“bandidos literários”: o plágio e as dimensões da escrita...

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II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV) INTELECTUAIS E PODER Simpósio 1 | Imprensa e nacionalidade “Bandidos literários”: o plágio e as dimensões da escrita na Primeira República (1902 – 1930). Guilherme Mendes Tenório Resumo: Este texto apresenta a pesquisa a ser desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em História, Políticas e Bens Culturais do Centro de Documentação e Pesquisa em Historia do Brasil Contemporâneo (CPDOC). Partindo de cartas enviadas por leitores à revista O Malho entre o período de 1902 e 1930, esta investigação pretende acompanhar os debates gerados pela prática do plágio, delineando os seus possíveis significados no contexto da proliferação da palavra impressa e sua transformação em objeto de disputa. Palavras - chave: plágio; imprensa, Primeira República. **** I - Introdução O objetivo deste artigo é apresentar algumas das questões abordadas no projeto de pesquisa desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação em História do Brasil Contemporâneo (CPDOC). Mestre em História pelo programa de Pós- Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV)

INTELECTUAIS E PODER

Simpósio 1 | Imprensa e nacionalidade

“Bandidos literários”: o plágio e as dimensões da escrita na Primeira República

(1902 – 1930). Guilherme Mendes Tenório

Resumo: Este texto apresenta a pesquisa a ser desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em

História, Políticas e Bens Culturais do Centro de Documentação e Pesquisa em Historia do

Brasil Contemporâneo (CPDOC). Partindo de cartas enviadas por leitores à revista O Malho

entre o período de 1902 e 1930, esta investigação pretende acompanhar os debates gerados

pela prática do plágio, delineando os seus possíveis significados no contexto da proliferação

da palavra impressa e sua transformação em objeto de disputa.

Palavras - chave: plágio; imprensa, Primeira República.

****

I - Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar algumas das questões abordadas no projeto de

pesquisa desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens

Culturais do CPDOC.

Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação em História do Brasil Contemporâneo (CPDOC). Mestre em História pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Este projeto acompanha os embates travados em torno da construção do autor como

uma figura de autoridade, ou seja, alguém capaz de produzir um discurso próprio e autêntico.

Conflitos que foram se tornando mais agudos com a profissionalização do campo literário e o

aumento dos índices de alfabetização, isto é, da habilidade de manejar a palavra escrita.

Para tanto, além da revista O Malho, serão consultadas outras fontes como os boletins

da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), processos jurídicos e correspondências

entre escritores. A partir daí, será possível delinear os múltiplos sujeitos envolvidos nos

embates concernentes aos direitos autorais bem como os significados envolvidos nestas lutas

em torno da palavra escrita e sua posse.

II – “Bandidos literários”: o plágio na Primeira República.

Se no início do século XX, os literatos e aqueles de certa maneira envolvidos com o

mundo das letras já se referiam a apropriação de obras artísticas realizadas por outrem em

benefício próprio como plágio, cabe perguntar se esta classificação detinha o mesmo

significado que tem atualmente. Isto nos leva a olhar os debates atuais sobre os direitos

autorais com certo distanciamento, pensando na possibilidade de aferir outros sentidos para

esta prática.

Quando falamos em massificação da leitura e escrita, não nos reportamos apenas à

reprodução de livros e periódicos em milhares de exemplares. A expansão da cultura letrada

pode ser entendida também como o acesso de indivíduos oriundos dos mais distintos

segmentos sociais ao mundo das palavras. Ao contrário do que perpetua certa memória, a

cidade do Rio de Janeiro abrigava um percentual de 60% de população alfabetizada em 1920,

de acordo com o Censo.

O que aponta para a possibilidade de outros significados para o “plágio” são algumas

cartas de leitores publicadas na revista O Malho, periódico humorístico que circulou entre

1902 e 1954. Atentando para as formas através das quais os leitores se dirigem ao redator da

revista bem como para as maneiras da revista se referir ao seu leitor, é possível indagar os

sentidos de ser “autor” no inicio do século XX para muitos dos sujeitos atuantes na cultura

letrada: redatores de revista, autores, editores e os leitores.

Maria de Roure Alípio – Eis na integra a sua carta denuncia: Ilm. Sr. Redator de O Malho. Cumprimento-o respeitosamente No vosso mui conceituado jornal, datado de 27 de Agosto do corrente, foram publicados uns versos sob a epigrafe – As minhas irmãs – e como os mesmos não

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sejam da lavra de quem os subsescreveu, Regina Ferreira, venho fazer-lhe, a bem dos direitos do autor, a seguinte declaração. Os referidos versos são de produção de meu falecido pai Manoel Francisco Alípio, os quais, sob a epigrafe “A Moça”, foram publicados no seu livro de versos intitulado Azul e Sombras, página 155, impresso na conhecida casa desta capital, G. Leuriger & Filhos da rua do Ouvidor, edição do ano de 1884. Com a presente carta, penso ficareis convencidos da falsidade da referida poetisa, que o subescreveu. Com a publicação desta, muito penhorada lhe ficará uma das filhas do verdadeiro autor. (“Caixa d ’ O Malho”, O Malho,10/09/1910 ). 1

No caso da carta transcrita acima, sua autora, Maria de Moura Alípio, usa a expressão

“direitos do autor” para referir-se a suposta autoria dos versos “roubados” por Regina

Ferreira, que teriam sido escritos por seu pai, Manoel Francisco Alípio. Assim, o uso da

expressão indica que a remetente da missiva tinha algum conhecimento dos direitos autorais,

permitindo nos questionar sobre a difusão dessa temática e sua apropriação pelos mais

diferentes sujeitos.

Esta carta ainda nos indica que a temática da “fraude literária” se aproxima do

universo das práticas de leitura, a partir do qual é possível fazer algumas indagações: Como se

davam tais práticas? Será que os acusados desconheciam a real autoria do poema? Ou eles os

conheciam, mas talvez pensassem que os redatores ou editores da revista não tivessem acesso

as obras copiadas.

Mas não são apenas as práticas de leitura dos plagiadores que estão indiciadas na carta

acima. Também cabe perguntar que tipo de leitora era Maria de Moura Alípio. Tratava-se de

uma leitora contumaz da revista O Malho ou estava apenas interessada nos versos publicados

a cada edição? Seja como for, as correspondências de leitores oferecem pistas significativas

para compreendermos o universo da leitura nas primeiras décadas do século XX.

Sem se constituírem no problema central a ser investigado, tais questionamentos

estarão incluídos neste Projeto de Pesquisa no sentido de entender como se davam as formas

de apropriação e circulação dos textos. Tanto mais porque, conforme frisado anteriormente, o

início do século XX foi caracterizado por um processo de massificação do imprenso, que

facultava o acesso a um volume cada vez maior de textos dos mais variados tipos. Por outro,

como aumentava o percentual dos que sabiam escrever, cabia diferenciar essas pessoas dos

autores, aqueles que não apenas escreviam como também produziam algo de propriamente

seu, que fosse reconhecido como tal.

Com isto, a palavra escrita passava a ser um objeto em disputa. Na medida em que

cada vez mais pessoas adentravam na cultura letrada pela via da alfabetização, tornava-se

1 O poema citado na carta foi publicado na seção “Postaes femininos” do dia 27/08/1910.

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preciso proteger os “verdadeiros” autores dos “bandidos literários”, expressão similar àquela

localizada na missiva enviada por Deodato Maia para a secção “Caixa d ’ O Malho” e

publicada no dia 24 de Outubro de 1910.

Dr. Deodato Maia (Rio) – Relativamente ao furto literário de que V.S foi vitima, achamos melhor publicar a sua carta Ei-la: No número 416 do seu mui apreciado semanário, vejo publicado um soneto de minha lavra intitulado “In Extremis” e assinado por um Sr.P. Gil Rios, de São Paulo, que assim, indebitamente, se apossou de cousa que não lhe pertence. Não tenho o prazer de conhecer literária ou pessoalmente o meu furtador, d ’ahi eu supor que se trate de algum pseudônimo. Mas a desfaçatez na apropriação é tamanha que não posso deixá-lo no rol do laissez passer. É preciso notar que este soneto foi originalmente (trechos ilegíveis) do nosso Serpa Junior, isso a seguramente uns bons oito anos. Depois, fiz ligeira modificação nos dois últimos versos da ultima estrofe e o batizei com o nome de “In Extremis”, ofertando-o ao Carvolina, que o publicou na Revista da Semana, como já referi acima, sendo ele transcrito nos vários jornais, entre os quais o Correio de Aracaju, Estado de Sergipe, Imparcial e outros. Ai fica, portanto, meu caro redator, o protesto – a que chamei de simples – porque mestre Silvio Romero já me disse uma vez, em palestra, que por causa de uma rima já houve muito sangue no Parnaso. O que haveria entre os deuses se, por ventura, sucedesse coisa parecida com o que fez o Sr.Rios! Não se pode calcular. Convém ao poeta paulista beber um pouco da água da fonte Castilho a fim de ter inspiração própria e não andar amolando a gente. Tenha, Sr. redator, a indulgência de desculpar esta parlenga e queira aceitar os protestos mas de verdadeira estima e admiração de quem subscreve – Deodato Maia. (“Caixa d ‘ O Malho”, O Malho, 24/09/1910). 2

Ao usar a palavra “furto” para referir-se ao plágio cometido pelo bardo paulista, o

responsável pela seção “Caixa d ’ O Malho” e o autor trazem à tona alguns dos significados

possíveis para o plágio no período abordado. Conforme as representações da época, a obra

literária era um bem de propriedade exclusiva de seu criador. Tal visão começou a se delinear

em 1793, quando aparece a primeira lei sobre os direitos autorais na França.

Neste caso, as considerações de Michael Foucault interessam à investigação no

sentido da constituição histórica daquilo que ele denomina de função-autor. Pois para o

filósofo, muito mais do que corresponder ao nome próprio do escritor, o autor é uma das

muitas maneiras de estabelecer um controle sobre os discursos em circulação. Conforme frisa

o autor, tal forma de controle do discurso se desenvolveu juntamente com o delineamento da

categoria sujeito.

Mas a função-autor não se exerce sobre todos os discursos da mesma maneira,

podendo variar também conforme a circunstância histórica. Se na Idade Média os discursos

literários circulavam no anonimato e quase nenhuma importância era dada a autoria, durante o

2 O poema citado por Deodato Maia foi publicado no número 416 de 03/09/2010.

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mesmo período os textos científicos só adquiriam validade a partir da identificação dos

autores. Já na cultura contemporânea, conforme Foucault, o processo teria se invertido: se

para os textos literários a autoria tornou-se fundamental, nos textos científicos, a regra é a

impessoalidade.

Outro ponto nodal das considerações do filosofo francês concerne à autoria enquanto

índice de apropriação do discurso, isto é, como indicativo de que o discurso é propriedade de

alguém. Conforme já aludido anteriormente, o processo de individualização, paralelo à

constituição do capitalismo, foi um dos fundamentos históricos da representação das obras

artísticas como bens no sentido de propriedades dos seus criadores, compreendidos como

seres dotados de inspiração singular.

Dentre todos os traços apontados por Foucault naquilo que ele chama de função-autor,

a apropriação foi o mais presente nas cartas localizadas na revista O Malho. Lendo-as, é

possível observar que o plágio é tratado como um “furto”, como se equivalesse à subtração de

um bem material pertencente a outrem. Posto isto, as ponderações de Foucault ajudarão a

entender alguns dos significados de “plágio” e “de autor”.

Assim, os apontamentos de Foucault nos ajudam a pensar a constituição da autoria

envolvida na rede de discursos produzidos socialmente sobre o que é legítimo ou não.

Discursos de que eram porta-vozes as “vítimas” das “fraudes literárias”, mas que

atravessavam todos os espaços da cultura letrada, trazendo no seu bojo questões como a

constituição de uma literatura com identidade própria e a profissionalização da escrita.

Mas não eram os acusadores os únicos sujeitos que tiveram espaço na secção “Caixa d

’ O Malho”. Um acusado de ter plagiado Castro Alves teve publicada a seguinte missiva:

Leônidas Machado (Itararé) – É de justiça publicar o seu cartão de protesto. Ei-lo: Itararé, 2 de Agosto de 1910. Sr.Diretor, tendo por costume fazer a leitura de vossa conceituada revista – O Malho – deparei com uma nota de um individuo que costuma assinar-se Joaquim Viana, que acusa-me de haver copiado pensamentos do imortal Castro Alves. Desafio a esse Sr.Viana que prove com autografo que fui o autor de semelhante roubalheira. Não sou pretensioso, nunca pensei em ser escritor porque felizmente tenho conhecimento de mim mesmo. Agradecendo a publicação que, espero, dará a este muito agradecido e admirador criado – Leônidas Gaudênio Machado. (“Caixa d ’ O Malho”, O Malho, 17/09/1910). 3

Neste sentido, a luta pelos direitos autorais era constituída por uma dimensão política,

a saber: garantir que não fosse violado o direito de propriedade do autor sobre o fruto de seu

3 A denúncia de Joaquim Viana citada por Leônidas Machado foi publicada na seção “Caixa d ‘ O Malho’ do dia 30 de Julho de 1910.

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trabalho artístico. Desse modo, as denúncias de plágio eram uma das frentes de que os

indivíduos tinham de se fazer cidadãos no âmbito dos direitos civis.

Por isso, cabe citar a legislação referente aos direitos autorais existente no período.

Esta começou a se desenhar no Código Penal decretado em 11 de outubro de 1890, que

definia uma pena de 10 anos para os crimes de plágio ou contrafação. Em seguida, a

Constituição de 1891 determinou que apenas os autores de obras literárias e científicas tinham

o direito de reproduzi-las onde os aprouvesse. Por fim, o Código Civil de 1917 facultou o

registro das obras na Biblioteca Nacional, consolidando o Direito de Autor.

Portanto, cabe estabelecer um diálogo com as reflexões desenvolvidas por Gladys

Sabino Ribeiro e Eduardo Silva. Se Gladys Sabino Ribeiro demonstra que a luta por direitos

era uma constante na Primeira República, os apontamentos de Silva nos mostram o papel da

imprensa nesse processo.

Neste sentido, outra questão que servirá de norte para a pesquisa é: Qual o papel

desempenhado pelas revistas ilustradas nos debates envolvendo o plágio? Está claro que O

Malho disponibilizava espaço para as denuncias, mas por quê? Por outro lado, se é possível

observar a continuidade de reclamações e acusações intermediada pela revista, isto significa

que o plágio era um prática recorrente e fugia ao controle dos redatores e editores da revista.

Assim, ao dar voz às vitimas da cópia, não estaria à revista tentando construir sua

credibilidade junto aos leitores, como que se retratando do erro de ter publicado uma peça

literária com autoria errada?

Porém, há de se ressalvar que não foi localizada, por enquanto, nenhuma referencia

crítica à revista O Malho. Muito pelo contrário: em muitas cartas, os leitores se denominam

“admiradores” do periódico. Se as revistas ilustradas dispunham de várias estratégias para

chegar ao público, a relação deste com os diferentes órgãos de imprensa não era

absolutamente passiva. O leitor também tinha suas “armas” para se fazer ouvir.

Até porque, como já foi dito a imprensa talvez fosse o meio mais acessível para tornar

pública a “fraude literária” de que tinha sido “vitima”. Era preciso, portanto, usar de meios

para conquistar a atenção de quem editava a revista. Isto nos faz pensar na revista O Malho

como veículo de construção do espaço público, isto é, enquanto espaço de debate e disputas.

Também cabe atentar para a hipótese de Marialva Barbosa em seu estudo sobre a

História cultural da imprensa entre 1800 e 1900. Analisando as cartas enviadas para O Paiz,

Jornal do Brasil, Gazeta de Notícias e Correio da Manhã, a autora supõe não apenas uma

estratégia de luta por direitos, mas uma busca por inserção no mundo.

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Contudo, não eram todos os leitores que tinham suas cartas publicadas, o que leva a

perguntar: Em nome de que valores ou interesses foram publicadas determinadas cartas e não

outras? Neste sentido, cabe atentar para as trajetórias dos intelectuais que estavam à frente de

O Malho e para a posição por eles ocupada no campo literário brasileiro do início do século

XX.

Da mesma forma, cabe questionar por que a partir de 1910 as cartas de denúncia ao

plágio ganham mais espaço, passando a ser publicadas e não somente respondidas pela

redação da revista. O que teria provocado essa mudança: uma decisão dos editores do

periódico ou uma alteração no rumo das lutas por direitos autorais.

Há de se pensar, também, se as “vitimas” recorriam à Justiça em prol da garantia de

seus direitos, e se recorriam, qual era o resultado dos processos. Isto porque temos de levar

em conta que muitos nem tivessem condição de recorrer à instância jurídica e assim a

imprensa tornava-se o meio mais acessível para denunciar o plágio. Muitos até tinham

condições para se defenderem nas instâncias jurídicas, mas por algum motivo o deixavam de

fazer. Portanto, podemos supor que as reclamações contra o roubo da “inspiração” possuíam

os mais diversos significados: reconhecimento, direito a uma memória, etc.

E tem mais um dado que precisamos levantar: apesar da legislação e das denúncias

publicadas, o plágio era uma prática contínua. Como explicar isso? Ou melhor, o que

motivava os plagiadores? Estas são perguntas difíceis de serem respondidas, mas talvez seja

possível olhar o problema pelo prisma da formação de uma cultura de massa e os modos pelos

quais os distintos grupos fazem uso da palavra escrita, que, naquele momento, ganhava cada

Deste modo, cabe atentar para outras diferenças entre os significados do plágio no

passado e nos dias atuais. Se hoje cópias piratas de filme podem render alguns centavos a

mais para os vendedores ambulantes ou prejudicar os negócios das grandes gravadoras, na

Primeira República a apropriação do texto alheio tinha uma motivação mais simbólica do que

material. Ter um poema publicado em uma revista de grande circulação, mesmo que não

tivesse escrito-o originariamente, poderia ser o primeiro passo para a carreira no mundo das

letras.

Mas é preciso ir com cautela. Primeiro, porque o plágio não era uma prática segura

dado o fato de que era muitas vezes descoberto. Depois, o ingresso no mundo das letras não

estava garantido pela publicação de uma obra na revista O Malho e outra qualquer. E cabe

questionar se todos tinham mesmo o desejo do reconhecimento literário, ou se eram outros os

interesses e as motivações dos plagiadores.

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Assim, a despeito das inúmeras tentativas que se tem feito para coibi-lo, o plágio

resiste. Este conflito entre o autor ou os possíveis detentores de uma obra artística e os

“burladores”, se não começou na Primeira República, ganhou outras dimensões com a

massificação da imprensa e as lutas em prol da profissionalização do escritor.

Por outro lado, esta disputa em torno do plágio e da autoria apontam questionamentos

concernentes aos significados da palavra escrita para os múltiplos sujeitos inseridos na cultura

letrada, indiciando que o saber ler e o saber escrever ganhavam cada vez mais peso.

Um dos motivos para tamanho peso dado ao letramento se relaciona ao fato da

Constituição de 1891 ter definido a alfabetização como um dos critérios de definição do

eleitor. Neste sentido, leitura e escrita tornaram-se um instrumento para a construção de uma

identidade social e política.

Entretanto, as mulheres, que pela carta constitucional eram impedidas do direito de

votar mesmo que fossem alfabetizadas, nem por isso deixaram de se configurar como sujeitos

que fizeram uso da palavra escrita como forma de inserção social. Mesmo os iletrados

encontravam meios para tomar contato com as diversas formas de impresso que circulavam

nas primeiras décadas do século XX. Isto é evidenciado pelo artigo do jornalista

pernambucano Gonçalves Maia, localizado no decorrer da pesquisa para a Monografia de

Conclusão de Curso em História concluída no ano de 2005, cujo objetivo era acompanhar a

inserção da imprensa recifense nos espaços sociais da capital pernambucana:

Em o numero de ledores, há duas classes tão (...) quanto os analphabetos: os que após a leitura dos jornaes trocam-no com o vendedor por outra folha ou lhe fazem presente, facultando os meios para perverter ainda mais o gazeteiro, que deste modo, furta a empreza; e os que, assignando o jornal o emprestam a todos os seus vizinhos e estes por sua vez o mostram a seus amigos, servindo um só exemplar para 30 ou mais pessoas. (Jornal do Recife, 01/01/1915).

Tanto a publicação das cartas pelas revistas como as denúncias das “vitimas” apontam

para abordagem de Michel de Certeau para a problemática da cultura de massa. Tal reflexão

lança-mão de dois conceitos: estratégias e táticas. Pelo primeiro, o antropólogo entende as

práticas por meio das quais as diferentes instituições intentam controlar a recepção dos bens

culturais. Por sua vez, as táticas subentendem as maneiras como os sujeitos comuns realmente

se apropriam da cultura de massa, que não correspondem aos desejos de seus produtores.

No mesmo livro, Certeau investe naquilo que ele denomina de “economia

escriturística”. Com essa expressão, o autor se refere à importância que a escrita ganhou na

sociedade ocidental a partir do século XVIII seja como atividade cujo alvo seria a eficácia

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social seja como geradora de novas formas de distinção entre os grupos na sociedade. Ele

explica esta premissa da seguinte maneira:

Este poder, essencialmente escriturístico, não contesta apenas o privilégio de nascimento, ou seja, da nobreza: ele define o código da promoção sócio-econômica e domina, controla ou seleciona segundo suas normas todos aqueles que não possuem esse domínio da linguagem. A escritura se torna um principio de hierarquização social que privilegia, ontem o burguês, hoje o tecnocrata. Ela funciona como a lei de uma educação organizada pela classe dominante que pode fazer da linguagem (retórica ou matemática) o seu instrumento de produção. Ainda aqui Robinson esclarece uma situação: o sujeito da escritura é o senhor, e o trabalhador que usa outra ferramenta, além da linguagem: será Sexta-Feira. (CERTEAU, Michel de; 2008:230)

Por sua vez, o psicanalista Michel Schneider aponta que, a partir da perspectiva da

intertextualidade, o plágio teria tomado outro significado, passando a ser visto como algo

intrínseco à escritura. Ainda assim, segundo o autor, nada seria pior para um escritor do que

ser acusado de plagiário. Por outro lado, Schneider afirma algo parecido àquilo que aqui se

afirmou a respeito da disputa pela palavra escrita:

Num vagão lotado, os punguistas e as rixas entre passageiros são bem mais freqüentes que na época em que a escritura e o pensamento eram o ofício que poucos seguiam, cada qual com seu caminho. Num tal contexto, o plágio torna-se, realmente, o que sempre foi fantasticamente: uma questão de sobrevivência em um ambiente onde é preciso disputar o próprio lugar. (SCHNEIDER; 1990: 60)

Assim, o “autor” era entendido como um título que conferia ao seu possuidor posição

de distinção em relação aos outros homens, e o plágio, nesse sentido, não é o questionamento

dessa ordem de coisas, mas uma forma enviesada de capitulação à mesma. Forma essa que

será mal compreendida se não localizada dentro de um imaginário que conferia cada vez mais

importância à palavra escrita e aos possíveis ganhos materiais e simbólicos advindos de sua

posse.

Portanto, remetendo mais uma vez a Certeau, agora às suas considerações sobre a

escrita da História, esta pesquisa não olha para o plágio como uma “crise” da palavra

decorrente da multiplicação de seus usuários, mas como um sinal que permite inferir alguns

dos significados e usos da palavra escrita para os diversos sujeitos no processo de

massificação do imprenso, onde editoras e empresas se viram às voltas com a necessidade de

atender a um público cada vez mais ampliado.

III- Considerações finais.

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Assim, esta pesquisa pretende contribuir para o conhecimento das práticas através das

quais os sujeitos davam sentido ao letramento, situando a questão do plágio e da autoria entre

as táticas de apropriação do impresso.

Portanto, esta investigação estaria localizada no intercurso de três temáticas: a cultura

de massa, a gestação do campo literário brasileiro e as diferentes práticas por meio das quais

os indivíduos se apropriam da palavra escrita e os significados dessa para os mesmos.

Tomando como perspectiva a impossibilidade de separação entre as três esferas citadas, este

projeto de pesquisa busca compreender o plágio em sua dimensão social e cultural, atentando

para as diferenças e continuidades entre os diversos contextos históricos.

IV- Referências bibliográficas.

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