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BARRAGENS NA BACIA DO ALTO RIO PARAGUAI: A PRODUÇÃO DE INJUSTIÇAS DA SUSTENTABILIDADE Silvia Zanatta 1 - [email protected] Josemar Maciel 2 - [email protected] RESUMO: A intenção deste trabalho é discutir as contradições existentes na implementação de projetos de infraestrutura para geração de energia elétrica a partir de fontes hídricas na Bacia Hidrográfica do Alto rio Paraguai (BAP), as chamadas barragens. A geração de impactos não pode ser ignorada, são inúmeros os danos sociais, ambientais e econômico o que denominamos provocativamente de “injustiças da sustentabilidade”. O atual modelo de desenvolvimento vigente, no qual imperam a omissão da legislação, a fragilidade dos estudos ambientais e a construção de uma história oficial que exclui a perspectiva dos atingidos, endossa a produção destas injustiças. Um processo que gera sofrimento social, levando à destituição absoluta dos modos de vida tradicionais. Diante disso, o Estado apresenta-se, historicamente, como cúmplice e legitimador da degradação e do descarte dessas populações, a partir da permissividade legal e da intensificação de programas e de políticas desenvolvimentistas que priorizam o fator econômico em detrimento da proteção social e ambiental criando, inclusive, estratégias de banalização desse processo. Palavras-chave: Barragens, impactados, injustiça. 1 Jornalista pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (Uniderp), Mestre em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) (UCDB) e atualmente doutoranda em Desenvolvimento Local da UCDB com bolsa Capes. 2 Graduado em Filosofia pelas Faculdades Unidas Católicas do Mato Grosso; em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma; mestre em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco; mestre em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Atualmente, professor na Universidade Católica Dom Bosco: Mestrado em Desenvolvimento Local, Programa Master em Desenvolvimento Territorial Sustentável (Master STEDE) Erasmus Mundus/Erasmus Plus e Licenciatura em Filosofia. Estágio pós-doutoral em andamento (Estudos Culturais, EACH-USP) com o projeto "Hospitalidade e Desenvolvimento: Por uma pequena conversação. Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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Page 1: BARRAGENS NA BACIA DO ALTO RIO PARAGUAI: A … · INJUSTIÇAS DA SUSTENTABILIDADE Silvia Zanatta1 - silviasantana1@gmail.com Josemar Maciel2 - maciel50334@yahoo.com.br RESUMO: A intenção

BARRAGENS NA BACIA DO ALTO RIO PARAGUAI: A PRODUÇÃO DE

INJUSTIÇAS DA SUSTENTABILIDADE

Silvia Zanatta1 - [email protected]

Josemar Maciel2 - [email protected]

RESUMO:

A intenção deste trabalho é discutir as contradições existentes na implementação de projetos de

infraestrutura para geração de energia elétrica a partir de fontes hídricas na Bacia Hidrográfica

do Alto rio Paraguai (BAP), as chamadas barragens. A geração de impactos não pode ser

ignorada, são inúmeros os danos sociais, ambientais e econômico o que denominamos

provocativamente de “injustiças da sustentabilidade”. O atual modelo de desenvolvimento

vigente, no qual imperam a omissão da legislação, a fragilidade dos estudos ambientais e a

construção de uma história oficial que exclui a perspectiva dos atingidos, endossa a produção

destas injustiças. Um processo que gera sofrimento social, levando à destituição absoluta dos

modos de vida tradicionais. Diante disso, o Estado apresenta-se, historicamente, como cúmplice

e legitimador da degradação e do descarte dessas populações, a partir da permissividade legal

e da intensificação de programas e de políticas desenvolvimentistas que priorizam o fator

econômico em detrimento da proteção social e ambiental criando, inclusive, estratégias de

banalização desse processo.

Palavras-chave: Barragens, impactados, injustiça.

1 Jornalista pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (Uniderp), Mestre em

Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) (UCDB) e atualmente doutoranda em

Desenvolvimento Local da UCDB com bolsa Capes.

2 Graduado em Filosofia pelas Faculdades Unidas Católicas do Mato Grosso; em Teologia pela Pontifícia

Universidade Gregoriana de Roma; mestre em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco; mestre em

Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e doutor em Psicologia pela Pontifícia

Universidade Católica de Campinas. Atualmente, professor na Universidade Católica Dom Bosco: Mestrado em

Desenvolvimento Local, Programa Master em Desenvolvimento Territorial Sustentável (Master STEDE) Erasmus

Mundus/Erasmus Plus e Licenciatura em Filosofia. Estágio pós-doutoral em andamento (Estudos Culturais,

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1 - INTRODUÇÃO

Já se tornou usual e até mesmo previsível a identificação genérica de “homem”,

“civilização”, “humanidade” ou “toda sociedade” como vítima da crescente degeneração

ambiental que o mundo presencia. Não importa nestas qualificações gerais ponderar onde as

pessoas vivem. O que vemos é um discurso repetitivo de governos, escolas, meios de

comunicação e até organismos que produzem “ciência”, propagando valores e fortalecendo a

ideia que a degradação ambiental é um dos maus da sociedade contemporânea. Os inúmeros

artigos científicos, matérias que ilustram os grandes telejornais e até mesmo as mais chamativas

campanhas desenvolvidas por Organizações Ambientalistas, reforçam o conceito de que

estamos todos igualmente sendo atingidos e sofrendo as consequências do modelo de

desenvolvimento que escolhemos para tornar nosso mundo produtivo o suficiente para suprir

nossas necessidades capitalistas. Em resumo, os riscos intrínsecos às práticas ambientalmente

destrutivas poderiam atingir qualquer ser humano, uma vez que todos fazemos parte de um

macro ecossistema global.

Este pensamento simplista e por vezes propositalmente propagado é uma técnica eficaz

para esconder a forma como os impactos ambientais estão hoje distribuídos tanto em termos de

incidência quando intensidade. Não precisamos de muitos esforços para constatar que sobre os

mais pobres e os coletivos étnicos menos privilegiados e com menos poder, recai a maior parte

dos riscos ambientais. Sejam estes riscos referentes a exploração territorial a partir da extração

de bens naturais ou o convívio com resíduos sólidos.

Sendo assim, dizer e propagar a ideia de que a “crise ambiental” e os “impactos

ambientais” atingem a todos na mesma intensidade é uma grande falácia. A discussão sobre

injustiças ambientais torna-se importante por demonstrar que os riscos, impactos e problemas

ambientais não são democráticos, como muitos autores tentam argumentar e sustentar,

conseguindo desta forma quebrar com o imaginário de que os riscos ambientais são “comuns a

todos”.

Exemplo disso é o que vem acontecendo há algumas décadas na Bacia do Alto rio

Paraguai (BAP), uma unidade ambiental de suma importância para a manutenção da maior área

úmida do planeta, o Pantanal. Pois como é sabido as Usinas Hidrelétricas (UHEs) e as Pequenas

Centrais Hidrelétricas (PCHs) são uma estratégia para a expansão da matriz energética

brasileira e a sua expectativa de crescimento consta no Plano Nacional de Energia. Tal fato se

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deve à ideia errônea de que estes empreendimentos são fontes limpas de geração de energia,

causando impactos ambientais insignificantes, quando comparadas com grandes usinas

nucleares, por exemplo. Em função disso, o Brasil tem flexibilizado as normas ambientais e

concedido incentivos financeiros com o objetivo de facilitar e agilizar a implantação de

empreendimentos deste segmento em todo país. A borda da Bacia do Alto Paraguai é um destes

territórios tidos como prioritários para a instalação das PCHs e UHEs. Hoje já existem 38

empreendimentos em operação e a previsão é de que mais 94 outras usinas sejam instaladas nos

próximos anos. Apesar da imagem limpa, estas usinas alteram significativamente o ambiente

onde são inseridas e geram perdas significativas às populações que vivem no entorno do

empreendimento, principalmente para as comunidades tradicionais que tiram do rio o seu

sustento.

Pensando justamente nestas pessoas e a partir de um olhar etnográfico que nos

debruçamos nesta pesquisa.

2 - CONSIDERAÇÕES E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

A escolha do método utilizado, antes de ser uma regra para o desenvolvimento de uma

pesquisa, é o guia utilizado pelo pesquisador que quer alcançar com primor seus objetivos e

concluir sua pesquisa sem maiores contratempos. Dentro dessa perspectiva, um dos pensadores

que mais contribuíram para a sistematização do que vem a ser método foi René Descartes

(1596-1650). Em seu livro O Discurso do Método, originalmente publicado em 1637, ele

apresenta algumas regras que são imprescindíveis. De acordo com Descartes, o método possui

quatro regras básicas, que são:

[...] jamais aceitar como verdadeira coisa alguma que eu não conhecesse à evidência

como tal, quer dizer, em evitar, cuidadosamente, a precipitação e a prevenção,

incluindo apenas nos meus juízos aquilo que se mostrasse de modo tão claro e distinto

a meu espírito que não subsistisse dúvida alguma. O segundo consistia em dividir cada

dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto possível e necessário para

resolvê-la. O terceiro, por ordem em meus pensamentos, começando pelos assuntos

mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para atingir, paulatinamente,

gradativamente, o conhecimento dos mais complexos, e supondo ainda uma ordem

entre os que não se precedem normalmente uns aos outros. E o último, fazer, para

cada caso, enumerações tão exatas e revisões tão gerais que estivesse certo de não ter

esquecido nada. (DESCARTES. 1978, p. 40)

Mais do que ajudar a clarear as ideias, o método serve como mapa a indicar os caminhos

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a percorrer na trajetória de busca e produção de conhecimentos. E esta concepção de que o

método é o caminho vem sendo muito bem aceita pela academia e por todos aqueles que

desenvolvem pesquisas. Marques et al. (2006), mesmo apoiando essa ideia, abre espaço para se

pensar também que não existe um único caminho metodológico, uma vez que ele pode variar

conforme o assunto e a finalidade. Nesse sentido, o aprofundamento da premissa metodológica

básica de todo o presente trabalho é encontrado no imperativo que regula as investigações

epistemológicas mais críticas na ciência social, que iniciam-se na obra monumental de

Feyerabend. Este, dá-lhes uma rara e precisa formulação no parágrafo que segue, prefaciando

a tradução chinesa do seu clássico “Contra o Método”

“...os eventos, procedimentos e resultados que constituem as ciências não

possuem estruturas comuns; não existem elementos que ocorrem em todos os

procedimentos científicos, mas estariam ausentes em outras formas.

Desenvolvimentos concretos (tais como a substituição de teorias cosmológicas e a

descoberta das estruturas do DNA) possuem características distintas, e podemos

entender e explicitar os motivos que as foram conduzindo ao sucesso. Mas não é

possível entender cada descoberta a partir de uma estrutura comum. Procedimentos

que tiveram sua importância em momentos passados podem tornar-se perigosos se

impostos como uma receita, no futuro. A pesquisa de sucesso não pode ser dócil a

padrões generalistas; ela deve basear-se ora em um esquema, ora em um truque; os

movimentos que fazem avançar não são sempre do conhecimento dos que os

planejam. Mudanças de perspectiva em grande escala, como as famosas chamadas

‘revoluções’ copernicana ou darwiniana, afetam áreas diferentes de pesquisa de

formas bastante diversas e, por sua vez, recebem diferentes estímulos da parte delas.

Uma teoria da ciência que sonha com elementos padronizados e elementos estruturais

para todas as atividades científicas, autorizando esse movimento mediante a referência

a uma certa ‘razão’ ou a esquemas de ‘racionalidade’ pode até impressionar aos

desavisados. Mas quem está em campo ou nos laboratórios, ou seja, cientistas de carne

e osso lidando com problemas reais, precisa de ferramentas bem menos cruas do que

isso aí (FEYERABEND, 1993, p. 1).

O imperativo fundamental, assim, do entendimento metodológico da pesquisa em

sentido sistêmico e crítico é a predominância epistêmica, ou seja, na construção da ordem dos

conhecimentos, do campo e de suas demandas, sobre abstrações arquitetônicas a priori. Aqui é

mencionada apenas a reflexão de Feyerabend por ela ser fundante, e por ter se mantido

constante durante as grandes discussões de metodologia da ciência no Século XX (como reporta

AGASSI, 2014).

Além disso, o programa de docilidade ao campo e às suas inventividades, não ao cânon,

e às suas sedutoras regularidades, foi desenvolvido pelo mesmo autor até aos seus últimos

escritos, as Lezioni Trentine (FEYERABEND, 1996) e encontra eco e assume um programa

forte nas reflexões críticas entre a antropologia e o desenvolvimento (EDELMAN;

HAUGERUD, 2005). Trata-se, em poucas linhas, de equilibrar os olhares e as escutas, inserindo

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no campo do estudo das sustentabilidades e das territorialidades a escuta do fenômeno único,

discrepante ou, simplesmente, outro. Com isso o pensamento sistêmico é beneficiado, mas

também uma concepção plural da epistemologia, ou seja, valorizando não a domesticação dos

saberes, mas a sua interação a partir de diversos jogos de interesses e de visões de mundo.

Assim sendo, as investigações aqui realizadas concentraram-se no caudal da escuta de

populações excluídas, trabalho que vem se destacando no cenário mundial a partir da América

Latina e do Brasil, com os esforços da família dos métodos participantes, ou da escuta

etnográfica, como menciona Roberto Cardoso de Oliveira (1996). O desenvolvimento de um

trabalho com opções metodológicas adequadas ao seu objeto - aqui, seus sujeitos, obviamente

-, é fundamental para atingir a proporcionalidade que dá o esteio para todas as opções e

tratamentos dos dados e das interações sociais que estão na base das suas construções.

Levando em consideração os apontamentos acima, a pesquisa foi balizada por uma

escuta de dados duros oriundos de bases sociodemográficas e etnogeográficas, mas, sobretudo

buscando a escuta da alteridade, na fonte da investigação etnográfica. O foco inicial, e que

comandou todo o esforço metodológico, foi a busca de compreensão de uma outra realidade,

por meio de uma abordagem que privilegia e dá voz à subjetividade dos sujeitos-objeto da

investigação, enucleando, narrando e sustentando com dados mais ou menos duros, o seu vivido

e as suas percepções, contribuindo com os processos de sua documentação. Flick (2004)

argumenta que uma pesquisa robusta da realidade social pode ser de matriz interpretativa,

fornecendo a shareholders e stakeholders, mas também a afetados e silenciados, material para

pensar, refletir e tomar decisões que sejam de interesse amplo.

O trabalho etnográfico é descrito no artigo fundante de Oliveira (1996) como sendo a

tarefa de ouvir, olhar, escrever. Na sua formulação lapidar, a ideia é dar um estatuto de escrita

científica a fenômenos que passam abaixo da linha dos radares mais totalizantes. No caso, trata-

se da existência de fenômenos sociais que merecem nota, antes que desapareçam sob

inundações, na corrida para assemelhar-se aos modelos do Norte. As relações entre trabalhos

desta espécie e as visões do desenvolvimento que privilegiam modelos baseados em grande

capital e em ações unilaterais de atores territoriais são estudadas por Lewis (2005), apontando

para dificuldades de assimilação, por parte da Academia, das particularidades territoriais e dos

sistemas de vivência e de construção simbólica e cultural. Uma dificuldade que é central para

o presente trabalho, que entende que a área de concentração “territorialidades” das teorias do

Desenvolvimento Local é uma prioridade metodológica, e não apenas retórica.

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A necessidade de olhares e escutas detidas e atentas à verticalidade dos fenômenos

rendeu e rende boas reflexões ao campo dos Estudos do Desenvolvimento. O grande trabalho

inspirador de todo o presente trabalho é o texto em que Escobar (1995) mostra, para além dos

teóricos da dependência, que existe um “encontro com o Desenvolvimento” (título do trabalho)

que lança um véu de dor e de dúvidas sobre populações inteiras na América Latina. Esta, por

sua vez, passa a ser uma imagem numa grande narrativa de alinhamentos a metas de produção

de indicadores.

Mas aqui referimos mais três estudos, brevemente, por sua especificidade metodológica.

Benton (1990), por exemplo, refere que, para pensar a economia do Desenvolvimento, e não o

crescimento de indicadores a partir de medidas econométricas, há que avaliar com um olhar

complexivo as iniciativas de pequena escala e informais, que contribuem com o sistema como

um todo. Realiza esse objetivo mostrando como a economia neo-institucional na Espanha

cresceu, a partir do olhar etnográfico dirigido a arranjos improvisados e criativos, mas

marginais, até então. Sem esse olhar, atento a detalhes e a descrições e entrevistas longas,

capazes de entender em profundidade o que empreendedores em dificuldades nem mesmo

queriam mais dizer, o tecido industrial espanhol continuaria sendo composto por um grande

número de “fábricas invisíveis” (título do estudo).

De forma parecida mas menos otimista, Crewe e Harrison (1998) escreveram uma forte

análise crítica das relações entre imposição cultural e a retórica do alívio da pobreza, sobretudo

em territórios africanos. Também apontam para um importante desafio, o de levar em conta as

relações de poder, normalmente desequilibradas na escala da produção das territorialidades,

quando o assunto é uma iniciativa de grandes impactos, exógena e sustentada por propaganda.

Assemelha-se aos modelos de alinhamento do Sul com o grande Norte, tentando padronizar a

partir da indústria e de uma política intervencionista todas as iniciativas de desenvolvimento,

em escala planetária (SACHS, 2015). Outro exemplo atual que mostra a forma analítica e

rigorosa de combinação entre o olhar etnográfico e as projeções do Desenvolvimento em suas

diversas escalas, características e possibilidades, é a coleção de oito trabalhos organizada em

um volume por dois antropólogos, mostrando como a insegurança, por falta de maior escuta e

visibilidade, cria um forte impacto social que (des)configura o ser e o viver de territorialidades

inteiras (COOPER; PRATTEN, 2015).

Nos casos citados como exemplo, mas especificamente levando em conta a tensão que

está sendo vista, mas pouco refletida, entre o desenvolvimentismo das novas fontes energéticas

e o silenciamento sobre culturas, vivências e formas de vida, é fundamental entender que o

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olhar etnográfico, com sua atenção à diferença, às escalas minúsculas e às vocalidades

subalternas, pode contribuir com a ampliação da cartografia intelectual, cultural e política das

obras relacionadas ao Desenvolvimento.

Seria desnecessário desenvolver todo o inventário de procedimentos de campo, mas

pode-se recordar que a pesquisa etnográfica, guiada pela visibilidade do senso crítico da

pesquisadora, não segue padrões pré-estabelecidos, mas sim técnicas que vão sendo construídas

a partir do trabalho e dos encontros que também constroem um campo de relacionamento e de

intersubjetividade – o que se denomina como sendo o “trabalho de campo” em sentido estrito

(OLIVEIRA, 1996). As técnicas, por vezes, precisam ser inovadoras, mas o seu traço mais

importante é sua docilidade ao objeto/sujeito. Elas são pensadas a partir e de acordo com cada

realidade estudada. Nessa perspectiva, pode-se atestar que o processo de pesquisa etnográfica

é apontado direta ou indiretamente pelas questões propostas pelo pesquisador.

A etnografia como abordagem de investigação científica traz alguns aportes para o

campo das pesquisas que se preocupam pelo estudo das desigualdades e supressões sociais.

Primeiro, por preocupar-se com uma análise holística ou dialética da cultura, isto é, a cultura

não é vista como um simples reflexo de forças estruturais da sociedade, mas como um sistema

de significados mediadores entre as estruturas sociais e a ação humana. Segundo, por introduzir

os atores sociais com uma participação ativa e dinâmica no processo modificador das estruturas

sociais. Terceiro, por revelar as relações e interações ocorridas (GEERTZ, 1989). Assim, o

“sujeito”, historicamente fazedor da ação social, contribui para significar o universo pesquisado

exigindo uma constante reflexão e reestruturação do processo de questionamento da

pesquisadora.

Conhecida também como pesquisa social, observação participante, pesquisa

interpretativa, pesquisa analítica e pesquisa hermenêutica, a pesquisa etnográfica compreende

o estudo pela observação direta e por um período de tempo, das formas costumeiras de viver de

um grupo particular de pessoas: um grupo de pessoas associadas de alguma maneira, uma

unidade social representativa para estudo, seja ela formada por poucos, seja por muitos

elementos. Como exemplo disso, temos a comunidade ribeirinha da Barra de São Lourenço.

A etnografia estuda preponderantemente os padrões mais previsíveis do pensamento e

comportamento humanos manifestos em sua rotina diária, vistos em seu estranhamento e

unicidade, constituídos como matrizes de uma forma de estabelecimento de padrões de

orientação e simbolização, a que também se chama de cultura. Isso não significa que a

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etnografia não esteja atenta aos fatos e eventos menos previsíveis. Diante do exposto, podemos

atestar que etnografia é a escrita do visível. E a descrição etnográfica depende das qualidades

de observação, da sensibilidade, do conhecimento sobre o contexto estudado, da inteligência e

da imaginação científica do pesquisador.

Para Geertz (1989, p. 15), praticar etnografia não é somente “[...] estabelecer relações,

selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, ou fazer um

diário [...]”; a maior preocupação da etnografia é obter uma ‘descrição densa’, a mais completa

possível, sobre o que um grupo particular de pessoas faz. Ou seja, realizar uma inscrição, na

teoria, de determinados fenômenos, num exercício de aliança para a produção de conhecimentos

gerativos de comportamentos criativos diante dos problemas do ambiente.

Importante salientar aqui que, para o nível de percepção do pesquisador estar bastante

apurado e a descrição mais densa possível, o envolvimento com o sujeito-objeto é primordial.

Tanto que para a etnografia mais tradicional (GEERTZ, 1989; LÉVI-STRAUSS, 1964) quanto

para a mais moderna (ERICKSON, 1992; MEHAN, 1992; SPINDLER, 1982; WILLIS, 1977;

WOODS, 1986), a pesquisa elaborada nesses moldes envolve longos períodos de observação e

a sofisticada teia de criações e invenções técnicas já referida acima. Isso significa que a

pesquisadora deve mergulhar profundamente de um a dois anos na realidade observada. Esse

período se faz necessário para que o pesquisador possa entender e validar o significado das

ações dos participantes, de forma que este seja o mais representativo possível do significado

que as próprias pessoas pesquisadas dariam à mesma ação, evento ou situação interpretada.

Numa pesquisa etnográfica é observado os modos como esses grupos sociais ou pessoas

conduzem suas vidas com o objetivo de “revelar” o significado cotidiano, nos quais as pessoas

agem. O objetivo é documentar, monitorar, encontrar o significado da ação.

Depois desta breve descrição de como tentamos conduzir o trabalho entendemos ser

importante uma compreensão do território para onde nosso olhar foi voltado.

3 - UM OLHAR TERRITORIAL SOBRE A BAP

Até a primeira metade do século passado, as informações sobre o potencial hidrelétrico

no Brasil eram bastante restritas. Limitava-se à identificação de alguns locais promissores nas

áreas de maior interesse, entendendo-se por tal as regiões próximas aos centros de consumo.

Somente a partir de 1960, com a Constituição do Consórcio Canambra - formado por duas

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firmas de consultoria canadenses, Montreal Engineering e Crippen Engineering e uma

americana, Gibbs and Hill Inc., selecionadas pelo Banco Mundial, em conjunto com autoridades

brasileiras – que teve como finalidade a realização de um amplo estudo sobre o potencial

hidráulico e o mercado de energia elétrica na Região Sudeste é que a questão do planejamento

elétrico integrado no Brasil e a avaliação sistematizada e abrangente do potencial hidrelétrico

passou a ganhar visibilidade e importância.

Depois dos estudos Canambra, entre 1960 e 1980 a Eletrobrás e suas subsidiárias, se

ocuparam de dar seguimento no levantamento integrado dos recursos hidrelétricos nacionais o

que evidencia uma evolução histórica da estimativa do potencial hidrelétrico brasileiro. Já os

anos que se seguiram os estudos desta natureza foram sendo gradativamente cessados. Desde a

edição do Plano 2015 (Eletrobrás, 1993) foram descontinuados os estudos de inventário. Pois,

as reformas institucionais introduzidas no setor elétrico a partir da década de 90, reduziu muito

o interesse pelo desenvolvimento de estudos deste caráter.

Como implicação natural da descontinuidade destes estudos, o Plano 2015 foi por muito

tempo referência e os locais apontados como promissores foram os que ganharam maior

visibilidade. O estudo apontou, também, uma tendência para o enquadramento do

aproveitamento com pequena central hidrelétrica (PCHs) - potência de até 30 MW -, pela menor

complexidade ambiental e, principalmente, pelos benefícios fiscais que foram atribuídos a essa

opção.

Hoje, de acordo com o SIPOT – Sistema de Informações do Potencial Hidrelétrico

Brasileiro (sistema desenvolvido pela Eletrobras, com o objetivo de armazenar e processar

informações sobre estudos e projetos de usinas hidrelétricas) o potencial hidrelétrico brasileiro,

tecnicamente explorável, é da ordem de 260 GW.

A maior parte da energia elétrica produzida no Brasil tem procedência de

empreendimentos hidrelétricos, que respondem por quase 62% de toda a capacidade instalada

do País, hoje calculada em 147,8 mil kilowatts (KW). De acordo com o Banco de Informações

de Geração da Agência Nacional de Energia Elétrica, os 1.229 empreendimentos de geração

hidráulica instalados no território nacional têm capacidade de gerar 95,7 mil KW.

A dependência do país frente a essa matriz geradora de energia é nítida, situação

resultante de uma opção estratégica feita ainda nos anos 50 do século passado.

O potencial técnico de aproveitamento da energia hidráulica do Brasil está entre os cinco

maiores do mundo; o País tem 12% da água doce superficial do planeta. Do potencial

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hidrelétrico de 260 GW, como já dito anteriormente, 42,2% estão localizados na Bacia

Hidrográfica do Amazonas. Já a Bacia do Alto rio Paraguai é responsável por somente 1,2%

deste montante. Um percentual baixíssimo de oferta de produção de energia frente aos impactos

gerados na região e o comprometimento da maior área úmida do planeta, o Pantanal.

Importante destacar que a BAP apresenta como potencial hidrelétrico “apenas 3.100

MW, dos quais 499 MW estão aproveitados e mais da metade apenas estimado” (Plano 2030,

2007). Mais um dado que reforça a ideia de que o prejuízo causado à região não é valido diante

do aproveitamento hidrelétrico gerado.

Apesar da BAP frente a outras bacias como a Amazônia ou a Bacia do Paraná ser

responsável por um percentual baixo de produção hidrelétrica o número de empreendimentos

na borda do Pantanal, especialmente aqueles de pequeno porte são alarmantes, como mostra a

imagem a seguir (Figura1).

Figura 1 – Título da Imagem

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Mapa produzido por Silvia Zanatta3

4 - OS PRINCIPAIS IMPACTOS GERADOS POR BARRAGENS

O primeiro trabalho publicado sobre os impactos das represas na BAP foi elaborado em

2002 pelo doutor Pierre Girard, professor da Universidade Federal de Mato Grosso. Intitulado

“Efeitos Cumulativos de barragens no Pantanal”, o estudo mostra alguns dos danos causados

por represas em operação na região e faz projeções sobre as possíveis consequências dos efeitos

cumulativos para o Pantanal, caso todas as barragens previstas àquela altura viessem a entrar

em operação. Expõe sobre as modalidades de impactos, particularmente sobre os ecossistemas

aquáticos, sua diversidade biológica e também sobre o ciclo natural das cheias nas planícies

inundáveis. A respeito da biodiversidade e ecossistemas aquáticos, explica que a condição da

vazão de um rio, a carga e a composição dos sedimentos, a forma e o material do canal são

fatores que exercem controle sobre os habitats e as espécies, o que leva a concluir que qualquer

alteração neste fluxo, principalmente quando há mais do que uma barragem no mesmo rio, pode

afetar a cobertura vegetal da região, causar um desequilíbrio sobre as plantas aquáticas além de

alterar significantemente o movimento lateral dos mamíferos, répteis e anfíbios que estão

ligados ao regime das cheias e secas da localidade.

Outro ponto destacado por Girard é que, sendo o fluxo da água retardado, atrás das

barragens, a temperatura muda e os nutrientes e sedimentos são retidos. Se a represa for rasa, a

temperatura nos rios da bacia do Alto Paraguai tenderá a subir, e, consequentemente, o conteúdo

de oxigênio dissolvido poderá diminuir. Em reservatórios profundos, como o da Usina de

Manso, a maior da região e já em operação desde 2003, a água no fundo é muito mais fria do

que a água que chega pelo fluxo normal do rio e essa mudança de temperatura na represa poderá

afetar a temperatura rio abaixo o que causa diminuição das espécies aquáticas. Hoje pode-se

atestar que barragens impedem a migração reprodutiva de algumas espécies de peixe,

diminuindo ou até mais levando algumas à extinção.

A modificação do regime de fluxo causado pelas barragens leva à redução da inundação

rio abaixo, tanto em relação ao espaço quanto ao tempo. Muitas espécies em planícies

inundáveis como o Pantanal, estão adaptadas às cheias anuais, sendo principal impacto esperado

3 Mapa integrativo produzido em fevereiro de 2017 pela pesquisadora Silvia Zanatta. O mapa está disponível para

consulta no endereço: http://riosvivos.org.br/pantanal/hidreletricas-na-bacia-do-rio-paraguai/

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com a redução dos picos de inundação a diminuição da área da planície inundável submetida à

alternância anual das fases terrestre e aquática pelo pulso das cheias. Esse ciclo mantém uma

alta produtividade, abundância e diversidade nas planícies inundáveis (Junk et al., 1989).

Outra fragilidade gerada pela instalação deste conjunto de empreendimentos

hidrelétricos na Bacia do Alto rio Paraguai recai sobre as questões econômicas e sociais. Se

levarmos em consideração que a pesca, em suas várias modalidades, é a atividade que mais gera

trabalho e renda na planície pantaneira, logo podemos constatar que a economia de muitas

cidades e a vida muitos trabalhadores será afetada. Como exemplo podemos analisar a cidade

de Corumbá/MS, maior município da região Centro-Oeste do país com aproximadamente 108

mil habitantes, onde destes, 30 mil são pessoas que dependem direta e indiretamente da

atividade pesqueira. Em sua maioria são pescadores artesanais, ribeirinhos e coletores de iscas

vivas. Só no ano de 2015, segundo a Associação Corumbaense das Empresas Regionais de

Turismo-ACERT, o município de Corumbá recebeu mais de 52 mil turistas que movimentaram

101 milhões de reais na região. Dados que revelam a importância das modalidades da pesca no

município.

A pesca turística é tida como a mais dinâmica economicamente. A partir de seus barcos

hotéis e pousadas, estrutura toda uma cadeia geradora de empregos diretos e indiretos em

agências de turismo; companhias aéreas; hotéis e bares e nos vários estaleiros e oficinas

existentes em algumas cidades pantaneiras.

Importante também ressaltar que a pesca turística tem acoplada a ela a modalidade

específica de atividade extrativista identificada como captura de iscas vivas que é praticada por

ribeirinhos e comunidades tradicionais. Álvaro Banducci, pesquisador da Universidade Federal

de Mato Grosso do Sul em trabalho intitulado “Turismo cultural e patrimônio”, publicado em

2003, demonstra que a atividade é realizada por toda a extensão do rio Paraguai, a partir da foz

do rio São Lourenço (divisa entre MS e MT) até ao sul do Pantanal, em Porto Murtinho. Nesta

última região os ayoreos, indígenas que vivem em território paraguaio, são os que praticam a

captura.

Estes grupos, chamados regionalmente de “isqueiros”, são considerados os mais

vulneráveis e isso ocorre sob vários aspectos. Imagine, se somado à estas vulnerabilidades já

inerentes, surgirem mais 94 empreendimentos causando a barragem dos rios que os mantém?

5 – O RIO ESTÁ MORTO E O POVO SUCUMBE – O CASO DO RIO JAURU

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Nas margens do rio Jauru – rio pertencente à Bacia do Alto rio Paraguai (BAP) e que

passa pelo município de Porto Esperidião, localizado a 358 km da capital do estado de Mato

Grosso, Cuiabá – moram dezenas de famílias que há muitos anos dependem exclusivamente da

pesca para sobreviver. Ao longo de sua extensão, foram construídas represas que pouco geram

energia, mas causam graves impactos ao ambiente, destruindo as vidas que dele depende. São

cinco Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e uma Usina Hidrelétrica (UHE): PCH

Brennand, PCH Indiavaí, PCH Ombreiras, PCH Salto, PCH Figueirópolis e UHE Jauru.

Os prejuízos causados por estas barragens, somado ao descaso do poder público com os

municípios banhados pelo rio Jauru: Porto Esperidião - com população estimada para o ano de

2016 em 11.535 habitantes pelo IBGE -, Jauru (9003 habitantes) e Indiavaí (2.397 habitantes)

tornam a situação das pessoas que ali vivem, insustentável.

Segundo constatações de CPI, instaurada em 2011 pela Assembleia Legislativa do

Estado de Mato Grosso (ALMT), as represas no rio Jauru foram construídas sem qualquer

planejamento ou estudo em nível de bacia hidrográfica, resultando em danos ambientais, sociais

e econômicos irreparáveis. Através da Comissão de Meio Ambiente da ALMT, foi feita uma

perícia na região onde está o rio Jauru, que comprova a inconstância no nível da água do rio,

fenômeno denominado pelos peritos de “onda de seca”. Neste caso, os peritos sugerem em

caráter de urgência “a modelagem de um programa de planejamento e operação para que as

regiões a jusante não continuem sendo afetadas pela súbita mudança de nível do rio”.

Paralelamente a instauração da CPI, 55 pescadores profissionais da Colônia Z-2

entraram com um processo judicial contra as seis barragens. Depois de três anos da ação

tramitando, no mês de maio de 2017, houve a primeira audiência de conciliação entre as partes.

O que aconteceu nesta ocasião, não foi surpresa para ninguém. As empresas não estavam

dispostas a propor nenhuma alternativa para a solução dos problemas e os pedidos apresentados

pelos ribeirinhos, que consistiam em uma ajuda de custo até alcançarem a aposentadoria, uma

indenização pelos danos que sofrem e a construção de tanques para criação de peixe, foram

incisivamente negados.

Pescadores do rio Jauru acumularam conhecimento ao longo dos anos sobre a influência

do regime das águas e outros saberes locais e atestam os terríveis danos causados pelas represas.

Os que mais chamam a atenção dos ribeirinhos são: profundas modificações na fauna e flora,

diminuição significativa no número de peixes e, o fator mais agravante, a instabilidade do nível

do rio.

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Através do Documento de Pesca Individual (DPI) – preenchido por todo pescador

profissional para garantir o seguro defeso - é comprovada a significativa diminuição do número

de peixes. Deste modo, para garantirem o sustento de suas famílias hoje, a maioria dos

pescadores do rio Jauru é obrigada a fazer “bicos” como ajudante de pedreiro, faxineira, pintor,

entre outras atividades que os descaracterizam como pescadores, e que podem, inclusive,

acarretar na perda do seguro defeso4.

Além de sofrerem com a falta de peixe, os que ainda se arriscam a sair para pescar, não

se sentem mais seguros em seus barcos, isso porque o nível do rio pode diminuir metros em

poucos minutos, correndo o risco das embarcações se chocarem com as pedras.

Outro fato que chama atenção é o município de Porto Esperidião fazer fronteira com a

Bolívia e a região ser tida como “importante” rota para o tráfico de drogas, situação que

favorece o aliciamento de jovens – que não conseguem dar continuidade à tradição de se

tornarem pescadores como seus avós e pais – para servirem de “mulas” para o transporte de

entorpecentes.

Estas situações aqui elencadas são apenas algumas das tantas observadas em campo. A

situação de vulnerabilidade que estas pessoas estão postas é desconcertante. Dizer que estes

pescadores e pescadoras são tão impactas como qualquer outra pessoa que vive num grande

centro comercial como São Paulo, é no mínimo descabido. Sendo assim, entendemos que a

reflexão sobre crescimento, sobre crise ambiental, sobre impactos e sobre as injustiças

promovidas em prol de um “desenvolvimento sustentável” precisa avançar em muitos aspectos.

6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Endente-se que, medidas para estabelecer os limites de sustentabilidade ambiental da

exploração do potencial energético da Bacia do rio Paraguai precisam ser desenhados

assegurando a preservação do Pantanal e a fragilidade das vidas humanas que habitam esta

região.

É preciso ter claro que os impactos gerados na Bacia do Alto rio Paraguai atingem

potencialmente regiões e pessoas em outros países, como Bolívia e Paraguai, o que contraria a

4 O seguro defeso é conhecido como o seguro desemprego do pescador artesanal profissional, é concedido em

períodos em que o mesmo é proibido de pescar, para preservar o período de reprodução dos peixes, sendo assim,

os profissionais desta área acabam ficando sem meios de sustento.

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Convenção sobre Diversidade Biológica, em que o Brasil assumiu a “responsabilidade de

assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de

outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional”.

Para tanto uma ferramenta que auxiliaria significativamente na conformação de uma

olhar mais sistêmico, seria a elaboração de uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE),

prevista como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiental (PNMA - Lei n.º

6.938/81, art. 9º) em toda a Bacia do Alto Paraguai (BAP). A diferença entre a Avaliação

Ambiental Estratégica e as avaliações convencionais é que ela leva em consideração os

impactos cumulativos dos empreendimentos. Assim, os estudos para instalação de uma nova

usina em um rio que já possua uma barragem, por exemplo, deverão somar o impacto já

existente com os impactos do novo empreendimento.

Um olhar mais sistêmico também pode garantir que comunidades diretamente impactas

pela inserção destas represas, como as comunidades na beira do rio Jauru, tenham maior

seguridade sobre seus territórios, o que obviamente minimiza a tensão hoje presente.

Por fim, percebe-se também que, para enfrentar os problemas acarretados pela

instalação dos empreendimentos hidroelétricos na BAP, é necessária a adoção de estratégias e

políticas públicas para o desenvolvimento local das regiões onde serão instalados tais

empreendimentos. E que estas possam influir nos indicadores de desenvolvimento social,

ambiental e econômico, coordenadas pelo poder público e com uma possível contrapartida das

usinas.

7 - REFERENCIAL TEÓRICO

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