baigent, michael; leigh, richard; lincoln, henry - o santo graal e a linhagem sagrada

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  • MICHAEL BAIGENT - RICHARD LEIGH - HENRY LINCOLN

    O SANTO GRAAL E A LINHAGEM SAGRADA

    Traduo Nadir Ferrari 1982

    SUMRIO Introduo, 1 1. O mistrio, 5 I. Cidade de mistrio, 7 II. Os ctaros e a grande heresia, 21 III. Os monges combatentes, 35 IV. Os Documentos secretos, 63 2. A sociedade secreta, 75 V. A ordem atrs da cena, 77 VI. OS gro-mestres e a corrente subterrnea, 97 VII. A conspirao atravs dos sculos, 127 VIII. A sociedade secreta hoje, 161 IX. OS monarcas de cabelos longos, 189

  • X. A tribo exilada, 221 3. A linhagem sangunea, 229 XI. O clice sagrado, 231 XII. O rei-sacerdote que nunca reinou, 261 XIII. O segredo que a Igreja proibiu, 301 XIV. A dinastia do clice, 323 XV. Concluso e perspectivas, 337 Apndice: Os supostos gro-mestres do Monastrio do Sinai, 353 Notas, 375 Bibliografia, 399

  • INTRODUO Em 1969, quando estava de frias em Cvennes, comprei o livro de bolso Le Trsor maudit, de Grard de Sede. Era uma histria de mistrio, uma mistura leve e interessante de fatos histricos, mistrios genunos e conjecturas. Depois das frias ele teria sido esquecido, como todas as leituras desse tipo, se eu no tivesse tropeado em uma omisso evidente e curiosa em suas pginas. O "tesouro amaldioado" do ttulo havia sido aparentemente encontrado nos idos de 1890 por um padre de vilarejo que decifrara alguns documentos enigmticos desenterrados em sua igreja. Os supostos textos de dois desses documentos foram reproduzidos, mas no as mensagens secretas que estariam codificadas dentro dele. A inferncia era que as mensagens decifradas haviam sido novamente perdidas. Entretanto, conforme descobri, um estudo superficial dos documentos reproduzidos no livro revelava pelo menos uma mensagem oculta. O autor certamente a percebera. Ao trabalhar em seu livro, dera aos documentos mais do que uma ateno passageira. Era claro que ele encontrara o que eu havia encontrado. Alm disso, a mensagem era um excitante fragmento de prova, do tipo que ajuda a vender um livro popular. Por que o senhor de Sde no a publicara? A peculiaridade da histria e a possibilidade de outras descobertas voltaram minha mente de tempos em tempos nos meses seguintes. Sentia-me atrado por esse quebra-cabea mais intrigante do que os usuais e curioso pelo silncio de De Sde. Na medida em que ia descobrindo novos e intrigantes lampejos de significados no texto dos documentos, comecei a querer dedicar mais do que momentos de folga ao mistrio de Rennes-Ie-Chteau. No final do outono de 1970, apresentei a histria como um possvel documentrio para Paul Johnstone, ento produtor executivo da srie Crnica, sobre histria e arqueologia, da BBC. Paul achou o projeto vivel. Fui ento enviado Frana para falar com De Sde e explorar as perspectivas de um filme. Encontrei De Sde

  • em Paris na semana do Natal de 1970. Naquela primeira reunio, fiz a pergunta que me intrigara por mais de um ano: "Por que voc no publicou a mensagem oculta nos pergaminhos?" Sua resposta me surpreendeu. "Qual mensagem? Parecia-me inconcebvel que ele desconhecesse aquela mensagem elementar. Por que estaria duelando comigo? Subitamente eu me vi, relutante, a revelar o que havia encontrado. Continuamos um elptico jogo de esgrima verbal durante alguns minutos. Ento se tornou claro que ambos conhecamos a mensagem. Repeti minha pergunta: "Por que voc no a publicou?" Desta vez a resposta de De Sde foi calculada: "Porque ns pensamos que algum como voc se interessaria em descobrir por si mesmo. Essa resposta, to enigmtica quanto os misteriosos documentos do padre, era o primeiro indcio claro de que o mistrio de Rennes-Ie-Chatau deveria ser muito mais do que uma simples fbula de tesouro perdido. Comecei a preparar, juntamente com meu diretor, Andrew Maxwell-Hyslop, um filme Crnica na primavera de 1971. O projeto era realizar um bloco de vinte minutos para um programa. Mas, na medida em que amos trabalhando, De Sde nos alimentava com outros fragmentos de informao. Primeiro surgiu o texto integral de uma importante mensagem cifrada, que falava dos pintores Poussin e Teniers. Era fascinante. O cdigo era incrivelmente complexo. Fomos informados de que ele havia sido decifrado por especialistas do departamento de cdigos do exrcito francs, atravs de computadores. Estudando as circunvolues do cdigo, convenci-me de que a explicao obtida era no mnimo suspeita. Investiguei junto a especialistas em cdigos do servio de inteligncia da Gr-Bretanha e eles concordaram comigo: "O cdigo no configura um problema vlido para um computador." Ou seja, era indecifrvel. Mas algum, em algum lugar, devia ter a chave. Ento De Sde entregou sua segunda bomba. Urna tumba semelhante quela do famoso quadro Les Bergers d'Arcadie, de Poussin, havia sido encontrada. Ele enviaria detalhes "assim que os obtivesse". Alguns dias mais tarde chegaram fotografias. Ficou claro

  • que nosso filme sobre um pequeno mistrio local comeava a assumir propores inesperadas. Paul decidiu abandon-lo e nos engajou em um longa-metragem. Agora haveria mais tempo para pesquisar e mais tempo de cena para explorar a histria. A transmisso foi adiada para a primavera do ano seguinte. O Tesouro Perdido de Jerusalm saiu em fevereiro de 1972 e provocou uma reao muito forte. Eu sabia que havia encontrado um assunto interessante para o grande pblico. Uma pesquisa posterior no significaria, portanto, auto-indulgncia. Em algum momento teria que haver um segundo filme. Em 1974 eu j possua grande quantidade de material. Paul contratou Roy Davies para produzir meu segundo filme Crnica, chamado O Padre, o Pintor e o Demnio. Mais uma vez, a reao do pblico mostrou quo fortemente a histria havia impressionado a imaginao popular. Mas ento ela havia se tornado muito complexa, e muito extensa em suas ramificaes. A pesquisa detalhada estava rapidamente excedendo a capacidade de uma nica pessoa. Havia muitos caminhos diferentes a percorrer. Quanto mais eu prosseguia em uma linha de investigao, mais consciente me tornava da quantidade de material que estava sendo negligenciado. Nesse ponto crucial, o destino, que de incio havia colocado a histria casualmente em minhas mos, agora assegurou que o trabalho no estagnaria. Em 1975, tive a grande sorte de encontrar Richard Leigh, durante um curso de vero em que ambos dvamos aulas de literatura. Richard um romancista e escritor de contos, com ps-graduao em literatura comparada e um conhecimento profundo em histria, filosofia, psicologia e esoterismo. Havia trabalhado durante vrios anos como professor universitrio nos Estados Unidos, Canad e Gr-Bretanha. Durante os intervalos de nossas aulas, passamos muitas horas discutindo assuntos de interesse mtuo. Eu mencionei os templrios, que desempenhavam um papel importante no pano de fundo do mistrio de Rennes-Ie-Chteau. Para minha satisfao, vi que essa sombria ordem medieval de monges combatentes j havia despertado o interesse de Richard, que desenvolvera pesquisas considerveis

  • sobre sua histria. Subitamente, meses de trabalho que eu via se prolongarem minha frente se tornaram desnecessrios. Richard podia responder maioria de minhas dvidas. E ficara to intrigado quanto eu com as anomalias evidentes que eu havia encontrado. O mais importante que meu projeto de pesquisa tambm o fascinava. Percebendo o significado do projeto, ele se ofereceu para ajudar-me nos aspectos que envolviam os templrios. E trouxe Michael Baigent, um psiclogo que recm-abandonara uma bem-sucedida carreira em foto-jornalismo para se dedicar ao estudo dos templrios, visando ao projeto de um filme. Se eu tivesse procurado, no teria encontrado dois parceiros mais bem qualificados e mais compatveis para formar um time. Aps anos de trabalho solitrio, o mpeto trazido ao projeto por dois crebros novos foi muito estimulante. O primeiro resultado palpvel de nossa colaborao foi o terceiro filme Crnica sobre Rennes-Ie-Chteau, A Sombra dos Templrios, produzido por Roy Davies em 1979. O trabalho realizado para aquele filme finalmente nos colocou face a face com as fundaes sobre as quais todo o mistrio de Rennes-Ie--Chteau havia sido construdo. Mas, no filme, o que estvamos comeando a discernir s podia ser insinuado. Sob a superfcie havia algo mais chocante, mais importante e mais imediatamente relevante do que podamos imaginar quando comeamos nosso trabalho sobre o pequeno e intrigante mistrio que um padre francs provavelmente encontrara em um vilarejo montanhoso. Em 1972, eu terminara meu primeiro filme com as seguintes palavras: "Algo extraordinrio est esperando ser encontrado... e o ser, em um futuro no muito distante. Este livro explica o que este "algo" - e quo extraordinria foi sua descoberta. H.L.

    1 O MISTRIO

  • I

    CIDADE DE MISTRIO No princpio de nossa pesquisa no sabamos exatamente o que estvamos procurando ou, naquele contexto, o que estvamos vendo. No tnhamos teorias ou hipteses. Comeamos sem a inteno de provar coisa alguma. Pelo contrrio, estvamos simplesmente tentando encontrar uma explicao para um pequeno e curioso enigma do sculo XIX. As concluses a que posteriormente chegamos no foram previamente postuladas. Fomos conduzidos a elas, etapa por etapa, como se as evidncias que havamos acumulado possussem vida prpria, como se elas nos estivessem dirigindo de acordo com seus prprios desgnios. No incio acreditamos que se tratasse de um mistrio local intrigante, sem dvida, mas de significado essencialmente confinado a uma cidadezinha do interior da Frana. Um mistrio de interesse puramente acadmico, embora envolvesse fatos histricos fascinantes. Pensvamos que nossa investigao pudesse iluminar certos aspectos da histria do Ocidente, mas de forma alguma imaginvamos que ela implicaria reescrev-la. Imaginvamos ainda menos que qualquer descoberta que fizssemos pudesse ter relevncia para o mundo contemporneo - e de forma explosiva. Nossa busca, porque era realmente uma busca, comeou com um enredo mais ou menos banal, primeira vista no muito diferente de inmeras outras histrias de tesouros ou mistrios no desvendados, que abundam na histria e no folclore de quase todas as regies rurais. Uma verso dela havia sido publicada na Frana, onde atrara um interesse considervel, mas - at onde pudemos saber - nenhuma conseqncia maior lhe fora atribuda. Mais tarde soubemos que essa verso continha uma srie de erros. Para comear, entretanto, devemos recontar a fbula tal qual ela foi publicada nos anos 60, com as informaes de que dispnhamos ento.

  • Rennes-le-Chteau e Berenger Saunire

    Uma minscula cidadezinha francesa, Rennes-le-Chteau, recebeu no dia primeiro de julho de 1885 um novo proco: Berenger Saunire, um homem de 33 anos, robusto, atraente, energtico e brilhante. No seminrio, parecia estar destinado a uma carreira eclesistica promissora. Certamente, almejava algo mais importante que uma cidadezinha remota no topo de uma colina ao leste dos Pirineus, mas em algum momento ele deve ter cado no desagrado de seus superiores. Se fez alguma coisa para merecer isso no sabemos, mas o fato que perdeu todas as chances de promoo. Talvez para se livrarem dele, o enviaram a Rennes-le-Chteau. Naquele tempo Rennes-Ie-Chteau abrigava apenas duzentas pessoas. Era um pequeno povoado pendurado no topo da serra a 40km de Carcassonne. O lugar teria significado o exlio para um outro homem, uma condenao perptua a viver em um fim-de-mundo, longe das amenidades urbanas da poca, longe de qualquer estmulo para uma mentalidade vigorosa e questionadora. A ambio de Saunire sem dvida sofreu um golpe. Entretanto, houve compensaes. Saunire era originrio da regio, pois nascera e crescera perto dali, na cidade de Montagels. Apesar de tudo, Rennes-le-Chteau deve ter-lhe proporcionado o conforto da familiaridade, do sentimento de estar em casa. O salrio de Saunire, entre 1885 e 1891, foi, em francos, o equivalente a seis libras esterlinas por ano - longe de significar opulncia, mas muito mais do que se esperaria para um proco rural na Frana do final do sculo XIX. Somado s gratuidades oferecidas pelos habitantes da parquia, tais rendimentos seriam suficientes para viver bem, sem extravagncias. Saunire levou uma vida agradvel e plcida durante seis anos, caando e pescando nas montanhas e rios de sua infncia. Leu vorazmente, aperfeioou seu latim, aprendeu grego e embarcou no estudo do hebraico. Uma camponesa de dezoito

  • anos chamada Marie Denarnaud, sua servente e governanta, foi para ele companhia e confidente durante toda a vida. Ele visitava com freqncia seu amigo Henry Boudet, proco da vizinha cidade de Rennes-le-Bains, sob a tutela do qual mergulhou na turbulenta histria da regio, uma histria cujos resduos se apresentavam constantemente ao seu redor. A poucos quilmetros a sudoeste de Rennes-le-Chteau surgia outro pico, chamado Bzu, coberto pelas runas de uma fortaleza medieval, antiga morada de templrios. Sobre um terceiro pico, a cerca de 2km de Rennes-le-Chteau, se erguiam as runas do castelo de Blanchefort, lar ancestral de Bertrand de Blanchefort, quarto gro-mestre dos templrios, que presidiu a famosa ordem em meados do sculo XII. Rennes-Ie-Chteau se situava numa antiga rota de peregrinao que ia do nordeste da Europa at Santiago de Compostela, na Espanha. A regio era mergulhada em lendas evocativas, em ecos de um passado dramtico, freqentemente embebido em sangue. Saunire vinha querendo havia j algum tempo restaurar a igreja local. O edifcio, consagrado a Madalena em 1059, repousava sobre fundaes de uma estrutura visigtica ainda mais velha, datada do sculo VI. No se admira ento que estivesse em pssimo estado de conservao. Encorajado por seu amigo Boudet, Saunire iniciou em 1891 uma restaurao modesta, utilizando uma pequena soma emprestada dos fundos municipais. Durante os trabalhos, removeu o altar-mor, uma pedra que repousava sobre duas antigas colunas visigticas. Uma dessas colunas revelou-se oca. Dentro dela havia quatro pergaminhos guardados em tubos de madeira selados. Dois desses pergaminhos continham genealogias, uma datada de 1244 e outra de 1644. Os dois documentos restantes haviam sido compostos, aparentemente, nos idos de 1780, por Antoine Bigou, um dos predecessores de Saunire em Rennes-le-Chteau. Bigou havia sido tambm capelo pessoal da

  • famlia nobre Blanchefort, que no incio da Revoluo Francesa ainda era uma das mais importantes donas de terras da regio. Os dois pergaminhos do tempo de Bigou eram textos virtuosos em latim, extrados do Novo Testamento. Pelo menos, aparentavam isso. Em um deles, no entanto, as palavras se seguiam de forma incoerente, sem espao entre elas. Vrias letras suprfluas haviam sido inscritas. No segundo pergaminho as linhas eram truncadas de forma indiscriminada e irregular, algumas no meio de uma palavra, enquanto certas letras estavam evidentemente levantadas acima das outras. Na realidade, os pergaminhos continham uma seqncia de cdigos e cifras, alguns deles fantasticamente complexos e imprevisveis. Sem a chave certa, eram indecifrveis. A seguinte decodificao surgiu em trabalhos franceses dedicados a Rennes-Ie-Chteau, e em dois de nossos filmes sobre o assunto, realizados para a BBC.

    BERGERE PAS DE TENTATION QUE POUSSIN TENIERS GARDENT LA CLEF PAX DCLXXXI PAR LA CROIX ET CE CHEVAL DE DIEU J'ACHEVE CE DAEMON DE GARDIEN A MIDI POMMES

    BLEUES.* * Pastor, nenhuma tentao. Que Poussin, Teniers possuem a chave. Paz DCLXXXI (681). Pela cruz e seu cavalo de Deus, eu completo (ou destruo) este demnio do guardio ao meio-dia. Mas azuis. Se algumas dessas cifras eram desencorajadoras em sua complexidade, outras eram patentemente, mesmo flagrantemente, bvias. No segundo pergaminho, por exemplo, as letras levantadas, quando tomadas em seqncia, formavam uma mensagem coerente.

    A DAGOBERT ROI ET A SION EST CE TRESOR ET IL EST LA MORT.*

  • * A Dagobert rei e a Sion pertencem este tesouro e ele est aqui morto. Embora esta mensagem deva ter sido compreensvel para Saunire, de se duvidar que ele possa ter decifrado os cdigos mais intricados. Entretanto, ele percebeu que havia tropeado em algo importante. Com o consentimento do prefeito da cidade, levou sua descoberta at seu superior, o bispo de Carcassonne. No se sabe o quanto o bispo entendeu, mas Saunire foi imediatamente enviado a Paris - despesas pagas pelo bispo -, instrudo a se apresentar a algumas autoridades eclesisticas com os pergaminhos. Entre elas estavam o abade Biel, diretor-geral do Seminrio Saint Sulpice, e seu sobrinho Emile Hoffet, que naquele tempo estava aspirando vida religiosa. Embora ainda estivesse nos seus vinte anos, ele j havia estabelecido uma reputao intelectual impressionante, especialmente em lingstica, criptografia e paleografia. A despeito de sua vocao pastoral, ele era sabidamente envolvido com o pensamento esotrico e mantinha relaes cordiais com os vrios grupos orientados para o oculto, alm de seitas e sociedades secretas que proliferavam na capital francesa. Estes contatos introduziram Saunire em um crculo cultural ilustre, que inclua figuras literrias como Stphane Mallarm e Maurice Maeterlinck, bem como o compositor Claude Debussy. Ele tambm conheceu Emma Calv que recentemente havia retornado de apresentaes triunfantes em Londres e Windsor. Emma Calv era como uma diva, a Maria Callas da poca. Ao mesmo tempo, era uma grande pitonisa da sub-cultura esotrica parisiense, mantendo relaes amorosas com vrios ocultistas influentes. Aps apresentar-se a Bieil e Hoffet, Saunire passou trs semanas em Paris. O resultado de suas reunies com os eclesisticos um mistrio. O que se sabe que o padre provinciano foi pronta e calorosamente recebido no distinto crculo de Hoffet. Afirma-se mesmo que ele se tornou amante de Emma Calv, que, segundo um conhecido seu, ficou "obcecada" pelo padre. De qualquer modo, no

  • h dvida de que eles gozaram de uma estreita e longa amizade. Nos anos que se seguiram, ela o visitou freqentemente nas vizinhanas de Rennes-Ie-Chteau, onde, at recentemente, podiam-se encontrar coraes romnticos gravados com suas iniciais nas rochas das montanhas. Durante a permanncia em Paris, Saunire passou tambm algum tempo no Louvre, o que pode explicar o fato de, antes de sua partida, haver adquirido reprodues de trs pinturas. Uma delas teria sido um retrato, pintado por um artista no identificado, do papa Celestino V, que reinou brevemente no final do sculo XIII. Outra teria sido o trabalho de David Teniers, no se sabe se o pai ou o filho. O terceiro seria um quadro - talvez o mais famoso - de Nicolas Poussin, Les Bergers d'Arcadie ["Os pastores da Arcdia"]. Ao voltar a Rennes-le-Chteau, Saunire completou a restaurao da igreja. Teria exumado ento um bloco de pedra, curiosamente esculpido, datado do sculo VII ou VIII, que estaria cobrindo uma cmara funerria na qual esqueletos teriam sido encontrados. Saunire embarcou tambm em projetos mais singulares. No jardim da igreja, por exemplo, havia o sepulcro de Marie, marquesa de Hautpoul de Blanchefort, desenhado e construdo pelo abade Antoine Bigou, predecessor de Saunire, um sculo antes, aparentemente autor de dois dos misteriosos pergaminhos. A inscrio na pedra sepulcral - que inclua vrios erros deliberados de soletrao e de espao - era um anagrama perfeito para a mensagem contida nos pergaminhos referindo-se a Poussin e Teniers. Quando as letras eram rearranjadas, formavam a assero crptica que j reproduzimos. Os erros pareciam ter sido planejados precisamente com este fim. Sem saber que as inscries na tumba da marquesa j haviam sido copiadas, Saunire as obliterou, e essa profanao no foi o nico comportamento curioso que ele exibiu. Acompanhado de sua fiel governanta, comeou a fazer longas caminhadas pelo campo, coletando pedras sem nenhum valor ou interesse aparentes. Tambm embarcou numa troca volumosa de cartas com correspondentes desconhecidos em toda a Frana, bem como na Alemanha, Sua,

  • Itlia, ustria e Espanha. Comeou a colecionar pilhas de selos sem valor e efetuou transaes suspeitas com vrios bancos. Um deles at enviou um representante, que viajou de Paris a Rennes-le-Chteau com o nico objetivo de tratar de negcios com Saunire. S com despesas de correio Saunire estava gastando mais do que seu salrio poderia cobrir. E em 1896 ele comeou a gastar verdadeiramente, numa escala surpreendente e sem precedentes. Ao final de sua vida, em 1917, suas despesas haviam atingido o equivalente a vrios milhes de dlares. Uma parte dessa inexplicada riqueza foi empregada em excelentes obras pblicas - a construo de uma rodovia moderna at a cidade, por exemplo, e a introduo de facilidades para gua corrente. Outras despesas foram mais quixotescas. Uma torre foi levantada, a Torre Magdala, com vista para a montanha. Uma opulenta casa de campo foi construda, chamada Villa Bethania, que Saunire pessoalmente nunca ocupou. E a igreja no s foi decorada de novo, como o foi de um modo muito bizarro. No prtico, acima da entrada, a seguinte inscrio foi gravada:

    TERRIBILlS EST LOCUS ISTE. * * Este local terrvel. No interior, logo na entrada, foi erigida uma esttua horrenda, uma representao do demnio Asmodeus - detentor de segredos, guardio de tesouros escondidos e, segundo antiga lenda judaica, construtor do Templo de Salomo. Nas paredes da igreja, placas ostensivamente pintadas representavam as estaes da Via Sacra. Cada uma delas era caracterizada por alguma estranha inconsistncia, algum detalhe inexplicvel, algum desvio, flagrante ou sutil, da narrativa oficial das Escrituras. Na estao VIII, por exemplo, havia uma criana envolta em uma capa escocesa. Na estao XIV, que retrata o corpo de Jesus sendo levado tumba, aparecia um fundo de cu noturno, escuro, dominado por uma lua cheia. Como se

  • Saunire estivesse tentando dizer algo. Mas o qu? Que o enterro de Jesus ocorreu aps o incio da noite, vrias horas depois do que diz a Bblia? Ou que o corpo estaria sendo levado para fora da tumba e no para dentro dela? Enquanto realizava esses adornos curiosos, Saunire continuou a gastar de maneira extravagante, colecionando porcelana rara, tecidos preciosos e mrmores antigos, criando um jardim e um zoolgico e reunindo uma biblioteca magnfica. Pouco antes de sua morte ele estava, supostamente, planejando a construo de uma torre como a de BabeI, forrada de livros, de onde pretendia pregar. Seus paroquianos tampouco foram negligenciados. Saunire lhes presenteava com banquetes suntuosos e outras generosidades, mantendo assim o estilo de vida de um potentado. Em seu remoto e ao mesmo tempo prximo e inacessvel ninho de guia, recebia inmeros hspedes ilustres. Um deles, claro, era Emma Calv. Outro era o ministro da Cultura do governo francs. Talvez o mais augusto visitante do desconhecido padre provinciano tenha sido o arquiduque Johann Von Habsburgo, um primo de Franz Josef, imperador da ustria. Extratos bancrios revelaram depois que Saunire e o arquiduque haviam aberto contas no mesmo dia, e que este ltimo havia transferido para a conta do primeiro uma soma substancial. As autoridades eclesisticas fizeram, no incio, olhos de mercador sobre o assunto. Contudo, quando o superior de Saunire morreu, em Carcassonne, o novo bispo tentou chamar o padre ordem. Saunire respondeu com uma desobedincia inesperada e insolente. Recusou-se a explicar sua riqueza e a aceitar a transferncia que o bispo ordenava. Na falta de uma acusao mais substancial, o bispo o acusou de vender missas ilicitamente, e um tribunal local o suspendeu. Saunire apelou para o Vaticano, que o exonerou e depois o reinvestiu. No dia 17 de janeiro de 1917, Saunire, ento com 65 anos, sofreu um derrame cerebral. A data de 17 de janeiro talvez seja suspeita, pois tambm aparecia na tumba da marquesa de Hautpoul de

  • Blanchefort, a tumba que Saunire havia erradicado. E 17 de janeiro tambm a festa de Saint Sulpice, que reapareceria atravs de toda a nossa histria. Foi no seminrio de Saint Sulpice que ele confiou seus pergaminhos ao abade Bieil e a Emile Hoffet. O que torna o derrame de Saunire em 17 de janeiro mais suspeito o fato de, cinco dias antes, em 12 de janeiro, seus paroquianos terem declarado que ele parecia estar gozando de uma sade invejvel para um homem de sua idade. Entretanto, em 12 de janeiro, segundo um recibo que est conosco, Marie Denarnaud encomendou um caixo para seu mestre. Quando Saunire estava em seu leito de morte, o padre de uma parquia vizinha foi chamado para ouvir sua ltima confisso e administrar a extrema-uno. O padre chegou e confinou-se no quarto do doente. De acordo com testemunhas oculares, ele saiu logo depois, visivelmente chocado. Nas palavras de algumas testemunhas, "nunca mais sorriu". Nas palavras de outras, caiu em uma depresso profunda que durou vrios meses. Se so afirmaes exageradas no sabemos, mas o padre, presumivelmente com base na confisso de Saunire, recusou-se a administrar-lhe o ltimo sacramento. Em 22 de janeiro Saunire morreu sem o perdo da confisso. Na manh seguinte seu corpo foi colocado verticalmente numa poltrona no terrao da Torre Magdala, envolto em uma indumentria enfeitadas de pingentes com franjas escarlate. Certas pessoas compadecidas e no identificadas desfilaram, uma a uma, muitas delas arrancando franjas dos pingentes como lembrana do morto. Nunca houve qualquer explicao para tal cerimnia. Confrontados com ela, residentes atuais de Rennes-Ie-Chteau ficam to aturdidos como qualquer outra pessoa. A leitura do testamento de Saunire foi esperada com grande ansiedade. Para surpresa geral, contudo, ela revelou que no tinha nenhum tosto. Algum tempo antes de sua morte, aparentemente, transferira sua fortuna para Marie Denarnaud, que compartilhara de sua vida e de seus segredos por 32 anos. Ou talvez a maior parte daquela fortuna tenha estado em seu nome desde o incio.

  • Depois da morte de seu mestre, Marie continuou a viver confortavelmente em VilIa Bethania at 1946. Depois da Segunda Guerra Mundial, entretanto, o governo francs recm-instalado estabeleceu uma nova moeda. Como meio de apreender sonegadores de impostos, colaboradores e especuladores do tempo da guerra, os cidados franceses eram obrigados a declarar seus rendimentos quando trocavam francos velhos por novos. Confrontada com a perspectiva de ser obrigada a dar explicaes, Marie escolheu a pobreza. Foi vista no jardim da manso, queimando maos de notas de francos velhos. Durante os sete anos seguintes, Marie viveu de forma austera, mantendo-se com o dinheiro obtido da venda de ViIla Bethania. Prometeu confiar ao comprador, Noel Corbu, antes de morrer, um segredo que o faria no s rico mas tambm poderoso. Em 29 de janeiro de 1953, entretanto, Marie, como seu mestre antes dela, sofreu um sbito e inesperado derrame cerebral que a deixou prostrada em seu leito, incapaz de falar. Para grande frustrao do senhor Corbu, ela morreu logo depois, carregando consigo o segredo.

    Os Possveis Tesouros Em linhas gerais, esta a histria na forma em que foi publicada na Frana nos anos 60. Foi a forma sob a qual a descobrimos. E foi para as perguntas levantadas por ela que dirigimos nossa pesquisa, do mesmo modo que outros pesquisadores o fizeram. A primeira pergunta bastante bvia. Qual era a fonte do dinheiro de Saunire? De onde poderia vir to sbita e enorme fortuna? Haveria uma explicao banal? Ou envolveria alguma coisa mais excitante? Esta segunda possibilidade deixava entrever um aspecto fascinante do mistrio, e ns no podamos resistir ao impulso de brincar de detetives.

  • Comeamos por considerar as explicaes fornecidas por outros pesquisadores. Segundo vrios deles, Saunire tinha encontrado, na realidade, alguma espcie de tesouro. Uma concluso plausvel, pois a histria da cidade e de seus arredores inclua muitas possveis fontes de ouro e de jias escondidos. Nos tempos pr-histricos, por exemplo, a rea ao redor de Rennes-Ie-Chteau era considerada stio sagrado pelas tribos celtas que viviam por perto. A cidade em si, antes chamada Rhdae, deriva seu nome de uma dessas tribos. Nos tempos modernos, uma comunidade grande e promissora ocupara a rea, importante por suas minas e fontes termais teraputicas. Os romanos tambm consideravam sagrado o local. Mais tarde, pesquisadores ali encontraram traos de templos pagos. Durante o sculo VI, o pequeno vilarejo pendurado no topo da montanha possua presumivelmente 30 mil habitantes. Ele parece ter sido, em determinada poca, a capital nortista do imprio dos visigodos, o povo teutnico que varreu a Europa de centro a oeste, saqueou Roma, derrubou o Imprio Romano e estabeleceu seu prprio domnio cavalgando sobre os Pirineus. A cidade permaneceu como sede de uma importante regio, ou condado, o Condado de Razs, por mais quinhentos anos. No incio do sculo XIII, uma armada de cavaleiros do norte desceu pelo Languedoc para exterminar as heresias ctaras e albigenses e requisitar para si os ricos esplios da regio. Durante as atrocidades da chamada Cruzada Albigense, Rennes-Ie-Chteau foi tomada e transferida de mo em mo, como um domnio. Aps pouco mais de um sculo, por volta de 1360, a populao local foi dizimada por uma peste; logo depois, Rennes-le-Chteau foi destruda por bandos catales. As lendas de tesouros fantsticos so entremeadas por essas vicissitudes histricas. Os hereges ctaros, por exemplo, eram considerados possuidores de alguma coisa de valor fabuloso e mesmo sagrado que, segundo vrias lendas, era o clice sagrado. Estas

  • lendas, segundo relatos, teriam impelido Richard Wagner a peregrinar at Rennes-IeChteau antes de compor sua ltima pera, Parsifal; durante a ocupao de 1940-1945, poca em que Wagner foi muito popular, as tropas alems teriam realizado inmeras escavaes infrutferas nas vizinhanas. Havia tambm o tesouro desaparecido dos templrios, cujo gro-mestre, Bertrand de Blanchefort, teria organizado misteriosas escavaes nas vizinhanas. Segundo todos os relatos, essas escavaes eram de natureza marcadamente clandestina, realizadas por contingentes de mineiros alemes trazidos especialmente para este fim. Algum tipo de tesouro de templrios, guardado ao redor de Rennes-Ie-Chteau, explicaria a referncia a Sion no pergaminho descoberto por Saunire. Outros tesouros existiram. Entre os sculos V e VIII, grande parte da Frana foi governada pela dinastia merovngia, que inclua o rei Dagobert II. Rennes-Ie-Chteau, no tempo de Dagobert, era um baluarte visigodo, e o prprio Dagobert foi casado com uma princesa visigoda. A cidade poderia ter constitudo algum tipo de tesouro. H documentos que falam da grande riqueza acumulada por Dagobert e guardada nos arredores de Rennes-Ie-Chteau, visando conquistas militares. A descoberta de algum desses depsitos por Saunire explicaria a referncia a Dagobert nos cdigos. Os ctaros. Os templrios. Dagobert lI. E ainda um tesouro, produto de saques acumulados pelos visigodos durante seus avanos tempestuosos pela Europa. Tal tesouro poderia incluir mais que o resultado de saques convencionais - possivelmente, artigos de relevncia, tanto simblica quanto literal, para a tradio religiosa ocidental. Em resumo, o legendrio tesouro do Templo de Jerusalm poderia estar a includo - o qual, ainda mais que os templrios, explicaria a referncia a Sinai. Em 66 d.C., a Palestina ergueu-se em revolta contra o jugo romano. Quatro anos depois, em 70 d. C., Jerusalm foi arrasada pelas legies do imperador, sob o comando de seu filho Titus. O Templo foi saqueado, e o contedo do lugar "mais sagrado dos sacros" foi levado para Roma. Conforme descrio no arco triunfal de Titus, este

  • contedo inclua o imenso candelabro de sete braos, to sagrado ao judasmo, e possivelmente a Arca da Aliana. Mais de trs sculos depois, em 410 d.C., Roma foi por sua vez saqueada. Invasores visigodos, liderados por Alaric, o Grande, pilha ram toda a riqueza da Cidade Eterna. Segundo o historiador Procopius, Alaric escapou com "os tesouros de Salomo, rei dos hebreus, maravilhas aos olhos, pois eram em sua maioria enfeitados de esmeraldas e haviam sido roubados de Jerusalm pelos romanos". Um tesouro poderia ento ser a fonte da inexplicvel fortuna de Saunire. O padre poderia ter descoberto um dos vrios tesouros, ou um nico que mudara de mos repetidamente atravs dos sculos, passando talvez do Templo de Jerusalm aos romanos, depois aos visigodos e finalmente aos ctaros e/ou aos templrios. Estaria explicado o fato de o tesouro pertencer a Dagobert II e a Sion. At a nossa histria parecia ser essencialmente uma histria de tesouros. Como tal - mesmo envolvendo o Templo de Jerusalm -seria de relevncia limitada. Pessoas esto constantemente descobrindo tesouros de um tipo ou de outro. So, com freqncia, descobertas excitantes, dramticas e misteriosas, e muitas delas lanam importantes luzes sobre o passado. Poucas, no entanto, exercem alguma influncia direta, de ordem poltica ou no, sobre o presente - a menos, claro, que o tesouro em questo inclua um segredo de algum tipo, possivelmente explosivo. Ns no eliminamos a possibilidade de Saunire haver descoberto um tesouro. Ao mesmo tempo, parecia claro que, alm de qualquer outra coisa, ele descobrira tambm um segredo histrico de imensa importncia no seu tempo, e talvez no nosso. Dinheiro, ouro ou jias no explicariam, por si mesmos, muitas facetas de sua histria. No levariam sua introduo no crculo de Hoffet, por exemplo, sua associao com Debussy ou sua relao com Emma Calv. No explicariam o imenso interesse da Igreja no assunto, a impunidade com a qual Saunire desafiara o bispo ou sua subseqente exonerao pelo Vaticano, que pareceu mostrar uma preocupao urgente com o caso. No explicariam a recusa de um padre em

  • ministrar a extrema-uno a um moribundo, ou a visita de um arquiduque de Habsburgo a uma longnqua cidadezinha dos Pirineus, especialmente numa ocasio, em 1916, em que seu pas estava em guerra com a Frana. Dinheiro, ouro ou jias tampouco explicariam a poderosa aura de mistificao que envolveu todo o caso, desde os cdigos sofisticados at a queima, por Marie Denarnaud, de sua herana em dinheiro. E a prpria Marie prometera divulgar um "segredo que conferia no s fortuna, mas poder" . Na medida em que as informaes se acumulavam, ficvamos cada vez mais convencidos de que a histria de Saunire envolvia, alm de riqueza, um segredo polmico. Em outras palavras, pareceu-nos que o mistrio no estava confinado a um remoto e isolado vilarejo e a um padre do sculo XIX. Algo irradiava de Rennes-Ie-Chteau e produzia ondas, talvez mesmo uma enchente, no mundo exterior. Teria a fortuna de Saunire vindo no de algo com valor intrinsecamente financeiro, mas do conhecimento de alguma coisa? Se este era o caso, poderia tal conhecimento ter-se traduzido em bens materiais? Poderia ter sido utilizado em chantagem, por exemplo? Seria a fortuna de Saunire oriunda do pagamento pelo seu silncio? Ns soubemos que ele recebera dinheiro de Johann Von Habsburgo. Ao mesmo tempo, o segredo do padre, qualquer que fosse, parecia ser de natureza mais religiosa que poltica. Alm disso, suas relaes com o arquiduque austraco, segundo todos os relatos, era marcadamente cordial. Por outro lado, no final de sua carreira o Vaticano ameaava-o com luvas de veludo e parecia bastante temeroso dele. Estaria Saunire chantageando o Vaticano? Tal chantagem seria tarefa presunosa e arriscada para um homem, qualquer que fossem suas precaues. E se ele estivesse sendo ajudado e apoiado por outros, cuja importncia os tornasse inviolveis, tais como os Habsburgo? E se o arquiduque Johann fosse apenas um intermedirio, e o dinheiro fornecido por ele a Saunire proviesse, na realidade, dos cofres de Roma?

  • A Intriga O primeiro de nossos trs filmes sobre Saunire e o mistrio de Rennes-Ie-Chteau - O tesouro perdido de Jerusalm - foi exibido em fevereiro de 1972. No usava argumentos polmicos. Simplesmente, narrava a histria bsica, tal como foi contada nas pginas anteriores. No houve qualquer especulao sobre a existncia de um segredo explosivo ou de chantagem em altas esferas. Vale mencionar que o filme no citava o nome de Emile Hoffet, o jovem seminarista parisiense a quem Saunire confidenciou seus pergaminhos. Como talvez fosse de se esperar, aps a exibio do filme recebemos um dilvio de cartas, elogiosas ou excntricas. Algumas ofereciam intrigantes sugestes. Uma delas, que o autor no desejava ver publicada, parecia merecer especial ateno. O missivista era um padre anglicano aposentado que parecia ser um curioso e provocador non sequitur. Escreveu com certeza e autoridade categricas, com asseres claras e objetivas, sem titubeios, e com aparente descaso por acreditarmos ou no no que dizia. O tesouro, declarou sem escndalo, no envolvia ouro ou pedras preciosas. Era, ao contrrio, uma "prova irrefutvel" de que a crucificao havia sido uma fraude e que Jesus vivera at 45 d.C. Isso soou, evidentemente, absurdo. O que seria, mesmo para um ateu convicto, uma prova irrefutvel da sobrevivncia de Cristo crucificao? ramos incapazes de imaginar algo crvel que pudesse constituir no somente prova, mas, alm disso, fosse irrefutvel. Ao mesmo tempo, a abrupta extravagncia da afirmao pedia esclarecimentos. Como o autor da carta havia fornecido endereo para retorno, na primeira oportunidade fomos v-lo para tentar uma entrevista. Ele foi muito mais reticente no contato pessoal. Aparentou arrependimento por nos haver escrito. Recusou-se a desenvolver sua referncia "prova irrefutvel" e s ofereceu um fragmento adicional

  • de informao. A prova, ou sua existncia, havia sido revelada a ele por outro clrigo anglicano, Alfred Leslie Lilley. Lilley, que morreu em 1940, havia publicado muito e no era desconhecido. Durante a maior parte de sua vida, mantivera contatos com o Movimento Modernista Catlico, baseado principalmente em Saint Sulpice, em Paris, e conhecia Emile Hoffet. A trilha tornou-se circular, mas a conexo entre Lilley e Hoffet nos impedia de rejeitar sumariamente as afirmaes do nosso missivista. Evidncias similares de um segredo monumental haviam surgido durante nossa pesquisa sobre a vida de Nicolas Poussin, o grande pintor do sculo XVII, cujo nome reaparecia ao longo da histria de Saunire. Em 1656, Poussin, que vivia em Roma, teria recebido uma visita do abade Louis Fouquet, irmo de Nicolas Fouquet, superintendente de finanas de Lus XIV da Frana. De Roma, o abade despachara uma carta a seu irmo, descrevendo sua visita a Poussin. Parte desta carta merece meno. Ns discutimos certas coisas que devo sem bice ser capaz de explicar-lhe em detalhes - coisas que lhe daro, atravs do Senhor Poussin, vantagens que mesmo reis teriam dificuldades em obter e que, segundo ele, possvel que ningum mais venha a redescobrir nos prximos sculos. So coisas to difceis de descobrir que nada sobre a Terra, hoje, pode significar melhor ou igual fortuna. Nenhum historiador ou bigrafo de Poussin ou Fouquet explica esta carta, que se refere claramente a um assunto misterioso de imensa importncia. Logo depois de receb-la, Nicolas Fouquet foi detido e encarcerado por toda a vida. Segundo alguns relatos, foi mantido incomunicvel - alguns historiadores o vem como o provvel Homem da Mscara de Ferro. Toda sua correspondncia foi confiscada por Lus XIV, que a inspecionou pessoalmente. Nos anos que se seguiram o rei procurou obstinadamente obter o original de Les Bergers d'Arcadie, de Poussin. Quando finalmente conseguiu, guardou o quadro em seus apartamentos privados, em Versalhes.

  • Embora de grande qualidade artstica, o quadro aparentemente ingnuo. Trs pastores e uma pastora, em primeiro plano, esto reunidos em volta de uma grande e antiga tumba, contemplando a inscrio na pedra envelhecida: ET IN ARCADlA EGO. No fundo vislumbra-se uma paisagem montanhosa, irregular, do tipo geralmente associado com Poussin. Segundo Anthony Blunt e outros especialistas em Poussin, essa paisagem totalmente mstica, produto da imaginao do pintor. Entretanto, no incio dos anos 70, uma tumba real foi localizada, idntica quela do quadro - idntica em cenrio, dimenses, propores, forma, vegetao e at mesmo nas camadas circulares de rocha em que um dos pastores de Poussin repousa o p. A tumba real se localiza na periferia de uma cidade chamada Arques, a aproximadamente 10km de Rennes-Ie-Chteau e a 5km do castelo de Blanchefort. A paisagem vista da frente do sepulcro idntica do quadro. E um dos picos no fundo do quadro , evidentemente, Rennes-Ie-Chteau. No h indicao da idade da tumba. Ela pode ter sido erigida recentemente, claro, mas como fizeram seus construtores para encontrar um cenrio to parecido com aquele do quadro? De fato, ela deveria estar l j no tempo de Poussin, e Les Bergers d'Arcadie deve ser um retrato fiel do stio real. Segundo camponeses das vizinhanas, a tumba sempre esteve l, at onde eles, seus pais e avs podem se lembrar. Fala-se de uma meno especfica a ela, contida numa mmoire datada de 1709. Segundo registros na cidade de Arques, a terra em que se ergue a tumba pertenceu a um americano chamado Louis Lawrence, de Boston, Massachussetts, at sua morte, nos anos 50. Lawrence abriu o sepulcro nos anos 20 e encontrou-o vazio. Sua esposa e sua sogra foram sepultadas ali. Se algum dia houve uma inscrio na tumba real, ela desapareceu h muito tempo. Quanto inscrio na tumba do quadro de Poussin, esta parecia convencionalmente elegaca, com a Morte anunciando sua presena sombria tambm na Arcdia, paraso pastoral idlico do mito

  • clssico. Todavia, a inscrio curiosa porque nela falta um verbo. Quando traduzida literalmente, l-se: E EM ARCDIA EU... Por que faltaria o verbo? Talvez por uma razo filosfica, para evitar qualquer noo de tempo, qualquer indicao de passado, presente ou futuro, induzindo assim idia de algo eterno? Ou talvez por uma razo de ordem mais prtica. Os cdigos nos pergaminhos encontrados por Saunire repousavam fortemente em anagramas, na transposio e rearranjo de letras. Seria ET IN ARCADIA EGO tambm um anagrama? Poderia o verbo ter sido omitido de modo que a inscrio pudesse consistir unicamente de letras precisas? Um de nossos telespectadores, ao nos escrever, sugeriu que este poderia ser o caso, e rearranjou as letras em uma afirmao coerente em latim. O resultado foi: I TEGO ARCANA DEI. * * V embora! Eu guardo os segredos de Deus. Ficamos contentes e intrigados com este engenhoso exerccio. No percebemos ento quo extraordinariamente apropriada era a advertncia resultante.

    II OS CTAROS E A GRANDE HERESIA

    Comeamos nossa investigao num ponto que j nos era razoavelmente familiar: a heresia ctara, ou albigense, e a Cruzada provocada por ela no sculo XIII. J sabamos que os ctaros figuravam de alguma maneira no mistrio que circundava Saunire e Rennes-Ie-Chteau. Hereges medievais haviam sido numerosos na cidade e seus arredores, e sofreram brutalmente durante a Cruzada Albigense. De fato, toda a histria da regio imersa em sangue ctaro, e os resduos desse sangue persistem, com muita amargura,

  • at os dias de hoje. Muitos camponeses atuais da regio, sem os inquisidores para irromper sobre eles, proclamam abertamente sua simpatia pelos ctaros. Existiram at mesmo uma igreja ctara e um papa ctaro que, at sua morte, em 1978, viveu na cidade de Arques. Ns sabamos que Saunire havia mergulhado na histria e folclore de sua terra natal. Assim, ele no poderia ter evitado contato com o pensamento e as tradies ctaros. No poderia desconhecer que Rennes-Ie-Chteau tinha sido uma cidade importante nos sculos XII e XIII, algo assim como um baluarte ctaro. Saunire deve ter-se familiarizado com as inmeras lendas ligadas aos ctaros. Deve ter ouvido os rumores que ligavam essas lendas ao fabuloso objeto, o clice sagrado. E se Richard Wagner, em busca de alguma coisa relacionada com o clice, realmente visitou Rennes-Ie Chteau, Saunire no pode ter ignorado o fato. Alm disso, em 1890, um homem chamado Jules Doinel tornou-se bibliotecrio em Carcassonne e fundou uma igreja neoctara. O prprio Doinel escreveu muito sobre o pensamento ctaro e, por volta de 1896, se tornara um membro eminente de uma organizao cultural local, a Sociedade de Artes e Cincias de Carcassonne, da qual foi eleito secretrio em 1898. Esta sociedade inclua vrios conhecidos de Saunire, entre eles seu melhor amigo, o abade Henri Boudet. Assim, muito provvel que Doinel e Saunire tenham se conhecido. Outra razo existe, e mais provocante, para relacionar os ctaros com o mistrio de Rennes-Ie-Chteau. Em um dos pergaminhos encontrados por Saunire, o texto respingado com uma poro de letras pequenas - exatamente oito -, deliberadamente diferentes de todas as outras. Trs dessas letras esto no topo e cinco no p da pgina. Lidas em seqncia, formam duas palavras - REX MUNDI -, um termo indiscutivelmente ctaro, logo reconhecvel como tal por qualquer pessoa familiarizada com o pensamento dessa seita. Parecia razovel, portanto, iniciar nossa investigao pelos ctaros. Assim, comeamos a estudar em detalhes suas crenas e tradies,

  • sua histria e seu meio. Nossa pesquisa abriu novas dimenses do mistrio e gerou perguntas assustadoras.

    A Cruzada Albigense Em 1209, um exrcito de cerca de 30 mil homens, incluindo cavaleiros e infantes, desceu do norte da Europa para o Languedoc, as montanhas a nordeste dos Pirineus, onde fica hoje o sul da Frana. Na guerra que se seguiu, todo o territrio foi pilhado, as colheitas destrudas, as cidades e vilarejos arrasados. A populao tomou a espada. Este extermnio ocorreu numa extenso to vasta que pode bem ter constitudo o primeiro caso de genocdio na histria da Europa moderna. S na cidade de Beziers, por exemplo, pelo menos 15 mil homens, mulheres e crianas foram mortos, muitos no prprio santurio da igreja. Quando um oficial perguntou ao representante do papa como ele conseguiria distinguir hereges e crentes verdadeiros, a resposta foi: "Mate-os todos. Deus reconhecer os seus." Esta citao, amplamente narrada, pode ser apcrifa. Mesmo assim, caracteriza o fanatismo, o zelo e o prazer sanguinrio com que as atrocidades foram perpetradas. O prprio representante papal, ao escrever a Inocncio III em Roma, anunciou orgulhosamente que "nem idade, nem sexo, nem posio foram poupados". Aps Bziers, o exrcito invasor varreu todo o Languedoc. Caram Narbonne, Carcassonne e Toulouse. Os vitoriosos deixaram uma trilha de sangue, morte e carnificina por onde passaram. Essa guerra, que durou cerca de quarenta anos, hoje conhecida como Cruzada Albigense: Foi uma Cruzada no sentido exato do termo, enviada pelo prprio papa. Seus participantes usavam uma cruz em suas tnicas, como os cruzados da Palestina. E as recompensas eram as mesmas: absolvio de todos os pecados, remisso de penas, um lugar seguro no cu e, naturalmente, os produtos dos saques. Nessa Cruzada, alm disso, no era necessrio nem mesmo atravessar o mar e, de acordo com a lei feudal, era-se

  • obrigado a lutar por no mximo quarenta dias. Assumia-se, claro, que no havia interesse em saquear. Quando a cruzada terminou, o Languedoc havia sofrido uma grande transformao, mergulhando na barbrie que caracterizava o resto da Europa. Por qu? Para que toda essa destruio, brutalidade e devastao? No incio do sculo XIII, a rea hoje conhecida como Languedoc no fazia oficialmente parte da Frana. Era um principado independente, cuja cultura e instituies polticas possuam menos afinidades com o norte do que com os reinos de Lon, Aragon e Castela, na Espanha. O principado era governado por vrias famlias nobres, cujos chefes eram os condes de Toulouse e sua poderosa casa de Trencavel. Floresceu nos confins desse principado uma cultura que, na poca, era a mais avanada e sofisticada da cristandade, com a possvel exceo de Bizncio. O Languedoc e Bizncio possuam muitas coisas em comum. O ensino, por exemplo, era altamente considerado, o que no acontecia no norte da Europa. A filosofia e outras atividades intelectuais floresciam, poesia e amor corts eram aplaudidos; o grego, o rabe e o hebraico eram entusiasticamente estudados; e em Lunel e Narbonne cresciam escolas devotadas Cabala, antiga tradio esotrica do judasmo. Mesmo a nobreza era letrada e literata, numa poca em que a maioria dos nobres do norte no sabia sequer assinar o nome. No Languedoc, como em Bizncio, praticava-se uma tolerncia religiosa civilizada, em contraste com o zelo fantico que caracterizava outras partes da Europa. Linhas de pensamento islmico e judaico, por exemplo, eram importadas da Espanha, atravs de centros mercantis como Marselha ou atravs dos Pirineus. Ao mesmo tempo, a Igreja Romana no gozava de alta estima; a notria corrupo dos clrigos romanos no Languedoc afastava a populao. Em algumas igrejas, por exemplo, passavam-se trinta anos sem celebrar-se uma missa. Muitos padres, ignorando seus paroquianos, dirigiam negcios ou terras. Um arcebispo de Narbonne nunca visitou sua diocese.

  • Qualquer que tenha sido a corrupo da Igreja, o Languedoc havia atingido um pice de cultura sem igual na Europa antes do Renascimento. Como em Bizncio, havia elementos de complacncia, de decadncia e de fraqueza trgica que tornaram a regio despreparada para enfrentar as invases que sobrevieram depois. A nobreza do norte europeu e a Igreja Romana sabiam dessa vulnerabilidade e estavam vidos por explor-la. Por muitos anos eles tinham invejado a riqueza e o luxo do Languedoc. E a Igreja tinha razes para interessar-se. Sua autoridade na regio estava enfraquecida. Alm disso, no Languedoc, enquanto a cultura florescia, algo mais florescia tambm: a maior heresia da cristandade medieval. Nas palavras da Igreja, o Languedoc estava "infectado" pela heresia albigense, "a lepra louca do sul". Embora os adeptos dessa heresia fossem essencialmente pacficos, eles constituam uma ameaa grave autoridade romana, a mais grave que Roma experimentaria at trs sculos depois, quando os ensinamentos de Martinho Lutero iniciaram a Reforma. Por volta de 1200, havia uma perspectiva real de que o catolicismo romano, como forma dominante de cristianismo, fosse substitudo, no Languedoc, pela heresia. Ela estava se irradiando para outras partes da Europa, especialmente os centros urbanos da Alemanha, Flandres e Champagne, o que era ainda mais ameaador aos olhos da Igreja. Os hereges eram conhecidos por vrios nomes. Em 1165 eles haviam sido condenados por um conselho eclesistico no Languedoc, na cidade de Albi. Por esta razo, ou talvez porque Albi continuasse a ser um de seus centros, eles eram chamados com freqncia de albigenses; em outras ocasies eram ctaros; na Itlia, patarines. No raro, eram tambm estigmatizados com nomes de heresias anteriores, como arianos, marcionistas e maniquestas. Albigense e ctaro eram nomes genricos. No se referiam a uma nica igreja coerente, como aquela de Roma, com teologia e doutrina fixas, codificadas, definitivas. Os hereges em questo pertenciam a uma multido de seitas diversas, muitas sob a direo

  • de um lder independente, cujo nome seus seguidores assumiam. Essas seitas se atinham a certos princpios comuns, mas divergiam radicalmente nos detalhes. Muitas de nossas informaes provm de fontes eclesisticas, tais como documentos da Inquisio. Criar um quadro a partir de tais fontes como tentar compreender a Resistncia Francesa a partir de relatrios da Gestapo. Assim, virtualmente impossvel apresentar um resumo coerente e definitivo do que realmente constituiu o pensamento ctaro. Em geral, os ctaros acreditavam numa doutrina de reencarnao e no reconhecimento de um princpio feminino de religio. De fato, os pregadores e professores das congregaes ctaras, conhecidos como parfaits ["perfeitos"], eram de ambos os sexos. Ao mesmo tempo, rejeitavam a Igreja Catlica e negavam a validade das hierarquias clericais, ou de intercessores oficiais e ordenados entre Deus e o Homem. No centro desta posio, reside um princpio importante: o repdio f, pelo menos na forma em que a Igreja a prega. No lugar da f aceita em segunda mo, os ctaros insistiam no conhecimento direto e pessoal, numa experincia religiosa ou mstica apreendida em primeira mo. Esta experincia chamava-se gnosis, termo grego para "conhecimento", e os ctaros a privilegiavam sobre todos os credos e dogmas. A nfase no contato pessoal direto com Deus tornava suprfluos padres, bispos e outras autoridades eclesisticas. Os ctaros eram tambm dualistas. Todo o pensamento cristo podia, certamente, ser visto como dualista, pois insistia no conflito entre dois princpios oponentes: bem e mal, esprito e carne, alto e baixo. Mas os ctaros levavam a dicotomia muito alm do que o catolicismo ortodoxo estava preparado para aceitar. Para os ctaros, homens eram as espadas com que os espritos lutavam, sem que ningum visse suas mos. Toda a Criao estava imersa numa guerra perptua entre dois princpios irreconciliveis, luz e escurido, esprito e matria, bom e mau. O catolicismo posicionava um Deus supremo cujo adversrio, o demnio, era definitivamente inferior. Os ctaros proclamavam a existncia no de um Deus, mas de dois, com posies mais ou

  • menos comparveis. Um deles - "deus um" - era um ser, ou princpio, de puro esprito, limpo das manchas da carne. Era o deus do amor, considerado incompatvel com o poder. Ora, a Criao material era uma manifestao de poder. Assim, a Criao material - o mundo - era intrinsecamente mau. Toda matria era intrinsecamente m. O Universo, em sntese, era a obra de um deus usurpador, o deus do mal - ou, como os ctaros o chamavam, REX MUNDI, "deus do mundo". O catolicismo repousava no que podia ser chamado um dualismo tico. O mal, embora sado talvez do demnio, manifesta-se primariamente atravs do homem e de suas aes. Em contraste, os ctaros viam a realidade totalmente impregnada de uma forma de dualismo cosmolgico. Esta era, para eles, uma premissa bsica, mas a resposta variava de seita para seita. Segundo alguns ctaros, o propsito da vida do homem na Terra era o de transcender a matria, renunciar para sempre a qualquer coisa relacionada com o princpio do poder e, dessa forma, atingir a unio com o princpio do amor. Segundo outros, o propsito do homem era reclamar e recuperar a matria, espiritualiz-la, transform-Ia. importante notar a ausncia de um dogma, doutrina ou teologia fixos. Como na maioria dos desvios da ortodoxia estabelecida, havia apenas algumas atitudes definidas de forma flexvel, e as obrigaes morais pertinentes a essas atitudes eram sujeitas interpretao individual. Aos olhos da Igreja Romana, os ctaros cometiam srias heresias ao considerar a Criao, em nome da qual Jesus supostamente havia morrido, como intrinsecamente m, e ao considerar que Deus, cuja palavra havia criado o mundo no incio, era um usurpador. Sua mais grave heresia era, contudo, a atitude em relao ao prprio Jesus. Se a matria era intrinsecamente m, Jesus no poderia ter partilhado dela, encarnado, e ainda ser o filho de Deus. Para alguns ctaros, ele era totalmente incorpreo, um fantasma, uma entidade de puro esprito que, claro, no poderia ter sido crucificado. A maioria dos ctaros, no entanto, parece t-lo considerado um profeta como outros, um ser mortal que, em nome do princpio do amor, morreu na cruz.

  • Em suma, no havia nada de mstico, de sobrenatural, de divino, envolvendo a crucificao. Muitos pareciam duvidar que ela tivesse mesmo ocorrido. De qualquer modo, todos os ctaros repudiavam veementemente a significncia tanto da crucificao quanto da cruz, ou por considerarem essas doutrinas irrelevantes, ou porque Roma as exaltava to fervorosamente, ou porque as circunstncias brutais da morte do profeta no merecessem adorao. E a cruz - pelo menos em associao com o calvrio e a crucificao - era considerada um emblema de Rex Mundi, senhor do mundo material, a prpria anttese do verdadeiro princpio redentor. Jesus, se era mortal, tinha sido um profeta do amor. E AMOR, quando invertido ou pervertido, ou ainda deturpado em poder, tornava-se ROMA, cuja opulncia e luxo figuravam para os ctaros como a manifestao palpvel, na Terra, da soberania de Rex Mundi. Como conseqncia, eles no s recusavam a adorao da cruz como tambm negavam os sacramentos, inclusive o batismo e a comunho. A despeito dessas posies teolgicas sutis, complexas, abstratas e, para uma mentalidade moderna, irrelevantes, a maioria dos ctaros no era fantica. Atualmente, moda no meio intelectual considerar os ctaros uma congregao de sbios, msticos iluminados ou iniciados em conhecimentos misteriosos, e detentores de segredos csmicos. Na realidade, a maioria deles era composta de homens e mulheres mais ou menos comuns, que encontraram em seu credo um refgio contra a severidade do catolicismo ortodoxo e um repouso para os dzimos, penas, obsquias, exigncias e outras imposies sem fim da Igreja Romana. Por mais intricada que fosse sua teologia, os ctaros, na prtica, eram um povo eminentemente realista. Por exemplo, condenavam a procriao - uma vez que a propagao da carne no estava a servio do princpio do amor, mas de Rex Mundi - mas no eram ingnuos a ponto de advogar a abolio da sexualidade. Havia, verdade, um sacramento ctaro, ou algo equivalente, chamado Consolamentum, que compelia castidade. Com exceo dos parfaits, contudo, que

  • eram normalmente homens e mulheres sem famlia, o Consolamentum no era administrado at que se estivesse beira da morte, e no muito difcil ser casto quando se est morrendo. A congregao, de modo geral, tolerava a sexualidade, se no a sancionava explicitamente. Como se pode condenar a procriao enquanto se desculpa a sexualidade? Algumas evidncias sugerem que os ctaros utilizavam controle de natalidade e aborto. Ns conhecemos a posio atual de Roma sobre estes assuntos. No difcil imaginar com que energia e zelo vingativo esta posio se manifestava na Idade Mdia. Em geral, os ctaros pareciam levar uma vida de extrema devoo e simplicidade. Como deploravam igrejas, usualmente conduziam seus rituais e servios ao ar livre ou em algum edifcio disponvel - um celeiro, uma casa, o salo municipal. Tambm praticavam o que hoje chamamos meditao. Eram estritamente vegetarianos, embora se permitissem comer peixe. Quando viajavam pelo interior, os parfaits iam sempre aos pares, o que dava crdito aos rumores de sodomia lanados pelos seus inimigos.

    O Cerco de Montsgur Este foi, ento, o credo que se espalhou no Languedoc e provncias adjacentes numa escala que ameaou deslocar o catolicismo. Por inmeras e compreensveis razes, muitos nobres achavam o credo atraente. Alguns incentivavam a tolerncia geral, outros eram mesmo anticlericais. Alguns estavam desiludidos com a corrupo da Igreja, outros haviam perdido a pacincia com o sistema do dzimo, atravs do qual os proventos de suas terras desapareciam nos cofres de Roma. Muitos nobres ento, em idade avanada, se tornavam parfaits. Estima-se que 30% de todos os parfaits vinham da nobreza do Languedoc.

  • Em 1145, meio sculo antes da Cruzada Albigense, So Bernardo em pessoa viajou ao Languedoc para pregar contra os hereges. Ao chegar, ficou mais horrorizado com a corrupo de sua prpria Igreja. No que concerne aos hereges, Bernardo ficou bem impressionado: "Nenhum sermo mais cristo que o deles", declarou, "e sua moral pura." Por volta de 1200, desnecessrio dizer, o temor de Roma havia crescido. Ela conhecia a inveja com que os bares do norte da Europa olhavam para as ricas terras e cidades do sul. Esta inveja seria aproveitada, e os senhores nortistas constituiriam as tropas de choque da Igreja. S era preciso alguma provocao, alguma desculpa, para acender a opinio popular. Tal desculpa no demorou a surgir. Em 14 de janeiro de 1208, um dos embaixadores do papa no Languedoc, Pierre de Castelnau, foi assassinado. O crime parece ter sido cometido por rebeldes anticlericais sem nenhuma filiao ctara. Mesmo assim, de posse do pretexto de que necessitava, Roma no hesitou em culpar os ctaros. O papa Inocncio III ordenou imediatamente uma Cruzada. Perseguies a hereges houve de modo intermitente durante todo o sculo anterior, mas agora a Igreja mobilizava suas foras em grande escala. A heresia deveria ser extirpada de uma vez por todas. Um exrcito enorme foi reunido sob o comando do abade de Citeaux. As operaes militares foram confiadas a Simon de Montfort, pai do homem que mais tarde desempenharia um papel crucial na histria da Inglaterra. Sob a liderana de Simon, os cruzados do papa partiram com o objetivo de reduzir a runas a mais alta cultura europia da Idade Mdia. Nessa santa tarefa, foram ajudados por um novo e til aliado, o fantico espanhol Dominic Guzman. Impelido por um dio raivoso contra a heresia, Guzman criou em 1216 a ordem monstica depois chamada dominicana. E em 1233 os dominicanos produziram uma instituio ainda mais infame: a Santa Inquisio. Os ctaros no seriam suas nicas vtimas. Antes da Cruzada Albigense, muitos nobres do Languedoc - especialmente as influentes casas de

  • TrencaveI e Toulouse - haviam sido extremamente amigveis com a grande populao judia local. Essa proteo e apoio seriam agora compulsoriamente retirados. Simon de Montfort foi morto em 1218, sitiando Toulouse, mas a depredao do Languedoc continuou, com breves trguas, por mais um quarto de sculo. Por volta de 1243, contudo, toda resistncia organizada, se que houve alguma, havia cessado. Todas as cidades e basties ctaros tinham cado sob as invases nortistas, com exceo de alguns pontos fortes, remotos e isolados. Entre eles, o mais importante foi Montsgur, suspenso como um arco celestial sobre os vales circundantes. Montsgur foi sitiada durante dez meses, suportando assaltos repetidos e mantendo uma resistncia tenaz. Em maro de 1244, a fortaleza finalmente capitulou. O catharism cessou de existir, pelo menos ostensivamente, no sul da Frana. Mas idias nunca so eliminadas definitivamente. Por exemplo, Emmanuel Le Roy Ladurie narra em Montaillou, com base em documentos da poca, as atividades dos ctaros sobreviventes quase um sculo depois da queda de Montsgur. Pequenos grupos de hereges continuaram a sobreviver nas montanhas, vivendo em cavernas, aferrando-se ao seu credo e continuando uma guerrilha amarga contra os perseguidores. de conhecimento geral que a f ctara persistiu em muitos lugares do Languedoc, inclusive nos arredores de Rennes-Ie-Chteau. E muitos escritores tm buscado razes de heresias europias posteriores at encontrar ramos do pensamento ctaro - por exemplo, entre os valdenses, os hussitas, os adamitas ou irmos do livre esprito, os anabatistas e os estranhos camitas, muitos dos quais encontraram refgio em Londres no incio do sculo XVIII.

    O Tesouro Ctaro O misticismo criado em torno dos ctaros cresceu durante a Cruzada Albigense e persiste at hoje. Isso se deve, em parte, ao clima de

  • romance que circunda qualquer causa trgica e perdida - aquela do prncipe Bonnie Charlie, por exemplo - com um lustro mgico, uma nostalgia fantstica, uma aura de lenda. Embora as lendas tenham sido exageradas e romanceadas, descobrimos que alguns enigmas associados com os ctaros eram reais. Um deles residia em sua origem, questo que nos parecia acadmica, mas que mais tarde se revelaria importante. A maioria dos historiadores recentes tem argumentado que os ctaros eram uma derivao dos bogomil, uma seita ativa na Bulgria , durante os sculos X e XI, cujos missionrios teriam migrado para o oeste. Sem dvida, os hereges do Languedoc incluam vrios bogomil. E, realmente, um pregador bogomil foi proeminente nas questes polticas e religiosas da poca. Entretanto, nossa pesquisa revelou evidncias substanciais de que os ctaros representaram o florescimento de alguma coisa j secularmente enraizada em solo francs. Eles parecem haver surgido, quase diretamente, de heresias instaladas na Frana desde o advento da era crist. Existem outros mistrios ainda mais intrigantes associados aos ctaros. Jean de Joinville, por exemplo, ao escrever sobre sua amizade com Lus IX durante o sculo XIII, diz: "O rei [Lus IX] contou-me uma vez que vrios homens albigenses haviam pedido ao conde de Montfort para ir e olhar o corpo de Nosso Senhor, que se havia tornado carne e sangue nas mos de seu sacerdote." De acordo com este relato, Montfort foi tomado de surpresa por esse convite e declarou, ofendido, que sua comitiva poderia ir, se quisesse, mas que ele se manteria fiel doutrina da Santa Igreja. No h maior elaborao ou explicao desse incidente, comentado en passant por Joinville. O que podemos concluir desse convite enigmtico? O que estavam os ctaros fazendo? Que tipo de ritual estaria envolvido? Se no era uma missa, que os ctaros repudiavam, o que poderia ser "o corpo de Nosso Senhor (...) tornado carne e sangue"? Certamente tratava-se de uma declarao literal demais, portanto perturbadora. Outro mistrio envolve o legendrio tesouro ctaro. Sabe-se que os ctaros eram extremamente ricos. Seu credo os proibia de portar armas. Embora muitos ignorassem tal proibio, o fato que

  • mercenrios eram empregados em grande quantidade, a um custo considervel. As fontes da riqueza ctara - a fidelidade de poderosos proprietrios de terras, por exemplo - eram bvias e explicveis. Todavia, durante a Cruzada Albigense surgiram rumores a respeito de um fantstico tesouro mstico, muito mais importante que riqueza material. Presume-se que esse tesouro, qualquer que tenha sido, era guardado em Montsgur. Quando a fortaleza caiu, nada foi encontrado. Entretanto, ocorreram incidentes extremamente singulares, relacionados com o cerco e a capitulao de Montsgur. Durante o cerco, os atacantes, em nmero superior a 10 mil, tentaram circundar a montanha e impedir toda sada ou entrada, esperando assim matar os sitiados de fome. Contudo, apesar de sua fora numrica, eles no possuam homens em quantidade suficiente para tornar o bloqueio completamente seguro. Alm disso, muitas tropas eram locais e simpatizantes dos ctaros, e inmeras outras eram simplesmente no confiveis. Em conseqncia, no era difcil passar desapercebido atravs das linhas dos atacantes. Havia muitos vazios, atravs dos quais homens saam e entravam, e suprimentos atingiam seu destino na fortaleza. Os ctaros aproveitaram esses vazios. Em janeiro, quase trs meses antes da queda da fortaleza, dois parfaits escaparam. Segundo relatos confiveis, eles carregaram consigo a riqueza material dos ctaros muito ouro, prata e moedas, que levaram a uma caverna fortificada nas montanhas e de l a um castelo aliado. Depois o tesouro desapareceu e nunca mais se ouviu falar nele. Em 1. de maro, Montsgur finalmente capitulou. Seus defensores eram ento menos de quatrocentos - 150 a 180 parfaits, o restante cavaleiros, valetes e suas famlias. Os termos de rendio propostos eram surpreendentemente tolerantes. Os combatentes receberiam perdo total de todos os crimes precedentes. Receberiam permisso para partir com suas armas, bagagem e alguns presentes, inclusive dinheiro que porventura tivessem recebido de seus empregadores. Aos parfaits tambm foi concedida uma generosidade inesperada:

  • seriam liberados e submetidos a penas leves, com a condio de abjurar suas crenas herticas. Os defensores solicitaram uma trgua de duas semanas, com cessao completa das hostilidades, a fim de considerar os termos propostos. Numa demonstrao de generosidade no caracterstica, os atacantes concordaram. Em compensao, os defensores voluntariamente ofereceram refns, estabelecendo-se que eles seriam executados se algum tentasse escapar da fortaleza. Seriam os parfaits to comprometidos com suas crenas a ponto de escolher voluntariamente o martrio em lugar da converso? Ou haveria algo que eles no podiam - ou no se atreviam - confessar Inquisio? Qualquer que seja a resposta, nenhum dos parfaits, at onde se sabe, aceitou os termos dos atacantes. Todos escolheram o martrio. Alm disso, pelo menos vinte dos outros ocupantes da fortaleza, seis mulheres e cerca de quinze combatentes voluntariamente receberam o Consolamentum e tornaram-se parfaits, aceitando assim a morte certa. A trgua expirou em 15 de maro. Na madrugada do dia seguinte, mais de duzentos parfaits foram rudemente arrastados montanha abaixo. Nenhum deles cometeu perjrio. Como no houvesse tempo para que se levantassem estacas individuais, eles foram trancados em uma grande cerca no p da montanha e queimados en masse. Os remanescentes da milcia, confinados no castelo, eram forados a assistir, sendo prevenidos de que se algum deles procurasse escapar seria morto, assim como os refns. Apesar do risco, contudo, a milcia concordou em esconder quatro parfaits. E na noite de 16 de maro esses quatro homens, acompanhados de um guia, procederam ousada fuga - de novo com o conhecimento e a cumplicidade da milcia. Desceram a escarpada face oeste da montanha, baixados em cordas de uma centena de metros cada uma. Que estariam esses homens fazendo? Qual seria o propsito de sua perigosa escapada, que implicava tamanho risco tanto para a milcia quanto para os refns? No dia seguinte eles poderiam ter sado da fortaleza, livres para recomear suas vidas. Por alguma razo desconhecida, no

  • entanto, embarcaram em uma perigosa fuga noturna que poderia facilmente t-los levado morte. Segundo a tradio, esses quatro homens carregavam consigo o legendrio tesouro ctaro. Mas um tesouro j havia sido contrabandeado de Montsgur trs meses antes. E, de qualquer forma, quanto tesouro - ouro, prata ou moeda - poderiam trs ou quatro homens carregar nas costas, pendurados em cordas, montanha abaixo? Se os quatro fugitivos estavam realmente carregando alguma coisa, seria algo diferente de riqueza material. Que poderiam estar carregando? Acessrios da crena ctara, talvez, livros, manuscritos, ensinamentos secretos, relquias, objetos religiosos de alguma espcie; talvez algo que, por uma ou outra razo, no podia cair em mos hostis. Isto poderia explicar uma fuga que implicasse tal risco para todos. Se alguma coisa to preciosa tivesse que ser mantida fora do alcance de mos hostis, por que no havia sido contrabandeada trs meses antes, junto com o tesouro material? Por que foi retida na fortaleza at o ltimo e perigoso momento? A data precisa da trgua nos permitiu deduzir uma resposta possvel a estas perguntas. Ela foi pedida pelos defensores da fortaleza, que ofereceram refns a fim de obt-la. Por alguma razo, os defensores parecem ter considerado isso necessrio - ainda que, dessa forma, s conseguissem retardar o inevitvel desenlace por duas semanas. Conclumos que tal demora talvez fosse necessria para ganhar tempo. No um tempo qualquer, mas aquele tempo especfico. Ele coincidiu com o equincio - e o equincio pode bem ter significado uma condio ritual para os ctaros. Tambm coincidiu com a Pscoa. Sabe-se que um certo festival acontecia em 14 de maro, vspera da expirao do prazo. Existe pouca dvida de que a trgua foi solicitada de modo a que o festival pudesse acontecer, e de que este no poderia ser realizado em uma data escolhida ao acaso. Qualquer que tenha sido o festival, ele certamente causou forte impresso nos mercenrios contratados; alguns deles se converteram crena ctara, desafiando assim a morte inevitvel. Poderia este fato conter a chave, pelo menos parcial, para se descobrir o que era a coisa

  • contrabandeada de Montsgur duas noites mais tarde? Essa coisa teria sido necessria para o festival do dia 14? Seria ela instrumental na persuaso de pelo menos vinte dos defensores, os quais se tornaram parfaits no ltimo momento? Poderia ter assegurado a cumplicidade subseqente da milcia, mesmo com risco de vidas? Se a resposta a todas estas questes sim, isto explicaria por que ela foi removida no dia 16 e no antes - em janeiro, por exemplo, quando o tesouro monetrio foi transportado para lugar seguro.

    O Mistrio dos Ctaros Na medida em que pondervamos sobre estas concluses, lembrvamo-nos constantemente das lendas que ligavam os ctaros ao clice sagrado. No estvamos preparados para encar-las como algo mais do que mitos. Na verdade, no estvamos preparados nem mesmo para afirmar que o clice houvesse existido. Ainda que o fizssemos, no podamos imaginar que um copo ou clice, houvesse ele contido ou no o sangue de Jesus, fosse to precioso para os ctaros, para quem Jesus, afinal, era incidental. Entretanto, as lendas continuaram a nos assombrar e confundir. Por mais evasiva que fosse, alguma ligao parecia existir entre os ctaros e o culto ao clice, na forma como ele evoluiu durante os sculos XII e XIII. Vrios escritores tm argumentado que os romances sobre o clice - os de Chrtien de Troyes e de Wolfram Von Eschenbach, por exemplo - constituem uma interpolao do pensamento ctaro, disfarado em simbolismos que foram elaborados no prprio corao da cristandade ortodoxa. Pode haver algum exagero nesta assero, mas h tambm alguma verdade. Durante a Cruzada Albigense, os eclesisticos investiram contra os romances sobre o clice, declarando-os perniciosos, at herticos. E em alguns desses romances existem passagens isoladas que, alm de altamente no ortodoxas, so sem dvida dualistas - ou seja, ctaras.

  • Ainda mais, Wolfram Von Eschenbach declara em um de seus romances que o castelo do clice se situava nos Pirineus, uma afirmao que Richard Wagner pode ter tomado literalmente. Segundo Wolfram, o nome do castelo era Munsalvaesche - aparentemente, uma verso alem de Montsalvat, termo ctaro. E em um dos poemas de Wolfram, o senhor do castelo do clice se chamava Perilla. Ora, o lorde de Montsgur era Raimon de Pereille, e seu nome aparece em documentos da poca como Perilla, em latim. Se tais coincidncias persistiam em nos assombrar, elas devem tambm ter assombrado Saunire, que estava, afinal, mergulhado nas lendas e no folclore da regio. Como qualquer outro nativo dali, Saunire devia perceber constantemente a proximidade de Montsgur, cujo destino trgico ainda dominava a conscincia local. Para ele, a prpria proximidade da fortaleza pode ter tido algumas implicaes de ordem prtica. Alguma coisa havia sido contrabandeada de Montsgur logo aps o trmino da trgua. Segundo a tradio, os quatro homens que escaparam da cidadela sitiada carregavam consigo o tesouro ctaro. Mas o tesouro monetrio havia sido carregado trs meses antes. Poderia o tesouro ctaro, e o tesouro que Saunire descobriu, consistir fundamentalmente de um segredo? Poderia esse segredo estar relacionado, de alguma maneira inimaginvel, a algo que ficou conhecido como o clice sagrado? Para ns, parecia inconcebvel que os romances sobre o clice pudessem ser tomados literalmente. Se alguma coisa foi contrabandeada de Montsgur, ela foi levada a algum lugar. Segundo a tradio, foi levada para as cavernas fortificadas de Ornolac, em Arige, onde um bando de ctaros foi exterminado logo em seguida. Mas nada alm de esqueletos foi encontrado em Ornolac. Por outro lado, Rennes-Ie-Chteau fica somente a meio dia, a cavalo, de Montsgur. O que quer que seja que tenha sido contrabandeado de Montsgur pode bem ter sido levado a Rennes-Ie-Chteau ou, mais provavelmente, a algumas cavernas que

  • esburacam as montanhas ao redor. Se a descoberta de Saunire fosse o segredo de Montsgur, muita coisa seria explicada. No caso dos ctaros, assim como no de Saunire, a palavra tesouro parece esconder algum tipo de conhecimento ou informao. A devoo tenaz dos ctaros e sua antipatia militante por Roma nos levaram a imaginar que tal conhecimento ou informao, se existisse, seria relacionado de alguma forma com o cristianismo - sua doutrina e teologia, sua histria e origens. Em resumo: seria possvel que os ctaros, ou pelo menos alguns deles, soubessem de algo que tivesse produzido o fervor selvagem com que Roma desejou seu extermnio? O padre que nos escreveu referira-se a uma prova irrefutvel. Conheciam os ctaros essa prova? Naquele momento s podamos especular de forma mais ou menos errante. As informaes sobre os ctaros eram em geral to escassas que impediam at mesmo a formao de uma hiptese de trabalho. Por outro lado, nossa pesquisa sobre os ctaros invadia repetidamente outro assunto, ainda mais enigmtico e envolto em lendas: os templrios. Estendendo a eles nossa pesquisa, comeamos a gerar documentao concreta. E o mistrio comeou a assumir propores bem maiores do que imaginramos.

    III OS MONGES COMBATENTES

    A pesquisa sobre os templrios revelou-se tarefa ousada. O volume de material escrito sobre o assunto era intimidante, e no incio no estvamos certos de que se tratasse de material confivel. Se os ctaros tinham engendrado um redemoinho de lendas romnticas e esprias, os templrios tinham engendrado muito mais. Estes personagens, que desempenharam um papel to crucial nas Cruzadas, nos eram familiares: os violentos monges guerreiros, cavaleiros msticos envoltos em mantos brancos com suas grandes cruzes vermelhas. Eles representavam os arqutipos dos cruzados,

  • tropas tempestuosas da Terra Santa, que lutaram e morreram heroicamente, aos milhares, por Cristo. Todavia, ainda hoje muitos escritores os consideram como uma instituio mais misteriosa, uma ordem essencialmente secreta, concentrada em intrigas obscuras, maquinaes clandestinas, conspiraes e desgnios sombrios. E restava um fato perturbador, inexplicvel. Ao final de sua carreira de duzentos anos, esses campees de Cristo vestidos de branco foram acusados de negar e repudiar o prprio Cristo, de tripudiar e cuspir na cruz. Em Ivanho, de Scott, os templrios so mostrados como baderneiros, orgulhosos e arrogantes, dspotas ambiciosos e hipcritas que abusavam desavergonhadamente de seu poder, manipuladores ardilosos que orquestravam assuntos de homens e reinos. Outros escritores do sculo XIX os descrevem como satnicos, vis, adoradores do demnio, praticantes de toda sorte de rituais obscenos, abominveis, herticos. Historiadores mais recentes tendem a v-los como vtimas indefesas, bodes expiatrios das manobras polticas da Igreja e do Estado. Outros escritores existem, especialmente na tradio da maonaria, que encaram os templrios como iniciados msticos, guardies de uma sabedoria secreta que transcende o prprio cristianismo. Qualquer que seja a parcialidade ou orientao de tais escritores, ningum duvida do zelo herico dos templrios ou de sua contribuio para a histria. Tambm no resta dvida de que essa ordem permanece como uma das instituies mais glamourosas e enigmticas dos anais da cultura ocidental. Nenhuma narrativa das Cruzadas, ou mesmo da Europa dos sculos XII e XIII, deixa de mencionar os templrios. Em seu pice, eles formaram a organizao mais poderosa e influente de toda a cristandade, sendo o papado a nica e possvel exceo. Entretanto, permanecem algumas perguntas. Quem e o que eram os templrios? Eram aquilo que aparentavam ser, ou eram algo mais? Eram simples soldados sobre os quais uma aura de legenda e de mistificao foi depois colocada? Por que isto teria acontecido?

  • Alternativamente, haveria um mistrio genuno relacionado com eles? Haveria algum fundamento no posterior embelezamento do mito? Ns consideramos primeiro as narrativas j aceitas sobre os templrios, aquelas fornecidas por historiadores respeitados e responsveis. Essas narrativas, em praticamente todos os pontos, levantavam mais perguntas que respostas. Submetidas a exame, desmontaram; mais do que isso, sugeriram a existncia de um certo mascaramento. No pudemos fugir da suspeita de que alguma coisa fora deliberadamente escondida; uma mscara havia sido confeccionada, sendo depois meramente repetida pelos historiadores.

    Templrios: A Narrativa Ortodoxa A primeira informao histrica sobre os templrios, amplamente conhecida, foi feita por um historiador frncico, Guillaume de Tyre, que escreveu entre 1175 e 1185. Foi a poca do pice das Cruzadas , quando exrcitos ocidentais j haviam conquistado a Terra Santa e estabelecido o reino de Jerusalm - ou, como era chamado pelos prprios templrios, Ultramar, a Terra Alm do Mar. Quando Guillaume de Tyre comeou a escrever, a ocupao da Palestina j durava sete anos, e a existncia dos templrios mais de cinqenta. Guillaume escreveu sobre acontecimentos que antecediam o seu prprio tempo. Tratou de eventos que no testemunhou ou experimentou pessoalmente, mas que aprendeu de segunda ou terceira mo e, sobretudo, em bases de autoridade incerta. No houve cronistas em Ultramar entre 1127 e 1144. No existem registros escritos desses anos cruciais. No sabemos muito sobre as fontes de Guillaume, o que lana dvidas sobre algumas de suas afirmaes. Ele pode t-las obtido de vozes do povo, a partir de uma tradio oral no muito confivel. Ou pode ter consultado os prprios templrios, passando adiante o que ouviu deles. Se este foi o caso, significa que ele narrou somente o que os templrios queriam que narrasse.

  • Guillaume nos fornece algumas informaes bsicas. Nelas se baseiam todas as narrativas posteriores sobre os templrios, todas as explicaes para a fundao da ordem e as atividades que desenvolveu. Por fora da impreciso de Guillaume e da poca em que ele escreveu, assim como da escassez de fontes documentadas em seu trabalho, ele constitui uma base precria para que se construa um quadro definitivo. Suas crnicas, certamente, so teis. Mas um erro - no qual muitos historiadores incorreram consider-las indiscutveis e totalmente corretas. At mesmo as datas de Guillaume, como Sir Steven Runciman enfatiza, "so confusas e s vezes equivocadas". Segundo Guillaume, a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomo foi fundada em 1118 por um tal Hugues de Payen, um nobre da regio de Champagne, vassalo do conde de Champagne. Um dia, sem ter sido solicitado, Hugues apresentou-se com oito companheiros no palcio de Baudouin I, rei de Jerusalm, cujo irmo mais velho, Godfroi de Bouillon, havia capturado a Cidade Santa dezenove anos antes. Baudouin parece t-los recebido cordialmente, e o mesmo fez o patriarca de Jerusalm, lder religioso do novo reino e emissrio especial do papa. O objetivo declarado dos templrios, continua Guillaume de Tyre, era, "tanto quanto permitissem suas foras, manter as estradas e rodovias seguras (...), tomando um cuidado especial com a proteo dos peregrinos". Era um objetivo aparentemente to meritrio, que o rei colocou uma ala inteira do palcio disposio dos cavaleiros, que, a despeito de seu declarado voto de pobreza, se instalaram nessa luxuosa residncia. Segundo a tradio, seu quartel foi construdo sobre as fundaes do Templo de Salomo. Da o nome da ordem. Durante nove anos, conta ainda Guillaume de Tyre, os nove cavaleiros no admitiram novos candidatos ordem. Deviam viver em estado de pobreza; tamanha pobreza que, nos selos oficiais, dois cavaleiros apareciam cavalgando um s cavalo, implicando no s irmandade

  • mas penria, que impede montarias separadas. Este estilo de sela, existente - se diz - desde o princpio da ordem, freqentemente encarado como o utenslio mais famoso e distintivo dos templrios. Contudo, ele data de um sculo depois, quando os templrios no eram nada pobres - se que, na verdade, um dia o foram. Escrevendo meio sculo depois, Guillaume diz que os templrios se estabeleceram em 1118 e mudaram-se para o palcio do rei, supostamente para proteger os peregrinos nas estradas e rodovias da Terra Santa. Entretanto, naquela poca havia um historiador oficial, empregado pelo rei. Seu nome era Fulk de Chartres, e ele no escreveu cinqenta anos depois da pretensa fundao da ordem, mas durante os anos em questo. Curiosamente, Fulk de Chartres no menciona Hugues de Payen, ou seus companheiros, ou qualquer coisa relacionada, mesmo remotamente, aos templrios. Na realidade, houve um intrigante silncio sobre as atividades dos templrios durante os primeiros anos de sua existncia. No existe registro - nem mesmo mais tarde - de peregrinos sendo protegidos por eles. E no podemos deixar de admirar que to poucos homens pudessem pretender dar cabo de to gigantesca tarefa. Nove homens para proteger os peregrinos de todos os cantos da Terra Santa? Somente nove? Todos os peregrinos? Se este era o objetivo, eles deveriam ser simpticos a novos recrutas. Entretanto, segundo Guillaume de Tyre, no admitiram novos candidatos ordem por nove anos. A despeito disso, em uma dcada a fama dos templrios parece ter-se espalhado na Europa. Autoridades eclesisticas falavam deles com louvor e aplaudiam seu trabalho cristo. Por volta de 1128, um panfleto elogiando suas virtudes e qualidades foi produzido por ningum menos que So Bernardo, abade de Clairvaux e principal porta-voz da cristandade. O panfleto de Bernardo, Elogio nova cavalaria, declara os templrios eptome e apoteose dos valores cristos. Nove anos depois, em 1127, a maioria dos nove cavaleiros retornou Europa e recebeu uma acolhida triunfal, orquestrada em grande parte pelo prprio So Bernardo. Em janeiro de 1128 um conselho foi criado

  • em Troyes - corte do conde de Champagne, Hugues de Payen -, tambm sob inspirao de So Bernardo. Nesse conselho os templrios foram oficialmente reconhecidos e incorporados como uma ordem religiosa militar. Hugues de Payen recebeu o ttulo de gro mestre. Ele e seus subordinados seriam monges guerreiros, soldados msticos, combinando a disciplina austera do claustro e um zelo marcial prximo do fanatismo; uma milcia de Cristo, como foram chamados na poca. E, de novo, foi So Bernardo quem ajudou a estabelecer, com um prefcio entusistico, a regra de conduta qual os cavaleiros deveriam aderir. Uma regra baseada naquela da Ordem Monstica Cisterciense, na qual o prprio Bernardo era a influncia dominante. Os templrios faziam voto de pobreza, castidade e obedincia. Eram obrigados a cortar o cabelo, mas proibidos de cortar a barba, distinguindo-se assim numa poca em que a maioria dos homens se barbeava. Sua dieta, hbito e outros aspectos da vida diria eram regulados estritamente segundo ambas as rotinas, a da ordem monstica e a da ordem militar. Todos eram obrigados a usar hbito ou sobretudo e toga brancos, freqentemente envolvidos no manto branco que os tornou famosos. A lei da ordem estipulava: "Somente aos Cavaleiros de Cristo permitido usar hbitos brancos, ou mantos brancos." E elaborava o significado simblico desse aparato: "Forneceremos a todos os cavaleiros declarados, tanto no inverno como no vero, roupas brancas, de modo que aqueles que deixaram atrs de si uma vida escura possam saber que sero recomendados ao Criador por uma vida pura e branca." Adicionalmente, a regra estabelecia uma hierarquia e um aparato flexveis. E o comportamento no campo de batalha era rigorosamente controlado. Eram impelidos a lutar at a morte. S lhes era permitido bater em retirada se enfrentassem um grupo que os excedesse em mais que o triplo. Capturados, no podiam pedir clemncia ou resgate. Em 11396 uma encclica seria enviada pelo papa Inocncio II, antigo monge cisterciense de Clairvaux e protegido de So Bernardo. Segundo essa encclica, os templrios deviam obedincia a ningum

  • mais, alm do prprio papa. Em outras palavras, eles se tornavam independentes de todos os reis, prncipes e prelados, e de toda interferncia de autoridades polticas ou religiosas. Tornaram-se, de fato, uma lei, um imprio internacional autnomo. Durante as duas dcadas que se seguiram ao Conselho de Troyes, a ordem se expandiu com uma rapidez extraordinria e numa escala sem precedentes. Quando Hugues de Payen visitou a Inglaterra em fins de 1128, foi recebido com "grande adorao" pelo rei Henrique I. Os filhos jovens de famlias nobres de toda a Europa se apressaram a entrar para as fileiras da ordem, e vastas doaes - em dinheiro, mercadorias e terras - foram feitas em todos os cantos da cristandade. Hugues de Payen doou suas propriedades, e todos os novos recrutas passaram a ser obrigados a fazer o mesmo. Ao serem admitidos na ordem, os homens eram compelidos a transferir todas as suas posses. Dadas essas diretrizes, no de se admirar que os bens dos templrios se multiplicassem. Doze meses aps o Conselho de Troyes, a ordem mantinha terras na Frana, Inglaterra, Esccia, Flandres, Espanha e Portugal. Em mais uma dcada, eles tomaram tambm territrios na Itlia, ustria, Alemanha, Hungria e Terra Santa, alm de se dirigirem para o leste. Embora os cavaleiros, pessoalmente, estivessem ligados ao seu voto de pobreza, isto no impedia a ordem de abarcar riquezas, e numa escala sem precedentes. Qualquer presente era bem-vindo. Ao mesmo tempo, a ordem no podia dispor de nada, nem mesmo para resgatar seus lderes. O Templo recebia em abundncia e tinha como poltica rigorosa nunca dar. Assim, quando Hugues de Payen retornou Palestina em 1130, com um squito de trezentos homens - bastante considervel para a poca - deixou atrs dele, sob a custdia de outros adeptos, vastos pedaos do territrio europeu. Em 1146 os templrios adotaram a famosa cruz vermelha, patte, cujos braos se alargam e encurvam nas extremidades. Com este smbolo decorando seus mantos, os cavaleiros acompanharam o rei Lus VII, da Frana, na Segunda Cruzada, estabelecendo a reputao de zelo marcial, bravura quase insana e uma orgulhosa arrogncia.

  • Eram muito disciplinados; o mais disciplinado grupo armado do mundo, na poca. O prprio rei francs escreveu que, sozinhos, os templrios impediram que a Segunda Cruzada - mal planejada e mal dirigida - degenerasse em completa catstrofe. Nos cem anos seguintes, os templrios se tornaram um poder com influncia internacional. Engajaram-se constantemente em diplomacia de alto nvel entre nobres e monarcas atravs do mundo ocidental e da Terra Santa. Na Inglaterra, por exemplo, o mestre do Templo era regularmente chamado para o Parlamento do rei, sendo considerado o lder das ordens religiosas, com precedncia sobre todos os prelados e abades do territrio. Como mantinham ligaes estreitas tanto com Henrique II quanto com Thomas de Becket, os templrios contriburam para a reconciliao entre o soberano e seu arcebispo. Sucessivos reis ingleses, incluindo o rei J