batista, nilo. fragmentos de um discurso sedicioso

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  • 5/28/2018 BATISTA, Nilo. Fragmentos de Um Discurso Sedicioso

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    Fragmentos de umdiscurso sedicioso

    NILO BATISTA

    Em outubro de 1994, Evandro Lins e Silva me convidou para proferir o discurso de

    abertura do XV Congresso Internacional de Direito Penal. Naquela ocasio, ainda

    desconhecia as reflexes de Atilio Born num seminrio sobre neoliberalismo que se

    realizara um ms antes, sobre as funes integrativas da televiso numa sociedade quese planeja e se realiza esquizofrenicamente; numa sociedade que o projeto neoliberal

    converte em duas, a dos marginalizados e a dos sistmicos. Essas duas sociedades

    distantes, irreconciliveis, estranhas, debilmente articuladas so integradas, dizia

    Born, vicariamente e de maneira perversa - pela via fetichizada e ilusria da televiso,

    que assim se converte em um fator de poder excepcional (Ps-neoliberalismo - As

    Polticas Sociais e o Estado Democrtico, S. Paulo, 1995, ed. Paz e Terra, p. 107; para

    melhor conhecimento do autor, cf. Estado, Capitalismo e Democracia na Amrica Latina,S. Paulo, 1994, ed. Paz e Terra). A natureza do poder da televiso j era tematizada nas

    salas de aula, como se v do estudo de Luiz Antnio Nunes (O Poder Carismtico da

    Tev e Max Weber, in Beatriz di Giorgi et alii - (org.). -, Direito, Cidadania e Justia, S.

    Paulo, 1995, RT, p. 266 ss). Creio que a considerao da empresa de televiso como

    aparelho de poder deve ocupar um item importante na agenda dos publicistas brasileiros

    (os italianos dispem de material mais explcito!) nos prximos anos; criminlogos e

    penalistas, por seu turno, tm diante de si a tarefa de desvendar a participao da

    televiso, desse poder excepcional, nos mecanismos de legitimao simblica do

    exerccio de poder penal e de controle social que os acompanham. Como este discurso

    sobrevoou o assunto, achei que conviria inserir alguns fragmentos dele entre os outros,

    sediciosos, deste primeiro nmero.

    No posso falar aos congressistas da Associao eludindo as condies histricas

    concretas latino-americanas e, ainda mais especificamente, brasileiras. Como, num

    Congresso que agendou o estudo de respostas jurdicas aos atentados ao meio ambiente,

    como ignorar o back-ground cultural dos sculos de rapacidade extrativista, vegetal e

    mineral, que, originalmente financiada pelo capital usurrio ou mercantil do projeto

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    colonizador, incorporar-se-ia aos projetos nacionais oligrquicos e dependentes? D

    nome a meu pas certa madeira, empregada largamente na tintura de tecidos a partir do

    sculo XVI; o pau-brasil foi a matria prima das casas correicionais de raspagem de

    madeira (hasp-huis) que os interesses conjugados do capitalismo mercantil e danascente manufatura holandesa fizeram instalar em Amsterdam, e que os estudos de

    Seilin e Melossi-Pavarini assinalam como antecessoras da penitenciria. Ao mesmo

    tempo em que, atravs desses insumos, participvamos do controle dos miserveis

    sobreviventes da desagregao feudal - e, portanto, da inveno histrica da penitenciria

    - recebamos excedentes desses mesmos miserveis, formalmente banidos para a tarefa

    de povoamento, o que levou um dos mais brilhantes professores latino-americanos, Ral

    Zaffaroni, a referir-se nossa Amrica, nessa fase, como uma gigantesca instituio deseqestro, adotando a designao de Foucault para as tambm chamadas instituies

    totais. Ou seja: contribuamos com o pau-brasil para a fundao da priso, e fundvamo-

    nos, a nosso prprio continente intensivamente saqueado, como priso.

    ___________________________

    A escravatura negra no Brasilinstaurou um sistema penal

    carniceiro e cruel, que articulava

    o direito penal pblicoa um direito penalprivado-domstico

    ___________________________

    ***

    Como, num Congresso que agendou o estudo das reformas do processo penal e a

    proteo dos direitos do homem, como ignorar as matrizes do genocdio, aportadas com oprojeto colonizador, e a violncia estrutural dos procedimentos de controle do escravismo

    colonial, ainda hoje profundamente incorporadas na viso de mundo das elites brasileiras

    e dos grupos delas serviais? O notvel Tzvetan Todorov estima que, em 1500, a

    populao das Amricas girava em torno de 80 milhes de pessoas; menos de um sculo

    depois, estava ela reduzida a 10 milhes. No Mxico, s vsperas da conquista,

    encontrvamos uma populao de aproximadamente 25 milhes; em 1600, encontramos

    1 milho. Entre o assassinato direto (em guerras ou no), privaes, maus tratos eabandono (com ou sem escravismo) e o choque microbiano, o extermnio o grande

    signo da abertura desse processo histrico.

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    ***

    A escravatura negra no Brasil, que perdurou at 1888, instalou um sistema penalcarniceiro e cruel, que articulava o direito penal pblico a um direito penal privado-

    domstico. Essa articulao tanto se passava ao nvel informal da cumplicidade das

    agncias do estado imperial-escravocrata, pela omisso e pelo encobrimento dos

    homicdios, mutilaes e torturas que vitimizavam os negros nas charqueadas do sul, na

    cafeicultura do leste ou nos engenhos de cana do nordeste, quanto se passava ao nvel

    formal, seja pela execuo por um agente pblico de uma pena domstica, como a

    palmatria (execuo prevista em tantas posturas municipais), seja pela vigilnciapatronal execuo de uma pena pblica corporal (o escravo posto a ferros por certo

    prazo era entregue ao seu senhor), prevista no prprio Cdigo Criminal. Essas matrizes,

    do extermnio, da desqualificao jurdica presente no ser escravo, da indistino entre

    pblico e privado no exerccio do poder penal, se enraizaram na equao hegemnica

    brasileira. Elas estaro presentes na violncia com a qual, a partir da implantao da

    ordem burguesa entre ns, no final do sculo XIX, a Primeira Repblica respondia aos

    movimentos da classe operria; em dado momento, um Presidente declararia que a

    questo social um caso de polcia. Elas explicaro, na segunda metade do sculo XX,

    a dcil recepo da doutrina da segurana nacional, que, ao converter o opositor poltico

    em inimigo interno, operava precisamente uma desclassificao de sua cidadania,

    abrindo as portas para toda sorte de violaes. Elas explicam por que, ainda hoje, grupos

    de extermnio, integrados muitas vezes por policiais, atuam em nosso pas, no campo e

    nas cidades, eliminando ladres, vadios, delinqentes juvenis ou mendigos que estejam

    perturbando algumas reas, e levando de roldo muitos pobres e marginalizados -

    inclusive crianas e adolescentes - que nada fizeram a no ser terem sido feitos pobres e

    marginalizados. Tais grupos recebem a complacncia, quando no o aplauso, de

    representantes visveis das oligarquias, cujas polticas urbanas se baseiam no princpio

    da apartao social, cujo sonho mais acalentado converter as favelas em guetos

    desprovidos das garantias constitucionais, com rgido controle fsico da prpria

    deambulao individual. A grave questo da violncia urbana lhes fornece precioso

    substrato ideolgico para um tipo especial de campanhas de lei e ordem que,

    fundamentalmente, visam mobilizao de foras polticas, alimentadas pelo pnico, para

    o projeto autoritrio de apartao social. Todos os democratas que, de alguma forma, se

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    oponham quelas foras, tm a sua espera um clice transbordante de amargura e

    hostilidade.

    ___________________________

    Contribuamos com o pau-brasilpara a fundao da priso, e

    fundvamo-nos, a nosso prpriocontinente intensivamente

    saqueado, como priso___________________________

    ***

    A cidadania, no Brasil real, ainda restrita concepo que, certa ocasio, chamei

    de negativa. Queria, com esta expresso, designar o conjunto de limitaes

    constitucionais e legais interveno estatal direta sobre a pessoa humana, que encontra

    no processo penal um amplo espectro de situaes exemplares. Ao prever a pena de

    aoites para os escravos, o Cdigo Criminal do lmprio no estabeleceu sua quantidade,

    o que seria feito, mais tarde, por Avisos ministeriais. No longo e ainda hoje inconcluso

    processo de formao da cidadania de nossas populaes afro-brasileiras, o captulo da

    metade do sculo XIX era conhecer que apenas 50 aoites poderiam ser infligidos por

    dia; hoje, seria conhecer que a priso, fora das situaes de flagrante delito, depende de

    ordem escrita de autoridade judiciria, deve ser comunicada famlia (aqui, um vestgio

    de nossos desaparecidos) etc. Esta concepo negativa da cidadania, que se restringe

    ao conhecimento e exerccio dos limites formais interveno coercitiva do Estado, se de

    um lado responde ao quadro histrico de violncia social antes referido, de outro lado

    retarda a organizao e mobilizao popular em torno de seus direitos econmicos,

    sociais e culturais sonegados; a irrupo desse movimento, quando presentes as

    condies histricas objetivas, delinearia entre ns uma concepo positiva decidadania, transcendendo a trincheira autodefensiva da conjuntura que ainda vivemos.

    ___________________________

    A grave questo da violnciaurbana lhes fornece substrato

    ideolgico para campanhas de lei eordem que visam mobilizao deforas polticas, alimentadas pelopnico, para o projeto autoritrio

    de apartao social___________________________

    ***

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    Aqui estamos, os penalistas de todo o mundo, para discutirmos direito penal num

    momento particularmente enigmtico. Anunciam-nos o fim da histria - e, para os latino-

    americanos, que mal comeamos a viv-la, tal mensagem tem o sabor de um logro;acabaram com a festa quando de nossa chegada. Qual a especificidade da nova crise da

    pena que decorre de crise neoliberalista do estado? Se, como nos assegura, recomenda

    e - algumas vezes - impe o Consenso de Washington, ao paraso se chega pela reduo

    do Estado, pela privatizao das reas de sua interveno econmica, pela

    desregulamentao total dos mercados e liberalizao financeira e comercial, pela mais

    contrita e inquebrantvel f na lei da oferta e da procura, que efeitos podemos esperar no

    campo da interveno penal estatal? Uma anlise panglossiana levaria a conclusesinteressantes: talvez este estado mnimo seja o Iocus perene do direito penal mnimo;

    talvez este estado neo-gendarme oferea os pressupostos para a restaurao da vtima

    como sujeito do episdio judicirio-criminal; talvez a miniatura estatal abra caminhos para

    a predominncia final de um processo penal acusatrio, dilargue o princpio da

    oportunidade da ao penal, redimensione o sentido jurdico da reparao do dano ex

    delicto, etc. O que se observa, entretanto, contraria a esperana de que estejamos no

    liminar do melhor dos direitos penais possveis; os sintomas apontam para direes

    preocupantes, a comear pelo recrudescimento de concepes retributivisto-aflitivas em

    detrimento das concepes preventivas, tal como se pode ver, por exemplo, na recente

    reforma norte-americana. Nenhuma surpresa h nisto. O Estado do bem-estar (welfare

    state), com seus programas previdencirios (um dos alvos prediletos do neoliberalismo,

    pelos freqentes efeitos de desequilbrio oramentrio) e suas intervenes sociais

    absolutamente compatvel com a idia de ressocializao que, em nosso pas, orienta -

    ou deveria orientar -, a partir do artigo 1da Lei de Execuo Penal, o sentido da pena.

    Ao contrrio, o princpio da retribuio integrado por uma lgica de troca onde se

    substitui o mercantil pelo moral; sua estrutura se adequa lei fundamental do mercado:

    comprou (atuou ilicitamente), pague (seja punido).

    ***

    Ao recrudecimento do retributivismo, realimentado pelo pnico da violncia urbana

    (ou seja, o conjunto de crimes que a horda dos marginalizados - criada e mantida pelo

    prprio regime - comete) se somam tendncias de ampliao do sistema penal, e o mais

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    significativo sintoma o rebaixamento dos limites da inimputabilidade por imaturidade.

    Efetivamente, se a reduo do Estado se opera tambm com cortes nos programas

    assistenciais, outra espcie de assistncia se votar delinqncia juvenil, e a resposta

    penal v-se ampliada. Todo o debate e as experincias sobre privatizao da execuopenal se filiam a esse movimento.

    ***

    Superada a guerra fria, o deficit da indstria blica se compensar por uma

    promissora indstria do controle do crime, da qual nos oferece um quadro Nils Christie,

    em recente trabalho. Inquieta-nos, aos latino-americanos, que os efeitos generosos daqueda de um estado autoritrio e antidemocrtico, e a imprestabilidade comprovada do

    ncleo terico que lhe outorgara densidade poltica - leninismo - confira ordem

    burguesa, alargadora da distncia internacional entre ricos e pobres, racista e apartadora,

    predatria do meio-ambiente, o direito de apresentar-se, valham-nos as palavras de Jos

    Paulo Netto, como a paragem final do milenar processo de construo da socialidade,

    como o fim da histria. Inquietam-nos os efeitos deste novo Estado mnimo sobre o

    campo penalstico; perante o contubrnio histrico, em muitos de nossos pases, entre o

    pblico (mero aparelho dos interesses oligrquicos) e o privado (apenas representado

    pelos cidados economicamente qualificados), a privatizao da execuo penal no

    passa de emblemtico retorno s normas e prticas do direito penal do escravismo.

    nosso dever declarar, bem alto, que uma pena que se afaste demasiadamente do Estado

    comea a chamar-se vingana.

    ___________________________

    Temos, todos, dentro de nossascasas, a janelinha pela qual nosfita, extasia e controla, o olho dopoder. Chama-se televiso, e este

    o novo nome do Pantico. Ealgumas pessoas se admiram pelo

    fato de existi rem, nas casasdos pobres brasileiros, mais

    televises que geladeiras. Poderiaser diferente?

    ___________________________

    ***

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    Dentro deste momento enigmtico, ao mesmo tempo em que diversos sintomas

    sinalizam a reinveno de uma pena de segurana que responda drstica e

    imediatamente questo da violncia urbana, a crise especfica da pena privativa daliberdade assume, nas sociedades ps-industriais, caractersticas que pedem reflexo. E

    possvel que estejamos vivendo um momento especial desse processo, na reconfigurao

    de estratgias para a disciplina urbana nas quais o arquitetnico j no d as cartas.

    Nenhum dos tericos burgueses da disciplina carcerria formulou, em minha opinio, com

    a vidncia de Bentham, talvez porque o princpio utilitarista fosse o mais completamente

    acasalado s leis bsicas da expIorao capitalista, ao til dispndio do corpo humano

    (fora de trabalho) para a criao til de um corpo inumano (produto industrial). No poracaso, Bentham preconizava, com insistncia, a administrao privatizada do Pantico.

    ***

    ___________________________

    O princpio da retribuio integrado por uma lgica de trocaonde se subst itui o mercantil pelomoral; sua estrutura se adequa

    lei fundamental do mercado:comprou (atuou lici tamente),

    pague (seja punido)

    ___________________________

    Correspondeu a Foucault demonstrar como a idia da vigilncia permanente, do

    insone olhar do poder se reapresentava em importantes contextos da disciplina social

    (hospitais, milcias, controle da peste etc.), e, de fato, a ingnua concepo arquitetnica

    do Pantico no tem qualquer importncia se comparada idia central da constantesuperviso. Creio que Bentham suspeitava disso, de que sua priso era a forma efmera

    que abrigava circunstancialmente uma grande proposta, capaz, como ele mesmo disse,

    de estabelecer uma nova ordem de coisas. E essa proposta tinha, valham-nos sempre

    suas palavras, um princpio nico, chamado inspeo, porm uma inspeo de um

    gnero novo, que atinge mais a imaginao do que os sentidos, que coloca centenas de

    homens na dependncia de um s, e outorga a este nico homem uma espcie de

    presena universal no circuito de seus domnios.

    ***

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    Duzentos anos depois, verificamos que jamais se construiu uma s rede de prises

    panticas, porm se construram vrias redes de televiso. Aps constatar que a

    conservao til do escravo no insurrecional era o princpio das penas corporais, que aprivao da liberdade sob condies piores do que aquelas condies ordinrias em

    estado de inocncia (ningum formulou a less elegibility melhor que Bentham) era o

    expediente mais adequado para o til controle da fora de trabalho proletria e seu

    exrcito de reserva, e que, nas sociedades ps-industriais de consumo e servios, penas

    alternativas ao encarceramento e outras medidas sinalizam a preservao til do

    consumidor, como no desconfiar de um salto no mtodo da inspeo?. Temos, todos,

    dentro de nossas casas, a janelinha pela qual nos fita, extasia e controla, o olho do poder.Chama-se televiso, e este o novo nome do Pantico. No sei porque algumas pessoas

    se admiram pelo fato de existirem, nas casas dos pobres brasileiros, mais televises do

    que geladeiras. Poderia ser diferente?

    ***

    _____________________

    No pode surpreender que,para pequenas infraes penais,

    este homem solitrio,sentado diante do vdeo,

    com ou sem pulseira eletrnica,esteja submetido a uma

    pena adequada_____________________

    O percurso moderno da pena registra com clareza esses movimentos: ao capital

    mercantil-colonizador (e, no caso brasileiro, escravista) no apraz a prodigalidade de

    mortes cominadas pela legislao penal do absolutismo, mas a consagrao de

    limitaes intensivas (proporcionalidade) e extensivas (subjetividade) atravs de comando

    legtimo (legalidade) convive, onde se faz preciso, em perfeita naturalidade, com as

    penas corporais. Estruturalmente exterminador (segundo Emlia Viotti da Costa, a

    mortalidade infantil entre os escravos do eito era de quase 90%), o regime escravista, que

    no hesitava em matar, domstica ou publicamente, autores de condutas que, mesmo

    indiretamente, o questionassem (por exemplo, qualquer ofensa fsica contra o senhor,

    algum familiar seu, o feitor ou sua mulher tinha cariz insurrecional presumido, e conduzia

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    pena de morte sem recurso algum - lei n 4, de 10 jun.1835), o regime escravista,

    atravs da pena de aoites, buscava a preservao da mo de obra ainda aproveitvel.

    (Bentham, preocupado com a igualdade, um mote poltico fundamental da poca,

    preconizava, como sabemos - para que os aoites no dependessem do vigor fsico ouat de alguma motivao pessoal do verdugo - a fabricao de mquina cilndrica que

    mecanicamente movesse azorragues nela fixados.) Contudo, em nenhuma conjuntura o

    corpo humano foi mais necessrio do que no ciclo instaurado com a revoluo industrial.

    A grande contribuio veio de dois lados: um antigo castigo cannico, a segregao

    penitencial, e a necessidade de controlar e impor trabalho aos grupos de pobres criados

    pela mudana do regime. O capital industrial estava entranhado no corpo humano que o

    reproduzia, e a pena privativa da liberdade se convertia na pena por excelncia, atmesmo redutvel moeda-tempo que, por contraste, relegitimava o salrio.

    ***

    Nas sociedades ps-industriais, contudo (a automao um emblema disso, tanto

    quanto a bomba de nutrons), o capital transnacional financeiro - eletrnico inicia o

    movimento de abandonar o corpo do homem, que lhe interessa j ento como

    consumidor, pois como consumidor o reproduz. Paralelamente, viabilizam-se propostas

    poltico-criminais cujo contedo humanstico e progressista no elide sua funcionalidade

    sistmica: descriminalizao, desjudicializao, alternativas priso, minimalismo penal,

    abolicionismo, vigilncia eletrnica etc. Como na frmula dos escravos, a penitenciria se

    reserva ao banditismo urbano (cujos crimes perturbam gravemente o regime e, em certo

    sentido, denunciam-lhe os dbitos sociais, com uma intensidade avalivel pelas

    constantes propostas de acionamento das prprias Foras Armadas), enquanto os

    autores de infraes menos significativas (culposas, de perigo ou dano escasso) devem

    permanecer no mercado. Agora, trata-se de intervir menos na liberdade do que na

    comunicao, e produzir assim outra espcie de mutilao com a qual Bentham no

    sonhara. O noticirio de televiso com maior audincia em nosso pas,

    pasteurizadamente composto de exotismo, cotidianeidade relegitimadora, mensagens

    polticas conservadoras subliminares, pnico para a lei e a ordem e lei e ordem para

    marketing da indstria do controle do crime, utiliza-se de um lxico no superior a

    trezentas palavras, com as quais se deve organizar toda a reflexo por ele suscitada. As

    trezentas palavras do Jornal Nacional criam padecentes iguais para a mquina cilndrica

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    eletrnica (chegamos ao pice da sonomia), porm, mais do que isso, instituem o

    discurso lcito, fora do qual as possibilidades sintticas so suspeitas. Das classes

    perigosas s palavras perigosas. Vigiar o embrutecimento. Definitivamente, Bentham

    redivivo seria dono ou diretor de uma rede de televiso.

    ***

    A enorme concentrao de poder poltico, pela vastido de seu alcance e pelo

    carter formador de opinio, das redes de televiso - particularmente, como o caso

    brasileiro, diante de uma presena mnima regulamentadora do Estado no setor criou

    nova modalidade de controle social, pela via da constante superviso preconizada porBentham, que opera atravs da seleo de mensagens e do empobrecimento do lxico

    crtico. A professora brasileira Gizlene Neder comparava, h pouco tempo, as bancas de

    jornais com suas pginas vermelhas ao local pblico contemporneo que substituiu as

    praas nas quais ocorriam as execues, pelo brao secular, das penas impostas pela

    Inquisio. Para as massas analfabetas e excludas da sociedade nacional brasileira,

    comprar a televiso, para alm do ato de consumo, tambm comprar o grande inspetor

    de sua opinio e de sua conscincia, ganhando de brinde o index librorum prohibitorum.

    No pode surpreender que, para pequenas infraes penais, este homem solitrio,

    sentado diante do vdeo, com ou sem pulseira eletrnica, esteja submetido a uma pena

    adequada.

    Os problemas da responsabilidade e das sanes penais em matria de atentados

    contra o meio ambiente colocam, entre outros, os desafios da busca de eficincia sem

    que se renuncie ao princpio da culpabilidade, da reengenharia da responsabilidade penal

    da pessoa jurdica - novas penas para novos sujeitos -, da teoria da co-autoria e

    participao (que mecanismos jurdicos desvelaro os autores mediatos transnacionais da

    pilhagem ambiental?), das parcerias com o direito administrativo; este tema toca na ferida

    aberta da interveno do Estado na livre atuao dos agentes econmicos, e a

    humanidade escolhe entre os diversos parques industriais que se utilizam dos

    clorofluorcarbonos em seus produtos e a camada de oznio.

    ***

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    Os delitos associados ao uso de computadores e s novas tcnicas de

    comunicao lanam-se aos arcanos de um quase admirvel mundo novo. Como se

    desempenham os tipos de injustos tradicionais do falsum aos crimes contra o

    patrimnio - perante as tecnologias da informtica? Que atributos da ao humana,congelados no programa automatizado, bastam a configurao de uma vtima suscetvel

    fraude estelionatria? Vocacionada para a unificao do planeta e para a preservao

    inteligente de sua memria, a disputa na espiral tecnolgica no criou fronteiras de novo

    perfil e expedientes manipuladores da informao, como a confirmar o apstolo Paulo:

    tornou-se louca a sabedoria do mundo?

    A regionalizao do direito penal internacional e a proteo dos direitos do homemnos remetem formosa utopia da solidariedade entre os povos, pela superao do

    modelo clssico de cooperao - basicamente, reafirmador de soberanias singulares - em

    favor de preocupaes que, no limite, trataro de observar tambm uma diviso

    internacional injusta do exerccio do poder penal.

    ***

    Desculpo-me igualmente pela impostao talvez excessivamente enftica, mas

    este um tributo que penalistas e criminlogos latino-americanos comprometidos com a

    tragdia social de seus povos no podem recusar. Como disse antes, em ns a pregao

    neoliberal do fim da histria provoca amarga frustrao, e ningum exprimiu este

    sentimento, em minha opinio, melhor que Eduardo Galeano: At agora, a Amrica

    Latina foi a terra do futuro. Consolo covarde; mas, enfim, j era alguma coisa. Agora nos

    dizem que o futuro o presente.

    Fonte: Discursos Sediciosos - Crime, direito e sociedade, rgo oficial do Instituto Carioca de Criminologia.

    Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1996. Ano 1, nmero 1, p. 69/77.