bachelard gaston. a chama de uma vela

Upload: kofuchiha

Post on 06-Jul-2015

129 views

Category:

Documents


7 download

TRANSCRIPT

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    1/57

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    2/57

    Do mesmo autor; nesta Editora: Gaston Bachelardo DIREITO DE SONHAR

    A Chama de uma VelaTraduciio

    GJ6ria de Carvalho Lins

    L

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    3/57

    Copyright J 961, Presses Universitaires de France

    Titulo Original: La flamme d'une chandelleCapa: projeto grafico de Felipe Taborda, utilizando detalhe da tela"Efecto de luz artificial", de Schalcken (Museu do Prado, Madri)

    1989 A HENRI BoscoIrnpresso no BrasilPrinted in Brazil

    'Ibdos os direitos desta traducao reservados aEDITORA BERTRAND BRASIL SARua Benjamin Constant, 142 - Gloria2024) - Rio de Janeiro - RJThl.: (021) 221-1132Telex: (21) 38074 BESI BR.Nao e perrnitido a reproducao total Olj parcial desta obra, porquaisquer rneios, sem a previa autorizacao pOT escrito da editora.A tendemos pete Reembolso Postal.

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    4/57

    fNDICEPR6LOGO . ................................... 9CAPITULO 1 - 0passado das vetas 25CAPiTULO II - A solidiio do sonhador de vela 39CAPITULO JIl - A verticalidade das chamas 59CAPITULO IV - As imagens poeticas da chama na vi-da vegetal , 73CAPiTULO V - A luz da lf1mpada 91EPlLOGO - Minha ldmpada e meu papel em

    bran co , 107

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    5/57

    Pr6logo

    I

    Neste pequeno livro, de pura fantasia, sern a so-brecarga de saber algum, sem nos aprisionarmos na uni-dade de urn metoda de investigacao, gostariamos de,numa sequencia de curtos capitulos, dizer que a reno-vacao da fantasia recebe urn sonhador na contempla-0;30 de uma chama solitaria, b chama, dentre o~obje-tos do mundo que nos fazem sonhar, e urn dos maio-

    -res operadores de imagens. Ela nos forca a irnaginar,.Diante deja, desde que se sonhe, a que sepercebe naoe nada, comparado com 0que se imagina, Ela traz con-sigo urn valor seu, de rnetaforas e imagens, nos domf-

    i

    9

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    6/57

    nios das ma i s d iv ers a s me di ta c oe s, Tomem-na como su-jeito de urn dos verb o s que exprimem a vida e veraoque ela d a a esses verbos urn complemento de anima-o;:ao.0 filosofo que corre a tra s da s generalizacoes afir-rna, com dogmatica tranquilidade: "0 que se chamaVida na criacao e , em todas as formas e em todos asseres, urn mesmo e unico espirito, uma chama iini-ca'". Mas tal generalizacao rapido demais alcanca suameta. E principalmente na multiplicidade enos deta-lhes das imagens que devemos fazer sentir a funcao deoperador da imaginacao das chamas imaginadas. 0 ver-bo inflamar deve, entao,entrar para 0vocabulario dopsicologo, Ele cornanda todo um setor do mundo daexpressao, As imagens da linguagem inflamada infJa-mam 0 psiquismo, dao urn tom de excitacao que a fi-Iosofia da poetica necessita, As rnais frias metdforastransformam-se realmente em imagens, atraves da cha-ma, tornada como objeto de fantasia. Ainda que mui-tas vezes as metaforas nada mais sejarn do que trans-mutacoes do pensamento numa vontade de dizer me-lhor, de dizer de maneira diferente, a imagem, a verda-'deira imagern, quando e vivida primeiro na imagina- 1cao, deixa 0mundo real e passa para 0mundo imagi-nado, imaginario. Atraves da imagem imaginada co-n hec emo s e ssa fantasia absoluta que e a fantasia oe-tica. Correlatamente, como tentamos provar em nossotilt'imo Iivro - mas sera que urn livro acaba algumavez de descrever toda conviccao de seu autor? -, co-nhecernos nosso sonhador produtor de fantasias. Urnl.HERDER. citado PDT Btou, N. 114me '0man / ique e t l e Ii "e , Ma rsei lie, Cahiersdu Sud, tomo I, p, 113.

    10

    , "

    ser sonhador feliz de sonhar, ativo em sua fantasia, con-tern uma verdade do ser, urn destine do s'er humano,

    Entre todas as imagens, as imagens da chama -das mais ingenuas a s rnais apuradas, das sensatas a smais loucas - contern urn simbolo de poesia. Todo 80:-nhador inflamado e urn poeta em potencial. Toda fan-tasia diante da chama e uma fantasia admiradora. To-do sonhador inflamado esta em estado de prirneira fan-tasia. Esta prirneira admiracaoesta enraizada em n05-so passado longinquo. Temos pela chama uma admi-racao natural, ouso mesrno dizer: uma admiracao ina-la o A chama deterrnina a acentuacao do prazer de ver,alga alem do sempre visto, Ela nos forca a olhar.

    A chama nos leva a verem prirneira mao: temosmil lernbrancas, sonhamos tudo atraves da personali-dade de uma memoria muito antigae, no entanto, so-nharnos como todo mundo, lembramo-nos como todomundo se Iernbra - entao, seguindo uma das leis maisconstantes da fantasia diante da chama, 0sonhador viveem urn passado que nao e mais unicamente seu, no pas-sado dos primeiros fogos do mundo,

    II

    Assim, a contemplacao da chama pereniza essa pri-metra fantasia. Ela nos distingue do mundo e ampliao mundo do sonhador, A chama e , em si mesma, umazrande presenca, mas, perto dela, sonha-se Ionge, longedemais: "Perdemo-nosem fantasias." A chamaesta ali,

    II

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    7/57

    ,tI

    pequena e medtocre, lutando p a ra m an ter seu set, e asonhador vai sonhar em outro lugar, perdendo seu pro-prio ser, sonhando grande, grande demais - sonhan-do com 0mundo,A chama e urn mundo para 0 homern 56 .

    Entao, se sonhador inflamado fala com a cha-ma, fala consigo mesmo, ei-lo poeta, Ampliando 0mundo, 0destine do mundo, meditando sabre 0desti-no da chama, 0 sonhador arnplia a linguagem, ja queexprime uma beleza do mundo. Arraves de tal expres-sao pancalizante* 0proprio psiquisrno se amplia, se ele-va, A meditacao da chama deu ao psiquismo do 50-nhador uma alimentacao de verricalidade, um alimen-to v er ti ca l iz a nt e, Uma a l ime nt a ca o aerea, sendo o opos-to de todas as "alimentacces terrestres ", e 0pr incipiomais ativo para dar ur n sentido vital a s determinacoespoeticas, Voltaremos a essas determinacoes num capi-tulo especial para ilustrar 0 conselho de toda chama:queimar alto, sernpre mais alto, para estar certa de darluz ..

    Para atingiresta "altura psiquica" e precisoen-cher todas as impressoes, insuflando-Ihes materia poe-tica, A contribuicao poetica basta, acreditamos, paraque possamos dar uma unidade a s fantasias que ha-viamos reunido sob 0 simbolo da vela. Esta monogra-fia poderia trazer como sub titulo: A poesia das cha-mas. Realmente, de acordo co m nossa vontade de, aqui,apenas seguir uma linha de fantasias, des tacamos estamonografia de urn livre mais geral que esperamos urndia vir a publicar sob 0 titulo: A poetica do fogo. Panca - alavanca, (N, da T .)

    12

    III

    L im ita ndo p or or-a no ss a s i nve st ig acoes , r nan t endo -nos dentro da unidade de urn s o exemplo, esperarnosatingir uma es te t ica concreto, uma estetica que nao se-.ria trabalhada par polemicasde filosofos, que nao se-ria racionalizada p a r ideias gerais faceis, A chama, elasozinha, pode concretizar a ser de todas as suas irna-gens, 0 ser de todos as seus fantasmas,o objeto - uma chama! - a ser investido pelasimagens literarias e tao simples que esperamos poderdeterminar acomunhao das irnaginacoes ..Com as ima-gens literarias da chama, 0surrealismo tern alguma ga-rantia de ter uma raiz de realidadel As imagens maisfantas ticas da chama co nv erg em . T ra nsf orm a m -se, p ormeio de notavel privilegio, ~m imagens verdadelras : ._o paradoxo de nossas investigacoes sobre a ima-ginacao literaria: achar a realidade par meio da pala-vra, desenhar com palavras, tern, aqui, alguma chancede ser dominado -,As imagens fa/ados trad uzern a ex -traordinaria excitacao que nossa imaginacao reeebe darn a is sim p le s das chamas ,

    I1

    IV

    Devemos ainda dar uma explicacao sabre urn ou-tro paradoxa ..De acordo com a vontade que temos deviver as imagens literarias dando-lhes toda atualidade,

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    8/57

    ainda com a ambicao maior de provar que a poesia euma potencia ativa da vida atual, nao existe, para nos,ur n paradoxo imiti l em colocar tantas fantasias sob 0sfrnbolo de uma vela? 0 mundo anda depressa, 0 se-eulo se acelera, 0 tempo nao e mais 0das lamparinase das palmatorias. Somente sonhos decrepitos se ligama s coisas sem USD.

    A resposta a essas objecoes e facil: os sonhose asfantasias nao se modernizam tao rapidamente quantonossas acoes. Nossas fantasias sao verdadei~os hdbitospsiquicos forternente enraizados. A vida ativa tambemnao os atrapalha, Existe interesse, para urn psicologo,em reencontrar todos as caminhos da familiaridademais antiga,

    ~ As fantasias da pequena luz nos levam de volta aoreduto da familiaridade. Parece _que existe em nos can-tos sombrios que toleram apenas uma luz bruxulean-t e o U r n coraelio sensivel gosta de valores f rageis . CO"-munga :com osvalores que lutam, portanto; com a luzfraca que luta contra as trevas, Assim, todas as nossasfantasias da pequena luz conservam certa realidade psi-cologica na vida atual. Elas tern urn senti do e, diria-mos mesmo, tern uma funcao, Com efeito, podem dara uma psicologia do inconsciente toda uma aparelha-gem de imagens para interrogar, calmamente, natural-mente, sem provocar 0. sentimento de enigma, 0 ser 80-nhador. Com a fantasia da pequena Iuz; a sonhadorse sente em casa, seu inconsciente e como se fosse suacasa, 0 sonhadorl - esta duplicata de nosso sec, esteclaro-escuro do ser pensante - tern, na fantasia da pe-guena luz, a seguranca de ser. Quem confiar nas fan-tasias da pequena luz descobrira esta verdade psicolo-, I14

    ",I~ .__......

    \ I " ~ , " gica: 0inconsciente tranquilo, sem pesadelos, em equi-lfbrio com sua fantasia,e exatamente 0. claro-escuro dopsiquismo, ou, melhor ainda, 0 psiquismo do claro-escuro. Imagens da pequena luz nosensinarn a gostardesse claro-escuro da visao intima. 0 sonhador quequer se conhecer como ser sonhante, longe das clari-dades do pensarnento, tal sonhador, desde Que gostede sua fantasia, e tentado a formular a estetica desseclaro-escuro psfquico,

    Urn sonhador de lampada (a oleo) compreenderainstintivamente que as imagens da pequena luz sao lam-patinas intimas ..Suas luzes palidas tornam-se invisiveisquando 0pensamento trabalha, quando. a conscienciaesta bern clara. Mas quando 0pensamento repousa, asimagens vigiam,

    A consciencia do claro-escuro da consciencia ternuma tal presenea - uma presen!;a duradoura - queo ser espera que desperte - urn despertar de sec. JeanWahl sabe disso, E 0 diz num s"6verso:

    6 pequena luz; 6 nascente, brenda alvorada-

    vPropomos, pais, transferir os valores esteticos de

    claro-escuro des pintores para 0domtnio dos valoresesteticos de psiquisrno, Se conseguissernos, tirariamos

    . 2. Jean W >\H !.. Poemes de circonstance: Ed . Con fl u en c es , p, 33 .

    15

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    9/57

    em parte 0que ha de diminuto, de pejorative, na no-~aode inco~sciente. As sornbras do inconsciente daotantas vezes valor ao mundo de luminosidade fraca, on-de a fantasia t er n m il f el ic id a de sl George Sand pres-sentiu essa passagem do mundo da pintura para a mun-do da psicologia, Numa nota de rodape de uma daspaginas do texto de Consuelo, ela escreveu, evocandoa claro-escuro: "Eu me pergunto m uita s v ezes em queconsiste esta beleza e como seria possfvel para mimdescreve-kr, se quisesse fazer passar 0 segredo para aalma de urna outra pessoa, Mas qual! Sem cor, sem for-ma, sem ordern e sern claridade, as objetos exteriorespodern, digarn-me, revestir-se de uma aparencia que falaaos oihos e ao esptrito? Apenas urn pintor podera meresponder: sim, ell cornpreendo, Ele se lernbrara deOfilosofo em meditacao; de Rembrandt: este grande quar-to perdido nas sombras, estas escadas sem fim dobrandosern se saber para onde, estas Iuminosidades difusas doquadro, toda esta cena indefinida e nitida ao rnesrnotempo, esta cor poderosaespalhada sobre urn assuntoque, em resume, e pintado apenas com castanho claree castanho escuro;esta magica de claro-escuro, este jogode luz colocado sabre os objetos mais insignificantes,uma cadeira, urna moringa, urn vasa de cobre, Essesobjetos, que nao merecern ser olhados e muito menospintados, transformam-se em objetos tao interessantes,tao bonitos, a sua rnaneira, que nao se pede tirar osolhos deles - existem, e sao dignos de existir."!3 . N o ' e que gublinhamcs,4. CMS"e/o, Michel LEVY, 1861, tomo Ill , p, 264-5.

    16.

    IGeorge Sand ve0problema, colcca-o: como' 'des-

    crever", nao pintar, esse c1aro-escuro - eis al 0 privi-legio dos grandes artistas. Como expo-to? Queremosmesmo ir mais longe: esse claro-escuro, como inscreve-10 no psiquismo, exatamente na fronteira de urn psi-quismo castanho escuro com urn psiquisrno castanhomais claro?Realmente, a i e sra urn problema que tern me ator-mentado durante os vinte anos que tenho escrito livrossobre a Fantasia. Nao sei nem mesmo exprimi-Io de ma-neira melhor que George Sand em sua curta nota. Emresumo, 0claro-escuro do psiquismo e a fantasia, umafantasia calma, calmante, que e fiel a seu centro, ilu-minada nesse centro e na o fecha da sobre S I mesma , mastransbordando sempre urn pouco, impregnando comsua luz a penumbra. Ve-se claro em si mesmo e no en-tanto sonha-se, Nao se arrisca toda a luz, nab somasa brinquedo, a vitima desta quimera que cai com a noi-te, que nos entrega de p es e rnaos atados a esses espo-liadores do p siq uisrn o, a esses fa cf no ra s que frequen-ta m essa s flo resta s do sana noturno que sao as pesa-delos drarnaticos,o aspecto poetico de uma fantasia nos fazconformarmo-nos com esse psiquismo dourado quemantern a consciencia desperta, As fantasias diante davela se constituirao em quadros, A chama nos mante-fa nessa consciencia da fantasia quenos mantern acor-dados, Dorrne-sediante do fogo. Nao se dorme dianteda chama de uma vela.

    17

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    10/57

    VI

    Em livro recente tentamos estabelecer uma dife-renca radical entre a fantasiae 0 sonho noturno. Nosonho noturno reina a c1aridade fantastica, Tudo emfalsa luz. Muitas vezes ve-se claro demais af. Os pro-prios misterios sao delineados, desenhados em tracesfortes. As cenas sao tao nitidas que 0 sonho noturnofaz Iacilmente Iiteratura - literatura, porern jamais poe-sia, Toda literatura do fantastico acha no sonho noturnoesquemas soore os quais trabalha 0 animus do escri-tor. E no animus que 0 psicanalista estuda as imagensdo sonho. Para ele, a imagem e dupla, significa sem-pre outra coisa alern dela mesma, E uma caricatura ps~-quica, E precise esforcar-se para achar 0ser verdadei-ro sob a caricatura. Esforcar-se, pensar, sempre pen-sar. Para aproveitar as irnagens, para gostar delas porelas mesmas, seria necessa rio, sern duvida , que a lemde saber tudo 0psicanalista tivesse recebido uma edu-cacao poetica, Logo, rnenos sonhos em animus e rnaisfantasias em anima. Menos inteligencia em psicologiaintersubjetiva e rnais sensibilidade em psicoiogia da in-timidade.Do ponte de vista que vamos adotar neste peque-no livre, as fantasias da iruimidade fogem do drama.o fantastico instrumentado pelos conceitos tirados daexperiencia dos pesadelos nao retera nossa atencao. Pelomenos quando encontrarrnos uma imagem de chamasingular dernais para que possamos faze-la nossa, pa-ra que possamos coloca-la no claro-escuro de nossa fan-tasia pe ss oa l , e v it a re rno s os comentarios Iongos, Escre-18

    vendo sobre a vela, queremos ganhar docuras d'alma,E necessaria que se tenha vingancas a executar paraimaginar a inferno. Existe nos seres do pesadelo urncomplexo das chamas do inferno que nao queremos,nem de perto nem de longe, alimentar.

    Em resume, estudar 0 ser de urn sonhador coma ajuda das imagens da pequena luz, com a ajuda dasimagens humanas bern antigas, da, para uma investi-

    , gacao psicologica, uma garantia de hornogeneidade,Existe urn parentesco entre a Iamparina q~ vela e a

    r'a l m a que sonha. 'Ianto para uma quanta 'p~ra a outra" 0 tempo - e lento. Tanto no devaneio guanto na Iuz fra.:cS:encontra-se a-mesma paciencia, Entao 0 tempo se

    ,. aprofunda, as imagens e as lernbrancas se reu nem ..Q_sonhador inflarnado une 0que v e ao que viu, Conhecea fusao da imaginacao com a memoria. Abre-se entaoa todas as aventuras da fantasia, aceita a ajuda dosgrandes sonhadores e entra no mundo dos poetas. Porconseguinte, a fantasia da chama, tao unitaria a prin-cipio, torna-se de abundante multipliddade. (

    Para plSr urn pouco de ordern nesta multiplicida-de, vamos fazer urn rapido comentario sobre os capi-tulos, as vezes multo diferentes entre si, desta simplesmonografia,

    VII

    o primeiro capitulo e ainda urn capitulo de pream-bulo. Precise dizer como resisti a tentacao de fazer, a

    19

    J

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    11/57

    proposito das chamas, um livro de saber, Este livro te-ria sido longo, mas teria side facil. Teriabastado fazeruma historia das teorias da luz. De seculo a seculo problema tern sido retomado, Mas, por maiores que te-nham sidoos espiritos que trabalharam na flsica do fo-go, nao puderam jamais dar a seus trabalhos a objeti-vidade de uma ciencia. A historia da cornbustao per-manece, a te Lavoisier, uma historia de visces pre-cientificas. 0exarne de tais doutrinas depende de urnapsicanalise do conhecimento objetivo, Esta psicanali-se d ev eria a pa ga r a s im agen s para determ in ar um a Of-ganizacao das ideias.'

    o segundo capitulo e uma contribuicao a urn es -tudo da solidao, a uma ontologia do ser solitario, Achama isolada e testemunha de uma solidao, solidaoessa que une,a cham a e 0 sonhador. Gracas a chama,a solidao do sonhador n a o e mais a solidao do vazio.A solidao, gracas a pequena luz, tornou-se concreta,A chama ilustra a solidao do sonhador, ilurnina a frontepensativa, A vela e a astro da pagina branca, Reunire-mos alguns textos, tornados aos poetas, para cornen-tar essa solidao. Esses textos foram acolhidos por nospessoalrnente de rnaneira t a o facil que temos quasecer-teza que serao bern recebidos pclo leitor. Confessamosassim uma conviccao de imagens, Acreditamos que achama de uma vela e, para muitos sonhadores, umaimagem da solidao.

    5 . Cf. La Formotio de i'espri: st;iemifique. C{)n1Ti i>l I I iQn iz une p.sychQnl1lys~ de10 connaissonce objective, .d. Vrin.

    20

    - -

    Se tivemos 0 escrupulo de evitar todo e qualquerdesvio das pesquisas pseudocientificas, fomos frequen-temente seduzidos por pensarnentos fragmentados, parpensamentos que nao provam mas que, em rapid as afir-macoes, dao a fantasia estimulos sem igual, Entao, naoe a ciencia, mas a filosofia que sonha, Temos lido erelido a obra de urn Novalis, Temos recebido dela gran-des Ii~oes para meditar sobre a verticalidade da cha-ma. Quando estudarnos, em urn de 110SS08 primeiroslivros sobre a imaginacaova tecnica de sonhar aeor-dado, haviamos observado a solicitacao a urn sonhovoador que receblamos de urn universe em aurora (au-roral), de urn universe que traz a luz em seus vertices.G._om~entav~mosentao a tecnica psicanalitica de sonharacordado, institulda par Robert Desoille, Tratava-se dealiviar, pela sugestao de imagens felizes, Q ser sobre-carregado por suas faltas, entorpecido 110 seu fastio deviver, Corn a criacao de imagens, 0 guia transforma-se, para 0paciente, em urn guia de transformacao. 0guia propunha uma ascensao imaginaria, que precisa-va ser ilustradapor imagens bern ordenadas, tengo-@-da uma delas uma virtude de ascensao~.9 guia alimen-tava 0onirismo do sonhador, oferecendo no mementoprecise imagens, para Iancar e relancar 0 psiquismo as-cendente. Esse psiquismo ascendente s6 e benefice sesobe alto, sernpre mais alto. As irnagens desta psicana-lise pela altura devern ser sistematicamente bern aliaspara que se esteia bern seguro de que 0 paciente, emplena vida metaforica, abandonara as miseries do ser,6. ['Air et le~songes, ed. Coni.

    21

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    12/57

    A chama solitaria, poremvela sozinha, pode ser,para 0sonhador que medita, urn guia ascensional , Elae urn modelo de verticalidade,

    Numerosos textos poeticos nos ajudarao a desta-car 0valor desta verticalidade na luz, pela lu z que urnNovalis vivia na meditacao da chama reta.

    Apos oexame dos devaneios de fi16sofo voltare-mos, no quarto capitulo, aos problemas que nos saofamiliares: os problemas cia imaginacao Iiteraria. Urnlivro volurnoso nao seria suficiente para estudar a cha-ma, seguindo, em literatura, todas as rnetaforas que su-gere, Pode-se perguntar se a irnagem da chama nao po-deria associar-se a toda imagem um pouco brilhante,a toda imagern que quer brilhar, Escrever-se-ia entaourn livro de estetica literaria geral, organizando todasas imagens que aceitarn ser aumentadas, colocandone-las urna chama irnaginaria. Esta obra, que mostrariaque a imaginacao e uma chama, a chama do psiquis-rn a , se ri a bem agradavel de se escrever, Mas nela se le-.varia toda a vida.

    Falando de arvores, de flores, podemos dizer co-mo as poetas Ihes~aQvida, vida total, poetica, atravesda -imagem das chamas,Para a chama, existe, da vela ao lampiao, comoque uma conquista de sabedoria. A chama do lampiao,gracas a engenhosidade do homern, e agora qisciRli-nada. Esta inteiramente a seu dispor.isimples e grandedaadora de fuz. -

    Nos quisernos terminar nossa obra rneditando so-bre esta chama humanizada, Seria preciso escrever to-do urn livre para passar realmente da cosrnologia da22

    chama a cosrnologia da luz, Em vez de tratarrnos demateria tao abrangente quisemos, nesta monografia,ficar na homogeneidade das fantasias da pequena luz,sonhar ainda no interior da familiaridade onde uniam-se a larnpiao e ocastical, par indispensavel numa resi-dencia dos velhos tempos, _!!llmaresidencia para a qualvoltarernos sempre, para sonbar e _!]cordar. _- Encontrei grande all xili a na fantasia da obra deurn mestre que conhece os devaneios da memoria. Emmuitos romances de Henri Bosco, 0lampiao e,em to-da a a cep ca o do terrno, um pe r sonagem. 0 l amp i aotern urn papel psicologico em relacao a psicologia dgcasa e a psicologia dos seres da familia. Quando umagrande ausencia deixa urn vazio em uma residencia, urnl amp i ao de Bosco, v indo de nao sei qual pas s ado , man-tern u m a p resen ca , esp era , com uma p aciencia de la m-piao, 0exilado. 0 larnpiao de Bosco mantem vivas to-das as lernbrancas da vida familiar, todas as lembran-cas de uma infancia, as lerribrancas de todas as infan-cias. 0 eseritor escreve para ele e para nos . 0 larnpiaoe 0 espirito que vela sobre seu quarto, sobre todos osquartos. Elee 0centro de uma residencia, de todas asresidencias, Nao se coneebe uma casa sem larnpiao, as-sim como nao se concebe urn larnpiao sern casa ..

    A mediracao sobre 0 ser familiar do Iarnpiao nospermitira, portanto, reunir nossas fantasias sabre a poe-tica dos espacos da intimidade. Reencontraremos to-dos os tem as que hav iarnos desenvolvido em nosso li-vro: A poetica do e spa co . Com a lampiao entra m os n amorada da fantasia da noite, nas residencias de outro-ra, as residencias abandonadas mas que sao, em nos-50S d ev a ne io s, f ie lm e ru e h a bit ad a s.

    23

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    13/57

    Onde reina urn Iampiao, reina a lembranca,Finalmente, para colocar uma marca urn poucopessoal neste pequeno livre, que comenta as fantasiasdos outros, achei que podia acrescentar, no epilogo, al-

    gumas Iinhas nas quais evoco as solidoes do trabaJbo,as vigflias do tempo onde, Ionge de me reJaxar em fan-tasias faceis, trabalhava com tenacidade, acreditandoque com 0trabalho do pensarnento desenvolve-se 0es-pirito,

    I',

    24

    CAPiTULO I

    o passado das velas"Chama tumulto alado,G s o p r o, v errn elh o re flex o d o c eu- quem dec ifrasse seu misteriosaberla 0 que existe ncla de vid~[e de morte. .. .

    MARTiN KAlJBISH. Anthologie de fapo li s i e a ll em a nde; t .11.

    Antigamente, ern urn passado esquecido pelos pro-prios sonhos, a chama de uma vela fazia os sabios pen-sarem; provo cava mil devaneios no filosofo solitario.

    25 II

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    14/57

    Sobre a mesa do Iilosofo, ao lado dos objetos prisio-neiros em suas forrnas, ao lado dos livros que instruiamIentamente, a chama da vela chamava pensarnentos semrnedida, suscitava irnagens sem limite. A chama era, en-tao, para urn scnhador de mundos, urn fenorneno domundo, Estudava-se 0sistema do mundo nos grandeslivros, e eis que uma simples chama - 6 escarnio dosaber! - vern eolocar diretamente seu proprio enigma.o mundo nao esta vivo, numa chama? A chama naotern uma vida? Nao e ela 0 sfrnbolo visivel do interiorde urn ser, 0 sirnbolo de urn poder secreta? Estacha-rna nao tern todas as contradicoes internas que dao di-namismo a uma metaflsica elementar? Par que procu-rar dialeticas de ideias quando se tern, no coracao deurn fenomeno simples, dialeticas de fates, dialeticas deseres? A chama e urn ser sem massa e, no entanto, eurn ser forte.

    Qual campo de metaforas precisarfamos examinarse quisessemos, num desdobramento de imagens queunissem a vida e a chama, escrever urna "psicologia"das charnas ao mesmo tempo que uma "fisica" dos fo-gas da vida! Metaforas? Nesse tempo de longfnquo sa-ber, onde a chama fazia os sabios pensarern, as meta-foraseram 0 pensamento,

    II

    Mas se 0 saber dos velhos livros morreu, 0 inte-resse da fantasia continua. Tentaremos, neste pequeno26

    livro, colocar todos os nossos documentos, que! ve-nham de fil680f08 au de poetas, emprimeirajantasia.Tudo e nosso, tudo e para nos, quando reencontramosem nossos devaneios ou na comunicacao dos devaneiosdos outros as raizes da sim pliddade. Diante de uma cha-ma nos comunicamos moralmente com 0mundo, Emuma simples vigilia, a chama da vela e, desde entao,urn rnodelo de vida tranquila e delicada. Sem duvida,o menor sopro a atrapalha, assim como urn pensamentoestranho na meditacao de urn fil6sofo. Mas quando vernrealmente 0reinado da grande solidao, quando soa real-mente a hora da tranqiiilidade, entao a mesma pazes-ta no coracao do sonhador e no da chama, entao a cha-ma mantem sua forma e corre, direta, como um pen-sarnento firme, a seu destino de verticalidade,

    Assim, nos tempos em que se sonhava pensando,em que se pensava sonhando, a chama da vela podiaser urn sensivel man5metro da tranquilidade da alma,urna medida da calma fina, de uma calma que desceate as detalhes da vida - de uma calma que da limagraca de continuidade it duracao que segue 0curso deuma fantasia pacifica.

    Quer ficar calma? Respire suavemente diante dachama leve que faz sossegadamente seu trabalho de luz.

    III

    Logo, pode-se fazer de urn saber muito antigo fan-tasias vivas. No entanto nao procuraremos nossos do-

    27

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    15/57

    cumentos nos antigos pergaminhos. Gostariamos, mui-to ao contratio, de devolver a todas as imagens que con-servarernos sua densidade onfrica, uma bruma de im-precisao para que possamos faze-las entrar em nossapropria fantasia. Pode-se comunicar im a g en s si ng ula -res pela fantasia pura. A inteligencia e inepta quandoe precise analisar fantasias de i gn ora n te s . .Apenas emalgumas paginas deste pequeno ensaio evocaremos tex-tos onde a~~g~!1.-La@ilja!.~s sao ampliadas ao pon-to de visarem dizer as segredo s do m un do . Com qu efacilidade 0 sonhador do mundo passa de sua peque-nina lu z a s g ra nd es lu min aria s d o ceu l Quando somasapanhados, em nossas Ieituras, por tais ampliacoes, po-demos nos entusiasrnar , Mas na o podemos ma is s is te -m a ti za r n oss os e nt us ia srn os , E m todas a s n ossa s in ves-t ig a co es s 6 c on se rv a re m os jatos de imagem.

    Quando a irnagern particular assume urn valor C05-mico, produz 0efeito de urn pensamento vertiginoso,Uma tal imagem-pensarnento, urn tal pensamento-imagem nao tern necessidade de contexte. A chama vis-ta par urn vidente e uma realidade fantasmagorica quepede uma declaracao da palavra, Daremos, a seguir,v aries ex ern p lo s d esses pensamentos-imagens que seenunciam nurna frase brilhante. As vezes tais imagens-pensarnentos-frases colorem subitamente uma prosatranquila, Joubert, razoavel Joubert, escreveu: "Achama e urn fogo iimido,' I Daremos a seguir a lgumasvariacoes desse lema: uniao da cha!!!a com_o riacho.L JouaERT Pensees. 8~ e d . 1862. p. 163. 0, primeiros fngarei ros erarn chama-dos, I ts vezes , de " font es de fogo" . Cf_ Edouard FOUCAUD_ us A " ' - " ' 1 I 1 S iilustres,p. 263. Pari s, 1841.

    28

    -Neste capitulo de prearnbulos, indicaremos essas var~a-coes apenas para ilustrar, de irnediato, esse dogmatis-rno de uma fantasia que usa toda sua gloria para pro-vocar urn saber adormecido. Apenas uma contradicaolhe basta para atormentar a natureza e Iiberar 0sonha-dor da banalidade dos julgamentos sobre os fenorne-nos farniliares,Enta o , tam bem a leitor dos Pensamentos de Jou-bert se cornpraz em imaginar. V e essa chama umida,esse liquido ardente, escorrer para 0 alto, para OCt!U,como u rn ria ch o vertical.

    Deveremos notar de passagem uma nuance quepertence propriarnente a fllosofia da imaginacao lite-raria. Urna imagem-pensamento-frase como aquela deJoubert e uma proeza de expressao, As palavras vii,!alern do pensamento. E a fantasia que fala e, por suai e_ _z ._ ulr ap a ss ad a p el a fa n ta si a q ue e sc re ve . Bssa fan-tasia de urn "fogo umido" ninguem ousaria dize-Ia,mas ;s~reveram-na. A chama foi uma tentacao do es-'critor, Joubert nao resistiu a ela. E precise que as pes-s ea s ra c io na is perdoem aqueles que escutam os demo-nics do tinteiro.

    Se a formula de Joubert Fosse urn pensamento, naoseria mais do que urn paradoxa simples demais; se fos-se uma imagem, seria efemera e fugaz. Mas, tendo lu -ga l ' no liv ro d e u rn grande m o ra lista , a formula nos abrea campo dasf an tas ia s s e ria s. 0 indefinido tom de fan-ta sia e de verdade nos da 0 direito, simples leitores quesomos, de sonhar seriamente, como se, em tais fanta-sias, nosso espirito trabalhasse com luddez. Na fanta-sia seria, a qual Jouber t nos con duz, urn dos fenome-nos do mundo e expresso, logo, dorninado. E expresso

    2 9

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    16/57

    em alga ~ e m da sua realidade. Troca sua realidade poruma realidade humana.~efazendo para nos mesmos imagens do cubiculo

    do filosofo meditando, vernos sobre a mesma mesa avela e a ampulheta, dais seres que medem 0tempo hu -mano, mas em estilos bern diferentes! A chama e umaamp~lheta que escorre para 0alto. Mais leve do que.a arera que desmorona, a chama constroi sua forma,como se 0proprio tempo tjvesse sempre alguma coisaa fazer,. Chama e ampulheta, na meditacao pacifica, ex-

    pnrnem a c~munhao do tempo leve com 0 tempo pe-sado. Em minha fantasia, diz-se a cornunhao do tem-po de anima com 0tempo de animus. Gostaria de so-nhar com 0tempo, na duracao que escorre e na dura-9aO que v oa , seeu pudesse reunir em meu cubiculo ima-ginario a vela e a ampulheta., ~as para 0 sabio que imagine, a licao da chamae maier que ada areia escorrendo. A chama leva 0 lei-~or vigilante a levantar os olhos de seu folheto, a d e T :~ar_otempo das tarefas, daleitura, do pensamento, N~chama 0 proprio tempo se poe a v e l a r . .

    ~m, 0 leiter _!igilante diante da chama n.30 I e mais ,"f'en.sana vida. Pensa na morte. A charnae precaria evacilante, Essa I U L , urn sopro a aniquila; uma faisca areacende. A chama e nascimento e morte faceis.Yidae morte aqui podem ser justapostos, Vida e morte sao. - - ~em suas nnagens, contrarios bern distintos. Os jogosde pensarnento dos fil6sofos levando suas dialeticas doser e do nada num tom de simples Iogica tornam-se -diante da luz que nasce e qu e rnorre, dratnaticamenteconcretes.30

    Mas quando se sonha mais profundarnente, be-la equiHbrio do pensamentoentre a vida e a morte eperdido. No coracao de urn sonhador de vela, que res-sonarrcia tem essa palavra: apagar-sel As palavras, semduvida, d e- se rt am d e suas origem e retomam uma vida'estranha, uma vida emprestada ao aeaso de simplescomparacoes. Qual 0maior sujeito do verbo apagar-se ? A vida ou a vela? Os verbos metaforizantes podemfazer as sujeitos mills exoticos agirem. 0 verba apagar-se pede fazer morrer qualquer coisa, tanto urn baru-lho quanta urn COra9aO, tanto urn amor quanto umacolera. Mas quem quer 0 sentido verdadeiro, 0 sentidop rimei ro , d ev e le rn bra r-se d a morte de uma vela. O s m i-tologos no s ensinaram a ler os dramas da luz n os esp e-taculos do ceu, Mas no cubiculo de urn sonhador asobjetos familiares tornam--:SeIi1itos do universe, A velaquese apMa Uim sol que morre. A ve~re m e s - m - omais suavemente qu e 0astro celeste. 0pavio-se cUrVaeescurece, A cham a tom ou, na esclJddaq_g_ue a encer:ra, seu opio. E a chama mane bern: ela morre ador-mecen~----- --- - .

    Tado sonhador de vela, todo sonhador de peque-nas cham as sabe disso, Tudo e drarnatico na vida dascoisas e do universo, Sonha-se duas vezes quando sesonha em companhia de uma vela. A rneditacao dian-te de uma chama torna-se, segundo a expressao de Pa-racelso, uma exaltacao de dois mundos, uma exaltatioutriusque mundi

    Daremos, a seguir, apenas alguns testemunhos, em-prestados aos poetas, desta dupla exaltacao - simples

    . 2 . Ci tadn pOI C. G_ JUNe. Paracelstca. p, 123.

    31

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    17/57

    fil6sofo da expressao literaria que somos. Como dizfa-m?s no comeco dessas paginas, os tempos de ajudartais sonhos, sonhos desmedidos, pelos pensarnentospensamentos trabalhados, pensamento dos outros, vol-taram,

    Alias, sera que ja se fez poesia com 0pensamento?

    IV

    Para justificar nosso projeto de nos limitarmos adocumentos que podem ainda nos Ievar a s fantasias se-rias proximas dos devaneios do.poeta, vamos comen-tar urn exe~pl0, entre muitos outros, de urn conglo-merado de rmagens e de ideias tornado emprestado aurn velho livro que nao pode, tanto por suas ideias co-~o par suas image?s, atrair nossa participacao, As pa-gm~s qu: vamos citar, separadas de sua. situacao his-t~nca, nao P?dem ser designadas como urna explora-cao da fantasia. Essas paginas nao correspondem tam-bema organizacao de urn saber. Nao se deve ver nelasnada ~ I e m de uma mistura de pensamentos pretensio-50S e unagens simplistas, Nosso documento sera, por-tanto, exatamente 0contrario da exaltacao das imagensque _?ostamos de viver, Sera uma atrocidade da imagi-nacao.

    . Depois d~ ter comentado esse documento pesado,voltaremos as imagens mais delicadas, reunidas e m sis-tema menos grosseiro, Reencontraremos entao impul-

    32

    sos que poderernos seguir pessoalmente, vivendo a ale-gria de imaginar.

    V

    Blaise de Vigenere, em seu Tratado do fogo e dosal, escreve, cornentando 0Zohar:"Existem dois fogos, urn mais forte que devora 0outre, Quem quiser conhece-lo, deve contemplar a cha-ma que parte e sobe de urn fogo aceso ou de urn lam-piao au archote, pois ela 56 sobe se estiver incorpora-da a algurna substancia combustivel e em uniao como ar . ..Mas nessa chama que sobe existem duas cham as:uma branca, que brilha e clareia, tendo uma raiz azulna ponta: outra vermelha, que e ligada a madeira e aopavio que queima ...A branca sobe diretamente para 0alto e, ernbaixo, fica firme e vermelha, sem se despren-der da materia, provendo as meios para a outra ardere brilhar.":Aqui comeca a dialetica do passive e do ativo, domovido e do movel, do queimado e do queimante -a dialetica dos participios passados e des genindios,que da satisfacao aos filosofos de todos as tempos.

    Mas para urn "pensador" da chama, como foi Vi-genere, os fatos devem abrir urn horizonte de valores.o valor a conquistar aqui e it luz. A luz e entao umasupervalorizacao do fogo. E uma supervalorizacao [a:1 . Blais. de VTGI'NhE. TrOll'; du feu et d" S f ' 1 . Paris , 1628, p. 108.

    33

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    18/57

    que ela da sentido e valor a fatos que para nos, agora,sao insignificantes, A iluminacao e realmente uma con-quista. Vigenere nos faz sentir a dificuldade que a cha-m a grosseira tern p ara torna r-se chama bra nca , p araconquistar este valor dominante que e a brancura. Es-sa chama branca e "sem pre a m esm a, sem mudar nemvariar como a outra, que a s vezes escurece, depois torna-se vermelha, amarela, anil, verde-azul ada e azulada."

    Entao a chama arnarelada sera. a antivalor da cha-ma branca . A chama da vela e o campo fechado parauma Iuta de valor e de antivalor . E precise qu e a chaorn a branca "ex terrn in e e destrua" as grosseiras que aalimentam. Logo, para urn autor da pre-ciencia, a cha-ma tern urn papel positive na econornia do mundo, Elae u rn in srru men to para melhorar 0 cosmos.

    A licao moral esta pronta enrao: a consciencia mo-'ra l deve torna r-se a chama branca "queimando a s ini-quidades que ela aloja".

    E quem brilha bern, brilha aIto. Consciencia echa-rna tern 0 mesmo destine de verticalidade, A s impleschama da veta designa bern esse destine, ela que "vai,deliberadamenie, para 0alto e volta a o lugar propriode sua morada, depois de ter curnprido sua rnissao ern-baixo sem mudar sen brilho para nenhurna outra coralem da branca,"o texto de Vigenere e longo. Nos 0 abreviamosmuit o . .Ele pode cansar. Deve cansar se for considers-do como urn texto de ideias que organiza conhecimen-tos, Pelo m enos, com o tex12 de fantasias, ele me pare-ce urn claro testemunho de urna fantasia que supera to-do s os lirnites, que engloba todas a s experiencias, ~x-periencias essas o r iu n d as-do hornem OU do mundo, Os34

    fenomenos do mundo, uma vez que tenharn urn poueode consistenciae unidade, tornam-se verdades huma-nas. A moralidade que termina 0 texto de Vigenere deverefluir sobre toda a narrativa ..Essa moralidade estavaIatente no i nt er es se q ue 0sonhador tinha por sua vela.Ele a observava mora/mente. Ela era, para ele, uma en-trada moral no mundo, uma entrada na moraIidade domundo. Teria eJe ousado escrever sobre isso se nao vis-se rnais que sebo queimando? 0 sonhador tinha sobresua m esa 0 que podernos chama r de urn fenomeno-exemplo: Uma materia, vulgar entre outras, que pro-duz a luz. Ela se purificano proprio ato de dar a luz.Que incrivef"exemplo de purificacao atival _E sao as prQ-prias impurezas que, aniquilando-se, dao a. l uz pura,o mala ass im, 0 alimento do bern. Na chama 0 file-sofo reencontra umjenomeno-exemplo, urn fenomenodo cosmos, exemplo de humanizacao , Seguindoesse fe -n om en o-ex em p lo , "q ueim a rern os no ssa s iniqiiidades".

    A chama puriflcada.jmrificante. clareia 0sonha-dor duas vezes: pelos olhos e peJa alma. Aqui a s m eta -foras soioreais ~e a realidade, jii que e contemplada, euma metafora da dignidade humana. Ela e contempladarnetaforizando a realidade. Deforrnar-se-ia 0valor dodocurnento que Vigenere nos deixou se fosse analisa-do no horizonte de urn simbolisrno, A imagern demons-tra 0simbolismo aflrma, 0 fenorneno ingenuamentecontemplado nao e , como 0 sfmbolo, carregado de his-t6ria. 0 sfrnbolo e uma conjuncao de tradicoes de mul-tiplas origem. Todas essas origens nao sao reanimadasna contemplacao, 0 presente e mais forte do que 0pas-sado da cultura. 0 fato de V ig en ere h av er estudado 0Zohar nao impede que tenha retomado em toda sua

    3 5

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    19/57

    primitividade de fantasia 0que tinha a pretensao deser urn saber no velho Iivro. Se a vela ilumina 0 velholivro que fala da chama, a ambigiiidade dos pensamen-tos e das fantasias e extrema.

    Nada de simbolos, nada tambern de dupla lingua-gem para traduzir 0material em espiritual, ou vice-ver-sa. Com Vigenere estamos dentro da unidade forte deuma fantasia que une 0hornem e se u mundo, na uni-dade forte de um a fanta sia que na o p ode, se dividlr n u-rna dialetica do objetivo e do subjetivo, 0 mundo,emtal fantasia, leva, em todos os seus objetos, urn desti-no do homem. Ora" 0mundo, na intimidade de seu mis-terio, quer 0 destine de purificacao, 0 mundo e 0 ger-me de urn mundo melhor, como 0homem eo gerrned e urn hom em m elhor, como a chama a ma rela e p esa -da e 0germe da chama branca e leve. Reencontrandoseu lugar natural, par meio de sua brancura, de seu dl-namismo da conquista da brancura, a chama nao obe-dece somente Ii filosofia aristotelica, Urn valor maiorqu e todos aqueles que presidern os fenomenos ffsicose conquistado, A volta aos lugares naturaise, certamen-te , uma colocacao de ordem, uma restituicao da ordemno cosmos. Mas, no ca so da luz branca, a ordem mo-ral vern primeiro que a ordem ffsica. 0 lugar naturalp ara onde a cha ma .se dirige 4 urn cen trod ;mora l idade .- E e par isso que a chama e as imagens deja desig-nam os valores do homem como valores do mundo. Elasunem a moralidade do "pequeno rnundo" a rnoraIi-dade maiestosa do universe.

    Os misticos dafinalidade do vulciio nao dizem ou-tra co isa no decorrer d os s ec ulo s, Afirmam que, peJaa ca o b en fa ze ja de seus vulcoes, a Terra" purga todas36

    suas imundicies". Michelet repetia-o ainda no ultimos ec ulo , Q uem pensa ta o grande pode muito bern 50-nhar pequeno e crer que sua p equena luz serve a purl-ficacao do mundo.

    VI

    E claro que, se dirigissemos nossas investigacoespara os problemas da liturgia, se nos apoiassemos so-bre uma especie de simbolisrno maier, sobre urn sim-bolismo primitivamente constiruido em seus valores mo-rais e religiosos, nao tertamos nenhuma dificuldade emachar para a chama e para as labaredas - labareda,-grande chama que brilha gloriosamente - simbolismosrna is d r amaricos que aquele nascido, ingenuamente, na sfantasias de urn sonhador de vela. Mas achamos queexiste interesse em seguir uma fantasia q ue a co lh e asmais Ionginquas comparacoes diante do fenorneno maisfamiliar. Uma comparacao e, a s vezes, urn sirnbolo quecomeca, urn simbolo que nao tern a in da su a resp on sa -bilidade tota l. 0 desequilfbrio entre 0 p erce bid o e a irn a-gem e , de imediato,extremo ..A chama nao e mais urnobjeto de percepcdo. Transforrnou-se em urn objetofi-losofico. Entao tudo e possivel, 0 fil6sofo pede muitobern imaginal' diante da vela que elee a testemunha deurn mundo em ignicao, A chama e , para ele, urn mun-do dirigido para a transformacao, 0 sonhador v e nelaseu proprio se r e seu proprio vir a ser, Na chama 0es-paco mexe, 0tempo se agita. 'Indo trerne quando a luz

    37

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    20/57

    treme..A mutacao do fogo nao e a mais dramatica ea mais viva das mutacoes? 0mundo anda depressa sefor irnaginado em fogo. Assim 0fil6sofo pode sonbartudo - violencia e paz - quando sonha com 0mun-do diante da vela.

    3 8

    CAPfTUW II

    A solidiio do sonhador de vela

    "Minna solidiio j;i esta prontaPara quei rnar quem a queimara,"LOUlS EMIR. Le nom dufeu.

    I

    Apes urn curto capitulo de preambulos, em queesbocamos as tenias de pesquisas que urn historiadorde ideias e de experiencias deveria perseguir, voltarnosa nosso simples offcio de descobridor de imagens, ima-gens suficientemente atraentes para fixar a fantasia. Achama da vela chama fantasias da memoria. Ela nos39

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    21/57

    devolve, em nossas longfnquas lembrancas, situacoesde vigflias solitarias,

    Mas a chama solitaria agrava a solidao do sonha-dor ou cons ala sua fantasia? Lichtenberg disse que 0homem tern tanta necessidade de uma companrua guesonhando na solidao sente-se menos s6 diante da vela~ Este pensamento impressionou tanto Albert Se-guin que ele deu, para 0capitulo que consagrou a Georg'Lichtenberg, 0 titulo de: "A vela acesa.":

    Mas todo "objeto" que se torn a "objeto da fan-tasia" assume urn carater singular. Que grande traba-Iho qualquer urn gostaria de fazer se fosse passive! reu-nir urn museu dos "objetos oniricos", dos objetos so-nhados par uma fantasia familiar dos objetos familia-res. Cada coisa dentro de casa teria assim seu "duple",na o urn fantasma de pesadelo, m as uma especie de es-pectro que frequents a memoria, que da nova vida a sIembrancas ,

    Sim, a cada grande objetocorresponde uma per-sonalidade onirica. A chama solitaria tern uma perso-nalidade onirica.rdiferente da do fogo na lareira. 0 fo-go na lareira pode distrair 0 aticador; 0 homem diantede urn fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, co-loca no tempo devido uma acha suplernentar, 0 ho-mem que sabe se aquecer mantem uma atitude de Pro-rneteu. Modifica as pequenos atos de Prometeu, daiseu orgulho de aticador perfeito,Mas a vela queima s6. Nao precisa de auxflio, Naotemos mais, sabre nossas mesas, espevitadeiras= e por-l. Alber! BEGU IN, . L: 4 me romantique e t I e r e ve , tome l.p, 28. 7sourae spwiladeira - serv i a par. aparar a vela. {N .. d a T.)

    40

    ta-espevitadeiras, Para mim, 0tempo das velas e 0tem-po das "velas de cera com ranhuras", Ao longo dessescanais lacrimais corriarn lagrimas, Iagrirnas ocultas. Be-Ioexemplo para ser imitado par urn fil6sofo lamurien-to! Stendhal ja sabia reconhecer as boas velas de cera.Em suas Memorias de um {uris/a, conta seu cuidadoem ir a melhor mercearia do lugar para munir-se deboas velas, com as quais substituia os sujos cotocos doalbergue,E, portanto, na lembranca da boa vela de cera quedevernos reencontrar nossos devaneios de solitaries. Achama e so, naturalmente 56, ela quer ficar 56. No fimdo seculo XVIII, urn ffsico da chama tentouem vaocolar as duas charnas de duas velas: colocava as velaspavio contra pavio, Mas as duas chamas solitarias, nasua ernbriaguez de crescer e subir, esqueciam de unir-se, e cada urna conservava sua energia de verticalida-de, preservando em seu vertice a delicadeza de suaponta,

    Nessa "experiencia" do flsico, que desastre de sfm-bolos para dais coracoes apaixonados que se empenhamem vao em se ajudarem urn ao outro a queimart

    Pelo menos, que a chama seja para 0sonhador 0~imbolo de urn ser absorvido por sua Itansformaciio!A chama e urn ser-ern-mutacao, uma mutacao-em-ser,Sentir-se chama inteira e so, dentro do proprio dramade urn serem mntacao, que ao darear se destroi - es-ses sao as pensamentos que brotam sob as imagens deurn grande poeta. Jean de Boschere escreve:

    41

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    22/57

    Mens pensamentos, no fogo, perderamsuas tunicas.com as quais as reconhecia;consumiram-se no incendiodo qual sou origem e alimento.

    E, no en/onto, ndo sou mais.Sou 0 interior, 0 eixo das chamas.. 4 ~ , 4 ~ " 444~ i ~ ~14 E no entanto ndo sou mais

    Ser 0 eixo de uma chamal Grande e forte imagemde urn dinamismo unitariol As chamas de Jean de Bos-chere, as chamas de Satii 0Obscuro nao trerniarn. Pode-se toma-las como a divisa de uma grande obra.

    II

    Urn heroismo vital torna, com Jean de Boschere,seu exernplo numa chama energica que "rasga suas tu-nicas". Mas existem charnas de solidao rnais oacifica.Falam rnais simplesmentea consciencia soHuh-ia. Umpoeta, em cinco palavras, conta-nos 0 axioma da COIl-solacao das duas solidoes:

    Chama 56, eu estou sozinhoi2. Jean de BOSCH~RE. Derniers poemes de I'Obscut; p, 148.3. Tristan TlAR". O u boivenr tes Ioups, p, 15 .42

    Tristeza au resignacao? Simpatia ou desespero? Quale 0- tom desse apeJo a uma comunicacso impossivel?Queimar s o , sonhar s o - grande sfmbolo, duplo

    simbolo incompreendido. 0 primeiro para a mulherque, toda ardente, deve ficar s o , sem nada dizer- 0segundo para 0homem taciturno que tern apenas umasolidao para oferecer,

    E, todavia, a solidao, para 0ser que poderia arnar,que poderia ser amado, que adorno! Os romancistasnos d isse ra rn b elez as se ntim en ta is d esse s a m ores esc on -didos, dessas chamas nao declaradas. Que romance sefaria se fosse possivel continuar 0dialogo comecadopor Tzara:

    Chama s6, eu estou sozinhomas este dialogo nao continua pelo silencio, pelo si-lencio de dois seres solitaries?

    Mas, guando se sooha, e precjsofaJar Na fanta-sia de u ma n oite . sonhandodiante da ve la , 0sonhadorGevora 0passado, recupera-se com 0[also assado. 0son a qr sonha: com aguilo gu e poderia ter sido. So-nha, em revoIta contra si mesmo, com _ o que deveriaser, com 0 que deveria ter feito,

    Nas alternancias da fantasia, essa revolta contrasi acalma-se, 0 sonhador rendeu-se a melancolia quernistura a s Iem bra nca s ef etiv as e as da fantasia. E nes-sa mistura, repetimos, que nos tornamos sensfveis a sfantasias dos outros, 0 sonhador de vela se comunicacom os grandes sonhadores davida anterior, com agrande reserva da vida solitaria.

    43

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    23/57

    III

    Se meu Iivro pudesse ser 0que eu gostaria que fos-se, se eu pudesse reunir, lendo os poetas, bastante ex-ploracoes da fantasia para forcar a barreira que nos paradiante do Reina do Poeta, gostaria de achar, no fimde todos os paragrafos, na extremidade de uma iongasequencia de irnagens, a imagem realmente terminal,aquela que se designa como imagem exagerada para ajulgamento dos pensamentos razoaveis . Minha fanta-sia, ajudada pela imaginacao dos outros, iria bern alemde rneus proprios devaneios.

    Diante da vela, para dizer algo alem das lembran-Cas da solidao, alga alern tambem das lembrancas damise ria, evocarei, neste curto paragrafo, urn documentoliterario em que Theodore de Banville fala de uma vi-gflia de Cam6es. Quando urn poeta fala simpaticamentede outro poeta, a que diz e duas vezes verdadeiro.

    Banville conta que a vela de Camoes, estando apa-gada, 0poeta continuou a escrever seu poema it Iuz dosolhos de seu gato.-A luz dos olhos de seu gator Branda e delicada luz,que se deve ver como algo alern de toda e qualquer luztrivial. A vela nao e mais, mas ela foi. Ela havia come-cado a vigilia, enquanro 0poeta come cava seu poema.Ela havia levado vida em comum, vida inspirada, vidainspirante com 0poeta inspirado. A Iuz da vela, no fo-go da inspiracao, verso ap6s verso, 0poema des envol-via sua propria vida, sua vida ardente, Cada objeto 50-4. Theodore d. BANVlI.LE. COnies bourgeois, p. 194.

    44

    bre a mesa tinha sua lurninosidade como aureola. E agato la estava, sentado sobre a mesa do poeta, com acauda rnuito branca contra a escrivaninha. Olhava seudono e a mao dele correndo sabre 0papel. Sim, a velae 0 gato olhavam 0 poeta com a olhar cheio de fogo.Tudo era olhar nesse pequeno universo, que e uma me-sa iluminada dentro da solidao de urn trabalhador, En-tao, como se pode dizer que tudo nao guardaria seuimpulso de olhar, seu impulso de luz?0 declinio deurn e compensado par urn acrescimo da cooperacao dosoutros.

    E depois, as seres fracas tern urn alga alem maissenslvel, menos brutal que as seres fortes. A soUdaoda nao-vela continua sem ch car a solidiio da vela. Ca-a objeto 0 mundo, amado por seu valor, tern direitoa seu proprio nada. Cada ser verte do ser urn poucode ser, a sombra do seu ser, em seu proprio nao-ser.

    Entao, na sutileza dos acordos que urn fil6sofo deultradevaneios percebe entre os seres e as nao-seres, 0ser do olho do gato pode ajudar 0 nao-ser da vela. Oespetaculo de urn Carn6es escrevendo no meio da noi-te era muito grandel 'Ial espetaculo tern sua propria du-racao. 0 proprio poema quer esperar seu termino, 0po eta quer alcancar sua meta. No momenta em quea vela desfalece, como nao notar que a olho do gatoe urn porta-luz? 0 gato de Camoes certamente nao sesobressaltou quando a vela morreu.' 0 gato, este ani-mal vigilante, este ser atento que observa dormindo,s . Note-se que 0 gato n.~o ~, de jelto algum, urn ser umido, Acredita-se muitofaci lmcnte que tudo que e f raco e f ragil , Ass im Le Sieur de la Chamore cr. quequando 0 vagalume tern medo, ele apaga sua IUL. Cr. Le Sieur de LA CHAMB"",Nouve ll es p en s ee s SIIr tes c a us e s d e 1 11um i er e , 1634, p . 60.

    45

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    24/57

    continua a vigilia de conceder luz com 0 rosto do poe-ta iluminado pelo genic.

    IV

    Agora que nos tornamos sensiveis aos dramas dapequena luz, com uma imagem exagerada, podemos es-capar aos privilegios das imagens imperativamente vi-suais. Sonhando, solitario e ocioso, diante da vela, sabe-se logo que essa vida que brilha e tambem uma vidaque fala. Os poetas, ainda ai, vao nos ensinar a escutar,

    - - j ! > ,_ chama murrnura, a chama geme. A chamae urn.ser que sofre, Sombrios murrnurios saern desse infer-

    - no. Toda pequena dar e a representacao da dor do rnun-do ..Urn sonhaclor que leu os livros de Franz von Baa-der encontra, em miniatura e em surdina, nos grit osde sua vela, fragmentos do relampago, Escuta 0baru-Iho do ser que queima, esse Schrock que Eugene Susi-ni 'nos diz ser intraduzivel do alemao para 0 frances .a curiosa constatar que o_gue h a demais intraduzfveld e u m a lingua para a outra sa o os ienomenos do som~. - - -e da sonoridade, 0 espaco sonoro de uma lingua ternsuas proprius ressonancias,Mas sera que sabemos acolher bern, em nossa lin-gua materna, os eeos longfnquos que ressoam no con-cavo das palavras? Lendoas palavras, nos as vemos eentendemos rnelhor, Que revelacao foi para mim 0Di-6_Eugene SUSINI. Franz von Baader e t IQconnaissance mystique. Vrit), p, 321.

    46

    c io nar io da s onoma top ei as f rance sa s , do born Nodier,Ele rneensinou a explorar com 0 ouvido a cavidadedas sflabas que constituem 0 ediflcio sonora de umapalavra. Com que espanto, com que admiracao, aprendique. para 0 ouvido de Nodier, 0 verbo clignoter [pis-car continuamente] era uma onomatopeia da chama davela! Sem duvida 0 olho se revolta, a palpebra. tremequando a chama treme. Mas 0ouvido que se deu porinteiro a consciencia de escutar j a ouviu a inquietacaoda luz, Sonhava-se, nao se olhava mais, E eis que a ria-cho de sons da chama escoa mal, as sflabas da chamacoagulam-se. Escutemos bern: a chama cl ign_ote [pis-ca], As palavras prirnitivas devem imitar 0que se ouveantes de traduzirem 0que se va As tres sflabas da cha-rna da vela que pisca [C/ ignoteJ se ehocam, batem-seurnas contra as outras, Cli, gno , te r, nenhuma sflabaquer se fundir com a outra. A inquietacao da chamaesta inscrita nas pequenas hostilidades das tres sonori-dades. Um sonhador de palavras nao para de corn-padecer-se com esse drama de sonoridades, A pa-lavra clignoter e uma das mais tremidas da lingua fran-cesa,

    Ahl essas fantasias va~ longe demais, Elas so po-dem nascer sob a pena de urn filosofo perdido em seusdevaneios. Eie esquece 0mundo de hoje, onde 0 pis-car constante e urn sinal estudado pelos psiquiatras, on-de 0 "pisca-pisca" e urn mecanisrno que obedece aodedo do automobilista, Mas as palavras, prestando-sea tantas coisas, perdem sua virtude de fidelidade, Es-quecem a primeira coisa, a coisa bern familiar, da pri-meira familiaridade. Urn sonhador de vela, que se lern-

    47

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    25/57

    --bra de tersido urn companheiro da pequena luz, rea-prende, lendo Nodier, as primeiras simplicidades.

    Como indicamos em nosso capitulo de preambu-10, ur n sonhador de chama torna-se facilmente urn pen-sador de chama. Quer compreender por que 0 ser si-lencioso da sua vela de repente se poe a gemer. ParaFranz von Baader esse craque (Schrock) "precede ca-da Inflarnacao, qualquer que ela seja , silenciosa ou ba -rulhenta", Ele e produzido "pelo contatc de dois prin-cipios opostos, no qual urn comprime 0outro ou su-bordina-o a ele' '. Sempre queirnando, a chama deve re-inflamar-se, manter, contra uma materia grosseira, 0cornando de sua luz. Tivessernos n650 ouvido maisapurado,escutariamos todos os eeos d es sa s a g it ac oe sintemas. A vista da un if ic a coe s facilrnente. Os sussur-ros da chama, ao contrario, nao se resurnem. A chamanarra todas as lutas quee preciso sustentar para man-ter uma unidade,

    Mas os coracoes mais ansiosos nao se tranqilili-zam com vistas cosrnologicas, inscrevendo as infelici-dades de uma coisa num inferno universal. Para urnsonhador de chama, 0candeeiro e urna companhia as-sociada a seus estados d'alma, Se ele trerne, e porquepressente uma inquietude que vai perturbar todo aquarto. E, no momenta em que a chama pisca, eis queo sangue pula no coracao do sonhador. A chama estaangustiada e a respiracao no peito do sonhador tern so-bressaltos. Urn sonhador, unido tao fisicamente a vidadascoisas, dramatiza a insignificante. Para tal sonha-dar de coisa, tudo tern uma significacao humana, emsua minuciosa fantasia. Reunir-se-iarn -facilmente nu-merosos documentos sobre a sutil ansiedade da luz sua-48

    ve. A chama da vela revela pressagios. Darernos urn ra-pidoexemplo disso . . _ .Numa noite de pavor, eis que 0lampiao de Strind-berg diminui a intensidade de sua luz:

    "Vou abrir a janela. Uma corrente de ar esta arnea-cando apagar 0 Iampiao. .o lampiao se poe a cantar, a gerner, a choramm-gar."?

    Lembremo-nos que este trecho foiescrito direta-mente em frances par Strindberg. Uma vez que a cha-ma chcrarninga, ela tern urn desgosto infantil, logo, to-do a universe esta infeliz. Strindberg sa be, uma vezrnais, que todos as seres do mundo lhe pressagiam in-felicidades. Chorarningar na o e piscar de maneira me-nor, com lagrimas nos 011105?Com lagrirnas na Val,tal palavra nao e uma onomatopeia da chama liquidada qual se faz mencao na filosofia do fogo, de temposern tempos?Em outra pagina do mesmo trechos, Strindbergsuspeita de rna vontade da luz: e urn barulho de velade cera que pressagia a infelicidade": ."Acendo a vela para passar 0 tempo lendo. Reinaurn silencio sinisl-rO,e escuto meu coracao bater. En-tao urn pequeno barulho seco me sacodeeomo umafaisca eletrica,o que e isso?Urn bloco enorme de parafina acaba de cair da vela7. S""lNDBERQ. Inferno, Ed _ Stock. p. 189.S. Loc. c it . . p. MS. . _9.' .Na Lombardi a. 0crepl t ar do t eci do, os gemida. da acha de made ir a sao P"'&-sagios fune sto s" (Angelo de GUDE RNATLS , My/I '%gi" des pl l lntes , IOUlOI. p. 266).

    49

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    26/57

    no chao. Nada a lem disso , m as era um a a mea ca de m or-te, ern nossa casa,'

    S em duvida , S trind berg tern urn p siquism o de es-corchado. E sensivel aos menores dramas da materia.o carvao, em seu fogareiro, produz tambem alarrnesquando se esrnigalha dernais ao queimar, quando osresidues fundem-se mal. Mas 0desastre e , por sua vez,mais sutil e maior quando vern da luz, 0 lampiao, avela, nao sao eles que dao 0 fogo mais humanizado?Urna vez que e a fogo que da a .luz, mio e de 0 autorde maior valor? Vma perturbacao no apice dos valo-res da natureza rasga a coracao de urn ~onhador quegostaria de estar em paz com a universe.

    Vejam bern que na ansiedade de Strindberg, dian-te de urna infelicidade da vela, nao se encontra nenhumtrace de atrativo simbolico, 0 acontecimento e tudo,Par menor que seja, e designado como urn desraqueda atualidade.

    A pueril idade desta alienacao sera facilmente de-nunciada. Sera motive deespanto o fato dela ter lugarem uma relacao chela de sofrimentos dornesticos reais,Maso fate hi esia; 0 fato psicologieo vivido pelo escri-tor duplica-se no fato Iiterario, Strindberg acredita queurn acontecimento insignificante pode agitar 0coracaohumane. Com urn pequeno medo, pensa que colocaraa medo na solidao do leiter.

    Naturalrnente 0psiquiatra nao tern dificuldade emdiagnosticar a esquizofrenia quando Ie os textos deStrindberg. Porern tais textos, tomando forma litera-ria , c olo ca m urn problema: esses escritos nao sao es-quizofrenizantes? Lendo Inferno com interesse cadaleitor nao tera suas horas de esquizofrenia? Strindberg50

    sabe que eserevendo na meis absoluta solidao se cornu-nica COQ1 0 grande Outro dos leitores solitarios, Sabeque, dentro de toda alma, e x is te , a l em da razao, urnIugar onde so brev iv em a s rn edo s m ais p ueris. E sta cer-to de poder propagar suas infelicidades de vela. Em In-ferno, segue a divisa que exprime em sua autobiogra-fia: "V a la e as outros terao medo.?w

    vQuando a mosca se atira dentro da chama da ve-

    la , 0sacriflcio e ruidoso, as a sa s crep ita m, a cha ma ternurn sobressalto, Parece que a vida se quebra no cora-cao do sonhador,o fim da tracae menos sonoro, mais cuidadoso,Ela voa sern barulho, toea de leve a chama e e instan-taneamente consumida, Para urn sonhador que sonhagrande, quanto mais simples e 0incidente, mais langevao as comentarios. C, G, lung escreveu assim urn ca-pitulo inteiro para expor esses dra ma s sob 0titulo: "0canto da traca". lung cita urn poema de Miss Miller,uma esquizofrenica cujo exame foi 0ponto de partidada prirneira edicao das Metamorfoses da a lma .

    Ainda ai, a poesia vai dar a um insignificante fa-to a significacao de urn destino, 0 poema aumenta tu-do. E em direcao ao sol, a chama da s cha rna s, que 01 0 , STR IND BE RO , L'frri.ain. tr ad ., S to ck , p. 167 .11 . C. O . lU NG , Meuunorphoses de " time et ses symboles , trad., 1953,p, 156 e segs.

    51

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    27/57

    ser minuscule, tanto tempo dobrado em sua crisalida,vai buscar a sacrificio supremo, glorioso.

    Eis como canta a traca, como canta a esquizofre-nica: "Aspirava a ti desde 0primeiro acordar de mi-nha consciencia de bichinho ..Sonhava apenas contigoquando era crisalida. Muitas vezes milhares de meussemelhantes pereeiam voando em direcao a alguma fra-ca faisca emanada de ti. Mais uma hora e minhafracaexistencia tera acabado. Mas meu ultimo esforco, co-mo meu primeiro desejo, na o tera outra finalidade alernde aproxirnar-se de tua gloria. Entao, tendo te visto parurn instante de extase, rnorrerei contente, ja que, pelomenos uma vez, terei contemplado, em seu perfeito es-plendor, a fonte de beleza, de calor e de vida."

    Este e o canto da traca, simbolo de uma sonhado-fa que queria rnorrer no sol. E lung nao hesita em com-parar a poema de sua esquizofrenica com as versos emque Fausto sonha em se perder na luz do sol:Oh! pena ndo ter asaspara sair voando do soloE persegui-lo sem pamr em seu curso!Veria na irradiaciio do som, eternam ente,o mundo siiencioso exposto a meus pes.Mas um novo impulse desperta em mim.Lanco-me cada ve z mais longe para beber de sua luz

    [eterna.vNao hesitarnos em seguir lung na comparacao que

    faz do poema de suaesquizofrenica com 0poema de12. cr. toe. cit; p. 162.52

    Goethe porque assistimos a essa ampliacao de image~sque e urn dos dinamisrnos mais constantes da fantasiaescrita.Em Le Divan, Goethe toma como tema a seligeSehnsuchi, da nostalgia bem-aventurada, 0 sacrificioda borboleta na chama:

    Quem louvar 0 VlventeQue aspira ii morte na chamaNo frescor das noites de amor. ~ .~~ 4 .... , , , ~~ '.Es tomada de sentimento estranhoQuando fuze a labareda silenciosaNiio ficas mais fechadaNa sombra tenebrosaE um desejo novo te levaEm dire~iioa mais alto himeneu

    ~ 4 .;; ,~ + ; 4 ~ "

    Cones voando fascinada,E enfim, amante da Iuz,Te vemos, 6 borboleta,consumida.

    Este destine reeebe de Goethe uma grande divisa:"Mane e transforma-te,"

    E tanto niio compreendesteEste: Morre e transforma-te!Que es apenas hospede obscuroSabre a terra tenebrosa.

    No seu prefacio ao Divan, Henri Lichtenberger faz53

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    28/57

    urn grande comentario ao poema. 0misticismo dapoesia oriental' 'aparece para Goethe como aparenta-da com 0 rnisticismo antigo, a filosofia platonicae he-raclitica ..Goethe, que mergulhou na leitura de Plataoe de Platina, percebe distintamenre a parentesco queune 0 simbolismo gregoe 0 simbolismo oriental. Re-conheceu a idenridade do tema s6fico da borboleta quese joga na chama do archote e do mito grego que fazda borboleta 0simbolo da alma, que nos apresenta Psi-que sob a forma de rnoca ou de borboleta, apanhadae capturada par Eros, queimada pela tocha,'

    VI

    A traca se joga na chama da vela: fototropismopositive, diz 0psicologo que rnede as forcas materials:_complexo de Empedocles, diz a psiquiatra que quer vera raiz dos impulses iniciais do ser humano. E todos osdais estaocom a razao, Mas e a fantasia que poe todomundo de acordo, pais 0sonhador, vendo a traca sub-missaa seu tropismo, a seu instinto de morte, se diz,diante dessa imagem: par que nao eu? J a que a tracaque e urn Empedocles minuscule, par que nao sereuurn Empedocles faustiano que na morte pelo fogo vaiconquistar a !uz do sol?

    1 3. G O E TH E . Le Diva", trad de LICHTENBERGER, p. 45A6.

    54

    o fato de a borboleta vir q ueim ar sua s a sa s na cha-ma sern que s e te nh a 0cuidado de a pa ga -Ia a ntes quei ss o a con te c a e uma falta c6smica que n ao rev olta n os-sa sensibilidade. Entretanto, que sfmbolo formidavel eeste de um ser que vern queimar as as as! Queimar seusadornos, queimar seu ser, uma alma sonhadora nao pa-rou de meditar sobre isso, Quando a Paulina de Pierre-Jean Jouve se v e tao bela antes de seu primeiro baile,quando quer ser pura como uma religiosa e, ao mes-rna tempo, tentar todos os homens, e a morte de um aborboleta nachama que ela evoca: "Mas, Querida bor-boleta, toma cuidado com a chama, olha L a outra quevai morrer como aquela da outra noite, vai morrer ime-diatamente. V olta p a ra 0f og o a p esa r de tu do , n ao com-preende a fogo, e a metade de uma asa ja esta queima-da, volta, uma vez mais, mas e 0fogo, borboleta infe-liz, e 0 fogo!">

    Paulina e uma chama pura, mas e umachama, Elaquer ser uma tentacao, mas ela mesma se v e teotada.E tao bela! Sua propria beleza e urn fogo que a tenta.Desdeesta prirneira cena, a drama da morte da purezano erro esta em acao, 0 romance de Jouvee a roman-ce de urn destine. Morrer par arnor, no amor, comoa borboleta na chama, nao e realizar a sintese de Erose Thnatos? 0 texto de Jouve e animado, par sua vez,pelo instinto da vida e pelo instinto da morte, Esses doisinstintos, revelados como a faz Jouve, em profundida-de, em sua primitividade, nao sao contraries. 0 psico-logo das profundezas que e Jouve mostra que eles agem14 . Pierre-Jea n J O U VE . Paulina, M ercu re de F ra nce, p, 40 .

    55

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    29/57

    nos ritrnos de urn destine, nesses ritmos que colocsmincessantes revolucoes Duma vida.

    E a primeira imagern, a imagem de urn destine fe-minine escolhida por Jouve, e aquela irnagern de umaborboleta queimada pela vela na noire de seu primeirobaile.

    Eu quis seguir os sonhadores de chama mais dife-rentes, mesmo aqueles que meditam sabre a morte dasfalenas atraidas pela Iuz. Masessas sac as fantasias dasquais nao participo, Conheco bern as vertigens, 0 va-tic me atral erne assusta. Mas nao sofro de vertigensem pedoclianas,

    A solidao da morte e urn lema de rneditacao gran-de demais para 0. sonhador de solidao que sou. Falta-me, portanto, para terrninar este capitulo, redizer co-mo faco minhas as fantasias simples e tranqiiilas queevoquei no. inlcio dele.

    VII

    Jean Cas sou sonhava sempre em abordar 0grandepoeta Milosz com esta pergunta, digna de ser colocadaa uma majestade: "Como se cornporta Sua Solidao?"Esta pergunta tern mil respostas , Em que recantoda alma, em que canto. do coracao, em que lugar doespirito, urn grande solitario. esta so, bern s6? So? Fe-chado ou consolado? Em que refugio, em que cubicu-lo, 0 poetae realmente urn solitario? E quando tudomuda tam bern segundo 0 humor do ceu e a cor dos56

    devaneios, carla impressao de solidao de urn grande so-litario deve achar sua imagem. This "Irnpressoes" sao,primeiro, imagens ..g_~ciso imaginar a solidao paraconhec~-la, para ama-Ia cu para defender-se dela, p a -ra ser trangllliocu para ser corajasQ. Quando se qui-ser fazer a psicologia do. claro-escuro psfquico em quese clareia au se escurece esta consciencia de nosso ser,sera precise multiplicar as imagens, duplicar toda ima-gem. V m homem solitario, na gl6ria de ser so, acredi-ta as vezes poder dlzer 0que e a soIidao. Mas a ci!Qaurn cabe uma solidaa. E 0sonhador de solidao nao po--a e nos dar mars que algumas poucas paginas deste a l-bum de claro-escuro das solidoes.

    Quante a mim, totalmente em comunhao com asimagens que me sao oferecidas pelos poetas, totalmenteem comunhao com a solidao dos outros, eu me facoso com as solidces dos outros.

    ~ Face-me so, profundamente so, ccn~ a solidao deurn outro.

    Mas e precise, e clare, que esta solicitacao a soli-dao seja discreta, que seja, precisamente, uma solidaode imagem. Se 0 escritor solitario quiser me contar suavida, toda sua vida, me transforrnara imediatarnenteem urn estranho, As causas da sua solidao nao seraonunca as causas da minha. A solidao nilo tern hist6-ria. Teda a minha solidao cabe numa primeira imagem.Eis, portanto, a imagem simples, a quadro centralno. claro-escuro dos devaneios e da Iembranca, 0 so-nhador esta a sua mesa; esta em sua rnansarda; acendesua lampada. Acende uma vela. Acende sua vela de ce-ra ..Entao eu me lembro,entao eu me reencontro: so uo sonhador que ele e . Estudo como ele estuda. 0 mundo

    57

    - - - - - - - - - - - - - . . - - - - - - - - - - - - - ~ - - - - - - ~ - ~ - - ~

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    30/57

    e , para mim, como para ele, a livre diftcil clareado pe-la chama de uma vela. Pais a vela, companheira de so-lidiio, e principal mente companheira do trabalho soli-tario, A vela nao ilumina urn cubfculo vazio, iluminaurn livre.

    S6, a noite, com urn livro iluminado par uma vela- livro e vela, dupla ilha d e lu z, contra a s dup la s tre-vas do espfrito e da noite,

    Eu estudol Sou apenas 0sujeito do verbo estudar,Nao ouso pensar,Antes de pensar, e preciso estudar,S6 as fil6sofos pensam antes de estudar,Mas a vela se apagara antes que 0diffcil livro seja

    compreendido ..E preciso nao perder nada do tempo deluz da vela, gran des horas da vida estudiosa.

    Se levanto os olhos do livro para olhar a vela, emvez de estudar, sonho.Entao as horas se altern am na vigilia solitaria, Ashoras se alternam entre a responsabilidade de saber e

    a Iiberdade das fantasias, esta Iiberdade facil demaisdo hornem solitario.'l A imagem de ur n leitor vigilante a luz de vela me

    basta par a que comece esse movimento alternado despensarnentos e das fantasias. Sirn, en me perturbariase 0 sonhador, no centro da imagem, me dissesse ascausas da sua solidao, alguma historia longfnqua detraicees da vida. Ah! meu propr io passada basta parame atrapalhar, r ec iso . do . pas s ado . dosoutros. ~~g os ou ros para recolorir a s mi~nhas, P r e C 1 S o . das fantasias os outros para me lembr_araemeu trabalho sob as pequenas Iuzes, para me lem-brar que, eu tambern, fui urn sonhador de vela.58

    CAPITULO III

    A verticalidade das chamas

    "No al to ._ .a luz se despoja de seu vestido."OcrAV[O PAZ. Aguia ou son

    I

    Entre as fantasias que nos aliviam, bern eficazese simples sao as da altura. Todos os objetos retos e empe designam urn zenite, Uma forma reta e de pe se Ian-ca eons leva em ~rticalidade. Conquistar urn pi-c o . real continua sendo uma proezaesportiva, 0 sonhovai rnais alto, ele nos leva para alem da verticalidade,

    59

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    31/57

    Muitos son has de voar nascem num estirnulo da verti-calidade diante dos seres retos e verticais, Perto das tor-res, das arvores, urn sonhador de altura sonha com 0ceu, A s fantasias de altura a lim en ta rn n osso instintode verticalidade, instinto recalcado pelas obriga'Yoes davida comum, da vida vulgarmente horizontal. A f an-tasia ve~~anle e a rnais liberadora das fantasias.Nao ha melhor meio para se-sonhir bern do que so -nhar com outro Iugar, Porern 0 mais decisivo dos ou-tros lugares nao e a Dutro lugar que fica acimat Os 50-nhos com 0aeima fazem esquecer, suprimir os do em-baixo. Vivendo no zenite do objeto em pe, acumulan,do a s fantasias de verticalidade, conhecemos uma trans-cendencia do ser. As imagens da verticalidade fazem-nos entrar no reino dos valores, Comungar por meioda imagina'Yao com a verticalidade de urn objeto retoe reeeber 0bene ficio de forcas ascensionais, e partie]-par do fogo escondido que habrta as formas belas, asf or rn a s s cg ura s de sua verticalidade.

    Ha algum tempo haviamos desenvolvido longa-mente esse lema da verticalidads em um capitulo denosso Iivro L'air et les songes. I Se q u is ere rn s e trans-portal" a esse capitulo verso todo 0 plano anterior denossas presentes fantasias sobre a verticalidade dachama ..

    I. L 'a ir et te s s ai l g es . .Corti, caps. J e IV.60

    II

    Quanta mais simples for seu objeto, maiores se-rao as fantasias. A chama da vela sobre a mesa do so-litario pre para tad as as fantasias da verticalidade, Achama e uma valente e fragil vertical. Urn sopro a atra-palha, mas ela logo se endireita. Uma forca ascensio-nal restabelece seus prestigios,

    A vela queima alto e sua purpura se erguediz urn verso de Trakl.'A chama e uma verticalidade habitada. Todo so-nhador de chama sabe que a ch~ma esta v iv a . ..Elaga-r~nte sua vertfCalidade por meio de reflexes sensiveis,Mesmo quando urn incidente de cornbustao vern per-turbar 0 impulse zenital, el a reage prontamente. ~sonhador de vontade verticalizante que estuda sua. li-

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    32/57

    I i

    Sim, a haste da chama e tao ereta, tao fragil quea chama mais parece uma flor,

    Assim as imagens e as coisas trocam suas virtu-des. Todo 0quarto do sonhador de chama recebe umaatmosfera de verticalidade, Urn dinamismo suave maisseguro leva os devaneios em direcao ao apice, Podemosmuito bern nos interessar pelos turbilhoes internos quecercam a pavio, ver no ventre da chama tumultos ondelutam trevas e luz, Mas todo sonhador de chama elevaseu sonho em direcao ao ponto mais alto. E l a que 0fogo torna-se luz, Villiers de I'Isle-Adam tomou comoinscricao de urn capitulo de sua Isis a proverbio arabe:"A labareda nao ilumina sua base."E no pico que os maiores sonhos estao,

    A chama e tao essencialmente vertical que apare-ce, para urn sonhador do ser, estendida em direcao aoa lern , em direca o a urn n a o -s er e te re o . Num poerna que,tern por titulo Chama, le-se';

    ,II'

    Ponte de fogo tancada entre 0 real e 0 irreatcoexistindo a todo instante com 0 ser e 0 ndo-se r

    r-- Brincar de ser e de nao-ser com urn Dada, com umachama, com uma chama talvez apenas imaginada, e ,pa r a 0f il os of o .u rn b el o i ns ta n te de me ta f is ic a il us tr ad a . .

    Mas toda alma profunda tern seu alern pessoal, Achama ilustra todas as transcendencias, Diante da cha-ma, Claude! se pergunta: "De onde a materia tira 0 j - -impulse para se transportar para a categoria dodivino?"!4. Roger AsSEUNEAU. Poesies incompletes, E d_ D eb re ss e, p. 38 _5. Paul CLAUDEl-_ troet! ecoute , p. 134.

    62

    Se nos dessemos 0direito de rneditar sobre os te-mas liturgicos, nao terfamos dificuldadesem a~har d:,-cumentos sobre 0simbolismo das chamas. Sena entaopreciso fazer face a urn saber. Ultrapassartamos 0pro-jete de nosso pequeno livro que deve se conte~tar emapanhar os stmbolos em seus esbocos. Quem q~lser en-trar no mundo dos simbolos colocados sob 0sl~no dofogo, podera pegar a grande obra de Carl-Martm Eds-man: Ignis divinus/:

    III

    Haviamos descartado, em nosso capitulo depreambulos, toda inquietacao de saber, toda experien-cia cientifica ou pseudodentifica sabre os fenornenosda chama. Fizemos 0melhor posslvel para ficar na ho-mogeneidade das fantasias que irnaginam, que sa~aquelasde urn sonhador solitario.l'Q_s~129qe ser doisquando se sonhaem profundidade com uma chama.As observacoes ingenuas feitas juntas por Goethe .eEc-kermann, porurn mestre e urn discipulo, nao prepa-ram nenhum pensamento, nao padem ser refeitas coma seriedade que convem a pesquisa cientifica. AMm dis-so nao nos dao aberturas sobre esta filosofia dos cos-mos que influencia tao grande teve sobre 0 romantis-me alemao.'6. Carl-Martin EDSMAN. Ignis divinus, l.und, 1949, Do mesmo autor:1 /)apleme du fe ll, Uppsala, 1940':7 . Cf. Conversations de Goethe et d'i;?ckermann, trad .. torno I. p. 203.255, 258, 259.

    63

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    33/57

    Para provar de imediato que com Navalis deixa-se 0 reino de uma ffsica de fates para entrar no reinode uma fisica de valores comentaremos uma curta di-visa reproduzida na edicao Minors: "Licht mach!Feuer", "E a Iuzque faz 0 fogo". Em sua forma ale-rna, esta frase em tres silabas anda rnuito rapido, e umaflecha de pensamento tao rapida que 0sensa comumnao sente imediatamente seu impacto, Toda a vida co-tidiana nos ordena ler a frase ao contrario pois, na vida comum, acende-se a fogo para se ter a luz, Esta pro-vocacao s o se justificara se se aderir a uma cosmolo-gia de valores. A frase em tres silabas "Licht machtFeuer" e 0 primeiro ato de uma revolucao idealista dafenomenologia da chama. E uma d ess as f ra se s-eix o q ueurn sonhador se repete para condensar sua conviccao.Durante horas, imagino, escuto as tres silabas nos la-bios do poeta. "

    A prova idealista nao saberia enganar: para No-valis a idealidade da luz deve explicar a acao materialdo fogo.

    D fragrnento de Navalis continua: "Licht ist derGenius des Feuerprozesses", "A luz e 0genic do pro-cesso do fogo". Declaracao das mais graves para umapoetics dos elementos materiais, ja que a primazia daluz tira do fogo seu poder de sujeito absolute .. 0 fogoso recebe seu verdadeiro ser no terrnino de urn proces-so em que se torna luz, quando, nos tormentos da cha-rna, foi desernbaracado de tcda sua materialidade ..8. Tomo Ill, p, 33.9_Pa:a urn autor d~ Em:ycloptdii! (artigo: 'Fogo", p .. I& < I ) : "Uma cha-ma V I v a e clara (da m a r s calor) do que 0 braseiro rnais ardente,"

    64

    Se lessemos sobre a chama essa inversao cia cau-salidade, seria precise dizer que e a ponta que e a re-serva da acao, Purificada na ponta, a luz extrai tudodo sabugo, A luz e , entao, 0motor verdadeiro que de-termina 0ser aseensional da chama. Compreender asvalores no proprio ato em que ultrapassam os fates,em que acham seus seres em ascensao, e 0 proprio prin-cipio de cosmologia idealizante de Novalis, 'Iodos osidealistas acharn, meditando sabre a chama, 0mesrnoestimulo ascensional, Claude de Saint- Martin escreveu:

    "0movimento do espfrito e como aquele do fo-go, acontece em ascensao," JO

    IV

    Coordenando todos os fragmentos em que Nova-lis evoca a vertic:alidade da chama, poder-se-ia dizer quetudo que e ereto, tudo que e vertical no Cosmos, e umachama. Numa expressao dinamica, seria precis a dizer:tudo a que sobe tern 0dinamismo da chama ..A reci-proca, apenas atenuada, e clara. Novalis escreveu:

    "Na chama de lima vela, todas as forcas da natu-reza sao ativas,'"In der Ftamme eines Lichtes sind aile Naturk-riiften tiitig. "

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    34/57

    As cham as constituem 0proprio sec da vida ani-mal. E Navalis nota inversamente "a natureza animalda chama?", A chama e , de algum modo, a animali-dade nua, maneira exagerada de animal. EIa e 0glu-tao por excelencia (das Gefrassige), 0 fato desses afo-rismos serem fragmentos disperses em toda a obra re-vela 0 carater imediato das conviccoes, Sao verdadesde fantasia que s6 se pode provar experimentando aonirismo profunda, mais sonhando do que refletindo.. Cada reino da vida eentao um tipo de chama par-

    t ic u la r , No s fragmentos t raduzidos por Maeterlinck, l e -se (pag, 97):"A arvore so pode transformar-se em urna chama

    florida, 0 homem numa chama falante, 0 animal nu-rna chama errante.?

    Paul Claudel, sem ter lido esse texto de Novalisse~ndo pa r e ce, e sc r eveu p agmas sem elh an tes, P a ra ele:a vida e urn fogo. 1. A vida prepara seu combustivel novegetal e se inflam a no animal: "0 vegetal au elabora-!rao d~ m~teria combustivel. 0 animal provendo suap~~pnaalimentaeao", diz Claude! no resume pre para-tono de seu texto,

    12. Ed. Minor, r. II, p. 206.13.Cf. lima pagina singular em que d .. . ."... . "'" ~u 0 que vivee dado como oemente ~e uma chama, Somos apenas cs residua's de urn ser inn "c~e-(Ed. Minor, t, II, p. 216). . . arna 0

    Em 0 Diva, GOETHE escreve:No chama dgil do lareiraSe elaboram, do disforme; 0 sumo do animal e

    da plan/aAll des H erdes rasehell Feu. rkraftenJ4 Fa ..J C , . Reif,l.da.s Rohe Tier. und Pflanzensaflen. U LAUDL, L'art poet/Que, p . 86 .

    66

    "Se a vegetal pode se definir como' materia com-bustive!', para a animal elee materia acesa,":'

    "0 animal mantem (sua forma) queimando 0 queir a alimentar a energia da qual ela e 0ato, conseguin-do 0que ira sa tisf azer a fame do fogo nele recluso.?>o tom dogmatico desta cosmologia sob a formade divisa, tanto em Novalis, quanta em Claudel des-cartara sem duvida urn fil6so-fo do saber. Nao sera amesma coisa se acolhermos tais aforismos no quadrode uma poetica, A chama. aqui, e criadora. Ela nosentrega instituicoes poeticas para nos fazer participarda vida inflamada do mundo. A chama e , entao, umasubstancia ativa, poetizante. -- - - -

    Os seres mais diversos recebem seu substantive dachama. Basta urn adjetivo para particulariza-los, Urnleitor rapido talvez veja a t apenas urn jogo de estilo.Mas se ele parttcipar da intuicao inflamante do filoso-fa poeta cornpreendera que a chama e urn ponte de par-tida do ser vivo. d.vida e um fogo, Para conhecer suaessencia e precise queimar em comunhao com a poe-ta o Para empregar uma formula de Henry Corbin, di-riamos q ue a s f orm ula s de Nova l i s tend em a Ievar a m e-ditacao a incandescencia.

    15. Loc. cit ., p. 921 6. Loc. cit ., p. 93

    67

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    35/57

    vMas eis uma imagem dinarnica em que a medita-

    cao da chama encontra umaespecie de impulse sobre-vital que deve aurnentar a vida, prolonga-la alem desi propria, apesar de todas as fraquezas da materia co-mum. 0 trecho 271 de Navalis resume toda uma filo-sofia de chama-vida e da vida-chama":

    "A arte de saltar alem de si mesmo econsideradaem toda parte como a ato mais alto. E 0ponto de ori-gem da vida. A chama nao e nada mais que urn atodessa especie, Assim a filosofia comeca ai, onde 0 fi-losofante filosofa a si mesrno, isto e , se consome e serenova.?v

    Numa reforma de seu texto, Novalis, tendo a maoos dois sentidos do verbo verzehren (consurnir, consu-mar), indica a passagern, no ato da chama, do deter-minado ao determinante, do ser satisfeito ao que vivesua liberdade. Urn ser se torna livre se consumindo pa-ra se renovar, dando-se assim 0destino de uma cha-ma, acolhendo principalmente a destino de uma sobre-chama que vern brilhar ac ima de sua ponta.

    Mas, antes de filosofar, talvez seia precise rever;talvez, pela falta de revisao, seja preciso reimaginares-se raro fenomeno da Iareira, quando a chama tranqui-

    " 'II

    ! i

    17. NOVAUS, Ed . Minor, II, p. 259,18. Cf. N[ETZCHE_ Poesias:A vida criou para si mesmaSeu suprema obstdcuio:Agora eta salta por elmo de WI! proprio pensamento:

    68

    In.afasta de seu ser as fagulhas que saem voando, maisleves e mais livres sob 0manto da chamine,

    Assisti muitas vezes a esse espetaculo em sonha-doras vigHias. As vezes, minha boa avo reaeendia, co-locando galhos secas acima da chama, a fumaca lentaque subia ao longo da fornalha negra. 0 fogo pregui-coso nao queima sempre de uma so vez todos os elixi-res da madeira. A fumaca deixa com pesar a chamabrilhante, A chama tinha ainda tantacoisa para quei-mar! Na vida tarnbem ha tantas coisas para reacenderl

    E quando a sobrechama ganhava vida novarnen-te, rninha avo me dizia: veja, meu filho, sao as pass a-ros do fogo. Entao, eu mesrno, sonhando sernpre maisdistante do que as palavras da avo, achava queessespassaros do fogo faziam seus ninhos no coracao dasachas de madeira, bern escondido, sob a cascae a le-nha leve. Aarvore, esse porta-ninhos, havia prepara-do, durante seu cresci men to, esse ninho intemo ondeesses belos passaros do fogo se aninhariam. No calorde uma grande lareira, 0 tempo acaba de eclodir e de1evan tar ,,60.

    Teria escrupulos em contar meus proprios deva-neios e distantes lembrancas se a primeira imagem, achama que salta par cima de si mesma para continuara queimar, nao fosse uma imagem real. A chama quese sobrevoa, que toma urn novo impulse alem de seuprimeiro impulso, alem de sua extremidade, Charles No-dier a viu. Ele fala de "esses fogos sonhados que voamacima das tochase dos candelabras, quando as cinzasque as produziram ja se esfriam."'9[9. Charles NODI.ER. Obras completas, tomo V, p. 5.

    69

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    36/57

    Esta chama sobrevivente, sobrevoante, ilustra umacomparacao longlnqua, para Nodier. Ele fala de urntempo em que "0 amor, 56, vivia acima do mundo so-cial, assim como esses fogos que produzem uma luzmais pura acirna das labaredas",

    Para urn sonhador novalisiano das chamas anima-lizadas, a chama, ja que voa, e urn passaro,Onde pegareis 0pdssaroAlem de dentro da chama?

    pergunta urn jovem poeta.>Havia, portanto, conhecido bern, em meus deva-

    neios e jogos diante da lareira, a Fenix domestica ete-rea entre todos, pois renascia, nao de suas cinzas, masapenas de sua furnaca.Mas, quando urn fenorneno raro esta na base deuma imagem extraordinaria, imagem essa que enche aalma de devaneios desrnedidos, a quem 011 a que e pre-ciso dar realidade?E urn fisico que vai responder: Faraday fez da ex-peri e n cia da vela acesa em seu vapor 0 assunto de umaconferencia popular}' Esta conferencia teve lugar en-tre outras que Faraday fazia nos cursos noturnos e quereuniu sob 0 titulo de Historia de uma vela. Para obtersucesso na experiencia, e precise soprar suavernente,bern suavemente, a vela, e bern rapido reacender 0 va-por e apenas 0 vapor, sem despertar 0 pavio,

    20 . P ie rre G A.R NIE R Roger Toulouse, C ah ie rs d e R oc he fo rt, p. 4(1.21. FARADAY. Histoire d'une chandelle, trad, p. 58.

    70

    Meio sabendo, meio sonhando, diria entao: paraobter sucesso na experiencia de Faraday, e preciso an-dar depressa, pois as coisas reais nao sonham por muitotempo. Nao se deve deixar a )uz dorrnir. 1 3 precise seapressar em acorda-la.

    71

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    37/57

    IIIIIl~Ii

    CAPITULO IV

    As imagens poeticas da chama na vida vegetal

    "Nilo sei mais se durrnnPois a Iuz vela no heliotropio.'[CELINE ARNAUD. Anthologie,

    1

    Quando se sonha urn pouco com forcas que man-tern em cada objeto urna forma, facilmente imagina-se que em todo ser vertical reina uma chama. Em par-ticular, a chama e 0 elemento dinamico da vida. ereta.Citamos anteriormente este pensamento de Navalis: "A

    73

  • 5/7/2018 BACHELARD Gaston. a Chama de Uma Vela

    38/57

    I'1'I,

    arvore nao e outra coisa alem de uma chama florida."Vamos ilustrar esse terna lembrando as imagens que re-nascern, sem firn, na imaginacao dos poetas.

    Antes de contar as explicacoes da imaginacao poe-tica, taJvez seja preciso lembrar que uma.comparariionao e urna imagem, Quando Blaise de Vigenere com-para a arvore a uma chama, ele apenas aproxima pala-vras sem conseguir realmente fazer a ccncordancia en-tre 0 vocabulario vegetal com a da chama. Registrare-mos esta pagina que nos parece urn born exernplo deuma cornparacao prolixa.

    Vigenere apenas falou da chama de uma vela decera, agora fala da arvore: "Em sentido semelhante (aoda chama) que tern suas raizes pres as na terra, da qualextrai seu alimento, como a parte inferior da vela ex-trai 0seu do sebo, da cera ou do oleo que fazem a velaarder. 0 troneo que suga seu suco au seiva faz 0 mes-rna que a base da vela, onde 0 fogo se mantern atravesdo licor que atrai para si, e a chama arnarela sao seusgalhos e ramos revestidos de folhas; as flores e os fru-tos em que a Arvore termina sao a chama branca naqual tudo se reduz.":

    Ao longo desta cornparacao exposta, jamais apa-nharemos urn dos mil segredos igneos que prepararaoa distancia a flamejante explosao de uma arvore florida.

    Vamos, portanto, tentar pegar, seguindo os poe-tas, ~~ imagens em primeira poesia, quando elas nas-cern de urn detalhe digno de ser enaltecido, de urn ger-me de poesia viva, de uma poesia que podemos fazerviver em nos.

    fl"

    1. Loc. cit . 17.

    74

    II

    Quando a imagem da chama se imp5e a ~m poe-ta para dizer uma verdade do mundo vegetal, e preciseque a imagem perrnaneca em uma frase. Explica-la,desenvolve-la, seria diminuir, parar 0 impulso de umaimaginacao que une 0 ardor do fogo e 0paciente po-der do verde. As irnagens-frases que pintarn, que con-tam as chamas vegetais, sao igualmente acoes polemi-cas contra 0senso comum adormecido em seu