience”, AmericanAnthropologist, v.66,

1964,p.101.62.Cf.LanguageinRelationtoaUni iedTheoryofStructureofHumanRelations,SummerInstitute

ofLinguistics,Glendale,Califórnia,parteI1954,parteII1955,parteIII1960.63. Kenneth L. Pike, “Towards a theory of the structure of human behavior”, in Dell Hymes

(org.),LanguageinCultureandSociety,NovaYork,Harper&Row,1964,p.55.64. “Notes on theory and non-theory in anthropology”, in Theory in Anthropology, Londres,

Routledge&KeganPaul,1969,p.4.65.PeasantSocietyandCulture,UniversityofChicagoPress,1956,p.6.66. Cf. M.T. Hogden,Early Anthropology in the Sixteenth and Seventeenth Centuries , Filadél ia,

UniversityofPennsylvaniaPress,1946,p.86,114.67.Cf.MargaretMead, “Character formationanddiachronic theory”, in SocialStructure, Studies

PresentedtoA.R.Radcliffe-Brown,OxfordUniversityPress,1949,p.21-6.68.PequenaamostradeestudoscoletadaporRobertW.Green inProtestantismandCapitalism,

Boston,Heath,1959,ofereceumaboavisãogeraldesseargumentomultifacetado.69.Cf.OntheTheoryofSocialChange,DorseyPress,Homewood,Ill.,1962,esp.p.86s.70.Cf.MeetingofEastandWest,NovaYork,Collier-Macmillan,1960.71. Cf., por exemplo, a seguinte fração diminuta de uma imensa literatura: Ralph Braibanti e

Joseph J. Splenger (orgs.),Values, and Socio-Economic Development , Cambridge University Press,1961; W. Ian Hogbin,Social Change, Londres, 1958; Leonard W. Doob,Becoming More Civilized,UniversityofChicagoPress,1960.72.ClydeKluckhohn,op.cit.,p.73,31.73.PeterBerger,ARumourofAngels,Harmondsworth,Penguin,1971.

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74. Cf. Ernest Brehaut,An Encyclopaedist of the Dark Ages, Isidore of Seville, Nova York, 1912,p.207-21.75.Cf.M.T.Hodgen,op.cit.,p.30.76.Cf.TheScienceofCulture,AStudyofManandCivilization,NovaYork,GrovePress,1949.77.“Thetransitiontohumanity”,inSolTax(org.),HorizonsofAnthropology,p.37.78. Cf., porexemplo,F.ClarkHowell, “Thehumanizationprocess”, inSolTax (org.), Horizons of

Anthropology,p.58.79.TheEvolutionofCulture,NovaYork,McGrawHill,1959,p.17.80.“Culturalanthropology:ascience”,AmericanJournalofSociology,v.41,1936,p.305.81.“Thepsychologicalapproachinanthropology”,inSolTax(org.),op.cit.,p.73s.82.“Universalcategoriesofculture”,inSolTax(org.), AnthropologyToday,UniversityofChicago

Press,1962,p.318.83.ClydeKluckhohn,op.cit.,p.275,285.84. “Thephilosophicalpresuppositionsofculturalrelativismandculturalabsolutism”, inLeoR.

Ward(org.),EthicsandtheSocialSciences,UniversityofNotreDamePress,1959,p.62-3.85.“Theuniversallyhumanandtheculturallyvariable”,HumanNatureandtheStudyofSociety,

UniversityofChicagoPress,1962,p.451.86.TheScienceofCulture,AStudyofManandCivilization,NovaYork,GrovePress,1949,p.29.87.Lalinguistiquesynchronique,Paris,PressesUniversitairesdeFrance,1965,p.2.88.OnHumanCommunication,MITPress,1966[1957],p.10.89. Claire Russell e W.M.S. Russell, “Language and animal signals”, in Noel Minnis (org.),

LinguisticsatLarge,Londres,Gollancz,1971,p.167.90. Cf. “The genetic roots of thought and speech”, in Thought and Language, MIT Press, 1970,

p.33-51[trad.bras.,Pensamentoelinguagem,SãoPaulo,MartinsFontes,1991].91.Structuralism,Londres,Routledge&KeganPaul,1971,p.118-9[trad.bras.,Oestruturalismo,

SãoPaulo,Difel,1979].92.Perdido,infelizmente,natraduçãoparaoinglêsdeMichalinaVaughan,publicadasobotítulo

deTheUsesofStructuralism,Londres,HeinemannEducational,1971.93. É di ícil compreender por que a expressão “la dé inition effective” foi substituída, na

traduçãoparaoinglês,por“operationalde inition”.Esseúltimotermo,“de iniçãooperacional”,temumsigni icadoprecisonametodologiadasciênciassociais–umsigni icadoquedi icilmenteseriaopretendidoporBoudon.Oqueeletinhaemmenteera,emvezdisso,umade inição“positiva”,emoposiçãoaumadefiniçãomeramente“intencional”.94. Cf. “Introduction”, in La naissance de l’intelligence chez l’enfant , Neuchâtel, Delachoux et

Niestlé, 1959; também publicado comoTheOrigin of Intelligence in theChild, Londres, Routledge&KeganPaul,1953[trad.bras.,Onascimentodainteligêncianacriança,SãoPaulo,LTC,1987].95. “An essay onmind”, in JordanM. Scher (org.), Theories of theMind, Nova York, Free Press,

1962,p.285-7.96. “Computing machinery and intelligence”,Mind, v.LIX, 1940; reed. in Alan Ross Anderson

(org.),MindsandMachines,EnglewoodCliffs,N.J.,Prentice-Hall,1964.

2.Culturacomoestrutura

1.Cf.P.Chambadal,Évolutionetapplicationsduconceptdentropie,Paris,Dunod,1963,§20.2.Cf.ZurVerteidigungderorganischenMethodeinderSoziologie,Berlim,1898.3. “What is information?”, inAlfredG. Smith (org.), CommunicationandCulture, Nova York,Holt,

p.51.4.SociologyandModernSystemsTheory,EnglewoodCliffs,Prentice-Hall,1967,p.14.5.CalcoscIroswójwswietlecybernetyki,Varsóvia,PWN,1963,p.12,19,26.6. Cf. “The principles of self-organization”, in Heinz von Foerster e GeorgeW. Zopf Jr. (orgs.),

Page 250: Bauman, Z. Ensaios sobre o conceito de cultura

Principlesofself-organization,Oxford,PergamonPress,1962.7. “Genèseet structureenpsycho-physique”, inMauricedeGandillac,LucienGoldmanne Jean

Piaget(orgs.),Entretienssurlesnotionsdegenèseetdestructure,Haia,Mouton,1965,p.27.8.Cf.TheMathematicalTheoryofCommunications,UniversityofIllinoisPress,1949.9. A ideia foi elaborada particularmente pelo cibernético polonês Henryk Greniewicz. Cf.

Cybernetykaniematematyczna,Varsóvia,PWN,1969,p.203-50.10. Comentário de Francis Macdonald Cornford inPlato’s Theory of Knowledge, Londres,

Routledge&KeganPaul,1970[1935],p.230.11.Sophist,246A,B.12.Cornford,op.cit.,p.6,244.13.Ibid.,p.3,2.14.TheEssentialDescartes,MargaretD.Wilson (org.),NovaYork,NewAmericanLibrary,1969,

p.80,82,83,168.15.Cf.StructuralAnthropology,NovaYork,Doubleday,1967,p.275.16. Quentin Lauer,Phenomenology, Its Genesis and Prospects , Nova York, Harper & Row, 1965

[1958],p.9.17.EdmundHusserl,TheParisLectures,Haia,Nijhoff,1967[1907],p.9.18.EdmundHusserl,TheIdeaofPhenomenology,Haia,Nijhoff,1968[1919],p.41.19.Literature,Psychology,andtheSocialSciences,Haia,Nijhoff,1962,p.157.20.Le hasard et la nécessité: essai sur la philosophie naturelle de la biologiemoderne, Paris, Seuil,

1970,p.116-7.21.Ibid.,p.119.22. Structural Anthropology, Nova York, Doubleday, 1967, p.225 [trad. bras., Antropologia

estrutural,SãoPaulo,CosacNaify,2008].23.ClaudeLévi-Strauss,Dumielauxcendres,Paris,Plon,1966,p.330[trad.bras.,Domelàscinzas,

SãoPaulo,CosacNaify,2010].24.ProblemsofKnowledgeandFreedom(RussellLectures),Londres,Fontana,1972,p.33,41-2.25.DavidMacLellan,Marx’sGrundrisse,Londres,Macmillan,1971,p.133.26.WritingsoftheYoungMarxonPhilosophyandScience,L.EastoneK.Guddat(orgs.),NovaYork,

Anchor,1967,p.413.27.Cf.Système,structure,etcontradictionsdansLeCapital,LesTempsModernes,1966,p.864.28. Cf. “The sociologyof ethics and the ethics of sociologists”, inEdwardA.Tiryakin (org.), The

PhenomenonofSociology,NovaYork,Appleton-Century-Crofts,1971,p.259-76.29.MoralEducation,NovaYork,FreePress,1961,p.76.30.TheSociologicalTradition,Londres,Hinemann,1967,p.53.31. Roland Barthes,Elements of Semiology, Londres, Jonathan Cape, 1969 [1964], p.56 [trad.

bras.,Elementosdesemiologia,SãoPaulo,Cultrix,1971].32.Cf.“‘Distinktive’und‘delimitative’Funktionen”,inN.S.Trubetzkoy, GrundzugederPhonologie,

Göttingen,VanderhoeukundRuprecht,1967,p.241.33.Cf.A.J.Greimas,Sémantiquestructurale,Paris,Larousse,1966,p.19-20.34.Messagesetsignaux,Paris,PressesUniversitairesdeFrance,1966,p.17.35.Adistinçãoremontaaosemainon esemaineondosantigosestoicos;cf.RomanJakobson,“Ala

recherchedel’essencedelangage”,Diogène,1965,v.51,p.22.36.Cf.Z.Bauman,“Marxismandthecontemporarytheoryofculture”,inMarxandContemporary

ScientificThought,Haia,Mouton,1969,p.483-97.37. Joseph H. Greenberg, “Language universals”, in Thomas A. Sebeok (org.), Current Trends in

Linguistics,v.III.Haia,Mouton,1966,p.61.38.Cf.LucienGoldmann,“Introductiongénérale”,inGandillac,GoldmannePiaget,op.cit.,p.12.39. Cf. Z.Bauman, “Semiotics and the functionof culture”, SocialScience Information,n.5,1968,

p.69-80.

Page 251: Bauman, Z. Ensaios sobre o conceito de cultura

40.Trubetzkoy,op.cit.,p.17.41.V.V.Martynov,Kibernetika,Semiotika,Lingvistika,Minsk,NaukaiTechnika,1966,p.118s.42. A versão mais ampla dessa teoria aparece nos três volumes deLanguage in Relation to a

Uni iedTheoryoftheStructureofHumanBehaviour,desuaautoria,SummerInstituteofLinguistics,Glendale, 1954-60. As citações que se seguem foram extraídas do artigo de Pike intitulado“Towards a theory of the structure of humanbehavior”, inDellHymes (org.), Language in CultureandSociety,NovaYork,Harper&Row,1964,p.54-62.43.InHarryHoijer(org.),LanguageinCulture(ConferênciasobreasInterrelaçõesdaLinguagem

eosoutrosAspectosdaCultura,23-27mar1953),ChicagoUniversityPress,1960,p.163.44.Ibid.,p.126.45. Cf. “Anthropological data and the problem of instinct”, in Clyde Kluckhohn e C. Murray

(orgs.),PersonalityinNature,SocietyandCulture,NovaYork,Knopf,1949,p.111.46.Cf.“Linguistictechniquesandtheanalysisofemotionalityininterview”, JournalofAbnormal

SocialPsychology,v.54,1964.47.KarlBuhler,Sprachtheorie,Jena,1934.48.Lalinguistiquestructurale,Paris,Payot,1968,p.28.49.Strukturnajalingvistikakakimmanentnajateoriajazyka,Moscou,Nanka,1958,p.29.50.InNoelMinnis(org.),LinguisticsatLarge,Londres,Gollancz,1971,p.139-58.51.Barthes,op.cit.,p.41.52.Lelangage,Paris,Minuit,1968,p.135.53. B. Trnka et al., “Prague structural linguistics”, inDonald E.Hayden et al. (orgs.), Classics in

Linguistics,NovaYork,PhilosophicalLibrary,1967,p.327.54. “The Sapir-Whorf hypothesis”, in Culture, Language and Personality , University of California

Press,p.97-8.55.Cf.a importantediscussãodo fenômenoda“ issão”porUmbertoEco, “Lowbrowhighbrow,

highbrowlowbrow”,TimesLiterarySupplement,1971,p.1210.56.AndréMartinet(org.),Lalinguistique,Paris,Denoel,1969,p.165.57.Cf.JakobsoneSchoepf,op.cit.,p.44-5.58.Cf.,porexemplo,W.R.Ashby,R.W.SperryeG.W.Zopf inFoerstereZopf(orgs.), Principlesof

Self-Organization,Oxford,PergamonPress,1962.59. Cf. “Le développement des langues”, in Linguistique historique et linguistique générale, v.II,

Paris,Klincksiek,1936,p.75s.60.Queroenfatizarousodotermo“correlacionada”emvezde“determinante”e“determinada”.

A relação entre os dois fatores lembra-nos muito mais o que os cibernéticos denominaram“retroalimentaçãopositiva”.61. Além do íntimo vínculo entre as ferramentas e aemergência da ordem sociocultural, há

também uma ligação próxima entre o nível de desenvolvimento das ferramentas e os tipos desistemassocioculturaisreguladores.UmaboailustraçãomodernafoiapontadaporWilliamG.ElliotJr.:“Semoveículoamotor,ossinaisrodoviáriospoderiammuitobemcontinuarprimitivos,locaisealtamenteindividualistas. O veículo amotor ampliou enormemente o âmbito das viagens e trouxeconsigoumaeradeviagens individuaisparaasmassas; contudo, criou tambémnovosperigoseanecessidade de uma orientaçãoaperfeiçoada para os forasteiros que dirigem em novas rodoviasconduzindo a lugares distantes.” “Simbology of the highways of the world”, in Simbology, ArtDirectorsClubofNewYork,1960,p.50.62.Oque se segue é umadasmuitasmanifestaçõesdoparadigma tradicional. T.O.Beidelman

debate“a interaçãoentreculturaesociedade”comoaquela“entrea ideologia(talcomoaexibidanacosmologiaenasnormasmorais)eaaçãosocial(talcomoapresentetantonaadesãoquantonadivergência em relação a essas normas)”. “Some sociological implications of culture”, in John C.McKinney e EdwardA. Tiryakin (orgs.),TheoreticalSociology, Nova York, Appleton-Century-Crofts,1970,p.500.63. “Introdução” aHandbook of American Indian Languages, Smithsonian Institution, 1911;

Page 252: Bauman, Z. Ensaios sobre o conceito de cultura

republicado in D.E. Hayden et al. (orgs.),Classics in Linguistics, Nova York, Philosophical Library,1967,p.220.64.CharlesE.Osgood,“Onthenatureofmeaning”,inE.P.HollandereRaymondG.Hunt(orgs.),

CurrentPerspectivesinSocialPsychology,NovaYork,OxfordUniversityPress,1963.65. Berzil Malmberg,Structural Linguistics and Human Communication, Heidelberg/Berlim,

SpringerVerlag,1967,p.31.66. V.A. Zvegintsev, Theoreticheskaya i prikladnaya lingvistika , Moscou, Prosvjeschtechnie, 1967,

p.421.67. Roman Jakobson, “Le Langage commun des linguists et des anthropologues”, in Essais de

linguistiquegénérale,Paris,Minuit,1963,p.40.68.J.A.Greimas,op.cit.,p.19-20.69.AndréMartinet(org.),Lalinguistique,op.cit.,p.155.70. G. Balandier, “L’Experience de l’ethnologue et le problème de l’explication”, Cahiers

InternationauxdeSociologie,v.35,dez1956.71.Trubetzkoy,op.cit.,p.67.72. “Signe zero”, inMélange de linguistique, offerts à Charles Baly , Genebra, 1939, p.144;

republicado in E.P. Hemp, F.W. Householder e R. Austerlitz (orgs.), Readings in Linguistics, Illinois,UniversityofChicagoPress,1966,p.109.73.InT.A.Sebeok(org.),CurrentTrendsinLinguistics,v.III,Haia,Mouton,1966,p.72.74.V.V.Martynov,op.cit.,p.72.75.A.V.Isatchenko,“Kvoprosuostrukturnoytipologiislovarnowvosostavaslavianskichjazykov”,

Slavia,1958.76.Cf.S.F.Nadel,TheTheoryofSocialStructur,Londres,Routledge&KeganPaul,1957,esp.p.22-

6,60.77. “Nature de signe linguistique”, AtaLinguistica, 1939; republicado in P. Hemp et al. (org.),

ReadingsinLinguistics,v.II,UniversityofChicagoPress,1966,p.105-6.78.G.Ungeheuer,“EinfuhrungindieInformationstheorieunterBerucksichtigungphonetischer

Probleme”,Phonoetika,v.4,1959,p.95-106.

3.Culturacomopráxis

1.ElementsofSocialOrganization,Londres,1951,p.42.2.Ibid.,p.211.3.SocialAnthropology,Londres,1951,p.20.4.TheLittleCommunity,Viewpoints for theStudyofaHumanWhole ,UniversityofChicagoPress,

1955,p.46.5.Anthropology,NovaYork,Harcourt,Brace,1948,p.293-4.6.Psychology,NovaYork,WorldPublishingCo.,1948[1892],p.176.7. E assim deixamos de lado a irmações iniciais do existencialismo, em particular as de

Kierkegaard,quesão,precisamente,a irmaçõesdairrelevânciadotema“essênciassubjetivas”paraas ciências sociais – o que equivale a uma a irmação de que a sociologia que as seleciona comoprincípiometodológiconãoépossível.8.WilhelmDilthey, inH.P.Rickman(org.), PatternsandMeaninginHistory ,NovaYork,Harper&

Row,1962,p.105.9.Ibid.,p.123,131.10.“Thesuperorganic”,inTheNatureofCulture,UniversityofChicagoPress,1952[1917],p.41.11.TheScienceofCulture,NovaYork,Farrar,1948,p.xviii.12.TheElementaryFormsofReligiousLife,Londres,Allen&Unwin,1968,p.422-3[trad.bras.,As

formaselementaresdavidareligiosa,SãoPaulo,MartinsFontes,2003].13.SocialandEconomicOrganization,NovaYork,FreePress,1969,p.88s.

Page 253: Bauman, Z. Ensaios sobre o conceito de cultura

14.CulturalSciences,TheirOriginandDevelopment,UniversityofIllinoisPress,1963,p.131-3.15.Ibid.,p.134.16. Coabitando no interior do mesmo senso comum, evidentemente inconsistente, com outro

pressupostoingênuo,odeumaobjetividadeautossustentadadomundo.17.Marx,TheoryofAlienation,Londres,Merlin,1970,p.279.18.Cf.Alienation,Londres,Allen&Unwin,1971,p.74.19. Elements of Semiology, Londres, Jonathan Cape, 1969, p.56-7 [trad. bras.,Elementos de

semiologia,SãoPaulo,Cultrix,1996].20.Messagesetsignaux,Paris,PressesUniversitairesdeFrance,1966,p.20,26.21.Structuresélémentairesdelaparente,Paris,PressesUniversitairesdeFrance,p.96[trad.bras.,

Estruturaselementaresdoparentesco,SãoPaulo,Vozes,2009].22.Ibid.,p.36,56.23.CosmosandHistory,NovaYork,1959,p.9,57.24. “Anthropological aspects of language: animal categories and verbal abuse”, in Eric H.

Lenneberg(org.),NewDirectionsintheStudyofLanguage,UniversityofChicagoPress,1964.25. Cf. Nathan Stemmer, “Some aspects of language acquisition”, in Yeoshua Bar-Hillel (org.),

PropertiesofNaturalLanguages,NovaYork,Reidel,1971,p.208s.26.Respectivamente,abordageminataetendênciasescapistas;cf.AnimalDriveandtheLearning

Process, 1930; e também John M. Butler e Laura N. Rice, “Adiance, self-actualization and drivetheory”,inJ.N.WepmaneR.W.Heine(orgs.),ConceptsofPersonality,Londres,1964,p.81s.27. Cf. Lucien Lévy-Bruhl,Lamentalité primitive, Paris, Presses Universitaires de France, 1947

[trad.bras.,Amentalidadeprimitiva,SãoPaulo,Paulus,2008].28.“Anthropologicalaspectsoflanguage”,inLenneberg(org.),op.cit.,p.38-9.29. Outras considerações relevantes sobre esse tema in Z. Bauman,Kultura i Spoleczenstwo

(CulturaeSociedade),Varsóvia,PanstwoweWydawnictwoNaukpwe,1966,cap.3.30.“Anthropologicalaspectsoflanguage”,inLenneberg(org.),op.cit.,p.63.31.SocialChange,Londres,1958,p.108.32. Morton Grodzins,The Loyal and Dysloyal, Social Boundaries of Patriotism and Freedom ,

UniversityofChicagoPress,1956,p.6.33. Philip Mayer, “Witches”, in Max Marwick (org.), Witchcraft and Sorcery, Harmondsworth,

Penguin,1970,p.47,55,61.34. Cf. “On human behavior considered ‘dramatistically’”, in Permanence and Change, Los Altos,

Hermes,1954.35.TheDevils of Loudun, Harmondsworth, Penguin, 1971, p.124-5 [trad. bras.,Os demônios de

Loudun,SãoPaulo,Hemus,1998].36. Robert Michels,Der Patriotismus, Prolegomena zu seiner soziologischen Analyse, Munique,

DunckerundHumblot,1929,p.120.37.“Thestranger”,inCollectedPapers,v.II,StudiesinSocialTheory,Haia,Nijhoff,1967,p.95-6.38.Ibid.,p.104.39. Maurice Natanson, “Knowledge and alienation, some remarks onMannheim’s sociology of

knowledge”,inLiterature,Philosophy,andtheSocialSciences,Haia,Nijhoff,1962,p.170.40.Cf.TheRiseoftheGreekEpic,Oxford,1907,p.78s.41. “Humanmigration and themarginalman”, American JournalofSociology, v.3, 1928, p.881-

93.42.Num livro cujo próprio título conta a história:WeimarCulture:TheOutsideras Insider , Nova

York,Harper&Row,1969[trad.bras.,AculturadeWeimar,SãoPaulo,PazeTerra,1978].43. The Marginal Man: A Study in Personality and Culture Con lict , Nova York, Scribner, 1969,

p.154-5.44.Holy Prayers in a Horse’s Ear , Crown, 1952, apud Lewis A. Coser (org.),Sociology through

Literature,EnglewoodCliffs,N.J.,Prentice-Hall,1963,p.319,320,323.

Page 254: Bauman, Z. Ensaios sobre o conceito de cultura

45. Cf. G.K. Zipf,Human Behavior and the Principle of Least Effort , Nova York, Addison-Wesley,1949.46. Leonard Broom, Bernard J. Siegel, Evon Z. Vogt, James B. Watson, “Acculturation: an

exploratoryformulation”,AmericanAnthropologist,v.56,1954.47. Cf.Socjologia Wychwania (Sociologia da Educação), v.I,Wychwujace spoleczen’ stwo (A

SociedadeEducativa),Lwów,KsiąznicaAtlas,1928.48. Apud Louis L. Synder,The IdeaofRacialism, Princeton, VanNostrand, 1962, p.164. Os dois

casos, obviamente, não pertencem à mesma categoria funcional, já que no contexto alemão osprópriosjudeuseramtrapaceiros,eaintençãodasregrasdeNurembergeramarcarclaramenteosmarginais,enãoevitarquesurgisseasituaçãodemarginalidade.49. Margaret T. Hodgen,Early Anthropology in the Sixteenth and Seventeenth Century , Filadél ia,

UniversityofPennsilvanyaPress,1964,p.257-8,434.50.Háumlúcidorelatodoqueaconteceuàscomunidadesjudaicaseuropeiascomoadventoda

eramodernain:HowardMorleySachar,TheCourseofModernJewishHistory,NovaYork,Dell,1958,cap.1:“TheJewishasnon-European”.51. É de fato esclarecedora a frequência com que políticos (em especial os de tendência

direitista, pequeno-burguesa), talvez percebendo deforma intuitiva o ressentimento de seueleitoradoemrelaçãoàdesordem,enfatizama incertezaea insidiosa impossibilidadedede iniro“inimigo”.LaRocqueofereceusualiderançaàsmassasparacombaternadamenosque“asgrandesangústiasdouniversocontemporâneo”(LeFlambeau,set1932).DrieulaRochellepropagandeouatranquilizadoraperspicáciadeDoriotenfatizandoqueele“seapodera”de“grandesforçascegaseanônimas” (L’Emancipation nationale, abr 1937, apud J. Plumyère e R. Lassierra,Les fascismesfrançais1923-1963,Paris,Seuil,1963).52.InL.L.Snyder,op.cit.,p.76.53. InPaulBohannaneFredPlog (org.),Beyond theFrontier, SocialProcessandCulturalChange ,

NovaYork,NaturalHistoryPress,1967,p.124,134.54. La France juive, in J.S. McClelland (org.),The French Right, Londres, Jonathan Cape, 1970,

p.103.55. Cf. Hans Kohn,TheMind of Germany, The Education of aNation, Nova York, Harper & Row,

1965,p.77,94.56.JosephdeMaistre,inJ.S.McClelland(org.),op.cit.,p.41-2.57.ÉdouardDrumont,ibid.,p.88.58. Cf. p.695 do original francês; p.600s. da tradução para o inglês,Being and Nothingness,

Londres,Methuen,1969.59.PurityandDanger,Londres,Routledge&KeganPaul,1966,p.68-9.60.Ibid.,p.115[trad.bras.,Purezaeperigo,SãoPaulo,Perspectiva,2010].61. Jean Piaget,Biology and Knowledge, Edinburgh University Press, 1971, p.212 [trad. bras.,

Biologiaeconhecimento,Petrópolis,Vozes,2003].62.Ibid.,p.123.63. “Magical hair”, in John Middleton (org.),Myth and Cosmos, Readings in Mythology and

Symbolism,NovaYork,NaturalHistoryPress,1967,p.98.64. “Verbal and bodily rituals of greeting and partying”, in J.S. La Fontaine (org.), The

InterpretationofRitual,EssaysinhonourofI.A.Richards,Londres,Tavistock,1972,p.3.65. “Limits to functionalismandalternatives to it”, inRobertA.MannerseDavidKaplan(org.),

TheoryinAnthropology,Londres,Routledge&KeganPaul,1969,p.199.66.Cf.FrancescaCancian,“Functionalanalysisofchange”,inTheoryofAnthropology,p.204-12.67.BiologyandKnowledge,EdinburghUniversityPress,1971,p.122-3.68.“Biologicalbasesofaggression”,inD.N.Daniels,M.F.Gilula,F.M.Ochberg(orgs.), Violenceand

theStruggleforExistence,NovaYork,Little,Brown,1970,p.43.69.Cf.FieldTheoryandSocialScience,NovaYork,Harper,1951,p.57,186.70.Cf. “Introduction tohostility in smallgroups”, in J.D.CarthyeF.J.Ebling (orgs.), TheNatural

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HistoryofAggression,NovaYork,Academia,1964.71. Cf. o notável estudo comparativo de Irenäus Eibl-Eibesfeldt,Love and Hate, Londres,

Methuen,1971.72.Mythologies,Londres, JonathanCape,1972,p.129[trad.bras.,Mitologias,13ªed., SãoPaulo,

Difel,2003].73.TheNatureofPrejudice,NovaYork,Doubleday,1958,p.249.74.Mythologies,op.cit.,p.152.75.Ibid.,p.151.76.ApudDanielBell(org.),TheRadicalRight,NovaYork,Doubleday,1964,p.15-6.77.ApudAlanF.West,“TheJohnBirchSociety”,inTheRadicalRight,op.cit.,p.243.78.TheoryofCollectiveBehavior,NovaYork,FreePress,1963,p.84.79.NavahoWitchcraft,Kluckhohn,BaconPress,1962.Cf.Marwick(org.),WitchcraftandSorcery,

NovaYork,Penguin,1970,p.221.80.TheSocialPsychologyofSocialMovements,Londres,Methuen,1971,p.45,51-2.81.CollectiveSearchforIdentity,NovaYork,Holt,Rinehart&Winston,1969,p.vii.82.TheAction-imageSociety,Londres,Tavistock,1970,218-9.83.HerbertMarcuse,AnEssayonLiberation,Harmondsworth,Penguin,1972,p.57.84.InP.StansilleD.Z.Mairovitz(orgs.),Bamn,Harmondsworth,Penguin,1971,p.170.85.EdwardB.Tylor,PrimitiveCulture,v.I,Londres,Murray,1891,p.1.86. C. “The conceptonof culture”, inRalphLinton (org.), TheScienceofMan in theWorldCrisis ,

ColumbiaUniversityPress,1945,p.78-107.87.MelvilleJ.Herskovitz,ManandHisWorks,NovaYork,Knopf,1948,p.625.88.Cf.TowardaGeneralTheoryofAction,NovaYork,Harper,1962,p.7,16.89. Cf. “The studyof culture”, inDanielLernereHaroldD.Lasswell (orgs.), ThePolicySciences ,

StanfordUniversityPress,1951.90.Parasermos justos,háumaspectoemqueoconceitodeculturaacrescentaalgumacoisaà

noçãode “sistemasocial”: tal como tantosoutros “conceitos residuais”domesmo tipo,ele cumpreum papel útil sempre que surge a necessidade de considerar os desvios ou meramente avariabilidade– inexplicáveisnoarcabouçodosatributosbásicosescolhidosdo sistema.Paraessas“irregularidades”, tal como vistas da perspectiva teórica do “sistema social”, as contingênciasculturaissãoemgeral–econvenientemente–consideradasresponsáveis.91.LewisA.CosereBernardRosenberg,SociologicalTheory,NovaYork,Macmillan,1964,p.17.92.Cf.P.B.Medawar,TheUniquenessoftheIndividual,Londres,Methuen,1957,141-2.93.CultureTheory,EnglewoodCliffs,N.J.,Prentice-Hall,1972,p.15.94. “Variousmeanings of theory”, in N.W. Polsby, R.A. Dentler e P.A. Smith (orgs.), Politics and

SocialLife,Boston,HoughtonMifflin,1963,p.79.95. É possível encontrar um exemplo quase puro dessa conduta di icilmente considerada

acadêmica in Paul Filmer, Michael Philipson, David Silverman e David Walsh,New Directions inSociologicalTheory,Londres,Collier-Macmillan,1972.96.KnowledgeandHumanInterest,Heinemann,1972,p.306.97.Cf.,porexemplo,WilliamL.Kolb,“Thechangingprominenceofvaluesinmodernsociological

theory”, in Howard Becker e Alvin Boskoff (orgs.),Modern Sociological Theory, Nova York, DrydenPress,1957,p.93-132.98.KnowledgeandHumanInterest,p.306.99.Ibid.,p.315.100. Sobre a dialética do processo, ver Jean Piaget,La naissance de l’intelligence chez l’enfant ,

Neuchâtel,DelachauxetNiestlé,1959(TheOriginoftheIntelligenceintheChild,Londres,Routledge&KeganPaul,1953).101.InsightsandIllusionsofPhilosophy,Londres,Routledge&KeganPaul,1972,p.20.102.K.Marx,F.Engels,TheHolyFamily,Moscou,1956,p.160[trad.bras.,Asagradafamília, São

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Paulo,Boitempo,2003].103.K.Marx,F.Engels,TheGermanIdeology,Moscou,1968,p.51,660.104.CultureTheory,p.77.105.KnowledgeandHumanInterest,p.312-3.106.InD.McLellan(org.),EarlyTexts,OxfordUniversityPress,1972,p.139-40.107.TowardaPsychologyofBeing,Princeton,VanNostrand,1962,p.24,27-9,43.108.PhenomenologicalPsychology,Londres,Tavistock,1966,p.169.109. The Structure of Behaviour, Londres, Methuen, 1963, p.176 [trad. bras.,A estrutura do

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