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102 www.backstage.com.br REPORTAGEM Miguel Sá [email protected] Batucadas cariocas, Música e cidadania são os pilares do projeto Batucadas Brasileiras. A Orquestra de Percussão Robertinho Silva desde março vem trabalhando para valorizar a percussão carioca e trazer os jovens da zona portuária do Rio de Janeiro para a música. brasileiras, mundiais L uciano Fogaça Rodrigues, aluno da rede pública do Rio de Janeiro, em junho de 2006 viu um cartaz colado em uma parede do colégio estadual Benjamin Constant, no bairro de Santo Cristo. Nele estava anunciado o projeto Batucadas Brasileiras, promovido pelo Instituto Bandeira Branca, uma en- tidade civil sem fins lucrativos presidida por Maurício Nolasco. “A diretora do meu colégio, a dona Elisa, sabia que eu tinha aptidão para a música, em especial, a percussão. Fiz a inscrição, participei do processo de seleção e estou aqui”, diz Luciano, que também é morador do bairro. Assim como Luciano, diversos outros jovens hoje podem di- zer que estão trilhando um caminho bem-sucedido, e se não for nos palcos, pelo menos em suas vidas. É que o projeto Batucadas Brasileiras visa a inserção de jovens alunos da rede pública de ensino que morem em regiões pobres da cidade, principalmente na zona portuária do Rio, que engloba os bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo. A idéia é iniciar um processo de educação e ci- dadania junto a eles. Parceiros Com o patrocínio da Petrobras e do Ministério da Cultura e os apoios institucionais da Unesco, da Secretaria de Educação, da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro e da Prefeitura do Rio, foi alugada uma casa na Rua Camerino, mais precisamente na Praça dos Estivadores, no bairro da Saúde, na região central do Rio de Janeiro, onde acontecem as aulas e as oficinas do Batu- cadas Brasileiras. A localização não foi por acaso. Além de ter no seu entorno diversas comunidades pobres, o local é berço da Pedro Lima, Carlos, Robertinho e Reginaldo Fotos: Miguel Sá / Divulgação

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REPORTAGEM

Miguel Sá[email protected]

Batucadas cariocas,Música e cidadania são os pilares do projeto Batucadas Brasileiras. AOrquestra de Percussão Robertinho Silva desde março vemtrabalhando para valorizar a percussão carioca e trazer os jovens dazona portuária do Rio de Janeiro para a música.

brasileiras, mundiais

Luciano Fogaça Rodrigues, aluno da rede pública do Rio deJaneiro, em junho de 2006 viu um cartaz colado em umaparede do colégio estadual Benjamin Constant, no bairro

de Santo Cristo. Nele estava anunciado o projeto BatucadasBrasileiras, promovido pelo Instituto Bandeira Branca, uma en-tidade civil sem fins lucrativos presidida por Maurício Nolasco.“A diretora do meu colégio, a dona Elisa, sabia que eu tinhaaptidão para a música, em especial, a percussão. Fiz a inscrição,participei do processo de seleção e estou aqui”, diz Luciano, quetambém é morador do bairro.

Assim como Luciano, diversos outros jovens hoje podem di-zer que estão trilhando um caminho bem-sucedido, e se não fornos palcos, pelo menos em suas vidas. É que o projeto BatucadasBrasileiras visa a inserção de jovens alunos da rede pública de

ensino que morem em regiões pobres da cidade, principalmentena zona portuária do Rio, que engloba os bairros Saúde, Gamboae Santo Cristo. A idéia é iniciar um processo de educação e ci-dadania junto a eles.

ParceirosCom o patrocínio da Petrobras e do Ministério da Cultura e os

apoios institucionais da Unesco, da Secretaria de Educação, daSecretaria de Cultura do Rio de Janeiro e da Prefeitura do Rio,foi alugada uma casa na Rua Camerino, mais precisamente naPraça dos Estivadores, no bairro da Saúde, na região central doRio de Janeiro, onde acontecem as aulas e as oficinas do Batu-cadas Brasileiras. A localização não foi por acaso. Além de terno seu entorno diversas comunidades pobres, o local é berço da

Pedro Lima, Carlos, Robertinho e Reginaldo

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REPORTAGEM

cultura negra cario-ca, o que é impor-tante dentro do espí-rito do projeto, noqual o aspecto cultu-ral, focado na mú-sica, é a base do tra-balho social feito ali.

Dezoito pessoascontratadas se de-dicam inteiramente ao Batucadas Brasi-leiras, que iniciou suas atividades emmarço de 2006, além de cerca de 50 cola-boradores eventuais. “Contamos com vá-rias pessoas importantes na instituição,como o Paulo Barroso, que é um profes-sor de música, da Claudia Cabral, que édiretora de relações institucionais, e aCláudia Miranda, que é da UERJ, orien-tadora pedagógica do projeto e da insti-tuição. Estamos montando uma institui-ção cuja base essencial é a capacitaçãoprofissional e artística de jovens em situa-ção carente”, define Nolasco.

O espaço e as atividadesLuciano passou por testes de habilida-

de específica e entrevista no casarão detrês andares que é sede da escola. No pri-meiro, fica a oficina de percussão, coor-denada por Marcos China, no segundo, aárea administrativa e no terceiro, o estú-dio onde ocorrem as aulas de percussão.O curso e a orquestra são coordenadospor Robertinho Silva, um dos mais impor-tantes bateristas e percussionistas do Bra-sil, e Carlos Negreiros, músico e estudiosoda música e da cultura afro-brasileira.

O curso tem a du-ração de um ano e édividido em quatromódulos. O métodode ensino utiliza ocorpo como instru-mento de percus-são, seja com pal-mas, dança e atémesmo com os pas-

sos, como conta Robertinho Silva. “O fol-clore brasileiro tem três elementos: eutoco, eu canto e eu danço. No início, oshomens ficavam constrangidos porque ti-nham que dançar, mas aí aprenderam queisso faz parte do folclore brasileiro”, diz.

A teoria musical também está presen-te no curso. O fato de ser, de certa forma,uma preparação para tocar em uma or-questra exige que os instrumentistas re-almente saibam o que tocam. Na partede ensino de instrumentos, além de tocá-los, os alunos aprenderão, nas palavras deRobertinho Silva, “a respeitar os instru-mentos. Você já viu violinista colocar oinstrumento no chão? Você não pode co-locar um copo em cima da percussão,você não pode sentar, porque percussãonão é banco”, comenta o professor.

Além do respeito ao instrumento hátambém o respeito ao gênero musical queé tocado. Por isso, existe a preocupação deoferecer um embasamento cultural sobreos ritmos ensinados. Um exemplo disso foia aula do colaborador do projeto, MestreOdilon, da bateria da escola de sambaGrande Rio. Ele explicou que a diferençaentre os toques das baterias das escolas de

Oficina de instrumentos com Marcos China (esq.)

“Contamos com várias pessoas importantesna instituição. Estamos montando uma instituição

cuja base essencial é a capacitaçãoprofissional e artística de jovens em

situação carente” (Nolasco)

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samba tem origem namusicalidade especí-fica das diferentesnações africanas queocuparam a cidade.

Robertinho e Car-los contam ainda comos monitores Reginal-do Gonçalves, alunode Robertinho Silva, ePedro Lima, pandei-rista que segue o estilode Marcos Suzano.Entre os auxiliares quetocam percussão ain-da há Ronaldo Silva eJade. O quadro de mú-sicos auxiliares aindatem instrumentistas da parte de harmonia evoz, como Valmir Ribeiro, do Farofa Cario-ca, no cavaquinho, Robertinho de Paula noviolão e Augusto Bapt na voz, ambos dabanda Caixa Preta.

EstiloTodo o processo de aprendizado de-

semboca na Orquestra de PercussãoRobertinho Silva. A Orquestra Afro-Brasileira, fundada em 1942 pelo maes-tro Abigail Moura, foi uma das inspira-ções para o formato de orquestra. Carlosconta que participou dela na década de60. Segundo ele, foi a primeira onde apercussão tinha papel preponderante naformação. O grupo era dedicado a ritmosafro-brasileiros. “Fiquei muito admiradocom aquele tipo de formação, com músi-ca negra, percussão na frente, saxofone,trombone, piano. Isso estava no meu in-consciente”, comenta o músico.

Mas o que exatamente significa seruma “orquestra”? Quer dizer que cadamúsico tem uma participação na exe-cução do arranjo e construção da so-noridade. “Aqui, nós vamos trabalharcom seções rítmicas, naipes de instru-mentos. Todos vão tocar como se fos-

sem um só”. Carlos ainda destaca quehaverá um exercício intenso da dinâ-mica. “É uma orquestra. Esse não é umgrupo só de groove. O grande diferen-cial é esse”, comenta.

A construção do estilo da Orquestrade Percussão Robertinho Silva não fica sópor aí. O próprio conta que o grupo tocaritmos afro-brasileiros de todo o país, massempre com um sotaque carioca. A lin-guagem do samba sempre permeará osarranjos. “Não somos pernambucanos,cearenses ou baianos, mas pegamos todosos folclores do Brasil. Tocamos o congode Minas Gerais, aprendemos a tocar o

maracatu, o boi dematraca, que é umritmo do Maranhão,o frevo de Recife, e ojongo, que veio daÁfrica para o interiorde São Paulo e Riode Janeiro, que é asede do jongo, com oJongo da Serrinha”.O samba está presen-te em todos esses gê-neros nos instrumen-tos e na forma comoa orquestra toca. Ro-bertinho exemplificacom um ijexá baianotocado com choca-

lho e dois surdos: ele terá sempre um “so-taque” diferente do que é tocado emSalvador. Instrumentos como o repique eo tamborim, tipicamente cariocas, quan-do encaixados em um ritmo de fora aca-bam dando o “molho” típico do samba.

Fábrica de instrumentosOutra atividade importante no Ba-

tucadas Brasileiras é a oficina de ins-trumentos musicais coordenada pelopercussionista Marcos China. A oficinapretende ser auto-sustentável, com aformação de uma rede de cooperativaspara ajudar na comercialização dosinstrumentos musicais fabricados pelosalunos. Além disso, ela também forne-cerá instrumentos para a orquestra.“Os instrumentos artesanais estão pre-sentes em todas as manifestações musi-cais brasileiras, principalmente nasmais tradicionais. Nós desenvolvemosde 20 a 30 (tipos de) instrumentos dife-rentes”, expõe Marcos. “A maioria éconhecida, como berimbau, caxixi exequerê, mas também há lugar para acriação de novos instrumentos e sons”,completa, falando sobre os instrumen-tos de efeitos sonoros que podem ser

“Fiquei muitoadmirado com aqueletipo de formação, com

música negra,percussão na frente,saxofone, trombone,piano. Estava no meuinconsciente” (Carlos)

A turma completa do Batucadas: professores e monitores

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Para saber mais

feitos com frutos e sementes. Existe oprojeto de plantar essas matérias-pri-mas nos quilombos do estado do Rio deJaneiro, como acontece no QuilomboCampinho, em Parati. As aulas são deterça a sexta-feira, de duas às seis datarde, com limite de dez pessoas porturma. Existe a intenção de abrir horá-rios pela manhã.

PlanosAlém da questão social, há também

a intenção de fazer um trabalho parafomentar a cultura afro-brasileira doRio, começando com um trabalho nocarnaval de rua. A idéia é também res-gatar, levando em conta o aspecto mu-sical, os ritmos do candomblé. Não estáfora de cogitação a possibilidade de fa-zer shows no Brasil e no exterior. “Sem-pre disse a estes artistas que devemosdescobrir uma alternativa nossa de pro-

dução. Não temos de depender dasgrandes estruturas, que estão falidas”,diz Maurício Nolasco referindo-se aocaminho tradicional de venda de mú-sica. “A rua é o nosso palco e se não to-marmos o que é nosso, nós desaparece-mos. Esse projeto nasce como uma al-ternativa de produção real para chegarao disco, ao espetáculo. Não estamosmuito preocupados com a gravadoradaqui, estamos preocupados em criaralternativas nossas próprias, cuja meta

é o palco de rua”. Os planos para o fu-turo ainda incluem a formação de no-vas escolas em outras áreas artísticas,como dança, artes cênicas e fotogra-fia, todas em prédios diferentes nazona portuária. Na área musical, foifeito um convite a Carlos Malta paraque ele faça uma orquestra de sopros.Ela se associaria à orquestra de percus-são para apresentações.

O fato é que já há efeitos imediatosnos alunos, como demonstra Luciano.“Tenho muita expectativa no futuro.Eu não sabia o que ia fazer na faculda-de, estava em dúvida entre jornalismo,física e química. Acabei decidindo pormúsica. O projeto me ajudou a enten-der melhor o que eu sinto”, diz o alunode 19 anos.

Lucino Fogaça (aluno) a direita