avaliaçõ de crianças com ultiplas deficiençias

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    disponvel em www.scielo.br/prc

    Diferentes Olhares em Relao a uma Criana com MltiplosDiagnsticos: Estabilidade ou Possibilidade de Mudana?

    Different Looks for a Child with Multiple Diagnoses: Stabilityor Possibility of Change?

    Eneida Miyuki Tsuji*, Maria Aparecida Affonso Moyss & Cecilia Guarnieri BatistaUniversidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil

    ResumoA atuao profissional voltada para crianas com problemas de origem orgnica, com prognsticodesfavorvel, merece reflexo, por sua relao com o desenvolvimento psicolgico da criana. Foi realizadoo estudo de caso de uma criana com diagnsticos de problemas orgnicos e queixas de comportamentosagressivos e competitivos. Analisou-se sua participao, durante trs anos, em projeto de interveno emgrupo, com foco em seus modos de participao e interaes com parceiros. Foram identificadascompetncias e modalidades cooperativas de participao, que se tornaram mais diversificadas e complexasao longo do perodo de observao. O estudo permitiu uma ampliao do olhar para as possibilidades edificuldades da criana, sugerindo anlises mais abrangentes do desenvolvimento de crianas com mltiplasqueixas.Palavras-chave: Desenvolvimento e Deficincia; Diagnstico e Prognstico; Estratgias de Intervenoem Grupo.

    AbstractProfessional practice directed to children with organic problems and unfavorable prognosis deserves at-tention since it is directly related to the psychological development of the child. It is presented the casestudy of a child with diagnoses of organic problems and behavioral complaints characterized as aggressiveand competitive. It was analyzed the participation of the child, during three years, in a project of interven-tion in groups, with focus on modes of participation and peer interaction. The analysis allowed the identi-fication of competencies and cooperative modalities of participation, which became more diversified andcomplex during the period of observation. With this study, it was possible to take a wider perspective ofthe possibilities and difficulties of the child, suggesting the need of broader analyses of the development ofchildren with multiple developmental complaints.Keywords: Development and Deficiency; Diagnosis and Prognosis; Group Intervention Strategies.

    * Endereo para correspondncia: Cepre/Departamentode Desenvolvimento Humano e Reabilitrao-FCMUnicamp, Rua Tesslia Vieira de Camargo, 126, BaroGeraldo, Campinas, SP, Brasil, CEP 13083-970. E-mails:[email protected], [email protected] [email protected]

    A atuao de profissionais da sade e educao, volta-da para crianas com problemas de origem orgnica ecom prognstico desfavorvel, um tema importante aser refletido, uma vez que tais prticas podem afetar odesenvolvimento psicolgico da criana. Em trabalhoapresentado por Batista (2004), a autora discute os riscosdos prognsticos negativos e a importncia da orientaoaos profissionais para a promoo do desenvolvimentoda criana. Sua anlise fundamentada nos registros deum projeto de interveno, realizado em um servio uni-versitrio, que tm como objetivo a promoo do desen-volvimento de crianas com diagnstico de deficinciavisual e que apresentem dificuldades escolares (Batista

    & Laplane, 2007). Um dos aspectos discutidos porBatista (2004) refere-se idia de que as dificuldadesapresentadas pelas crianas no so inerentes s suascondies orgnicas e, sim, significativamente relacio-nadas qualidade das interaes sociais estabelecidas emdiferentes contextos. Dessa forma, os problemas obser-vados se devem a uma interao entre fatores orgnicos eambientais, com uma nfase crescente na influncia dosaspectos ambientais no desenvolvimento humano.

    Essa idia j vinha sendo discutida por Vygotsky nasprimeiras dcadas do sculo XX. De acordo com Vygotsky(1991), o desenvolvimento pode ser compreendido comoum movimento, cujas transformaes ocorrem a partir dasinteraes do indivduo com diferentes aspectos da vidasocial e cultural, sem descartar a influncia de aspectosbiolgicos. O autor sugere que a prtica pedaggica epsicolgica de crianas com deficincia seja vista comoum problema de educao social, pois a deficincia trazrestries que podem ir alm da limitao orgnica, alte-

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    rando, tambm, o desenvolvimento e a qualidade das re-laes sociais. Em suas consideraes sobre pessoas comdeficincia, Vygotsky (1974/1997) afirma que, muitasvezes, as reaes frente s alteraes orgnicas podemdificultar o desenvolvimento da criana, inclusive suaaprendizagem, em decorrncia da no estimulao dessacriana nos grupos em que ela convive. Nesses casos, aateno voltada para a deficincia, e no para o indiv-duo enquanto ser humano com potencial para o desen-volvimento. Para o autor, o impulso para o desenvolvi-mento considerado semelhante para todas as crianas,independentemente da presena ou no de deficincia.

    Um dos pontos centrais da perspectiva terica deVygotsky (1983/2000) a nfase na linguagem e, deforma mais ampla, na mediao semitica, como fontedo desenvolvimento. Para o autor, o signo, a princpio, sempre um meio de relao social, um meio de influn-cia sobre os outros, e somente depois se transforma emmeio de influncia sobre si mesmo (p. 146). Vygotskyenuncia a lei gentica do desenvolvimento cultural daseguinte forma: Toda funo no desenvolvimento cul-tural da criana aparece duas vezes, em dois planos:primeiro no plano social e depois no psicolgico, a prin-cpio entre as pessoas como categoria interpsquica e emseguida no interior da criana como categoria intraps-quica (p. 150). Vygotsky destaca, dessa forma, o papelda mediao semitica nas interaes sociais, e seu papelna constituio do sujeito. Destacam-se, no caso decrianas com diagnsticos de deficincia, as instnciasde mediao semitica que envolvem educadores, porseu papel na promoo de condies necessrias paraque esse desenvolvimento seja realizado.

    Essas colocaes so coerentes com a filosofia inclu-siva, que vem sendo elaborada e divulgada na literaturaocidental a partir da dcada de 70, com a Declarao deSalamanca (1994), e que vem trazendo sucessivas mu-danas nas polticas pblicas nas reas da educao, tra-balho, lazer e acessibilidade. No Brasil, a legislao temavanado na direo de propostas inclusivas, como, porexemplo, o Decreto No 6.571 (2008), que visa asseguraro atendimento educacional especializado no contexto daescola regular.

    Diferentes vertentes trazem a noo de deficinciacomo no diretamente relacionada a fatores orgnicos,e, portanto, no atrelada a noes de capacidadesgeneticamente delimitadas. Moyss e Collares (1997)fazem uma crtica a termos como capacidade e poten-cial. Afirmam que tentativas de mensurao das mes-mas, especialmente a partir do uso de instrumentos demedida como definidoras de um limite mximo de aqui-sies possveis, leva a previses pessimistas sobre odesenvolvimento de crianas com valores baixos nes-sas mensuraes, e enfatizam que jamais ser possvelter acesso ao potencial do avaliado, mas apenas expres-so deste potencial. Moyss, Collares e Geraldi (2002)propem uma viso de sujeito como ser inacabado, emconstante processo de constituio, cujo desenvolvimen-

    to ocorre a partir da linguagem, das interaes e media-o social. Segundo os autores:

    Tomando as formas de funcionamento da linguagemcomo inspirao uma relao dialtica entre o j-dito eo que se diz e considerando que a subjetividade seconstitui como feixes de representaes lingsticasinternalizadas, reconfigura-se a noo de sujeito: uma sin-gularidade histrica, por isso nica, cuja existncia de-pende do outro, que lhe externo, sendo ele prprio umexterior de constituio do outro. (p. 108).

    Essas idias relacionadas importncia de se com-preender a constituio do ser humano como o produtode uma interao entre seu desenvolvimento biolgico eo ambiente no qual est inserido podem ser destacadastambm no trabalho de Amiralian (2003), que analisa aproblemtica da deficincia a partir do enfoque winni-cottiniano. Ao considerar que o psiquismo formado pelaelaborao imaginativa baseada nas experincias vividaspelo indivduo, a autora afirma que a deficincia umacondio que leva a diferenas qualitativas em seu pro-cesso de desenvolvimento. Alm da prpria alteraoestrutural, as interaes das pessoas com deficincia somarcadas pelas suas condies especiais, o que tornasuas experincias diferenciadas, sem relao direta en-tre alterao orgnica e perturbao psquica. A ocorrn-cia de tal perturbao depende da forma como o sujeitopercebe e elabora as experincias advindas de suas con-dies peculiares. Para a autora, o desenvolvimento doser humano se d pela tendncia inata do indivduo paraa integrao, somado a um ambiente facilitador. No casode crianas com deficincia, a autora destaca a impor-tncia da qualidade na interao me-beb, que pode sercomprometida com a descoberta da deficincia, pois osofrimento materno pode afetar o modo de cuidar do beb.No que se refere importncia das interaes sociaisna constituio do ser humano, a anlise proposta pelaautora semelhante s colocaes de outros autoresinteracionistas, especialmente em relao tendnciapara a superao e integrao, que guarda similaridadecom o impulso para o desenvolvimento mencionado porVygotsky (1991).

    A partir de diferentes abordagens e autores, pode-seafirmar que as relaes sociais so fatores fundamentaispara o desenvolvimento da personalidade do indivduo.E so particularmente relevantes quando veiculam men-sagens relativas crena na capacidade ou incapacidadede uma criana. A Psicologia vem abordando essas ques-tes tambm nos estudos relacionados auto-estima e formao da identidade. Palacios e Hidalgo (1993) dis-cutiram sobre a personalidade no contexto de relaesinterpessoais, e diferenciaram os termos conhecimentode si mesmo e auto-estima. Para os autores, o conheci-mento de si mesmo um termo utilizado para conceitogeral que se refere aos conhecimentos, idias, crenas eatitudes que temos acerca de ns mesmos (p. 183), epode ser dividido em dois aspectos: o primeiro, relativoao contedo deste conhecimento, s caractersticas ou

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    atributos que utilizamos para descrevermos a ns mes-mos (autoconceito); o segundo, referente avaliao oujulgamento que fazemos deste autoconceito (auto-esti-ma) (p. 183). O conhecimento de si mesmo se desenvol-ve como uma construo ativa, pela qual, a partir de com-petncias crescentes e das interaes sociais, a crianavai se enriquecendo com atributos que a definem comopessoa, com caractersticas prprias, diferenciadas dosdemais. A avaliao dessa pessoa em termos positivos(auto-estima positiva) constitui um aspecto fundamentalpara o xito no desempenho escolar, para o estabeleci-mento de relaes sociais, e preservao da sade men-tal. Os autores destacam alguns fatores determinantes daauto-estima, como a histria pessoal de sucessos e fra-cassos e, principalmente, a qualidade de tratamento quepessoas significativas, como os pais e educadores dedi-cam criana.

    Assim, no caso de crianas com diagnsticos de pro-blemas orgnicos e/ou deficincias tais construes po-dem estar em risco, pois as relaes sociais tendem a serpermeadas por preconceitos que diminuem a expectativado outro em relao criana, e, dessa forma, dificultama explorao de suas potencialidades. Podem-se destacaralguns estudos referentes s relaes sociais baseadas emidias pr-concebidas acerca do potencial de pessoas comdeficincia. Kassar (1995) observa contradies presen-tes nas falas de professoras em salas de educao espe-cial, referentes s possibilidades de desenvolvimento des-ses alunos. A percepo de progresso vem acompanha-da pela idia da limitao, e esse conformismo com ocarter esttico da limitao traz como conseqncia afalta de expectativa em relao ao desenvolvimento dacriana e a aceitao do no progresso da mesma. Con-cepes dessa criana, vistas como tendo caractersticasinerentes de lentido, apatia e limitao na aprendizageminfluenciam no modo de interao das pessoas de seu meiosocial, e nas oportunidades oferecidas ou no criana.

    Uma tentativa de superar esses preconceitos a buscade promoo do desenvolvimento dessas crianas, emcontextos que minimizem riscos de ansiedade e fracassoe, ao mesmo tempo, otimizem as possibilidades de parti-cipao em atividades relevantes e significativas. O tra-balho em grupo, como forma de atendimento de crianascom deficincia, foi um tema discutido por Batista eLaplane (2007). As autoras destacam a importncia decriao de um contexto em que as crianas possam con-viver entre parceiros e adultos, experimentar diferentespapis e realizar modalidades de atividades que envol-vem diversos tipos de conhecimento. Estudos realizadosnesse contexto vm trazendo contribuies, no sentidode identificar habilidades em crianas geralmente descri-tas por seus problemas e limitaes. Exemplos podemser observados nos relatos de pesquisa de Hueara, Souza,Batista, Melgao e Tavares (2006) e Souza e Batista(2008), que descreve modos de brincar de crianas comdeficincia visual, como forma de construo de conhe-cimentos. Nestes estudos, ficou evidente que crianas

    rotuladas como incapazes e que apresentavam severasdificuldades escolares mostraram habilidades pouco de-tectadas em outros contextos. E, uma vez detectadas,mesmo que em incio de desenvolvimento, trazem evi-dncias sobre possveis aquisies dessas crianas.

    Para alm do foco na interao com adultos, Carvalhoe Beraldo (1989) apontam em seu trabalho o interessepelo estudo da interao entre pares. Para isso, propemuma concepo de infncia, na qual a criana compre-endida como um agente ativo de seu desenvolvimento,sujeito de suas aes, e que depende da relao com ooutro para a construo de conhecimentos. Nesta proposta,Carvalho e Pedrosa (2002), enfatizam a importncia darelao entre pares, no qual ocorre o compartilhamentode regras, que podem ser acatadas ou no pelos demaisparticipantes, elaborao de cdigos comunicativos, atri-buio de papis, principalmente durante as brincadei-ras, o que propicia a constituio de uma identidade, numarelao de igualdade. Nestas relaes, as prprias crian-as, ao apontar para o comportamento de seus colegas,propem regras de moral para regular as condutas so-ciais, e a criana pode apropriar-se da microcultura dogrupo, que compartilhada pelos parceiros. A partir doponto de vista scio-interacionista, as autoras afirmamque a constituio enquanto ser humano s possvel pelomodo de vida sociocultural, e reforam a tese anterior-mente apresentada, sobre a importncia das interaessociais na constituio do sujeito.

    Tendo em vista esta concepo de desenvolvimento queconsidera as interaes entre fatores biolgicos e ambien-tais, e que d nfase aos ltimos, pergunta-se: o modo e osentido do olhar influenciam esta interao entre biolo-gia e meio ambiente, constituindo novas articulaes, emcrianas que apresentam alteraes de origem orgnica,e que recebem prognsticos desfavorveis? Destaca-se,entre outros, crenas e atitudes relacionadas s habilida-des da criana e estratgias de interveno. Neste sen-tido, o presente trabalho se props a realizar um estudode caso (Ludke & Andr, 1986) de uma criana queapresentava problemas de origem orgnica e era alvo dequeixas constantes por parte da famlia e da escola. Entreas questes que motivaram a anlise, incluram-se a ca-racterizao das queixas em diferentes contextos, e apresena de diferentes competncias e habilidades des-ta criana, durante o perodo de trs anos de sua partici-pao nas atividades dos grupos de convivncia, em umcentro universitrio.

    Mtodo

    ParticipanteSofia (nome fictcio), filha nica, iniciou os atendimen-

    tos com oito anos e um ms, com diagnstico de vriosproblemas de origem orgnica e queixas constantes rela-tivas a seu comportamento, sem queixas de dificuldadesde aprendizagem. Dos relatrios de encaminhamento parao servio universitrio, constavam como principais diag-

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    Tsuji, E. M., Moyss, M. A. A. & Batista, C. G. (2011). Diferentes Olhares em Relao a uma Criana com Mltiplos Diagnsticos:Estabilidade ou Possibilidade de Mudana?

    nsticos: baixa viso por acromatopsia, ambliopia e altograu de hipermetropia (Oftalmologia); Diabetes tipo 1(Pediatria); e hiperatividade (Psiquiatria). Uma pessoacom baixa viso compreendida como:

    aquela que possui um comprometimento de seu fun-cionamento visual, mesmo aps tratamento e/oucorreo de erros refracionais comuns e tem uma acui-dade visual inferior a 20/60 (6/18, 0.3) at percepode luz ou campo visual inferior a 10 graus do seu pontode fixao mas que utiliza ou potencialmente capazde utilizar a viso para planejamento e execuo deuma tarefa. (World Health Organization, 1992).

    Sofia tambm era atendida em hospital universitriodesde os cinco anos de idade, e esses atendimentos conti-nuaram por pelo menos um ano aps o trmino do pero-do analisado no presente estudo.

    No incio de sua participao em grupo, foi feita ava-liao funcional da viso, e constatou-se que, com o usode culos, reconhecia figuras e letras a uma distncia pr-xima da mantida por crianas sem dificuldades oculares.Observou-se, tambm, que em tarefas de pareamento decartes coloridos, mostrava discriminao de cores.

    As queixas apresentadas pela me eram marcadas porinsatisfao e descrena em relao s possibilidades demudana no comportamento de sua filha. Ao longo doperodo de atendimento, colocava muita nfase nos diag-nsticos de Diabetes, baixa viso e hiperatividade, con-siderava sua filha como sendo rebelde e difcil de li-dar, e queixava-se de se sentir sobrecarregada. Recebiacom ceticismo os relatos sobre exemplos de aquisio oumudanas nos modos de participao de Sofia nas ativi-dades do grupo. A escola regular apresentava queixas emrelao a seu comportamento agressivo, principalmentecom os colegas, e a tinha encaminhado para atendimentoem sala de recursos para alunos com deficincia visual.Assim, as caractersticas de Sofia, destacadas pela fam-lia e escola, relacionavam-se ao comportamento agres-sivo com parceiros, e tambm, falta de ateno e inqui-etao durante as atividades.

    Contexto em que o Estudo foi RealizadoOs grupos de convivncia fazem parte de um servio

    universitrio voltado, entre outros objetivos, para a edu-cao e reabilitao de pessoas com deficincias senso-riais. Os atendimentos so semanais e com durao de 90minutos. As atividades so realizadas a partir de projetoscriados por profissionais envolvidos na rea (Batista &Laplane, 2007).

    Procedimento de Coleta e Anlise de DadosPara uma compreenso do quadro mdico de Sofia, foi

    realizado o levantamento do histrico de atendimentosocorridos no hospital universitrio, nas diversas especia-lidades mdicas, abrangendo um perodo de seis anos,desde o incio desses atendimentos (quando Sofia tinha 5anos) at um ano aps o trmino do perodo abrangido napresente anlise.

    No que se refere aos atendimentos em grupo, foramanalisados os relatos de todas as sesses, e foram sele-cionadas duas sesses por semestre, num total de dozesesses, como forma de exemplificar as anlises realiza-das. A anlise abrangeu o perodo de trs anos (descritosneste trabalho como ano 1, ano 2 e ano 3), relativos aotempo total da participao de Sofia, desde sua entradaat seu desligamento. Para a escolha das sesses foramlevados em considerao os perodos em que o grupoestava mais estabilizado, evitando-se os meses iniciaisdo ano letivo, quando o grupo estava em fase de consti-tuio e adaptao. A escolha atendeu, tambm, aos se-guintes critrios: duas sesses para cada semestre, noconsecutivas, e separadas por, no mximo, duas sesses,numeradas como: A e B-1 semestre; C e D- 2 semestre.Assim, foi possvel obter dois momentos da participaode Sofia por semestre, em circunstncias que permitis-sem a manuteno de alguma estabilidade no grupo e naspropostas em andamento e, ao mesmo tempo, permitindoa observao de certa variabilidade nos modos de parti-cipao de Sofia. Foram formuladas quatro tabelas: duasreferentes descrio dos aspectos relacionados s quei-xas iniciais, ou seja, modos de participao e interaodentro do grupo, e duas tabelas que se referem contrapo-sio de tais queixas. Foi, tambm, selecionado o recortede transcrio de uma das sesses, a fim de exemplificare analisar detalhadamente os aspectos mencionados.

    O projeto foi aprovado pelo Comit de tica da Fa-culdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadualde Campinas (FCM-Unicamp), e os pais das crianasparticipantes assinaram Termo de Consentimento Livree Esclarecido.

    Resultados

    Anlise de PronturiosA partir do levantamento do pronturio de Sofia no

    hospital universitrio, foram transcritas as anotaes fei-tas no campo hiptese diagnstica durante os seis anosde tratamento. Sofia recebeu atendimentos no setor degentica, pediatria, psiquiatria, oftalmologia e neurolo-gia, com registros das seguintes hipteses diagnsticas:Diabetes Mellitus tipo 1; Alterao no comportamen-to; Hiperatividade; Hipotireoidismo; Sndrome deDown ? (sic), Transtorno de ajustamento com sintomade conduta; Sndrome gentica; Sndrome deWolfran; Deficincia visual; Transtorno de condutasecundrio s limitaes fsicas; Transtorno emocionalna infncia no especificado.

    Alm disso, Sofia foi atendida em psicoterapia indivi-dual no setor de Psiquiatria Infantil, com durao de trsanos, coincidindo com o perodo de participao no gru-po de convivncia.

    Quanto a outros aspectos contidos no pronturio, des-tacam-se as constantes queixas da me, referentes salteraes no comportamento de Sofia, especialmenteaps ser diagnosticado o quadro de Diabetes e viso

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    subnormal. A me relatava agitao, comportamentosagressivos, falta de limites e solicitava ajuda para acal-mar sua filha, o que motivou, entre outras aes, oencaminhamento para terapia psicolgica. Em relaoao pronturio, verificou-se que ela recebeu cuidadosconstantes em relao aos problemas de origem orgni-ca, especialmente no controle do Diabetes Mellitus Tipo1 e do hipotireoidismo e, tambm, encaminhamentos paratratamento das queixas de carter psicolgico.

    Anlise da Participao nos GruposQuanto participao nos grupos de convivncia, foi

    possvel identificar tanto a presena de modos de atua-

    o que coincidiam com as queixas trazidas pela fam-lia e escola, como outras possibilidades de ao, mos-tradas por Sofia ao longo das atividades. As Tabelas 1 e2 referem-se caracterizao da participao de Sofiano grupo, com apresentao das queixas iniciais de faltade ateno e agitao (1), e de habilidades que se con-trapem s queixas iniciais (2).

    Na apresentao dos resultados, os participantes seroidentificados por um nome fictcio, no caso das crianas(cr), e pelo nome real no caso dos adultos (ad). Confor-me explicitado anteriormente, as sesses A e B se refe-rem ao 1 semestre, C e D, ao 2 semestre.

    Tabela 1Indicadores de Falta de Ateno e/ou Agitao Motora

    Descrio Geral Exemplos

    Ano 1- Movimentao corporal excessiva:muda posio da cadeira e sua prpriaposio continuamente.- Paralelamente ateno na tarefa,volta-se constantemente para objetose temas no relacionados ao contextoda atividade.

    A) (No observados).B) Paula (ad) - O que aconteceu a, gente? [refere-se ao filme que estsendo exibido].Gisela (cr) - Eles derrubaram o castelo.Sofia - . Olha meu sapato novo! [ergue o p para mostrar seu sapato].C) Enquanto adulto explica a proposta da atividade, Sofia cutuca Gisela (cr)e faz acusaes sem procedncia.Sofia - Ai Gisela! Pra!Gisela - Eu no fiz nada (o que constatado pelos adultos).D) Enquanto Micaela (ad) explica sobre o ensaio de pea a ser representadapelas crianas, Sofia comea a rodar em torno de si mesma e a dar risada.

    Ano 2- Continua com falas descontextuali-zadas, agitao corporal e ateno paraobjetos fora do contexto da atividade.Alguns comportamentos ficam maisevidentes que no ano anterior.- Tenta puxar conversas paralelas comos colegas e com os adultos, duranteas atividades.- Rejeita afirmaes dos adultos rela-tivas aos contedos apresentados (ex:localizao de um pas no mapa).

    A) Durante toda a atividade, se balana, d risada e nega as afirmaesfeitas pelo adulto. Cutuca o colega que est prestando ateno. Joga mate-rial bruscamente sobre a mesa.B) Durante jogo com tabuleiro Sofia brinca com fichas em sua mo, jogan-do-as para os lados. Quando elas caem junto ao tabuleiro, Sofia levanta otabuleiro, o que fez com que as peas j colocadas sasse do lugar.Ceclia (ad) - Sofia, no pode! [levanta e recoloca as fichas que estavamno tabuleiro].Sofia - A minha fichinha caiu.Ceclia - Ela caiu porque voc mexeu.C) Por vrias vezes, deita e levanta a cabea na mesa, segura e solta as mosdas coordenadoras. Interrompe a fala de colegas e de adultos bruscamente,com comentrios descontextualizados.D) Mexe-se constantemente na cadeira, debrua sobre a mesa, mexe nosobjetos que esto sobre a mesa.Durante apresentao de desenho animado,conversa com colega e pede ao adulto para terminar logo a atividadeproposta.

    Ano 3- Apresenta, com menos intensidade efreqncia, agitao corporal.- Verbaliza avisando que est cansada.

    A) (No observado).B) Inclina-se sobre a mesa, abaixa e levanta a cabea diversas vezes, massem chamar a ateno dos colegas.C) Deita-se sobre a mesa durante explicaes.Puxa o tabuleiro para si edescola as figuras usadas para explicao da atividade.D) Em tarefa de escrita, usa a borracha constantemente (sem necessidadereal), d risada alta, faz zombaria com parceiros.

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    Tsuji, E. M., Moyss, M. A. A. & Batista, C. G. (2011). Diferentes Olhares em Relao a uma Criana com Mltiplos Diagnsticos:Estabilidade ou Possibilidade de Mudana?

    Tabela 2Indicadores de Ateno e Participao de Acordo com a Atividade Proposta

    Descrio Geral Exemplos

    Ano 1- Responde de forma contextualizadas perguntas feitas pelos coordenado-res.- Relembra as atividades realizadasnas semanas anteriores.- Demonstra interesse pela atividadeproposta.

    A) Permanece sentada durante exibio do filme e responde s questesrelacionadas histria. Apresenta palpites sobre o desenrolar do enredo dodesenho.B) Responde corretamente s perguntas feitas pelo adulto, o que demonstraentendimento do enredo do desenho exibido.C) Participa de forma pertinente na atividade de criao de histrias ecolagem.D) Pede orientao para as falas de uma encenao, que seria apresentadopelas crianas do grupo no final do ano, e as reproduz adequadamente.

    Ano 2- Alm de responder de formacontextualizada e relembrar as ativi-dades realizadas anteriormente, fazquestes pertinentes aos temas e ati-vidades propostos.

    A) Durante explicao sobre meios de transporte, apresenta algumas falascontextualizadas e responde s questes lanadas pelos adultos. Participada montagem de maquete (cidade).B) Manuseia cartela e fichas de acordo com a tarefa proposta, durante partedo tempo (mantm alguma agitao durante toda a atividade).C) Lembra as atividades realizadas na semana anterior. Responde corre-tamente quando solicitadaD) Tenta explicar sobre o funcionamento do trem, e faz comentrios per-tinentes.

    Ano 3A participao se mantm e envolveos seguintes progressos:- Relaciona contedo discutido comexperincias do cotidiano.- Demonstra interesse e iniciativa nasatividades.

    A) Relaciona o tema sistema circulatrio com sua experincia de coleta desangue para exames peridicos.B) Carol (ad) - Voc lembra por que o sangue fica circulando pelo nossocorpo? O que faz o sangue circular no corpo?Sofia - A batida do corao.C) L e responde as perguntas propostas na atividade.D) Adriana (ad) sugere mudar a atividade e Sofia pede para esperar, j queno havia terminado de escrever o que havia sido solicitado anteriormente.

    Analisando-se a Tabela 1, constatou-se que Sofiaapresentava, em vrios momentos, modos de agir quecoincidem com sinais de hiperatividade. Suas aeseram entremeadas por manifestaes de inquietao eagitao motora, tais como chamar a ateno do co-lega com gritos ou chutes, dirigir-se ao adulto comtemas fora da proposta em curso e fazer uso no con-vencional de objetos, como tamborilar o lpis repeti-damente ou usar a caneta para cutucar o colega. Emcontraposio, na Tabela 2 podem-se observar momen-tos em que Sofia mostrava interesse pelas atividades,relembrava atividades anteriores, fazia perguntas per-tinentes, relacionava contedo de discusso com ex-perincias de seu cotidiano e permanecia parte do tem-po sem apresentar agitao corporal. Cabe ressaltar quetais observaes, tanto referentes s Tabelas 1 como 2descrevem variaes das aes de Sofia em um mes-mo atendimento, que ocorriam independentemente danatureza do projeto aplicado ou atividade proposta. Apartir da anlise dos relatos e exame dos vdeos, pode-

    se afirmar que esses comportamentos no estavamrelacionados a problemas de compreenso do que erasolicitado, mas parecia ser um modo de se contraporao que o grupo fazia, pois, ao longo da atividade, So-fia apresentava outras aes que indicavam sua com-preenso e envolvimento nas tarefas propostas, comopode ser observado na Tabela 2.

    Em relao s queixas de comportamentos agressi-vos relacionados aos parceiros, a Tabela 3 descreve asobservaes desses comportamentos e a 4 compostapela descrio de comportamentos cooperativos comos colegas.

    A partir das tabelas apresentadas, pode-se notar a pre-sena de comportamentos que podem ser relacionadas squeixas de agitao, falta de concentrao e agressividaderelacionadas aos parceiros, tanto no mbito verbal comono fsico. No entanto, quando analisados detalhadamente,podem ser observados tambm comportamentos que secontrapem a tais queixas, como interaes com parcei-ros sem qualquer tipo de agresso, com aes solcitas,

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    na qual cedia sua vez, assim como negociava o compar-tilhamento de brinquedos e materiais. possvel perce-ber que as mudanas nos modos de participao de Sofiano grupo ocorreram de forma gradativa, com avanos eretrocessos. Embora as queixas iniciais continuassem,optou-se como estratgia de grupo, por dar maior aten-o s melhoras no comportamento de Sofia, que passa-ram a ser mais freqentes e com maior destaque, o quelhe possibilitou construir uma imagem diferente de simesma.

    A seguir ser descrito um episdio, ocorrido no ano 2,a fim de permitir a visualizao mais detalhada da parti-cipao de Sofia no grupo.

    Episdio 1- Copa do Mundo. Descrio: Este episdio parte de uma das sesses referentes ao projeto de pes-quisa sobre formao de conceitos, que teve como obje-

    tivo descrever e analisar esse processo a partir de idiasrelacionadas ao tema meios de transporte.

    Crianas presentes: Edith, Eduardo, Guilherme, Giselae Sofia. Todas as crianas tinham diagnstico de baixaviso, exceto Eduardo, que era cego.

    Contexto: A atividade proposta foi um jogo, que con-sistiu em localizar no mapa, adaptado a alunos com defi-cincia visual, os pases que participariam da Copa doMundo. Aps Sofia ter colocado sua ficha na Holanda, acoordenadora pergunta ao grupo sobre meios de trans-porte para ir da Holanda para a Alemanha.

    Sofia - Ir de avio.Eduardo (cr) - Pode ir de navio.Ceclia (coordenadora) - De navio? Mas encostado,um pertinho do outro. E no tem mar entre um pas eoutro.

    Tabela 3Agressividade em Relao a Parceiros

    Descrio Geral Exemplos

    Ano 1- Apresenta comportamentos com-petitivos.- Demonstra interesse pelos objetosque esto em posse do colega.- Faz provocaes.- Responde de forma agressiva aocolega.

    A) Gisela (cr) - Quer ver o porquinho? Olha ele aqui!Sofia - Eu que gosto do porquinho.Gisela - Eu que gosto do porquinho porque ele meu amiguinho, t?Sofia - Eu que gosto!Gisela - Eu!B) Sofia - A Gisela no sabe fazer... haha. Gisela, voc no sabe fazer oarco-ris.C) Gisela (cr) cria uma histria e tenta interagir com Sofia.Gisela - Ah! A Sofia tem que perguntar. Ela no sabe quem ele... [refere-se ao personagem criado por Gisela].Sofia - Mas eu no tenho que perguntar nada! E bosta nenhuma!D) Sofia - meu esse carro! [fala enquanto disputa brinquedo com Gisela].Adulto: explica que os brinquedos so para todos, no sendo posse de nin-gum em particular.

    Ano 2- Continua apresentando comporta-mentos competitivos: mantm as pro-vocaes e responde de forma agres-siva.- Retira bruscamente os objetos queesto com os colegas.- Apresenta comportamentos agressi-vos (jogar material, chutar colega)

    A) Enquanto grupo conversa, Sofia chuta a colega sob a mesa. Grita comGuilherme (cr), acusando-o de a estar provocando (falas sem veracidade).Fala que o desenho de Edith (cr) est horroroso. Joga material do colegano cho.B) Sofia levanta de sua cadeira e por cima da mesa estica seu brao e bateno brao de Edith (cr), que est sentada na sua frente. Com tom de vozbaixo as duas colegas comeam a discutir.C) Sofia demonstra interesse pelo material dos parceiros e tira bruscamentedas mos dos colegas as figuras utilizadas durante a atividade.D) (No observado).

    Ano 3- Mantm comportamentos provoca-tivos, com menor freqncia e inten-sidade.

    A) (No observado).B) (No observado).C) Impaciente com a leitura de Gisela, comenta:Sofia - A Gisela l muito devagar!Luciana (ad) - Tem que ter pacincia, Sofia. Cada um tem seu ritmo.D) Sofia - (referindo-se escrita da colega) T louco Gisela! Voc fezmaior garrancho tambm!

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    Tsuji, E. M., Moyss, M. A. A. & Batista, C. G. (2011). Diferentes Olhares em Relao a uma Criana com Mltiplos Diagnsticos:Estabilidade ou Possibilidade de Mudana?

    Sofia - Pode ir de carro.Ceclia - Pode ir de carro [olha para Sofia, e fala emtom de aprovao].Sofia - Pode ir de nibusCeclia - Isso mesmo, Sofia! Pode ir de nibus.

    Conversa continua com os alunos conversando sobreos meios de transportes utilizados. Eduardo comenta queacha perigoso usar a bicicleta como meio de transporte.

    Ceclia- Mas acontece que na Holanda, nas estradastm uma pista...Sofia - Que pas esse? [interrompendo a fala de Cecliabruscamente. Fala em voz alta, com tom de manha,deitando-se sobre a mesa e batendo sobre o mapa].Ceclia- Sofia! Ns estamos conversando [usa tommais severo enquanto se dirige a Sofia e retoma a con-versa sobre ciclovia com o grupo].Sofia - [continua inquieta e faz pergunta dirigindo colega que est sentada a sua frente]. - Que Edith

    Tabela 4Cooperao em Relao a Parceiros

    Descrio Geral Exemplos

    Ano 2- Em vrias ocasies, a interao como colega ocorre de forma respeitosa.- Em vrias ocasies, ajuda o parcei-ro.-Participa das atividades propostas econversas em grupo.

    Ano 1- Interage com colega e sugere trocade brinquedos.- Pede brinquedo aos colegas e esperasua vez para us-lo.- Cede espao para colegas.

    A) Senta-se prxima de Jlia (cr), e faz algumas trocas de brinquedos entreelas.B) (No observado).C) Aps contar o que fez no final de semana, sugere que Gisela (cr) tambmfale, passando a vez para a colega.D) Negocia o compartilhamento de um brinquedo.

    A) Interage com Ernesto (cr), desafiando-o a responder a uma questo desoma. Com dicas do adulto, ajuda o colega a responder.B) Durante parte do atendimento, interage com o grupo durante conversasobre meio de transporte, faz comentrios pertinentes e participa do jogo detabuleiro.C) Interage com a colega durante brincadeira com msica. Pergunta sobre afaixa da msica que iriam escutar e sobre a adequao do volume do rdio.D) Durante exibio de filme, Sofia une sua cadeira com a de Gisela (cr) esinaliza para Jlia (cr) sentar-se prxima a elas, em frente televiso.

    Ano 3- Em dilogos em que assume o papelde quem sabe, apresenta informaessolicitadas, sem criticar colegas.- Muitas vezes, participa das ativida-des de forma cooperativa: respeita tur-nos e colabora com as atividades emgrupo.-A disputa de material tende a se re-solver mais rapidamente, com maisconcesses aos colegas.

    A) Explicando exame de sangue:Gisela (cr) - E depois? Ai depois o que acontece com o sangue, Sofia?Depois o sangue vai para onde?Sofia - Ai eles colhem assim... pe num vidrinho assim e manda l prolaboratrio...B) Em jogo de tabuleiro, Sofia respeita o turno proposto e faz comentriospertinentes.C) Participa do jogo de forma colaborativa. Enquanto os colegas lem oscartes relativos ao tema sistema solar, Sofia mantm-se prxima e aguardaa leitura, embora tenha reclamado sobre o tempo que Gisela (cr) demorapara ler.D) Sofia e Gisela (cr) disputam o Globo terrestre, material utilizado na ati-vidade. Sofia aceita o turno proposto pelo adulto, para que todos possammexer no objeto.

    essa? [fala em voz alta, com tom de manha e apon-tando a colega].

    Grupo permanece no dilogo anterior, independente-mente da interveno de Sofia.

    Este trecho explicita alguns modos de participao daSofia no grupo. Sofia mantm a concentrao no incioda atividade: escolhe o pas no qual quer colocar sua fi-cha e participa da conversa, respondendo corretamentes questes feitas ao grupo. Recebe aprovao do adulto.Aps alguns minutos, Sofia interrompe bruscamente a falada coordenadora com uma pergunta fora do fluxo da dis-cusso, e em tom de zombaria. O adulto sinaliza desa-provao e em seguida retoma a discusso. Depois dealgum tempo, Sofia retoma a zombaria, mudando o con-tedo da frase e o grupo mantm a ateno no tema daconversa.

    Ao analisar a sesso completa, observou-se que, ini-cialmente, Sofia indicou sinais de inquietao e agres-

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    sividade: derrubou o tabuleiro ao brincar com suas fi-chas, interferindo na dinmica da atividade, e respondeuagressivamente a um comentrio de Eduardo, que haviaaprovado a censura feita a ela pelo adulto. Ao longo dasesso, intercalou participaes pertinentes, incluindorespostas corretas relativas atividade do mapa-mndi,com manifestaes agressivas e de inquietao, comomexer nos materiais dos colegas, rir alto, falar de formadebochada ou em tom de manha e fazer trocadilhos pejo-rativos com as palavras mencionadas pelos adultos. Nes-sa sesso, semelhante a outras sesses, os adultos busca-ram assinalar como erradas as aes inapropriadas deSofia, ao mesmo tempo em que indicavam a aprovao aaes pertinentes. A participao em atividades em gru-po permite que seus membros se expressem, ora com acer-tos, ora com erros, e o espao oferecido incentivava to-das as crianas a falarem. O prprio grupo sinalizava suasdinmicas e suas regras, o que permitia a indicao doincmodo frente postura da colega dentro do grupo.Baseada na idia proposta por Vygotsky (1991), sobre aimportncia das interaes sociais para o desenvolvimentoe do cuidado da rede social para no deixar-se paralisardiante de uma deficincia, foi proposta uma situao emque todos tinham condies para participar e era exigidode cada um, conhecimentos e atitudes que assegurassema continuidade do trabalho.

    Em termos de caracterizao das queixas, a observa-o constante de Sofia no grupo indicou que no se tratade modos de ao caracterizveis de forma unvoca. Hou-ve alternao entre formas de participao, que variavamdesde apresentao de sinais de agitao e agressividade,at exemplos de participaes pertinentes, com uma tendn-cia de mais instncias de cooperao e envolvimento coma tarefa, principalmente no ltimo ano de atendimento.

    Discusso e Concluso

    Os dados coletados indicaram uma criana que recebiaqueixas freqentes de seu meio de convivncia familiar eescolar, agravados aps a confirmao do diagnstico daDiabetes e baixa viso. As verbalizaes da me indica-vam descrena nas possibilidades de melhora no desen-volvimento da filha, e os relatos sobre a criana sempreconsistiam em falas queixosas, que indicavam os com-portamentos inadequados e incmodos. As diversas limi-taes apontadas pela rede social, da qual Sofia partici-pava, reforavam caractersticas pr-definidas, e com isso,cada vez mais, ela se colocava e at se descrevia comouma criana difcil de lidar. Essa tendncia era confirma-da pelos discursos apresentados pela escola e pelo cons-tante acrscimo, nos pronturios mdicos, dos relatos deproblemas de comportamento, apresentados pela me.Esses relatos estavam presentes em grande parte das con-sultas, de todas as especialidades, e eram independentesdo fato de que Sofia tinha sido encaminhada para atendi-mento no setor de Psiquiatria Infantil.

    Ao considerar o vnculo afetivo como aspecto funda-mental no processo de socializao, que possibilita a iden-tificao de valores, condutas e normas vinculadas figu-ra de apego, pode-se questionar como este processo foivivido por Sofia diante de diversas queixas advindas desua rede social. Conforme reiterado na literatura, crenase atitudes negativas afetam o desenvolvimento da auto-estima, e essa era a experincia diria de Sofia. A partirdas consideraes de Palacios e Hidalgo (1993) sobre auto-conceito e auto-estima, pode-se observar que, neste caso,as interaes sociais e experincias eram marcadas pelaagitao e agressividade. Com isso, criou-se um crculovicioso, no qual as aes agressivas de Sofia influencia-vam no modo como a rede se envolvia com ela e, destaforma, a reao de Sofia continuava atrelada a esse ciclo.

    Por outro lado, no grupo, buscou-se oferecer um espa-o em que as habilidades fossem incentivadas, e em queos modos de participao transcendessem as limitaesbiolgicas compartilhadas entre as crianas (Batista &Laplane, 2007). Diversas aes foram propostas para in-tervir na forma como Sofia lidava com o outro e consigomesma, a fim de promover as interaes sociais e a par-ticipao de Sofia nas atividades propostas. A sinalizaodo adulto era centrada na ao em si, e tinha curta dura-o, evitando-se assim, uma censura generalizada crian-a, o que poderia contribuir para a reduo da auto-estima.Os adultos optaram por no enfatizar as queixas trazidaspelos prognsticos negativos, e sim valorizar as habilida-des da criana. Para isso, incentivavam a participao deSofia nas atividades, acreditavam em suas possibilidadese estabeleciam os limites para o funcionamento do gru-po. Essa forma de atuao estava em consonncia com ascolocaes de Palacios e Hidalgo (1993), segundo as quaisas experincias de sucesso, neste caso, as confirmaesde acertos, pelos adultos, constituem um dos fatores quepromove a auto-estima. Nesses atendimentos grupais, asaes das crianas tambm colaboraram para seu fun-cionamento, o que pde ser observado, por exemplo, noscasos em que havia discordncia quanto ao comparti-lhamento de material, respeito e ajuda ao parceiro. V-rios participantes censuraram Sofia pelas aes agressi-vas, o que parece ter contribudo para uma mudana, nadireo de uma participao mais colaborativa no grupo.Se, inicialmente, ela tinha como recursos para chamar aateno dos colegas o uso de gritos, tapas e deboches,aos poucos seu modo de interao foi ampliado. Sofiadeixou de ser vista como uma criana constantemente agi-tada e agressiva, e em muitos momentos, passou a serincorporada ao grupo como uma criana cooperativa, quetrazia informaes e contribua para as atividades. Essasobservaes esto de acordo com as colocaes de Car-valho e Beraldo (1989) sobre a importncia da interaoentre crianas, que, no caso, incluiu a prpria regulaodos modos de participao em grupo. interessante no-tar que Sofia, embora no incio tivesse manifestaes emque parecia desconsiderar os parceiros, passou a mostrar

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    Tsuji, E. M., Moyss, M. A. A. & Batista, C. G. (2011). Diferentes Olhares em Relao a uma Criana com Mltiplos Diagnsticos:Estabilidade ou Possibilidade de Mudana?

    que valorizava a aceitao e a insero no grupo, assimcomo o olhar do adulto para suas aes.

    Diante destas observaes, possvel relacionar taismudanas com as colocaes de Vygotsky (1991) sobreo impulso para o desenvolvimento, presente em todas ascrianas. No caso de Sofia, havia uma tendncia desva-lorizao, que dificultava, ou trazia distores manifes-tao desse impulso. A introduo de Sofia na propostados grupos buscava uma quebra nessa rotina de queixas,e significou a proposio de novas formas de mediao,para o processo de seu desenvolvimento. As falas e aesdos adultos e dos parceiros, em suas diversas modalida-des (encorajamento, elogio, censura), sempre de formarespeitosa, pareceram contribuir para as mudanas emseus modos de participao. Essas mudanas estavam namesma direo dos trabalhos anteriormente citados(Hueara et al., 2006; Kassar, 1995; Souza & Batista, 2008)sobre a importncia de redefinir o potencial de pessoasvistas como incapazes.

    Neste caso, nota-se que Sofia era vista como umacriana sem perspectivas de mudanas, e embora tenhamsido realizadas diversas tentativas de mostrar melhorasem seu comportamento, especialmente para sua me, estainsistia em olhar para a filha com descontentamento edescrena. Embora a proposta deste trabalho no fosseanalisar possveis motivaes para as atitudes da me deSofia, foram obtidos vrios indicadores de que sua insa-tisfao frente filha dificultava uma mudana na auto-estima de Sofia. Cabe enfatizar que o servio universi-trio oferecia, tambm, orientao aos pais, e que a meparticipou desses atendimentos.

    Neste caso, observou-se que Sofia era submetida a di-ferentes olhares pela sua rede social, que inclua famlia,escola e profissionais da sade. importante que se re-flita sobre os papis e espaos atribudos criana, paraque ela no seja inserida em um crculo vicioso, baseadona reproduo e manuteno de crenas acerca dela. Esseolhar, desconectado das idias pr-concebidas, deve serainda mais atento quando se trata de uma criana commltiplos diagnsticos, para que as aes frente crianano sejam limitadas pelas barreiras atitudinais, comomencionado por Amaral (1996) e Kassar (1995).

    Ao considerar o desenvolvimento como um processoque vai alm do mbito biolgico, pois envolve a co-ocor-rncia de aspectos orgnicos e ambientais, torna-se pos-svel observar a presena de diferentes competncias ehabilidades, principalmente quando se est atento aosaspectos ambientais envolvidos nesse processo. im-portante ressaltar a importncia da percepo do outropara a construo da identidade da criana, pois a partirdestes olhares que se poder conduzi-la estabilidade ou possibilidade de mudana.

    Referncias

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    1 reviso: 16/09/20102 reviso: 23/09/2010

    Aceite final: 30/09/2010