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BAIXAS COLATERAIS DA GESTÃO DEMOCRÁTICA EM ESCOLAS LÍQUIDAS NA PERIFERIA DAS PERIFERIAS SCHEFER, Maria Cristina UNISINOS RESUMO: Legalmente determinado, o Projeto Político Pedagógico (PPP) é um dos documentos representativos da gestão democrática numa instituição de ensino, responsável pela singularidade espaçotemporal necessária para a organização didática. Contudo, é preciso compreender o PPP para além da materialidade impressa, como elemento vivo no ambiente escolar e que precisa ser retroalimentado (por atos democráticos) em prol de efeitos práticos. Requer, dessa forma, uma unidade entre ações escolares e atos dos gestores públicos, sendo ímpar, nesse sentido, que os quadros docentes representem a conjugação de esforços administrativo-pedagógicos para a superação das dificuldades num determinado lugar de ensino. O papel crucial do professor, profissional do ensino, para a democratização dos saberes a todos os brasileiros, encontra-se enfatizado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e num compêndio de documentos redigidos a partir dela no País. Este estudo, de inspiração etnográfica, embasado na legislação nacional e nas contribuições de Bauman, evidencia o impedimento da gestão do PPP em escolas da periferia das periferias, otimizado por um “ato público de costume”: o banimento de escolas centrais daqueles profissionais que não agradam gestores públicos num determinado período administrativo. Os dados foram coletados numa escola localizada na região metropolitana de Porto Alegre–RS, em que a reunião de “consumidores falhos”: professores, famílias e crianças excluídas vêm sendo imposta há mais de vinte anos, revelando, dessa forma, baixas colaterais na organização democrática do ensino brasileiro. Visto que, quando os profissionais do ensino chegam à escola a partir de um processo, que envolve a depreciação de si, de sua atuação profissional, veem-se diante de um dilema: ignorar a própria exclusão e incluir o outro. Ilusão pedagógica seria crer que todos terão condições de superar as adversidades e garantir a qualidade ensejada nas propostas democratizantes para todos. Palavras-chave: Gestão democrática. Escolas periféricas. Baixas colaterais. Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 01197

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BAIXAS COLATERAIS DA GESTÃO DEMOCRÁTICA EM ESCOLAS

LÍQUIDAS NA PERIFERIA DAS PERIFERIAS

SCHEFER, Maria Cristina

UNISINOS

RESUMO: Legalmente determinado, o Projeto Político Pedagógico (PPP) é um dos

documentos representativos da gestão democrática numa instituição de ensino,

responsável pela singularidade espaçotemporal necessária para a organização didática.

Contudo, é preciso compreender o PPP para além da materialidade impressa, como

elemento vivo no ambiente escolar e que precisa ser retroalimentado (por atos

democráticos) em prol de efeitos práticos. Requer, dessa forma, uma unidade entre ações

escolares e atos dos gestores públicos, sendo ímpar, nesse sentido, que os quadros

docentes representem a conjugação de esforços administrativo-pedagógicos para a

superação das dificuldades num determinado lugar de ensino. O papel crucial do

professor, profissional do ensino, para a democratização dos saberes a todos os

brasileiros, encontra-se enfatizado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDB) e num compêndio de documentos redigidos a partir dela no País. Este estudo, de

inspiração etnográfica, embasado na legislação nacional e nas contribuições de Bauman,

evidencia o impedimento da gestão do PPP em escolas da periferia das periferias,

otimizado por um “ato público de costume”: o banimento de escolas centrais daqueles

profissionais que não agradam gestores públicos num determinado período

administrativo. Os dados foram coletados numa escola localizada na região metropolitana

de Porto Alegre–RS, em que a reunião de “consumidores falhos”: professores, famílias e

crianças excluídas vêm sendo imposta há mais de vinte anos, revelando, dessa forma,

baixas colaterais na organização democrática do ensino brasileiro. Visto que, quando os

profissionais do ensino chegam à escola a partir de um processo, que envolve a

depreciação de si, de sua atuação profissional, veem-se diante de um dilema: ignorar a

própria exclusão e incluir o outro. Ilusão pedagógica seria crer que todos terão condições

de superar as adversidades e garantir a qualidade ensejada nas propostas democratizantes

para todos.

Palavras-chave: Gestão democrática. Escolas periféricas. Baixas colaterais.

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Introdução

Entre os princípios descritos no art. 3º da Lei 9.394/1996, que disciplina a

educação escolar no território nacional, dois interessam de forma singular a este estudo:

“VII – valorização do profissional da educação escolar; VIII – gestão democrática do

ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino”. (MEC, 1996).

Em vista de que ambos interferem diretamente nas práticas cotidianas da escola, é a partir

da gestão democrática que se dá a construção da Proposta Pedagógica (ou PPP), que

depende, em grande medida, da atuação docente. Conforme a mesma lei, reza o seu art.

12: “Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de

ensino, terão a incumbência de: I – elaborar e executar sua proposta pedagógica; [...]”, e

o art. 13 estabelece: “Os docentes incumbir-se-ão de: I – participar da elaboração da

proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II – elaborar e cumprir plano de

trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; [...].” (MEC,

1996). Dessa maneira, a LDB condiciona a gestão democrática a uma operacionalização

prática que envolve tanto a construção da Proposta Pedagógica da escola quanto a

participação docente nessa ação.

Essa articulação é necessária, visto que o desmembramento dos objetivos

previstos na Proposta Pedagógica em ações para a educação precisa estar situada num

tempo-espaço específico, a fim de atender às singularidades de um determinado grupo

escolar. Sem isso, na desconsideração das características dos educandos, a probabilidade

de haver insucesso aumenta.

Entendendo-se o papel crucial do professor, profissional do ensino, para a

democratização dos saberes a todos os brasileiros, conforme descrito na Lei de Diretrizes

e Bases da Educação Nacional (LDB) e num compêndio de documentos redigidos a partir

dela no País, cabe refletir sobre a prática (os costumes) dos gestores públicos, qual seja a

de “desqualificar profissionais do ensino”, a partir de critérios discriminatórios e os alocar

em escolas periféricas.

Instaurando-se, dessa maneira, uma distribuição de esforços pedagógicos

excludentes, que segue a lógica da “arquitetura heterofóbica” do capitalismo atual, da

‘Sociedade de Consumidores’ e que deprecia tudo aquilo e todos aqueles que não lhe

interessam. Os seres, na contemporaneidade capitalista, estão “comidificados”

(BAUMAN, 2008), portanto, à venda, já que “a política de vida [...] assim como a

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natureza das relações interpessoais, tende a ser remodelada à semelhança dos meios e

objetos de consumo e segundo as linhas sugeridas pela síndrome consumista”¹.

(BAUMAN, 2009, p. 108).

Este estudo enfrenta o desafio de narrar o indizível: professores de castigo, PPP

sem legitimidade, processo educativo ‘sob medida’ para os consumidores falhos. Os

dados foram coletados entre 2010 e 2013, e foram utilizados para registrá-los um Diário

de Campo e entrevistas audiogravadas com professores e membros da equipe gestora.

A Constituição Cidadã, os atos administrativos e a Lei 9.394/1996

A Constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, é considerada

um dos documentos de referência mundial no que se refere à normatização de um Estado

Democrático de Direito. Entre os princípios fundamentais nela explícitos cabe destacar,

no art. 1º, os seguintes incisos: “II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; V

– o pluralismo político”, e, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil, expressos no art. 3º, os incisos:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]; III – erradicar

a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e

regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,

raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Lembra-se ainda que, entre os direitos sociais, dispostos no art. 6º, está a

educação, e que o inciso III do art. 19, estabelece: “É vedado à União, aos Estados, ao

Distrito Federal e aos Municípios: [...] III – criar distinções entre brasileiros ou

preferências entre si.” Ainda, referentemente ao tema educacional que está sendo

discutido neste estudo, cabe citar o art. 37 e seus incisos específicos:

A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos

princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e

eficiência e, também, ao seguinte: I – os cargos, empregos e funções

públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos

estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; II

– a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação

prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo

com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma

prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão

declarado em lei de livre nomeação e exoneração.

Sublinhar excertos da Constituição de 1998 fez-se necessário, em vista de que

quaisquer outros documentos legais do País partem dela. A Constituição também é a fonte

disciplinar para os atos administrativos do Poder Público.

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Em contínuo aperfeiçoamento, a Constituição (mesmo sendo rígida) permite

emendas; nesse aspecto, pode-se destacar (em âmbito geral) a definição de atos de

improbidade administrativa (Lei 8.429/1992), que passou a responsabilizar e a punir

gestores por ações que fragilizem a coisa pública, o bem comum. Já em âmbito

educacional, salienta-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei 8.064/1990),

a LDB (Lei. 9.394/1996) que estão a embasar outros ordenamentos em reforço à

democratização de direitos educativos, cuja “qualidade das relações” no interior das

escolas é referendada.

“Nem só de leis a gestão democrática viverá, mas de todos os atos que procedem dos

governantes públicos”

Quem dera as leis tivessem aplicabilidade incondicional, e os atos

administrativos pudessem ser totalmente controlados pelos elementos que o caracterizam

do ponto de vista estrutural. Para melhor compreender essas limitações legais, buscaram-

se referências na doutrina jurídica, em conceitos básicos que possibilitassem o

entendimento das leis e dos atos de agentes públicos/políticos a partir delas.

Na lição de Meirelles et al.,

Ato Administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da

Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim

imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar

direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria. (2011,

p. 154).

Por sua vez, Carvalho Filho (2008, p. 96) definiu atos administrativos como

sendo “a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus

delegatários, nessa condição, que, sob regime de direito público, vise à produção de

efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público”.

Termos diferentes também são utilizados para definir os pressupostos ou

requisitos de validade dos atos administrativos no campo jurídico. Porém, cinco

características são consideradas as principais: a competência, o motivo, o objeto, a

finalidade e a forma.

A competência tem a ver com a pessoa legalmente apta (competente) para

praticar um ato administrativo. No caso de uma nomeação para professor, caberá isso ao

prefeito ou a quem ele legalmente determinar. Por isso, a “colocação em disponibilidade

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ou realocação” de profissionais em uma escola, geralmente, é da alçada dos gestores da

pasta educacional e de suas equipes diretivas.

O motivo tem a ver com a causa do ato administrativo, como, por exemplo:

necessidade de realocação, necessidade de nomeação. Mesmo sendo impresso, não

necessita partir do estabelecimento de vínculo com o servidor. O que, possivelmente,

permite que a subjetividade contida num ato seja ignorada em prol da objetividade.

O objeto do ato administrativo, segundo Meirelles et al. (2011, p. 159),

“identifica-se com o conteúdo do ato, através do qual a Administração manifesta seu

poder e sua vontade, ou atesta simplesmente situações preexistentes”, reforçando, assim,

a unilateralidade, a imperatividade e a supremacia da decisão administrativa.

A finalidade do ato administrativo, para Meirelles et al. (2011) é sempre o bem

comum, a coisa pública. Porém, na visão de Granjeiro (2005, p. 86), “há duas

concepções de finalidade: uma, em sentido amplo, que corresponde à consecução de um

resultado de interesse público (bem comum), outra, em sentido estrito, é o resultado

específico que cada ato deve produzir, conforme definido em lei”.

A forma do ato administrativo é o meio padronizado para que a vontade dos

agentes públicos (interna ou externamente) seja exteriozada, no entender de Meirelles et

al. (2011). Apontando, desse modo, que a validade de um ato também pode ser garantida

ou negada pelo layout do documento.

Essa retomada, mesmo que genérica, dos preceitos legais que definem os atos

administrativos, é de suma importância para a compreensão da prática de banimento dos

profissionais indesejados da região central para as periferias, pois desfazem quaisquer

ilusões quanto ao domínio ético da pós-burocratização/normatização. Como descrito, um

ato administrativo pode atender a todos os elementos que o validam e promover situações

pouco condizentes com aquilo que a Constituição Cidadã e os documentos ulteriores

orientam. Configura-se, nesse caso, um desvio de finalidade, que condiz com a

ambivalência da “Sociedade líquido-moderna”, de Bauman (2009).

Com o objetivo de demonstrar a complacência entre administradores e

administrados, no que se refere a um “desvio específico de finalidade” na área educativa,

é que “narra-se aqui o visto lá”, isto é, num lugar escolar. Lá, onde um organograma

excludente, definido, seja por insubordinação às contingências políticas, seja pela falta de

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influência ou por características físicas tem sido (há décadas) reafirmado. Importa dizer-

se, de antemão, que não há PPP, qualidade de ensino e atividade docente que possam ser

sustentados sob “os escombros da desqualificação profissional”.

Do lugar escolar e suas redondezas

Uma escola que quase caiu concretamente, no ano de 2010, dois meses depois

da entrega do imaginado prédio de tijolos (alvenaria) à comunidade escolar, na região

metropolitana de Porto Alegre, é o lócus de análise deste estudo. Quanto às falhas na obra,

investigações técnicas concluíram erro de cálculo por parte da engenharia, subtração de

materiais importantes e excesso de areia na construção.

A instituição conta, atualmente, com mais de duzentos alunos distribuídos entre

a Educação Infantil e os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. O espaço educativo

anterior (num prédio de madeira) foi fundado há 22 anos para atender aos dependentes

dos, então, trabalhadores que vieram para a região no período de construção do Polo

Petroquímico de Triunfo. Subempregados, que, após o término da obra, foram “liberados”

pela impossibilidade de aproveitamento no setor.

O interessante é que já haviam sido instalados numa das regiões mais distantes

do centro da cidade, na “periferia das periferias”, evidenciando que a miséria, como

destino final dos forasteiros, já estava prevista, bem como o meio/lugar para mantê-los

afastados dos “nativos do lugar” (obelisco).

Diante da condição de pobre (herdada) e sem capacitação profissional, os

moradores do lugar estão, há duas décadas, sujeitos a vagas trabalhistas sazonais nas

indústrias da região, mescladas com a constante oferta de empregos não formais. É a

informalidade “branda”, em trabalhos que (longe de serem legais²) são “aceitáveis” e a

informalidade “suicida”, que envolve venda de entorpecentes, roubos e prostituição que

emprega grande parte da população.

A falta de contratantes formais no lugar pode ser explicada por Bauman (2008,

p. 15), nos seguintes termos: “As pessoas em busca de trabalho precisam ser

adequadamente nutridas e saudáveis, acostumadas a um comportamento disciplinado e

possuidoras das habilidades exigidas pelas rotinas de trabalho dos empregos que

procuram.” Características, essas, que estão distantes da realidade dos moradores.

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Sabendo-se que as periferias não são excentricidades de uma ou de outra

sociedade fechada, e que as sociedades ocidentais foram erguidas sob a égide do

progresso econômico, intui-se que há um nexo para a manutenção desses lugares.

Segundo Santos (2008), a análise de um espaço social requer algumas

considerações básicas, entre as quais, o entendimento de que a forma tem a ver com o

conteúdo do espaço, o qual está ligado ao modo de produção. Porém, para o autor, não é

local o controle daquilo que pode ou não ser produzido, “quando se fala em modo de

produção, não se trata simplesmente de relações sociais que tomam uma forma material,

mas também de seus aspectos imateriais, como o dado político e ideológico”. (SANTOS,

2008, p. 32).

Dessa maneira, uma região inóspita para a vida humana pouco tem a ver com a

vontade dos habitantes e dificilmente poderá ser modificada sem que haja interferência

daquilo que provocou a aglomeração.

Sobre os profissionais lotados no lugar

Quanto aos professores, aos profissionais da educação, destinados a enfrentarem

os desafios de ensinar num lugar marcado pelo descaso, pela falta de direitos, observou-

se um quadro eclético tanto física quanto emocionalmente. Das 17 professoras, 9 contam

“com riqueza de detalhes” que estão na escola “de castigo”: porque “subverteram” ou não

foram consideradas dignas de outro ambiente, como servidores recém-nomeados, que não

tiveram opção de escolha. Sobre a estada no lugar, muitas revelaram que já chegaram

“loucas para partir”, salienta-se o depoimento de duas professoras, denominadas para a

análise como A e B:

Eu vim porque quis [...], mas a gente vê que muita gente não vem pra

cá porque quer, vem como um castigo, e tem vários outros que moram

perto, fica mais à mão. Não é por uma opção, porque eu acho que

aquele lugar é legal, são poucos os que vieram pra cá assim.

(Transcrição de parte da entrevista sonora com A, em set. 2012).

Normalmente [quem vem para cá] são aquelas que a secretária não as

quer nas outras escolas. Existem muitas razões pelas quais elas vêm,

às vezes por serem pessoas que batem de frente com outras escolas,

com a equipe diretiva e outros grupos ou por “castigo”, pra ti aprender

porque tu não forma o círculo deles, tu é um pouco diferente, então,

normalmente, é por castigo. Eu sou uma. Bati de frente com eles.

(Transcrição de parte da entrevista sonora com B, em set. 2012).

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Quanto à professora B, vale registrar que antes de ser “designada” para a escola

em questão, ela exercia a função de diretora de uma pequena escola na zona rural, onde a

professora viveu os melhores anos de sua docência, fato que gosta de contar a todos.

O organograma também apresenta uma força de trabalho 100% feminina, que

inclui a única professora transexual do município e um auxiliar de nutrição gay, e isso

merece um olhar para a questão da exclusão profissional na perspectiva de gênero, pois

é, no mínimo, curioso que não haja docentes “machos” a serem banidos das escolas

centrais.

Nesse cenário, Almeida dá conta de que

o processo de imputar para homens e mulheres determinismos sexuais

biologicamente herdados implica a existência de uma ditadura de

gênero para os dois sexos que, infalivelmente, leva a hierarquia do

masculino sobre o feminino, numa escala axiológica na qual as fêmeas

sempre saem perdendo, dado que as atividades masculinas sempre

foram consideradas de primeira ordem e as femininas, de segundo

escalão. Essa dupla (des)valorização conduz a diferentes implicações

no mundo do trabalho, no espaço público, nas esferas do privado e nas

instâncias do poder. (1998, p. 44).

Outros pontos da seleção causam similar estranheza, ou seja, duas das assistentes

da Educação Infantil são deficientes físicas: uma é cadeirante, e a outra sofreu paralisia

infantil. Assim, ambas têm dificuldades para se locomover e acompanhar o “tranco” dos

pequenos. Uma professora tem obesidade mórbida (EI) e com a diretora comunga a

permanente possibilidade de sofrer um ataque epilético. Três professoras enfrentam uma

depressão crônica pós-abstinência química por uso de drogas. Na cozinha da escola, dois

dos profissionais desenvolvem doenças degenerativas e contam com o auxílio diário de

duas mães voluntárias que trabalham em troca das sobras da merenda.

Esse agrupamento tendencioso de profissionais na escola evidencia que o

controle de corpos no lugar tem obedecido a critérios mercadológicos, e que o “castigo”

na escola na “periferia das periferias” engloba as mais variadas funções.

Quanto à retenção de “profissionais em acordo com os gestores” nas escolas

centrais, cabe asseverar sobre o poder de persuasão para garantir a qualidade de ensino

que detêm historicamente os mais abastados, além das expectativas de economicidade

que costumam se estabelecer em relação a determinados grupos e em detrimento de

outros.

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Conforme Clark apud Bauman,

toda a ideia de escolas e universidades é para aumentar a taxa de

crescimento econômico e ajudar-nos a competir com nossos “parceiros

europeus”, e assim também (poderíamos acrescentar) ajudar o governo

a vencer a próxima eleição. (2009, p. 40).

A prática “de costume”³ (mesmo que inapropriada a atos administrativos) a que

recorrem (certos) gestores públicos quando passam a “dar menos aos que têm menos”,

demonstra o quanto as fronteiras público-privadas andam à mercê das relações capitais,

bem como o quanto à gestão democrática das escolas pode estar restrita à elaboração

obrigatória do PPP.

Sobre o PPP, o abc, as probabilidades/estatísticas

Ícone da gestão democrática, da socialização de saberes, da possibilidade de se

fazer justiça social por meio do ensino, o PPP permite à equipe de profissionais e à

comunidade que busquem alternativas conjuntas (a partir da realidade) para garantir o

aprendizado na escola.

Entretanto, segundo Veiga,

a gestão democrática implica principalmente o repensar da estrutura do

poder da escola, tendo em vista sua socialização. A socialização do

poder propicia a prática da participação coletiva que atenua o

individualismo; da reciprocidade, que elimina a exploração; da

solidariedade, que supera a opressão da autonomia, que anula a

dependência de órgãos intermediários que elaboram políticas

educacionais das quais a escola é mera executora. (2002, p. 3).

Dessa forma, quando os profissionais do ensino chegam à escola a partir de um

processo, que envolve a depreciação de si, de sua atuação profissional, veem-se diante de

um dilema: ignorar a própria exclusão e incluir o outro. Ilusão pedagógica seria crer que

todos terão condições de superar as adversidades e garantir a qualidade ensejada nas

propostas democratizantes para todos.

A escola em estudo tem um PPP muito bem-guardado na sala da direção,

elaborado solidariamente, como refere a diretoria:

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“De um recorta e cola entre as escolas, pois mandaram a gente fazer e

daí acabei eu tendo que assumir a bronca, pedi ajuda de uma diretora

de outra”. (Relato /Diário de Campo, jun. 2010).

Obviamente, a direção tomou uma medida administrativa e cumpriu com a

“tarefa” de encaminhar o PPP para aprovação. Ademais, diante das contingências,

dificilmente, haverá clima para a elaboração conjunta de uma proposta educacional.

Conforme Vasconcelos (2004, p. 176), “o projeto deve ser iniciado quando houver por

parte da instituição o desejo, a vontade política, de aumentar o nível de participação da

comunidade educativa, o real compromisso com uma educação democrática”.

Não há como abordar (por falta de espaço), neste texto, o modo como ocorrem

as práticas pedagógicas no lugar, porém se ressalta a solidão como característica do

trabalho docente e a dificuldade de articulá-los em prol de melhorias na aprendizagem.

Ideias pedagógicas tradicionais: cópias, memorizações, sanções, castigos pareceram

consensuais no lugar, bem como um possível modo de resistência ao sistema (aos

gestores) verificado em faltas e atrasos constantes dos profissionais.

Resulta desse todo: evasões, faltas e baixo índice de aprovação. Em 2012, a

escola ficou com a pior nota na “Prova Brasil”, no município e na região. Algo previsto,

segundo o expressado:

“Achamos até que se saíram bem, pois a maioria deles nem sabe ler.”

(Comentário de uma das professoras/Diário de Campo, out. 2012).

“Estávamos esperando esse resultado, não há o que fazer [...], a

Secretaria de Educação sabe a situação aqui.” (Relato de um membro

da diretoria/Diário de Campo, out. 2012).

A conformidade da equipe com o resultado na prova coloca as crianças na

posição de “vítimas colaterais, sujeitas a baixas colaterais, afetadas por danos colaterais”

da gestão democrática do ensino brasileiro, como escreveu Bauman (2008). Os adjetivos

colaterais (de vítimas, baixas e danos) aqui empregados também “pertencem ao

vocabulário dos advogados e têm raízes na pragmática defesa jurídica, ainda que tenham

sido usados pela primeira vez por porta-vozes militares em seus comunicados para a

imprensa”. (BAUMAN, 2008, p. 149).

Para Cohen apud Bauman (2008), “pertencem ao arsenal linguístico dos ‘estados

da negação’: negação de responsabilidade-responsabilidade moral, assim como jurídica”.

Em suma, invocar a imprevisibilidade do planejamento democrático “sob o argumento da

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falta de intencionalidade, tem o objetivo de negar ou isentar a cegueira ética, condicionada

ou deliberada”. (p. 150).

Se tudo, inclusive a terminologia, para disfarçar atos omissivos ou comissivos

que afetam os administrados está posto na Sociedade de Consumidores, cabe relacionar

as práticas danosas ao bem comum e às mentalidades capitalistas vigentes.

Da infeliz conclusão

A LDB estabelece, mas não precisa a gestão democrática, como posto no seu

art. 14. “Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino

público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades” (Lei 9.394/1996), o

que possibilita o aumento da alçada dos agentes políticos em detrimento de um processo

paritário.

O conteúdo deste estudo tem sido discutido em várias salas de pesquisa nos

últimos anos e provocado muitas identificações. Situações similares às de profissionais

da educação “de castigo”, relatadas por docentes e pesquisadores, levam a crer que o tal

“costume” ultrapassa as fronteiras estatais. O cenário é quase sempre o mesmo, “a escola

aonde ninguém quer ir”, para onde estão sendo enviados os consumidores falhos, que o

“centro não quer”.

O que tem garantido isso? A estrutura heterofóbica da sociedade capitalista que

está concentrando nos consumidores falhos (mercadorias que não interessam ao mercado

de trabalho, num determinado momento) a ira contemporânea para o banimento

(modalizado) de excedentes. Eliminando-se ilusões, resta dizer que as escolas líquidas da

“periferia das periferias” não refletem desajustes, não são anomalias, pois atendem ao

Projeto Capitalista Global, mesmo que esse não se encontre impresso em gaveta alguma.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo:

Edunesp, 1998.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em

mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301207

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1 Conceito utilizado pelo autor para expressar um comportamento adquirido na experiência e internalizado

pelos ocidentais em sociedades capitalistas da atualidade.

2 Diariamente, antes de o sol nascer, alguns veículos estacionam na entrada da vila em busca de boias-frias,

que seguem com suas marmitas improvisadas para a coleta de frutas, corte de mato ou limpeza de terrenos.

Retornam no final do dia, já com o dinheiro da lida (R$, 35,00) em mãos.

3 A Lei reconhece o ‘costume’, que, diferentemente do Direito, surge espontaneamente na sociedade e

resulta dos acontecimentos sociais. Os costumes integram o Direito Consuetudinário. Fonte: O que são

costumes e como eles influenciam o Direito? Disponível em: www.jurisway.org.br. Acesso em: abr. de

2014.

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