baiontropifando - uff · mundo no palco, a antropologia quando falamos do homem que é o pifeiro,...
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Baiontropifando:Instaurao de mundo e temporalidade da msica nas bandas
Dois Irmos e Pife Muderno
Celso Ramos
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Celso Ramos
Resumo
O presente trabalho, baseado em pesquisa ainda em processo, trata de
questes referentes ao fazer musical das bandas de pfanos. As reflexes
perpassam a instaurao de um espao-tempo nordestino no instante, mesmo, da
performance musical.
A pesquisa observa o pifeiro e a constituio deste outro mundo, instaurado
atravs da msica, a partir de um dilogo entre a filosofia heideggeriana do Dasein,
termo cuja traduo corrente na obra do filsofo em portugus presena ou ser-
a do qual me aqui aproprio como ao ou iniciativa do pifeiro; e a viso
antropolgica acerca da relao entre msica, magia e religio em autores como
John Blacking, Joanna Overing e Guilherme Werlang. Buscando uma possvel
aproximao entre o ser-no-mundo do pifeiro e o ser-no-mundo do xam
expresses do Dasein1 destes agentes este trabalho pretende supor uma outra
via de investigao musical cuja base compreenda: a questo da autoria
compartilhada, a existncia de um fazer musical dialtico, tanto sonoro quanto entre
os compositores e instrumentistas em questo, e o desvelar de uma conjuno
1 PRE-SENA= DASEIN A palavra dasein comumente traduzida por existncia. Em ser e tempo, traduz-se, em geral, para as lnguas neolatinas pela expresso ser-a. Evoca o processo de constituio ontolgica do homem , ser humano e humanidade. na presena que o homem constri o seu modo de ser a sua existncia, sua histria.(Cf.entrevista de Heidegger ao Der Spiegel, Rev. Tempo brasileiro,n 50, julho/set 1977 (HEIDEGGER: 1997, pg. 309).
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temporal no ntimo do ser a conjugar homem, msica e mundo, desvelando-os
maneira da natureza de Herclito: fuvsi kruvptesqai filei~~ physis kryptestai
philei, a autntica natureza das coisas ama estar oculta (KIRK, RAVEN,
SCHOFIELD, pg.268).
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Celso Ramos
Resumen
El presente tesina se basa en una investigacin quiz an en proceso, se
trata de cuestiones referentes al hacer musical de las bandas de pfanos. Las
reflexiones permean la instauracin de un espacio-tiempo del nordeste brasileo en
el instante, mismo, de la performance musical.
La investigacin observa el pifeiro y la constitucin de este otro mundo que
se establece por medio de la msica, a partir de un dilogo entre la filosofia de
Heidegger, del Dasein, trmino cuya traduccin comn en la obra del filsofo es
presencia o el ser-ah del cual me apropio como accin o iniciativa del pifeiro; y
la visin antropolgica sobre la relacin entre msica, magia y religin en autores
como John Blacking, Joanna Overing y Guilherme Werlang, buscando una possible
aproximacin entre el ser-en-el-mundo del pifeiro y el ser-en-el-mundo del xam (el
curandero) expresiones del Dasein de estos agentes. Esta investigacin pretiende
suponer un otro camino de investigacin musical cuya base comprenda: la cuestin
de la autora conjunta, la existencia de un hacer musical dialtico, tanto sonoro
cuanto entre los compositores e instrumentistas en cuestin, y el desvelar de una
conjuncin temporal en el ntimo del ser, a conjugar hombre, msica y mundo,
desvelndolos, ponidolos de manifiesto a la manera de la naturaleza de Herclito:
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fuvsi kruvptesqai filei la autntica naturaleza de las cosas ama estar oculta
(KIRK, RAVEN, SCHOFIELD, pg. 268).
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Celso Ramos
Sumrio
1. INTRODUO.....................................................................................................12
1.1. Fazendo a arte acontecer.............................................................................15
1.2. Ontem e hoje: o pifeiro e o xam..................................................................27
2. PIFONTROPORALIDADE ..................................................................................44
2.1. O tempo e a ao musical............................................................................48
2.2. Experimentando o tempo no tempo..............................................................53
3. ANALONTOPIFANDO.........................................................................................62
3.1. A dialtica musical no pife............................................................................63
3.2. Audisservao: o O Lovgo Mousikh.......................................................... 72
4. CONCLUSO......................................................................................................86
5.BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................91
6. ANEXOS..............................................................................................................95
6.1. Entrevista: banda de pfanos, msica e vida................................................95
6.2. Glossopifanrio...........................................................................................121
6.3. Fluxo do pensamento..................................................................................125
6.4. Epifanias: inspirados pela Musa.................................................................126
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Herclito: o horizonte no s fronteira. No vemos apenas o que se torna visvel o horizonte. Em tudo que vemos e no vemos, per-cebemos obliquamente o prprio horizonte. Apontamos e dizemos: l longe, onde cu e mar se encontram numa sutura, l est o horizonte. Mas o horizonte no a linha da diferena. a profundidade da identidade . Na visibilidade das diferenas a identidade se mostra com a diferenciao de cu e mar. Como ser o lugar de desaparecimento, o horizonte tambm o lugar de aparecimento do visvel. No s desaparecendo, tambm aparecendo, o visvel deixa ser o horizonte. em seu lugar que,dando-se a viso, o navio estancia no visvel. O horizonte no nem visvel nem invisvel, como cu, mar, navio. Para ser a estncia de visibilidade e invisibilidade , o horizonte se mantm di-stncia de visvel e invisvel. ob-stante e pre-stando viso que o horizonte di-sta de visvel e invisvel . E assim di-stando vem a estar, pro-stando-se como estncia de aparecimento e desaparecimento (CARNEIRO LEO: 1977, pg.182).
Frag.54
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA DA ARTE
Baiontropifando:Instaurao de mundo e temporalidade da msica nas bandas
Dois Irmos e Pife Muderno
Celso Ramos
Dissertao de Mestrado apresentada a coordenao do curso de Ps-Graduao em Cincia da Arte da Universidade Federal Fluminense.
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Werlang
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Niteri - 2009
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Os aedos merecem honra e respeito entre todos os homens sobre a terra;quem lhes inspira os poemas a Musa, que preza a tribo dos aedos.
(Odissia canto VIII)
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Agradeo ao Prof. Dr.Wallace de Deus por me aceitar, no programa, inicialmente, como ouvinte e ter me indicado o caminho do Pife Muderno; agradeo ao meu orix (orientador-xam), Prof. Dr.Guilherme Werlang pela sua generosa maiutica e por acreditar neste trabalho; ao Prof. Dr. Antonio Jardim pela ateno e elucidao esclarecedora a respeito dos caminhos heideggerianos;a Ricardo (Cmera)Mann, sempre em busca do som inusitado e sua esposa pela ajuda no trabalho de campo; a Carlos Malta por dividir com todos sua alegria no Bloco do Pife e ao Pedro Odenyr (meu filho) que j v som em tudo.
A realizao deste trabalho no seria possvel sem a fora e a viso de Jacqueline Barros, minha esposa e eterna conselheira; se no fosse ela, as idias e os delrios, aquilo que denominei de baiontropifia, permaneceriam dentro de mim. Por isso, esta dissertao dedicada a ela.
Deus nos abenoe.
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Celso Ramos
1. INTRODUO
Apresentamos, a seguir, a figura representativa do pifeiro, a partir da
criao de um espao-tempo nordestino. Este poeta ou aedo o ente que no
instante mesmo de sua atuao atrai, para si e para o instante de sua performance,
uma temporalidade outra, ou seja, aciona um real como um xam, cuja tarefa
espiritual a de conduzir um rito sagrado ou um culto a alguma divindade.
Baseando-nos em percepes heraclitianas, algumas vezes transcritas ou
interpretadas por Heidegger, observamos, nesta investigao, alguns pontos a
serem descritos, a saber, o Dasein como ao ou iniciativa do pifeiro, a perda de
uma autoria possvel vista sob a perspectiva atual de um fazer musical dialtico e a
conjuno homem, msica e mundo considerando-se as relaes histrico-culturais
s quais aquele que faz msica conduz o rito ou est submetido.
Aqui certamente importante ver que pragma no significa nem a coisa por si nem a atividade por si (praxi). Ta pravgmata aqui ,antes, a palavra para dizer uma totalidade originariamente inseparvel da relao entre coisas e homem. Traduzimos pragma por ao (Handlung). Essa palavra , no entanto,no significa a atividade humana (actio), mas o caminho unitrio com o qual, cada vez, as coisas esto presentes e disponveis mo,isto , esto relacionadas com a mo ; e como aquele que age atravs da mo, numa relao com o disponvel mo (Vor-handenen) (HEIDEGGER: 2008,pg.124).
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Inicialmente, trataremos de definir o conceito heideggeriano de Dasein em
relao ao tema estabelecido, ou seja, a relao do ser-a do homem do pife com o
ser a do homem comum.
A concepo apresentada da performance do pifeiro aquela
assemelhada dos cantores de feitos hericos. Os aedos ou trovadores, para
tornarem legtimas suas declamaes em forma de versos, chamavam as musas
para a instaurao de um espao onde o falar o fazer musical, e o saber, o
ouvir a msica. O rito baiontropifado2 do pifeiro produz uma voz cujos sujeitos
ouvintes audisservam3 como participantes da performance e no como meros
espectadores. Herclito aponta a existncia de determinado poder de cura em certos
cultos ou rituais, contudo atesta que tais ritos so como remdios mente do povo.
No caso dos pifeiros, a hiptese a de que o remdio (o som) flui no apenas para
estabelecer a cura de uma doena, mas para determinar um espao e um tempo. Os
olhos e os ouvidos daqueles que observam e ouvem a performance do som somam-
2BAIONTROPIFADO - Traduz a contrao entre baio, ontologia, antropologia e pife, tal como contramos o nosso objeto de estudo e os campos do conhecimento que escolhemos lanar mo para desenvolvermos a pesquisa. O baio, como gnero musical na produo da banda de pfanos, a ontologia como aspecto existencial na performance do pifeiro, instaurando, assim, um mundo no palco, a antropologia quando falamos do homem que o pifeiro, e, finalmente, o instrumento: o pife, que no caso do Seu Joo do Pife fabricado por ele mesmo.
3AUDISSERVAR - O termo foi cunhado para traduzir o ato de valorizao da recepo sonora, no propriamente musical. Exemplos: o som do sino da igreja, o som do freio do nibus, o som do apito do navio, o som do trovo... No nosso trabalho, o utilizamos para nos referirmos recepo da sonoridade dos pifes.
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se, abertos e atentos, feitura de um canal de transcendncia com a finalidade
nica do ser a, individualizado e grupal.
O ser-a do pifeiro pode ser considerado como uma conquista para o
espectador da performance (e no ao pifeiro). Para o homem que toca o pife sua
atividade, em movimento, representa sua existncia ordinria em um mesmo tempo
e em um mesmo espao. Para o espectador, h a experimentao de um kairs
original, primevo, o tempo oportuno dos gregos. Ademais, do fluir do som e da
instaurao da performance ritualstica que se constitui a temporalidade que
converge o todo a um s momento, fazendo o nascer da histria. Cada indivduo ali
representado, desde o que produziu um determinado instrumento at aquele que
toca e aquele que assiste trazem, consigo, articulaes de vida, saberes e
convices, sonhos de infncia, palcos outros j compartilhados, perturbaes de
morte, enfim, temporalidades.
No momento ritualstico, o xam pifeiro convoca a um mesmo espao e
momento as concepes antigas de todos os presentes e conjuga, em forma de
som, o jogo e o deserto, a vida e a morte.
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1.1. Fazendo a arte acontecer
Este trabalho aborda uma discusso a respeito do fazer artstico na
produo musical das bandas de pfanos. O que o fazer artstico ou sob que
prisma o fazer artstico observado neste trabalho? A questo a ser discutida
atende necessidade de se avaliar, dentro da categoria mencionada, a no
existncia de autoria, ou seja, de uma autoria, na verdade, compartilhada no espao
de execuo ocupado pelas bandas de pfanos, sobremodo pela banda Pife
Muderno, liderada por Carlos Malta e pela Banda Dois Irmos, liderada por Joo do
Pife. Estas bandas realizam peas musicais sem a preocupao de lhes apontar um
autor especfico.
No ato do fazer musical apontado, h uma relao dialtica. Originalmente
a Dialtica compreende a arte de dialogar, ou seja, apresentam-se os conceitos
atravs dos quais pretende-se uma suposta discusso.
J Herclito, filsofo que pensa a dialtica em profundidade, nela apresenta,
em seus fragmentos, a existncia, sempre inequvoca e insubstituvel, do conflito. O
fogo se transforma em todas as coisas e todas as coisas se transformam em fogo,
assim como se trocam as mercadorias por ouro e ouro por mercadorias (frag.90)
(BORNHEIM: 1972, pg.41) .
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A dialtica ganha o sentido de movimento. O ser no est para a
estabilidade, mas para uma constante transformao. Desta feita, em meio a tantos
significados modernos para dialtica, aquele no qual nos detemos e que aqui
apresentamos coaduna com as reflexes heraclitianas baseadas na reflexo de que
o ser deixa de ser o que era e torna-se outro por uma questo de constante
instabilidade metafsica na sua prpria natureza. Descemos e no descemos nos
mesmos rios; somos e no somos (frag.49a). Diremos, ento, que a questo da
existncia de um ser-pifeiro em Carlos Malta produz-se de forma dialtica, a partir
de um movimento de tenso, ou seja, representa, conforme as reflexes que
apresentamos, o Dasein.
O homem, e somente ele, v para dentro do aberto, sem, porm, avist-lo. Apenas a viso essencial do autntico pensar avista o prprio ser. Mas tambm aqui o pensador pode avistar o ser somente porque ele, como homem, j o vislumbrou (HEIDEGGER: 2008, pg. 227).
Toda concepo heideggeriana coloca o homem como centro, coloca a vida
acontecendo a partir dele. Ele representa a feitura das coisas e aquele que pode
originar a propulso para a dinmica do mundo. S o homem possui o atributo que
lhe d condies de ler o mundo e constru-lo. A nenhum outro animal concedido o
aceso ao entendimento ou a elaborao. A partir desta perspectiva, Heidegger faz
uma crtica histria do pensamento ocidental, apontando o homem como aquele
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que pode, tambm, encobrir o fenmeno originrio da presena. Deste modo, nos
lembramos de que o homem, possuidor deste atributo, no lugar de us-lo em seu
benefcio, faz justo o contrrio. Tendo sua viso toldada pelo edifcio do
conhecimento, esquece do ser. O atributo do qual falamos, traduz-se no
pensamento de Heidegger pela expresso Dasein.
Longe do mundo contemplativo, o mundo que Heidegger focaliza, preliminarmente, o mundo circundante, intercambia, na prxis cotidiana, as dimenses da vida ativa, o prtico da ao, o potico do produzir e do fabricar (NUNES: 2002, pg. 15).
Seu ser-no-mundo, ser-com-outro e o ser-para-morte fazem parte do Dasein.
Heidegger, ento, nos fala da prpria existncia do homem em um mundo onde j
se encontra lanado. Um homem cuja existncia em conjunto, ou seja, as coisas
no so atravs do homem, mas com o homem.
O ser do homem, o Dasein, tem a estrutura ontolgica de um ser-no-mundo, cujos elementos fundamentais so trs: identidade pessoal, mundo e habitar o mundo. Os modos mais primitivos de habitar o mundo so a ocupao com as coisas e a solicitude para com os outros. (LOPARIC: 2004, pg.48).
Sob uma analtica existencial, Heidegger investiga a maneira especfica de
ser-no-mundo do homem de um modo particular e do ser de um modo geral, de
onde se originam todas as coisas. Desta forma natureza, histria, espao, vida,
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presena, linguagem podem transformar-se em temas e objetos de investigao
cientfica, pois o ser sempre o ser de um ente. (HEIDEGGER:1977,pg.35).
O Dasein heideggeriano justo o que mantm o homem na sua relao
existente com o mundo, distinguindo-o de todos os outros entes. O princpio
existencialista, em Heidegger, questiona a maneira pela qual o ser humano conduz
seu destino e faz suas escolhas, lanando-se na produo em srie de seus
prprios pensamentos, explorando o prximo e perdendo de vez a memria de sua
essncia.
pois, visto que o ser humano a matria-prima mais importante, pode-se contar com que um dia, com base em pesquisa qumica contempornea, sero construdas fabricas para criao artificial do homem como matria-prima. (HEIDEGGER apud LOPARIC:2004,pg.52).
Esse homem, em toda a sua incompletude, ao mesmo tempo alienado do
seu prprio ser, nos apresenta uma certa nostalgia de sua origem. Nesta empreitada
por descobrir as origens ou o ser do ente, Heidegger volta seu pensamento para a
interpretao dos fragmentos do filsofo efsio, Herclito. Suas reflexes seguem
na tentativa de trazer tona um relacionamento com a realidade sob uma
perspectiva da ontologia fundamental. Apesar da complexidade que a abordagem
filosfica heideggeriana sustenta, h, na verdade, um elo de aproximao com a
ao cotidiana. Este elo se d a partir das relaes inter-pessoais chegando s
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relaes entre povos e naes. A questo, consequentemente, engloba o indivduo
e o coletivo nos mostrando que no h sentido no homem sem o mundo e no h
sentido no mundo sem o homem.
O pifeiro, homem a respeito do qual falamos em nosso trabalho, possui
caractersticas que nos chamam a ateno tanto em relao ao que tange o
comportamento social quanto em relao aos aspectos voltados constituio de si
mesmo (o pifeiro como sujeito no mundo) e do mundo. Com sua presena e ao,
instaura-se o mundo nordestino. , ento, a partir desta observao e
experimentao de sua msica que aproximamos o pensamento de um filsofo
contemporneo, Martin Heidegger, a esta manifestao da cultura popular. A
proposta encontra elos, ainda, entre as concepes de verdade e realidade
estudadas e estabelecidas entre os pr-socrtico, mais especificamente nas
concepes do pensamento de Herclito.
Fazemos uso de algumas expresses heideggerianas como Dasein e ser-
no-mundo, entendendo que o Dasein mora na agncia do pifeiro que, neste mundo,
determina seu ser sob caractersticas especficas: um ser-pifeiro em sua maneira
prpria de exercer sua existncia.
O estar-a transcendente significa: ele , na essncia do seu ser, formador de mundo e, claro est, formador no sentido mltiplo de que deixa o mundo acontecer, de que com o mundo fornece a si uma viso originria
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que no apreende expressamente, embora funcione justamente como prefigurao para todo ente revelado, sob o qual se encontra o prprio estar-a (HEIDEGGER: 1949, pg.77).
A ao do pifeiro na sua presena como formador de mundos e sentidos
mltiplos, nos parece causar transformaes no espao que ocupa. Este homem
manipula, atravs da msica, o tempo e, efetivamente, instaura um mundo. No caso
da Banda de Pfanos, um mundo nordestino se desvela sob um intrincado
mecanismo envolvendo msica, homem e mundo. Ou seja, baiontropifando, o pifeiro
toca o baio, gnero musical nordestino, sob uma fenomenologia ontolgica, nica
perspectiva que nos parece mais prxima ao pensarmos a existncia relacionada
com a msica, pois
a obra de arte abre a sua maneira o ser do ente, na obra, acontece esta abertura, a saber, o desocultar, ou seja, a verdade do ente. Na obra de arte, a verdade do ente ps-se em obra na obra. A arte o por-se em obra da verdade (HEIDEGGER: 1977, pg.30).
Considerando a msica das bandas de pfanos como obra de arte, o
desocultar, ao qual refere-se Heidegger, prontamente observado e experimentado
por quem tem contato com essa msica. A ao dos pifeiros e percussionistas em
suas presenas nos remetem, diretamente, paisagem sonora nordestina.
Podemos, assim, experiment-la em qualquer outro ambiente que no seja o
nordestino, propriamente dito. Essa possibilidade, como j dissemos, no acontece
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nica e exclusivamente porque a msica do pife trabalha com tais e quais escalas, e
nem s porque o instrumento feito de taquara ou s porque o homem quem toca
e na sua performance desoculta-se o mundo. Todos esses aspectos formam uma
unidade ( lovgo) que surge justamente porque se d a acontecer. A msica a
produo deste brotar e s enquanto acontece (fuvsi).
Pois, quanto mais puramente a obra arrebatada na abertura do ente por ele mesmo patenteada, tanto mais simplesmente nos empurra, e ao mesmo tempo, nos arranca ao habitual. Seguir essa remoo significa: alterar as nossas relaes habituais com o mundo e a terra e, a partir de ento, suspender o comum fazer e valorar, conhecer e observar, para permanecer na verdade que acontece na obra (HEIDEGGER: 1977, pg.53).
O ser-pifeiro que mora em Joo do Pife e Carlos Malta se mostra no
acontecer da msica em suas performances ou, melhor dizendo, na agncia, cada
um, de seu Dasein. Nas performances (sejam estas no palco do teatro, na praa da
cidade ou na areia da praia) desoculta-se-nos no s o ser-pifeiro como, tambm,
desoculta-se-nos a instaurao de um mundo nordestino.
O ente como ente s pode ser enquanto assoma e advm no clareado desta clareira. S esta clareira confere e garante a ns, homens um acesso em direo ao ente, que ns prprios somos graas a esta clareira, o ente desocultao de certos e variados modos. O ente s pode ser oculto no espao de jogo do clareado. Todo ente que vem ao nosso encontro e que nos acompanha mantm esta estranha oposio da presena na medida em que ao mesmo tempo se retm sempre numa ocultao. A clareira em que este ente assoma em si simultaneamente ocultao. Mas a ocultao reina no seio do ente de modo duplo (HEIDEGGER: 1977, pg.42).
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A partir da citao acima referida, entendemos clareira como aquilo que
simboliza o acontecer da abertura ou a prpria instaurao do mundo que em um
movimento de desocultao/ocultao est a para todos. O mundo vem ao nosso
encontro e no o controlamos. No entanto, com a msica e com o homem que
acontece o surgimento desta instaurao. Assim, fundamentamos a nossa
proposio ao evocarmos o pensamento heideggeriano quando falamos desta
experincia especfica com a msica de pife, visto que o pensamento de Martin
Heidegger foca a ao e a inter-ao do homem com o mundo.
os instantes em que esses sentimentos so experimentados juntamente imobilizam o tempo, porque so experimentados juntos, ligados pelo interesse fascinados da vida. Eles transportam o ser para fora da durao comum (BACHELARD: 1986,pg.188).
O transporte do ser para fora da durao comum, como afirma Gaston
Bachelard, acontece justamente na modificao do ambiente. um acontecimento
que se faz no espao ocupado pela ao do pifeiro em sua performance. Tal ao
compreender o que denominaremos, mais adiante, como experincia do tempo no
tempo.
Escolhemos o pifeiro por ser ele, via de regra, aquele homem desprovido de
um conhecimento reconhecidamente oficial, construindo seus instrumentos a partir
de um saber oral, passado de gerao a gerao ainda que no formalizado em
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mtodos e por, ao mesmo tempo, poder viver ele, como no caso de Carlos
Malta, de um saber construdo por outros, por aqueles que expressam tal
conhecimento primevo como, de fato, um saber formal.
A comum inclinao para olhar com condescendncia, ainda que aprovadora, a arte marginalizada, onde se inscreve a dos primitivos, deve ser pois reexaminada por ns. Eles no se inserem num mundo parte, rstico, ou pitoresco, ou trgico e socialmente reivindicador, sobre o qual nos inclinemos com espectadores interessados. Apenas exprimem, com valores prprios e uma linguagem de igual importncia nossa, uma realidade interna comum a todos, aproximando-a pela utilizao de outros elementos. A arte para eles faz parte do fluxo da vida (COELHO FROTA: 1978, pg.6).
Como um outro pifeiro notrio, que denominamos primitivo, encontramos o
Sr. Joo do Pife, um pernambucano que vende seus pifes e zabumbas na Feira de
Caruaru, instrumentos fabricados por ele como meio de sustento social, e mesmo
existencial. Sabe-se que a banda de pfanos exerce uma funo determinante junto
comunidade da qual participa. Sua ao artstica se confunde com a prpria
experincia da existncia cultural, prtica aliada ao fato de cada msico que a
compe ocupar outras funes sociais e profissionais dentro desta mesma
comunidade.
Foi ento por via de contraste que, com o fim de nos auxiliar nesta
investigao, escolhemos tambm observar o msico-lder do Pife Muderno, Carlos
Malta. Carlos Malta flautista com formao erudita e conhecimento daquilo que
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conhecemos como msica ocidental, msica baseada em um longo processo
histrico, ensinada e reproduzida por orquestras e conservatrios. Seu
conhecimento est inscrito em uma certa dimenso da cultura, mas apesar dessa
vivncia, Carlos Malta escolhe mergulhar no universo que consideramos como
primevo, onde a flauta, feita a partir da taboca, aparece como um instrumento nico
com histria prpria, tal a sua capacidade expressiva e sua simplicidade no que diz
respeito ao material usado para sua confeco.
O primitivo, neste caso, o primal, o bsico, estou falando do ser (MALTA: 2008, entrevista).
Tomados como ser-pifeiros, a saber, como agentes do Dasein dum ser-no-
mundo especfico, Joo do Pife e Carlos Malta compartilham da condio de pifeiros
atravs da sonoridade do pife. Atravs do que apontamos como relao dialtica,
autores e intrpretes das melodias executadas tanto pelo Pife Muderno, comandado
por Carlos Malta, quanto pela Banda Dois Irmos, comandada por Joo do Pife,
atravs de suas performances, materializam um conjunto de hbitos, instaurando, no
espao, um tempo nordestino de reminiscncias ou o prprio mundo nordestino.
A dialtica, no fazer musical de Carlos Malta, d-se no msico-pifeiro do
presente. Este busca, a partir do movimento de tenso entre instrumentista e o
compositor, estabelece uma relao de identificao com o msico-pifeiro do
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passado. Seu baio no deixa de ser seu, mas passa a ser do outro na medida em
que, ao tocar o instrumento, congrega impresses de melodias j ouvidas e que
remetero o ouvinte ao ambiente nordestino.
Ao nos depararmos com a atitude de Carlos Malta ao tocar o seu pife, nos
aparece somente o aspecto dialtico positivo de sua ao, ou seja, o aspecto da
instncia da performance. Em relao ao aspecto dialtico negativo, a uma
identidade pretrita, oculta ou implcita, Carlos Malta um autor do agora. Em outras
palavras, Malta representa a figura do intrprete de tal e tal melodia e, naturalmente,
comum que nos fixemos neste aspecto, s expensas de sua criatividade autoral,
pois aquele o aspecto que mais de imediato se nos apresenta.
sempre surgir o que se apresenta integralmente e apenas no puro surgir. (...) a sentena de Herclito diz que o surgimento to compatvel com o declnio que chega mesmo a favorec-lo. O surgimento e por ser um surgimento um declnio (HEIDEGGER: 1998, pg.122/127)
Assim h, tambm, aquele aspecto do qual no nos damos conta e que habita
o interior do fenmeno ou do acontecimento no momento da ao do tocar: a
condio de autor convive com a condio do intrprete criando, assim, o
movimento que denominamos de dialtica do aparente e do oculto, ou seja, autor e
intrprete moram em Carlos Malta, de modo que uma instncia de forma alguma
anular a outra, complementando-se ao invs numa terceira uma totalidade
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espao-temporal. O que suceder, a partir desta dialtica, ser o conflito entre estas
duas instncias, conflito que pai de todas as coisas povlemos pantwn...
pathvr esti (HEIDEGGER:2008,pg.36) atravs do qual se d o movimento
do ser-pifeiro em Carlos Malta, nos aproximando definitivamente da dialtica
heraclitiana : polemos pur4, as viraes do fogo (HEIDEGGER:1998, pg.172). O
autor, Carlos Malta, sendo tanto um criador como um intrprete, se aproxima do
pifeiro do passado cujo aspecto positivo ou aquele que est aparente, isto , o
que aparece como evidentemente performtico no surgimento de sua
interpretao, deixa de ser o mais importante. Carlos Malta, neste momento, se
aproxima de Joo do Pife atravs da releitura da banda de pfanos Pife Muderno. O
que de fato ter importncia ser o momento decisivo, criativo do fazer (a
performance).
A msica tem uma coisa de... quanto mais voc se interioriza mais voc se mostra. Se interioriza tanto que fica evidente no seu ser. Voc uma coisa agindo artisticamente, outra andando na rua, pagando conta... (MALTA: 2008, entrevista)
4 Pu~~r (fogo) significa fogo da brasa imoladora ,o fogo da fogueira, o fogo vigilante de acampamento, o fogo da lareira, mas tambm o fogo da tocha e da luz das estrelas.(...) No fogo so essenciais as remisses ao transluz, ao que arde e brilha, e tambm ao que destri, abate, sucumbe, extingue e apaga. O fogo chameja e no chamuscar se d a ciso entre o claro e o obscuro; o chamuscar junta e disjunta o claro e o obscuro. (HEIDEGGER:1998,pg. 172)
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Baiontropifando
1.2. Ontem e hoje: o pifeiro e o xam
Desta feita, podemos considerar a expresso dos sons dos pifes e das
danas que acompanham a harmonia musical de seus integrantes (que so, ao
mesmo tempo, os msicos e os moradores dos arredores, isto , pifeiros de
Caruaru). Ou seja, os pifeiros encarnam a prpria comunidade fazendo com que ela
seja tocada, danada e vivida. Delimitamos, neste trabalho, a comunidade urbana no
caso de Carlos Malta e a comunidade que circula na Feira de Caruaru, onde Seu
Joo do Pife vende seus instrumentos. Neste caso especfico do grupo de pife, a
participao da comunidade se efetiva na medida em que narra, histrica e
socialmente, no s a passagem do tempo, mas viabiliza, tambm, a permanncia
da identidade cultural de um povo atravs do tempo.
As anlises musicais so, na essncia, descries de seqncias de atos criativos de diversos tipos: deveriam explicar os eventos sociais, culturais, psicolgicos e musicais que, nas vidas dos indivduos e dos grupos, levam produo do som organizado. No nvel superficial, a criatividade em msica se expressa sobretudo na composio musical e na performance, na organizao de novas relaes entre sons ou de novos modos de os produzir. A ateno ao som como um fim em si mesmo, ou aos meios sociais para se atingir tal fim, so dois aspectos da criatividade musical que no se pode separar, e ambos parecem estar presentes em muitas sociedades. Quer coloquemos nfase no som humanamente organizado, ou na humanidade sonoramente organizada, numa experincia tonal relativa a pessoas ou numa experincia em comum relativa a sons, a funo da msica reforar, ou trazer as pessoas mais para perto de certas experincias que vieram assumir um sentido dentro de sua vida social (BLACKING: 1973, pg.71).
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Celso Ramos
Inserida na cultura popular e considerada at ingnua, podemos afirmar que a
banda de pfanos, atravs do som do Pife Muderno que alia a tecnologia da
amplificao e da qualidade sonora com a herana cultural oral transporta, para o
palco no qual se apresenta, toda a ambientao de um mundo nordestino com suas
ladainhas, suas festas e as vivncias ou experincias de um povo que permanece,
mas que tambm o reflexo de seus antepassados. Assim, na sntese de sua
expresso, ao som do baio, surge uma outra sugesto de temporalidade, um
tempo BAIONTROPIFADO pela execuo de uma paisagem sonora da qual nasce
um novo espao de produo, um espao redimensionado pelo som a fim de
concretizar os tempos em um tempo, ou diramos, uma antropologia sonora, em
seus aspectos ontolgicos, do fazer musical da banda de pfanos.
Este saber-fazer referencial, ou melhor, experimental, nos aponta para a
ligao existente entre o homem do agora e o homem do passado. Do ponto de
vista existencial, nos parece certo afirmar que ao configurar-se o desvelamento
o momento dos festejos e o ato de tocar materializados no som reafirmam-se
valores e reminiscncias que so a prpria constituio do processo de valorizao
da memria, a emergncia da identidade cultural.
A formao da banda de pfanos, vista no s sob o seu aspecto instrumental,
mas tambm pelo aspecto social, ou seja, a partir dos msicos que a integram,
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Baiontropifando
apresenta peculiaridades importantes tais como a condio na qual estes msicos
esto inseridos. Ele, o msico, no s um instrumentista, mas um cidado que
possui uma ocupao dentro da comunidade da qual participa. Ser no perodo das
festividades, ento, que ele exercer sua funo de msico. E, segundo Carlos
Malta, em entrevista,
Ele sempre tocou por nenhum, ele comeou a tocar pra ele... essa humildade que inerente no tocador... ela primordial. O msico (se referindo ao pifeiro) aquele cara que na maioria das vezes o agricultor. Se ele no vende cenoura vai para a tocata. Se a tocata no d, ele volta lavoura. Muitas vezes esse agricultor produz para si mesmo (MALTA: 2008, entrevista).
Desta forma, podemos atestar que a arte parte viva da vida deste indivduo
(na famosa expresso de Nietzsche, to fcil na boca do nacional-modernismo
brasileiro, de Mrio de Andrade): ela se integra vida deste homem de tal modo a
levar sua identidade a confundir-se com a obra. O indivduo, ento, despessoaliza-
se, descaracteriza-se como o artista e torna-se um msico ligado a outros tantos
msicos, na medida em que realiza este fazer. Carlos Malta, em entrevista, fala de
sua identificao com esse msico que chamou sua ateno quando do incio de
seu contato com a flauta.
Mais tarde eu d de cara com a banda de pfano de Caruaru... aquele... (pega o pife e toca o tema pipoca moderna) Aquilo ali... naquele momento... eu falei a flauta tem algo... eu me toquei da coisa do heri do pfano, esse cara to popular nas cidades (...) comecei a pesquisar essa parte da msica... saber sua etnia (MALTA: 2008, entrevista).
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Celso Ramos
Ainda encontramos, no depoimento do compositor, referncias a sua memria
de menino, quando identificava, o pifeiro, como o heri, aquele responsvel no s
por alegrar a comunidade, mas que agregava em si mesmo uma importante insero
social.
Um msico individual notvel algum que se coloca em contato com foras espirituais, tal como um mdico ou participante dum culto de possesso, sendo portanto capaz de exprimir uma gama maior de experincias que a maioria das pessoas (BLACKING:1973, pg.35).
Encontramos, ento, na figura do xam, lder espiritual de uma tribo, por
exemplo em seu respectivo contexto cultural a figura do pifeiro, como aquele
que abriga um aspecto instaurador de mundos, a partir da relao entre estrutura de
referncia cosmolgica e performance eventual desta cosmologia sob a forma de
arte, retrica ou musical. Assim como encontramos aproximaes entre o heri
pifeiro e a capacidade de instaurar mundos, identificamos este mesmo pifeiro com o
lder religioso ruwang, descrito nos trabalhos de Joana Overing entre os piaroa,
quando a pesquisadora diz que
O ruwang dos piaroa era capaz de fazer o seu trabalho curar, tornar a terra frtil, proteger a sua comunidade por estar ele tambm a se ocupar da construo do mundo, da separao e juno de verses disponveis, e.g. os mundos dos tempos anteriores e dos tempos hodiernos (OVERING: 1990, pg.9).
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No trabalho de Guilherme Werlang, entre os marubo, este discorre sobre uma
sociedade sonoramente organizada, onde os xams, responsveis pela cura e
atualizao dos mitos da comunidade, ao invocar os espritos atravs de sua
performance (canto-mito), instauram um mundo determinado e temporalizam o
instante-zero de sua cosmologia.
Atravs do saiti, o xam alcana percepes sintnicas alternantes face aos entes csmicos, cuja pertinncia para a esfera humana to real quanto essencial para a simples constituio dos corpos humanos.(...) O que ns distinguimos a temporalidade: cronologia histrica e musicalidade mtica e vice-versa. O que temos em termos de organizao espacial entre esses povos est, primeiro, firme na forma temporal; segundo, essa forma encontra a sua voz na msica, e essa msica traduz a gnese humana, enquanto toda a ontognese provm da antropogenia (...) essa criao humana um amlgama de modalidades de exterioridade (WERLANG: 2001, pg.10,19).
Guardadas as devidas propores, no que diz respeito s citaes acima
expostas, no podemos deixar de notar uma aproximao entre o xam e o pifeiro.
Ambos, no momento de suas performances, promovem o desvelamento que se d
a partir de suas iniciativas, aqui, entendidas como o Dasein:
(...) longe do plano contemplativo, o mundo de Heidegger focaliza, preliminarmente, o mundo circundante, intercambia, na prxis cotidiana, as dimenses da vida ativa, o prtico da ao, ao potico do produzir e do fabricar. (...) O Dasein no habita o espao, ele espacializa: abre o espao que ocupa como ser-no-mundo (NUNES: 2002, pg. 15,17).
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O som do pife, e o pifeiro em sua performance, abrigariam uma capacidade
no-escrita, ganhando fora pela condio de escapar ao j-feito, pois, em sua
dinmica, as contribuies do pifeiro so aceitas, e cada um que toca,
acrescentando uma rtmica diferente, um trecho a mais ou um modo diferente de
interpretao como em uma colcha de retalhos cria um conjunto vivo e
resistente mantendo-se, o pifeiro e sua msica, sempre numa constante mutao
trazendo, em seu corpus, aspectos existenciais e simblicos.
Se certo afirmar que na msica das bandas de pfanos h esta possibilidade
de nos encontrarmos com uma realidade nordestina, ou seja, que atravs dela
podemos ter uma experimentao simblica, passamos, ento, a considerar a
condio do autor dentro deste grupo formado por annimos, homens simples que
trabalham na lavoura, que so comerciantes ou profissionais liberais, mas que pela
fora da cultura musical conseguem unir as instncias que se separam e, num
momento de suas vidas, dedicarem-se a uma forma ampla, ainda que especfica de
fazer musical. Como j vimos, este fazer rene no s a msica, mas todo um
arcabouo cultural que, de tempos em tempos, relembrado e destacado de sua
funo social. So homens que carregam essas memrias de memrias,
reminiscncias, no corpo e na alma, fazendo a ligao entre a natureza e a cultura.
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A msica, como aquela que nos transmite e revela uma paisagem cuja
experincia se torna coletiva (fazendo, aqui, referncia cultura e aos costumes de
forma explcita) poder, conseqentemente e vice-versa, instaurar um outro tempo.
O tempo a ser experimentado no instante mesmo em que assistimos e ouvimos os
pfanos onde, ento, o passado, o presente e o porvir se mostram inteiros no
evento.
pelo poder que a msica tem de criar um mundo de tempo virtual que Gustav Mahler disse que ela pode nos levar a um outro mundo o mundo no qual as coisas no se sujeitam mais ao tempo e ao espao. Os balineses falam da outra mente como um estado do ser que se pode atingir atravs da dana e da msica. Eles se referem a estados nos quais as pessoas se tornam sobremaneira atentas verdadeira natureza do seu ser, ao outro eu dentro de si e de outros seres humanos, e sua relao com o mundo ao seu redor. Velhice, morte, tristeza, sede, fome e demais sofrimentos desse mundo so vistos como eventos transitrios. H uma liberdade para com as restries do tempo e uma concentrao completa no Instante Atemporal do Esprito Divino, a perda de si no ser. comum experimentarmos a vida com maior intensidade quando h uma subverso dos nossos valores normais do tempo, e apreciamos a qualidade ao invs da quantidade do tempo que passamos a fazer alguma coisa. O tempo virtual da msica pode ajudar a gerar tais experincias (BLACKING: 1973, pg.37).
Encontramos esta experincia numa das falas de Carlos Malta:
Quando voc entra no mar... logo ali est o Japo... e a frica... o mar no tem fronteiras; muito parecido com a msica... o mundo muda de alguma forma (...) a msica corta o momento. aquele interldio (MALTA: 2008, entrevista).
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Celso Ramos
A sensao de conjugao dos tempos num s espao transforma-se em um
encontro. Do mesmo modo como acontece com aquele que ouve o som, acontecer
com aquele que se apresenta como autor-intrprete das melodias. O autor
carregar, consigo, internamente, a condio de no-autor. No momento em que
tocar seu instrumento, o intrprete este co-autor que remete a uma no-autoria
instaurar um mundo, no tempo presente, uma ligao com os tempos do
passado, tempos dos quais no se pode rever autorias e ele, ento, se reunir
aos outros autores como um dos pifeiros.
A obra [de arte] enquanto obra instala um mundo. A obra mantm aberto o aberto do mundo. Mas a instalao de um mundo apenas um dos dois traos essenciais a referir do ser-obra. O outro trao que lhe pertence, tentamos torn-lo visvel do mesmo modo a partir do que mais imediatamente se apresenta da obra. (...) Por onde a obra se retira e o que ela faz ressair, neste retirar-se, eis o que chamamos a terra (Erde). Ela o que ressai e d guarida (das Hervorkommend-Bergende). A terra o infatigvel e incansvel que est a para nada. Na e sobre a terra, o homem histrico funda o seu habitar no mundo. Na medida em que a obra instala um mundo, produz a terra. O produzir deve aqui pensar-se em sentido rigoroso. A obra move a prpria terra para o aberto de um mundo e nele a mantm. A obra deixa que a terra seja terra (HEIDEGGER: 1977, pg.35).
O tempo, no qual se aplica o sentido e fundamento originrio da obra-de-
arte, tempo no qual estamos inseridos, o tempo que, fora da experincia artstica,
s nos permite uma viso limitada. Deste modo, ao ouvirmos as Pifanoiesias5
5PIFANOIESIAS H, sem dvida, uma potica no som do pife. A pifanoiesia mora na simplicidade complexa da qual nos fala Carlos Malta em entrevista. Complexidade capaz de, a partir de duas vozes, nos fazer sentir a presena de uma harmonia que, de fato, no existe
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Baiontropifando
sonoras, embaladas pelo tringulo e a zabumba, que estabelecemos um vnculo
com aquele outro tempo o tempo denominado pelos gregos de Kairos e, de
fato, nos identificamos com aquele espao criado sem, contudo, sabermos por
quais vias este processo identificatrio acontece. Tal ligao ocorre, justamente,
porque a msica tem a possibilidade de romper com o tempo Chronos, na sua
instncia horizontal, com o tempo datado na fsica newtoniana, unilinear,
unidirecional e irreversvel abrindo uma janela para o tempo Kairos, na sua
instncia vertical, onde acontece no somente uma releitura do espao como uma
experimentao do passado, no aquele passado da simples lembrana e sim o
passado imemorial que revela a plenitude do tempo (SILVA:1992,pg.151, in
NOVAES). No se trata, to-somente tampouco, da mera verticalidade que se ope
sincronicamente a uma horizontalidade diacrnica, como numa partitura musical
metfora bi-dimensional, atemporal de uma viso sobre a estrutura universal do
mito, como em Lvi-Strauss. Trata-se antes da verticalidade potica contra a
horizontalidade prosdica, conforme Bachelard. H, ainda, a circunstancialidade
espao-temporal do encontro daquele que ouve com a condio que o pifeiro vive
em seu interior, a condio mesma de no-autor, que surge no ato do fazer musical
instrumentalmente, mas que brota da relao dialtica das vozes das flautas. Na mesma dimenso da filosofia e de seu modo de pensar situa-se apenas a poesia (...) No poetar do poeta, como no pensar do filsofo de tal sorte, uma montanha, uma casa, o chilrear de um pssaro perde toda a vulgaridade. (HEIDEGGER:1969, pg. 55)
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coletividade.
Aquela aparncia do aqui e agora, aquela que se refere ao tempo
cronolgico orienta nossa viso para o imediato, para o fenmeno do instante do
palco ou da apresentao na praa com a banda e seus componentes evoluindo em
suas roupas caractersticas. Esta experincia no passa do contato visual e do
contato corpreo, instaurados no tempo Chronos e, absolutamente, limitada pelos
dias, pelas horas e pelas estaes.
Enquanto o tempo da prosdia horizontal, o tempo da poesia vertical. A prosdia apenas organiza sonoridades sucessivas; regula cadncias, administra arrebatamentos e emoes, muitas vezes inoportunamente.(...) [Por outro lado], tudo que nos afasta da causa e da recompensa, tudo que nega a histria ntima e o prprio desejo, tudo que desvaloriza ao mesmo tempo o passado e o futuro encontra-se no instante potico (BACHELARD 1986, pg. 184,187).
O que se instaura no tempo Kairos, temporalidade diferenciada, representa
muito mais do que o tempo que o indivduo passa ao assistir a banda, ao evento.
Aquele momento se configura como o tempo que Michel de Certeau chamar de
golpe:
Segundo o modo do momento oportuno (kairos), ela [a temporalidade diferenciada] produz uma ruptura instauradora, sua estranheza torna possvel uma transgresso da lei do lugar, saindo de seus insondveis e mveis segredos, um golpe modifica a ordem local. (...) Mas essa mudana tem como condio os recursos invisveis de um tempo que obedece a outras leis e que, por surpresa, furta alguma coisa distribuio proprietria do espao (DE CERTEAU 1984, pg.161).
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Acreditamos existir, na msica, caractersticas que possibilitem a construo
de um espao, mesmo que virtual. Este possvel espao sonoro, assim como o
espao de nossa casa, possui lugares conhecidos que criam familiaridades. No caso
da msica, h uma certa previsibilidade dos caminhos a serem tomados.
A produo musical mencionada nos aponta, ainda, possibilidade de
multplices superposies de realidades, onde os acontecimentos se do de uma
forma simultnea e no sucessiva subvertendo, assim, semelhana da dita
msica modal em Wisnik, a noo de temporalidade construda pelo sistema tonal,
condizente com a nossa vivncia corrente do tempo no ocidente.
[Na msica modal] as melodias participam da produo de um tempo circular, recorrente, que encaminha para a experincia de um no-tempo ou de um tempo virtual que no se reduz sucesso cronolgica nem rede de causalidades que amarram o tempo social comum. (WISNIK: 1989, pg.78).
Carlos Malta, em entrevista TVE (julho de 2006), afirma que entre o baio
e o blues h uma ligao, e que no fundo os caras so do mesmo lugar / ns
podemos tocar o blues com a batida do baio de forma intuitiva, reunindo a
sonoridade blue note ao modalismo nordestino. Carlos Malta perscruta um caminho
cuja sonoridade remete o ouvinte a uma unidade num tempo determinado porm
contrrio ao comum, subitamente feito contra-intuitivo.
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Celso Ramos
A sonoridade ingnua dos pifes carrega consigo um trabalho feito pela
comunidade, expresso da cultura de um povo materializada no som. Esta sntese
da expresso cultural, por sua vez, no se apreende atravs dos canais
institucionais racionalmente estabelecidos. Segundo John Blacking,
A originalidade pode ser expresso de um comportamento exploratrio inato para com os materiais acumulados de uma tradio cultural; e a capacidade de sintetizar, que costuma-se dizer que distingue o gnio do talento, pode exprimir a organizao cognitiva total que resulta da experincia das relaes que existem entre os grupos sociais que usam e desenvolvem as tcnicas da tradio (BLACKING: 1973, pg.35).
Todo smbolo contido na sonoridade do pife e na atividade comunitria
exercida pelo grupo de pifeiros (entes que, na msica, vislumbram o horizonte
ontolgico o desvelamento do ser... cf. HEIDEGGER:1969,pg.129), faz parte de
um jogo de relaes entre o sagrado e o profano, pois a mesma banda que
acompanha a novena aquela que anima o arrasta-p noturno, fazendo parte
integral da vida da comunidade.
Quando eu pego o instrumento, se eu t na rua ou na praia, o espao que est em torno se torna um anfiteatro e, bicho, alguma coisa tem que acontecer ali, se no acontecer porque eu no fiz acontecer, eu no me dei para isso, mas normalmente acontece. (...) Essa humildade perante a msica inerente ao tocador, primordial pra que voc seja aquele cara que t pronto pra transformar o momento (MALTA: 2008, entrevista).
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Baiontropifando
6
Dando continuidade a este trabalho, nos propomos a investigar, por
conseguinte, a questo referente ao espao BAIONTROPIFADO por paisagens
sonoras que instauram um outro tempo... pois assim que ouvimos as
PIFANOIESIAS, especificamente, da banda de pfanos de Caruaru (Dois Irmos) e
da banda de pfanos Pife Muderno, ao revelarem ou desvelarem aquilo que o
homem teima em esquecer este trabalho, nos propomos a investigar, por
conseguinte, a questo referente ao espao BAIONTROPIFADO por paisagens
sonoras que instauram um outro tempo... pois assim que ouvimos as
PIFANOIESIAS, , sua condio de ser-no-mundo. BAIONTROPIFAR nos parece ser,
ento, o fazer musical como assinalado anteriormente. H de se considerar que
6 Bloco do pife; observamos aqui o momento da ao do pifeiro (Carlos Malta) no meio dos brincantes.
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Celso Ramos
exista, neste fazer, aspectos antropolgicos e ontolgicos, pois a cultura nele
representada atravs da arte e, aqui, especificamente, por meio da performance
musical, o Dasein de agentes dessa cultura. A msica da banda de pfanos o
objeto de nossa ateno. Com o (ser) homem tocador de pfanos, tendo, como meio,
a banda, h o surgimento de um mundo nordestino no palco, e sobre a ao do
pifeiro, personagem transformador do espao circundante, que nos debruamos,
conforme a fala do msico Carlos Malta.
Na epifania do som do pife mora, PIFONTROPORALIZANDO7, o nosso
aqui e agora, como j mencionado, em uma existncia sem mensuraes, sem
rupturas, ou seja, numa existncia una em seu acontecer, percebida apenas por
nossa AUDISSERVAO. atravs dela que FILONTROPIFAMOS8 nossos
7PIFONTROPORALIZAR - A msica a linguagem que se faz no tempo, portanto, temporaliza o espao subvertendo nossa percepo. Ao ouvirmos as bandas de pife ou qualquer espetculo musical, na medida em que nos entregamos, experimentamos uma outra relao com o tempo e o que parecia uma eternidade transcorre em minutos. Como arte do tempo, a msica por si representa um evento. singular, porque mesmo que se repita uma pea musical, ela nunca se faz ouvir de maneira idntica execuo anterior (OLIVEIRA PINTO: 2002, pg.231).
8FILONTROPIFAR Entendemos que a filosofia, muito mais do que uma sistematizao do conhecimento, , antes de tudo, o pensar a respeito de qualquer questo na linguagem que lhe prpria. O termo, ento, diz respeito ao prprio ato de pensar o pife e refletir de modo a apresentar aspectos ainda no demonstrados, pois o pensar no cessa, contnuo sem esperar concluses, sem pretenso de construir ou fundar pensamentos, apenas questionamentos. Aqui, ento, filosofar investigar o extra-ordinrio (...). Por no se achar na ordem trivial de todos os dias, no somos forados a empreend-la [a filosofia] em razo de alguma exigncia ou determinados preceitos. Completamente fora do ordinrio, a investigao em si mesma se apia por completo, prpria e livremente no fundo misterioso da liberdade. (HEIDEGGER:1969, pg.43).
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comentrios, na tentativa de respondermos questes impostas por esta arte, a arte
da msica, to pouco investigada na sua abertura ao ser. Apesar de muito
consumida et pour cause a msica acaba refletindo uma vivncia
superficializada no s de si mesma, como, tambm, a da realidade de um modo
geral. Queremos, assim, explorar a face oculta desta arte, pois como diz Herclito,
fuvsi kruvptesqai filei~~ - (physis Kryptesthai phylei) a autntica natureza das
coisas ama estar oculta (KIRK,RAVEN,SCHOFIELD: pg.268)
Por BAIONTOLOPIFANDO, entendemos no s um dos lados da questo,
mas a prpria constituio ou profundidade da questo em si, ou seja da anlise
provocativa a respeito da msica em particular, do som realizado pelos pifes.
Concernente questo, a ontologia de Heidegger ser novamente evocada no
percurso do trabalho. Ontolopifar justo o que se mostra no encoberto, ou seja, o
mundo nordestino s nos mostrado por existir, na msica, um aspecto acionador
do real. Para tanto, so entendidos, aqui, os aspectos nticos (entes: o que vemos
no palco: msicos, instrumentos, cenrio) e os ontolgicos (ser: justo o que no se
v, mas que modifica o espao cf.HEIDEGGER:1949,pg.27) ou seja, o lado oculto
que procuramos vislumbrar apesar da turvez cotidiana .
Nesta perspectiva, entendemos que a histria, a msica e o tempo no so
criao; surgem, antes, no mesmo instante que o homem.
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Celso Ramos
Nosso interesse inicial, a saber, que a msica das bandas de pfanos, em
geral, nos proporcionam uma sensao diferenciada do espao-tempo, nos conduziu
a uma reflexo a respeito do tempo e da relao que estabelecemos com este o
tempo no nosso dia-a-dia. Ainda que a filosofia no compreenda todo o espao
de atuao deste trabalho, nela transitamos para pensar as relaes possveis entre
os campos de conhecimento acima citados, pois entendemos que a investigao
musical, a qual nos propomos realizar, passa pela questo diretamente associada
ao fazer musical e este fazer confere, ao trabalho, a responsabilidade de
pensarmos a prtica do msico como prtica desviada ou desvinculada das
facilidades e do lugar comum onde rotineiramente encontramos a msica sendo
relacionada, quando no apenas superficialmente citada, a um fazer destitudo de
um contedo vivencial mais aprofundado. Deste modo, observamos, neste trabalho,
uma perspectiva ou um carter ontolgico como princpio organizador dos conceitos
selecionados para a anlise do espao-tempo; espao-tempo ocupado pelo baio no
momento em que o fazer desta msica acontece.
Na pesquisa, observamos que a msica surge como veculo de um tempo.
Evoca-se um tempo e este presentificado, como nos exemplos j em parte
mencionados, na cura realizada em casos especficos como o das artes vocais dos
piaroa, na realidade atualizada pelo canto-mito do xam marubo ou quando, para
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Baiontropifando
render graas a alguma divindade, o tempo do esprito o vetor organizacional da
sociedade depois do cantar das novenas acompanhadas pela banda de pfanos.
Somos remetidos a valores, crenas, smbolos e hbitos de um espao ocupado em
outro tempo, num tempo passado.
Forma-se, assim, a inteno de se defender a proposta de que h uma
unidade, entre o hoje e o ontem, sendo tecida a partir das entrelinhas deste som.
Ela a msica ultrapassa a linha fsica do espao-tempo corrente, nos
transportando a uma outra possibilidade de temporalidade: a
PIFONTROPORALIDADE, tempo que o homem produz ao executar a msica cuja
unidade se refaz, para se usar mais uma vez uma expresso heideggeriana, no
desvelamento do ser.
Aquela que, um dia, foi considerada cultura primitiva a nordestina , em
seu aspecto pejorativo, transfigura-se em riqueza cultural organizando a realidade
atravs do som. Em contato com as melodias que pulsam, vivas, nas bandas Dois
Irmos e Pife Muderno, percebemos a fora do pensamento primevo. E o palco,
como espao ou templo de representao da vida ganha cor, textura e cheiro
de um espao-tempo mtico onde a vivncia do povo, sntese de sua expresso no
som do baio, surge em forma de um outro tempo, tempo BAIONTROPIFADO como
paisagem sonora.
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2. PIFONTROPORALIDADE
aiwn pai esti paizwn, pesseuwn paidov hv basilhivh.
O tempo um criana brincando, jogando; reinado da criana (COSTA: 2002, pg.109).
Pai!!!! Amanh eu vi a largatixa (Pedro Odenyr, 3 anos).
O que foi o que h de ser, e o que se fez se tornar a fazer, nada h, pois novo debaixo do sol, h alguma cousa de que se possa dizer: v isso novo? No! J foi nos sculos que foram antes de ns (Ec 1:9 e 10).
Para falarmos da possibilidade de instaurao de um mundo nordestino no
palco e acerca da presena da banda de pfanos, teremos que, obrigatoriamente,
falar ou pensar a questo do tempo. Como ele se d ? Como o percebemos?
Tal reflexo faz-se necessria pelo fato da msica participar de um
acontecer no tempo, ou poderamos dizer, ainda, participar com o tempo, uma vez
que ela temporaliza o instante, transformando o espao.
A citao bblica acima nos aponta para, entre outras possibilidades, sob
uma concepo judaico-crist, entendermos a questo temporal sob o eixo divino
mas, tambm, sob a tnica da dualidade. O tempo existe em dois nveis, a saber,
aquele em que o homem vive a sua mundaneidade, e um outro tempo, aquele onde
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o existir se dar em uma forma sem incio ou fim, ou sob a forma daquilo que
entendemos por eternidade.
A eternidade no mensurvel em segundos de tempo terrestre. A eternidade um atributo de Deus que no era, no ser mas sempre. O tempo terrestre a sombra da eternidade, a sucesso das coisas. Foi criado, tem um princpio e um fim que limitam a durao da histria humana (GOUREVITCH, in RICUR 1975, pg.271).
Uma concluso apressada poderia nos levar a considerar que a msica nos
possibilita um contato com esta instncia da eternidade, o que, alis, na nossa e em
muitas outras culturas possvel perceber. No entanto, pensaremos, neste texto, em
uma transcendncia diferenciada, numa transcendncia que caracteriza no aquela
temporalidade que ultrapassa a nossa condio fsica, nos remetendo a algum lugar
do qual no fazemos idia, mas numa transcendncia na imanncia tal qual nos fala
Heidegger em Essncia do Fundamento:
A transcendncia, na significao terminolgica que importa clarificar e apresentar, significa o que prprio do estar-a humano e, de certo, no como um modo de comportamento entre outros possveis, ocasionalmente posto em execuo, mas como constituio fundamental deste ente antes de todo o comportamento (...) Alm disso, porm, o estar-a transcendente no ultrapassa nem uma barreira posta diante do sujeito e forando-o primeiro a permanecer em si (imanncia), nem um precipcio que o separa do objeto (...) o que ultrapassado justamente apenas o prprio ente e, de certo, todo o ente que por ser torna-se desvelado para o estar a, tambm, justamente o ente que enquanto estar-a ele prprio existe (HEIDEGGER: 1949, pg. 33,35).
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A partir da perspectiva heideggeriana, encontramos percepes de tempo
em diferentes culturas e prticas musicais, algumas inclusive bem prximas a ns,
que entendem e praticam essa relao de imanncia transcendente no seu viver,
uma relao muito mais prxima de uma concepo mtica do tempo, em que o
passado e o futuro transformam-se em um aqui e agora, afastados, desta forma,
da mensurao construda pela cultura ocidental, aquela na qual nos inserimos e a
partir da qual enxergamos outros modos de ser, pensar e viver o tempo, pois
cada civilizao percebe o mundo atravs dos sistemas que lhe so prprios. Estes se formam durante a atividade prtica dos homens, base de sua prpria experincia e da tradio herdada das geraes anteriores (GOUREVITCH: in RICUR 1975, pg.263).
Ainda que acostumados a um modelo ocidentalizado tradicional, vigente pelo
menos desde Aristteles, no que diz respeito percepo do tempo, ao nos
depararmos e experimentarmos a msica das bandas de pfanos, nos aproximamos
dessa percepo diferenciada. Capturados pela experincia cotidiana no nos
damos conta de um tempo que, cronologicamente, no marcado pela linearidade e
direcionalidade nicas, que no irreversvel, e que ainda assim rege nossas vidas.
No momento da apresentao experienciamos um instante duradouro, como um
instante de quebra em nossa concepo de tempo.
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Baiontropifando
Em propores menores, quantas vezes nos surpreendemos ao perceber
que diante de uma conversa, ou de uma parada para pensar, aqueles minutos
pareciam horas sendo o inverso do mesmo modo, quando uma durao
consideravelmente grande esgota-se como se fora segundos? No poderamos ficar
indiferentes a estes pequenos acontecimentos que experimentamos todos os dias e
que encontramos, de forma viva, em outras culturas ou numa experincia musical
profunda. Desta forma, observamos o quo abstrato o conceito do tempo, j que
este se d de forma variada, de acordo com tal e qual cultura e tal ou qual
experincia. O que pretendemos, assim, nestas reflexes, no explicar a
existncia do tempo o que cabe aos fsicos e filsofos mas entender de que
modo se d a nossa percepo musical sobre o tempo e de como essa percepo,
construda ao longo da Histria, limita ou abre a nossa experincia a respeito
daquilo que a msica, em suas amplas possibilidades, capaz de proporcionar.
Nos alinhamos, assim, s consideraes do Professor Antonio Jardim,
quando este fala sobre o que possvel que se entenda, em nossa tradio, por
vivncia espao-temporal.
o lugar extenso e o tempo, cronologia. Toda e qualquer possibilidade de compreenso de espao e tempo que no sejam estas, passam a no fazer sentido. A perda de sentido da questo ontolgica, determinada pelo predomnio da identidade, traz concomitantemente consigo a medida como critrio do mesmo tempo e espao. (...) essa determinao , em
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Celso Ramos
ltima instncia, empobrecimento da prpria noo de mundo (JARDIM, 2005, pg.64).
Ouvir as bandas de pfanos a partir da perspectiva da temporalidade
musicalmente diferenciada temporalidade, esta, sendo instaurada no aqui e
agora nos faz considerar, de forma no preconceituosa ou etnocntrica, outras
formas de experimentar o tempo, transformando, como diz Antonio Jardim, nossa
noo de mundo.
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2.1. O tempo e a ao musical
Ao considerarmos o aspecto temporal mediado pela riqueza de
acontecimentos no totalmente mensurveis, nem sucessiva tampouco
9 Foto feita no carnaval carioca esse o bloco do pife que se organizou recentemente nas areias de Ipanema no Rio de Janeiro. Observa-se o pifeiro (Carlos Malta) no meio dos brincantes (25 de fevereiro de 2009).
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Baiontropifando
cumulativamente, estabelecemos uma nova relao com a realidade. Passamos a
entender melhor como se d, na msica, esta modificao de parmetros com os
quais nos comportamos, normalmente, a partir de uma possibilidade consciente de
mensurao unilinear, unidirecional e irreversvel.
A partir do momento em que se apresenta uma incapacidade de mensurar o
tempo vivido no momento do evento ou da apresentao condio proporcionada
pela msica especulamos sobre a constituio do que vem a ser o tempo musical
no seu fluxo cotidiano.
Se considerarmos que aquilo que escrevo agora torna-se agora para quem
me l, j estou no passado. Mas o agora do ato da escrita o presente que se dar
no futuro ao ser lido. Tudo graas qualidade atemporal que a escrita empresta a
tudo que aporta superfcie plana do papel, parede, tela do computador.
Quem l reedita o passado transformando-o em presente, presente que foi
pensado para o futuro. As instncias temporais, nesta perspectiva, se inter-
relacionam numa equivalncia ao instante-zero. A escrita, assim de modo abstrato,
equivale a uma lei da fsica, um teorema da matemtica. No histrica, em um
sentido potico.
Muito diferente o que pode acontecer na poiesis, por exemplo, da literatura
ou das artes plsticas de um modo solitrio, mas que, no caso da msica, sempre
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acontece de forma coletiva. Falo aqui da essncia potica da obra-de-arte, para
alm das artes verbais, maneira de Heidegger (HEIDEGGER:1977, pg.58).
Quanto performance do pifeiro, onde o que tocado tem funo social
mltipla e ultrapassa o puro entretenimento, a exemplo dos acompanhamentos nas
novenas por parte das bandas de pfanos do nordeste, nos parece certo afirmar que
esta msica, esta obra, est impregnada de um carter mtico-potico tanto por
remisso poiesis heideggeriana quanto aos xams amaznicos estabelecendo
a ligao, na prpria imanncia, entre o passado, o presente e o futuro. E, em
acordo com Emmanuel Carneiro Leo,
Por meio dessas dimenses de vivncia para o futuro e o passado a compreenso histrica se articula historicamente. Assim ultrapassamos o tempo presente psicolgico e nos estendemos con-vivncia com a humanidade do presente, do passado e do futuro. o que acontece na conscincia do poeta, do artista, do historiador, do filsofo enquanto objetivada na obra (CARNEIRO LEO: 1977, pg. 36).
A obra aquela que revela ou desvela o vigor do real, onde o tempo
enquanto se toca o instrumento, enquanto se vive o momento da ao musical.
Nossa percepo cronolgica, neste instante, rompida para dar lugar a uma nova
temporalidade, ultrapassando o tempo presente psquico e nos deixando embalar
pela sonoridade da msica dos pfanos. A convivncia entre o passado, o presente e
o futuro, tal qual fala Emmanuel Carneiro Leo, encontra-se nas culturas africanas e
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amerndias, por exemplo. Nestas sociedades, as concepes de mundo baseiam-se
em procurar romper com uma percepo unidimensional e mensurada de tempo. H
uma outra idia de mensurao que no se aproxima, em nada, daquela na qual
estamos inseridos percepo emprica, ocidental do tempo pois entre os
Bantu, por exemplo,
no existe substantivo terico para indicar o tempo como nas lnguas da cultura europia-americana. Entre os Bantu, o que importa o tempo disso ou daquilo, o tempo propcio para isso e aquilo. O tempo assim marcado, individualizado pelo evento, pode ser muito curto ou muito longo, segundo a durao do evento que o individualiza (KAGAME, in RICUR 1975, pg.115).
O que h, na verdade, um presente permanente porm substantivo, um
no-nada, onde um passado e um futuro so em conjunto, acontecem no evento, a
partir da ao do homem, o que nos aproxima da concepo de tempo
heideggeriana, onde a Histria no aquela feita pelos registros dos fatos ou pela
historiografia, mas, sim, por um acontecer com o homem; homem, este, que abriga,
em si, o Dasein. Este acontecer do evento que comunga tempos, ento, configura-
se como o tempo do Dasein, tempo onde a ao do homem, ou melhor, sua
condio de ser-no-mundo, lhe propicia uma relao diferenciada com a realidade,
deixando de ser passiva para que ele, objetivamente, possa atuar na realidade.
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Partindo desta aproximao entre a percepo do tempo dos Bantu e a
concepo de tempo heideggeriana, observamos o contraponto existente entre as
culturas ocidentais e orientais. Percepes tais como a dos Bantu influenciam a
concepo de mundo por cada cultura construda. O que nos leva a refletir e a
reconhecer, no baio, tocado pelas bandas de pfanos, a constituio de um
caminho do meio. O caminho do meio, aqui, aquele que coaduna duas realidades
apresentando-as como contrastantes, em termos estruturais ou harmnicos, a fim de
nos apontar para uma relao de sincronia entre o sujeito que toca e o objeto que se
traduz na prpria msica tocada. As manifestaes artsticas expressam a cultura e
presentificam o passado; isto posto, seria coerente afirmar que o tempo com o
homem na mesma medida em que institui um mundo a partir da iniciativa prpria do
prprio homem ou, o que poderamos afirmar com relao traduo de Dasein,
quando o homem institui sua presena. Nos referimos a este aspecto da criao de
um espao-tempo nordestino ou da criao de um mundo nordestino pela agncia
dos pifeiros atravs da expresso PIFONTROPORALIZAR, ou seja, esta expresso
configura o tempo em que a msica ou como sendo o momento ao qual nos
remetemos, ou experimentamos o espao ou o ambiente nordestino onde
[o] tempo e o espao so dados no fora da experincia ou antes dela, mas unicamente na experincia concreta, formando os elementos que a constituem e que impossvel separar do tecido vital. Por isso o tempo
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menos apreendido pela conscincia do que vivido imediatamente (GOUREVITCH: 1975, pg. 267, in RICUR 1975. pg.267).
PIFONTROPORALIZAR nos conduz compreenso da experincia direta
cotidiana com o tempo vivenciado no instante em que a msica tocada, qual j
fizemos referncia, acima, para ilustrar a percepo do tempo. Desta maneira,
repetidamente, confirmamos nossa crena de que, no momento do evento, h um
desvelamento ou uma abertura para uma ambincia espao-temporal, um mostrar-
se que s acontece junto ao acontecer do evento e com a performance musical.
Assim, a msica PIFONTROPORALIZADA com o homem.
2.2. Experimentando o tempo no tempo.
O mostrar-se s nos possibilitado por estar oculto, e o desocultamento se
d na performance. Para ilustrar tal afirmao vlido, guisa de exemplo, relatar
uma experincia pela qual todos passamos aos assistir algum espetculo. Vejamos:
ao chegarmos antes do incio do espetculo experimentamos a arrumao do palco,
a passagem de som e as conversas que, no necessariamente, giram em torno do
evento. medida em que outros convidados chegam, inicia-se a construo de um
outro aspecto naquele espao que se traduz no caminho para o durante. Todos os
convidados acomodados e ento... temos a expectativa do que vir a ser.
Finalmente, o show comea, e, neste durante, que acontece o aqui e agora ao
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qual nos referimos. Acontece algo anlogo PIFONTROPORALIDADE, onde se
experimenta um outro tempo, quando a noo espao-temporal transformada a fim
de nos revelar uma nova instncia do real, uma realidade dentro da realidade, a
transcendncia na imanncia. J espantados, olhamos para o palco vazio, ao som
das palmas do pblico pedindo bis. A insistncia do pblico confirma a vontade que
todos tm de permanecer naquele aqui e agora depois de ter passado pela
experincia sonora. Heidegger nos apresenta uma ilustrao para esta experincia,
que abaixo descrevemos:
Existe um surgimento na confirmao da manh e do crepsculo. Da manh surge, felizmente, a claridade do dia com a qual o surgimento se completa. Segue-se-lhe, no entanto, a tarde com o seu crepsculo, no sentido oposto. Considera-se, de certo modo, a manh como uma espcie de compartimento que se abre. Depois vem o dia propriamente dito, o segundo compartimento continua aberto. Surge ento o terceiro compartimento, que vai se abrindo lentamente: o entardecer. O segundo compartimento o preferido, relativamente ao qual surgir e fechar-se constituem dados adicionais. Seguindo o terceiro compartimento, o entardecer, em sua relao com os demais pode-se perceber que ele s est propriamente em relao com o compartimento aberto, com o dia. Pois o dia se fecha novamente com o entardecer (HEIDEGGER: 1998, pg.146).
A partir desta experincia e fundados nos autores citados que entendemos
a constituio do existir de uma relao ontolgica entre a msica e a realidade, o
que nos autoriza a tratar do aspecto transformador que no est somente na msica
da banda ou no homem que toca o instrumento, mas na juno dos dois, pois trata-
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se do lovgo, e isso se exprime como: em pavnta ei\nai tudo um. No ser e com o
ser, o uno une tudo que (HEIDEGGER: 1998, pg.275).
Ontolgico, ento, refere-se instncia que no aparente, mas oculta.
Sendo o desocultamento iniciado nica e exclusivamente pelo dasein que h no
homem ou por sua condio de ser-no-mundo, falamos do ser-no-mundo do homem
e tocamos em aspectos antropolgicos.
BAIONTROPORALIDADE relaciona msica e tempo em seus aspectos
ontolgicos com o homem em seus aspectos antropolgicos.
Nossa investigao se atrela, ainda, idia de uma relao com a realidade
que se d quando se est em contato com a msica, de uma maneira no
mensurvel e que os gregos denominavam de alhvqeia (Alethia) ou
desocultamento, a saber, a verdade como fenmeno. Ao nos referirmos relao de
instaurao de um mundo nordestino no palco, na ao (performance) do pifeiro,
entendemos que, neste tempo e neste espao, dar-se- uma desocultao, um
desvelamento.
alhvqeia diz tambm do que se apresenta, do que trazido presena. A verdade o que se mostra, o que se apresenta, o que tirado do seu velamento primordial e trazido a presena, mostrado, posto diante (JARDIM: 2002, pg. 76).
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Apesar da associao histrica entre o conceito de Lgos e a palavra
escrita, o acionamento do real entre os gregos, a respeito do qual trata Antonio
Jardim, acontecia por uma relao com a realidade que no passava pelo registro
escrito factual, sendo, desta forma, eminentemente oral. Atravs da oralidade,
transmitia-se o conhecimento aos outros. O do era o responsvel por este
exerccio cuja finalidade era acionar o real, no atravs dos fatos historiogrficos,
mas a partir da experincia com a linguagem no momento da fala, a fim de superar
estes fatos e criar mundos, para atuar na realidade e transform-la.
Compreendemos que a Histria, em Heidegger, vista no em seu aspecto
de causalidade temporal, mas como um acontecer. O homem, pelos seus atos e
aes, faz a Histria e, a partir dos seus mais simples atos, instala um mundo por
possuir, segundo Heidegger, uma condio privilegiada de existncia ou de ser-no-
mundo. Assim como a msica com o homem, a Histria tambm o , por ser,
enquanto concepo, anterior ao registro dos fatos.
Com a literalidade a nossa percepo ocidentalizada do tempo passa a ser
influenciada e construda atravs desses registros e no mais, como na sociedade
grega, por meio da oralidade. O que nos chama ateno, no entanto, uma
caracterstica que o pifeiro possui e que nos permite uma aproximao com o do
grego. Esta caracterstica tambm aparece nas sociedades tribais indgenas
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africanas ou amerndias, onde o xam ou mdium espiritual o responsvel pela
manuteno daquela comunidade. O aprendizado do pifeiro se d de uma forma oral
sob o que denominamos conhecimento primitivo, considerado, aqui, como
conhecimento primeiro. Ainda que avancemos tecnologicamente em muitas regies
do planeta, nosso pifeiro est longe disso, pois o homem pode prescindir da
tecnologia para desdobrar sua existncia, tal qual na vida pr-cientfica sobre a qual
nos fala Emmanuel Carneiro Leo:
(...) nessa distino a vida pr-cientfica se nos afigura mais ampla, mais rica e variada. tecida de comportamentos e relaes que se entrelaam numa infinidade de setores: no campo das atividades prticas, do uso e confeco das coisas, no terreno da comunicao religiosa com poderes divinos, na esfera da convivncia social com os outros homens (...) antes de qualquer cincia, a vida humana j dinamizada pelo jogo dos chamados fenmenos existenciais (....) a vida pr-cientfica tem profundeza e superfcie, conhece a banalidade do dia-a-dia e as horas de sua grandeza (CARNEIRO LEO: 1977, pg.15).
A riqueza existente em uma realidade pr-cientfica mora nas expresses
culturais, expresses estas que materializam e nos transportam para um outro lugar,
o lugar instaurado pela temporalidade musical, o das caractersticas sensoriais
prprias de uma determinada realidade. No toa que enquanto, em todo o Brasil,
considerando-se as modificaes e as interferncias de regio para regio,
comemorado o dia de So Joo por meio da gastronomia, a comemorao ocorre
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sobretudo por meio da msica nordestina, tendo o baio como o ritmo
predominante.
Afirmamos, inicialmente, que a msica, de um modo geral, e mais
especificamente aquela que nos propomos reflexo, a saber, a das bandas de
pfanos citadas, instaura um mundo no palco. Sendo assim, observamos que esta
instaurao se d por dois motivos: em primeiro lugar, pela condio temporal em
que a msica se estabelece; e em segundo lugar, considerando-se esta
particularidade do tempo musical, que o homem, em sua performance
caracterizado como o ser-no-mundo, na sua presena ativa (Dasein) no evento
musical faz desvelar a realidade, transcendendo-a na aparncia, em seu prprio
fazer imanente.
Tais afirmaes nos apontam para uma abordagem fenomenolgica, pois no
momento em que se bem toca o instrumento mostra-se outra coisa que no
simplesmente a aparncia do som ou uma bela tcnica instrumental ou, ainda, a
complexidade do arranjo da melodia. Acreditamos que a msica da Banda de
Pfanos, mais especificamente, transcende a historiografia factual, qualquer que
esta seja, por abrigar, os msicos, em seu ser, uma tradio imanente ao fenmeno
sonoro.
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Desta feita, importante observarmos que a tradio que habita o ser do
pifeiro aproxima-se, de alguma forma, do comportamento de povos orientais.
Nos parece ser essa distino muito mais conceitual do que propriamente
geogrfica, pois a percepo emprica do tempo entre os povos ditos amerndios,
por exemplo, no difere muito daquela que vigora entre os africanos ou mesmo
entre os indianos, que entendem a histria e o tempo a partir do momento do
acontecer do evento (GOUREVITCH, in RICUR: 1975, pg. 267). Suas
festividades, ento, so representaes que evocam uma rememorao, mas que,
para alm disso, designam a presentificao de um espao-tempo que permanece
vivo no seu acontecer.
Apesar deste trabalho no se prestar ambiciosa discusso a respeito da
distino cultural ou musical entre ocidente e oriente, podemos apresentar uma
possibilidade de aproximao que o prprio objeto de estudo escolhido nos aponta:
a flauta de bambu, da qual o pife um exemplo, encontrada em diversas culturas,
orientais ou ocidentais. Aqui no faremos um levantamento deste material de
pesquisa, contudo sabemos da importncia que este fato representa.
Mas... afinal, o que justificaria a proposio inicial, aqui reapresentada, a
respeito da instaurao de um mundo nordestino ou paisagem sonora a partir
da performance das bandas de pfanos e de seus pifeiros?
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Fazemos, a ns mesmos, esta pergunta entendendo que ela passa a ser
respondida na mesma medida em que entendemos os conceitos de tempo e histria
em Heidegger. Ainda buscamos esclarecer, ao leitor, ou pelo menos demonstrar,
que a questo se faz necessria e de forma alguma suprflua ao universo do
msico que observa algo alm no seu fazer artstico-musical, e que pretende
contribuir com um olhar diferenciado sobre este fazer a fim de tentar desvendar, em
parte, o que est oculto ainda que este oculto, em nosso juzo, s se mostre no
velar, como nos diz Herclito: fuvsi kruvptesqai file~in physis Kryptestai philei,
ou a autntica natureza das coisas ama estar oculta.
No encontrando uma outra forma de falarmos desta instaurao, cunhamos
a expresso BAIONTROPIFAR, expresso que define o ser do homem, atravs do
pife e tocando o baio, na tarefa de mostrar, ou desvelar, no instante da
performance, o que est oculto ou seja, de forma ontolgica, revelar o
encobrimento.
Portanto, as consideraes tr