ler por que filosofo - bento prado jr., gerard lebrun, e outros filosofia

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  • 5/16/2018 ler Por Que Filosofo - Bento Prado Jr., Gerard Lebrun, e Outros Filosofia - s...

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    PORQUE FIL6S0F07*

    (*) Os textos aqui publicados alimentaram a mesa-redonda sob 0 mesmo. titulo,promovida pela Sociedade Brasi/eira para 0 Progrelilio da Ciencia, em suaXXVII Reuniio Anual, realizada em julho de 1975, na cidade de Belo Horizonte.

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    JOAO CARLOS BRUN TORRESL'Autriche-Hongrie ne s'est pas effondree comme unbdtiment qui tombe, ni comme un navire qui coule.Elle s'est eparpi/lee en semences qui ont germeailleurs.

    J. DUVIGNAUD.

    Numa observacao incidente dos "Novos Ensaios" Leibniz observa:H il Y a des themes qui sont may ens entre une idee et une propo-sition: ce sont les questions, dont il y en a qui demandent seulementle oui ou le non; et ce sont les plus proches des propositions. Maisil y en a aussi qui demandent le comment et les circonstances, etc.,ou i1 y a plus it suppleer pour en faire des propositions." 1"Por que fil6sofo?" e , obviamente, uma interrogacao a ser incluidanesta segunda categoria de questoes distinguida por Leibniz. Submete-la it

    ayao de circunstanciadores que determinem 0 problematico nela compreen-dido eis, pois, um requisito preliminar a qualquer tentativa de responde-laoUm marco cronol6gico que restrinja 0 ambito do interrogado aos diasatuais poderia ser 0 primeiro destes determinantes; um operador semantico,queexclua da analise os estudos historiograficos sobre a Tradicao Filosofica,o segundo; finalmente, um protocolo metodologico que - eximindo-nos daexigencia de definir um eventual "proprium" do filosofar contemporaneo -nos autorize a proceder a um como que estudo de caso pode ser 0 terceiro.

    Nao e dificil perceber que estas restricoes funcionam como transfor-madores de nossa questao-guia, de tal modo que a partir delas podemos redu-zir nossa tarefa ao exame de algumas - em principio, quaisquer - "ocor-rencias" de filosofia contemporanea.Uma tal maneira de encaminhar 0 tratamento- do problema - onde sepretende que a exemplaridade faca as vezes da exaustao - e , sem duvida,tao arbitraria quanto qualquer outra, mas tera, talvez, a vantagem de (aoremeter-nos para 0 que e hoje vivo na Filosofia Contemporanea) permitir-nosindagar sobre 0 que se deve chamar - por analogia com a interrogacao sobreas condicoes de verdade das proposicoes - a condicdo de pertinencia dapergunta proposta. 0 que implica em dizerque nos recusamos it ingenuidadede supor que 0 perguntado faz necessariamente sentido. Sobre este pontocrucial, de resto, fica a resposta condicionada ao que decorrer da explicitacao

    da maneira pela qual se da, atualmente, 0 acesso ao discurso filosofico.Mas ... aos exemplos, tratemos de precisar, a partir de alguns casos,2 como

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    "Nouveaux essais sur l'entendement humain", livre IV, chap. I, 2, Garnier--Flammarion, p. 314.A escolha dos exemplos seguintes nao se apoia em nenhum criterio objetivo.

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    isto acontece e que conclusoes e possivel extrair dai relativamente ao temaque nos foi proposto.Seja a distincao marxista entre duas funcoes da moeda: de urn lade,medida dos valores, de outro, padrao de precos. 0 primeiro termo disjunto

    remete diretamente ao axioma basico da teoria do valor-trabalho, poisenquanto "medida dos valores" a moeda s6 "conta" enquanto mercadoriaportadora de urn dado quantum de trabalho simples, abstrato e socialmentenecessario, A segunda funcao, ao contrario, reenvia aos fenomenos bernconhecidos da circulacao, aos precos e suas variacoes, Cruzando-se as duasordens de determinacao verifica-se que, se enquanto medida dos valores elanao pode ser padrao de precos, nao e tao 6bvio, inversamente, que nao possaser padrao de pre~os sem ser medida dos valores. Estrita e inteligentementefiel a Marx, Suzanne de Brunhoff argumenta em favor da necessaria recipro-cidade entre os dois aspectos do dinheiro, observando que "os precos s6podem servir de indicadores mercantis a partir da troca de mercadoriascomensuraveis entre si em razao de seu valor." 3Mas cabe perguntar: a comensurabilidade das mercadorias em termosde valor, sua comensurabilidade substancial, como diz Marx, e efetivamenteuma pre-condicao a instituicao do dinheiro?

    Enquanto nos mantivennos na linha principal da analise marxista istoparece indiscutfvel, pois se a questao da relacao das mercadorias com 0dinheiro for determinada como a questao da expressdo do valor daquelasneste nao ha como recusar que os valores respectivos ja devam estar pressu-postos,"o que convem indagar e por que tal relacao, necessariamente, ha deser concebida como "expressiva". Ortodoxamente este pressuposto torna-secompreensfvel em razao da necessidade forcosa disto que Marx chama"a forma do valor". Esta se revela necessaria em primeiro lugar negativa-

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    Obedece a uma regra de facilitacao idiossincrasica: escolhi falar do que me econjunturalmente mais proximo. 0 subjetivismo da escolha pode ser considerado,no entanto, como 0 esquema de uma aleatoriedade de principio, Quer dizer,vivemos urn tempo em que ja niio hoi lugar certo para a filosofia nos mapas doteorico. 0 resultado, como vamos procurar mostrar, e que suas "ocorrencias"tendem a tornar-se, por definicao, singuJares e evanescentes, rebeldes por princf-pio a qualquer ensaio de sistematizacao,In "La poJitique monetaire", p, 64, PUF, 1973. A passagem completa diz assim:"Le temps de travail depense, qui determine la valeur, ne peut dans la circulationmarchande etre etalon des prix; mais les prix ne peuvent servir d'indicateursmarchands qu'a partir de l'echange de marchandises commensurables entre eJlesdu fait de leur valeur, et en raison de la mesure, meme imparfaite, des valeurspar une forme valeur,""':arx diz: "But for commodities to express their value independenly in money,in a third commodity, the value of commodities must already be presupposed."Theories of Surplus Value, Lawrence & Wishart, London, 1972.

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    mente, a partir da impossibilidade de que 0 tempo de trabalho funcionediretamente como regulador das trocas; 5 positivamente ela se apoia no fatode que, dada a separacao e a autonomia das unidades de producao, a alocacaodo tempo de trabalho socialmente disponivel, bern como a distribuicao doproduto, so podem determinar-se via mercado pela comparacao reciproca,sistematica e recorrente da producao de cada unidade produtiva com a dasdemais. E isto, e so isto, que permite compreender que urn dado quantumde urn produto qualquer represente uma parte alfquota do tempo de trabalhosocialmente necessario expendido e que, nesta medida, ao ser equiparadocom outro qualquer quantum de uma outra tambem qualquer mercadoria,possa estar a the expressar, 0 valor.

    A dificuldade, porem, esta em que os tempos de trabalno .efetivamenteexpendidos, "incorporados" nas mercadorias, sao concretos, de complexi-dade variada e presentes em quantidades e princfpios quaisquer, so sepodendo converter, pois, em trabalho simples, abstrato e socialmente neces-sario gracas ao movimento das trocas que, no en tanto, se supunha" devesseexpressa-lo, reconhece-lo e distributivamente determina-lo.0 que significa dizer que a definicao dos valores que se afirmava deveranteceder a fixacao dos precos nao pode efetuar-se senao "ex-post", emfuncao da varia~ao continua destes, nos pontos medics por esta ultimadesenhados. 0 importante a notar e que esta circularidade rebenta a teoriada forma-valor, pois a relacao de expressao - que the e como que 0 nervologico - torna-se entao ininteligfvel, 7Neste ponto precise fende-se, assim, a.exposicao positiva, "cientffica",da teoria do valor e 0 leitor, preso de vertigem, ve-se repentinamente jogadonum outro topos teorico, Nao apenas no sentido de que talvez seja necessariorecusar a maneira como Marx ensaia conceptualizar os intrincados problemasInsitos no processo de circulacao de mercadorias. Isto, na verdade, nao seriamais do que 0 abandono obvio de uma proposta teorica logicamente insa-tisfatoria, abandono que em si mesmo nao obrigariaa mudar de terreno,levando, antes, a procura de uma outra altemativa no mesmo nfvel deanalise em que se situam os desdobramentos canonicos da teoria do valor--trabalho,

    A inflexao aqui, porem, e mais radical ja que, dada a patencia da

    5 Marx dol tres razoes para esta impossibilidade: a 1~ e a existencia unicamentesubjetiva do trabalho (Cf. "Fondements de 1 a Critique de l'Economie Politique,I, p, 108, Anthropos, Paris); a 2~ e que sua existencia objetiva nao pode sersenao sua materializacao em produtos particulares (Idem, p. 105); a 3~, final-mente, e que 0 trabalho empiricamente existente e sempre trabalho concreto eprivado (Idem, p. 110).Na medida em que as trocas, supondo a equivalencia, supunham igualmente adeterminacac substancial dos valores.Macherey ja observava: "L'analyse de 1 a valeur s'appuie sur une logique del'expression." Lire Ie Capital I, p. 241. Maspero, 1965.

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    circularidade apontada, toma-se imperativo saber que supostos logicos per-mitem a Marx conviver tao pacificamente com urn argumento tao obvia-mente vicioso. A analise cientffica, a categorizacao positiva que compoe ateoria do valor neste ponto, como que se dobra, forman do uma reentranciaaberta para urn terreno onde as forcas em jogo se vetorializam menos emfuncao de pontos de orientacao na topografia do referente do que segundoas imantacoes logicamente polares do discurso que 0 transcreve. 0 quesignifica dizer que 0 discurso de Marx se articula de tal maneira que 0meta--discurso emerge como que de "per si", votado todo a elucidacao da possivellogic a de segundo grau que - se presume - sustenta 0 que ao nivel dotexto de referencia aparece como pura fragilidade e incoerencia.Os primeiros socorros virao aqui da logica hegeliana que permitiraafirmar que 0 movimento dos precos nao faz mais do que reconhecer, doque tornar "para si" uma abstracao e socializacao do trabalho "em si" jaexistentes. Supoe-se, assim, que a divisao social do trabalho em formamercante nada mais e do que a alienacao de urn sujeito social que .estariapara os diferentes produtores como est a a substancia para a multiplicidadedos para-si na nocao hegeliana de Bspfrito." Nesta linha interpretativa 9 -que encontra inequivocos apoios na obra de Marx - ter-se-ia que afirmarque 0 dinheiro so pode ser padrao de precos porque em-si, e enquantomercadoria-dinheiro, ja e medida dos valores, embora "para si" e paranos s6 se tome tal, efetivamente, na relacao com a sene dos preyosmedics que express a concretamente as razoes de distribuicao dos valoresrelativos.E claro que esta alternativa pode ser recusada e que nela se pode verapenas mais urn avatar disto que 0 jovem Marx chamava a "operacao espe-culativa." Neste caso a analise teria que prosseguir, divorciando-se definitiva-mente do universo representativo, e a categorizacao dos fenornenos dacirculacao mercantil teria que buscar apoio em bern diversas fontes.'? E atese que haveria que susten tar nesta alternativa e que 0 dinheiro pode serpadrao de precos antes de ser medida dos valores, porque e meio de circu-lacao "antes" de ser equivalente geral.!'o que no momento importa frisar, contudo, e que tambern neste casoa descricao dos fenomenos ocorrentes no processo de circulacao de merca-8

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    Cf. "Phenornenologie de l'Esprit", II, p. 10. Trad. Hyppolitc.A obra de H. Reichelt intitulada "A estrutura logica do conccito de Capital deMarx (traducao do original alcmao publicada por De Donato, Bari, 1973)contcm, tanto quanta cu saiba, a af'irrnacao e 0 desenvolvimento rnais sisternaticosdesta posicao,Junto ao que talvez se deva chamar a "filosofia da diferenca" e mais exatamentejunto a "Difference et Repetition" de G. Deleuze.Isto e 0 que sugere, alias, a "segunda" deducao marxista do dinheiro, aquelaque se apoia nao na analise da forma equivalente e de seus pressupostos, mas simna estrutura efetiva do processo de trocas. Cf. Fondements, I, p. 103 e seguintes.

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    dorias estaria estreita e inelutavelmente ligada a urn segundo registro discur-sivo. Porque mesmo que se queira proceder so positivamente - deixandode lado a critica da operacao especulativa - tratando de retomar a analiseno ponto em que a deixara Aristoteles, forcoso sera debruar a elucidacaodas relacoes e objetividades mercantis com a explicitacao do "modelo logico"que permite articula-la, Pois, ainda que seaceite que 0 dinheiro instaurauma comensurabilidade de superffcie e que e , portanto, padrao de pre 90Sporque niio pode ser medida dos valores.P sera inevitavel explicar 0 quetoma possivel e necessaria esta substituicao.Repensar a teoria do valor de modo a mostrar que a nocao de tempode trabalho abstrato e socialmente necessario nao pode ter urn referente 'real assignavel e que deve - muito diferentemente - ser compreendida comouma Ideia reguladora, esta seria a tare fa que se tomaria entao urgente.Nesta linha - e no quadro do' que se deve reconhecer como a modemateoria das ideias" - a idealidade do valor deve ser entendida simultanea-mente como a problematicidade insuferavel da producao mercantil " e comoo motor dos ensaios para resolve-la. ' Relativamerite a concepcao do dinhei-ro, um tal desenvolvimento implicaria em considera-lo como umfalso equiva-lente.l" especie de simulaero destinado a fingir (1

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    Seja, diferentemente, as formacoes ideol6gicas pr6prias as sociedadescontemporaneas. Elas foram e sao objeto de multiplas analises; de precisaoe profundidade variaveis, certamente, mas subsumiveis, quase todas, ou numensaio de explicacao genetica que reduz 0 entendimento dos fenornenosideologicos a explicitacao das determinacoes impost as por urn quadro condi-cionador de ordem infra-estrutural, ou numa estrategia de intervencao polf-tica na qual a analise do discurso ideol6gico s6 pode visar a articulacaoda denuncia de urn engodo e de urn perigo com 0 chamamento a algum tipode resistencia. Nos dois casos 0 discurso produzido escande-se sob 0 signoda positividade, votando-se seja a elucidacao das estruturas sociais, quedefinindo interesses antagonicos forcam a secrecao deuma teia dissimula-dora, seja ao desmascaramento pratico desta operacao, A positividade, noprimeiro caso, encontra seu paradigm a numa concepcao da vida social ondeo campo do problematico fica "a priori" reduzido as clivagens estruturaisforcadas pelo modo de organizacao da producao, ou aos diferendos ernpf-ricos por estas provocados. No segundo, a analise nao pode deixar deencarar a producao ideologica senao como uma arma adversa, a ser des-truida de uma maneira ou outra. A racionalidade do discurso estrategicotorna-se 0 paradigma interpretativo neste nfvel, paradigma que permitirareduzir os "ideologemas" a categoria de recurso de uma parte inimiga,mais precisamente a sua astucia.

    Urn exame mais atento permite ver, no entanto, que a operacaoideologica, alem de articular-se com a questao das "injusticas" a mascarar,responde igualmente a uma necessidade de dissimulacao situada num outroe singular registro te6rico.

    Claude Lefort - a quem se deve urn ensaio recente "de explicitacaosistematica desta questao!? - mostrou como a vicariedade reciproca deideologia burguesa, totalitarismo e 0 que denomina "ideologia invisfvel",no principio de substitutibilidade que perrnite reconhecer como que ummesmo veio em cada uma destas formacoes, revela-se um problema daideologia que excede os constrangimentos empiricos impostos pelo exercicioda dominacao e pelo que se poderia charnar, paradoxalmente, 0 pudornecessario do cinismo politico. Nao evidentemente que as segregacoes naosejam constantes nos tres tipos de organizacao xocial a que as ideologiasreferidas, respectivamente, se reportam. Mas 0 que Lefort procura mostrare outra coisa. 0 que the interessa e como, nos tres casos, a producao ideolo-gica ao mesmo tempo (ou se deveria dizer 'antes'?) em que procura ocultara discriminacao a dectdei" de modo que seu momento dissimulativo nao

    17 "Esboco de uma genese da ideologia nas sociedades modernas", in EstudosCebrap 10, out-nov-dez 1974, Siio Paulo.Neste sentido Lefort afirma: "Nos dois casos encontra-se negada a articulacaoda divisiio - ados sexos e a das geracoes - com 0 "pensamento" da divisiio,urn "pensamento" que niio poderia ser deduzido desta, visto que esta irnplicadona definicao dos termos ... ; ou, digamos ainda que Marx se recusa a reconhecer

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    pode deixar de pretender cobrir este inconfessavel ato inaugural de divisaodo universo social: A simulacao de uma unidade social imaculada - a cadavez diferente, nao obstante - sendo 0 recurso para isto utilizado. 0 quesignifica dizer que 0 discurso, sendo, pelo menos, co-fundador das grandesdivisoes sociais, tern que ocultar antes de mais nada a si mesmo, a dimensaosimbolica que 0 faz instituinte relativamente a articulacao do social.I?No caso da ideologia burguesa classica, a operacao ideologica con-centra-se em ten tar recompor a unidade da socializacao -- quebrada, funda-mentalmente, pela atomizacao dos individuos sociais e pela concentracaodo poder junto ao Capital - pela enunciacao continua dos principios deurn universalismo e igualitarismo formais. A retorica cabendo, assim, restau-rar uma como que essencia do social - por cima de fraturas e antagonismos,sufocando choro e ranger de dentes.

    o trabalho do totalitarismo e algo distinto. Num certo sentido pode-sedizer que ele trata de realizar 0 objetivo mais profundo da ideologia burguesa,de dar efetividade a uma socializacao plena, onde a irredutivel separacao dasindividualidades e tudo mais que dela decorre tenda a desvanecer-se, dafdecorrendo os ensaios de supressao das separacoes entre publico e privado,Estado e sociedade civil, propriedade privada e propriedade social etc. Masjustamente por isso, porque e preciso urn interminavel trabalho de supressaodas diferencas, porque a militancia exaure-se na tare fa sisifica de impedira ressurreicao continua das particularidades irredutiveis, so por isso e quese pode considerar 0 totalitarismo como uma variante ideologica. Nao fosseesta rebeldia dos singulares que se obstinam em suas diferencas e teriaHegel razao; 20 no qual caso forcoso seria considerar 0 discurso totalitario

    19que a divisao social e tambern, originariamente, a do processo de socializacaoe do discurso que 0 nomeia." A. c., p. 18.. "Enquanto instituinte", diz Lefort, "0 discurso esta privado do saber da insti-tui~ao; ... ", Idem, p. 20.Os paragrafos sobre 0 Estado na Filosofia do Direito de Hegel contern indiscuti-velmente a conceituacao perfeita do Estado totalitario ideal. A "tranquilidade"do conceito hegeliano de Estado apoia-se, com efeito, numa crenca inabalavelnos lirnites do singular e do particular que sao concebidos como sujeitos, a priori,a unidade substancial. Isto permite a Hegel dizer: "L'Etat est la realite en actede la liberte concrete; or, la liberte concrete consiste en ceci que I'individualitepersonnelle et ses interets particuliers recoivent leur plein developpement et lareconnaissance de leurs droits pour soi (dans les systemes de la famille et de lasociete civile), en meme temps que d'eux-memes ils s'integrent a l'interet general,ou bien Ie reconnaisant consciemment et volontairement comme la substance deleur propre esprit, et agissent pour lui, comme leur but final. II en resulte que,ni l'universel ne vaut et n'est accompli sans I'interet particuiier, la conscienceet la volcnte, ni les individus ne vivent comme des personnes privees, orienteesuniquement vers leur interet sans vouloir I'universel; elles ont une activite cons-ciente de ce but. Le principe des Etats modernes a cette puissance et cetteprofondeur extremes de laisser Ie principe de la subjectivite s'accomplir [usqu'aI'extremite de la particularite personnelle autonome et en meme temps de Ieramener a l'unite substantielle et ainsi de maintenir cette unite dans ce principe

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    como a simples reflexao do humano e do social como tais, enfim plena-mente realizados no Estado totalitario.A sutileza da terceira grande formacao ideologica, a propria das socie-dades capitalistas contempordneas, esta em dissociar'" 0 projeto totalitario

    de supressao das diferencas, do exercicio do poder de Estado. Trata-se,num certo sentido, de inverter 0 totalitarismo: nao mais publicizar 0 privadoe socializar 0 individual mas, ao contrario, de privatizar 0 publico e deindividualizar 0 social. A descontracao, a intimidade, a facilidade domesticaem que pare cern conviver e relacionar-se - no espaco aberto e circunscritopelos meios de comunicacao' de massa, bern entendido - todos os agentessociais, torna-se, entao, 0 modelo de uma sociedade sem fissuras onde todasas diferencas passam a explicar-se a partir da racionalidadefuncional- 0queas reduz, presuntivamente, a diferencas ao mesmo tempo necessarias e rasas,incapazes de efetivamente sulcar 0 corpo da sociedade. A separacao entrerepresentacao e realidade, e aqui, obviamente, maior do que nunca.Como quer que seja, 0 certo e que, neste nivel, a analise da ideologiatransgride os limites do positivo, desdobrando-se em obediencia as exigenciasde uma outra dimensao' teorica. E Lefort tern sem duvida razao quandoafirma que ha urn limite incluso na tentativa de pensar "0 social nas fronteirasdo social, a' historia nas fronteiras da historia, 0 homem a partir e em vistado homem". Sendo igualmente indiscutivel que as explicacces empiricas dofascismo e do comunismo chocam-se com urn limite que forca a passagempara uma explicacao meta-sociologica.P posto que, enquanto nao se encararo obsessivo trabalho de controle e homogeneizacao do processo de sociali-za~ao desde as referencias fornecidas pela mais classica filosofia politica,permanecera nesta como que urn ponto cego, uma promessa de sentidoirrealizada.o que talvez nao seja tao pacifico e a localizacao deste limite. Porquee na propria ponta especulativa do texto de Lefort que se pode adivinharuma como que indecisao, pois embora a raiz ultima da "operacao ideologica"seja vista como emergindo da fenda que inevitavelmente se abre entre aenunciacao e 0 enunciado social, entre 0 instituido e 0 "enigma da

    21lui-meme." Principes de la Philosophie du Droit, 260, traducao de A. Kaan,Gallimard, pp. 277-278.Relativarnente e cada vez menos, e verdade, como mostra bern urn trabalhorecente de P. Virilio, "La delation de masse", in "Le pourrissement des societes",10/18,1975, p. 13 e seg.Lefort diz: "0 fascismo e 0 comunismo, repitamos, exigem uma interpretacaometa-sociologica. Toda tentativa para analisa-los como forrnacoes socio-hlstoricasempfricas choca-se (sublinhado por mim, J. C.) - por mais rica que seja a docu-mentacao - com urn limite, pois ignora que e a questao do ser do social, dohistorico como tal, que esta posta em jogo no totalitarismo." A. c., p. 41. Enoutra passagem: "Ora, foi tomando consciencia desse limite que nos sentimosincitados a reformular as condicoes de uma analise da ideologia." Idem, p. 20.

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    instituicao", paralelamente ha uma afirmacso da recorrencia das divisoe:sociais que tambem sao vistas como "motivo" das diferentes formas dedissimulacao. Neste ponte, 0 que se deveria discutir e se nao se devesubordinar - inversamente ao que parece ser a tendencia do autor - aprimeira separacao IIsegunda e dizer que 0 discurso sobre 0 social nao podecoincidir com 0 discurso social simplesmente porque este nao tem efeti-vidade, porque ha que visualiza-locomo um limite, como a Ideia reguladoradas multiplicidades humanas, inelutavelmente dispersas e ja desde sempredivididas.0 que permitiria explicar a distancia, continuamente reposta, entrerepresentacao e efetividade como efeito do espaco insuprimivel que apartaa problematicidade insuperavel da Ideia de socializa9ao de seus "casos desolucao", ja desde sempre demasiado precarios e provis6rios.23Seja ainda a analise skinneriana do comportamento, ou os paralogismosda pSicanaiise,24ou ... , os exemplos poderiam multiplicar-semais ou menosindefinidamente. 0 importante a notar, todavia, e que 0 discurso ftlos6ficocontemporaneo aparece sempre assim, como um subito e necessario desviona ordem de constituicao de um discurso positivo. Como se este de repentefalhasse, seja por claudicar lpgicamente seja porque cego para uma dimensaoessencial do campo de objetividade que quer elucidar, seja enfim porqueredutor do espectro deproblematicidade que quer dirimir.Nao ha nenhuma regra que permita a localiz~ao "ex-ante" dessespontos criticos. Eles sao como acidentes, irrupcoes intempestivas. Punctuaispor definicao e s6 obedientes II sistematica de sua aleatoriedade."Por que fil6sofo?", neste contexto, parece ser uma interrogaeaoimpertmente, pois pressupoe razoes onde nao himais do que imperiosidadesfacticas. ''Por que filosofo? " sugere uma "questio juris" que as mil mortesda filosofia tomaram irreversivelmente caduca. A questao que nos resta econstitutivamente factual, exprimfvel, antes, num "Fil6sofo como? '\querestaura a inelutabilidade do discurso filosofico pelo relato de um aconte-cimento.Guardemo-nos, no entanto, de qualquer pieguice na compreensao doque sejam estes acidentes: nao tern eles0menor trace de milagres. Sao assim,simplesmente, como quedas que nos derrubam numa especie de quartadimensgo do espaco te6rico.Axiomatizar as propriedades deste ultimo seria, sem duvida, uma tarefaimportante; "no momento", contudo, parece nao haver meio de tee mais

    Deleuze observa a proposito da Ideia de sociabilidade: "Soit 0 1 a multiplicitesociale: elle determine la sociabilite comme faculte, mais aussi I'objet transcendantde la sociabilite, qui ne peut pas etre vCcu dans les societes actuelles oil lamulti-plicite s'incarne, mais qui doit l'etre et ne peut que l'etre dans l'element dubouleversement des societes (11savoir simplement la liberte, toujours recouvertepar les restes d'un ancien ordre et lespremices d'un nouveau." O. c., p. 250.cr. a analise de Giannotti in Estudos Cebrap 9; ou 0 cap. II de "L'Anti'Oedipe",Minuit, Paris, 1972.

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    do que urn reconhecimento intuitive da diferenca entre isto que chamei 0"positive" e a "formalitas" do filos6fico. Do mesmo modo nao lui maneirade legitimar "a priori" as irru~oes deste Ultimo, tudo devendo resolver-secasuist icameate na verificacao, sempre "ex post", dos efeitos de inteligi-bilidade por ele provocados.

    Nesta circunstancia nao estranha que 0 "oftcio" de filOsolo tende are sum ir-se n o exercicio d e um a cla ndestin id ade d esen volta que faz da ousadiae da auto-exibicao - da desfaeatez, quase diria - 0 disfarce indispensavel asobrevivencia num mundo ubiquamente hostil,De qualquer modo, e indiscutfvel que a histona, ao destruir as formascanonicas da filosofla, desterritorializou-a, tomando-a imprevisfvel e inloca-lizavel, arredia e preca ria , em b ora ainda - talvez mais do que nunca -vertiginosa:Situa~ao que, tudo bern pesado, talvez seja menos negativa do que se

    tenderia a pensar, posto que vale para ela algo de analogo ao que dizia Ortegasobre 0 exercfcio do pensar:"Pasar de moda es fatal para 10 que no es sino moda, mas para una

    realidad sustantiva, esencial y perenne no es coyuntura deprimente sentirque pas6 ya de moda. Le parece que en aquel tiempo de su esplendor, cuandotodo en tomo Ie halagaba, vivi6 enajenada de sf misma y que es ahora,al gozar de la general desatenci6n, cuando reingresa en sf propia, cuando esmas depuradamente 10 que es, tanto 0 mas que en la otra hora egregia, en suhora inicial, cuando era s610 germinaci6n secreta ignorada, cuando aun losdernas no sabfan que existfa y, exenta de seducciones forasteras, vacabas610 a ser S I misma." 2S

    JOSE ARTHUR GIANNOTfIPor que esta obsessao que nos obriga a debruear sobre escritos alheiose, durante semanas, meses; anos, articular palavra com palavra a fun de

    construir urn edificio de pensamento, onde possamos caminhar como secortassemos uma cidade estranha e familiar? 0que nos leva a gastar grandeparte de nossas vidas junto a uma escrivaninha, elaborando nosso discursopor meio do discurso do outro? 0 romancista emprega seu tempo para criarurn mundo imaginario; seus personagens adquirem independencia a ponto decobrar do autor 0 direito de ousarem viver seu drama ate 0 fun. Mas tudoisso sio fintas de escritor, que marca os personagens independentes com suapr6pria assinatura. 0 filesofo. entretanto, parece consumir filosofias alheiasque, contudo, nao sio destrufdas por esse consumo, ja que por ele sobre-vivem. Suporte do discurso alheio, 0 ftl6sofo empresta sua voz fiel e defor-

    In "Apuntes sobre e1 pensamiento", p. 1, Revista de Occidente, Madrid, 1959.144

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    mante aos textos chamativos do passado, com 0 intuito de elaborar urn novodiscurso que foge de sua subjetividade para apresentar-se como urn pensa-mento objetivo.

    Nesse exercicio se da urn jogo de distanciarnento e de intirnidadecom 0 mundo. Os acontecimentos chegarn ate n6s filtrados pelas diversas6ticas armadas por discursos de terceiros. Tudo se passa como no arnor deSwann que, incapaz de apreender diretamente a mulher querida, chega ateela por intermediaries amaveis, reconhecendo em seus cabelos a teia tracadapor urn pintor familiar; em seu perfil, 0cunho de urn medalhao renascentista;em seu corpo, os volumes sugeridos por uma escultura. Com a diferenca deque nao existe a mulher desejada, que para 0 fil6sofo a substancia do mundose consome na sucessao conflituosa de seus simulacros e interpretacoes. S ecom isso perde a fe perceptiva, 0 solo rigido, 0 trampolim para a ayao, ganhaa familiaridade com 0 mundo do espfrito, desse universo que se resolve emleituras. Trabalha urn texto classico, fala dele numa sala de aula, terrninaproduzindo urn novo texto, urn comentario ou nova doutrina. Outros viriopara retomar esse texto e com ele repetir 0 mesmo percurso. Segundo assituacoes historicas, esse circuito da reflexao filosoflca e mais ou menosamplo. Entre nos, principalmente por causa da burocratizacao da culturauniversitaria, 0 filosofo escreve alguns exemplares de sua tese, que sao lidospor seus colegas, os quais se encontram assim em condicoes de reiterar 0mesmo percurso do acanhamento. Isto porque a ilusao da comunidade desabios se toma viavel gracas ao trabalho de outros mais aferrados aos enganosda percepcao, responsaveis pelas condicoes materiais da reflexao filosofica,~ sabido que a filosofia sempre se alimentou do ocio. Dai nossa pergunta:o que perrnite 0 lazer para 0 nosso atual filosofar?

    Ao contrario de outras epocas, 0 filosofar de hoje e em geral trabalhoremunerado. 0 filosofo e urn funcionario, poucas vezes urn escritor, vivendode sua propria producao. Goza assim de urn lazer ritmado pelo livro de ponto,pelos horarios das aulas, onde se obriga a comunicar, com rigida periodi-cidade, 0 resultado de suas investigacoes livres. Qual e 0 misterio que levauma sociedade modema, quase sempre tecnocrata e autoritaria, a financiara vagabundagem bern comportada do fil6sofo? Esse financiamento, ademais,vem pelo Estado, pois sao raras as fontes privadas onde possa obter recursos.o filosofo de hoje e quase sempre urn professor, a s vezes aposentado. Consi-derando essa situayao, convem desconfiar de que, a despeito dos amuosentre os filosofos e 0 Estado, este deve tirar algum polpudo beneffcio aoassumir 0 risco de sustentar possiveis rebeldes. Por que assegura 0 lazernecessario a filosofia, chegando a ponto de transformar os produtos desselazer num instrumento de educacao? Nao vamos dar uma resposta a essapergunta provocativa, mas considerar apenas urn de seus termos.

    Foram-se os tempos em que a teologia guardava ciosamente os mis-terios especulativos e os filosofos se apartavam da sociedade para seconsagrarem ao sacerdocio da reflexao. Hoje filosofia e materia de ensinopublico, a qual, se na verdade nao guarda mais 0 lugar privilegiado de anosatras, ainda ocupa muita gente. Que pretende essa massa de estudantes do

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    fllosofar? Deixemos de lado os que chegarn aos cursos de filosofia porquenao encontrararn vagas ern outros setores da universidade; para eles a filosofiae passo intermediario ern vista de outros exercicios da cultura, 0 que animao aprendiz do filosofar? Dentre os mais diversos motivos e possivel apontarurn que faz dele desde cedo urn filosofo: ambos possuem aquele distancia-mento do mundo e aquela intimidade que so po de ser obtida pela via dareflexao. Neste sentido, nao se ensina fllosofia, mas se alimenta 0desabrocharde uma recusa secreta, uma necessidade de recuo, de encontrar urn carninhoprodutivo para urn estranhamento atavico, 0 ensino da filosofia vern con-formar e socializar essa marginalidade, transpondo-a do real para 0 imaginario.Nao trata apenas de familiarizar corn uma linguagem cifrada que naoresulta, ao contrario da sirnbologia cientifica, na transformacao das coisas,numa tecnologia. Antes de tudo, cabe-lhe integrar 0 rebelde virtual numacomunidade de rebeldes Imaginaries que, de fato, trocam informacoes,competem entre si acirradarnente, esgotando seu empuxo no enorme esforcode manter de pe essa sociabilidade fantastica. Os filosofos competem porurn emprego. Ademais, e conhecida a temperatura de urn departamento defllosofia, aquecida pelos atritos internos e pela ruptura corn a sociedadearnbiente. Todos se lembram do papel desempenhado por esses alunos nosmovirnentos estudantis. No entanto, a sabedoria estatal consiste ern perrnitiraos estudantes se esquentarem precisarnente pela fllosofia, ern deixar escaparas forcas reprirnidas pelo destampatorio do discurso, Nao hi duvida de que,como tudo, esse processo e faca de dois gumes, pois 0 discurso rebelde seespraia e mobiliza. Mas, enquanto nao se propuser como organizacao mobili-zadora, as palavras radicals serao levadas pelo vento sem atingir a raiz de suapropria rebeldia. Porquanto 0 discurso filosofico mantem comprornissos cornsuas origens, com 0 Estado que 0 fmancia e com a marginalidade que 0alirnenta. E gracas a isso 0 Estado se apropria dessa marginalidade parasocializa-la ao nivel do imaginario, obtendo assim a integracao efetiva dospossfveis marginais. E bern verdade que 0 Estado encontra filosofos prove-nientes das mais diversas origens. Uns fizeram de sua marginalidade pessoala linguagem da classe dominante, continuando a cultuar os antigos deuses dateologia, Outros se puseram a service da contestacao do sta tus q uo . Mas naoirnporta tanto que cada corrente da filosofia represente organicarnente certosgrupos sociais. Todas essas representacoes, enquanto produto, sao igualizadase cooptadas pelo mercado e pelo ensino oficial.Como fugir a esse engodo? Ern primeiro lugar, mantendo-nos fieis anosso distanciamento, prolongando nossa investigacao ate apreender cada elosocial que a sustenta, conhecendo, enfim, 0 que esta permitindo a ilha denossa sociabilidade e as consequencias neutralizantes de nossas palavras. Adespeito da peculiaridade de nossa situacao nao estarnos sozinhos. Tambemos cientistas se encontram num impasse. Durante seculos foi posstvel acreditarque 0mere exercicio do pensarnento teorico se justificava por si so, ficandoa cargo dos cientistas aplicados 0 trabalho sujo de imprimir a uma teoriaesta ou aquela direeaopratica. Hoje sabemos que a disputa entre as variasteorias nao se resolve a nivel da simples discussao cientifica, que as146

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    expenencias que eliminam algumas dependem de financiamentos conside-ravels e, portanto, de uma politic a cientifica capaz de estabelecer prioridades.E nao e so isso. Sabemos que possuimos mais teorias do que necessitamos. Apartir do momenta em que a teoria tomou como criterio 0 efetivo, que foiproposto como urn intermediario da a~ao, tambem ela caiu sob a critica das~oes. Hoje temos demasiada ciencia e poucos cientistas verdadeiros. Dema-siada ciencia no sentido de que sao gastos milhoes em experiencias que vernapenas refinar teorias ja estabelecidas, quando falta dinheiro para a saudepublica, a protecao ao meio ambiente, a habitacao popular e assim por diante.Poucos cientistas no sentido de que grande parte deles e incapaz de tentarcompreender cientificamente 0 ambito de sua propria pratica teorica, Dai anecessidade de que a ciencia e a filosofia, na medida em que ja sao umapolftica na significacao mais ampla da palavra, descubram as aliancas firmadaspor sua propria pratica, tornando-se assim capazes de contrair vinculos maisconscientes. Houve urn tempo em que 0 filosofo imaginou que 0Estado seriamuito mais perfeito se lhe coubesse a direcao dos neg6cios public os. Asclasses dominantes, porem, nao foram iludidas e preferiram confiar a repre-sentacao do Estado - a mera representacao, na verdade - a individuos maispraticos e menos escrupulosos, Hoje a filosofia nao procura mais principios;cada vez mais se tern presente que nao existe a filosofia, mas uma dispersaode filosofar numa miltiplicidade discreta. Nao nos convenee 0 esforco deregredir a urn sistema imperialista nos moldes do seculo passado. No entanto,cabe lembrar que 0 jogo das filosofias nao se esgota ao nivel da disseminaeaodo discurso, que as palavras de cada filosofo se sintetizam pelos canais queas divulgam, em particular, pelo Estado que as transforma em meio de domi-nacao. Se as palavras se tornaram dispersivas, suas consequencias continuamsintetizantes. Os filosofos precisam enfrentar, nao 0 caminho da aseese, maso das consequencias de suas proprias reflexoes. Em primeiro lugar, que 0ensino da filosofia e uma forma de controle social, polfcia que confina aestreitos limites um distanciamento que poderia transformar-se no germe deuma rebeliao efetiva. Mas, para chegarmos a essa tomada de consciencia,necessitariamos deixar de ser meros filosofos, profissionais da reflexao, paraparticipar conscientemente da reflexao objetiva que constitui 0 ceme dosfenomenos sociais. Muitos de nos fomos responsaveis pelas consequenciasmortais de urn radicalismo verbal que se transformou na marginalizacaoefetiva duma juventude, crente de que poderia subverter 0 poder na basede uma identificacao imaginaria com a vanguarda da historia, Herdeira queela era de quem via 0 espfrito absoluto andando a cavalo. Tenhamos 0cuidado para que a negacao verbal do ensino-controle nao tenha conse-quencias funestas. Agora parece mais conveniente comecar a arrumar nossapropria casa e tratar de alterar as condicoes de nosso trabalho intelectual. Adesmesurada infla~ao de publicacoes esta indicando que ninguem e maiscapaz de acompanhar todos os principais trabalhos produzidos em sua area.Precisamos do outro para selecionar os textos; antes da leitura e mister 0dialogo. A partir desse primeiro eIo, caminhar junto com nossas palavras,rejeitar a aula como tarefa isolada da publicacao ou 0 curso apenas como

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    prenuncio do livro, para tentar uma relacao mais intima com seu publico,conformando-o e sendo conformado por ele. Trata-se, em suma, de recuperaro clima da Academia ou do Liceu, empregando todas as tecnicas da cornu-rucacao moderna, abandonando obviamente 0 intuito de preparar reis-filo-sofos para enfrentar de vez a tare fa de estimular 0 nascimento de cidadaoslivres. Estaremos entao pouco a pouco nos apropriando de nossos propriosinstrumentos, de nossas palavras e seu ambito, de nosso convfvio, de nossasinstituicoes, ate desaparecer a rigida separacao entre filosofos e nao-filosofos,quando a teoria estiver ligada ao exercfcio da crftica racional. So assimdeixaremos de ser voyeurs da liberdade e servos do poder.GERARD LEBRUN

    A questao que nos e proposta, de uma forma tao generosamente inde-terminada, s6 posso encontrar urn sentido, qu e a /id s n iio m e sa tisfa z: por queha urn mercado filosofico (manuais escolares, colecoes filos6ficas etc ... )? Porque 0 filosofar, como instituicao cultural, que em alguns parses se centra emtorno de urn service publico: a Universidade? Este senfido nao me satisfaz,pois logo nos conduz a uma investigacao socio-cultural que, adespeito de seugrande interesse, transforma inevitavelmente a questao numa outra, muitorestrita: por que a partir do seculo XIX 0 fllosofar se institucionalizou epassou a ser subvencionado pelo Estado? Mas acontece que a recusa dessainterpretacao derrapante suscita outra questao: por que nossa primeira ideia,quando somos argiiidos a proposito da finalidade do filosofar, consiste emnos interrogar sobre a finalidade de uma instituidio? Aqui a resposta parecefacil: nao ha outro meio de compreender, sem arbftrio, 0filosofar n o sin g ula r.Citem-me outra rubrica alern da sociologia da cultura para dar conta desse sin-gular - de minha parte, eu nao a encontro.. Nosso filosofar institucionalizado consistiria na forma moderna da"philo sophia perennis"? Mas como ... Os manuais podem muitobem ten tarfazer com que os jovens das classes finais do curso secundario acreditemserem eles descendentes de Socrates; mas neles apenas vejo sobrinhos deVictor Cousin. A Agregation de Philosophie, em Franca, tern pouca coisa aver com a questao sobre 0 Ser e muito com 0 aprendizado de uma retorica ede urn saber minimo que garantem a banca que 0jovem professor nao aborre-cera demasiadamente seus alunos, nem lhes did frivolidades. De que serviriaevocar aqui as sombras dos pensadores gregos? Imaginem Socrates ouvindouma liyao de Teeteto sobre a "Inducao" ou de Alcibiades sobre 0 "amorcomo modo de conhecimento"?

    Passemos da filosofia escolar para a literatura filos6fica: outra razao nosproibe de atribuir uma significacao que nao seja socio-cultural a expressaosingular do "filosofar". 0 que existe de comum entre urn estudo de filosofiaanalitica e a meditacao heideggeriana sobre uma palavra arcaica? A filosofianao possui outra unidade alem daquela de urn arquipelago. E certos fil6sofostern tanta consciencia dessa disseminacao de territ6rios que tentam desespera-148

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    damente cornpensar por urn alinhamento doutrinal sua inevitavel especiali-zacao - neste tempo em que se apagam todos os grandes sistemas de referen-cia (como 0 tomismo) tentam colocar-se sob a dependencia de urn pensadordo seculo XIX (Marx, Freud, Nietzsche), ou tomar uma ciencia humana(economia, linguistica) como paradigma de suas pesquisas. "Marxismo","freudisrno", "estruturalismo". Essas etiquetas deixam transparecer contudoque ainda nao se renunciou a grande vontade de sistema dos velhos tempos.A realidade, infelizmente, e mais melancolica. Sob a capa do "-ismo" assumido,o que fazem os melhores desses fil6sofos? Quer hist6ria da filosofia (bonscomentarios de texto sobre 0 autor predileto), quer urn trabalho monograficoa respeito duma ciencia humana. Sem duvida ainda se permanece "filosofo",pois nao se esquece, de tempo em tempo, de invocar grandes conceitos e pedirpela Wissenschaft unit aria (reconstituindo nos lugares em branco e nas lacunasde Talmud). Mas 0 que significa esse compromisso com a "filosofia"? Parece--me que a razao de ser desta obstinacao em se dizer "filosofo" reside inteira-mente nesta distancia - a qual nao se quer renunciar - entre uma pesquisa,fecunda porque localizada, e a pretensao a urn saber absoluto (ainda que esteseja util aquela como as ideias sobre 0 casamento 0 foram a Russell quandoescrevia os "Principles"). Isto, por certo, no melhor dos casos. Deixemos delade os ingenues - espiritualistas de preferencia - que teimam em dogma-tizar como em 1900 - aqueles que continuam a determinar 0 ser da lin-guagem ou do espacosobre a base cientffica de alguns "Que sais-je? ", ouainda tracam afrescos hist6ricos que fazem a alegria dos historiadores.A fenomenologia foi 0 ultimo sobressalto de urn discurso dogmatico queainda teve estatura. Ora, 0 que resta hoje dela, uma vez a moda passada, naEuropa, pelo menos? resta de "Humanismo e Terror", este born livro deMerleau-Ponty, depois de lermos 0 livro de historia de Mme. Annie Kriegelsobre os processos de Moscou? Nada mais do que um romance engenhososobre 0 bolchevismo. Por certo, urn livro ainda util, porquanto fomecediretrizes conceituais e um estilo de interrogacao, mas nada que pareca a urnsaber, a menos que a teoria dos turbilhoes seja ainda tomada como urn deles.Seria facil aumentar esse balance: basta uma geracao para que 0 filosofar quenos apaixonava se reduza aquilo que Arist6teles colocaria entre os discursos"logikoi". Nao ha pois esperan9a alguma de que urn aparelhodoutrinal possalegitimar 0 singular: 0 filosofar, se esta palavra deve designar um saber.Enquanto fil6sofo, 0 fil6sofo dispensa apenas uma inteligibilidade efemera esua Wissenschaft (seja qual for 0sentido que se empreste e 0cuidado para naoo deixar contaminar pelo modele das ciencias positivas) nunc a e mais do queuma promessa nao cumprida.

    Por que po is a filosofia? Por que urn falso saber? - Questao impru-dente. Tomemos cuidado aqui para nao nos-perdermos, Acabo de pronunciara palavra "logikos" que, em Aristoteles, significa "verbal, vazio". A despeitodesse sentido pejorative, porem, 0 argumento "logikos", para 0 Estagirita,nao e sinonimo de "sofistico". E urn raciocinio que nao diz respeito a natu-reza da coisa, ou uma investigacao que nao parte de principios pr6prios acoisa, Mas tal raciocinio e tal Investigacao possuem direito de cidadania no

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    saber aristotelico. 0 nao especialista tern 0 direito de interrogar "logikos"; 0especialista sobre a validade de seus princrpios; 0 dialetico, enquanto nao sepoe a concorrer com 0 cientista, tern 0 direito de falar "logikos" sobre todasas coisas ("kata panton"), Ese essa dialetica, mais proxima da retorica do queda episteme, nunca determina 0 universal, circunscreva-o negativamente,capta verossimilhancas, orienta-nos na fixacao dos principios. M. Aubenquemostrou como, na Metafisica, a pratica do filosofo se eonfunde com a dodialetico, Nao se trata aqui, porem, de investigar donde provem essa se-melhanca, Observemos simplesmente, no que eoncerne a nossa problematica,que Aristoteles e 0 primeiro a dissociar - com muita insistencia, alias - os"mathemata" e a investigacao do universal: antes dele, pitagoricos e plato-nicos, esses areaicos, haviam confundido os dois pIanos. A 'partir dai afilosofia pode ser investida duma vocacao bern determinada: fixar a essencia,delimitar as regioes eideticas, discernir os princfpios - entendendo-se que, noterre no, nenhuma episteme poderia substituf-la, Se 0 filosofo tern direito adialetica e ao "logikos" e na medida em que proeura 0 universal por seusproprios meios, em que seu metoda nada tenha aver, seguramente, com 0metodo. de uma diseiplina regional, porque somente a ele e unieamente a eleeabe constituir aquilo a respeito de que fala 0 tecnico "ingenue". E flagranteque essa originalidade do filosofico em relacao ao matematico tambem seapresenta tanto ao surgir da metafisica especial quanto na Crftica kantiana,que tange os sinos funebres dessa ultima. Ainda aqui e por felicidade que 0filosofo se embasbaque diante do conceito de triangulo, ou que seja ineapaz deuma definicao ao iniciar sua pesquisa: e sinal de que seu saber nao e homo-geneo ao saber que a mathesis parecia ter rnonopolizado (e que as cienciaspositivas logo vao substituir). E sabemos que se, com Aristoteles, a dialetica,arte de interrogar e investigar a margem do saber, resume-se num instrumentolegitimo do fil6sofo, a identificacao entre dialetico e filosofico sera totaldepois de Kant - e, em parte, gracas a ele. - A filosofia, urn falso saber? Nao,por eerto; os filosofos tomaram suas precaucoes: e urn saber homonimo anossos saberes "finites", "positives", "ingenues".

    Nao estou pensando aqui simplesmente em Hegel, mas em quase todosos grandes nomes da fllosofia modema depois de Kant. Que se tomem os"idealistas alemaes" (Naturphilosophie contra ciencia), os "desmistiflcadores" .(Marx contra a economia politica), a fenomenologia (Husser! e as cienciaspositivas): surge por toda parte a mesma preocupaeao de situar-se numdiscurso que, por princtpio, nao possa ser atingido pelas objecoes fomentadaspor uma ciencia positiva, a mesma pretensao de operar uma totalizacrao, umaeritica ou uma fundacao, que nao mais prestem contas a urn c6digo designificacrOesj a disponivel, inclusive, seguramente e talvez sobretudo, a 16gicaformal (Fiehte, Hegel, Husserl), Existem excecoes ilustres, eu 0 sei. Conte eBergson, notadamente, tiveram a modestia (a honestidade ou a imprudencia)de. falar a linguagem do homem eomum, daquele que pode ser ehamado aprestar contas a ciencta (comparemos, por exemplo, a eoragem infeliz deDuree et Simultaneite com esta obra-pnma de esperteza epistemol6giea que e150

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    a Krisis de Husserl). Mas em geral, enrolado em seu discurso, protegido poreste corpus de significacoes que uma sintaxe original articula, 0 "filosofo" setornou ainda mais imperrneavel do que era 0 sofista antigo: toda crfticaadvira da "ingenuidade" ou da "finitude", a mais tfrnida objecao sera sintomado "ideologico". Quem jamais exprimira todos os recursos dessa ret6ricainexpugnavel que se forjou no turbilhao verbal do '.'idealismo alemao"? - Afilosofla, urn falso saber? Percebemos que nao se trata mais disso. Urn falsosaber pretende possuir uma resposta para tudo. 0 "fil6sofo" (vejam nossosmarxistas de hoje) se coloca na condicao de nao ser contradito a proposito detudo 0 que afirma, de nunca ser desmentido por urn resultado cientffico (coma matematica as vezes ocorrem, na verdade, desacertos: Husserl e 0 teoremade Godel).

    "Por que filosofo? ", nessas condicoes? A resposta esta a nosso alcance.Muito cedo 0 aprendiz-filosofo percebe os recursos dessa maravilhosa disci-plina. Nunca acreditei que urn estudante pudesse orientar-se para a filosofiaporque tivesse sede de verdade: a f6rmula e vazia. E de outra coisa que 0jovem tern necessidade: falar uma lingua da seguranca, instalar-se numvocabulario que se ajusta ao maximo as "dificuldades" (no sentido cartesia-no), munir-se de urn repertorio de "topoi' - em suma, possuir uma ret6ricaque the perrnitira a todo instante denunciar a "ingenuidade" do "cientista"ou a "ideologia" de quem nao pensa como ele. Qual melhor recurso se lheapresenta senao tomar emprestado urn discurso filosofico? Nao vejo outromotive para 0 atrativo ainda potente que exerce a tilosofla quando deixa deser uma "doutrina" oficial (do Eu, do Mundo, de Deus). E uma moda ou vivepelas monas, podemos dizer. Sim, sem duvida. Mas, desde que deixa deser ensinada como verdade de Estado, separa-se a filosofia do fascinio poruma linguagem que, de urn so golpe, da a seu usuario - a custa de umaerudicao hist6rica ( a s vezes muito leviana) - a seguranca de uma dominacaointelectual, urn meio de orientar-se no pensamento? No final das contas, "0Filosofo" trazia outra coisa a Santo Tomaz? Nao desprezemos, pois, demasia-damente as modas: a todos nao e dado escrever a Suma, mas quem naotern necessidade de uma t6pica?- Assim, ca estamos Desde 0 infcio, desconfiava-se onde querfamoschegar, demolidor, melffluo A filosofia para voce e uma topica, uma reto-rica. A deformacao do espfrito que 0 ensino universitario dispensa, voce atransforma na essenciado filosofar. Voce ainda nao digeriu sua agregacao.

    - E voce esta certo de nao a ter assirnilado demasiadamentebern? Acaba de pronunciar a palavra essencia; mas quando pretendi eudelirnitar uma essencia? Perguntarn-me: "por que fil6sofo?" - e, emresposta, me pergunto por que me deram 0 gosto de determinar as essencias,por que logo retirei disso urn prazer tao vivo. Acontece que neste tempo, noque me diz respeito, eu me acreditava marxista, entretanto, como ainda naose ensinava a "ler" 0 Capital , era preciso recorrer a s "condicoes transcenden-tais", lancar mao do "Conceito" hegeliano, tao comedo. Para articular ahist6ria - do mesrno modo, para contrabalancar - convinha recolher algumasessencias materiais no coracao do vivido. Bagagem de bazar, admito. Mas que

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    cada filosofo licenciado opere urn sincero retorno a seu passado; muitosencontrarao uma "Erziehung" mais nobre? E no curso desta, entretanto, queaprenderam assirn a marcar 0 senti do de todas as palavras traduzidasdo alemao que perrnanecem seus pontos de referencia ("para si", "em si","cientificidade", "lei-de-essencia", "universal concreto" ... ). Assirn dizendonao insinuo que nossa formacao nos transforrnou em papagaios: nao, ela fezde nos ... filosofos. Nao pre tendo dizer que nos mergulhou num elementorarefeito, longe do "concreto" (onde pode este se alojar?): nao, ela noseducou - segundo 0 acaso das influencias e das leituras - para a inteligibili-dade. Deu-nos 0meio de discernir uma "Gesetzmaszigkeit" onde os ingenuesso veern fatos diversos, acontecimentos amontoados.

    E querem uma prova? Consultem urn verdadeiro filologo sobre a sorteda palavra "physis" ou da palavra "aletheia" ou ainda urn historiador dojudaismo sobre a historia de Moises , Ficarao decepcionados: hi nada mais hado que sentidos heteroclitos que se encavalam - aqui, nada mais do quepresuncoes, muitas vezes contraditorias (em ciencias humanas, 0 rigor conduzfreqiientemente a constatacao da dispersao, da desordem). Em seguida, abraHeidegger ou Freud: encontrarao 0 palacio de Versalhes no lugar dafloresta virgem - la, urn sentido unfvoco do qual seguimos 0 declfnioe a latencia - aqui, uma intriga bern montada. Entao, "por que filo-sofo? " - porque ate mesmo as criancas, dizia Hegel, gostam de encontrarurn encadeamento e uma conclusao nos contos. Descrever a filosofia comouma retorica consiste pois somente em comentar 0 ideal de inteligibilidadeque ela difunde. Insistir na necessidade retorica a que responde para 0adolescente ocidental nao significa despreza-la. Comprometidos com essadirecao, alguns acabam efetivamente por transformar-se em "Wissenschaftler"bastante retorcidos, sabendo localizar uma "Gestalt" ou urn "Zusam-menhang", assim como seus maiores - e que praticarao a "begriinden" talvezmais habilmente do que eles (aqui e preciso falar alemao), Nao me cabe po is acensura de caricaturar a filosofia. Notadamente, desde que Kant nos mostrouos perigos que nos preserva a Deducao transcendental (se a Terra, num unicodia, passasse de urn clima torrido para 0 glacial), filosofar consiste principal-mente em expulsar 0 acaso, decifrar a todo custo uma legalidade sob 0fortuito que se da na superffcie. Especificamente filosofico e 0 problema decompreender 0 funcionamento de uma configuracao a partir de uma lei quelhe e infusa (e preciso que haja uma), con forme a ordem que se exprime nela(e preciso que' haja urna) - quer se trate de compreender a possibilidade dojufzo a partir da afinidade dos materiais sintaticos ou, de maneira maisdesembaracada, a sociedade feudal a partir do moinho de vento ... Cada vezque a "physis" da coisa contenha uma unificacao a priori ou urn encadea-mento "logico", 0 fil6sofo triunfa.Ate af nada de grave; nada que deva levar-nos a desconfiar de umaginastica para 0 intelecto tao formadora como a algebra ou a versao latina.o desastre aparece quando a procura do universal e levada a serio - e quandoos usuarios do codigo raramente tenham a lucidez de tomar 0 "transcen-dental", 0 "Conceito" ou a "infra-estrutura" simplesmente como pecas deste152

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    jogo apaixonante da linguagem que e 0 jogo do sentido a todo custo. Longede mim querer aqui iniciar urn processo de Intencoes. Pergunto-me contudose a questao que nos foi proposta nao supoe que 0 filosofar seja uma coisaseria, porquanto nao se perguntaria 0porque de urn jogo ... E belli verdadeque, como fil6sofos, nao mais sabemos jogar, como sabiam os gregos. -Retomemos Arist6teles. Nao temos vontade de perguntar-lhe: "por queftl6sofo?" Primeiro, porque no-lo diz em algumas palavras, no umbral daMetafisica:para nunca se admirar com a incomensurabilidade da diagonalmas unicamente com o-fato de ela tersido tomada como adrniravel em suma,convencer-se de que a Justica reina nas coisas. Depois, e sobretudo, porquesua pratica descuidada desmente muitas vezes 0 carater serio do objetivo."Ananke", diz ele, tern este sentido, depois outro e mais outro; tentemos este'primeiro que talvez reuna todos e vamos veT 0 que da. Tal e 0 estilo dessejogo. Ou ainda:diga-me, qual f6rmula convem a todos os tipos de alma? deminha parte nao a vejo; G6rgias teria razao? Deixa-se que a dispersao atinjaseu mais alto grau, depois, quando tudo parece perdido, se entreve que apesarde tudo ha urn meio de dominar a desordem, - que Murn p610 unificador detodos os usos da palavra "saude". E, cada vez que se desfaz 0 espedacamentodas signiflcacoes, responde-se por meio do fato a questao: "por queftl6sofo?" Mas 0 jogo e de tal modo bern levado que nao se tern vontade deinterrompe-lo com esta questao indiscreta.

    Mas, chegando a este ponto, 0 historiador da filosofia constata que Mmuito ele se separou do fllosofo, Em virtude de ter freqiientado os alqui-rnistas do Logos unificador, criou 0 habito de nlio ver mais do que 0 tema,infinitamente renovavel, de urn exercfcio intelectual. Nao pretende mais porsua conta retomar a pesquisa do universal: ele nao e mais filosofo. 0 queganhou por ter atravessado este pais fantastico? Pois bern, isto justamente:urn dia sentir 0 desejo de quebrar seus brinquedos, romper 0 puzzle - e porfim exclamar: 0 que importa 0 filosofar? 0 que lhes serve, voces queteimam em se transformar nos instrumentos da repressao ocidental, de seusuniversais, de suas leis de essencia, de seu aparelho de racionalidade - vocesauxiliares da seguranca moral? Esta e a questao que ele poe de agora emdiante aqueles que pretendem residir em alguma "Verdade" ou alguma"Justica". Entao, que se meca quao uma vez mais a vitoria da antifilosofia

    "deve ser comp/eta - ele que sempre permanece, junto de toda a huma-nidade, na of ens iva e ndo possui qua/quer estacda fixa, nenhumaresidencia, que numa ocasido qua/quer seja obrigado a defender"(D. HUME. 89 Dialogo).

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    R UBENS R OD RIG UES TOR RES FILHOO. DIA DA CA~A

    o sentido da palavra "fil6sofo" nao e univoco. Toma-lo como se fosse,como se estivesse em questao uma mesma essencia quando se trata do fisiologopre-socratico, do teologo da idade media ou do iluminista do seculo dezoito,por exemplo, e perder de vista, nessa abstracao, toda a dimensao hist6rica deque as diferentes espessuras da sociedade e do discurso investiram sucessiva-mente a figura do pensador. Arist6teles e Diderot nao sao "filosofos" nomesmo sentido, e, em cada tempo, 0 nome do fil6sofo define uma funcaodiferente.

    Estamos em urn tempo que torna possivel a impertinencia da questao:- "Por que fil6sofo? " - Se pensarmos, entao, que a pergunta pelo "porque? " e a pergunta filos6fica por excelencia, a arma com que 0 filosofo sai acaca de seu saber, ve-la voltada, agora, contra 0pr6prio filosofo, leva a pensarque chegamos, afmal, ao dia da caca, em que a figura classica do pensadorperde seus direitos predat6rios e esse cacador passa a ser cacado, como 0sofista de' Platao, Nessa situacao, como ja indicava 0 mal-estar semanticosuscitado pela generalidade do enunciado, nao pode tratar-se de buscar umaresposta, mas de interpretar a pergunta: uma pergunta que pertence ao tempoe que, como e possivel mostrar, encontra sua condicao de possibilidade naDialetica Transcendental de Kant. Perguntariamos entao: - Como 0 sujeitoda filosofia se torna, por sua vez, objeto de questao?De fato, no dia da caca, esse astuto cacador se mostra uma presa bernarisca. Quem nao notou a inquietante modestia que leva os que lidam comfilosofia hoje a se esquivarem da denominacao de fil6sofos? Sao, no maximo,"estudantes de filosofia", "professores de filosofia", "historiadores dafilosofia" (Dizem: - "Eu mexo com filosofia ... "), elevando a uma segundapotencia aquele mesmo pudor, talvez, que levava os antigos a se chamarem de"philosophoi", os amigos da sabedoria, e nao "sophoi", nao diretamente"os sabios", Nesse jogo de humildade e presuncao, que nao.deixa de evocarcertas analises hegelianas, reconhece-se aqui urn tique semantico que naoperde seu interesse (antes pelo contrario) quando se nota que sua origem emilenar. Do fundo de que astucia provem essa relutancia em aderir a umaqualificacao, muito ambiciosa, talvez, ou determinada demais? Pois da aentender que a ciencia do fil6sofo - se e que se pode falar assim, porhip6tese - ou esta no topo de todas as outras, ou e ut6pica por excelencia:ciencia cujo sujeito tende sempre a recuar em relacao a ela, ou a ficar aderiva, como os antigos diante da Sophia, os modernos diante da pr6priaPhilo-sophia. Chegou 0 tempo dos filo-fllosofos?Assim 0 filosofo escapa sempre ao cerco da questao: - "Por queftl6sofo?" A essa questao e forcoso responder hoje, quando nao sempre:"Por vocacao equivoca." E se se ouve dizer que hoje em dia nao ha maisfilosofos, e que a consciencia dessa utopia e cada vez mais aguda, e ninguemm ais faz filosofia sob esse nom e.1 54

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    o etn6logo Claude Levi-Strauss, 0 psicanalista Sigmund Freud estiioentre aqueles que fizeram da recusa do titulo de filosofo 0 emblema dacientificidade dos saberes que inauguravam, mas precisaram criar novosnomes de eiencias para marcar seu nao-pertencimento ao saber constituido.Mas sera que esse limbo de saber - e, por extensao, todo saber emergente -nao merece, por si s6, 0 nome de filosofia? Por vocacao equivoca, sem"uvida, assim como se opera hoje a reparticao das ciencias em humanas, deurn lado, e exatas e naturais, de outro, e se alista a filosofia no batalhao dashumanas, demasiado human as. por afmidade ou por perplexidade. Masquando 0 fil6sofo aceita fixar seu dornicflio entre as humanas, e sempre porambiguidade, e sempre na mesma medida em que as humanas, incertas de simesmas, se perdem da ciencia e, nesse sentido, sao... filosofia.o nome do fil6sofo, en tao, em vez de denunciar a identidade dessecacador cacado, parece conservar, como' unica funcao precisa, a de lembrara seu portador esse duplo exflio: exilado das ciencias existentes, em que naoencontra seu Iugar, exilado da inatingfvel Sophia, essa ciencia inexistente, eleprecisa a cada instante renovar seu primeiro passo, inventar 0 chao em quepisa. E quem pisa chao mais firme pode decerto persegui-lo, esquadrinhandoos territories constitufdos: sua propria condicao de exilado 0 acoita nessacacada.E possivel pensar que essa crise do sujeito da filosofia, nos termosatuais, data do momento em que, por obra da Dialetica Transcendental, sedesfez 0 territorio dos objetos da metafisica. Se nao e possivel uma ciencia dosupra-sensivel, se os objetos da indagaeao metafisica nao tern nenhumaobjetividade, como pode a filosofia, essa ciencia sem objeto, continuar aaspirar ao estatuto de ciencia, quanto mais ao de ciencia suprema, "reginascientiarum"? E natural, nessa situacao, que uma tal ciencia sem objeto passea se interrogar em sua radical diferenca, e que a pergunta se volte contra seusujeito: - Por que ainda filosofo? Por que, depois da filosofia da crise, dafilosofia crftica, 0 filosofar continua?Dois ensaiaram a resposta a essa questao, pela primeira vez, na esteirade Kant - Fichte e Schelling. Ambos com a consciencia de que essa resposta,para sec eficaz, consistia em empenhar-se em uma nova e descomunal tarefa:reinventar a ftlosofia. E foi da inflexao dessas duas respostas que nasceu 0portentoso trabalho conceitual que, sob 0nome de idealismo alemao, marcoua primeira metade do seculo dezenove, rivalizando com 0 cientificismo quedefiniu 0 carater do seculo,Nao parece inutil, para fins de uma indagacao sobre 0 destino daquele"filosofo" questionado e exilado, cumulo de modestia e cumulo depresuncao, uma meditacao sobre a modulacao dessas duas respostas que, aprimeira vista, discordam diametralmente e estao inscritas desde entao noumbral do pensamento moderno, como duas epigrafes dissonantes.E em Fichte que se encontra, pela primeira vez, 0 exemplo consumadodessa presuncao paradoxal, que faz da perda dos direitos urn direito absoluto.Para esse autor, que teve de se en tender muitas vezes com seus contempo-ranees sobre 0 tom arrogante de seus escritos, 0 resultado da critica da razao,

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    ao mostrar que os objetos da metaffsica sao 0 fruto de uma ilusao inerente apropria razao," consiste em restituir a filosofia sua dignidade autentica:reconhecer-se como uma ciencia sem objeto e seu unico - e supremo -privilegio, Com isso, ela nao e ciencia por acidente, nao depende de nenhumobjeto determinado, basta-se soberanamente a si mesma e e a unica que podechamar-se, propriamente, a Ciencia, nao ciencia disto ou daquilo, mas aciencia por excelencia, Assim Fichte justifica, desde seu primeiro livro defilosofia propria, 0 anuncio do nome de doutrina-da-ciencia para esse ensina-mento radi.calmente novo; e e em nome dessa dignidade suprema que seuautor abdica do nome de fi losofo, Ao apresentar 0 Conceito da Doutrina-da--Ciencia ( 1), 0 jovem Fichte escreve: "Se ate agora, com a palavrafilosofia, se pensou justamente isso ou nao, absolutamente nao vern ao caso;mas entao essa ciencia, desde que se tivesse tornado ciencia, deixaria de lado,nao sem razao, urn nome que ate agora trazia por uma modestia exagerada -da - 0 nome de urn amadorismo, de urn virtuosismo, de urn diletantismo.( ... ) Ela poderia entao chamar-se simplesmente a Ciencia, ou a Doutrina-da--C ie nc ia . "

    Mas e esse mesmo resultado da Dialetica Transcendental que vai levar 0jovem Schelling, tambem em sua primeira publicacao original, a reencontraro eco da antiga rnodestia, a ponto de fazer 0 elogio mitigado do cetico: poroposicao a rigidez dos sistemas filosoficos doutrinais, "quem nao honrarianele (no cetico) 0 autentico filosofo? " (Cartas sobre 0 Dogmatismo e Criticisrno, Sa. carta). Para acrescentar esta nota curiosa, que parece conteruma resposta direta a Fichte: "Filosofia, que palavra acertada! Se concederemao autor 0 direito de voto, ele vota pela conservacao dessa antiga palavra.Pois, no seu entender, todo 0 nosso saber sempre permanecera filosofia,isto e, sempre urn saber apenas em progresso, cujo grau superior ou inferiordevemos apenas ao nosso arnor a sabedoria, isto e, a nossa liberdade."Questao de palavras, ainda? Talvez. Os dois reconhecem, na des-coberta de Kant, a reducao do papel do filosofo a uma rigorosa indetermi-nayao, que chega a dispensar, no casu de Fichte, a propria determinacao pelonome de filosofo. Mas essa liberdade em relacao a todo saber determinado,essa estrita ausencia de objeto, esse reencontro com a skepsis sao dotados,para cada urn deles, de urn valor diferente, e basta essa diferenca de estima-tivas para determinar, a partir dai, dois programas e duas direcoes divergentes.Se vale a pena comparar esses dois textos, e pelo interesse de ver lancar-seassim, com tanta precisao, os dados desse jogo de perde-ganha em que seaventura quem, de uma forma ou de outra, corre o perigo de se chamar"filosofo " , depois da Critica.

    Fichte interpret a 0 encontro com essa indeterminacao, a descobertada liberdade em sua pureza, como urn gesto inaugural: 0 ato de nascimentode uma ciencia inedita, Ao explorar pela prime ira vez esse campo pre-objetivoem que 0 saber est a ainda em estado nascente, 0 pensador transcendentalrompe com 0 passado. E certo que essa ciencia sem objeto foi obscuramentevisada ao longo da historia, como ele diz, sob 0nome de filosofia. Mas, agoraque foi descoberta, pouco importa que conserve "esse nome insignificante,156

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    essa palavra que designa a incerteza". Schelling, ao contrario, reconhece, nessaliberdade em relacao ao saber objetivo, 0 reencontro com a essencia perene dafilosofia, uma essencia que pode, sem duvida, ter sido esquecida ao longo dahistoria, e sobretudo da historia recente. Mas 0 que me permite afirmar que ospensadores do passado nao souberam dela, que meu conhecimento dahistoria e bastante exaustivo e compreensivo para que eu possa atribuir umaoriginalidade absoluta a essa descoberta, em vez de pensar que, com a palavra"filosofia", se designava, talvez, exatamente a mesma coisa?

    Basta urn exemplo para avaliar 0 alcance dessa diferenca de inter-pretacoes que, a partir da identidade de inspiracao, conduz os dois pensadoresa direcoes constantemente opostas. Fichte comb ate a prioridade do conceitode ser, como caracteristica do dogmatismo, por consistir em hipostasiar oobjeto, em detrimento da liberdade do sujeito. E chega, com isso, a formu-lacoes da radicalidade seguinte: "A essencia de todo idealismo transcendental,e da doutrina-da-ciencia em particular, consiste em que 0 conceito de serabsolutamente nao e considerado como urn conceito prime ira e origindrio,mas apenas como urn conceito derivado, e derivado, alias, por oposicao aatividade, portanto como urn conceito negativo. 0 unico positivo e para 0idealista a liberdade; ser e a mera negacao dela." (2a. In trod. Ii doutrina-da--ciencia. Obras, v. I, p. 499). Trata-se, sobretudo, de impedir que as categoriasque servem para pensar a existencia sensivel, 0 ser objetivo (causasubstanciaetc.), sejam extrapoladas para 0 supra-sensivel, e que 0 originario seja pensadosob a forma do derivado: a substiincia espinosista ou cartesiana, por exemplo.A analise de Schelling, sem abandonar 0 saldo critico do kantismo, e maisrefinada. Ele escrevera: "A linguagem ja distinguiu com bastante precisaoentre 0 real efetivo (aquilo que esta a mao, na sensacao, aquilo que faz efeitosobre mim, e sobre 0 qual reajo), 0 existente, 0 que estd ai (que esta, emgeral, ai, isto e , no tempo e no espaco), e 0 que e (que e pura e simplesmente,independente de toda condicao temporal, por si mesmo). Como se poderia,com a total confusao entre esses conceitos, sequer pressentir de longe 0sentido de Descartes e Espinosa? Quando eles falavam do ser absoluto,imiscuiamos nos nosso crasso conceito da efetividade ou, no maximo, 0conceito puro do estar-ai, do existir, valido somente no mundo fenomenicoe fora deste absolutamente vazio. Mas, enquanto nossa epoca empiristapare cia ter perdido inteiramente aquela Ideia, ela vivia ainda nos sistemas deEspinosa e de Descartes, e nas obras imortais de Platao, como a Ideiamais sagrada da antiguidade (to on); mas nao seria impossfvel que nossaepoca, se se elevasse outra vez aquela Ideia, acreditasse, em sua va pre-suncao, que nunca antes algo assim ocorreu a urn espirito humano."(Sexta carta; nota).Com isso, e possfvel pressentir, lado a lado, a comunidade de inspi-racao e 0 sentido da bifurcacao, que faz desses dois pos-kantianos, igualmenteconscientes da irreversibilidade da critic a, a origem de duas tradicoes opostasna avaliacao do papel do filosofo e do sentido da filosofia. Compreende-seque se possa ope-los, como faz urn comentador de Schelling, quanto aoproprio modo de inserir-se, como filosofos, na historia da filosofia: "Fichte

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    apresenta a doutrina-da-ciencia como a filosofia definitiva, que anula asfilosoflas precedentes: uma descoberta de que sua epoca nao era digna, masque cedo ou tarde recolhera a unanimidade dos pensadores" (... ) E deoutro modo que Schelling assimila sua fllosofia e a filosofia. Ele tambemhavia partido com a aurora ao encontro do sol nascente. Mas 0 sistema queoferece como autentico e a filosofia sem data, intemporal, independente dascircunstancias hist6ricas, mesmo se 0 curso dos sistemas anteriores serviupara favorecer seu renascimento. Essa philo sophia perennis se confundenaturalmente, entao, com a filosofia antiga." (X. Tillietter, Schelling, unephilosophie en devenir, v. I, p. 305). Mas compreende-se tambem que essapr6pria busca da autenticidade da filosofia na filosofia antiga, essa propriareleitura do passado, nao tern nenhum equivalente na filosofia do passado.A questao "Por que filosofo? ", quer se leia "Por que fil6sofo agora? " ou"Por que 0 fllosofo eterno? ", e sempre a pergunta que se faz agora, e quesimplesmente nao se formula enquanto a filosofia pode ainda definir-se porseus objetos.

    Nesse caso, como contribuicao para determinar urn pouco mais aquestao do estatuto do filosofo, de seu papel, ou do senti do do filosofar, 0que a comparacao dos dois textos parece sugerir aqui e que, desde 0momentaem que a filosofia nao pode mais ser pensada como uma ciencia que se definepor seu objeto, essa questao e solidaria de uma certa concepcao da hist6riae de uma certa relacao com a linguagem.

    Uma certa concepcao da historia, que ambos os textos parecemacarretar, de maneira incontornavel, pela mera discussao da palavra "filoso-fia", e que leva a resultados suficientemente divergentes para que nao penseque se trata apenas de uma doutrina particular sobre a historia ou de umaideologia determinada - mas sim de uma condicao para simplesmente poderpensar a hist6ria. Do lado de Fichte, com efeito, a inauguracao da filosofiacomo a ciencia por excelencia, que precede e fundament a toda cienciaobjetiva, justamente por nao ter objeto, e solidaria da descoberta da liberdadeem sua pureza, da autonornia absolutamente criadora do espfrito e, assim,proporciona a humanidade 0 entendimento da natureza e do determinismocomo mero fenomeno (Fichte ensinara: Quem tern medo do determinismonatural tern medo de sua propria sombra). Alem de ser possivel entao, pelaprimeira vez, fazer ciencia com plena consciencia e, desse modo, abrir-se umailirnitada perspectiva de futuro para 0espfrito e para a civilizacao, separa-se 0devir humano do devir natural, e e possfvel pensar 0 conceito moderno deprogresso, a liberdade dos homens para fazerem sua propria hist6ria. A partirdessa descoberta, a hist6ria passa a ter urn sentido. Mas e importante notar:a hist6ria, nesse sentido, comec a com essa descoberta; e protensiva, orientadaem direyao ao futuro. Uma vez comecada a verdadeira hist6ria, por que naodeixar entao para' 0 passado 0 velho nome de historia, fazendo-o seguir 0destine do nome da fllosofia? 0foco do sentido da hist6ria esta na liberdadetranscendental e na preeminencia do dever-ser sobre 0 ser. A verdadeiraorigem do devir hist6rico nao esta no comeco, mas no fim, e a hist6ria158

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    caminha em direcao ao ideal. Assim, e uma ilusao colocar no infcio dostempos a "idade de ouro" da completa felicidade sensfvel: a ilusao de otica,inversao de perspectivas pela qual "aquilo que nos devemos tornar e descritocomo algo que ja [omos, e aquilo que temos a alcancar e representado comoalgo perdido", como escreve Fichte, a proposito do est ado de natureza deRousseau (A destinaciio do sdbio, 5a. Preledio), evocando a ilusao que consis-te em pensar 0 ser como mais originario que a liberdade. Mas, pensaraSchelling, se a origem nao esta no tempo, e sim na autonomia absoluta eintemporal, e tao arbitrario pensa-lo no fun quanto no comeco. Trata-se, emvez disso, de uma origem perene, e nada me impede de reconhecer, nos gran-des momentos do espfrito, quer estejam no presente ou no passado, a presen-ca dessa origem. Aquela hist6ria protensiva, portanto, pode vir contrapor-se ahistoria retrospectiva, a transparencia do progresso a espessura da memoria edo esquecimento. Nosso tempo pode ser impermeavel ao verdadeiro sentidodas grandes filosofias do passado, pode ter perdido 0 conceito do ser em suaautenticidade, e no entanto 0 trabalho esquecido ou inconsciente no espfritodeixou seus traces, para quem souber le-los, nos monumentos do pensamentoou nos vestfgios das grandes civilizacoes - nas minas arqueologicas, nossistemas de filosofia, na mitologia, nas proprias lfnguas antigas. Aqui tambeme possfvel pensar em urn sentido da historia; e esse sentido que permeia todoo passado - mas cabe ao filosofo decifra-lo,

    Assim, em cada urn, independente de qualquer filosofia da historia, urncerto pathos da historia da sinal de si, e os dois novos filosofos do idealismopos-kantiano podem ser vistos em confronto, face a face, nao tanto pela rivali-dade, quanto pela postura historico-fllosoflca, ou, para usar uma imagem, peladirecao do olhar: 0 primeiro voltado para 0 futuro, 0 segundo com os olhospostos no passado. Nao e de admirar que essa mesma postura se reconheca narelacao com 0 discurso.

    Pode-se dizer que a diferenca tange a qualificayao do fil6sofo pelaescrita ou pela leitura, pela relacao com 0 texto a ser produzido ou com 0texto a ser decifrado. E aqui se reconhece, em cada urn deles, uma perfeitacoerencia consigo mesmo. Para 0 descobridor da doutrina-da-ciencia, naosomente a palavra "fllosofia", mas todos os signos de linguagem participam dainercia da natureza objetiva. Ja seu carater sensivel e 0primeiro indfcio de suaheterogeneidade em relacao ao verdadeiro conteudo da filosofia, a liberdadesupra-sensivel. Passada em palavras para comunicar-se, a nova filosofia ira'simplesmente valer-se desses signos sensiveis para provocar, em cada urn deseus discfpulos, sua descoberta propria dessa liberdade irredutivel. Da mesmaforma, toda linguagem, em sua existencia sensfvel, s6 pode ser entendidacomo urn produto dessa me sma liberdade, invencao hurnana, para finshumanos, meio sensivel subordinado ao supra-sensivel que lhe da sua desti-nayao: favorecer 0 entendimento dos homens no trabalho de dominacao danatureza, cimentar a comunidade prirnitiva na forma social, permitir, enfim,a comunicacao sobre conteudos supra-sensfveis no desenvolvimento dacultura. Assim, e impossfvel entender qualquer discurso, encontrar nele urn

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    sentido, sem dispor da liberdade de ultrapassar a opacidade dos signos parachegar aquilo que se diz neles e sem pressupor, portanto, uma liberdade tam-bern em sua origem, uma inten~ao significativa que os tenha produzido.o texto, sem seu autor, recai em sua materialidade inerte, e e precisoque intervenha a liberdade do leiter para recriar sua vida original. E essemesmo pathos da linguagem que repercute nos textos te6ricos, e se anuncia,por exemplo, nesta nota, mais tarde considerada exeessivamente radical, dotexto dejuventude sobre a origem da linguagem: "Nao demonstro aqul que 0homem nao pode pensar sem linguagem e que, sem ela, nao pode ter nenhumconceito universal abstrato. Certamente ele 0pode, por meio das imagens queforma pela fantasia. Segundo minha conviccao, foi dada excessiva importanciaa linguagem, quando se acreditou que sem ela nao teria havido nenhum uso darazao." (Obras, v. VIII, p. 309).Pareee, mais uma vez, uma tsassagem para 0 avesso, quando se I e depoiseste outro texto, da Ultima filosofia de Schelling: "Ja que sem linguagem naoe possivel pensar nao scnenhuma consciencia fllosofica, mas nenhumaconsciencia humana em geral, a linguagem nao pode ter sido fundada comconsciencia: e, no entanto, quanta mais profundamente penetramos nela,mais precisamente se revela que sua profundidade supera de longe a da maisconsciente das criacoes" (Filosofia da Mttologia, 3a. Prelecao), E que essaprofundidade da linguagem, a mesma que permite redescobrir em seu frescora significa~ao original da palavra "filosofia": em sua etimologia e 0 fulgorprimitive da palavra "ser", e a outra consequencia, descurada por Fichte, dadissolu~ao dos objetos da metafisica e do esvaziamento de sua funcaorepresentativa. Decerto, a linguagem esta no mundo como expressao de umaliberdade que comeca antes do mundo, e Fichte pode entender a producao dodiscurso como obra de inspiracao e, assim, a relacso de poiesis com alinguagem como urn trabalho de domesticacao. Mas, escrevera Schelling[ibid.), "podemos acaso desconhecer a poesia que ja esta na mera formacaomaterial das linguas? Nao falo das expressoes de conceitos espirituais, que secostumamdenominar metaf6ricas, embora dificilmente em sua origempossam ser consideradas improprias, Mas que tesouros de poesia jazemocultos na linguagem em si, que 0 poeta n:Io coloca nela, mas somente, porassim dizer, retira dela como de uma camara de tesouros, que ele somentepersuade a linguagem a revelar." E, com essa consciencia arqueologica dodiscurso, nao e possivel reconhecer, no filosofo que define seu estatuto pelarelacao com 0passado, 0verdadeiro precursor da interpretacao moderna, dorastreamento das flguras inconscientes do discurso e da dissolucao dainstancia do autor? E ele, pelo menos, que em suas prelecoes de 1802 sobreo metoda do estudo academ ico (Obras, Y, 225-6), faz a seguinte observacaosobre esse fenomeno dos novos tempos, 0 filosofo universitario: "0 mundornoderno e em tudo, e em particular na ciencia, urn mundo dividido, quevive ao mesmo tempo no passado e no presente. (. :.) Aos objetos originaisdo saber acrescentou-se 0 saber passado como urn novo objeto; por isso,e porque ate mesmo para a exploracao profunda do preexistente e precisoespfrito presente, 0 intelectual, 0 artist a e 0 filosofo se tornaram conceitos160

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    equivalentes, e 0 primeiro predicado e conferido tambem aquele que naoaumentou 0 preexistente com nenhum pensamento proprio; e se os gregos,como disse urn sacerdote egipcio a Solon, eram eternamente [ovens, assimo mundo moderno, ja em sua juventude, era velho e experiente. 0 estudodas ciencias como das artes em seu desenvolvimento historico tornou-se umaespecie de religiao: em sua historia 0 filosofo conhece, de maneira aindaencoberta, como que os prop6sitos do espfrito universal; a mais profundaciencia, 0 mais solido genic verteram-se nesse conhecimento."

    Eis ai algumas indicacoes, colhidas na hist6ria da filosofia, para urncome yO de discussao sobre 0 problema: Por que filosofo hoje? Basta quepermitam, simplesmente, problematizar a questao, ou pelo men os deixem 0ressaibo de uma perplexidade: hoje, no dia geral da caca, em que se procuramideologias nas filosofias, em que se interrogam as estruturas latentes dodiscurso, em que se impoe a espessura soberana da hist6ria escandindo osenunciados mais "extemporaneos", sera tao facil distinguir a caca docacador?

    JO S"EHENR IQUE SANTOSFlLOSOFIA E CRfrICA DA CINcIA*

    1o tema de nosso col6quio refere-se a uma unica questao: "Por quefll6sofo?" A questao ISunica apenas na aparencia, A unidade da questaoenvolve toda a multiplicidade de questoes subjacentes a palavra "filosofo"ou a palavra "filosofla". Desejou-se tratar de uma questao de raiz, isto IS,de uma questao decisiva, cuja resposta obrigue a uma opyao ou tomada deposicao. "Por que? " indica que se espera uma resposta capaz de legitimarurn tipo de atividade intelectual. Essa atividade nao e 6bvia e nao encontrareconhecimento geral; precisa justificar-se. Nao exigimos a mesma coisa daciencia; a atividade do cientista parece-nos nao s6 legftima como tambemsocialmente util. 0 cientista produz conhecimentos que reconhecemos de-monstraveis e validos, e mesmo quando nos ISimpossfvel compreender 0sentido e 0 alcance das teorias cientfficas, ainda assim nos persuade, a n6shomens comuns, a eficacia tecnol6gica que supomos derivada da ciencia.

    * A presente comunicacao e uma tentativa de situar 0 trabalho do filosofo("Por que filosofo?") com respeito Ii crftica da ciencia. Outros aspectos daatividade filos6fica sao deliberadamente omitidos,161

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    Aceitamos a ciencia como urn fato caracterfstico do mundo em quevivemos. Ela parece encerrar em si toda a racionalidade. Fora da ciencia ficamas representacoes do senso comum, destitufdas de qualquer objetividade, ascrencas religiosas, os mitos, as ideologias - dominio da ilusao, da aparencia,Tudo 0 que aspire a urn saber Iegftimo deve estar compreendido, por conse-guinte, dentro de urn campo cientifico determinado.

    Participamos como filosofos de urn congresso para 0 progresso daciencia. Que temos a dizer, nos, que nao acumulamos progresso algum? Poise costume opor a ciencia a filosofia, tomando-se como referencia a nocao deprogresso. Gracas ao metodo experimental, a possibilidade de averiguacoesprecisas, de previs6es, as demonstracoes cientfficas se tornam objetivas eaceitas por toda a gente. A ciencia apresenta urn acervo de conhecimentospressupostos por todos aqueles que se dedicam a seu estudo. Os manuaisescolares e 0 ensino vivo da ciencia tornam-no acessivel a qualquer urn que sedisponha a urn mfnimo de disciplina intelectual. A ciencia e "objetiva". Semduvida, quando penetramos mais a fundo na historia da ciencia (0 que oscompendios nao fazem), 0 que a primeira vista pare cia uma sucessao dedescobertas e de explicacoes definitivas que se geravam umas as outras demodo imediato se desvanece e surgem entao as perplexidades, as regress6es,a incerteza, 0 erro, numa palavra, tudo aquilo que a nossa propria visaoocultava, em seu afa de reconstituir mais logica que historicamente urnpassado que devia produzir 0 que hoje julgamos saber. Somos iludidos pornosso proprio saber. 1

    Todavia, mesmo quando a nossa critica "historifica" a logica da ciencia,nao podemos negar: a ilusao de uma cie