autor: p. b. kerr. · quais um homem desprevenido ou um camelo poderiam facilmente cair. ... era...

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Autor: P. B. Kerr. Título: A Aventura De Akhenaton. Editor: Difel, 2004. Título original: The Akhenaton Adventure. Género: Juvenil. Digitalização e Correcção: Dores Cunha. Nota: A numeração da página surge no rodapé. Estado da obra: Corrigida. Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. Os Filhos da lâmpada A Aventura De Akhenaton. Tradução de Fernando Ferreira Alves Difel Este livro foi escrito para, e com a ajuda de, IKilliam Falcon Finlay Kerr, Charles Foster Kerr, e Naomi Rose Kerr, todos de London SidJI. Que sejam semprefelizes. Título original: The Akhenaten Adventure Copyright 2004, P. B. Kerr Revisão Tipográfica: Maria de Fátima St. Aubyn Impressão e acabamento: Tilgrafica, Braga Depósito Legal nº 17528/04 ISBN 972-29-0721-2/Novembro 2004 Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização do Editor PRÓLOGO Passavam poucos minutos do meio-dia num dia quente de Verão, no Egipto. Hussein Husseiout, o filho de onze anos, Baksheesh, e Effendi, o cão de ambos, estavam acampados no deserto, trinta quilómetros a sul do Cairo. Como era habitual, estavam a escavar, ilegalmente, à procura de artefactos históricos que pudessem vender na sua loja. Nada se movia no deserto excepto uma cobra, um bosteiro, um pequeno escorpião e, ao longe, um burro que puxava uma carroça de madeira carregada de folhas de palma por um caminho íngreme de terra batida. Tudo o resto era solidão e uma quietude ardente, e o visitante ocasional mal poderia imaginar que aquela encosta deserta de pedra e areia fazia parte do maior local de escavações arqueológicas do Egipto, e que uma fortuna incalculável de monumentos e tesouros se escondia ainda sob aquele terreno árido. Baksheesh gostava de ajudar o pai a encontrar coisas no deserto. Porém, estava muito calor e, de cinco em cinco minutos, Baksheesh ou o pai pousavam a pá e voltavam ao Land Rover para beberem água e passarem alguns minutos 7 a refrescarem-se com o ar condicionado do carro, antes de voltarem para a escavação. O trabalho também era perigoso, pois, para além das cobras e dos escorpiões, aquela área estava cheia de buracos profundos, nos quais um homem desprevenido ou um camelo poderiam facilmente cair. Tinha sido uma boa manhã de trabalho: até então, tinham encontrado várias estatuetas Ushebti ancestrais, um par de peças de cerâmica

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Page 1: Autor: P. B. Kerr. · quais um homem desprevenido ou um camelo poderiam facilmente cair. ... era uma mulher muito bonita e fazia muitas obras ... dizer que era esperta e bonita; numa

Autor: P. B. Kerr.Título: A Aventura De Akhenaton.Editor: Difel, 2004.Título original: The Akhenaton Adventure.Género: Juvenil.Digitalização e Correcção: Dores Cunha.Nota: A numeração da página surge no rodapé.Estado da obra: Corrigida.Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

Os Filhos da lâmpadaA Aventura De Akhenaton.Tradução de Fernando Ferreira AlvesDifel

Este livro foi escrito para, e com a ajuda de,IKilliam Falcon Finlay Kerr, Charles Foster Kerr, e Naomi Rose Kerr, todos de London SidJI.Que sejam semprefelizes.Título original: The Akhenaten AdventureCopyright 2004, P. B. KerrRevisão Tipográfica: Maria de Fátima St. Aubyn Impressão e acabamento: Tilgrafica, BragaDepósito Legal nº 17528/04ISBN 972-29-0721-2/Novembro 2004Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização do Editor

PRÓLOGOPassavam poucos minutos do meio-dia num dia quente de Verão, no Egipto. Hussein Husseiout, o filho de onze anos, Baksheesh, e Effendi, o cão de ambos, estavam acampados no deserto, trinta quilómetros a sul do Cairo. Como era habitual, estavam a escavar, ilegalmente, à procura de artefactos históricos que pudessem vender na sua loja. Nada se movia no deserto excepto uma cobra, um bosteiro, um pequeno escorpião e, ao longe, um burro que puxava uma carroça de madeira carregada de folhas de palma por um caminho íngreme de terra batida. Tudo o resto era solidão e uma quietude ardente, e o visitante ocasional mal poderia imaginar que aquela encosta deserta de pedra e areia fazia parte do maior local de escavações arqueológicas do Egipto, e que uma fortuna incalculável de monumentos e tesouros se escondia ainda sob aquele terreno árido.Baksheesh gostava de ajudar o pai a encontrar coisas no deserto. Porém, estava muito calor e, de cinco em cinco minutos, Baksheesh ou o pai pousavam a pá e voltavam ao Land Rover para beberem água e passarem alguns minutos7a refrescarem-se com o ar condicionado do carro, antes de voltarem para a escavação. O trabalho também era perigoso, pois, para além das cobras e dos escorpiões, aquela área estava cheia de buracos profundos, nos quais um homem desprevenido ou um camelo poderiam facilmente cair.

Tinha sido uma boa manhã de trabalho: até então, tinham encontrado várias estatuetas Ushebti ancestrais, um par de peças de cerâmica

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partidas e um pequeno brinco de ouro. Baksheesh estava muito contente, pois tinha sido ele a desenterrar o brinco de ouro, que o pai dizia ser muito valioso; com os raios do sol quente do deserto, o anel tinha ardido como um círculo de fogo nos dedos sujos de Hussein.- Vai almoçar, rapaz - disse ele. - Já o mereces. No entanto, o próprio Hussein continuava a escavar, na esperança de encontrar mais artefactos enterrados.- Sim, pai.Baksheesh voltou ao Land Rover, seguido de perto por Effendi, que esperava conseguir alguma coisa para comer, e deixou cair a porta da caixa de carga. O rapaz ia pegar na lancheira quando, de súbito, o Land Rover se moveu. Pensando que talvez o travão de mão não estivesse bem seguro, Baksheesh correu rapidamente até à porta do condutor, com a intenção de saltar lá para dentro e travar melhor o veículo; porém, quando tentou agarrar a maçaneta da porta, esta fugiu-lhe da mão. Alguns momentos mais tarde, Baksheesh sentiu um abalo terrível sob os pés, como se um qualquer gigante subterrâneo tivesse socado8o tecto rochoso que o cobria e, olhando para baixo, viu que o solo parecia rolar sob os seus pés em ondas que percorriam todo o comprimento do vale. Perdendo o equilíbrio, o rapaz caiu contra o carro, feriu ligeiramenteo cotovelo e depois gritou, enquanto um segundo e mais violento abalo se seguia rapidamente ao outro.Baksheesh voltou a levantar-se a custo e tentou equilibrar-se, o que se tornou mais fácil quando parou de olhar para o solo e, em vez disso, Fixou o olhar na parede da escarpa. A quatrocentos metros de distância, a escarpa era um sítio que ele e o pai conheciam bem, pois tinham trabalhado ali muitas vezes. Porém, ali, mesmo diante dos seus olhos, uma face inteira da mesma cedeu e caiu no solo tremeluzente do deserto, formando um grande arco de pó, rocha, pedras e areia.Baksheesh sentou-se abruptamente, tentando, a custo, evitar uma nova queda. O rapaz nunca tinha presenciado um terramoto e, no entanto, sentia que aquele movimento assustador do solo não podia ser tomado por outra coisa. O seu pai, pelo contrário, parecia mais encantado do que assustado e começou a rir-se histericamente enquanto tentava, sem sucesso, voltar a levantar-se.- Finalmente - gritou - finalmente - aparentemente convencido de que o terramoto o iria beneficiar.Os abalos tornaram-se cada vez mais violentos e os tremores misturavam-se com alguns sacões verticais, como se a natureza pretendesse confundir Hussein Husseiout, que tentava agora manter-se direito, fingindo que caminhava9sobre o convés de um navio durante uma tempestade. Face a um Baksheesh espantado, parecia que o seu pai tinha enlouquecido de vez.- Dez anos - gritou Hussein bem alto, sobrepondo-se ao rugido trovejante do solo. - Esperei dez anos por isto.Para espanto de Baksheesh, a boa disposição do pai não dava sinais de esmorecer, nem mesmo quando uma elevação explosiva de terra e rocha levantou o Land Rover dois metros acima da sua cabeça, fazendo capotar o veículo.

- Pai, pare! - gritou o rapaz, agarrando em Effendi, que latia e tremia de medo. - O pai está louco. Pare, por favor, senão vai morrer.Na verdade, e enquanto procurava equilibrar-se no solo vacilante, Hussein Husseiout corria tanto perigo como o seu filho e o cão, que

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estavam agarrados ao chão; mas o rapaz sentiu que havia algo de irreverente no comportamento do pai, como se os espíritos da terra pudessem ver uma falta de respeito na boa disposição e no comportamento aparentemente destemido daquele homem e, consequentemente, os destruíssem aos três.E então, tão repentinamente como tinham começado, os estrondos subterrâneos desvaneceram-se, o movimento aterrador acabou, o pó e a areia assentaram, a quietude ardente regressou e tudo voltou a acalmar, tudo excepto Hussein Husseiout.- Não é maravilhoso? - gritou, e só então, quando o solo tinha finalmente parado de se mover, é que ele se pôs de joelhos e, ainda sorrindo como um louco, juntou as mãos como se estivesse a rezar.10O

LUgAR MAIS QUENTE DA TERRABaksheesh voltou-se para olhar para o Land Rover capotado, e abanou a cabeça. - Parece que vamos ter de caminhar até à estrada e pedir ajuda - disse o rapaz. Sinceramente, não vejo o que é que isso tem de tão maravilhoso.- Não, é mesmo maravilhoso - insistiu o pai, erguendo um pedaço de pedra pouco mais pequeno que um CD.- Olha. Eu vi-o assim que a terra começou a tremer. Durante milhares de anos, o vento e a areia têm sido os guardiães do tesouro dos Faraós. Mas, de vez em quando, a terra treme e o que outrora estava enterrado pode então ser visto.Para Baksheesh, a pedra teria tudo menos o aspecto de um tesouro e, na verdade, qualquer outra pessoa teria provavelmente ignorado o pedaço quadrado de pedra basáltica macia, cinzenta e coberta de sulcos cinzelados que Hussein ergueu para lhe mostrar; mas Hussein tinha visto imediatamente o que era: uma estela egípcia.- É uma placa de pedra sobre a qual está gravada uma inscrição ancestral na escrita hieroglífica da Décima Oitava Dinastia - explicou o pai do rapaz. - Se esta pedra for o que penso que é, então descobrimos a chave que nos ajudará a decifrar um mistério que dura há milhares de anos. Este pode muito bem vir a ser o dia mais grandioso das nossas vidas. Um homem como eu espera uma vida inteira por uma oportunidade como esta. Por isso é que é tão maravilhoso, meu filho. Por isso é que estou tão feliz.11OS NOMES DOS CÃES O Sr. e a Sra. Edward Gaunt viviam em Nova Iorque, no número 7 da East 77th Street, numa velha casa citadina de sete andares. Tinham dois filhos, John e Philippa, que, apesar de serem dois gémeos de doze anos, eram os gémeos menos parecidos que se poderia imaginar (o que os deixava bastante aliviados e satisfeitos). As pessoas até tinham dificuldade em acreditar que eram gémeos, por serem tão diferentes. John, dez minutos mais velho, era alto e magro, tinha o cabelo castanho e liso e gostava de se vestir de preto. Philippa era mais pequena e tinha o cabelo ruivo e ondulado e uns óculos com armação de osso que a faziam parecer a mais inteligente dos dois; ela gostava de se vestir de cor-de-rosa. Ambos tinham um pouco de pena dos gémeos verdadeiros e acreditavam que tinham tido sorte, embora fosse aborrecido, sobretudo quando as pessoas faziam comentários sobre como eram diferentes, como se nunca ninguém tivesse reparado nisso antes.Contudo, nas suas cabeças a história era bem diferente. John e Philippa tinham muitas vezes as mesmas ideias.

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12Às vezes, na escola, quando o professor fazia uma pergunta, ambos punham a mão no ar para responderem precisamente ao mesmo tempo.Quando viam concursos televisivos respondiam às perguntas em uníssono, e era impossível batê-los no Pictionary quando jogavam em equipa.

O pai deles, o Sr. Gaunt, era banqueiro, o que é, outro modo de dizer que era rico. A Sra. Gaunt, mais conhecida na sociedade nova-iorquina como Layla, era uma mulher muito bonita e fazia muitas obras de caridade, para as quais era sempre muito solicitada, pois tudo aquilo em que se envolvia tinha sucesso. Dava muitos jantares, a conversa dela brilhava como um candelabro de cristal e irradiava charme, o que quer dizer que era esperta e bonita; numa palavra, a combinação perfeita.No entanto, era inegável que o Sr. e a Sra. Edward Gaunt formavam um casal inverosímil, quase tão inverosímil como a ideia de os seus filhos poderem ser gémeos. Layla, com o seu cabelo negro e o magnífico físico de uma atleta, tinha mais de um metro e oitenta descalça, enquanto o seu marido, Edward, mal chegava ao metro e cinquenta com os seus sapatos Berluti, tinha o cabelo grisalho e um pouco comprido e usava óculos escuros. As pessoas reparavam em Layla quando ela entrava numa sala; mas raramente reparavam em Edward que, felizmente, preferia que assim fosse, sendo um homem tímido e reservado que se contentava em deixar a sua mulher e a casa de 77th Street ocuparem as luzes da ribalta.13A casa dos Gaunt, no Upper East Side de Nova Iorque, parecia mais um templo do que um lar e aparecia frequentemente em todo o tipo de revistas cor-de-rosa. A porta da frente estava protegida por um enorme portão de ferro forjado e todas as paredes da casa tinham requintados painéis de mogno.Havia muitas e belas pinturas francesas, móveis ingleses antigos, tapetes persas raros e jarrões chineses de elevado valor. Às vezes, Philippa dizia que achava que os pais se preocupavam mais com a mobília do que com os filhos; mas ela sabia que isso não era verdade, e dizia-o apenas para dar nas vistas, tal como o seu irmão gémeo John gostava de dizer que o número 7 parecia mais uma galeria de arte do que uma casa adequada a alojar duas crianças de doze anos. Quando John dizia isto, o que normalmente acontecia sempre que o Sr. Gaunt chegava a casa com mais um quadro velho e desinteressante, o Sr. Gaunt ria-se e dizia ao filho que se o número 7 fosse uma galeria de arte certamente não permitiria ali cães, mesmo os dois cães que os Gaunt tinham como animais de estimação.Alan e Neil eram dois grandes rottweilers e eram animais espantosos, quanto mais não fosse por parecerem entender tudo o que se Lhes dizia. Uma vez, John, demasiado preguiçoso para se levantar e procurar o comando à distância da televisão, ordenara a Alan que mudasse o canal e, para surpresa sua, a verdade é que Alan tinha executado o seu pedido. Neil não era menos inteligente que Alan e ambos os cães sabiam qual era a diferença entre o Fox Kids, o Disney Channel, a Nickelodeon e a cNN.14Os dois cães acompanhavam muitas vezes os dois gémeos nas suas viagens por Nova Iorque e John e Philippa eramprovavelmente as únicas duas crianças da cidade que se sentiam suficientemente seguras para andarem no Central Park à noite.Porém, o facto de dois cães tão inteligentes terem nomes tão vulgares era motivo de grande irritação para John.

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- Os primeiros rottweiler. foram criados pelos antigos Romanos - queixou-se ele aos pais numa manhã ao pequeno- almoço, perto do início das férias de Verão. - Como cães de guarda. São praticamente os únicos animais de estimação que vêm com um alerta sanitário do governo. Quando mordem, exercem uma pressão maior do que a de qualquer outro cão, com a possível excepção daquele outro, com três cabeças, que guarda o Hades.

- Cérbero - murmurou o Sr. Gaunt e, pegando no seu jornal, o New York Times, começou a ler acerca do terramoto no Cairo, que era ilustrado por uma grande e dramática fotografia na primeira página.- Eu sei, pai - disse John. - De qualquer modo, é por isso que os rottveiler são uma das raças favoritas do exér cito e da polícia. Logo, parece-me que dar-Lhes nomes como Alan e Neil é um bocado ridículo.- Porquê? - quis saber o Sr. Gaunt. - Foi assim que sempre Lhes chamaram.- Eu sei. Mas, pai, se eu quisesse dar nomes a dois rottweilers, ter-Lhes-ia dado nomes mais adequados. Nomes como Nero e Tibério, talvez. Como os dois imperadores Romanos.15- Nero e Tibério não eram pessoas lá muito simpáticas,querido - disse a mãe de John.- Pois não - concordou o pai. - Tibério não tinha qual quer afabilidade E era um ser humano desprezível. Nero era pura e simplesmente louco. Ainda para mais, matou a mãe, Agripina. E a mulher, Octávia. E queimou a cidade toda. - O pai riu-se cruelmente. - Vá lá, diz-me, que raio de exemplo para um cão é este?John mordeu o lábio; tinha sempre dificuldade em discutir com o pai. Há algomas pessoas que falam latim, como os juízes e os papas, que as torna pessoas muito difíceis de enfrentar numa discussão.- Está bem, talvez não um qualquer imperador Romano - concedeu John. - Então talvez outra coisa. Um nome um pouco mais canino. Como Elvis, quem sabe.- Caso não tenhas reparado - retorquiu o Sr. Gaunt com severidade - nenhum dos nossos dois cães é particularmente canino, como tu próprio referiste. Os rottueilers são, como dizes, preferidos pelas forças da lei e pelo exército. Não são uma raça que abane muito o rabo como a maioria dos cães. Algumas famílias têm um cão que consegue ir buscar o jornal à caixa de correio. Nós temos cães que podem ir a correr até à confeitaria e trazer um saco de donuts sem sequer comerem um. Nem o Elvis era capaz de fazer isso, se queres que te diga. E, já agora, diz-me:16quão canino é levares-te a ti próprio ao veterinário quando estás doente? Ou pôr dinheiro num parquímetro? Sabes uma coisa? Gostava de ver o imperador Nero a tentar pôr dinheiro num parquímetro.- Para além disso - acrescentou, dobrando o jornal. Já é um bocado tarde para essas coisas. Eles são cães adultos. Nós chamamos-lhes Alan e Neil desde que nasceram. Achas que vão começar a responder a nomes novos, de um momento para o outro? Um cão não é como uma estrelapop estúpida ou um actor de cinema. Essas pessoas habituam-se a terem um novo nome estúpido. Como Pink, Dido ou Sting. Mas um cão assume o seu nome de um modo que mais nenhum animal é capaz.Depois, o Sr. Gaunt olhou para a filha.- Não concordas, Philippa?Philippa meneou a cabeça, pensativa.

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- É verdade que não são cães muito caninos. Por isso, o que penso é isto: se lhes explicássemos, com muito cuidado, que cada um teria um nome novo, poderíamos ver como reagiam. Um cão que é suficientemente esperto para distinguir a cNN da Fox Kids é provavelmente esperto o suficiente para lidar com o facto de ter um nome novo.- Mas ainda não percebi o que é que os nomes deles têm de mal. Alan e Neil são ambos nomes celtas. Alan quer dizer bonito e Neil significa campeão. Não percebo mesmo.- Eu acho que é uma excelente ideia, querido - respondeu a Sra. Gaunt. - A verdade é que nem com toda17a imaginação do mundo se poderia propriamente descrever Alan como sendo bonito. E Neil nunca ganhou nada na vida dele. - Depois, a mãe sorriu como se o assunto estivesse resolvido. - Então, que nomes lhes vamos dar? Devo admitir que gosto bastante do nome Elvis. Alan é o maior dos dois, tem um apetite muito maior. É um verdadeiro Elvis.O Sr. Gaunt lançou um olhar duro e inquiridor à mulher, como se discordasse totalmente da sua opinião.- Layla - disse ele calmamente -, isto não tem piada.- E, já agora, vamos tentar chamar Winston a Neilsugeriu Philippa. - Como Winston Churchill. Ele é o mais feroz dos dois, e, com as suas bochechas e rosnadelas, parece-se mesmo com Winston Churchill.- E também gosta de charutos - acrescentou John. Sempre que alguém nesta casa fuma um charuto, o Neil aproxima-se logo e começa a aspirar o ar, como se gostasse do fumo.- Pois é - disse Philippa. - Ele gosta mesmo, não é?- Então a única pergunta que resta é quem é que Lhes vai dar a notícia - disse John.- Tem de ser a mãe - disse Philippa. - Eles ouvem-na sempre. Como todos nós a ouvimos. Até o pai.Isto era verdade: Alan e Neil obedeciam sempre à Sra. Gaunt sem hesitações.- Continuo a não concordar - insistiu o Sr. Gaunt.- Muito bem, então vamos fazer uma votação - propôs John. - Quem estiver a favor da mudança dos nomes dos cães, levante a mão.18Enquanto três mãos se erguiam no ar, o Sr. Gaunt soltou um suspiro de derrota.- Bom, estejam à vontade. Mas aposto que Alan e Neil não vão gostar nada da ideia.- Vamos ver - disse a Sra. Gaunt. - Sabes, devíamos ter pensado nisto antes, querido. As crianças têm toda a razão.Depois, ela pôs os dedos na boca e soltou um assobio estridente que faria inveja a qualquer cowboy.Alguns segundos mais tarde, os dois cães chegaram à cozinha e apresentaram-se diante da Sra. Gaunt, como se estivessem à espera de instruções.- Agora ouçam-me com muita atenção, rapazes - disse ela. - Foi decidido que vão ter nomes novos, com um estilo mais canino.Neil olhou para Alan e rosnou calmamente. Alan limitou-se a bocejar de modo pomposo e sentou-se.- Não quero discussões por causa disto - insistiu a Sra. Gaunt. - Neil? De agora em diante o teu nome será Winston. E Alan? O teu nome será Elvis. Perceberam?Os cães ficaram em silêncio, por isso a Sra. Gaunt repetiu a pergunta, após o que, desta vez, ambos os cães ladraram ruidosamente.

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- Fixe - disse John.- Eu, pelo menos, vou continuar a usar os nomes antigos - declarou o Sr. Gaunt. - Os cães podem habituar-se a nomes novos, mas eu tenho a certeza de que não me vou habituar.19- Winston? Deita-te - ordenou a Sra. Gaunt, e o cão anteriormente conhecido como Neil deitou-se no chão da cozinha. - Elvis? Levanta-te. - E o cão anteriormente conhecido como Alan levantou-se.- Espectacular - disse John. - Quem disse que burro velho não aprende línguas?- Estes cães deviam era ir à televisão - comentou Philippa.O Sr. Gaunt pôs bruscamente de lado o jornal e levantou-se da grande mesa de cerejeira da cozinha.- Nem pensem nisso! - exclamou, saindo a passos largos com o ar de quem estava bastante irritado com a sua família.Mais tarde, os gémeos foram para a escola, como erahabitual e, como de costume, nada de mais aconteceu. John e Philippa eram muito bons alunos na maioria dasdisciplinas, excepto a Matemática, mas era em Educação Física que realmente se distinguiam, quanto mais não fosse por terem uma forma física muito, muito boa, bastante melhor que a da maioria das crianças da sua escola, muitas das quais eram preguiçosas e gordas. A razão pela qual os gémeos eram tão fortes residia no facto de serem ambos claustrofóbicos, o que significa que detestavam estar em espaços fechados. Detestavam sobretudo elevadores, o que, como se pode imaginar, lhes trazia alguns problemas numa cidade com tantos edifícios altos, como Nova Iorque. Enquanto a maioria das pessoas usava o elevador, John e Philippa usavam as escadas, às vezes subindo20até cinquenta ou sessenta lanços de escadas para chegarem ao seu destino. Isto tornava os gémeos fortes como um par de pulgas. De facto, a verdade é que as pulgas teriam de ir para um ginásio para terem uma forma física tão boa como a de John e Philippa. Mas o facto é que mesmo duas crianças tão fortes como eles não conseguiam ser tão rápidas como um elevador e, por isso, chegavam francamente atrasados a quase tudo. E isto era algo que poderia deixar os seus pais muito zangados, não fosse o facto de Edward e Layla Gaunt compreenderem muito melhor os seus filhos do que estes alguma vez poderiam sequer desconfiar.21UMA VISITA AO DENTISTA A maioria das crianças anseia pelo fim do último período e o início das férias de Verão. Mas, para os gémeos, o primeiro dia de férias estava sempre associado a uma certa dose de medo e aversão, pois era este o dia que a Sra. Gaunt escolhia invariavelmente para marcar uma consulta no dentista para John e Philippa.

John e Philippa tinham dentes bons e fortes, tão brancos como pastilhas de hortelã-pimenta e direitos como uma fila de carros estacionados. Nunca algum deles tinha precisado sequer de um chumbo" e, de facto, normalmente não havia muitos motivos para se preocuparem. No entanto, tinham sempre a sensação de que um dia o Dr. Larr lá iria encontrar algo que precisasse de ser feito e, então, todas as brocas, agulhas, escavadores e sondas de aço reluzente que estavam na sua mesa, como tantos outros instrumentos de tortura, iriam subita e dolorosamente entrar em acção.Os gémeos já tinham visto filmes suficientes para saberem que qualquer dose de dor era possível a partir do momento em que um dentista

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decidisse começar a trabalhar22a sério, em vez de simplesmente levar a cabo os exames de rotina a que se tinham habituado.Esta era, talvez, a explicação para o facto de, na manhã da consulta marcada com o Dr. Larr, John ter acordado de um sonho extremamente vívido, no qual sofrera de uma dor de dentes atroz: o tipo de dor de dentes atroz que transforma um homem adulto numa criatura lamurienta cheia de pena de si, ou faz com que um urso pardo feroz se torne o melhor amigo de um rapaz suficientemente corajoso para assumir o papel de dentista veterinário; o tipo de dor de dentes que, segundo o sonho de John, tinha terminado com a extracção de todos os seus dentes.Ofegante, coberto de suor e tremendo de medo, John caiu da cama, agarrando-se ao rosto, aliviado por uma dor de dentes tão má não ter passado de um pesadelo. Mas havia outro aspecto mais curioso no seu sonho, pois enquanto estivera a dormir, o espelho da parede ao lado da sua cama tinha rachado de uma ponta à outra; não só o espelho, mas também a cabeceira da cama, pelo que a fenda se estendia nitidamente do vidro para a madeira. Ou talvez fosse ao contrário, uma vez que até havia uma pequena marca de queimadura e um rasgão na fronha da almofada, no ponto onde ele tinha pousado a cabeça, pelo que era quase como se a dor criada pela mente sonhadora do rapaz se tivesse manifestado através de um certo poder sobre a matéria circundante que constituía a mobília doseu quarto.23Pelo menos, foi esta a primeira ideia de John acerca do sucedido.- O que é que fizeste? - perguntou Philippa, enquanto examinava os estragos, da entrada do quarto. - Tiveste fome durante a noite e começaste a mordiscar a parede?- Ouve lá, tenho cara de hamster? - replicou John, irritado. Ele mal se atrevia a contar à irmã o que pensava poder ser a explicação para a estranha fenda na parede, com medo de que ela se risse dele.- Não - disse ela. - Mas às vezes tens o mesmo cheiro. Depois, ela foi até ao espelho e passou cuidadosamente o dedo pela fissura.- Se não soubesse, diria que isto parece o resultado de um tremor de terra. Só que o último com uma magnitude assinalável no Estado de Nova Iorque foi um 5, 1 em 1983.- Parece que sabes muito sobre isso - observou John, impressionado.- Vi um telefilme sobre o assunto há umas semanas- disse ela, franzindo as sobrancelhas. - É estranho.- Pois, é claro que é estranho - disse John, mas Philippa já tinha saído do quarto e, durante vários minutos, John não pensou mais no que a irmã tinha dito, até ela reaparecer com um exemplar do New York Times.

- Olha para isto! - exclamou ela atirando o jornal para as mãos do rapaz.- O jornal de ontem? O que é que tem?- Houve um terramoto no Egipto.- O que é que isso tem a ver com a racha no meu espelho?24- Observa - disse Philippa e, voltando a pegar no jornal, encostou-o ao espelho de modo a que a fotografia daprimeira página de uma fenda na parede do mundialmentefamoso Museu Egípcio de Antiguidades no Cairo ficasseao lado da racha do espelho de parede de John.John ficou boquiaberto: não havia como negar o facto

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de que as duas fendas em ziguezague e aparentementealeatórias eram idênticas.- Uau! - sussurrou John. - Mas isso é muito fixe!Philippa voltou a franzir o sobrolho.- Tu fizeste isto de propósito. Só para me assustares.- Não fiz nada - insistiu John. - A sério. Simplesmente acordei e isto estava aqui, juro.- Então o que é que aconteceu?- Sei que isto vai parecer estúpido, mas eu sonhei quetinha tido uma dor de dentes muito forte. E o mais estranho é que a fenda parece começar no ponto onde a minhabochecha estava assente na almofada.Em vez de gozar com ele, Philippa inspeccionou a almofada.- Mas então por que é que eu não tive esse sonho? - perguntou ela. - Quero dizer, muitas vezes nós partilhamoso mesmo sonho, não é?- Eu também pensei nisso - admitiu John. - E cheguei à conclusão de que é porque eu tenho mais medo dodentista que tu.Philippa meneou a cabeça: sim, era verdade.25- Mas, mesmo assim, isso não explica a semelhançaentre a fenda da tua parede e a fenda da parede do Museu do Cairo.As crianças ainda estavam a falar sobre a fenda na parede quando, algumas horas mais tarde, subiram os vinte e quatro lanços de escadas até ao consultório de Maurice Larr, na Terceira Avenida.Os gémeos encontraram a mãe, que tinha usado o ele vador, na sala de espera onde o Dr. Larr já estava a falar com ela, não sobre cirurgia dentária, mas sim sobre ténis, um jogo de que tanto a Sra. Gaunt, como o Dr. Larr, gostavam muito.O Dr. Larr olhou por cima dos seus óculos e piscou umolho às crianças.- Ela deu cabo de mim - disse ele, descrevendo a última partida que tinham jogado. - Fez-me em picadinho e comeu-me ao almoço. A vossa mãe podia ter sido pro fissional. Há mulheres que ganham a vida a jogar ténis que gostariam de ter um serviço como o da vossa mãe. E, para além disso, é bonita, sabem? Só isso já é raro. Já viram quantas mulheres campeãs de ténis que têm o aspecto de quem devia estar no torneio masculino? Mas não a vossa mãe. Vocês deviam ter orgulho dela.Os gémeos menearam a cabeça educadamente. Estavamhabituados a ouvir a mãe ser elogiada por ser boa nisto ou naquilo. Imunes a algo tão difícil de definir como o charme, às vezes os gémeos pensavam que a sua mãe parecia ter um estranho e até misterioso poder sobre as pessoas,

26quase como se a vida lhe tivesse dado aquele bocadinho extra, para que tudo nela fosse um bocadinho melhor do que o normal. Os cabeleireiros elogiavam o seu belo e lustroso cabelo negro e diziam que ela devia fazer um anúncio a um champô. Os estilistas elogiavam o seu corpo perfeito e diziam que ela devia ter sido modelo. Os esteticistas elogiavam a sua pele firme e macia como a seda e diziam que devia lançar a sua própria linha de cosméticos. Os escritores elogiavam a sua inteligência e diziam-lhe que devia escrever um livro. Os convidados dos jantares elogiavam os seus pratos e diziam que ela devia ter um restaurante. As instituições de caridade elogiavam a sua capacidade de angariar dinheiro para boas causas e diziam que devia ter sido

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diplomata.Para John e Philippa não havia nada de surpreendente na opinião elogiosa do Dr. Larr sobre a aptidão da sua mãe para o ténis.- Pára, Mo - pediu a Sra. Gaunt, rindo-se. - Estás a envergonhar-me.Mas os gémeos sabiam que ela não se importava mesmo nada. Se a sua mãe tinha um ponto fraco era o facto de gostar de ser elogiada, e engolia tudo do mesmo modo que as pessoas gulosas comem demasiados bolos.O Dr. Larr olhou para as crianças, esboçou o seu sorriso mais amigável e esfregou as mãos.- Muito bem, qual de vocês vai ser o primeiro a subir para a cadeira do tio Mo?- John - disse a Sra. Gaunt, e era tudo o que bastava dizer. A Sra. Gaunt estava habituada a que lhe obedecessem27como se obedece a um juiz ou a um polícia, sem qualquer objecção.John sentou-se na cadeira, enquanto o Dr. Larr calçava um par de luvas de látex que faziam com que as suas mãos parecessem ter sido mergulhadas num balde de natas. Depois, o Dr. Larr colocou-se ao lado de John e carregou num botão do chão com a ponta do seu mocassim com borlas para que a cadeira, que mais parecia um sofá de couro, se elevasse, deixando John a sentir-se como a cobaia de um mágico que punha um voluntário do público a levitar.- Abre bem a boca - ordenou o Dr. Larr, acendendo uma luz que aquecia o nariz de John.John lá abriu a boca.- Só um pouco mais, por favor, John. Obrigado. E, munindo-se de um espelho semelhante a um minúsculo taco de golfe e de uma afiada mas igualmente pequena sonda, que mais parecia um cajado de pastor, o Dr. Larr espreitou para a boca de John, aproximando-se o suficiente para John poder sentir o odor a pasta dentífrica do seu hálito e o aftershave Acqua di Parma, que o pai de John também usava, na sua pele macia e bronzeada.- Mmm-hmm - disse o Dr. Larr com o ar de um homem que dizia Mmm-hmm" mil vezes por dia. E depois: - Meu Deus! Meu Deus! O que é que temos aqui?John agarrou-se com mais firmeza aos braços da cadeira, nervoso.- Meu Deus! O que é isto. E outro? Ai, Jesus! Levantando os óculos de protecção e baixando a máscara facial, o Dr. Larr voltou-se para a Sra. Gaunt.

28- Refresca-me a memória, Layla. Que idade tem o John?- Tem doze, Mo.- Bem me parecia, bem me parecia.Abanou a cabeça e sorriu rasgadamente.- Nunca vi tal coisa num rapaz com a idade do John. Jovem? Tu tens dentes do siso. És a pessoa mais nova com dentes do siso que eu alguma vez vi.- Dentes do siso? - A Sra. Gaunt sentou-se pesadamente e suspirou. - Só me faltava essa.- Dentes do siso? - perguntou o John, apoiando-se nos cotovelos para se soerguer. Ter dentes do siso não parecia, nem de perto, nem de longe, tão mau como ter cáries que precisassem de ser chumbadas". - O que é que são dentes do siso?- Chamam-se dentes do siso porque normalmente só os temos quando somos muito mais velhos. Regra geral, parte-se do princípio de que se tem de ser mais velho para se ter siso, embora isso seja um pouco estranho

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tendo em conta o comportamento de alguns adultos.- O problema, Layla - continuou o Dr. Larr - é que o maxilar do rapaz ainda não tem a largura suficiente para acomodar quatro dentes novos. Sim, é verdade, John. Tal como no Apocalipse. São quatro. E se o teu maxilar não tem a largura suficiente para todos estes dentes novos, isso causa problemas aos outros dentes. Estes dentes do siso vão apertar os outros até porem o teu lindo sorriso todo torto e desalinhado. E não é isso que nós queremos,pois não?29- Então o que é que o senhor me está a dizer? - perguntou John, embora pensasse já saber a resposta àquela pergunta.- Esses dentes têm de sair, John. Vou ter de extraí-los. Quatro extracções, para ser mais preciso. Vai ser necessária uma cama de hospital. Vais ter de receber uma anestesia geral e ser posto a dormir enquanto nós os arrancamos.- O quê? - John ficou visivelmente mais pálido.- Ei, ei, ei - disse o Dr. Larr amavelmente. - Não há motivo para preocupações, jovem. Eu próprio o farei. Nem te vais aperceber. É canja. Layla? Se calhar posso marcar isto para depois de amanhã, se for conveniente?- Eles têm mesmo de ser arrancados agora, Mo? - perguntou a Sra. Gaunt. - Não podíamos deixar isto para depois? Quero dizer, isto é muito inconveniente.- Numa boca tão jovem como a do John - disse o Dr. Larr -, seria recomendável que isto fosse feito o quanto antes. Para além do aspecto estético, os outros dentes podem ficar encavalitados. E ainda há o risco de um abcesso ou de uma infecção.- Claro, Mo - suspirou a Sra. Gaunt. - Tu é que sabes. Se eles têm de sair, que saiam. Só não estava era preparada para que isto acontecesse tão cedo, percebes?- Quem é que poderia estar preparado para algo tão precoce como isto? Muito bem. Por agora é tudo, jovem. Vamos dar uma vista de olhos à tua irmã, Philippa. Phil, anda cá e abre a boca como uma cantora de ópera.Philippa sentou-se na cadeira e abriu bem a boca. Tinha a certeza de que o Dr. Larr não iria encontrar nada de

30interessante na sua boca e dar-se-ia por feliz se ele pensasse que os seus dentes eram os menos interessantes do mundo. Ser a pessoa mais nova com dentes do siso parecia bastante típico de John. Ele estava sempre a exibir-se, pensou Philippa enquanto tentava relaxar e pensar no filme em que ia votar quando aquela visita ao dentista acabasse: a Sra. Gaunt levava sempre os gémeos ao cinema depois de uma ida ao dentista.- Uau! Não acredito - pasmou o Dr. Larr. - E esta agora, hein? Eu bem sei que vocês são gémeos, mas uau!A Sra. Gaunt soltou outro suspiro.- O que foi, Dr. Larr? - perguntou Philippa, só que como tinha a boca cheia com os dedos do Dr. Larr e instrumentos dentários, soou mais como: U-e oi, d-or-ar"O Dr. Larr, que compreendia perfeitamente este tipo de linguagem, retirou os instrumentos e os dedos e tirou a máscara, revelando um sorriso rasgado. - Eu digo-te o que é, minha menina. É história dentária. Tu também tens dentes do siso, tal como o teu irmão gémeo.- Perfeito, simplesmente perfeito - murmurou a Sra. Gaunt de um modo que fez John pensar que não era nada aquilo que ela queria dizer.

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- Bem - disse Philippa olhando com um ar triunfante para John -, visto que eu sou dez minutos mais nova que John, acho que isto me torna a pessoa mais nova com dentes do siso que o senhor já viu, em vez do borbulhas. Philippa chamava sempre borbulhas ao irmão, quando queria irritá-lo.31- Acho que tens razão - disse o Dr. Larr, dirigindo um sorriso rasgado à Sra. Gaunt. - Estes miúdos. São espantosos.- Sim - disse a Sra. Gaunt, sem grande convicção.- Espantosos.- Não sei por que é que hei-de ficar surpreendido - continuou, pegando na mão da Sra. Gaunt e afagando-a.- Não sei mesmo. Sobretudo tendo eles uma mãe tão excepcional.Philippa sentiu as sobrancelhas a franzirem-se perante a injustiça daquele comentário. Ali estava ela, a pessoa mais nova com dentes do siso que ele alguma vez vira, e ele estava a tentar dizer que tudo se devia à sua mãe. Como se fosse algo que ela tinha feito, como ser boa jogadora de ténis ou ter uma óptima pele.- Então, o que é que isso quer dizer? - perguntou Philippa.- Sarilhos - respondeu a Sra. Gaunt. - É isso que quer dizer.- Quer dizer, os meus dentes do siso também têm de sair?- Sim, Philippa. Provavelmente seria melhor fazê-lo ao mesmo tempo que o teu irmão. Pomo-vos em camas opostas, para não se sentirem sós. - E, olhando para Layla, o Dr. Larr abanou a cabeça. - A sério, Layla, não custa nada.Penosamente, a Sra. Gaunt lá combinou tudo com o Dr. Larr e depois caminhou com as crianças de regresso à casa da 77th Street.32- Dadas as circunstâncias - começou ela - acho que é melhor adiarmos a nossa ida ao cinema. Tenho de dar a notícia ao vosso pai. Há preparativos a fazer.- Como telefonar para uma agência funerária - disse John, esperando retribuir à sua irmã com alguma ansiedade pelo anterior comentário do borbulhas.

- Não sejas pateta, querido. O Dr. Larr tem razão. Não há motivo para nos preocuparmos. - Ela sorriu levemente como se estivesse a tentar convencer-se a si própria do que dizia. -Já agora, acho que posso contar-vos - continuou a Sra. Gaunt. - Não quis falar nisto em frente ao Dr. Larr. Ele estava muito entusiasmado. Mas dentes do siso precoces não são propriamente raros no meu lado da família. A verdade é que eu só tinha mais dois anos que vocês quando os meus próprios dentes do siso apareceram. E olhem para mim agora. Esboçou um sorriso perfeito, como o dos anúncios de pasta dentífrica, mas cheio de tristeza e preocupação. - Eu tenho dentes perfeitos.- Sim, mas o hospital. - queixou-se John.- Vejam isto desta perspectiva - disse a sua mãe. - É um ritual de passagem para a vida adulta. O crescimento é isto. No vosso caso, a dobrar - acrescentou ela. - Quer dizer, vocês são gémeos.A Sra. Gaunt suspirou e acendeu um cigarro, fazendo com que os gémeos ficassem carrancudos: detestavam que ela fumasse. Sempre parecera o lado menos encantador de Layla Gaunt, sobretudo em Nova Iorque onde as pessoas se preocupam mais com o fumo do que com as armas.33- A mãe tem mesmo de fumar? - perguntou John,nervoso.- Fazemos assim - disse a Sra. Gaunt, ignorando a censura dos seus

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filhos. - Se vocês enfrentarem isto com coragem e tirarem esses dentes do siso sem espalhafato, podem ir para o campo de férias. Que é que vos parece?- A mãe está a falar a sério?- Claro que sim - insistiu a Sra. Gaunt. - Só vos peço que enfrentem isto com coragem. E que eu possa ficar com os vossos dentes do siso.- Mãe? A mãe quer os nossos dentes? - disse Philippa.- Os oito dentes? Ugh, que nojo. Mas esteja à vontade.- Para que é que quer os dentes? - perguntou John.- Chamem-lhe uma lembrança, se quiserem. Estava a pensar em mandar banhá-los em ouro e depois pendurá-los numa pulseira.- Fixe - disse John. - Um pouco como um canibal. Sim, consigo perceber isso.- Vocês vão divertir-se imenso - disse a Sra. Gaunt. - Háum campo de férias fabuloso que eu conheço, em Salem, no Massachusetts, onde podem.- Mãe - protestou Philippa. - Eu não quero ir para o mesmo campo que ele.- E eu também não quero ir para um campo qualquerno Massachusetts com ela - disse John. - Quero aprender alguns métodos de sobrevivência.- Posso garantir-vos que a Alembic House é um dosmelhores campos mistos da América do Norte - disse34a Sra. Gaunt. - Trezentos hectares de campos, colinas, ribeiros e bosques com uma costa de três quilómetros. Vocês vão divertir-se imenso. É claro que, se não quiserem ir, podem passar o Verão com o vosso pai e eu, em Long Island, tal como sempre fazemos.

John olhou para Philippa e encolheu os ombros. Alembic House parecia melhor do que não ir para campo nenhum; e qualquer coisa era melhor do que passar mais um Verão aborrecido nos Hamptons. Philippa respondeu ao irmão com um aceno intuitivo.- Não, Alembic House parece-me boa ideia - disse Philippa.- Sim, é claro - concordou John. - Quando é que podemos ir?- Provavelmente vão precisar de alguns dias para recuperar da operação antes de se sentirem suficientemente bem para viajar - disse a Sra. Gaunt. - E é óbvio que terei de discutir isto com o vosso pai. Eu sei que ele estava à espera de poder passar algum tempo convosco este Verão. Mas que tal durante a próxima semana?SÓ SE VIVE DUAS VEZESChegou a manhã da operação e John e Philippa estavam no Hospital Pediátrico Memorial W. C. Fields - um belo edifício moderno no parque Gramercy de Nova Iorque, à frente do qual havia uma grande estátua de bronze do escultor Antony Gormley que retratava um homem de rosto alegre a segurar um frasco de medicamentos. A operação estava marcada para as nove da manhã, o que significava que as crianças tinham sido proibidas de tomar o pequeno-almoço; por isso, quando o Dr. Larr passou pelo quarto deles, pouco antes das oito, para lhes apresentar o anestesista, o Dr. Moody, a fome e os nervos de John estavam, na ausência temporária da sua mãe, que entretanto tinha ido buscar um café ao Starbucks da Union Square, a fazê-lo sentir-se um pouco irascível.- Então - disse ele ao Dr. Moody - que tipo de material de abate é que o senhor se propõe a usar comigo e com a minha irmã?O Dr. Moody, um homem alto de ar abatido que não estava habituado a discutir o tipo de anestésico que iria36

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usar com ninguém, muito menos com um miúdo de doze anos, esboçou um sorriso incomodado.- Bem, já que perguntas, vou usar um medicamento chamado cetamina, que dá sempre óptimos resultados.John, que tinha andado a ler tudo sobre anestésicos na Internet e que, por isso, achava que sabia tanto sobre o assunto como qualquer outro rapaz, franziu o sobrolho.- Mas isso não é o que os veterinários dão aos animais quando os querem sedar?- As crianças, hoje em dia - disse o Dr. Larr, sorrindo.- Não se lhes pode impingir nada, sabe?- Eu não estava a tentar impingir nada a ninguém - disse o Dr. Moody, tentando conter a sua irritação. - Estás preocupado com o facto de eu usar cetamina, jovem?- Não, senhor, não estou nada preocupado - respondeu John calmamente. - Na realidade até queria que fosse cetamina.- Oh? E porquê?- Diz-se que é o melhor para dar ao paciente uma EPM. Ou pelo menos as características principais de uma EPM.- Uma EPM? Acho que nunca ouvi falar nisso - admitiu ele, rangendo os dentes.- Uma Experiência Próxima da Morte - retorquiu John, de modo indiferente. - O senhor sabe, quando estamos a ser operados e quase morremos e viajamos por um túnel escuro até à luz e somos arrebatados por um anjo no outro lado.O rosto do Dr. Moody encheu-se de raiva. O Dr. Larr apercebeu-se disso e tentou pôr água na fervura.37

- John, John - disse ele, ansioso. - Tem calma. Vai correr tudo bem. Isto vai ser canja. O Dr. Moody é um óptimo anestesista. O melhor de Nova Iorque.- Claro - disse John. - Não tenho qualquer dúvida. Apenas pensei que seria fixe ver um anjo. Mesmo que fosse uma alucinação.- De uma coisa podes ter a certeza - sossegou-o o Dr. Moody. - Nunca nenhum dos meus pacientes despertou de uma anestesia dizendo que tinha visto um anjo.- Por que será que isso não me espanta? - murmurouJohn.A porta abriu-se e a Sra. Gaunt entrou com uma grande caneca de café Starbucks na sua mão bem tratada.- E por falar em anjos - disse o Dr. Larr. - Ei-la. Philippa gemeu e depois desviou o olhar, indignada.- Podemos começar? - pediu ela. -Já fiquei sem pequeno-almoço - disse. - Não quero perder o almoço também.Na parede do corredor do quarto deles havia uma exposição criada por outras crianças do hospital, com desenhos, cartazes e histórias sobre como era ser-se operado. Porém, nenhuma das histórias e desenhos escritos e pintados por outras crianças que tinham estado no hospital lhes dava qualquer ideia sobre como era mesmo ser-se operado. No entanto, ela tinha de reconhecer que devia ser bem difícil escrever sobre isso. Num instante ela estava a segurar a mão da mãe e a sentir qualquer coisa fria a subir-lhe pelo braço, e no momento seguinte perdera todo o tacto. Era como se alguém tivesse activado um interruptor na cabeça que lhe desligara todos os sentidos.38Ou quase todos.

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Philippa depreendera, pela conversa da sua mãe com oDr. Moody, que no instante em que o anestésico começasse a fazer efeito ela não teria qualquer sensação; mas,assim que a cetamina fez efeito, ela deu por si a caminharpor um rio sinuoso e labiríntico que corria por uma caverna quase infindável até um rio sem sol, o que poderia serum pouco assustador, não fosse o facto, bastante curiosoaté, de John também estar presente.- O que é isto? - perguntou ela. - Um sonho ou umadaquelas EPM de que estavas a falar?John olhou em volta.- Não sei. Mas isto não se parece lá múito com umtúnel, e, que eu veja, não há nenhum anjo, nem uma pequena luz branca.Quando chegaram à margem de um oceano que parecianão ter vida, viram uma espécie de pavilhão real orientalflutuando no ar, cerca de quinze metros acima das ondas,com cúpulas e pequenas janelas com vidros em ponta dediamante que reflectiam o sol.Observando a expressão da irmã, John apercebeu-se deque ela estava constrangida.- Não te preocupes, mana - disse ele. - Vais ficar bem.- Devo estar a sonhar - disse Philippa.John franziu as sobrancelhas.- Por que é que dizes isso?- Porque tu estás a ser simpático comigo - explicou ela.- Ei, nós não podemos estar os dois a ter o mesmo sonho.39

- Quem disse que estamos? Eu só estou a ter um sonho em que tu estás aqui a afirmar que estás a ter o mesmo sonho que eu, mais nada.- Dito assim faz todo o sentido - disse John. - Mascomo é que tu podes ter a certeza de que não és tu que estás no meu sonho?- Não tenho. Acho que não vou saber ao certo até ambos despertarmos da anestesia.Passado um momento, uma das janelas da cúpula abriu-se e um homem bastante grande com olhos cintilantes e cabelo flutuante inclinou-se para a frente e acenou-lhes.- Ei, Phil, sabes aquilo que eu disse? Como gostava deconhecer um anjo? Era só bazófia. Isto é assustador.- Eu também estou assustada.John pegou na mão da irmã e, segurando-a com firmeza - o que a fez sentir-se um pouco melhor - pô-la atrás de si, como se pretendesse protegê-la do que quer que fosse acontecer. Havia alturas em que John parecia o melhor irmão do mundo.- Não fiquem aí parados como um par de jarras - insistiu o homem da janela da cúpula. - Subam.- Como? - gritou John. - Não há escadas.- A sério? - O homem inclinou-se um pouco mais para a frente e olhou para o mar. - Tens toda a razão. Parece que estamos a flutuar no ar e não no mar. Enganei-me, De qualquer modo, isso resolve-se num instante.E, gradualmente, como uma enorme nave espacial a aterrar num qualquer planeta proibido, o pavilhão real,40com aquele misterioso estranho, começou a descer do céu, até pousar, solidamente, na praia.- Aqui estamos - gritou o homem. - Agora despachem-se. Não temos muito

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tempo, sabem?Ainda de mãos dadas, os gémeos entraram no edifício que estava cheio de espelhos que faziam com que todas as divisões parecessem uma caverna de gelo. Ouvia-se uma mulher a cantar com o acompanhamento de um instrumento musical que nenhum dos dois conseguia devidamente identificar.- Afinal, talvez seja mesmo um anjo - disse Philippa, temerosa. - Isto é uma alucinação, não é?- Se não for, então estás metida num grande sarilho.- Eu?- Tu disseste que este sonho era teu, e não meu, lembras-te?Os gémeos ouviram passos a ecoar mais à frente e depois viram-no, alto e escuro, com um fato vermelho e uma gravata e camisa vermelhas, sorrindo rasgadamente.- Então, não me reconhecem? - disse o homem, num tom de voz alto e grave, que percorreu a cavernosa sala vermelha e dourada como uma sirene de nevoeiro.- Não me parece que os anjos se vistam de vermelho- murmurou Philippa.- Não estás a pensar que é o diabo, pois não? - perguntou John.- Falaste no diabo? - balbuciou o homem. - Onde é que foste buscar essa ideia? Eu sou o vosso tio Nimrod, como é óbvio. De Londres.41Depois fez uma pausa, como se estivesse à espera de um reconhecimento clamoroso.- Nós conhecemo-nos quando vocês nasceram - continuou ele.

- O senhor tem de nos desculpar por não nos lembrarmos - disse John.- A sério? - O tio Nimrod parecia surpreendido.- Mas já ouvimos falar em si - acrescentou Philippa docemente. - Só que estamos um pouco espantados por o vermos aqui, no nosso sonho. Enquanto estamos a ser operados.- Sim, peço desculpa pelo subterfúgio - disse Nimrod.- Mas, infelizmente, não há nada a fazer. - O tio Nimrod abriu os braços. - Então, não tenho direito a um abraço ou um beijo, nada?E como era um sonho e, afinal de contas, se tratava do seu tio, que eles reconheciam vagamente de uma fotografia na secretária do escritório da mãe, sorriram corajosamente e abraçaram-no com delicadeza.- Mas que sítio é este? - perguntou Philippa, franzindo as sobrancelhas.- Não gostam? É o Pavilhão Real de Brighton - disse Nimrod. - Na costa sul de Inglaterra. Achei que ficaria bem no vosso sonho. Vocês sabem. O homem de Porlock?Os gémeos lançaram-Lhe um olhar inexpressivo.- Coleridge? Em Xanadu, Kubla Khan ergueu um magnífico palácio de prazer"? Não? Bem, não importa. É óbvio que não ensinam isto nas escolas americanas.42- E quem é que está a cantar?- É a criada abissínia, com um xilofone - explicou ele, abanando a cabeça acanhadamente. - Estava em promoção. Bom, mas não importa. Como disse, não temos muito tempo, tendo em conta a natureza dos anestésicos modernos.Em seguida, apontou para uma mobília antiga de aspecto elegante disposta em volta de uma mesa de jogo.- Vamos sentar-nos e conversar.Eles sentaram-se e Nimrod pegou num grande copo de madeira no qual deixou cair cinco dados.

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- Podemos jogar enquanto conversamos - disse ele, afável.- Jogar a quê? - perguntou John.- Dados, rapaz, dados. Lançamo-los enquanto conspiramos, tal como os romanos. Primeiro, eu. - Nimrod lançou os dados, fez um esgar e recolheu-os com a palma da mão antes de John e Philippa conseguirem registar o que ele tinha lançado.- O que é que estamos a conspirar? - perguntou John.- Vamos ver - disse ele, olhando para o seu relógio de ouro. - Aquilo que quiserem. - Nimrod deixou cair os dados no copo e passou-o a John.- É a tua vez.- Gostava de saber quais são as regras - disse John.- Só há uma regra neste jogo - explicou Nimrod, enquanto John lançava três seis. - A regra mais importante em qualquer jogo. E isso é ter-se sorte. O que tu claramente tens, meu rapaz.43Philippa recolheu os dados.- Tudo o que ele consegue fazer - disse ela, deixandocair os dados no copo e atirando-os para a baeta verde da mesa de jogo -, eu faço melhor - terminou, soltando um pequeno guincho de prazer quando viu que tinha lançado quatro seis.- Excelente - comentou Nimrod, recolhendo os dados.

- Agora vamos ver o que conseguem fazer juntos. Passou o copo a John e depois pôs a mão de Philippa em cima da do seu irmão gémeo. - Vamos lá, então. Não tenho o dia todo.Os gémeos entreolharam-se, encolheram os ombros edepois lançaram. cinco seis.- Tal como desconfiava - disse o tio Nimrod.- Então e esta? - aplaudiu John.- Têm mais sorte juntos do que individualmente. Issoé bom. É muito bom. Pode ser-nos bastante útil.- Como? - quis saber John. - Dê cá - disse Philippa -, deixe-me ver esses dados.- Não estão viciados - defendeu-se Nimrod.- A sorte não existe - troçou Philippa.- Pelo menos, é o que o pai pensa.- Oh, minha querida, não digas isso - ralhou o tioNimrod. - A probabilidade de se lançar cinco seis é de seis elevado à quinta potência, ou seja 0, 0001286. Calculo que a maioria das pessoas teria de atirar os dados 3888 vezes para ter sequer cinquenta por cento de probabilidade de conseguir cinco seis. O que é apenas um44pomposo modo matemático de dizer que vocês são um par de miúdos bem sortudos.- Nunca reparei nisso - disse John.- Ainda não, talvez. Mas irás reparar. Têm de começar a jogar astaragli.- O que é isso?- É um jogo que se joga com sete dados hexagonais - disse Nimrod. - Um jogo que foi inventado há milhares de anos para enganar a sorte. Posso explicar-vos as regras, se quiserem.- Acho que não vale a pena - insistiu Philippa. - Se isto é um sonho.- Que disparate! Os povos aborígenes da Austrália, por exemplo, reconhecem que sonhar é tão importante como a vida real. Muitas vezes, é onde todas as coisas realmente importantes acontecem.- Pois, e veja o que lhes aconteceu - contrariou John.- Eu gostava de conhecer outra cultura humana que tenha tido tanto sucesso como os aborígenes - disse Nimrod. - Tudo o que eles têm já

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dura há oitenta mil anos. Tu, por outro lado. aposto que não eras capaz de me dizer o que recebeste no Natal há dois anos.Nimrod meneou a cabeça com firmeza como se quisesse encerrar a discussão, guardou os dados no bolso e voltou a olhar para o relógio.- Em todo o caso, agora que já determinámos que vocês são sortudos, vamos falar sobre os vossos futuros. Ouçam-me com muita atenção. Eu preciso da vossa ajuda. Por isso, eis o que quero que façam. Quando tiverem recuperado45da vossa operação, seja por que motivo for, não devem mencionar à vossa mãe que me viram. É que eu fiquei muito mal visto aos seus olhos desde que vocês os dois nasceram, por motivos que não quero explicar agora. Mas prometo contar- vos tudo quando chegarem a Londres.- Londres? Nós vamos a Londres?- Assim que quiserem. Vocês querem ir a Londres, não querem?- É claro - disseram os gémeos.

- Então só têm de dizer aos vossos pais, delicadamente, que gostariam muito de passar algum tempo comigo. Em Londres. Sozinhos. É o que estou a tentar dizer-vos.- Nimrod voltou a olhar para o relógio. - Meu Deus, o nosso tempo está a acabar. Vocês vão despertar a todo o momento.John riu-se.- O senhor está a brincar, não está? Eles nunca con cordarão com isso. De modo algum.- Muito pelo contrário - disse o tio Nimrod. - Acho que vão ver que eles vão aceitar a ideia. A não ser, isto é, que vocês queiram mesmo ir para esse campo de férias em Salem. Embora, na verdade, seja mais uma escola.- Uma escola? - John sentiu-se indignado.- Sim - disse Nimrod. - Uma escola de Verão, para crianças sobredotadas.- Escola de Verão. - John repetiu as palavras com um sentimento similar a repugnância.- Então aconselho-vos a virem a Londres. Mas lembrem- se de nunca mencionarem que fui eu quem vos deu46a ideia. Isto é mesmo muito importante. A vossa mãe e eu não estamos totalmente de acordo quanto a uma série de assuntos.- Tais como? - perguntou John.- Bem, para começar, a maneira como dois jovens devem passar as férias de Verão. Há a escola tipo vamos divertir-nos", que eu subscrevo. E há a escola de pensamento tipo não nos vamos divertir mesmo nada, em Salem, para a qual a vossa mãe tenciona enviar-vos este Verão.- Não há dúvidas - disse Philippa, enquanto John meneava a cabeça em aprovação.Nimrod levantou-se.- Muito bem. Por agora é tudo. Vocês estão a começar a despertar.- Espere um minuto - disse John.- Acabou tudo - disse o tio Nimrod.- E se eles disserem que não? - perguntou ele.- Acabou tudo - anunciou o Dr. Larr.John sentou-se, cambaleante, na sua cama de hospital e levou instintivamente a mão ao maxilar, sondando as novas cavidades nas suas gengivas com a ponta da língua.- A vossa boca vai parecer-vos um pouco mole durante alguns dias - explicou o Dr. Moody, o anestesista. - Mas isso é normal. E eu vou trazer-vos qualquer coisa para as dores.

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Sorriu e saiu da sala de operações.- Ele já foi? - perguntou Philippa, sentando-se na suaprópria cama.47- Sim, já foi - disse o Dr. Larr, pensando que a pergunta de Philippa era para si. - Queres ver os teus dentes do siso? - perguntou. - Aqui os tens - disse ele, entregando-lhe uma bandeja de aço em forma de rim com quatro pequenos dentes do siso, cobertos de sangue.Philippa achou que pareciam peças de um jogo de xadrez que tinha acabado mal.- Ugh - disse ela. - Tire-os daqui.- Viste-o? - perguntou John à sua irmã gémea. - O tio Nimrod.- Sim, e tu?

- Estão aqui mesmo - disse o Dr. Larr, ainda pensando, não sem razão, que os gémeos estavam a falar sobre os dentes extraídos, e passando a John a bandeja com os seus dentes do siso. - Dá uma vista de olhos, John.John olhou e sentiu-se ligeiramente enjoado. Pensou que os seus dentes se pareciam com algo que um caçador furtivo africano teria cortado a algum elefante pequeno, mas raro. Ao mesmo tempo, teve a confirmação de que não seriam apenas as profissões de banqueiro e contabilista que ia evitar: também nunca iria ser dentista.- Sim - respondeu John a Philippa. - Vi-o, sim.- Então - disse Philippa. - Terá sido só o efeito da cetamina? Um sonho? E o facto de sermos gémeos?- Talvez.- Seja como for, é algo que acho que não devíamos mencionar à mãe e ao pai. Pelo menos, por enquanto.48MUDANÇASNa noite do seu regresso a casa, altura em que já tinham o aspecto de quem tinha enchido as bochechas de comida como um par de hamsters esfomeados, os gémeos estavam parados nas escadas quando ouviram os pais a conversar.- Bem - disse um deles -, ambos parecem estar bem, não achas? Quero dizer, até agora ainda não aconteceu nada de estranho.- Achas que não? - inquiriu a Sra. Gaunt.- Não. Pelo menos que eu tenha reparado. - O Sr. Gaunt fez uma pausa. - O que foi? O que foi? Conta-me. Aconteceu alguma coisa?- Nada, querido. Bem, nada de especial, pelo menos. É só que, a não ser que eu esteja muito enganada, o John já está a mudar. - A Sra. Gaunt suspirou. - Não reparaste? Desde que voltou do hospital, as borbulhas do rapaz desapareceram.Philippa olhou atentamente para o rosto de John.- Ei borbulhas, sabes que mais? A mãe tem razão. Desapareceram. Não há uma única borbulha na tua cara.49John trepou pelas escadas acima e dirigiu-se ao quarto de vestir da mãe e ao espelho de corpo inteiro que ficava em frente do seu enorme guarda-roupa.Durante a maior parte do último ano, John tinha sido assolado por borbulhas - vermelhas e impiedosas colinas impossíveis de esquecer e que, de vez em quando, rebentavam de um modo horrível.- Seria de pensar que alguém dissesse alguma coisa antes - resmungou John para si mesmo. Examinando o seu rosto, esticou a pele para um lado e para o outro, mas, por muito que tentasse, John não conseguia

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encontrar uma única borbulha ou ponto negro no seu novo rosto imaculado. Normalmente, tentava evitar ver-se ao espelho para não ficar deprimido por ter tantas borbulhas, mas agora não percebia por que é que o resto da sua família não tinha reparado no que parecia ser um milagre ou, no caso da sua mãe, porque é que ela via a ausência de borbulhas no rosto de John como motivo de preocupação.Philippa apareceu à porta e parecia ter pressentido a irritação do irmão em relação à sua família.-Juro - disse ela -, quando voltámos do hospital a tua cara ainda parecia um mapa da Lua.- É incrível - disse John. - Parece que afinal aqueles médicos tinham razão. As marcas desapareceram mesmosozinhas!

- Sim - disse Philippa, pouco convencida pela renovada confiança do seu irmão na medicina. - Claro. Se éisso que queres pensar, estás à vontade!50- O que é que queres dizer?- Não achas que se está a passar qualquer coisa estranha aqui?- Talvez - concordou John. O rapaz ainda estava demasiado impressionado com o seu próprio rosto para prestar muita atenção ao que a irmã dizia. - Não sei. -John soltou um suspiro sonoro e acrescentou: - Acredita, se uma coisa destas te tivesse acabado de acontecer, Phil, de certeza que também te estarias a sentir muito bem.- Então de que é que achas que eles estavam a falar, ainda agora?- Não sei. Talvez da adolescência. Ouvi dizer que há muitos pais que FIcam nervosos quando chega essa altura. As hormonas dos seus filhos despertam e os pais começam a mandá-los ao psiquiatra. Os pais do Felix Grabel mandaram-no consultar um ESPECIALISTA quando lhe começou a crescer um bigode.- Os pais do Felix Grabel são mais esquisitos que ele- contrapôs Philippa. - Mas, se queres ver uma coisa estranha, então vem comigo. Vou mostrar-te algo bem estranho.Philippa levou John até ao seu quarto, no piso de cima, um sítio onde ele raramente entrava tal era a aversão que sentia ao gosto da irmã por brinquedos carinhosos, animais de peluche e cartazes de boy bands com ar de meninas. Na parede por trás da porta havia uma tabela de altura com o título pessoas baixas de Hollywood, (vê como és mais alto do que a tua estrela de cinema favoRITA,51proclamava). Philippa apontou para a entrada mais recente, feita no dia anterior à extracção dos dentes do siso.- Anteontem tinha exactamente um metro e meio de altura - disse ela, passando uma régua e um lápis a John.- Agora vê. - Philippa tirou os sapatos e depois colocou-se entre Tom Cruise e Robert De Niro.John pousou a régua na cabeça da irmã e marcou a altura dela com o lápis.- Tenho quase a certeza de que cresci - disse ela.- OK, Phil - disse John. - Já está.Philippa afastou-se da tabela e ambos soltaram um grito de espanto. Era indubitável: Philippa estava visivelmente mais alta. John verifIcou quanto é que ela tinha crescido.- Vinte e cinco milímetros? - aFIrmou. - Não pode ser. Deves ter-te enganado na última vez em que te mediste.- Não - insistiu Philippa. - A Sra. Trump ajudou-me. A Sra. Trump era a

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mulher que os pais empregavam como cozinheira e governanta.- Então ela deve ter-se enganado. Ninguém cresce vinte e cinco milímetros em menos de quarenta e oito horas.- Está bem. Quando é que te mediste pela última vez?- Na semana passada. O pai mediu-me. Ele diz que assim que eu chegar a um metro e setenta já posso ter um par novo de esquis. Ele não se ia enganar. É sempre tão preciso!- Então vamos ver.Entraram no quarto de John, onde o rapaz se encostou à sua própria tabela do James Bond (compara-te com o52

007, ) entre Sean Connery e Pierce Brosnan, e esperou que Philippa tirasse a medida.- Não há dúvida - disse ela. - Tu também cresceste. Vamos ver. quarenta milímetros.- A sério? Uau, é verdade! Isto é mesmo fixe.- É como te digo - continuou Philippa. - Está a passar-se qualquer coisa muito estranha, aqui. Primeiro, temos dentes do siso dez anos mais cedo que o normal; depois, enquanto estamos a ser operados para nos tirarem os dentes, ambos sonhamos com o nosso tio. Ainda para mais, ambos crescemos extraordinariamente de um dia para o outro.- E não te esqueças das minhas borbulhas.- Não esquecendo as tuas borbulhas.- E a fenda na parede do meu quarto. Como era exactamente igual à da parede daquele museu egípcio.Philippa reflectiu por um momento e depois disse:- Queres saber outra coisa que é estranha? É de mim, ou o ar condicionado também te parece estar um pouco alto?- Desde que voltámos do hospital. -John encolheu os ombros. - A Sra. Trump. Provavelmente aumentou o ar condicionado. Quando está a aspirar os tapetes costuma ficar com calor.- Vamos perguntar-lhe.Os gémeos desceram cinco lanços de escadas a correr até à cozinha da cave, onde a Sra. Trump estava a esvaziar a máquina de lavar a loiça. Custava a acreditar, mas, 53OUtrora, numa galáxia distante e há muito tempo atrás, a Sra. Trump tinha ganho um concurso de beleza; as crianças tinham visto as fotografias e os recortes de jornal que o comprovavam. No entanto, o tempo não tinha sido lá muito clemente para a Sra. Trump, e agora era uma mulher vulgar e cabisbaixa, com menos um dente no maxilar superior e duas filhas a morar na Europa, que nunca via.- Sra. Trump? - perguntou Philippa. - A senhora aumentou o ar condicionado?- Não, não aumentei o ar condicionado. Por que haveria de o fazer? Eu adoro trabalhar num forno. Há pessoas que pagam muito dinheiro para irem a um ginásio e ficarem sentadas na sauna. Mas eu? Eu tenho a sorte de poder vir para aqui e receber o mesmo tratamento, e de graça.A Sra. Trump riu-se da sua graçola e, fechando ruidosamente a gaveta dos talheres, inclinou-se para a frente na banca da cozinha e sorriu, cobrindo a boca com a mão para que as crianças não reparassem na falta do dente, o quE elas faziam sempre.- Temos sentido um pouco de frio desde que regressámos do hospital - disse John.A Sra. Trump pousou uma mão fria na testa de John.- Não me parece que tenhas febre - disse ela. - Mas provavelmente estás

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a ficar constipado.- A sério - insistiu John. - Nós sentimo-nos bem. Só estávamos era com um pouco de frio, mais nada.- Frio, diz ele - troçou a Sra. Trump. - Estão trinta e dois graus lá fora, com setenta e cinco por cento de humiDADE.54- Depois, abanou a cabeça. - Tudo o que posso dizer é: não me culpem a mim, culpem a vossa mãe. Ouçam lá,o que ouvi dizer sobre vocês é verdade?

Philippa ficou tensa e lançou um olhar desconfiado à Sra. Trump.- Mas o que é que a senhora ouviu?- Vocês são crianças muito sortudas - disse a Sra. Trump. - Quando eu era miúda, nunca fui para um campo de férias. Nunca fui para lado nenhum.- Para onde é que ia, Sra. Trump? - perguntou Philippa, fazendo um pouco a vontade à sra. Trump enquanto voltava a relaxar. - Se pudesse ir para qualquer sítio.- Se tivesse dinheiro? Ia a Roma ver as minhas duas filhas. Casaram as duas com italianos.- É muito caro, ir a Roma? - perguntou John.- Para alguém como eu, é bastante caro, se queres que te diga. Mas talvez um dia vá, se ganhar a lotaria.- Alguém tem de a ganhar - disse Philippa, que gostava da Sra. Trump e tinha pena dela. - Por que é que não há-de ser a senhora?- Talvez um dia. - A Sra. Trump levantou os olhos e uma mão na direcção dos céus. - Quem me dera.Philippa suspirou e sentou-se de repente numa cadeira da cozinha.- Estás bem, querida? - perguntou a Sra. Trump.Philippa meneou a cabeça.- Sim. Por um momento senti-me um pouco esquisita, mais nada. Como se tivesse perdido toda a minha energia.55Abanou a cabeça.A Sra. Trump foi buscar um copo de água para Philippa, que o bebeu antes mesmo de se lembrar que detestava o sabor da água de Nova Iorque.Um minuto ou dois mais tarde, sentindo-se melhor, Philippa soltou um suspiro e sorriu.- É estranho. Agora sinto-me bem outra vez.- É como eu estava a dizer. Depois de uma operação, não devemos começar logo a andar por aí. Vocês deviam era estar na cama. Queres mais água?- Ugh. Não, obrigada - disse Philippa. Os olhos dela incidiram sobre a bolsa da Sra. Trump, que estava aberta na banca, e no maço de cigarros que conseguia ver perto do cimo.- Mas. Sabe, é muito estranho, não consigo mesmo explicar isto, mas de repente, tenho uma vontade enorme de. - Philippa hesitou em concluir o que ia dizer, como se fosse demasiado terrível para contar, o que, de facto, era. Ela estava espantada consigo mesma.A Sra. Trump soltou uma gargalhada e depois, meio constrangida, cobriu a boca com a mão, sobretudo o dente que faltava, enquanto adivinhava o que Philippa estava a sugerir.- Vocês dois dizem coisas engraçadíssimas - disse ela.- Não consigo explicar - disse Philippa. - Quero dizer, eu detesto a ideia de fumar cigarros. Acho que fazem muito mal. E gostava que a minha mãe não fumasse. Mas56sinto uma súbita atracção pela ideia de acender um. Por favor, Sra.

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Trump. Posso acender um dos seus?A Sra. Trump olhou para John.- Ela está a brincar, ou quê?

John encolheu os ombros e ficou calado. Estava silenciosamente à espera que a Sra. Trump concordasse, porque o mais estranho era que ele estava a ter a mesma sensação estranha que a sua irmã gémea. A ideia de um cigarro, e sobretudo o fumo que gerava, bem como a pequena brasa de calor da ponta, pareciam fascinantes e não o enchiam da aversão que normalmente sentia quando via um fumador.A verdade é que ele parecia precisar de fumo e calor, quase como se o seu corpo pensasse que aquele processo ígneo de acender um cigarro pudesse oferecer um calor capaz de responder ao frio que continuava a sentir.- Por favor - insistiu Philippa. - Por favorzinhozinhozinhozinho.- Queres que eu seja despedida? - A Sra. Trump riu-senervosamente. - Meu Deus, nunca ouvi tal coisa. Já alguma vez fumaste?- Não - disse Philippa. - Acho que simplesmente me senti atraída pela ideia de fumar.- Eu também - confessou John. - E não sei porquê.- Isso é porque vocês são gémeos - disse a Sra. Trump. John acenou em concordância.- O que se passa é. - disse ele. - Para ser sincero, nós só estávamos a brincar.57Lançou um olhar elucidativo à irmã, tentando fazê-la compreender.- Por isso, pode ir para o jardim fumar um cigarro, como faz sempre. Nós pensámos que se disséssemos que queríamos um a senhora ficaria tão chocada que talvez desistisse de fumar. Não foi, Phil?- Sim - disse ela, começando a compreender onde o irmão queria chegar com aquilo. Por algum motivo, Philippa tinha começado a pensar no modo como Winston, o rottweiler anteriormente conhecido como Neil, se aproximava quando o pai deles fumava um charuto, e começava a aspirar o ar.- Era só uma piada de mau gosto. Pode ir fumar um à vontade. Não queremos tirar-lhe esse prazer.A Sra. Trump abanou a cabeça. Na verdade, na altura em que as crianças tinham entrado na cozinha ela estava prestes a ir ao jardim fumar um cigarro, algo por que ansiava há várias horas. Pegou no maço de cigarros Salem e foi para o jardim. O plano deles formou-se quase telepaticamente: os gémeos seguiram a Sra. Trump e sentaram-se ao seu lado numas cadeiras de jardim, observando atentamente enquanto ela acendia o cigarro e depois expelia uma nuvem de fumo azul.- É aí que fica o campo de férias para onde suposta mente vamos - disse Philippa. - Em Salem.A Sra. Trump parecia surpreendida.- É um sítio estranho para um campo de férias - disse ela. - Com a história que tem.58- Foi o que pensámos - disse John. - Nós estávamosa encenar a peça de Arthur Miller, As Bruxas de Salemna escola. E... - Ele inalou o ar carregado de fumo.- A senhora tem razão: não é o tipo de sítio para ondese espera ir num campo de férias.- Pois não - corroborou a Sra. Trump. - Ainda assim,acredito que vão gostar, quando chegarem lá.- Sim - disse Philippa, inspirando profundamente o

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fumo da Sra. Trump através das suas narinas dilatadas. Só que temos estado a pensar que talvez preferíssemos irà Europa.Gradualmente, a Sra. Trump começou a sentir-se observada pelas crianças, que a fitavam como gatos vendoalguém a comer uma bela posta de peixe.- Está uma noite encantadora - disse John, inocentemente, enquanto a sua irmã fungava ruidosamente.- Está, não está? - disse Philippa, enquanto o seu irmãofazia o mesmo.A Sra. Trump franziu as sobrancelhas.- Vocês estão a... - Zangada, a governanta levantou-se, atirou o cigarro para a laje e esmagou-o com a suasapatilha. - Sinceramente - disse ela, regressando à cozinha. - Nunca vi tal coisa. Devia era contar à vossa mãe,isso é o que devia fazer. Vocês têm sorte por eu não ser dotipo de pessoa que denuncia os outros. Mesmo que essasduas pessoas mereçam umas boas palmadas.59Sentindo-se bastante envergonhados, os gémeos ficaram sentados no jardim, olhando fixamente para o céu cor de laranja.- Era assim tão óbvio, o que estávamos a fazer? - perguntou John.- Deve ter sido, senão ela não teria reparado.- Há uns minutos atrás, na cozinha, quando te sentaste e gemeste, o que é que tinhas?- Não sei, John. - Philippa fez uma pausa, enquanto tentava encontrar uma descrição que pudesse satisfazer o irmão. - Era como se tivesse qualquer coisa a puxar pela minha cabeça. Algo há muito esquecido. Só sei que, de repente, pensei em como seria bom se a Sra. Trump ganhasse mesmo a lotaria, porque assim teria dinheiro para ir visitar as filhas. Mas, assim que pensei nisso, senti-me subitamente cansada. Do mesmo modo que nos sentimos depois de termos feito uma corrida. - Encolheu os ombros. - Acho que só durou um momento. Foi como se estivesse prestes a desmaiar.- E agora?- Agora sinto-me bem.- Hormonas - disse John.- Como assim?- Estive a pensar no que disseste antes, e acho que eles talvez saibam o que nos está a acontecer.- Talvez. Não sei. - Philippa levantou-se, abraçando-sea si própria.- Anda. Vamos voltar para dentro. Tenho frio.60Os pais ainda estavam a falar na sala de visitas e, comoantes, os gémeos sentaram-se nas escadas para voltarema escutá-los. Escutar às escondidas nas escadas é o modocomo a maioria das crianças descobre as coisas importantes que afectam as suas vidas. E os gémeos depressa seaperceberam de que o Sr. e a Sra. Gaunt estavam dispostos a dar uma maior importância aos seus dentes e à ida para o campo de férias em Salem do que, de certo modo, pareceria apropriado.- Santo Deus! Logo agora que estava tudo tão bem! - disse o pai. - Tinha de acontecer isto. - Parece que não sabias que este dia acabaria por chegar - disse a Sra. Gaunt. - Fiz o meu melhor para tornar esta

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casa normal. Fiz sacrifícios pessoais consideráveis comomulher. Desisti do que estava a fazer quando te conheci. Aquilo era uma novidade para os gémeos, que pensavam que a sua mãe nunca tinha feito nada senão ser suamãe.- Eu sei, eu sei, e não penses que não te estou agradecido, Layla, minha querida.- Mas eu sempre, sempre fui directa contigo sobre os nossos filhos, Edward.- Claro, claro, só que eu nunca esperei que isto acontecesse tão cedo. Quero dizer, pelo amor de Deus, Layla,qual é o pai que conta que os seus filhos percam os dentesdo siso antes sequer de serem adolescentes? Eu tinha vinte e quatro anos quando me tiraram os dentes do siso.Vinte e quatro.61- Eu disse-te. O processo de envelhecimento é diferente, no meu lado da família.- E eu não o sei? - suspirou o Sr. Gaunt. - Olha para ti, Layla. Tens um aspecto fabuloso. E eu, eu nem sei o que pareço. Mais velho, de qualquer modo. Pareço teu pai, ou algo assim.- Mais velho e distinto - disse a Sra. Gaunt. - E olha que eu gosto disso num homem.- Oh, pára. Eu sou imune à lisonja. Tenho um espelho da barba que me diz a verdade todas as manhãs. Diz-me, então, o que vai acontecer agora?- Eles vão passar o Verão na Alembic House, tal como combinámos. Antes das coisas começarem a acontecer.- Santo Deus, Layla, da maneira como tu o dizes até parece que é. - o Sr. Gaunt sussurrou a palavra seguinte, como se não conseguisse proferi-la, pelo que, pelo menos por momentos, os gémeos não conseguiram ouvir o que ele disse. -... tê-los por perto.- Mas tu não te apercebes? É exactamente isso. Eles podem ainda não saber, mas o facto é que estão no limiar de uma espécie de despertar. Por isso é que estou preocupada. Ou os enviamos ao Dr. Griggs ou tu vais ter de aprender a ter cuidado com o que dizes. Todos nós.- Layla, diz-me que não estás a falar a sério - pediu o Sr. Gaunt. - Eles são os meus próprios filhos, pelo amor de Deus. Por que é que eu teria de ter cuidado com o que digo?- Porque eles não conseguem evitar. Suponhamos que um deles se zanga contigo. E depois?62- Mas, que diabo, o que estás a propor parece tão drástico - opinou o Sr. Gaunt. - Esse campo. Alembic House. É um sítio agradável? Como é que é esse tal Griggs?- Edward, querido, não há motivo para preocupações, posso garantir-te. Isto é para o bem deles. Vamos enviá-los para Alembic para aprenderem a estabelecer parâmetros quanto ao que podem ou não fazer. William Griggs tem imensa experiência nestes assuntos. Muito mais do que eu. Queres que ambos tenham uma vida normal e feliz,não queres?- Claro que quero. Tu sabes que sim.

- Basta - sussurrou John. - Acho que está na altura de descobrirmos um pouco mais sobre Alembic House e esse tal Dr. Griggs, não achas?Philippa seguiu o irmão até ao quarto dele, onde, sentando-se em frente ao computador, John começou a escrever algo num motor de pesquisa da

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Internet. Passado menos de um minuto, o rapaz tinha o que procurava.- Dr. William Griggs, pedopsiquiatra e pediatra.- Especialista na transfiguração, transformação, transmutação e socialização em geral de crianças sobredotadas. Proprietário e Consultor-Chefe de Alembic House, em Salem, no Massachusetts, Clínica e Escola de Verão para jovens sábios, crianças-prodígio, e genii juniores. O que é um genii?- É o plural em latim de génio, seu palerma.- Então é tal e qual como o tio Nimrod disse, no nosso sonho. Não é um campo de férias. É uma escola de Verão. Para génios.63- Genii. - Philippa franziu as sobrancelhas. - A palavra é genii. Saíste-me cá um génio.- Espera um minuto - disse John. - Espera só um minuto.- O que foi?- Não vês o que isto prova? Era impossível sabermos que isto não era um campo de férias a sério. Por isso, como é que podíamos, afinal, ter sonhado com esse facto? -John abanou a cabeça em sinal de negação. - Não, aquilo não foi mesmo um sonho.Philippa meneou a cabeça em sinal afirmativo.- Sim, estou a ver aonde queres chegar. Queres dizer que foi mesmo Nimrod quem falou connosco.- Está decidido - disse John. - Vamos simplesmente dizer-lhes e pronto. Tal como Nimrod disse. Que queremos ir para Londres. Se ele teve razão em relação à escola de Salem, faz todo o sentido que tenha razão quanto aos nossos pais nos deixarem ir a Londres, se lhes pedirmos.Philippa retraiu-se. A verdade é que ela tinha um pouco de medo da ideia de viajarem para Londres sozinhos, só não queria que John o soubesse.- Talvez fosse melhor deixarmos a decisão para amanhã. Depois vemos como as coisas estão, de manhã.John acenou em concordância.- Boa ideia. - Empurrou suavemente Philippa em direcção à porta do seu quarto. - Até lá vou ficar aqui a contemplar a possibilidade real de ser um génio. Sempre quis ganhar o prémio Nobel de qualquer coisa.64O GRITOO dia seguinte começou com um grito bem alto. John saltou da cama e entrou no quarto da irmã, que estava sentada na cama, a esfregar os olhos e a bocejar.- O que é que se passa? - perguntou Philippa. - Acho que ouvi um grito.- A mim também me pareceu ouvi-lo - disse John.Foi até ao lavatório e, quando olhou para o espelho, verificou que, afinal, as borbulhas não haviam feito o seu regresso vingativo durante a noite; de facto, o seu rosto continuava macio e livre de borbulhas.- Que alívio - disse. - Pensei que tivesse sido umsonho.- O quê? O grito?- Não, as minhas borbulhas terem desaparecido.

Os gémeos desceram as escadas e depararam-se com opai e a mãe a sussurrar no corredor.- Talvez seja só uma coincidência - disse o Sr. Gaunt.- Sabes quais são as probabilidades deste tipo de coincidência? - perguntou a Sra. Gaunt. - Cerca de um paradez milhões. Não, isto é só o começo.65

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- Talvez estejas a tirar conclusões precipitadas.- Achas? Não me parece.- Além disso, como é que eles poderiam fazê-lo? Nem sequer sabem. - O Sr. Gaunt deteve-se por instantes. - Ou será que sabem? Mas, por outro lado, talvez tenhas razão. É um bocado suspeito, isto acontecer tão pouco tempo depois. - Quando viu os gémeos, o Sr. Gaunt interrompeu o que dizia: - Hã, bom dia crianças - cumprimentou, nervoso.- Ouvimos um grito - disse Philippa. - O que é que aconteceu?O Sr. Gaunt olhou para a mulher e esboçou um sorriso.- A vossa mãe vai contar-vos tudo, não vais querida? Eu tenho de ir trabalhar. Já estou atrasado. Agora, eh, portem-se bem crianças, e tentem não se meter em sarilhos.- O que é que o pai quer dizer com isso? - perguntouJohn.- Nada - respondeu o Sr. Gaunt, Fingindo-se inocente.- Absolutamente nada. É só uma expressão. Como, por exemplo, tenham cuidado, Ou tenham um bom dia". Não precisam de ficar ofendidos. Garanto-vos que não estava a implicar convosco.- Mas foi exactamente isso que me pareceu - retorquiu John. - Acho que é um bocado injusto sugerir que seja alguma vez necessário evitar metermo-nos em sarilhos. Como se o facto de nos metermos em sarilhos fosse algo normal para nós.66Mal acabou de falar, John pensou que talvez tivesse ido longe de mais ao falar com o pai daquele modo. E, no preciso momento em que proferiu a última palavra, John já estava à espera que o pai tirasse os seus óculos escuros e o fitasse com o seu olhar mais penetrante. Por isso, o que aconteceu a seguir foi ainda mais surpreendente.O Sr. Gaunt pediu desculpa.- Peço desculpa, John. Desculpa, Philippa. Sim, tens razão. Falei sem pensar. Na verdade, não podia pedir filhos mais bem-comportados do que vocês.Enquanto falava, o Sr. Gaunt levou a mão ao bolso de trás, pegou num enorme maço de notas do tamanho de uma sanduíche, e tirou um par de notas de cem dólares.- Aqui têm - disse, atirando o dinheiro a John e Philippa. - Uma para cada um. Comprem o que quiserem. Para o campo de férias.- Edward, isso não é necessário - protestou a Sra. Gaunt.- Estás a ser paranóico.

John, que achava que ser paranóico era algo muito bom, sobretudo se o resultado era cada um deles receber cem dólares, estendeu a mão para aceitar o dinheiro do Sr. Gaunt antes que a sua mãe o convencesse a mudar de ideias, e Ficou chocado ao ver o pai tremer quando lhe tocou na mão. E o prazer que John sentia por estar a receber uma nota de cem dólares depressa desapareceu quando percebeu que o seu pai parecia ter medo dele. Olhando para a irmã, John percebeu que Philippa também tinha reparado nisto, e, enquanto a sua mãe seguia o Sr. Gaunt pelos67degraus da frente da casa até à limusina que o esperava, John agarrou no braço de Philippa e sussurrou-lhe ao ouvido:- Tu viste aquilo? - perguntou ele. Viste o pai? O modo como olhou para nós? Nunca mais vamos ter uma oportunidade melhor do que esta.- Para quê?- Para fazermos o que Nimrod sugeriu. Para lhes dizermos que queremos ir à Europa.- Não sei.

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- Queres passar o Verão todo numa escola para jovens génios?- Genii - corrigiu Philippa. - O plural é genii. Se fosses mesmo um génio talvez te lembrasses disto. - Philippa acenou em concordância. - Está bem. Vamos tentar.Os gémeos seguiram o pai até ao seu carro.- Temos estado a pensar - disse John. - E não queremos ir para esse campo de férias. Nós fomos vê-lo à Internet. E parece que esse sítio em Salem é mais uma escola que um campo de férias.- E, ainda por cima, esse tal Griggs é um psiquiatra- disse Philippa, como se isso piorasse a situação.- Sim. Ele vai pôr-nos logo a tomar Ritalin.- Oh, John, isso é um disparate - disse a Sra. Gaunt.- O Dr. Griggs é um homem maravilhoso. Alembic House é um sítio maravilhoso, para crianças sobredotadas - acrescentou ela, afagando o cabelo de Philippa. Onde vocês podem aprender a tirar partido de todas as vossas capacidades.68- Mas eu não quero ser uma criança sobredotada - insistiu John. - Eu quero ser uma criança normal.- Então o que é que vocês querem? - perguntou o Sr. Gaunt.- Queremos ir à Europa.- É verdade - disse Philippa. - Queremos ir visitar o nosso tio Nimrod, em Londres.- Sozinhos - disse John. - Queremos ir sozinhos. O Sr. Gaunt estava a franzir o sobrolho e a abanar a cabeça.- Com certeza que.John tinha a certeza de que a palavra seguinte seria um não" mas, no último momento, o Sr. Gaunt trocou um olhar com a sua mulher, e ambos os gémeos a viram abanar a cabeça, como se o aconselhasse a não proferir uma recusa.O Sr. Gaunt conteve-se e, em vez de responder a John com uma negativa, sorriu; depois, para espanto das duas crianças, meneou a cabeça.- Com certeza - disse ele. - Mas com certeza. Se isso é o que ambos querem. Se querem ir para Londres sozinhos, então é isso que terão de fazer. Não concordas, Layla?- É claro - disse ela pacientemente, como se os gémeos tivessem feito a sugestão mais razoável do mundo. - Não vejo por que não. São ambos suficientemente responsáveis para viajarem sozinhos. Vou falar hoje com Nimrod, para lhe dizer que vocês gostavam de passar algum tempo com ele e saber qual é a melhor altura para irem.69- E depois vou pedir à minha secretária para vos reservar os bilhetes de avião - disse o Sr. Gaunt. - A Classe Executiva da BA está bem para vocês?

John ficou boquiaberto. Ele e Philippa nunca tinham viajado em nada que não a classe económica.- Classe Club? - perguntou, espantado perante tal perspectiva.- Está bem, está bem, então é Primeira Classe - disse o Sr. Gaunt. - Não há qualquer problema.Vendo o rosto do pai naquele instante, John teve o pressentimento de que não lhe teria sido recusado o pedido de entrar para um circo.- Classe Executiva está óptimo, pai - disse Philippa.- E obrigada.- Sim, muito obrigado, pai - disse John, sorrindo. O Sr. Gaunt esboçou um sorriso afável, fechou a porta da limusina e, respirando mais facilmente agora que estava longe dos Filhos, mandou o seu motorista

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arrancar.Os gémeos voltaram a subir os degraus até à porta da frente, ainda acenando à limusina que então desaparecia de vista. A mãe sorriu-lhes com delicadeza.- Mas o que é que desencadeou tudo isto? - perguntou. - Vocês nunca falaram muito em Nimrod.- Não me parece que tenhamos culpa disso - disse Phi lippa. - A mãe também não fala muito nele. - Ela abanou a cabeça. - Não consigo perceber porquê. Ele é seu irmão.- Já fomos muito chegados, tal como vocês os dois.- A Sra. Gaunt encolheu os ombros. - Mas fomo-nos afastando, simplesmente.70John e Philippa seguiram a mãe até à cozinha, onde Philippa abraçou a mãe pela cintura. - É muito amável da sua parte deixar-nos ir para Londres sozinhos.A Sra. Gaunt esboçou um sorriso corajoso, mas era óbvio para os gémeos que algo a entristecia.- Não fique triste - pediu Philippa.- Qualquer mãe se sente um pouco triste quando vê os seus filhos a crescer - admitiu a Sra. Gaunt. - Simplesmente aconteceu mais cedo do que estava à espera. Como os dentes do siso. Provavelmente porque vocês são gémeos. Daqui a uns anos vão querer ir para a universidade, e depois vão sair de casa. - suspirou. - É a vida, acho eu.Na cozinha, Winston e Elvis afastaram-se de John quando este tentou dar-lhes os bons dias, afagando-Lhes as orelhas.- O que é que se passa convosco? - perguntou, perseguindo os dois cães à volta da mesa com a mão estendida à sua frente para mostrar que não lhes queria fazer mal.A Sra. Gaunt lançou um olhar irado aos dois rottweilers.- Primeiro, o Edward e, agora, vocês - disse ela. - Isto realmente é de mais. Winston? Elvis? Venham cá.Relutantes, os dois cães apresentaram-se acanhadamente à frente dos sapatos da Sra. Gaunt. Ela apontou um dedo indicador severo e bem esticado aos seus enormes focinhos.- Vocês estão a ser muito parvos - disse ela. - Não há motivo absolutamente nenhum para qualquer de vocês ter medo de alguém nesta casa, sobretudo dos meninos.71Se voltarem a portar-se mal, não há mais comida nem televisão durante o resto do dia. Perceberam?Os cães ladraram em uníssono.- Agora peçam desculpa a John por terem sido tãomalcriados.

Envergonhados, os cães baixaram a cabeça, caminharam até John e depois lamberam-Lhe as mãos num gesto de contrição.- Tudo bem, não há ressentimentos - disse ele; e, naverdade, tinha ficado bem mais intrigado por algo que a sua mãe tinha dito. Mas por que é que ele nunca o tinha percebido até então? Winston e Elvis gostavam mesmo de ver televisão. E essa noção dava toda uma nova dimensão à capacidade que os cães tinham de mudar de canais.- Onde está a Sra. Trump? - perguntou Philippa. Em vez de estar a preparar o pequeno-almoço das crianças, como era costume, a Sra. Trump tinha desaparecido de vista.- Está no jardim, a apanhar ar - disse a Sra. Gaunt.- Foi a Sra. Trump que gritou? - perguntou John.

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- Não sei qual foi a quantia exacta, mas parece que elaganhou a lotaria de Nova Iorque.- O quê? - gritou Philippa. - Mas isso é fantástico!Quanto?- Como disse, não tenho a certeza. Estas coisas são umpouco misteriosas para mim. Mas, segundo ela me disse; escolheu seis números, e acredita que pode ter ganhojackpot.72Vendo o jornal sensacionalista que a Sra. Trump costumava ler em cima da banca, John pegou nele e viu que já estava aberto na página com os números premiados e a estimativa do valor do jacpot.- Uau! - disse ele. - Diz aqui que houve um só vencedor de um jackpot de trinta e três milhões de dólares.John olhou à volta da cozinha e viu o bilhete de lotaria da Sra. Trump junto à sua bolsa. Pegou nele e verificou os números.- Fantástico! - murmurou o rapaz. - Ela tem mesmoos seis números!- Não é maravilhoso? - disse Philippa. - Agora a Sra. Trump pode ir a Roma visitar as filhas.- Foi isso que ela disse que gostava de fazer? - perguntou a Sra. Gaunt.- Sim. Ela disse que um dia gostava de ganhar a lotaria porque lhe parecia ser a única maneira de alguma vez poder pagar a viagem.- Estou a começar a perceber o que aconteceu - disse a Sra. Gaunt.- Como? - perguntou Philippa.- Começo a perceber por que é que o vosso pai estava aborrecido esta manhã - disse a Sra. Gaunt razoavelmente. Vendo a filha a franzir o sobrolho com perplexidade, acrescentou: - Quero dizer que ele vai ter pena de a ver partir. Porque ela faz quase parte da família. Estão a ver alguém com trinta e três milhões de dólares a querer ser governanta? Ela provavelmente vai querer ter a sua73própria governanta, agora que é uma mulher rica. Não fazia ideia de que fosse tanto dinheiro.Entraram no jardim e depararam com a Sra. Trump, arefrescar-se abanando um pacote de tremoços. O seu rosto estava manchado de lágrimas e o seu queixo tremia enquanto falava.- Mas o que é que vou fazer? - murmurou ela. - É muito dinheiro. O que é que vou fazer?

- O que é que vai fazer? - perguntou John, incrédulo.- Fazer? Sinceramente, acho que se vai divertir bastante a gastá-lo. Isso é o que eu faria.- Eu não vou sair daqui, sabem - disse a Sra. Trump, chorosa.- Oh, Sra. Trump, certamente não vai querer continuar a trabalhar. Logo agora que tem todo esse dinheiro. A senhora deve a si mesma levar uma vida mais descansada, a partir de agora.- Não, tenho estado aqui sentada a pensar nisso - disse a Sra. Trump, fungando. - Teria imensas saudades vossas, se deixasse este emprego. Eu não tenho muitos amigos, sabem. E o que é que iria fazer? Passar todo o tempo a fazer compras? Isso não é vida para ninguém. Não, se não se importar, Sra. Gaunt, vou só tirar duas semanas de férias. Vou visitar as minhas filhas. Acho que vou dar-lhes algum dinheiro. E depois volto para aqui. Se a senhora não se importar.- Tire o tempo que quiser, Sra. Trump. E não decida nada ainda. É o meu conselho. Pode ter uma opinião74

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bastante diferente daqui a uns dias. É o que normalmente acontece, quando os desejos das pessoas lhes são subitamente concedidos.À tarde, a Sra. Gaunt convenceu a Sra. Trump a tirar uns dias de folga para recuperar do choque de, subitamente, se ter tornado quase tão rica como os seus patrões.- Divirtam-se no campo de férias - disse ela aos gémeos quando saía de casa para apanhar o metropolitano de regresso ao seu apartamento em Aqueduct Avenue, no Bronx. - Eu sei que vocês se vão divertir imenso.- Não vamos para o campo de férias, Sra. Trump - disse John.- Vamos para Londres - explicou Philippa, triunfante.- Que bom - disse a Sra. Trump. - Enviem-me um postal, se tiverem oportunidade.- Pode contar com isso - disse Philippa, tentando não derramar uma lágrima, enquanto se perguntava se alguma vez voltaria a ver a Sra. Trump.75O DESAPARECIMENTO DOS BARSTOOLAlguns dias mais tarde, a Sra. Gaunt levou John ePhilippa ao Aeroporto John F. Kennedy, para apanharem o voo das nove horas para Londres, ajudou osgémeos a fazerem o chec-in da sua bagagem e depoisacompanhou-os até à sala de embarque da British Airways.- Se sentirem que estão prestes a ter um ataque de claustrofobia - disse a Sra. Gaunt -, aqui têm algo que vos fará sentir melhor. - Entregou um pequeno frasco roxo comuma tampa de rosca dourada a Philippa. - Tomem um dequatro em quatro horas.- Obrigada, mãe - disse Philippa, soltando um suspiro de alívio. Ela estava a contar receber uma dose doscomprimidos de viagem especiais da Sra. Gaunt; em viagens anteriores, os gémeos tinham recebido sempre ummedicamento anti-claustrofobia já dissolvido numa bebida, ou esmagado numa colher cheia de compota; comoaquela era a primeira vez que viajavam sem os pais, eratambém a primeira vez que lhes eram confiados os comprimidos.76

- Devem chegar a Londres por volta das sete e meia da manhã - disse a Sra. Gaunt, entregando os bilhetes a John.- Nimrod estará à vossa espera no aeroporto. A Sra. Gaunt curvou-se para abraçar os filhos.- Adeus, meus queridos - disse ela, chorosa. - Vou ter muitas saudades vossas. De início, Londres e Nimrod podem parecer um pouco estranhos. Mas, aconteça o que acontecer, tentem lembrar-se de que o vosso pai e eu vos amamos muito. E que tudo o que fizemos foi para o vosso bem.Engoliu em seco e tirou um lenço da sua bolsa de pele verde de crocodilo Hermès e enxugou ao de leve os cantos dos seus olhos turvos pelas lágrimas.- Adeus.E depois partiu.Passado o que pareceu uma eternidade, a hospedeira veio buscar os gémeos para os levar para o avião, o que era a sua deixa para tomarem os comprimidos que a mãe lhes dera para combater a claustrofobia. John olhou com curiosidade para o comprimido prateado que tinha na palma da mão.- Não sei se o hei-de engolir ou polir.

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- Até são bonitos, não são? - observou Philippa, antes de engolir o seu. - Não o vais tomar?- Acho que vou esperar até estarmos no avião. Só para o caso de tu caíres morta.Quando chegaram ao avião, John já estava a transpirar de medo, à medida que a ideia de passar sete ou oito horas dentro de um grande tubo de metal o começava a assaltar.77- Isto parece tão pequeno - disse ele, quando encon traram os seus lugares. - É como estar dentro de um aspirador. Importas-te que eu fique ao lado da janela, Phil? Estou a sentir-me um pouco enclausurado. Céus, isto é abafado. Como é que se mete mais ar dentro desta coisa? E ele tem mesmo de fechar aquela porta agora?- Toma o comprimido - aconselhou Philippa calmamente. E, sem mais discussão, John engoliu o comprimido prateado. O efeito foi quase milagroso. Um brilho quente começou imediatamente a espalhar-se pela sua garganta e peito até ao estômago, e depois pela cabeça e membros. Era como se alguém tivesse activado um interruptor para o fazer sentir-se mais relaxado e à vontade com o que o rodeava. John pensou, então, que alguém o poderia fechar dentro de um frasco sem que ele se importasse com isso.Vinte minutos depois, estavam no ar.Serviram-se bebidas e, com as bebidas, veio o entretenimento de voo. Ambos os gémeos estavam ansiosos por ver todos os filmes que não lhes seria permitido ver se os seus pais estivessem presentes. John ficou acordado a noite toda, e viu dois filmes e meio, desaconselháveis a crianças, sem intervalo. Mas, depois do primeiro filme, Philippa adormeceu.A menina foi acordada pela turbulência que abanava violentamente o avião - parecia que o avião estava a cair numa estrada cheia de buracos profundos. O avião chiava de modo alarmante, como uma diversão barata na78

feira popular e, do lado de fora da janela, as asas oscilavam para cima e para baixo como uma prancha de saltos sobre uma piscina. Sentindo-se, uma vez mais, um pouco nervosa por estar fechada na atmosfera pressurizada do avião, Philippa tomou mais um comprimido para a claustrofobia, que tinha um sabor forte a carne assada no espeto, e depois pôs-se a escutar o casal que estava do outro lado do corredor. De mãos dadas e tremendo de forma absolutamente evidente, era óbvio que não estavam a gostar do seu voo acidentado para Londres.- Oh, meu Deus! - exclamou a metade feminina do casal, uma mulher grande com um boné de beisebol e um poncho de cores vivas. - Isto é terrível. Meu Deus! É normal o avião estar a balançar assim de um lado para o outro? Parece que está a desfazer-se. Otis? Se sobrevivermos a esta noite, promete-me que nunca mais viajamos de avião. Excepto para voltarmos para casa, para os EUA.Otis, a cara-metade da mulher, era ainda maior, com um corpo que parecia o sexto ou sétimo queixo da sua cabeça colossal. Depois, olhou para Philippa e esboçou umsorriso como se, mesmo nas profundezas do seu medo, esperasse poder reconfortar outra pessoa. Isto foi o suficiente para que Philippa sentisse que gostava de Otis etivesse bastante pena dele. Ele soluçou um pouco, engoliu em seco de modo desconfortável, como se tentasse controlar um desejo de vomitar, levou uma mão rechonchuda à boca e disse:79

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- Tudo bem, menina?Philippa meneou a cabeça.- Tudo bem - respondeu.- Admiro a sua coragem, menina. Admiro, sim. Quantoa mim, gostava de estar em Poughkeepsie. Não me custa dizer-lho. Desejava era estar em casa.Poughkeepsie, como toda a gente sabe, é uma pequenacidade (trinta mil habitantes) perto de Nova Iorque, e é famosa pelo fabrico de lâmpadas eléctricas.Philippa retribuiu o sorriso de Otis de um modo queesperava parecer suficientemente compreensivo. Era óbvio que o pobre homem estava apavorado.- Nós vamos para Londres - anunciou Otis. Philippa resistiu à tentação de lhe lembrar que todos os passageiros do avião iam para Londres.- Este mundo é pequeno - comentou. - Nós também.- Mas, neste momento? Ambos gostávamos de estarem Poughkeepsie.- Isto está um pouco agitado - admitiu Philippa.- Bem, gostei de falar consigo, menina. Também tenhouma filha. Agora já é crescida. Mas não tenha medo de me chamar, se precisar de alguma coisa. Verei o que posso fazer para ajudar.- Muito obrigada. - Philippa pensou que Otis eraprovavelmente o homem mais amável que alguma vez conhecera.Pouco tempo depois, passou pelo sono.80Philippa não fazia ideia de quanto tempo tinha dormido mas, quando foi acordada, de um modo que lhe pareceu bastante rude, pela hospedeira, John estava a ver um filme completamente diferente sobre macacos falantes. A hospedeira estava com um ar preocupado.- Viram o casal que estava do outro lado do corredor? Apontou para os dois lugares onde o casal de Poughkeepsie estivera sentado.

- Está a falar de Otis e a sua mulher?- Sim. Otis Barstool e a sua mulher, Melody.- Sim, eu vi-os. Falei com Otis. Ele é simpático. Tem um pouco de medo da turbulência, mas é simpático.- Sabe onde é que eles estão agora? Se poderão estar escondidos algures?- Escondidos? - Se Philippa parecia surpreendida era porque pensava que só havia um número limitado de sítios onde alguém se poderia esconder num Boeing 747, mesmo para uma criança como ela, quanto mais para duas pessoas tão grandes como Otis e Melody Barstool.Uma coisa era certa: Philippa talvez conseguisse subirpara uma bagageira, mas Otis não, e certamente Melody também não; assim, tirando os quartos de banho e oscacifos para casacos, Philippa não sabia que sítio sugerir à pobre hospedeira para procurar o casal desaparecido.Além disso, Otis não lhe parecera o tipo de pessoa capazde fazer algo tão maldoso como esconder-se num vootransatlântico para o qual já tinha bilhete.81- Por que é que eles haveriam de se esconder? O piloto surgiu por trás da hospedeira.- Bem, eu estava à espera que a menina me pudesse responder a essa pergunta - disse a hospedeira. - Visto que parece ter sido a última pessoa a falar com eles. A questão, Philippa, é que eles não estão nos seus lugares e o capitão ligou o sinal para as pessoas apertarem os cintos, porque brevemente vamos aterrar em Londres, e a verdade é que

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já procurámos por todo o avião e, pura e simplesmente, não os conseguimos encontrar em lado nenhum. Até procurámos no compartimento da bagagem.O piloto agachou-se ao lado do assento de Philippa, sorrindo afavelmente.- Nós temos um registo de quem entra no avião e do lugar onde as pessoas estão sentadas, e não é como se pudessem simplesmente sair ou qualquer coisa do género. Eles devem estar escondidos em qualquer sítio. A única questão é onde, e porquê. - Depois, encolheu os ombros.- É um assunto muito sério, perder passageiros durante um voo. Muito sério. Há todo o tipo de regras para evitar que isso aconteça. Se se lembrar de alguma coisa que nos possa ajudar a encontrá-los, qualquer coisa mesmo, ficar-Lhe-íamos tremendamente agradecidos.Philippa abanou a cabeça. Não sabia o que responder.- Lamento muito, não me ocorre nada. Só me lembro que ele parecia não gostar muito de voar.- Já contou as pessoas? - perguntou John.82- É claro - respondeu o piloto pacientemente. - Entraram 490pessoas neste avião, no Aeroporto JFK. Agorasó sabemos onde estão 488.- Ooops - disse John, sorrindo.O piloto e a hospedeira abanaram pesarosamente a cabeça e depois partiram com um ar mais preocupado doque nunca.- O que é que achas que lhes terá acontecido? - perguntou Philippa.- Eu não vejo como é que eles poderiam saltar de pára-quedas e fechar a porta depois de saírem - disse John.

- A não ser que tivessem um colaborador a bordo. Mas,assim sendo, o piloto saberia que a porta tinha sido aberta. Bem como todos nós. Eu acho que só há mais uma possibilidade.- Que é?- Bem, já lemos histórias sobre pessoas que desaparecem de navios. Como o Marie Celeste. O Triângulo dasBermudas, esse tipo de coisas. Talvez isto seja algo parecido. Talvez eles tenham sido levados para uma naveespacial.- Ainda bem que não falaste nessa ideia ao piloto - disse Philippa.Os gémeos olharam para os dois lugares vazios, do outrolado do corredor, que tinham todo o aspecto de, a qualquer momento, poderem voltar a ser ocupados pelos doispassageiros desaparecidos.83- Espero que eles apareçam - suspirou Philippa. - Ele era um homem simpático. Só espero que isto não lhes estrague as férias.- Ouve - disse John -, quando eles aparecerem, vais ver que eu tenho razão. Eles vão confirmar o que eu disse, ouve o que te digo. Vão dizer que foram raptados por extraterrestres.- Extraterrestres - troçou Philippa. - És capaz de parar com essas histórias de extraterrestres? Essa teoria é tão improvável que eu pergunto-me como é que tu podes sequer ser meu irmão gémeo.- Já leste Sherlock Holmes?Philippa abanou a cabeça.- Talvez fosse bom considerares o que ele disse, umavez.- Que foi?

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- Depois de se eliminar o impossível, o que quer que reste, por muito improvável que seja, deve ser a verdade.- John meneou a cabeça. - O avião foi vasculhado de uma ponta à outra. Por isso, eles não estão no avião. A partir do momento em que se admite isto, parece-me que é necessário aceitar o improvável, quer queiras quer não.84NINRODQuando atravessaram a porta de chegada do aeroporto de Heathrow, em Londres, os gémeos nãotiveram dificuldade em identificar o tio Nimrod entre amultidão de pessoas que estavam à espera dos passageiros do voo da British Airways, proveniente de Nova Iorque. Para começar, ele vestia o mesmo fato vermelho, amesma camisa vermelha, e a gravata vermelha com estrelas douradas que tinha usado no sonho dos gémeos.No meio das pessoas de aspecto vulgar que estavam emHeathrow, Nimrod destacava-se como um morangovermelho e solitário num vulgar pão-de-ló. Agora que ovoltavam a encontrar, repararam que ele talvez parecesseum pouco mais assustador do que se lembravam, comose o seu lugar fosse num palco inglês a representar umqualquer rei tirânico e retórico, numa peça de WilliamShakespeare. Quando avistou os jovens sobrinhos, a suavoz alegre e ressonante ecoou pela zona de chegadas tãoclaramente como se o que ele segurava na mão fosse um

microfone e não um charuto com a espessura de um pequeno telescópio.85- Bem, Finalmente, aqui estão as minhas jóias - disse ele, pouco se preocupando com quem o ouvia. E, de facto, a quinze metros de distância, duas raparigas vaidosas que estavam na tabacaria, do lado oposto do salão, voltaram-se, pensando que alguém estava a falar com elas.- E, meu Deus, como vocês cresceram! Parecem mais altos do que na última vez em que nos encontrámos.- Quarenta milímetros desde que tirámos os nossos dentes do siso - precisou John, orgulhoso.- Com que então quarenta milímetros? Bem, isso não me surpreende nada. Tudo é maior em Nova Iorque, não é? Os edifícios, os carros, as sanduíches, as pessoas, tudo. Por que é que vocês os dois haveriam de ser uma excepção?Colocando o enorme charuto na boca, Nimrod pousou duas mãos enormes e cheias de anéis de ouro no carrinho que transportava a bagagem dos gémeos.- Isto é tudo? Como são parentes da minha irmã presumi que chegariam com pelo menos doze malas cada um.- Isto é tudo - assegurou John.- É? Então vamos procurar Grunho e o carro. As crianças seguiram Nimrod enquanto ele empurrava o carrinho com a bagagem até ao exterior, bocejando como gatos quando saíram para o que se fazia passar por ar puro, no aeroporto de Heathrow. Eram sete e meia da manhã e eles tremiam ligeiramente, à medida que uma manhã de Verão inglesa lhes ia gelando os ossos.- O tio disse desde a última vez em que nos encontrá mos - observou Philippa. - Estava a referir-se a que86

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éramos bebés ou ao sonho que tivemos na semana passada,em que o tio apareceu?- Apareci? - perguntou Nimrod, sorrindo.- O tio tinha esse fato vestido - referiu John. - E disse que precisava urgentemente da nossa ajuda.- Tudo a seu tempo - disse Nimrod. - Tudo a seutempo. É pena termo-nos visto tão poucas vezes nestesúltimos dez anos.- A mãe não nos explicou muito bem o que é que sepassou - disse Philippa, sondando o tio.- O quê, nunca vos disse nada?- Não, nada - respondeu Philippa.Nimrod fez um esgar.- Pois. Bem, a vossa mãe é assim - disse Nimrod. Nunca se sentiu muito à vontade para falar sobre estanossa coisa.- E que coisa é essa? - perguntou John.- Primeiro vamos encontrar o carro, está bem? Oh,nós os três vamos viver aventuras fabulosas. Vai ser umVerão emocionante. Sempre esperei, mesmo quando jánão havia esperança de que um dia isto pudesse acontecer.Desde o dia em que vocês nasceram. - Embora fosse cedo,Nimrod parecia bastante efervescente, como uma garrafade refrigerante que tivesse sido agitada com o gargalotapado. - É claro que há sempre a possibilidade de anossa associação vir a ter o seu lado perigoso. Mas qualquer aventura a sério deve ter um forte elemento de risco

e, apesar de tudo, este é o único modo de nos pormos à87prova e fortalecermos o nosso carácter. Através da adversidade. O quê? Mas onde é que está Grunho com o maldito carro?Nimrod piscou os olhos enquanto olhava para a estrada, o que deu a John e Philippa a oportunidade de trocarem um olhar arregalado que parecia perguntar que história é esta do perigo? "- O problema é que eu trouxe os óculos errados - murmurou Nimrod.John avistou um enorme Rolls Royce castanho-avermelhado e prateado que estava estacionado a cerca de quarenta e cinco metros de distância e, ao lado, um homem que parecia estar a acenar-lhes furiosamente.- É aquele o carro? - perguntou John, orientando o olhar de Nimrod para o Rolls Royce.- Ah, ali está ele - gritou Nimrod, partindo em direcção ao Rolls Royce. - E já não era sem tempo.Quando se aproximaram do Rolls Royce viram que o motorista - um homem alto, corpulento e cadavérico, com um fato cinzento e um boné sobre a cabeça careca - só tinha um braço. Os gémeos acharam que este era o aspecto mais interessante do homem, pois ambas as crianças sempre tinham pensado que, para se conduzir qualquer tipo de carro, quanto mais um Rolls Royce, eram precisos dois braços.- Este é o Sr. Grunho - apresentou Nimrod. O Sr. Grunho conseguiu grunhir uma saudação e começou a pôr a bagagem na mala do enorme carro.88- Um polícia de trânsito obrigou-me a deslocar o automóvel, senhor - explicou Grunho, numa voz que assentaria melhor a um cangalheiro de Lancashire. - Querodizer, tive de deslocar o automóvel, senhor. E depois tivede andar às voltas até vos ver aqui, agora mesmo. Peço

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desculpa por qualquer inconveniência que tenham, oumais provavelmente, não tenham sofrido.- Tens sempre uma boa desculpa, Grunho - disse Nimrod, encaminhando os gémeos para o banco de trás.- Obrigado, senhor.- Como devem ter reparado, crianças - disse Nimrod -,o Sr. Grunho não só é insolente, como só tem um braço.É, pensarão vocês, lamentável para o Sr. Grunho, mas issonão o impede de ser um excelente condutor. E posso garantir-vos que estarão bastante seguros com ele ao volante deste carro.- Obrigado, senhor. É muita gentileza sua.- Que, como também poderão reparar - acrescentouNimrod, apontando para o volante a que tinha sido presoum grande manípulo -, foi especialmente modificadopara permitir que uma pessoa maneta o possa conduzir.Quando, por fim, já estavam dentro do Rolls e se dirigiam para a casa de Nimrod, em Londres, este reacendeuo seu charuto e lançou uma nuvem tão grande de fumoazul que os gémeos quase se perguntaram se também nãohaveria um buraco no tubo de escape do carro. Mais fumosaiu, encapelado, das narinas dilatadas de Nimrod e, subitamente, ciente do interesse que os gémeos pareciam estar

89a nutrir pelo seu charuto, Nimrod olhou primeiro para ele e depois para eles com o ar - ou, melhor dizendo, o fumo - de alguém que pensa que pode ter feito uma grande asneira.- Oh, meus queridos, estava a esquecer-me - disse ele.- Vocês são americanos, não são? Peço desculpa. Não me tinha ocorrido que talvez não gostassem do meu charuto.- O cheiro dos charutos não nos incomoda nada - disse Philippa.- Imagino que tenham herdado isso da vossa mãe. Ela também costumava gostar muito de um bom charuto.- A mãe? Deve estar a brincar!- Não. A vossa mãe gostava muito de charutos. Enquanto Nimrod falava, eloquente, sobre assuntos que lhe eram tão queridos, o Rolls Royce flutuava suavemente pelas ruas de Londres, como um tapete mágico com telhado, e Philippa olhava lá para fora através dos vidros fumados, para dar a sua primeira vista de olhos à cidade. Londres parecia muito mais extensa que Nova Iorque, pelo que o céu era algo distinto e não um espaço partilhado com grandes arranha-céus e, com efeito, a primeira impressão que teve quando viu os edifícios da cidade foi sentir-se aliviada pela perspectiva de não ter de subir tantos lanços de escadas. Ela gostava das muitas árvores e pequenos jardins que via e quase aplaudiu quando viu o seu primeiro autocarro e o seu primeiro táxi negro,John estava mais interessado no carro do que na cidade. Nunca tinha andado num Rolls Royce e, com os assentos90de couro vermelhos, os tapetes espessos e as mesas de nogueira, lembrou-lhe o gabinete do pai, em Nova Iorque; e, sem dúvida que era igualmente silencioso, mesmo emmovimento.- Adoro o seu carro, tio Nimrod - disse John.- É muito simpático da tua parte, meu querido rapaz- disse Nimrod. - A qualidade permanece, mesmo depois do preço e da

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empresa que o criou terem sido esquecidos. Comprei-o a um realizador de cinema cuja mulher com tendência para se deixar estimular cromaticamente, veio a descobrir-se, era instigada a roubar quando via a cor vermelha. E, por isso, para grande tristeza dele, foi obrigado a vender-mo.- Toda a gente em Inglaterra fala como o tio? - perguntou John.- Na verdade, não. O inglês mais correcto é falado pelos holandeses e alemães. Os próprios ingleses falam uma forma de inglês bastante misturada e truncada que não tem princípio, nem fim, óbvios, e não passa de uma salgalhada espessa que te põem no prato e esperam que percebas. Sobretudo no norte de Inglaterra. - Nimrod parecia estar a dirigir-se à nuca de Grunho. - É que a linguagem é particularmente amorfa lá em cima.O Sr. Grunho soltou um leve grunhido, como se reconhecesse que o comentário tivera a intenção de o provocar.O tio Nimrod vivia no número 7 de Stanhope Terrace, ao lado de Bayswater Road e muito perto de Kensington Gardens, que, aliás, fez questão de indicar através da janela do carro.91- Há uma estátua de Peter Pan algures lá dentro - disse ele, acrescentando num tom solene e trocista:

- O rapaz que se recusava a crescer. Nunca confies numa criança que gosta de ser criança. É tão estranho como não gostar de carne, chocolate, jardins zoológicos, circos, parques de diversões, carros rápidos, do Natal ou dos aniversários. Sabem o que chamamos a uma criança que não gosta de nenhuma destas coisas?Philippa pensou por um momento.- Estúpida?- Está perto, mas não é bem isso. Bebé. Isso é o que chamamos a uma criança que não gosta de nenhuma destas coisas. Bebé.O rosto de Nimrod contorceu-se com repugnância.- Leite, leite e mais leite; não pensam em mais nada. Não suporto essas criaturas. Fico enjoado só de pensar nessas pequenas bestas carecas. São horrores insaciáveis, egoístas e incontinentes.- Mas o tio também já foi bebé - disse Philippa, que gostava bastante de bebés. - Não foi?- Não mo lembres - depois estremeceu visivelmente.- Essa experiência continua a assombrar todos os meus sonhos ociosos como o espectro indesejável de Banquo'.- O tio está a dizer que se lembra de ter sido um bebé?- Sim. De todos os pratos de papa. Todas as fraldas molhadas.Da peça Macbeth, de Shakespeare. (N. T. )92- Mas, como? - Há uma peculiaridade no nosso lado da família que faz com que, à medida que envelhecemos, nos comecemos a lembrar de todos os horríveis detalhes da nossa infância. No dia em que morreu, o meu avô disse-me que tinha acabado de se lembrar do momento exacto do seu próprio nascimento. De facto, acho que foi o choque dessa mesma memória que o matou.- Mas isso é horrível - disse Philippa.- Pois é - concordou Nimrod. - Horrível, elevado a144.Philippa dirigiu um sorriso amável ao seu tio, mas, ao mesmo tempo, perguntava-se se o facto de Nimrod não gostar de crianças não seria o verdadeiro motivo pelo qual, até então, ela e John só o tinham visto

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uma vez nas suas jovens vidas.O Rolls Royce parou no exterior de uma grande casa branca com um telhado acastelado e várias torres, o que lhe dava o aspecto de uma pequena fortaleza recentemente lavada. Nimrod acompanhou-os até ao interior do seu domínio mágico.- Sejam bem-vindos a minha casa - disse ele. - Entrem livremente e pela vossa vontade e não se esqueçam de deixar Ficar alguma da felicidade que lhe trazem.John e Philippa, que não estavam habituados a tanta formalidade, disseram que assim fariam.A casa parecia muito maior por dentro e era extraordinariamente sossegada, tendo em conta a franca 93

proximidade de uma estrada com muito trânsito. Tinha uma curiosa mistura de estilos. A parte mais antiga da casa parecia bastante medieval, com os seus velhos lambris de madeira, tapeçarias desbotadas, soalhos de ébano e lareiras de pedra francesa, decoradas com cabeças esculpidas do que Nimrod dizia serem deuses e deusas romanas; ao passo que na torre parcialmente revestida a madeira, uma grande salamandra em madeira subia, rastejando, uma escadaria de madeira coroada por uma figura de carvalho polido que retratava um sorridente beduíno árabe segurando uma lâmpada de bronze ancestral, que iluminava o patamar com uma longa e constante chama azul. Porém, a maior parte da casa tinha um aspecto mais moderno, isto é, de apenas duzentos ou trezentos anos; esta parte da casa estava cheia de artifícios arquitectónicos, como espelhos, tectos que pareciam céus estivais, estantes que eram portas e, nas paredes cobertas com um estranho papel de parede amarelo-prateado que mais parecia uma película baça de ouro branco, portas que, afinal, não eram portas.Na maior parte das divisões havia artefactos egípcios, estatuetas de animais em bronze, troféus de caça, ovos de avestruz, e todas as cadeiras e sofás estavam estofados; de vermelho, que parecia ser a cor favorita de Nimrod. Quase todas as lareiras estavam acesas; além disso, os castiçais grotescos e enormes candelabros de prata, algumas dúzias de velas de cera, faziam com que, mesmo a meio da manhã, parecesse noite.94Quase todas as pinturas retratavam pessoas nuas, mas Philippa pensou que só algumas tinham um aspecto atraente e considerou que muitas deviam ter perdido algum peso antes de serem retratadas. Noutros pontos da casa, caixas humidificadas ornamentadas, cheias dos melhores charutos, lutavam por um espaço, lado a lado com belas peças de vidro, isqueiros antigos e ancestrais lâmpadas romanas ou etruscas.Uma biblioteca com várias centenas de livros era onde Nimrod parecia sentir-se mais confortável e aí, num lugar de destaque, estava uma grande secretária de ébano com pés terminando em garras de leão e uma cadeira dourada que Nimrod insistia terem pertencido ao próprio grande Rei Salomão.- Isto é muito valioso? - perguntou John.- Valioso? Queres dizer em termos de dinheiro?- Sim. Quero dizer, o Rei Salomão era muito rico, não era?- Isso é uma ideia errada, mas muito comum - observou Nimrod.- Mas ele não tinha as suas próprias minas de diamantes? - perguntou Philippa.- Sim - reforçou John. - As Minas do Rei Salomão. Certamente que o tio já ouviu falar nelas.

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Nimrod abriu uma gaveta da sua secretária e tirou um grande livro que pousou sobre o tampo.- Lê isto - disse, virando-se para John, orgulhoso.- Não consigo. É uma escrita antiga e esquisita qualquer.95- Ah, sim. Pois é. Tinha-me esquecido de que vocês ainda não têm muita instrução. Bom, a questão é que o Rei Salomão tinha todo o tipo de problemas com os seus súbditos. E mantinha uma espécie de diário em que anotava as muitas maneiras como as manhas do seu povo o irritavam. Como tinha sentido de humor, o velho Salomão chamava-lhe o seu Grande Livro das Manhas. Estão a perceber? Pode ter sido o resultado de um simples erro de tradução, ou então de alguém que tenha feito confusão, mas nunca houve as Minas do Rei Salomão. O que havia era um Livro de Manhas. As Manhas do Rei Salomão.Nimrod apontou um grande dedo indicador aos gémeos.

- Vocês vão aprender muitas coisas interessantes enquanto estiverem comigo. E olhem que são coisas úteis, não o tipo de tolices que vos ensinam nas escolas. É esse o problema das escolas de hoje. Só se preocupam com o dinheiro e os resultados dos exames. Deitam cá para fora mais banqueiros e contabilistas, como se o mundo já não os tivesse em excesso. Ouçam o meu conselho: a educação é algo que é melhor sermos nós próprios a adquirir.- E por falar nisso - retomou -, tenho um presente para vocês.Nimrod foi até às suas estantes, escolheu dois livros com belas encadernações e deu um a cada gémeo.- Este é um dos melhores livros alguma vez escritos. As Mil e Uma Noites. Era com estas histórias que a Princesa Xerazade entretinha um sultão terrível que tinha96ameaçado matá-la, a ela e a todas as suas outras mulheres, se as histórias o aborrecessem. Leiam-no o mais depressa possível e depois digam-me o que acharam.- Depressa? - disse John, folheando o livro. - Mas tem mais de mil páginas. Mil e uma, para ser preciso. Iria demorar o ano inteiro a ler este livro. E, quem sabe, também todo o próximo ano.Philippa tinha conseguido equilibrar o pesado livro de couro sobre a palma da mão e tentava agora adivinhar quanto pesava. Ela era uma leitora mais entusiasta do que John, mas mesmo ela, que tinha lido o Oliver Twist de Charles Dickens, se sentia intimidada pelo projecto de leitura que lhe tinha sido dado.- Deve pesar pelo menos dois quilos - comentou. - Se adormecermos enquanto o lemos corremos o risco de nos magoarmos a sério.- Ainda assim, conto que o leiam - disse Nimrod. E agora deixem-me mostrar-vos os vossos quartos.Os gémeos descobriram que tinham sido alojados na torre velha, em dois grandes quartos heptagonais que eram separados por um fabuloso quarto de banho Art Deco adornado com ónix russo e manípulos de bronze.- Vocês vão ficar muito confortáveis nestes quartos- disse o tio Nimrod. - Podem ter a certeza. Mas, se decidirem explorar a casa, lembrem-se de que é muito velha. Sobretudo esta parte. Tenham em consideração que estamos em Inglaterra, e a Inglaterra não é propriamente a América. Os nossos costumes não são os vossos e talvez vejam coisas que vos pareçam um pouco estranhas.97Abanou a cabeça.- Se acontecer alguma coisa invulgar, tentem não ficar assustados. Esta

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casa é bastante benigna.John e Philippa sorriram corajosamente e tentaram não parecer demasiado assustados, o que era difícil porque o que Nimrod dissera parecia bastante assustador.- Para que se sintam em casa - continuou, conduzindo-os até uma pequena sala de estar com um sofá e uma televisão. Pegando no comando remoto e ligando a pequena televisão, acrescentou: - Arranjei-vos uma sala de televisão onde, ocasionalmente, poderão relaxar sozinhos. Eu próprio não preciso de uma televisão. Mas acredito que, hoje em dia, as crianças quase não conseguem viver sem esta coisa.- Ei, olha. -John apontou para a televisão, pois no ecrã estava uma imagem de Otis e Melody Barstool, de Poughkeepsie, em Nova Iorque.

- Rápido! - gritou, virando-se para o tio. - Aumente o volume. Nós temos de ver isto.- Credo! - exclamou Nimrod. - Não fazia ideia de que a dependência fosse assim tão crónica.- Deve ser sobre o casal que estava ao nosso lado no avião. Eles simplesmente desapareceram durante o voo.- Ai, sim? - disse Nimrod. Esboçou um sorriso estranho e sentou-se ao lado dos gémeos no sofá. - Mas isso é fascinante. Eu adoro um bom mistério.- Uma busca exaustiva do avião realizada em pleno ar e, já no solo, em Londres, não revelou quaisquer pistas98quanto ao paradeiro do casal - disse o apresentador da sBc. - A polícia foi alertada em Londres e Nova Iorque, à medida que aumentava a preocupação em torno da segurança do casal, que está na casa dos setenta. Depois, hoje de manhã, o casal apareceu são e salvo na sua cidade natal de Poughkeepsie, e aparentemente incapaz de explicar o seu próprio desaparecimento. Várias testemunhas alegam terem visto os Barstool a bordo do Boeing 747 da British Airways e terem falado com eles durante o voo.- E - disse Nimrod - eles estavam sentados ao vosso lado, dizem vocês?- Sim - disse Philippa.- Tínhamos acabado de comer a refeição de voo - contava Otis Barstool a um repórter. - Eu comi o bife e Melody escolheu o frango. Nenhum de nós bebe álcool. Estava a preparar-me para ler um livro quando entrámos numa zona de turbulência bastante violenta. Nunca viajámos muito de avião, por isso não me importo de lhe dizer que ficámos ambos muito nervosos.Nimrod riu-se.- Muito nervosos - repetiu, imitando perfeitamente a pronúncia de Otis Barstool.- Ambos começámos a desejar, a rezar para que estivéssemos em casa. Quando dei por ela, estávamos sentados no sofá da nossa sala de estar, como se nunca tivéssemos dali saído. Durante algum tempo, limitámo-nos a ficar ali sentados, e acabámos por chegar à conclusão de que tínhamos tido algum tipo de falha mental, ou mesmo99que tinha sido tudo um sonho. Mas, depois, o xerife localtocou à nossa campainha e acho que vocês já sabem oresto da história. Já ouvi falar em companhias aéreas queperdem as nossas malas, mas esta é a primeira vez quevejo uma companhia aérea perder duas pessoas. Na realidade, a British Airways não perdeu as nossas malas. Nestepreciso momento estão em Londres, por acaso.

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- Acha que é possível que a vossa oração tenha sidoatendida? - perguntou o repórter.- Eu acredito sinceramente que essa é a única explicação possível - admitiu Melody Barstool.- Os senhores estão a planear encetar qualquer processojurídico contra a British Airways? - perguntou o repórter.- Já falámos com um advogado. Mas ele disse-nos queo facto de ambos acreditarmos que foi o poder da oraçãoque nos tirou daquele voo poderia afectar qualquer reclamação que fizéssemos da BA. Aparentemente, a companhia aérea não é legalmente responsável quando este tipo

de coisas acontece. Chamam-lhe um Acto de Deus.Nimrod inclinou-se na direcção de John, com um brilho de escárnio e desconfiança nos olhos.- Diz-me, meu rapaz, a tua irmã é sempre assim tãoimpulsiva? Tão natural e ad hoc?- Ela é esquisita, sem dúvida - troçou John, que nãofazia ideia do que significava ad hoc.- Ele deve ter-te dito alguma coisa, Philippa - troçouNimrod. - Para tu fazeres o pobre tipo desaparecer daquela maneira.100Soltou uma grande gargalhada calorosa que ecoou pela sala.- Estou a ver que terei de ter muito cuidado com o que te digo, minha querida, não vá acabar como o Sr. e a Sra. Barstool.Philippa sorriu enquanto tentava perceber qual era a piada.- Pode rir-se à vontade - disse ela. - Mas eles eram um casal de idosos muito amável e eu estou contente por eles estarem bem.- Eu acho que a culpa foi do frango - disse John. - A refeição de bordo. A mim não me soube bem.- Isso é só porque também comeste o bife - declarou Philippa.- Por falar em comida - disse Nimrod. - Algum de vocês tem fome?- Eu estou faminto - confessou John.- Ainda bem. Então vou preparar-vos um enorme pequeno-almoço inglês. É muito parecido com o pequeno-almoço americano, com estas três variações locais: o ovo estrelado tem de ser posto no lado direito do prato e não no esquerdo, o bacon tem de saber a carne e não a tiras de pele seca retiradas do pé de um condutor de riquexó sobrecarregado com trabalho, e os tomates têm de ser servidos sem sotaque, senão é tudo cancelado.Depois do pequeno-almoço, que foi tão delicioso como Nimrod havia prometido, Philippa voltou ao tema dos Barstool.101- Como é que é possível duas pessoas idosas desaparecerem de um avião em pleno voo? - perguntou ela. Deve ter havido algum tipo de erro. Este tipo de coisas simplesmente não acontece.- Pelos vistos acontece mesmo - disse Nimrod. - Seacreditarmos na notícia da televisão.O tio soltou uma gargalhada abafada e acendeu umcharuto.- Sim, senhor, a partir de agora teremos todos de ter cuidado com o que desejamos.- Como? - perguntou Philippa. Nimrod levantou-se.- Eu disse que temos de lavar o que sujamos. O Sr. Gru nho já tem muito que fazer nesta casa, não precisa de nós os três para lhe darmos mais trabalho. E se lhe deixarmos estes pratos vai passar o dia a queixar-se. Ser um criado maneta faz com que o Grunho não se sinta à altura das funções que é obrigado a desempenhar. Grunho de nome e rabugento por

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natureza, é o que eu digo sempre.

Depois de todos terem lavado os pratos, regressaram à biblioteca para se aquecerem em frente à lareira. Nimrod acendeu outro charuto e Philippa foi ver alguns dos muitos livros que estavam dispostos nas estantes. Reparou que entre eles havia várias edições de um livro sobre jogos de cartas e outras formas de jogo, escrito por um homem chamado Hoyle, bem como uma colecção de cinquenta volumes encadernados em couro de algo chamado As Regras de Bagdade.102- O que é que são as Regras de Bagdade? - perguntou Philippa.- São regras de protocolo - disse Nimrod vagamente.- Formuladas em Bagdade, há muito tempo. Sabem, se não tiverem nada melhor para fazer esta tarde, podiam tentar ler um ou dois capítulos dos exemplares de As Mil e Uma Noites que vos dei. Assim, teremos qualquer coisa para debater durante o jantar, hã? E, depois de o terem lido, explicar-vos-ei os factos da vida. Dir-vos-ei como chegaram até aqui.John e Philippa estavam horrorizados.- Eh, olhe lá - disparou John -, nós já sabemos essas coisas todas sobre como se fazem os bebés. Não é preciso.- Não, não são esses factos da vida - troçou Nimrod.- Estou a falar de algo bem mais interessante do que o modo como um bebé horrível é feito.- O que é que poderia ser mais interessante do que isso? - ironizou Philippa, provocando um olhar de tristeza e censura ao seu tio.- Estou a falar sobre como vocês chegaram aqui a Londres. Sobre a explicação para o facto de os vossos pais não se terem sentido à altura da tarefa de se oporem ao vosso desejo de passarem o Verão comigo, em vez de irem para Alembic House. Sobre como é que eu me intrometi no vosso sonho quando estavam sob o efeito da anestesia. Sobre quem e o que vocês são. Sobre a sorte e o modo como funciona. E sobre essa missão importante que requer que vocês estejam aqui agora. Esses factos da vida.103Nimrod estava prestes a dizer mais alguma coisa, mas as suas palavras transformaram-se num bocejo.- Ai, meu Deus - disse. - Desculpem-me, por favor. Não estou habituado a acordar tão cedo. Acho que preciso de dormir uma sesta. E sugiro que vocês façam o mesmo.- Levantou a mão, enquanto caminhava em direcção à porta da biblioteca. - Vemo-nos ao jantar, altura em que vos esclarecerei tudo.104O SENHOR RAKSHASESQuando John acordou, no início da tarde, ficou a olhar fixamente para o tecto durante algum tempo. Em matéria de tectos, aquele era bastante interessante, sendo um mural pintado que retratava nuvens e relâmpagos, pelo que, enquanto estava para ali deitado, John viu-se invadido por uma sensação de que ia chover, ou de que uma catástrofe estava prestes a acontecer. Passou meia hora nisto e, decidindo então que estava oficialmente aborrecido, sentou-se na cama e começou a ler o livro que o seu tio lhe dera, o que por si só era uma surpresa, uma vez que ele só tencionara dar-lhe uma vista de olhos.

As histórias das mil e uma noites não são uma só história, mas sim uma colecção caleidoscópica de histórias contadas por uma mulher corajosa, a Princesa Xerazade, para quem a própria arte de contar histórias era

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um meio de sobrevivência. São histórias sobre reis e princesas, djins poderosos, milagres ilusórios, trapaceiros astutos, mercadores gananciosos e ladrões engenhosos. Algumas das histórias, tais como Sinbad", Ali Babá e os Quarenta Ladrões, e Aladino" eram, como é óbvio, bem conhecidas de John.105Mas o aspecto mais cativante do livro era o modo como uma história derivava de outra, como um quebra-cabeças chinês, pelo que, passado algum tempo, o livro absorveu-o como nenhum livro o tinha feito, e tornou-se praticamente impossível John parar de lê-lo antes do fim. John sempre vira com bastante cepticismo as críticas da contracapa que garantiam aos possíveis leitores que seria impossível pousar o livro antes do final; mas então, para surpresa sua, percebeu que era exactamente isso que lhe estava a acontecer. Apercebeu-se de como isto era um facto notável e, para o resto da sua vida, jamais se esqueceria daquele dia em Londres, quando abrira pela primeira vez aquele volume de maravilhas.O exemplar de As Mil e Uma Noites que Nimrod lhe dera tinha um aspecto curioso: as suas estranhas propriedades físicas. Por um lado, John descobriu que era impossível marcar a página do livro em que estava dobrando os cantos; uma ou duas vezes, o rapaz tentou mesmo dobrar uma página, mas verificou, incrédulo, que quando voltava a olhar para ela, o canto se tinha inexplicavelmente endireitado. E, por outro, o livro parecia ser capaz de se iluminar a si próprio, pois à medida que o dia dava lugar à noite, John descobriu que conseguia ler o livro sem luz eléctrica; e, experimentando, descobriu que até o conseguia ler quase completamente às escuras, com uma colcha sobre a cabeça e sem a ajuda de uma lanterna.No entanto - aspecto igualmente notável para John, que nunca tinha lido um livro tão grande na sua vida106nem com tanto prazer - era a velocidade com que virava as páginas sedosas do livro. Os seus olhos pareciam voar sobre as palavras e, enquanto outrora teria demorado dois ou três minutos a ler uma só página, agora fazia-o num décimo do tempo, pelo que o livro, com todas as suas mil e uma páginas, foi lido em menos de seis horas. Assim que virou a última página, John sentiu-se tão orgulhoso de si próprio que correu pelo quarto de Philippa adentro para se gabar da sua proeza - descobrindo, afinal, que também ela tinha lido o livro de uma ponta à outra, e que aparentemente tinha acabado o livro cerca de uma hora antes dele.- Está a passar-se qualquer coisa estranha aqui - declarou, contendo a irritação com a sua irmã gémea.Philippa, que sempre fora uma leitora entusiasta - muito mais entusiasta do que o irmão, - riu-se.- Dizes-me isso a mim. Quando é que alguma vez passaste uma tarde inteira a ler um livro? Não, espera, houve aquela vez no último Natal, quando o pai prometeu dar-te cinquenta dólares se lesses O Apelo da Selva, de Jack London.- Eu mereci todos os cêntimos desses cinquenta dólares - contrapôs John. - Foi o livro mais aborrecido que alguma vez li. Além disso, tu sabes exactamente de que é que estou a falar.Philippa sorriu.- Mais do que tu, John - disse ela. - Estava à espera de que entrasses para poder levar a cabo uma experiênciaperante uma testemunha.107

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- Que tipo de experiência?

- Este tipo - disse ela e, pegando no seu exemplar de As Mil e Uma Noites, atirou-o para o fogo que ardia suave mente na lareira.- Ei - exclamou John -, estás louca?- Bem me parecia - disse ela, triunfal, apontando para o livro que permanecia nas brasas sem ser queimado pelo fogo. - É um livro estranho e que não arde, não achas?Esperaram vários minutos, observando o livro, enquanto este se recusava teimosamente a arder, até que, por fim, John pegou nas tenazes e retirou o livro do fogo. O rapaz pousou- o com cuidado à frente da lareira antes de lhe tocar delicadamente.- Nem sequer está chamuscado - constatou ele, abrindo o livro e virando as páginas. - E toca-lhe. Nem sequer está quente.Philippa pousou uma mão na página e sentiu, com as pontas dos dedos, que estava claramente fria.- De que é que será feito? - perguntou ela.- Por que é que não perguntamos a Nimrod? Os gémeos ficaram um pouco surpreendidos quando secruzaram com um homem alto, magro e de aspecto arrepiante, de barba, turbante e sobrecasaca brancos, subindo as escadas. Quando viu os gémeos, juntou as mãos, baixou a cabeça enquanto passava por eles e depois seguiu o seu caminho antes de abrir uma porta secreta, entrar e a fechar.John soltou um suspiro nervoso.108- Quem achas que era? - perguntou.- Tem calma - disse Philippa. - Provavelmente é só um amigo do tio Nimrod. Ele dirigiu-nos um sorriso, não foi?- Não achas um pouco estranho que a primeira pessoa que vemos depois de lermos As Mil e Uma Noites seja um tipo que parece ter saído do livro? Como um génio?- Um génio? Mas por que é que dizes isso? - troçou Philippa. - Caso não tenhas reparado, ele não saiu de uma garrafa. Subiu as escadas.- Ele tinha um turbante.- Hoje em dia, nem toda a gente que usa turbante tem poderes mágicos. - Philippa encolheu os ombros. - Ainda assim, talvez fosse melhor teres jogado pelo seguro, pedindo-lhe três desejos.- Mesmo que não fosse um génio - disse John -, acho que o tio Nimrod nos deve algumas explicações.Encontraram Nimrod na sala de jantar, onde tinha sido posta uma mesa com uma dúzia de pratos diferentes que incluíam um ganso assado inteiro, uma posta de veado, um pernil de porco assado, uma perna de carneiro, legumes, queijos, fruta, vinho e Coca-Cola. Nimrod parecia estar à espera deles, pois a mesa estava posta para três pessoas e ele já estava a trinchar o ganso.- Ah, aí estão vocês - disse Nimrod suavemente. Chegaram mesmo a tempo de comerem qualquer coisa. Sirvam-se.Nimrod silenciou a primeira salva de perguntas dos gémeos com a palma da mão e, pelo menos durante vários109minutos, todas as intenções de interrogar Nimrod sobre o livro estranho e o homem ainda mais estranho das escadas foram esquecidas quando os gémeos se aperceberam de como estavam esfomeados. John e Philippa sentaram-se rapidamente e começaram a encher os seus pratos com comida.

- Nós acabámos de ver um homem de aspecto esquisito, vestido de branco

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- disse Philippa, enchendo a bocacom fiambre. - Até tinha um turbante.- Era um fantasma? - perguntou John.- Um fantasma? Oh, não, não nesta casa. O safado nãose atreveria. Era o Sr. Rakshasas. Ele é oriundo da Índia.E, dentro em pouco, vai juntar-se a nós. Vocês devem ter-lhe pregado um valente susto.- Nós é que lhe pregámos um susto? - perguntou John,franzindo o sobrolho. - Então e nós? Ele pregou-nos umsusto dos diabos.- O Sr. Rakshasas ficaria muito abalado se te ouvissedizer isso, John. Na verdade, ele é uma criatura muitíssimo tímida. Seria incapaz de fazer buuu" a um ganso.- Nimrod hesitou por um momento e depois meteu umpeito de ganso inteiro na boca. - Não é que fizesse muitosentido fazer buuu" a este ganso em particular, uma vezque está morto. Mas imagino que vocês percebam o quequero dizer.- O John está a exagerar - disse Philippa. - O seuSr. Rakshasas não era assim tão assustador. Mas... - acrescentou ela lentamente - ele tinha, de facto, um aspectobem misterioso.110- Paciência, paciência - disse Nimrod. - Eu disse que vos ia contar os factos da vida, e é o que vou fazer.O Sr. Grunho entrou na sala com um enorme doce de taça na sua única mão.- Mas, olhem lá - disse Nimrod. - Eu tive muito trabalho para pôr este banquete na mesa.O Sr. Grunho bufou de desdém e pousou o doce na mesa.- Trabalho, diz ele - resmungou. - Essa é boa.-. por isso, acho que o mínimo que podem fazer é aplicarem-se até ter sido feita justiça a este magnífIco repasto. Hã, Grunho? O que é que disseste sobre o trabalho?- Não foi trabalho nenhum, senhor. É tudo, ou vai desejar mais alguma coisa?- Não, não. - Nimrod espetou o garfo numa grande fatia de fiambre e pô-la no prato, que já estava cheio.- Bem, e agora vocês os dois. Acabou-se a conversa até estarmos todos verdadeiramente empanturrados.Trinta minutos mais tarde, Nimrod desabotoou o casaco vermelho, viu as horas no relógio de ouro, serviu-se de outro grande cálice de Borgonha, acendeu um enorme charuto e recostou-se na sua ruidosa cadeira de braços.- Oh, mas que belo banquete! Que me dizem?- Fantástico - concordou John.Bateram à porta, e o Sr. Rakshasas entrou na sala de jantar, curvando-se solenemente.- Mil saudações a estes irmãos da lâmpada - disse ele.- Que vos sejam concedidos todos os desejos, excepto um, para que ainda tenham algo por que lutar. E que o dia111 mais triste do vosso futuro não seja pior que o dia mais feliz do vosso passado.

Para grande surpresa de John e Philippa, o Sr. Rakshasas falava com sotaque irlandês e, quando os viu levantar as sobrancelhas, Nimrod sentiu-se obrigado a dar uma explicação pronta aos gémeos.

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- Durante muitos anos, o Sr. Rakshasas foi obrigado a viver sozinho, e aprendeu todo o inglês que sabe através da televisão irlandesa.O Sr. Rakshasas meneou a cabeça com gravidade.- Que todos os inimigos da Irlanda nunca comam pão nem bebam uísque, mas sejam atormentados com comichão sem o benefício de, alguma vez, se poderem coçar.Agora que os gémeos o voltavam a ver, e com uma luz mais forte, notaram que ele não era nada assustador. Vestia um longo casaco branco abotoado até ao pescoço, calças e chinelos brancos e um turbante branco com uma pequena pérola branca em forma de gota, que pendia mesmo acima da sua testa. Uma grande barba desgrenhada e um bigode, tão brancos como o seu turbante, completavam o tout ensemble da sua aparência invulgar. Os seus olhos castanhos eram bondosos e sorridentes e, no entanto, Philippa pressentiu que escondiam uma grande tragédia que outrora se abatera sobre o Sr. Rakshasas. Ele sentou-se junto à lareira, no banco revestido a couro, tão perto que os gémeos pensaram que ele poderia começar a ardeR a qualquer instante, e aqueceu as suas mãos esguias sobRe as chamas durante vários minutos, antes de acender um cachimbo.112- Como de costume, a sua chegada é muito oportuna, Sr. Rakshasas - disse Nimrod. - Estava prestes a falar aos meus jovens sobrinhos nas suas prendas".O coração de John palpitou-Lhe no peito como um salmão selvagem. Uma prenda; e nem sequer era Natal ou o seu aniversário. No entanto, Philippa tinha uma ideia mais precisa sobre o tipo de prenda" a que Nimrod se estava a referir, pelo que, de imediato, retomou a sua preocupação quanto ao facto de isto significar que estava destinada a ser uma espécie de excêntrica erudita.Um relógio de caixa alta que estivera a assinalar as horas durante o jantar como uma faca a bater numa corda de piano, parou, de repente, criando um sonoro e quase palpável silêncio que parecia induzir, pela parte dos gémeos, uma percepção de que, de certo modo, a sua vida passada tinha acabado e uma nova vida estaria, então, prestes a começar.- Bem - disse Nimrod -, acho que é melhor eu falar e vocês limitarem-se a ouvir. Porque há muita informação para assimilarem. E talvez seja melhor eu começar pelo princípio, não acha, Sr. Rakshasas?O outro respondeu lentamente, por entre cachimbadas.- Sim, senhor - anuiu. - Talvez seja melhor contar a história toda. De facto, uma mulher de Tyrone nunca compra um coelho sem cabeça, com medo que seja um gato.- Tudo o que vos vou contar agora é verdade - disse Nimrod. - Há muitas coisas que vocês vão achar espantosas, ou melhor, inacreditáveis, e peço-vos que confiem e suspendam a vossa descrença por uns instantes, como113se estivessem numa sala de cinema a ver uma qualquerfantasia cinematográfica rebuscada.Nimrod fumou o charuto, pensativo, e uma grandenuvem de fumo escapou-se-lhe da boca.- Agora, como qualquer feiticeiro ou mago vos dirá, hátrês tipos de seres de inteligência superior no universo.

Há os anjos, que são feitos de luz. Há os seres humanosque são feitos de terra. Tenho a certeza de que já viramfunerais na televisão em que os padres dizem da terraà terra, das cinzas às cinzas, e do pó ao pó etc. etc. Defacto, isso é tudo o que um homem é. Terra, ou carbono,

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se quiserem ser mais precisos. Terra e água, se quiseremser ainda mais precisos.Em todo o caso, para o objectivo da nossa conversa,não estamos interessados nos seres humanos. Não, estamos é interessados na última categoria destes seres de inteligência superior. Estou a falar dos djins. Um djim é omodo correcto de descrever o que é vulgarmente conhecido como génio. Espero que nenhum parente meuseja capaz de usar a palavra génio". Esta é apenas umapalavra para meras pantomimas de Natal e filmes de animação, e não para pessoas como vocês e eu. A palavra édjim e os djins são feitos de fogo. Sim, fogo.Nimrod expeliu mais fumo de charuto, como que reforçando o que dizia.A palavra génio" é repugnante para os djins, por isso, o singular habitual dE djim, que é djinni" é desprezado (por causa da sua semelhança com génio)e, entre os próprios djins, o termo djim" é usado para designar Tanto o singUlaR como o plural.114- O tio está a brincar connosco? - perguntou Philippa.- Garanto-vos que estou a falar a sério - insistiu Nimrod. - Mas há muitas tribos de djim. Podíamos passar a noite toda a descrevê-las, não podíamos, Sr. Rakshasas?- Oh, com toda a certeza.- Mas vocês, eu, a vossa mãe e aqui o Sr. Rakshasas temos a sorte de pertencer à tribo mais distinta. Os Marid. Somos os menos numerosos, mas também os mais fortes dos djins. E pronto! - atirou Nimrod, soltando uma gargalhada abafada. - Já disse o que tinha a dizer. E não é que o djim saiu mesmo da garrafa, por assim dizer? Sem dúvida que já ouviram esta expressão antes. Atrever-me-ia mesmo a dizer que nunca se deram ao trabalho de pensar na forma como esta frase se aplica ao vosso caso. Pois bem, aqui estou eu para vos garantir que assim é. Porque, verdade seja dita, vocês são ambos fIlhos da lâmpada.115DJINSo tio quer dizer que nós somos djins, como emAS Mil e UMa NoiteS? - perguntou John. - Onde um tipo encontra uma lâmpada ou uma garrafa e deixao djim sair?Nimrod fez que sim com a cabeça.- O tio deve estar a brincar - disse Philippa.- Eu sei que é um pouco difícil de acreditar - retorquiu Nimrod.- A quem o diz! - exclamou John.- Mas, se pensarem em algumas das coisas estranhasque vos têm acontecido nos últimos tempos, pelo menosdesde que vos arrancaram os dentes do siso, então terão deadmitir a possibilidade de uma explicação igualmenteestranha.Nimrod examinou o seu charuto antes de o devolver à

boca, tendo-o fumado até a ponta adquirir um brilho tãovermelho como o do seu casaco. Por um momento, antesde se esfumar, o anel de fumo assumiu a forma do mesmopavilhão flutuante que os gémeos tinham visto no sonhoque ambos haviam vivido durante a extracção dos seusdentes do siso.116- Por exemplo - continuou Nimrod -, não acham estranho que eu saiba

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tudo sobre o sonho que tiveram enquanto estavam sob o efeito da anestesia? Sobre como nos encontrámos no Pavilhão Real de Brighton. E que havia uma senhora a tocar xilofone. Que jogámos aos dados? E que John lançou três seis, Philippa quatro, e que juntos lançaram cinco. Se fosse mesmo um sonho, como é que eu poderia saber isso tudo?- Então o que é que era, se não era um sonho? - perguntou John.- Pura e simplesmente, fui até Nova Iorque, deixei o meu corpo no Hotel Carlyle, na Madison Avenue, viajei no meu corpo astral, ou seja, a cópia etérea ou a sombra do meu corpo físico, até ao hospital onde vos estavam a extrair os dentes, e entrei nos vossos corpos.- Uau!- Enquanto estavam sob o efeito da anestesia, apoderei-me das vossas mentes, nelas semeando algumas das experiências de que vocês se lembram com tanta nitidez e sugerindo que tinham apenas de dizer aos vossos pais que vinham a Londres para que tal acontecesse.- E, mais precisamente, por que é que isso aconteceu?- perguntou Philippa. - Por que é que eles concordaram logo?- Os seres humanos e os djins envelhecem a ritmos diferentes - explicou Nimrod. - Ser djim só implica diferenças quando os dentes do siso aparecem e são extraídos. Nos seres humanos, os dentes do siso, ou dentes de dragão,117como os djins preferem chamar-lhes, não têm qualquer utilidade. Mas, para nós, djins, existem por um bom motivo. São um sinal de que os vossos poderes estão prontos para serem usados. Assim que os vossos dentes de dragão são arrancados, a vossa verdadeira vida como djins começa.E, de repente, o anel de fumo que Nimrod expeliu a seguir assumiu a forma da linha do horizonte de Novaiorque. Depois, continuou:- O facto é que, assim que vos extraíram os dentes dedragão, os vossos pais não se atreveram a resistir-vos.- A sabedoria djim começa aqui - disse o Sr. Rakshasas. Mas Philippa ainda estava a abanar a cabeça. O tio Nimrod olhou para o Sr. Rakshasas e também ele abanou a cabeça, um pouco agastado.- Isto é mais difícil do que pensava - disse ele. - Esperem, lembrei-me de uma coisa. - Estalou os dedos diante de John e Philippa. - Vocês costumam sentir claustrofobia?Os gémeos entreolharam-se e assentiram com a cabeça.- A-ha - disse ele, expelindo um anel de fumo com a

forma da lâmpada de um génio. - Isso é porque muitos de nós acabam por ser encurralados dentro de lâmpadas e garrafas por homens perspicazes, uma espécie que, feliz mente, hoje em dia existe em menor número do que antes. Por isso é que temos comprimidos de carvão, para nos mantermos quentes por dentro e não ficarmos em pânico quando estamos fechados num sítio qualquer. Quando um djim está quente, esse djim está calmo e descontraído. Não é verdade, Sr. Rakshasas?118- O gato é o seu melhor conselheiro, sem dúvidaobservou o Sr. Rakshasas.- Então esses são os comprimidos que a mãe nos deu, não são? - perguntou John, que estava muito mais disposto a ser convencido de que era um djim do que a sua irmã gémea.- Suponho que sim. Como disse, os djins são feitos de fogo, pelo que verão que todas as fontes de calor vos ajudam a manterem-se calmos e tranquilos.Philippa lançou um olhar desconfortável ao Sr. Rakshasas, que estava

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sentado junto à lareira a fumar o seu cachimbo, e pensou que era bastante fácil imaginá-lo como sendo feito de fogo: se estivesse mais perto das chamas, teria ficado esturricado.- Praticamente a primeira coisa que um djim faz depois de ele ou ela terem sido libertados de uma lâmpada ou de uma garrafa é, com a ajuda do oxigénio presente na atmosfera terrestre, transformar-se em fumo - continuou Nimrod. - Tudo ajuda neste processo: fogueiras ao ar livre, churrascos, velas, comprimidos de carvão e até mesmo um cigarro ocasional.- Mas fumar não faz mal? - objectou John.- É muito mau para os seres humanos, isso é verdade. Mas não faz mal nenhum aos djins. Vocês irão reparar que os seres humanos tentam fazer muitas coisas que nós conseguimos fazer, normalmente com consequências desastrosas. Foi preciso muito tempo, mas finalmente estamos a conseguir transmitir a mensagem de que fumar lhes faz mal.119- Presumindo que tudo isto é verdade - disse John, lançando um olhar vago à sua irmã. - E não estou a dizer que o seja. Ser-se um djim significa que posso conceder três desejos às pessoas, e coisas desse género?- Bem, sim, talvez. Mas o que tens de compreenderprimeiro, meu rapaz, e o mais importante de tudo, é queos djins são os guardiães de toda a sorte do universo - osprotectores e guardas dessa tendência imaginada que épopularmente conhecida como acaso. Ou seja, a ocorrência fortuita de acontecimentos favoráveis ou desfavoráveisaos interesses dos seres humanos. Em suma, o acaso, comocausa ou doador de sucesso ou fracasso, existe como umaforça física no universo, que só pode ser controlada pelosdjim. É verdade que vocês poderão conceder três desejos,mas apenas quando finalmente tiverem percebido o comoe o porquê desta questão. Porém, até então, e pelo menosaté o vosso poder djim estar um pouco mais fortalecido,isso é algo que só o vosso subconsciente poderá fazer.- Como se o sonhássemos? - perguntou Philippa.- Exactamente - respondeu Nimrod.- Suponho que isso pode explicar o que aconteceu aoSr. e à Sra. Barstool, no avião - disse Philippa.- Vês. Agora estás a perceber - concordou Nimrod.- Um deles deve ter usado a palavra desejo, e tu devester sentido que gostavas dele.O anel de fumo que se seguiu parecia um Boeing 747.- Ele disse que desejava estar em casa - disse ela. - E eu

tive pena dele.120- Aí tens. Um caso clássico daquilo a que nós, djins chamamos realização subliminar de desejos. Provavelmente adormeceste a pensar em como seria agradável se o pobre Sr. Barstool tivesse o que queria.- É verdade. - Philippa comprimiu os lábios com um ar pensativo. - No nosso sonho, presumindo por um momento que era mesmo o tio, o motivo pelo qual nos pôs a lançar dados tem alguma coisa a ver com a sorte?- Sim. Eu queria testar a vossa capacidade real de influenciar o acaso. E posso dizer-vos que a vossa capacidade conjunta é excelente. Na verdade, é tão boa como a de qualquer djim adulto. O que é muito útil para o nosso propósito actual. Deixem-me explicar-vos.- Essa coisa. umbilical - começou John dirigindo-se a Nimrod e

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interrompendo o tio.- Realização subliminar de desejos - repetiu Nimrod.- Isso explica o que aconteceu à Sra. Trump, a nossa governanta - disse John. - Mesmo antes de virmos para cá, a Sra. Trump ganhou 33 milhões de dólares na Lotaria dos Mega Milhões de Nova Iorque.- De facto, eu lembro-me de pensar em como seria bom se ela ganhasse dinheiro suficiente para visitar as Filhas, que vivem na Europa - admitiu Philippa.- E também não fizeste mal nenhum, não é? - disse Nimrod. - Estas coisas acontecem. Mas, sabem, quando as pessoas usam a palavra desejo", não são elas que têm de ter cuidado. Nós, djins, também temos de ter extremo cuidado. Nem sempre é bom que as pessoas obtenham o121que desejam. Tal como, aliás, o Sr. e a Sra. Barstool descobriram. Podemos pensar que queremos ajudá-las; mas,às vezes - ou melhor, geralmente, para ser mais sincero,- é melhor que elas consigam sozinhas o que querem.Através do seu próprio esforço. Assim, tendem a valorizar mais o que conseguem, seja isso o que for. Por outrolado, há muitas ocasiões em que simplesmente não pensam bem no seu desejo. Ocasiões em que não consideramtodas as implicações de verem mesmo o seu desejo maisquerido realizado.- Muitas foram as vezes em que a boca de um homempartiu o seu próprio nariz - avançou o Sr. Rakshasas.- Como em algumas daquelas histórias de As Mil eUma Noites - disse John.- Precisamente.- Se o que o tio diz é verdade - disse Philippa. - Istoé, se nós formos djins. Mas então há uma forma fácil deprovar isto tudo.- O que é que sugeres? - perguntou Nimrod.Philippa encolheu os ombros.- Não sei. Quero dizer, o tio é que é o especialista aqui.E se fizesse uma coisa aparecer, ou desaparecer?- E o que é que isso iria provar? - perguntou Nimrod. - Claro, um truque não é um truque até ser feitomuitas vezes - disse o Sr. Rakshasas.- Poderia provar que o tio é um djim - disse Philipa.- Achas mesmo? E se eu fizesse mesmo alguma

coisa aparecer, como é que irias saber que isso não estiveraaqui o tempo todo?122Philippa olhou cuidadosamente em volta da sala.- Tal como? - perguntou ela.- Um rinoceronte, talvez - sugeriu Nimrod, expelindo um anel de fumo com a forma de um rinoceronte.- Que truque fixe - disse John, com grande admiração.- Mas isso é só fumo - objectou Philippa. - Não há um rinoceronte verdadeiro aqui dentro.- Mas como podes ter a certeza disso? - perguntou Nimrod.- Tenho a certeza - disse Philippa, meneando a cabeça com firmeza enquanto o rinoceronte de fumo finalmente se desvanecia no ar.- Mas, e se fosse um rinoceronte muito pequeno?- Então não seria um rinoceronte em condições - disse Philippa.- Boa resposta - disse Nimrod. - Mas, por acaso, até há um rinoceronte

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nesta sala. E eu posso prová-lo.Ele apontou para o outro extremo da sala, onde agora estava um rinoceronte. Com quatro metros de comprimento e um metro e meio de altura, o rinoceronte bufou sonoramente através das suas enormes narinas e depois mudou de posição com as suas espessas patas almofadadas, o que fez com que as tábuas do soalho da sala de jantar de Nimrod rangessem sob as duas toneladas de peso do animal.- Cruzes, credo - disse Philippa, recuando um passo. Ouvindo a sua voz e pressentindo o movimento, o rinoceronte rodou as orelhas, contraiu o lábio superior preênsil,123e depois sacudiu agressivamente o seu corno de setenta centímetros no ar.Nimrod dirigiu um sorriso rasgado à sobrinha.- Satisfeita?- Sim - sussurrou ela, petriFicada. - Tire-o daqui.- Tiro o quê?- O rinoceronte, claro.- Que rinoceronte?Ela voltou a olhar e viu que o rinoceronte tinha desaparecido. O cheiro penetrante e animalesco que acompanhara a criatura tinha igualmente desaparecido. - É magia - sussurrou John, terrivelmente impressionado pela demonstração de poder de Nimrod.- Magia? Meu Deus, não, meu rapaz. Um djim não faz magia. Isso é para miúdos e adultos simplórios. Um djim exerce a sua vontade. É esta a maneira correcta de nos referirmos ao que fazemos. Exercemos a nossa vontade. É, para colocar as coisas de um modo um pouco diferente, o poder da mente sobre a matéria. Mais nada. Nunca lhe chamem magia. Não há qualquer magia envolvida. Santo Deus, a seguir vão perguntar-me se eu tenho um coelho e uma cartola. Mas vêem o que quero dizer sobre provas. Num minuto está lá, e no seguinte desaparece.- Então e o pai? - perguntou Philippa. - Ele também é um djim?- Não, o vosso pai é humano - disse Nimrod. - O poder dos djins só é transmitido pela mãe. No entanto,124

muitos djins casam-se com humanos. Os djins do sexo feminino que casam com humanos geram crianças djinn. Mas os djins do sexo masculino que casam com humanos só geram crianças humanas.- E o pai está a par de tudo isto? - perguntou Philippa.- Mas é claro que sim. Embora não o soubesse quando casou com a vossa mãe. Ela tinha-se apaixonado à distância, por assim dizer, e decidiu descobrir que tipo de pessoa é que ele era. Por isso, pregou-lhe uma partida. Mas não uma partida má. Apenas um pequeno subterfúgio astucioso para ver se ele tinha um bom coração. Ela vestiu-se com trapos, e, fingindo ser uma sem-abrigo, pediu uns trocos para um café ao vosso pai. O vosso pai era muito bondoso e apercebeu-se de que a vossa mãe tinha algo de especial. Por isso, arranjou-lhe uma casa e um emprego. Acabaram por se casar e foi então que Layla lhe contou que era um djim. Mas toda a grande riqueza que ele acumulou foi conseguida pelo seu próprio esforço.- Que romântico! - disse Philippa.- Até certo ponto - concordou Nimrod. - A vossa mãe fez-lhe um favor importante como djim, sem o qual ele não estaria onde está hoje. Dois homens, que tinham muita inveja do sucesso de Edward, planeavam matá-lo e roubar-lhe o dinheiro. Layla descobriu e tê-los-ia matado a ambos, mas Edward implorou-lhe que poupasse as suas vidas. Fê-lo porque esses

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dois homens eram os seus irmãos, Alan e Neil.- O tio não quer dizer que. - John estava boquiaberto, enquanto Nimrod exalava não um, mas dois anéis125de fumo que, pelo menos por instantes, se pareceram com os dois queridos animais de estimação da sua própria família.- Layla transformou-os em cães.- Mas isso explica muita coisa - disse Philippa.- Pois é - concordou John, desejando naquele momento não ter convencido toda a gente a mudar os nomes dos cães: não admira que os seus nomes parecessem tão humanos; e não admira que o seu pobre pai estivesse tão avesso à ideia de lhes mudar os nomes para Winston e Elvis.- O vosso pai ficou tão chocado com a demonstração enfurecida de poder djim da vossa mãe que a convenceu a prometer nunca mais usar aquele poder. Mas, mais importante ainda, é o facto de que, quando vocês nasceram, Edward ter obrigado Layla a prometer educar-vos não como djins, mas como seres humanos normais. Uma promessa que manteve até agora. E que, lamento dizer, é a razão pela qual ela e eu nos temos mantido afastados durante os últimos dez anos. Os vossos pais fizeram tudo com a melhor das intenções. Mas eu sempre acreditei que o conhecimento de quem vocês são, não vos devia ser ocultado.Nimrod encolheu os ombros.- Nada disto me dizia respeito até ela decidir enviar- vos para a escola de Verão, em Salem. Fê-lo porque é preciso um certo tipo de concentração e precisão para se ser um djim. E a escola do Dr. Griggs oferece um ambiente onde djins jovens como vocês podem tornar-se indiferenciáveis de outras crianças sobredotadas.126- Quer dizer que há outros pais como os nossos? - perguntou John. - Que querem impedir os seus filhos de serem djins?

- Há alguns - disse Nimrod. - Na sociedade em que, actualmente, vivemos, limitamo-nos a conformar-nos com o que é considerado normal. Griggs joga com o medo humano de se ser diferente.- Mas como é que ele nos impede de termos poder?- perguntou John. O rapaz já estava a sentir-se indignado pelo facto de existir um sítio onde, porventura, o conseguissem impedir de ser um djim, algo que parecia demasiado divertido.- A sua técnica Alembic é extremamente simples - explicou Nimrod. - Ele dá-vos tanto trabalho escolar que as vossas mentes ficam alheadas do exercício, inconsciente ou não, dos vossos poderes de djins. O pior é que ele convence os seus alunos a nunca acreditarem em nada que não possa ser provado de acordo com o que é geralmente aceite como as leis da ciência. Acontece que isso é um desastre para um djim, pois acreditar apenas no que é convencionalmente possível afecta a mente de um jovem djim de um modo tão definitivo que impossibilita o exercício do poder djim para todo o sempre. Isto porque, para se usar este poder, é fundamental acreditarmos em nós próprios. Por isso, quando soube que a vossa mãe planeava enviar-vos para o Grigg - na verdade, desconfiava há muito que o faria - decidi logo agir.127- Sem dúvida que é uma pena tentar transformar acauda de um belo garanhão na barbicha de um bode - disse o Sr. Rakshasas.- Mas - objectou Philippa -, se um djim só pode usaro seu poder quando lhe extraem os dentes do siso, nãoteria sido bem mais simples se a nossa mãe não nos tivesse deixado

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fazer a operação? Se tivesse deixado os dentesnas nossas bocas?- Assim que os dentes surgem nas vossas bocas - disseNimrod - podem manifestar o seu poder, de um modoou de outro. No caso da Philippa, concedendo desejossubconscientes.Nimrod olhou para John.- Com certeza que tu também deves ter sentido, decerto modo, o seu poder latente, John.- A fenda na parede do meu quarto - disse John. - Atravessava a cabeceira da minha cama e parecia ter origemna almofada, por baixo da minha própria bochecha.- Ora aí está. - Nimrod ergueu as mãos no ar como setivesse provado que tinha razão. - Além disso, quantomais se adiar a extracção, mais dramática e violenta é apossível manifestação do poder djim - explicou Nimrod.- A vossa mãe pensou, com bastante sensatez, que eramelhor agir agora, enquanto o vosso poder djim ainda éimaturo.Philippa pôs-se a pensar por uns instantes.- A mãe e o pai - disse ela. - Eles fizeram o que Fizeram pelos melhores motivos, não foi?128- Eles só querem o melhor para vocês - confirmou Nimrod. - Do seu ponto de vista, o facto de serem seres humanos dá-vos uma melhor oportunidade de terem uma vida normal, do que propriamente sendo um djim.- Eu não sei se quero uma vida normal - disse Philippa.- Pelo menos a tempo inteiro. Mas também não gostava de sair de casa. Pelo menos, não para já.- Eu também não - disse John. - Não podemos aprender tudo sobre os djins e depois voltar para Nova Iorque?

- Era isso mesmo que eu ia sugerir - disse Nimrod, sorrindo e abraçando os gémeos. - Mas temos um trabalho urgente para fazer. Meu Deus, sim! Temos de nos despachar.- Por falar em despachar. - disse Philippa. - Tenho uma pergunta. Gostava de saber por que é que a fenda na parede do quarto do John era idêntica à que vimos no jornal.Philippa explicou que a fenda na parede do quarto de John era idêntica à fenda que tinha visto numa fotografia da parede do Museu do Cairo, depois do recente terramoto no Egipto.Nimrod parecia chocado.- Por que é que não me contaram isso antes? - perguntou ele.John e Philippa encolheram os ombros.- Pensámos que não passava de uma coincidência interessante - disse John.- Coincidência? - Nimrod riu-se. - Isso não passa de uma palavra de cientistas para designar o acaso.129- Até a agenda da coincidência tem demasiados encontros marcados - sentenciou o Sr. Rakshasas, movendo a cabeça.Nimrod abanou a cabeça.- Não, isso foi uma mensagem para vocês. A única pergunta é de quem.- De quem ou do quê? - corrigiu o Sr. Rakshasas. Não é preciso vermos a terra a mover-se para sabermos que falou.- Exactamente - disse Nimrod. - De qualquer maneira, nós já tínhamos de ir ao Egipto. E é o que tenho estado a tentar dizer-vos. E isto apenas

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sublinha a necessidade de partirmos assim que possível. Mas estava à espera de poder manter a vossa existência em segredo.- Para quem? - perguntou Philippa.- Para os nossos inimigos.- É este o perigo que o tio mencionou no aeroporto?- perguntou ela.- Eu falei nisso? Bem, sim, pode haver algum perigo. Não seremos os únicos djins a chegar ao Egipto para procurar tesouros. Se se lembrarem das vossas Mil e Uma Noites, há outras tribos de djins que, ao contrário de nós, não gostam muito da humanidade, e Lhe querem fazer mal.- Os Ifrit? - perguntou John.- Sim, os Ifrit, meu rapaz, bem lembrado - disse Nimrod. - Eles são os piores djins de todos. Uma tribo de djins maus e traiçoeiros, que são os nossos inimigos figadais. É possível que os encontremos na nossa viagem ao Egipto.130- Pelo que ouvi, não gosto nada deles - admitiu Philippa.- O mundo está cheio de coisas más - suspirou o Sr. Rakshasas. - E se queres evitá-las, basta viveres sozinha com a porta trancada e as cortinas fechadas.- Se partirmos de Londres amanhã à tarde e apanharmos o voo das cinco e meia, podemos estar no Cairo por volta da meia- noite - disse Nimrod.- O Egipto é, sem dúvida, o melhor sítio para treinar jovens djins como vocês - disse o Sr. Rakshasas.- Ai é? - perguntou John. - Porquê?- O Egipto é um país de desertos e os djins sentem-se sempre mais fortes num país de desertos - disse Nimrod.- Os djins surgiram no deserto.

Pegou num fósforo e, reacendendo o seu charuto, aspirou-o durante vários segundos como um dragão exaltado, e, por fim, expeliu um anel de fumo com a forma da Esfinge.- Não sei porquê - disse John -, mas, de facto, agora que penso nisso, parece que sempre quis ir ao Egipto.- Isso é o djim que há em ti, meu rapaz - disse Nimrod, sorrindo. - É o djim a falar.- Bem, se me dão licença - disse o Sr. Rakshasas. - Está na altura de voltar para a minha garrafa. - E, curvando-se com gravidade, saiu da sala.- O Sr. Rakshasas padece de agorafobia - disse Nimrod.- Isso é o medo de estar em espaços amplos, não é? perguntou Philippa.131- Sim. Uma vez o Sr. Rakshasas foi enclausurado numagarrafa por um Ghul durante muito, muito tempo. De tal forma que agora se sente nervoso quando está fora da sua garrafa durante demasiado tempo. Quer dizer, pensem em como se sentiriam nervosos com toda esta gente à vossa volta se tivessem estado fechados durante muito tempo. O mundo está cada vez mais barulhento.- Pobre Sr. Rakshasas - apiedou-se Philippa.- Eu acho que será muito bom para a sua saúde mental estar perto de jovens djins como vocês, com quem pode falar, e que lhe farão perguntas - disse Nimrod. - Vão perceber que ele é um djim muito interessante. O quenão admira, tendo em conta os muitos anos que dedicou ao estudo de quem são os djins. Os livros eram praticamente a única coisa que lhe dava força durante a sua longa clausura. Isso, e a televisão irlandesa.

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- Mas como é que se pode estudar ou ver televisão den tro de uma garrafa? - perguntou John.- Mesmo estando dentro de uma garrafa, ainda temos força de vontade suficiente para a mobilar com pratica mente tudo o que quisermos. Rádio, televisão, jornais,livros, comida, vinho, sofás, cadeiras e camas, dependendo do tamanho da lâmpada ou da garrafa. Isto porque, para um djim, entrar numa garrafa implica ter de sair do espaço tridimensional. Logo, há muito mais espaço lá dentro do que poderias imaginar. O problema é que não podes sair do recipiente até alguém te libertar. E não podes receber visitas. É um pouco como a solitária numa cadeia132de luxo. O que nos afecta mais é a solidão. Tirando isso, até se aguenta bem.- O tio já esteve preso numa garrafa? - perguntou John. - Contra a sua vontade, digo eu.

- Oh, sim. Várias vezes. É um risco inerente ao facto de ser um djim. O máximo de tempo que estive fora de circulação foram cerca de seis meses. Foi um acidente. Era inevitável. Fiquei preso dentro de uma garrafa de cristal antiga. Tinha estado a dar uma vista de olhos a uma velha e encantadora loja de antiguidades em Wimbledon Village, mesmo à saída de Londres. O dono estava nas traseiras a embrulhar qualquer coisa e, por isso, decidi entrar na garrafa apenas para ver se era confortável. Mas, enquanto estava lá dentro - não terão passado mais do que trinta segundos - o proprietário da loja voltou a tapá-la. A culpa não foi dele. Ele jamais poderia saber que eu estava lá dentro. Não podia fazer nada até alguém comprar a garrafa. Era muito cara, por isso tive de esperar que encontrasse um novo lar.- O que é que aconteceu?- O que aconteceu foi o Sr. Grunho.- O tio quer dizer que ele comprou a garrafa.- Na verdade, não. O Grunho vai detestar-me por vos contar isto mas, a verdade é que a roubou. A garrafa onde eu estava preso.- E, mesmo assim, o tio concedeu-lhe três desejos? Philippa parecia surpreendida. - Por roubar uma coisa?- Não tinha alternativa. Há um código moral entre os djins bons que diz que devemos sempre conceder três desejos133a quem nos liberta. Mas nunca quatro. Um quarto desejo anulará os outros três. São as Regras de Bagdade.- Mas por que é que é assim?- Oh, é melhor perguntares isso ao Sr. Rakshasas - disse Nimrod. - Ele sabe muito mais sobre as Regras de Bagdade do que eu. Dedicou a vida ao seu estudo e acreditem que seria preciso a duração de uma vida para as conhecer todas.- Então o que é que o Sr. Grunho desejou? - perguntou John.- Normalmente não é considerado correcto dizê-lo. Nimrod aspirou o seu charuto por um momento. - Mas como devem ter percebido pela vossa leitura de As Mil e Uma Noites, não é invulgar conceder três desejos aos humanos e eles desperdiçarem-nos em algo inútil. Eles dizem desejava não ter tanta sede", e depois, quando vamos buscar-Lhes um copo de água, ficam com um armagoado e defraudádo. Foi o que aconteceu com o Gru nho. Quando o conheci, há dez anos, ele só tinha um braço, tal como agora. Perdeu o outro no Museu Britânico. Mas isso é outra história. Seja como for, em vez de desejar logo um braço novo, que é o que qualquer pessoa sensata

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faria, desperdiçou os seus primeiros dois desejos em algo verdadeiramente inútil. A verdade é que agora ele não sabe se há-de pedir um braço novo, ou outra coisa qualquer, como muito dinheiro, por exemplo. E até se decidir e pensar no seu terceiro desejo, não pode dar-se ao luxo de me perder de vista, e eu sou obrigado a mantê-lo comigo. Por isso, emprego-o como criado. Também por isso é que134ele fala por entre os dentes. Para eu não o conseguir ouvir. Tem medo de usar a palavra desejo, acidentalmente, e de que eu lhe conceda um terceiro desejo inútil. Se um de vocês alguma vez o ouvir usar a palavra desejo", agradecia muito que me dissessem, porque não me custa admitir que não me importava de resolver isto de uma vez por todas, para que ele possa seguir a sua vida, e eu possa empregar um criado decente com quem seja possível ter uma conversa em condições.- Pobre Sr. Grunho - disse Philippa.- As pessoas inteligentes pedem algo inalcançável, como talento ou sabedoria - disse Nimrod. - Algumas pessoas costumavam desejar ser bons escritores. No entanto, hoje em dia, a maioria das pessoas quer ter dinheiro ou ser uma estrela de cinema. Muito enfadonho. Mas o que é que se pode fazer? Um desejo é um desejo.135CAIRO

Quando chegaram ao Cairo, mais tarde nessa mesma noite, foram recebidos por Felício, o criado egípcio de Nimrod. Era um homem muito alto, cuja altura era prolongada pela presença de um fez vermelho sobre a sua cabeça, e que não parecia precisar da bengala grossa que segurava numa das suas enormes mãos. Era óbvio que Felício gostava muito mais de crianças do que o Sr. Grunho. O egípcio não parava de lhes sorrir e oferecer algumas das pastilhas de hortelã-pimenta Extra-Fortes do Rei Fahd, que adorava mascar ruidosamente com os seus dentes igualmente fortes e muito brancos; e, juntos, esperaram muito tempo pela sua bagagem na sala de recolha de bagagens.- Por que é que o Sr. Rakshasas não veio connosco? perguntou John.- Mas ele está connosco - disse Nimrod.- Está? Onde? -John olhou em volta e franziu o sobrolho. - Não o vejo.- Isso é porque ele está na minha lâmpada, dentro do teu saco. Pu-lo lá dentro, porque as minhas malas estavam136cheias. É assim que os djins viajam - na bagagem uns dos outros - quando querem poupar no bilhete de avião, ou, no caso do Sr. Rakshasas, se sofrem de agorafobia.Finalmente, a passadeira rolante começou a mover-se e, alguns minutos depois, John viu o seu saco e esticou o braço para agarrar na pega, antes de ser bruscamente empurrado para o lado, por Felício. De seguida, o criado começou a bater no saco com a sua bengala, o que deixou os outros turistas que esperavam pelas suas malas quase em pânico, e fez com que um polícia puxasse da sua pistola.- Ei! - gritou John. - O que se passa? - Alguns instantes mais tarde, Felício curvou-se e pegou no corpo de uma cobra esverdeada e castanho-dourada, agora morta, que se tinha enrolado em torno da pega de cor idêntica do saco de couro de John. O polícia guardou a sua arma e deu uma palmadinha nas costas de Felício, enquanto John examinava a cobra de perto. Tinha pelo menos um metro de comprimento e, pela reacção da multidão entusiasmada que rapidamente se tinha reunido para ver e felicitar John por ter escapado por um triz, era claramente venenosa.- Naja baje - disse Felício.

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- Valha-me Deus - disse Nimrod. - Se tivesses pegado naquele saco terias sido mordido e morto. É uma cobra-capelo egípcia, John. A cobra mais mortífera do Egipto. John engoliu em seco, subitamente agradecido por ter sido salvo por um triz. - Obrigado, Sr. Felício - disse.Felício sorriu, apertou a mão estendida de John e depois começou a recolher as outras malas da passadeira137- uma tarefa fácil, visto que agora a maioria das outras pessoas que chegavam de Londres se mostrava um pouco relutante em pegar nas suas malas, não fosse haver outra cobra presa à pega de uma mala.- Este país está cheio de pestes - resmungou Grunho.- E não me estou apenas a referir às cobras e aos insectos. Se tocarem nalguma coisa nas redondezas, aconselho-vos

a lavarem as mãos com sabão anti-séptico, de seguida. - Não me parece que isto tenha sido um acidente - disse Nimrod, enquanto eles saíam e esperavam que Felício fosse buscar o carro. - As cobras egípcias são criaturas tímidas, pelo menos até serem provocadas. Uma passadeira rolante não é sítio onde eu esperasse encontrar uma.- O tio está a insinuar que alguém a pôs ali de propósito? - perguntou John, sorrindo nervosamente. - Com a intenção de me matar?- Se bem te lembras, esse é o saco que contém a lâmpada do Sr. Rakshasas - explicou Nimrod. - A sua presença deve ter sido detectada quando o saco estava a ser transferido do avião. Por isso, a culpa é minha. Mas se isto vos fizer sentir mal, vamos já à bilheteira da American Airlines e arranjamo-vos lugares no próximo voo disponível para Nova Iorque.John pensou por um momento.- Não - retorquiu, corajosamente. - Afinal, o tio disse que isto podia ser perigoso. Além disso, ainda não vi as pirâmides.Mas os perigos daquela noite ainda não tinham acabado de vez: dez minutos depois de saírem do aeroporto, num138velho Cadillac Eldorado branco, Felício anunciou que estavam a ser seguidos.- É um Mercedes preto, patrão - disse ele, espreitando pelo espelho retrovisor.Os gémeos olharam instintivamente para trás e, de facto, um grande Mercedes preto estava a segui-los pela es trada, a dez ou doze metros de distância, e exactamente à mesma velocidade.- Consegues despistá-los?Felício esboçou um sorriso rasgado.- Isto é o Cairo, patrão. Veja.Alguns quilómetros à frente, Felício pôs o pé no acelerador, saiu da estrada, e conduziu por uma rua de sentido único, e depois por outra, até chegarem a uma área cheia de lojas antigas e apinhada de gente.- Isto é o velho bazar, patrão - disse Felício, seguindo por uma viela estreita e depois através de uma passagem de aspecto ancestral. - Muitas ruas velhas. Até polícia de trânsito perder-se aqui. Mas velho Felício conhecer Cairo como palma da mão. Não há problema.O carro acelerou ao dobrar uma esquina, atirando os gémeos para o colo de Nimrod, e depois mais outra; os peões dispersaram numa praça iluminada pelo luar enquanto o Cadillac passava rapidamente por uma série de sinais vermelhos. Nimrod olhou para trás, pelo vidro, e viu que o Mercedes preto continuava a segui-los.- Eles ainda estão atrás de nós - comentou para Felício.- Sim, eu estou a vê-lo - disse Felício, sorrindo e, acelerando por uma

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colina acima, virou bruscamente para o139parque de estacionamento de um hotel. Estacionando entre dois autocarros, desligou rapidamente os faróis e omotor. Alguns instantes mais tarde, o Mercedes passou velozmente pelo parque e todos soltaram um suspiro dealívio.- Bom trabalho, Felício - aprovou Nimrod.- Eram os Ifrit? - perguntou Philippa. Mas Nimrod não Lhe respondeu.- Leva-nos para casa, Felício - disse, reacendendo oseu charuto.

A casa de Nimrod ficava numa zona do Cairo conhecida como Cidade Jardim e mais parecia um palácio, com relvados muito bem tratados, palmeiras luxuriantes e grandes muros brancos. No interior fresco da casa, os chãos de mármore estavam cobertos com tapetes persas, e por todo o lado havia antiguidades egípcias, pelo que a casa se assemelhava ainda mais a um museu do que a casa do pai deles, em Nova Iorque. Mas o aspecto mais invulgar da casa era aquilo a que Nimrod chamava a Sala do Sortímetro, onde um grande instrumento redondo semelhante a um relógio pendia na parede. À frente, havia uma cadeira muito floreada que era ocupada por Felício, quando este não estava a conduzir o Cadillac ou a cozinhar ou, ocasionalmente, ainda, pelo próprio Nimrod. Uma inspecção mais atenta revelou que o relógio era feito de ouro, tinha cerca de seis metros de diâmetro, apenas um ponteiro, e que na verdade não era um relógio. Havia três palavras pintadas no mostrador de prata do sortímetro:140Boa, Má e Homeostasia; e o único ponteiro, com a forma de um braço musculado com um dedo indicador estendido, estava a apontar ligeiramente para a esquerda da palavra Homeostasia, pelo que estava já a entrar no segmento marcado como Má".- É um sortímetro - explicou Nimrod, orgulhoso, enquanto lhes mostrava a casa.- Isto mede toda a sorte do mundo, quer seja boa ou má. É uma réplica exacta de um sortímetro maior que está em Berlim e pertence ao Djim Azul da Babilónia, que regista a quantidade oficial de sorte que há no mundo, aquilo a que se chama SMB - Sorte do Meridiano de Berlim. Eu tenho um mais pequeno na minha casa, em Londres.- Pode mesmo medir-se toda a sorte do mundo? - perguntou John.- Com a mesma facilidade com que se mede o tempo com um barómetro - disse Nimrod. - As leis da física no universo excluem a possibilidade de as coisas simplesmente acontecerem". Nada é uma questão de puro acaso. Quando se criou o universo, o homem recebeu o domínio sobre a terra, os anjos sobre os céus, e os djins sobre a interacção entre os dois, aquilo a que alguns homens chamaram destino. Muitas vezes, o destino parece ser uma questão de puro acaso. Mas não é, claro está. É sorte, e é controlada pelos djins. A sorte é influenciada pelas três tribos boas dos djins. E o azar é obra das tribos más. Existe uma luta perpétua entre os dois. Um equilíbrio muito ténue a que chamamos homeostasia.141- Este sortímetro, do qual Felício é o guardião oficioso, permite que eu veja se as tribos más, das quais a pior é a dos Ifrit, estão a gerar azar suficiente para exigir anossa intervenção.- Como conceder três desejos a alguém? - perguntou John, que estava

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ansioso por fazer precisamente isso.- Exactamente - disse Nimrod, antes de ficar com um ar preocupado.- Desde o terramoto que o ponteiro tem estado a apontar para a esquerda da homeostasia, o que me preocupa muito e me leva a desconfiar de que os Ifrit andam a tramar qualquer coisa. É muito provável que tenham sido

eles a tentar seguir-nos no aeroporto e que tenham posto a cobra na pega do saco de John. - Olhou para o seu relógio e abanou a cabeça. - Mas o tempo está a passar, e eu queria mostrar-vos um pouco da cidade antes de nos deitarmos. No entanto, talvez seja melhor escolhermos um meio de transporte menos visível.Nimrod mandou chamar uma carruagem puxada por cavalos denominada ghari e, embora fosse muito tarde, os três djins foram dar uma volta pelo ainda agitado e atarefado coração do Cairo. Embora passasse da uma damanhã, muitas das lojas ainda estavam abertas, vendendo coisas que os gémeos nunca tinham visto, e praticamente não havia indícios de qualquer estrago provocado pelo terramoto.- É mais fresco ir às compras a esta hora - explicou Nimrod.142Philippa nunca tinha visto tanta gente, nem mesmo tantos carros, e disse-o a Nimrod.- O Cairo tem vinte milhões de habitantes - explicou Nimrod. - É um sítio muito pobre, mas, por qualquer razão, eles conseguem andar todos por aí com um sorriso nos lábios.- Como o Felício - disse John.- O nome verdadeiro dele é Karim - disse Nimrod.- Mas sempre pensei que Felício parecia mais adequado. Ele nunca pára de sorrir. Tal como um gato, feliz, a lamber os bigodes do leite.Nimrod acendeu um charuto e acenou na direcção das ruas circundantes.- Então - questionou -, o que é que acham do Cairo? Pelo tom da sua voz notava-se que Nimrod gostava muito da cidade.- Gostam?- Sim - disse Philippa, torcendo um pouco o nariz enquanto a carruagem atravessava um bazar apinhado de gente. Por momentos, quase foram soterrados por pessoas que aproveitavam para subir para a carruagem na tentativa de venderem qualquer coisa, até que, por fim, Nim rod Lhes disse, no seu árabe perfeito, para se afastarem, e o condutor agitou o seu chicote para ganhar alguma velocidade e finalmente conseguir fugir. - Mas tem um cheiro um pouco esquisito - acrescentou ela.- Toda a gente diz isso quando vem cá pela primeiravez. Esgotos a céu aberto. Em breve, habituar-te-ás.143- Não era isso que queria dizer. Bem, talvez seja um pouco isso. Algumas partes cheiram pior do que outras. O que eu quero dizer é que tem um cheiro estranho. Como se tudo fosse muito velho. Como se as pessoas vivessem aqui há muito tempo. É um cheiro igual ao que se sente numa zona apinhada de gente da baixa de Nova Iorque, num dia muito quente. Aqui cheira assim, só que cemvezes mais.John acenou em concordância.- Sim, é o que eu penso. Mas também tenho uma sensação estranha de já ter estado aqui. Uma sensação de que, de certo modo, estou em casa.- Sim, tens razão - admitiu Philippa. - Mas é mais do que isso, acho eu. Desde que chegámos que tenho a sensação estranha de estarmos a ser observados.- Excelente - disse Nimrod. - Mas é claro, de certo modo vocês estão em casa, John. E Philippa? Há mais djins no Cairo do que praticamente em

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qualquer outro sítio, com a possível excepção de Istambul. E, provavelmente, tu consegues pressenti-los.

- Isso quer dizer que nós somos árabes? - perguntouJohn.- Meu Deus, não - disse Nimrod. - Os árabes são uma raça humana. Nós somos djins. Os djins são bastante diferentes de qualquer raça humana. O Sr. Rakshasas vai contar-vos tudo acerca destas tribos amanhã, se assim o desejarem.- Neste momento só desejava que o condutor desta carruagem parasse de usar o chicote naquele pobre cavalo144- disse Philippa, estremecendo enquanto o egípcio estalava o seu chicote no ar.Nimrod riu-se.- O seu desejo é uma ordem, menina - disse ele e, cerrando os olhos, murmurou qualquer coisa baixinho. Passado um segundo, o cavalo começou a galopar, puxandoo ghari a tamanha velocidade que eles começaram a ultrapassar carros e autocarros. O condutor gritou qualquercoisa em árabe, mas o cavalo recusou-se a parar, pisandoruidosamente a estrada suja com os seus cascos.- Também já está na hora de irmos para casa - disseNimrod calmamente. - É muito mais tarde do quepensava.- Não era isto que queria dizer - gritou Philippa, agarrando-se à borda do ghari enquanto eles dobravamuma esquina a grande velocidade.- Como assim? - perguntou Nimrod, rindo-se. - O condutor parou de usar o chicote, não parou?- Isso é porque ele não se atreve a usá-lo por ter medoque o cavalo ande mais depressa - disse Philippa. Quandoo ghari embateu num grande buraco na estrada ela gritou,assustada.- É divertido, não é? - perguntou Nimrod. - Não hánada como um passeio de carruagem no Cairo, numa belanoite quente de Verão.Por fim, lá chegaram aos arredores da Cidade Jardime, cerca de um minuto depois, o cavalo parou espontaneamente, mesmo à porta da casa de Nimrod. Os três djins145desceram da carruagem. O condutor, que estava com um ar assustado não só pela velocidade do cavalo, mas também por o animal ter encontrado o caminho de volta sozinho, fez o mesmo. Nimrod deu uma palmadinha entusiástica no dorso do cavalo, como que mostrando ao homem que não estava zangado e deu-lhe uma bela gorjeta, caso o homem estivesse a pensar em castigar o cavalo mais tarde.

- Podíamos ter morrido - disse Philippa, repreendendo-o, depois de entrarem em casa. - Oh, nada disso, não me parece que estivéssemos em perigo. - Nimrod sorriu. - Mas, talvez agora percebas aquilo que eu disse acerca dos desejos. Podem ser coisas imprevisíveis. Nunca se sabe como é que as coisas vão resultar. Tu querias que o condutor parasse de usar o seu chicote, e foi o que fez. Apenas não gostaste do motivo pelo qual ele parou de o usar. É uma lição importante para qualquer jovem djim. Quando se brinca com o futuro, há um aspecto aleatório, inesperado e até mesmo desagradável naquilo que estás a fazer. O

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problema é que nós vivemos num mundo muito complicado. Pequenas variações nas condições iniciais podem resultar em transformações dinâmicas no acontecimento final. E grandes variações, do tipo provocado pela satisfação de um desejo por um djim, podem resultar em transformações tremendamente dinâmicas no acontecimento Final. - Hã, sim - disse John, lançando um olhar nervoso a Philippa na esperança de que ela também demonstrasse146não estar a perceber nada daquilo; e assim, apercebendo-se do seu olhar, a irmã respondeu-lhe encolhendo os ombros.Nimrod levou-os para a sala de visitas onde estavam umas bebidas quentes que Felício tinha preparado para quando regressassem.- Os djins têm um provérbio que diz: um desejo é como um prato de peixe: uma vez comido não pode serdevolvido.Nimrod fez uma pausa.- Talvez se perca alguma coisa com a tradução do original árabe. Mas significa que devemos ter cuidado com o que desejamos, não vá o nosso desejo realizar-se, embora de um modo que jamais poderíamos prever.John bocejou ruidosamente.- Bem, acho que vocês percebem a ideia.- Sim - disse Philippa. - Acho que sim.John dirigiu um esgar à irmã. Era típico dela fingir que percebia alguma coisa, mesmo quando não era o caso.- Por hoje chega de agitação - disse Nimrod. - Não concordam? Acho que está na altura de irmos todos para a cama.E assim, com as pernas ainda um pouco trémulas depois do passeio de carruagem, os gémeos recolheram aos seus quartos, tão espaçosos e bem decorados como o que tinham imaginado ao ler as histórias de As Mil e Uma Noites da Princesa Xerazade e, mal se deitaram, adormeceram imediatamente.147NA PELE DE UM CAMELO No Final da manhã seguinte, Felício anunciou que Nimrod tinha uma visita. Era a Sra. Coeur deLapin, a mulher do Embaixador francês no Egipto, que vivia na casa ao lado. A Sra. Coeur de Lapin era uma muLher alta e muito elegante, com uma pele imaculada e o perfil de uma imperatriz, o que significa que o seu nariz esguio estava muitas vezes empinado, pelo que parecia quase olhar de cima, para as pessoas, enquanto falava.Isto era apenas a sua maneira de ser, e não era nada antipática, isto para uma mulher francesa. Saudou Nimrod como um primo há muito desaparecido, cobrindo-o de elogios e sobre ele derramando salamaleques como as Cataratas do Niagara. E, na verdade, foram precisos vários minutos até que, por fim, a Sra. Coeur de Lapin láchegou ao assunto que tanto lhe interessava.- Ouvi o barulho de crianças no jardim - disse ela na sua voz doce e melodiosa. - E pensei que devia vir visi tá-lo imediatamente. Caso houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer para tornar a sua estada no Cairo mais agradável.148A Sra. Coeur de Lapin trazia um vestido roxo compridoe Fino, um lenço verde em torno do seu pescoço de cisnee, à volta de uma meda de cabelo loiro, uma fita preta eamarelo-esverdeada que lhe dava um ar distintamente

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boémio, como se pudesse ser uma vidente ou uma quiromante, em vez da mulher de um embaixador. - É muito amável da sua parte, Sra. Coeur de Lapin- disse Nimrod, claramente entusiasmado com a mulher.Pelo menos, foi o que Philippa pensou; o modo como ele mexia nervosamente na sua gravata enquanto falava coma Sra. Coeur de Lapin, quase como se estivesse a tocar clarinete, era semelhante ao modo nervoso como os homens se comportavam quando falavam com a sua mãe.- É tão bom ter crianças na vizinhança - disse ela, dirigindo um sorriso caloroso aos gémeos. - Os meus filhosjá são crescidos e vivem em França, pelo que a minha casaparece muito sossegada. Talvez possam vir visitar-me, umdia destes. Nós temos um jardim muito bonito. Enquantoestou aqui no Cairo, sou tal e qual como os ingleses. Vivosó para o meu jardim.- Bem, é muito amável da sua parte - agradeceu Nimrod, mas nós vamos estar muito ocupados enquanto estivermos aqui no Cairo.- Podíamos fazer um piquenique - disse a Sra. Coeurde Lapin, ignorando as objecções de Nimrod. - Talvezamanhã. Parece-vos uma boa ideia, meninos?- Sim - disse John, que gostava imenso de piqueniques.- É uma óptima ideia.149- Então está combinado - declarou a francesa.- É muito amável da sua parte - disse Nimrod, que agora tocava um solo animado na sua gravata. - Sem dúvida.- Não - disse ela, fazendo beicinho e afagando o cabelo de John. - Estou a ser egoísta. Eu adoro crianças.E então a Sra. Coeur de Lapin soltou um pequenosuspiro.- Durante muitos anos foram tudo na minha vida.E são tão bonitas. O Nimrod não me disse que era tio deum menino e uma menina tão bonitos. Fazem-me lembrar os meus próprios filhos.Depois de a Sra. Coeur de Lapin sair, Philippa perguntou a Nimrod por que é que ele parecia tão relutante emaceitar a hospitalidade dela.- Nós não estamos aqui a passar férias, sabem - disseNimrod. - Há muito que fazer. Muita coisa que vocêsainda não sabem. Temos de começar a vossa formação.Mas antes de eu poder fazer isso, tenho é de tratar da vossainiciação. O vosso Tamuz.- Uma iniciação? - disse John. - Não sei se isso meagrada muito.- Há milhares de anos - explicou Nimrod -, um dosmeus antepassados era rei, que também se chamava Nimrod, muito famoso por ter mandado construir a Torre deBabel. Era um tipo notável, esse Nimrod, e viveu durantemuitos anos. Pouco depois da sua morte, e antes de tertempo de o chorar, a sua rainha, Semiramis, deu à luz um150filho a que pôs o nome de Tamuz. Assim que se sentiu preparada, Semiramis foi até ao deserto jejuar durante quarenta dias e quarenta noites, para chorar a morte do seu marido. Durante esse tempo foi-Lhe revelado que, na verdade, Tamuz era Nimrod renascido.

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- Hoje em dia, todos os jovens djins da nossa tribo observam o rito de Tamuz, que comemora o seu renascimento e marca a passagem à idade adulta. Ninguém pode ser um djim e usar o poder djim antes de ele ou ela terem jejuado no deserto. Pois é do deserto que vocês vieram e enquanto não sentirem o calor do deserto a arder nos vossos ossos não poderão compreender esta chama djim que arde dentro de vocês.- Espere lá um minuto - disse Philippa. - O tio está a dizer que temos de passar quarenta dias e quarenta noites sozinhos no deserto?- Não são quarenta dias - disse Nimrod, pouco à vontade. - Nem nada que se pareça. De facto não é quase tempo nenhum.- Quanto tempo é? - perguntou John, desconfiado.- Uma noite - disse Nimrod. - Do crepúsculo até de madrugada.- Sozinhos? - exclamou Philippa.- Às escuras? Sem comida, nem bebida?- Vocês querem ser djim, não querem? - perguntou Nimrod. - Com o poder de conceder três desejos? E coisas do género? Ou querem ser normais?- É claro que queremos ser djim - disse John.151- Garanto-vos que não é nada de mais - afiançou Nimrod. - Conheço um pedaço de deserto muito agradável,perto das pirâmides, onde vocês se vão sentir bastanteconfortáveis.- Quando? - perguntou Philippa.- Quanto mais cedo, melhor, não? Estava a pensar quetalvez fosse melhor ser hoje à noite.John e Philippa ficaram calados por um momento.- Por que é que não vamos até lá agora, à luz do dia,para que vocês possam dar uma vista de olhos ao sítio e sehabituarem à ideia? Também podemos ir ver as pirâmides.Nimrod pediu a Felício que os levasse até Gizé, umaaldeia perto das pirâmides. Pelo caminho, o carro fez várias paragens breves em lojas de antiguidades e pequenosmuseus, onde Nimrod fazia perguntas sobre o terramotoe o que este poderia ter revelado, como se estivesse à procura de qualquer coisa em particular.John e Philippa interrogaram-se sobre o que seria.Por fim, o carro lá parou numa rua sossegada e poeirenta, e Nimrod conduziu os gémeos até uma pequenaperfumaria de aspecto obscuro, que ficava entre um estábulo e um mercado de fruta e legumes. Parecia-lhes umlocal estranho para vender perfumes. Tão estranho comoo facto de Nimrod querer entrar na loja, pelo menos atéeles verem uma montra com várias garrafas de vidro eantigas lamparinas romanas. Um homem com uma túnicabranca e comprida curvou-se com muita gravidade perante os seus três visitantes e depois beijou respeitosamente a mão de Nimrod.152Por um momento, os dois homens falaram em francês e depois árabe, antes de Nimrod se dirigir às crianças.- Este é Huamai - disse ele. - Huamai? Esta é a minha sobrinha Philippa, e o meu sobrinho John.Huamai fez uma vénia às crianças.- O senhor deixa-me extremamente honrado - admitiu ele. - Ao trazer os jovens até aqui.Nimrod deu uma palmadinha cúmplice no ombro de Huamai.

- De modo algum, velho amigo. Diga-me, Huamai, o seu filho Toeragh está

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cá? Queria alugar os três camelos brancos.- Esperem aqui dentro, por favor - disse Huamai. O homem conduziu Nimrod e os gémeos até uma pequena sala envidraçada, e apontou para um conjunto de almofadas espalhadas pelo chão, onde se poderiam sentar enquanto esperavam.- Vou avisá-lo imediatamente.Depois, voltou a curvar-se e deixou-os a sós.- Huamai é um grande perfumista - explicou Nimrod.- Um dos melhores. Depois do nosso passeio de camelo, voltamos e experimentamos alguns perfumes, e, então, talvez vocês percebam como é que Dalila conseguiu escravizar Sansão, Sabá enfeitiçou o Rei Salomão, e Cleópatra seduziu Marco António.- Eu não - disse John. - Não me apanham a usar perfume. Essas coisas são para raparigas.Nimrod sorriu calmamente.153- Veremos.Depois, levantou-se, enquanto Huamai surgia de trás da porta e fazia mais uma vénia.- Vamos. Os nossos camelos estão prontos. As crianças seguiram Nimrod através da loja perfumada até um pequeno pátio nas traseiras onde estavam ajoelhados três camelos brancos, amarrados a um poste, e sobre os quais estavam sentados - carregados com máquinas fotográficas, garrafas de água e guias de viagem - três turistas americanos para cuja descrição a palavra grande" mal parecia ser suficientemente grande; cada um parecia um monte de donuts enormes, empilhados uns em cima dos outros.- O camelo é a melhor maneira de andar pelas pirâmides - disse Nimrod. - Por um lado, é uma grande caminhada. E, por outro, é o único modo de não sermos importunados por todos os habitantes locais que nos tentam vender coisas que não queremos.Um jovem sorridente com um bigode e um chicote para camelos correu em direcção a Nimrod e fez uma vénia.- Este é Toeragh - disse Nimrod, começando a falar com o homem em árabe. Passado um minuto ou dois de negociação, Nimrod deu umas notas sujas chamadas piastras a Toeragh, e depois voltou-se para as crianças.- Está tudo resolvido. Estes três camelos são nossos enquanto precisarmos deles.No preciso momento em que falava, os três camelos levantaram-se, blaterando bem alto, enquanto os seus ocupantes guinchavam num misto de susto e prazer.154- Mas certamente estes camelos já estão reservados- protestou John. - Olhe. - Apontou para os turistas,que já estavam a fotografar-se uns aos outros. -Já estãoocupados.- Não, não, não - disse Nimrod. - Não estás a perceber. Nós não vamos montar os camelos. Isso não é muitodivertido. Se queres que te diga, até é bastante desconfortável, com aquela grande bossa que eles têm. Não, nósvamos ser os camelos. Isto é uma proposta muito maisinteressante, não acham?- O quê? - exclamou Philippa. - Mas eu não quero ser um camelo. Eles são nojentos.A aversão de Philippa ante a ideia de ser um camelo

aumentou rapidamente quando um deles começou a urinar no chão.

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- Mas isso é um perfeito disparate - disse Nimrod.- Estes camelos são muito bonitos. São os melhores doCairo. Ainda para mais, o camelo é um animal muito importante para a nossa tribo. Os Marid já se transformamem camelos há milhares de anos. Além disso, este tipo deexperiência vai ser-vos útil quando forem djins.- Mas, como? - perguntou John, que gostava tanto daideia de ser um camelo como a irmã. - Como é que nosvai ser útil? Nós vivemos em Nova Iorque. Um gato,um cão ou até um cavalo, ainda compreendia. Mas umcamelo?- Sobretudo um camelo que está a fazer chichi - dissePhilippa, tapando o nariz. - Quando é que ele pára?155- Bom, não tenho tempo para discussões - disse Nimrod. - Eles vão partir daqui a um minuto. Ouçam lá, eujá fui um camelo, a vossa mãe foi um camelo e a vossaavó também foi um camelo. E é só por algumas horas.Philippa já estava a caminhar de regresso à perfumaria.- Nem pensar - disse ela, enquanto Nimrod erguia asmãos na direcção do céu. - Eu não vou ser um camelomiserável.- Eu também não - disse John, só que as suas palavrassaíram como um enorme arroto de camelo, pois o facto éque ele já tinha a bossa.Philippa retribuiu-Lhe o arroto, pois também ela eraagora um camelo.Não falem, limitem-se a pensar", parecia dizer Nimrod dentro das suas cabeças. Se tentarem falar normalmente, vai sair como um arroto. "John arrotou sonoramente, várias vezes, tal como Philippa, que estava horrorizada. Ela tinha a certeza absolutaque nunca tinha arrotado.Isto é tão nojento", pensou ela, infeliz.Assim está melhor, pensou Nimrod.Consigo ouvir os seus pensamentos", observou Philippa.É claro. Pensavas que os camelos conseguiam falar? " Toeragh puxou a rédea de Nimrod e ele começou a andar. John e Philippa, que entretanto estavam presos à sela de Nimrod por uma corda, não podiam fazer muito mais do que segui-lo. Caminharam durante algum tempo e, ao156dobrar de uma esquina, viram finalmente as pirâmides pela primeira vez.Cá estamos", declarou Nimrod. Que é que vos parece? "Uau! " pensou Philippa. Passado algum tempo, ela esqueceu-se do homem que tinha no dorso e deixou de ouvi-lo tagarelar; não demorou muito a entregar-se à experiência de apreciar as pirâmides, ainda que fosse como um camelo; e, de facto, meia hora depois de ter saído da perfumaria de Huamai, ser um camelo começou a parecer a coisa mais natural do mundo. Estava a divertir-se imenso, embora não Lhe apetecesse admitir tal facto perante Nimrod.

Sendo o irmão gémeo de Philippa, é claro que John estava a ter exactamente os mesmos pensamentos que a sua irmã. Havia, pensou ele, algumas vantagens distintas em caminhar pelas pirâmides sob a forma de um camelo. Mesmo com a mulher em cima dele, que claramente não sabia nada sobre camelos, tal era a incompetência com que ocupava a sela, custava-lhe muito pouco passear pelas pirâmides. Ainda para mais, sentia-se incrivelmente forte, como se pudesse facilmente percorrer

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cinquenta ou sessenta quilómetros com dois turistas às costas. John não tinha qualquer dúvida: pelo menos no Egipto, ser um camelo tinha as suas vantagens.Não podemos passar essa noite de iniciação no deserto como camelos? " pensou ele.Infelizmente, não", respondeu Nimrod. Têm de o fazer nas vossas formas humanas. Mas fico muito contente157por estarem a gostar de toda esta experiência de serem animais. Ainda bem, uma vez que assumir a forma de qualquer tipo de animal é crucial para o desenvolvimento do vosso próprio poder djim. A verdade é que vocês podem tornar-se quase todos os animais que quiserem, mas apenas por um período limitado de tempo. Excepção feita ao camelo - o camelo é uma criatura que nós, Marid, podemos ocupar indefinidamente. "Tinham percorrido cerca de dois quilómetros para sul, para lá da pirâmide mais pequena de Gizé, até um arco de deserto isolado chamado Abu Sir, onde, segundo Nimrod, ainda havia duas pirâmides enterradas na areia.Este é o pedaço de deserto de que vos falava, explicou Nimrod. É para aqui que vos vou trazer esta noite. Para a vossa prova de iniciação.John arrotou bem alto, demonstrando o seu desagrado perante a ideia.- Por que é que viemos até aqui? - perguntou uma das turistas. - Não há nada para ver. Vamos mas é voltar para trás.- Como é que se põe este estúpido animal a andar mais depressa? - queixou-se o marido dela, soltando a corda que prendia os outros dois camelos, e pontapeando o flanco de Philippa.Philippa entrou num trote rápido, de que o turista parecia estar a gostar, e depois passou para um galope, de que ele já não gostava. Arrotando bem alto com entusiasmo, Philippa acelerou em direcção a Gizé, seguida por Toeragh158a pé, e pelos outros dois camelos até que, temendo claramente pela sua vida, o homem saltou da sela de Philippa e caiu, sem se magoar, numa duna.Philippa abrandou o galope para um trote, e depois voltou-se para cuspir para o solo, ao lado do seu passageiro prostrado no chão.Assim aprende a não me pontapear", pensou ela, satisfeita.De volta à perfumaria, e depois de os turistas partirem, Nimrod transformou-os de novo nas suas formas humanas e John reparou imediatamente num aspecto desagradável em si próprio.- Ugh - disse ele. - Estou com um cheiro repugnante.- Todos cheiramos mal - disse Nimrod. - É esse o problema da transformação animal. O cheiro, e às vezes o gosto, podem perdurar um pouco depois de voltarmos a assumir a forma humana. É um dos motivos pelos quais Huamai gere a perfumaria e o aluguer de camelos. Para que os djins que, como nós, tenham a necessidade urgente de cheirar bem, o possam fazer.Entraram na loja, onde Huamai os esperava para lhes vender um frasco do seu melhor perfume: Air d'Onajee stringh.

- Ainda achas que perfume é para meninas? - troçou Nimrod, aceitando o frasco da mão de Huamai.- Suponho que qualquer coisa é melhor do que cheirar a camelo - resmungou John, espalhando, relutante, algum perfume atrás das orelhas e no peito. - Até cheirar a rapariga.159- Ouve-o bem - comentou Nimrod. - Vê como se parece com o Grunho.

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- Por falar no Sr. Grunho - disse Philippa. - Onde é que ele está? Acho que não o vi esta manhã.- Ele está descontente por algum motivo? - perguntou John.- Não - disse Nimrod. - Mas está longe de se sentir contente. O Grunho detesta o Egipto, pobre tipo. Prefere ficar no seu quarto a ver televisão, ou a ler o Daily Telegraph, ou a sua poesia. Não suporta o calor, não suporta a comida, não suporta as moscas e não suporta as pessoas. O mais provável é vocês mal o verem até chegar a altura de voltarmos para Londres.- Não percebo por que é que o tio o trouxe - disseJohn.- Porque, meu querido sobrinho, posso passar sem manteiga, mas não posso passar sem um mordomo. Quem me iria polir as pratas? Quem iria dobrar a minha roupa? Quem iria trazer-me o chá e preparar-me o banho? Sobretudo, quem iria abrir a porta da frente e dizer que eu não estou em casa a quem me quisesse vender alguma coisa que eu não quero comprar? O Sr. Grunho é o meu interface com o mundo.- Talvez ele possa vir connosco esta noite - disse Phi lippa, mordaz. - Caso alguém tente vender-nos algumacoisa.160ORIGEM DOS DJINSNessa tarde, um pouco antes do anoitecer, Nimrod pediu a Felício para os levar até ao deserto a suldas pirâmides, para a prova de iniciação dos gémeos. Quando chegaram ao local que antes Lhes tinha mostrado Nimrod e Felício abriram a mala e tiraram uma manta para o chão, um dicionário de inglês, dois blocos de apontamentos e dois lápis, um par de sacos-cama, uma caixa de fósforos e uma velha lâmpada a óleo de bronze, cuja pega tinha a forma de um velho curvado.- Tudo o que precisam - declarou Nimrod.- Mas, não há comida - observou John.- Que tipo de jejum seria este, se tivéssemos trazido comida? - perguntou Nimrod.- Não tem uma lanterna? - perguntou Philippa,olhando vagamente para o que a rodeava, e depois para o pouco equipamento. - É que em breve vai ficar muito escuro e aquela lâmpada não parece sequer capaz de iluminar um bolo de aniversário.Nimrod parecia horrorizado.161- Não se faz um Tamuz com uma lanterna - disse.- Vocês não são ladrões, mas sim djins, e são de uma família muito distinta de djins. Tentem lembrar-se disto. A ideia da prova de iniciação é passarem uma noite no deserto na companhia da chama. As lâmpadas a óleo têm um significado muito especial para nós. - Soltou um suspiro de impaciência e abanou a cabeça. - Uma lanterna. Vejam lá que ideia!

- Nós não estamos habituados à escuridão, é só isso- disse John, nervoso. - A poluição luminosa de Nova Iorque faz com que lá nunca esteja mesmo escuro. Não é como aqui, no Egipto.- Isto é uma lâmpada bizantina do século vII depois de Cristo - declarou Nimrod. - E posso garantir-vos que será adequada às vossas necessidades.- Mas o que é que nós vamos fazer a noite toda? - perguntou Philippa.- Tentar dormir - disse Nimrod. - Normalmente é o que as pessoas fazem à noite. Mas aconselho-vos a usarem os sacos-cama, uma vez que fica

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bastante frio depois de anoitecer. Se se aborrecerem, talvez queiram fazer um jogo de palavras com o dicionário. Ou talvez possam polir aquela lâmpada antiga. No caminho para cá estava a pensar que está com um aspecto um pouco baço.Felício já tinha regressado ao Cadillac e estava a ligaro motor.- Nós voltamos de madrugada - disse Nimrod, subindo para o banco de trás.162- E se nos acontecer alguma coisa? - perguntou John.- Ninguém sabe que vocês estão aqui, excepto eu e o Felício.O que é que vos poderia acontecer? Seja comofor, vocês são djins. As outras pessoas é que devem termedo de vocês. - Nimrod fechou a porta do carro e abriuo vidro. - A propósito, se virem algumas luzes estranhaspor cima das pirâmides e ouvirem uma voz pomposa aecoar pelo céu, não se preocupem. Isso é o son et lumièrenas pirâmides. O espectáculo de luz e som para os turistas.Penso que, daqui, ainda conseguem ouvir tudo. Quemsabe? Talvez até aprendam alguma coisa.Nimrod deu uma palmadinha no ombro de Felício edepois o carro desapareceu numa nuvem de pó e areia,como uma grande quadriga branca, deixando os gémeossozinhos na escuridão que agora se abatia rapidamentesobre Abu Sir.John tinha a certeza de que conseguia ouvir o seu próprio coração a bater.- Gostava que o Neil e o Alan estivessem aqui - disseele. - Quero dizer, o Winston e o Elvis.- Eu também - admitiu Philippa. - Acho que nuncaestive tão assustada como agora.- Suponho que a ideia seja essa - disse John. - Istonão seria uma prova, se não fosse difícil.Uma brisa quente pareceu zombar deles por um momento, acariciando os seus rostos e agitando os seus cabelos.- Espero que isto valha mesmo a pena - disse Philippa.163- Acho que vai valer, se ficarmos com poderes djins como os do tio Nimrod - animou-se John.

Pouco tempo depois de Nimrod partir, os gémeos ouviram uma música foleira e um raio laser atravessou o céu, assinalando o início do espectáculo de luz e som nas pirâmides, a cerca de dois quilómetros de distância. E, pelo menos durante algum tempo, eles ficaram demasiado interessados no que estava a acontecer acima das suas cabeças para prestarem muita atenção à escuridão. Mas quando, por fim, o espectáculo acabou, Philippa deu por si a tremer com uma mistura de frio e medo.- Escurece muito rápido, não é? - disse ela, constrangida, e, engolindo em seco à luz do luar, meteu-se no seu saco-cama na esperança de que este a protegesse do que quer que pudesse estar à espreita no deserto.- Não seria melhor acendermos aquela lâmpada agora? John pegou na caixa de fósforos e depois na lâmpada, que pesava nas suas mãos.- É estranho - disse ele. - Esta coisa não acende.- Não brinques John. Isso não tem piada.- Não, a sério, não estou a brincar. Ele passou-lhe a lâmpada e os fósforos.- Toma, tenta tu.

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Philippa pegou na lâmpada e nos fósforos e tentou acender a lâmpada sem mais sucesso do que o irmão; até que, tendo acendido um dos seus últimos cinco fósforos, ela examinou a lâmpada com mais atenção.164- Não admira que nós não consigamos acender isto- disse ela. - Não tem coiso para acender. O raio da lâmpada não tem pavio!- Pelo menos está Lua cheia - observou John, tentando melhorar o estado de espírito melancólico da sua irmã. Sem acender outro fósforo, ele mal conseguia ver onde ela estava. - E olha para o céu! Tantas estrelas. Algumas estão tão perto que quase lhes podíamos tocar. Olha para aquela. Mesmo por cima do horizonte. Parece que está só a algumas centenas de metros de distância. É como eu estava a dizer ao tio Nimrod. Nunca se vê um céu em condições em Nova Iorque.Philippa parou de esfregar a lâmpada e olhou para cima. Estava prestes a concordar com o irmão na esperança de que isso a pudesse distrair da sua situação infeliz quando a lâmpada que tinha na mão abanou e pareceu levantar voo. Ela soltou um grito de medo, convencida de que alguém lhe tinha tirado a lâmpada das mãos e, ainda dentro do seu saco- cama, levantou-se rapidamente e saltou em direcção ao irmão, sentindo-se um pouco como uma lagarta gigante.- John - disse ela. - Aconteceu qualquer coisa à lâmpada.No preciso momento em que ela falava, um fumo espesso e luminescente saiu do orifício da lâmpada, subindo bem acima das suas cabeças a uma velocidade sobrenatural e formando uma grande nuvem que parecia pairar sobre eles como se ameaçasse, por qualquer razão, chover165sobre aquelas crianças e mais ninguém. Ao mesmo tempo, aperceberam-se de um odor estranhamente forte e intenso, semelhante ao de tinta para cartaz, como se alguém tivesse tentado pintar o fumo com um pincel.- Não gosto disto - disse Philippa. - Não gosto mesmo nada disto.Depois de ter saído da lâmpada ancestral, o fumo reuniu-se e tornou-se um corpo sólido, formando uma silhueta humana com o dobro do tamanho do maior gigante que eles alguma vez poderiam ter imaginado, mas que gradualmente assentou e encolheu até à forma normal do djim se tornar praticamente reconhecível.- Sr. Rakshasas - disseram os gémeos, soltando um sonoro suspiro de alívio. - Graças a Deus que é o senhor.

- E uma muito boa noite para vocês os dois - disse ele, num sotaque irlandês tão distinto que parecia quase teatral.- O senhor pregou-nos um valente susto - riu Philippa, depois de recuperar o fôlego.- Isto faz parte do Tamuz? - perguntou John.- Faz, sim, jovem djim - disse o velho djim. - Faz, sim. Eu tentei adivinhar quanto tempo vocês levariam a perceber que tinham de esfregar a lâmpada. Não pensaram mesmo que o vosso tio vos ia deixar aqui sozinhos, pois não? - Suspirou. - Bem, se calhar foi isso que pensaram. Eu tinha a certeza de que assim que Nimrod vos desse a velha lâmpada se iriam lembrar da história de Aladino, de As Mil e Uma Noites; mas parece que me enganei. O maisimportante é que vocês sentiram que tinham sido abandonados no deserto, que é tudo o que realmente importa para o Tamuz. Isso é uma pequena instrução minha. Na minha qualidade temporária de mestre de cerimónias dos Marid.- Eu pensava que Nimrod é que era o chefe da nossa tribo - disse Philippa.

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- Para ser mais rigoroso, a vossa mãe é que é a chefe dos Marid - disse o Sr. Rakshasas. - Mas como ela renegou ao uso de todo o poder djim, Nimrod é o encarregado dos assuntos quotidianos dos Marid. Contudo, ele tem um assunto urgente a tratar hoje à noite, e conFiou-me a vossa iniciação formal.Como antes, o Sr. Rakshasas tinha um turbante e uma sobrecasaca brancos que condiziam com a sua barba branca e bem cuidada. O djim segurava outra lâmpada a óleo na mão, só que esta estava mesmo a arder e emitia uma luz forte que iluminava o deserto vários metros à sua volta.Os gémeos já não o viam desde que tinham partido de Londres e, pouco a pouco, o medo e a surpresa que sentiam transformaram-se em prazer, pois era a primeira vez que tinham visto um djim surgir de dentro de uma lâmpada.- O que é que nos vai acontecer agora? - perguntouJohn.- A pior parte da vossa prova terminou - disse o Sr. Rakshasas. - A menos que achem que ouvir um velho167djim falar é o pior que vos podia acontecer. O vosso tio, Nimrod, um grande djim a quem tenho a honra de chamar meu amigo, pediu-me para vos contar a história da origem dos djins. Mas devo pedir-vos para prestarem muita atenção, porque há assuntos de muita importância ligados a esta história. E, para jogar pelo seguro, é crucial que a vossa compreensão seja tão grande como a vossa importância no esquema das coisas.A voz do Sr. Rakshasas tornou-se um pouco mais severa e ligeiramente mais elevada enquanto ele continuava a falar, pelo que os gémeos começaram a desconfiar que ele talvez não fosse tão tímido e reservado como Nimrod os levara a acreditar.- No início da Terra, só havia dois poderes no mundo eapenas três tipos de criaturas que conseguiam distinguir a diferença entre si. Esses poderes eram o bem e o mal,e só os anjos, os djins e os homens sabiam distingui-los. Os djins existiam a meio caminho entre os homense os anjos e, feitos de uma espécie subtil de fogo, tinham o poder de assumir quase todas as formas que quisessem.

Por causa dos poderes que tinham sobre a sorte, alguns homens veneravam esses djins como semideuses, enquanto outros homens, que veneravam um só deus, ficavam muito furiosos com tudo aquilo. Contudo, pouco a pouco, uma grande escolha foi imposta aos anjos, aos djins e aos homens: escolher entre o bem e o mal. Chamaram-lhe a grande decisão. Os anjos que escolheram o mal eram poucos em número, mas os seus nomes são demasiado168poderosos para serem mencionados de ânimo leve. Os homens eram as criaturas mais numerosas da Terra, e enquanto alguns escolheram o bem, um número considerável acabou por escolher o mal. Como eram muitos, não há números precisos. No entanto, no caso dos djins, as coisas foram diferentes. Sendo apenas seis tribos, e menos numerosos do que os homens, eram mais fáceis de contar na questão desta grande escolha. Três tribos - os Marid, os Jinn e os Jann - escolheram o bem; e três tribos- os Ifrit, os Shaitan e os Ghul - escolheram o mal. Olhando para trás, é pena que as tribos boas dos djins tivessem decidido que a Guerra é um dos grandes males e, consequentemente, não lutassem pelo bem como, aliás, poderiam ter feito. Foram travadas inúmeras batalhas entre os

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homens e os djins em torno desta grande escolha, e as tribos más Fizeram algumas coisas terríveis não só a outros djins, mas também aos homens. O que explica por que é que, ao longo do tempo, os homens decidiram tratar todos os djins como sendo maus. Alguns djins bons foram mortos. Outros fugiram para uma vida mais calma, ainda que menos poderosa, em climas mais frescos. Isto enfraqueceu o seu poder, mas garantiu a sua sobrevivência a longo prazo e, pouco a pouco, ao longo de centenas de anos, conseguiu-se obter um equilíbrio de poder entre o bem e o mal. Mas, num sentido bem real, essa guerra ainda hoje é disputada. "- Então nós estamos em guerra com os Ifrit? - perguntou John.169- Uma espécie de guerra, sim. Uma guerra fria, se quiseres chamar-lhe assim; mas uma guerra, sem a menor das dúvidas - admitiu o Sr. Rhakshasas.- Por que é que não ouvimos falar mais nisto? - perguntou Philippa.- Porque, hoje em dia, a maioria dos homens acredita que os djins já não existem, o que é muito bom para os nossos objectivos. Outros, que se auto-intitulam feiticeiros ou mágicos, aprenderam a obrigar um djim a servi-los. Alguns até têm sangue de djim. Por todos estes motivos, os djins sensatos aprenderam a ter cuidado com o modo e a altura em que os humanos descobrem qual é a suaverdadeira natureza.- Mas então qual é a aparência destes Ifrit? - pergun tou Philippa.- Boa pergunta, Philippa. Sim, vocês têm de aprender a distinguir as diferentes tribos de djins, os diferentes tipos de djins, se é um amigo ou um inimigo, e se for um inimigo, como é que pode ser combatido. Para este fim, eu recrutei a ajuda de um sistema de cartas djim que vos vou dar agora.E, dizendo isto, o Sr. Rakshasas mergulhou nos bolsos do seu casaco e tirou dois grandes baralhos de cartas que deu a John e Philippa.Cada carta tinha o nome de um djim, a sua tribo, a sua forma animal preferida, e as suas várias forças e fraquezas.John olhou para o baralho de cartas.

- Estas cartas são muito fixes - disse ele.170-John, achas que consegues parar de usar essa palavra? - pediu o Sr. Rakshasas. - Fixe não é uma palavra com que qualquer djim que se preze se possa sentir confortável. Nós, djins, somos feitos de um tipo de fogo muito subtil. E garanto-te que isso não tem nada de fixe.- O que é que isso quer dizer? - perguntou Philippa.- Um tipo de fogo subtil? Fogo é fogo, não é?- Para um homem de Cork, talvez - disse o Sr. Rakshasas. - Mas já ouviram dizer que os esquimós têm dezoito palavras para neve? Pois bem, nós, djins, temos vinte e sete palavras diferentes para fogo, não incluindo as palavras inglesas, que são cerca de uma dúzia. A maior parte destas palavras está ligada àquilo a que chamamos o fogo primordial, que é fogo quente, ou fogo por fricção. Mas também há o fogo subtil que arde dentro de todos os djins, sejam eles bons ou maus. Os homens chamam-lhe alma, embora esta tenha pouca utilidade prática, ao contrário da chama subtil que está dentro de vocês os dois. Todo o poder djim está ligado a este fogo subtil. É o que vos dá o poder da mente sobre a matéria. Este é o poder que os humanos gostariam muito de ter para si próprios.- Mas como? - perguntou John. - Como é que se faz? Que é que temos de

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fazer para exercer o nosso poder? Ter pensamentos felizes", como no Peter Pan?- Tudo o que têm de fazer é aprender a concentrar o poder de fogo que têm dentro de vocês naquilo que querem que seja feito. E o melhor modo de fazer isso é pensar numa palavra, uma palavra que só irão associar ao171exercício do vosso poder djim. Este é o principal objectivo desta noite. Ajudar-vos a encontrar o espaço e a solidão para procurarem no vosso íntimo, para meditareme encontrarem uma palavra que vos ajude a concentrar ovosso poder.- Como uma palavra mágica? - perguntou Philippa.O Sr. Rakshasas estremeceu.- Nós, djins, preferimos chamar-lhe palavra de concentração. Mas é verdade que é assim que as palavras mágicas surgem entre os humanos. Eles ouvem algum djimdescuidado a usar a sua palavra de concentração e depoistendo visto o resultado, pensam que talvez possa ter omesmo efeito consigo. Foi assim que apareceu a palavraSÉSAMO. Sésamo não tem nada de especial: é apenas umaplanta muito cultivada originária das Índias Orientais. mas um djinn qualquer pensou que daria uma boa palavra de concentração que, sem que ele desse por ela, foilogo adoptada e usada pelo humano que escreveu as histórias de As Mil e Uma Noites.- Então tudo o que temos de fazer - disse Philippa - é pensar numa palavra de concentração adequada e depoispodemos começar a fazer truques.- Truques? - O Sr. Rakshasas fez um esgar. - Os truques não são para os djins. Quando eu disse poder de fogoestava a falar a sério. Alguém se pode magoar. Por isso éque vocês estão aqui no meio do nada. Para aprendererema usar esse poder de fogo de modo responsável.- Sim, Sr. Rakshasas - disse Philippa. - Peço desculpa.

172- A vossa palavra de concentração é como uma lupa. Já viram o modo como uma lupa consegue concentrar o poder do sol num ponto muito pequeno de uma folha de papel, ao ponto de a fazer arder? Uma palavra de concentração actua do mesmo modo. O que têm de fazer é escolher uma palavra que dificilmente surja numa conversa normal. Foi assim que surgiu a palavra ABRACADABRA. E quase todas as outras.- Qual é a sua palavra de concentração? - perguntou Philippa.- A minha? É SESQUIPEDAL. Diz-se que foi inventada por Horácio, o poeta romano, para significar uma palavra muito comprida. E a de Nimrod é QWERTYUIOP. São as primeiras dez letras de um teclado de computador. Ambas estas palavras são impossíveis de esquecer e quase tão impossíveis de usar numa conversa normal.- Sim - concordou Philippa. - São palavras de concentração muito boas. Eu não seria capaz de pensar numa palavra tão boa como essas.- Não há pressa - avisou o Sr. Rakshasas. - E vocês devem pensar bem nisso. Por isso é que estamos aqui no deserto. Afinal, uma palavra de concentração tem de vos durar bastante tempo.- Que tal Biltong? - perguntou Philippa. - É uma espécie de carne seca de antílope, da África do Sul. Eu nunca iria a uma loja pedir isso. É nojento:- Eu sei o que é - disse o Sr. Rakshasas. - Mas também não vos

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aconselho a escolherem uma palavra tão pequena.173Conheço casos de djins que murmuraram as suas palavrasde concentração durante o sono, com resultados desastrosos. Mas nunca ouvi falar de ninguém que dissesse, porexemplo, a palavra PNEUMOULTRAMICROSCOPICOSSILICOVULCANOCONIÓTICO durante o sono.- Acho que nunca seria capaz de dizer uma palavra dessas - disse John. - Sobretudo enquanto estivesse a dormir.- O que é que significa? - perguntou Philippa.- PNEUMOULTRAMICROSCOPICOSSILICOVULCANOCONIóTICO? SigniFica o estado de quem é acometido deuma doença rara provocada pela aspiração de cinzas vulcânicas. O que a torna uma palavra de concentração quaseperfeita, porque nunca ninguém poderia proferir umapalavra tão complicada como PNEUMOLTLTRAMICROSCOPICOSSILICOVULCANOCONIÓTICO em qualquer conversa normal.O Sr. Rakshasas pousou a sua lâmpada no chão e foibuscar o dicionário, os dois blocos de apontamentos e osdois lápis que Felício Lhes tinha deixado.- Se precisam de inspiração, sugiro que recorram ao dicionário. Anotem algumas ideias antes de se deitarem,hoje à noite, e, de manhã, quando Nimrod chegar, escolheremos as melhores e experimentá-las-emos. - O Sr.Rakshasas olhou em volta. - Mas estou a esquecer-me deuma coisa. Vamos ver se conseguimos tornar este sítio umpouco mais agradável, está bem?- Seria bom termos uma fogueira - sugeriu Philippa.- E uma tenda - disse John. - E já agora, Sr. Rakshasas, que tal um hambúrguer?174

- Vocês não perceberam - disse o Sr. Rakshasas. - Hoje em dia, os meus próprios poderes djim estão limitados a transubstanciações. É o nome que damos à desmaterialização que fazemos quando saímos ou entramos numa lâmpada ou numa garrafa. Tirando isso, para ser sincero, praticamente não tenho poderes.- Então como é que vamos tornar este sítio mais agradável, como o senhor disse? - perguntou Philippa.- Felizmente não temos falta de recursos.Ele apontou para a escuridão, na direcção das pirâmides.- A cerca de cem metros daqui, na estrada, encontraremos uma caixa com tudo o que precisamos para uma noite confortável. Tendas. Lenha. Óleo para a lâmpada. Nimrod deixou-a lá para nós. Só temos de ir buscá-la.E, dizendo isto, o Sr. Rakshasas pegou na sua lâmpada a óleo e apagou a chama.- Como é que o senhor espera que encontremos a caixa às escuras? - perguntou John.- É simples - disse o Sr. Rakshasas. - Vês aquela luz perto do horizonte? Aquilo é uma lâmpada em cima da caixa. Nimrod deixou-a ali para nos ajudar a encontrá-la.- E eu que pensava que era uma estrela - admitiu John. Meia hora mais tarde, com uma grande tenda montada e uma fogueira a arder no chão, os gémeos sentiam-se bem mais confortáveis.- Então, onde é que ele está? - perguntou Philippa.- O tio Nimrod. O senhor disse que ele tinha de tratar de um assunto

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urgente hoje à noite.175O Sr. Rakshasas ficou em silêncio, enquanto o seu rostoadquiria uma expressão sombria, como se estivesse prestesa dizer algo de grande importância.- A verdade é que ele está a investigar um boato quediz que Iblis, o djim mais malvado dos Ifrit, que são atribo mais perversa de todas, foi visto no Cairo. Iblis significa a origem do desespero, e podem crer que o nomefoi bem escolhido, porque ele já fez muitas coisas terríveis. Se Iblis deixou os casinos e palácios de jogo dos Ifritpara estar no Cairo aqui e agora, por algum motivo é. Nóstemos de tentar descobrir qual é esse motivo, pois podemter a certeza de que não vai ser nada de bom. Quandodescobrirmos qual é esse motivo, temos de tentar travá-lo. Custe o que custar.- Os Ifrit têm um casino?- Várias dezenas de casinos. Muitos dos jogos de azardo mundo foram inventados pelos Ifrit, para grande tormento da humanidade - explicou o Sr. Rakshasas. - Poupa-lhes o trabalho de terem de exercer os seus própriospoderes djim para causar azar às pessoas. Os seus casinosem Macau, Monte Carlo e Atlantic City fazem isso poreles. Os Ifrit são uma tribo de djins muito preguiçosa.O Sr. Rakshasas abanou a cabeça com gravidade.- Até lá, pensem bem nas vossas palavras de concentração de poder de fogo. É provável que precisemos dosvossos poderes mais cedo do que pensávamos. - O djinnvelho e barbudo cruzou os braços e soltou um suspiro decansaço. - E agora estou a sentir-me um pouco cansado176

por ter estado tanto tempo fora da minha lâmpada. Por isso, se não se importarem, vou indo para casa. Se precisarem de mim, esfreguem a lâmpada, está bem? Como Fizeram antes. Boa noite.- Boa noite, Sr. Rakshasas - responderam os gémeos. No preciso momento em que o Sr. Rakshasas falava, o fumo começou a sair, encapelado, da sua boca e das suas narinas, embora não houvesse nenhum charuto ou cigarro na sua mão. E o fumo não parava de sair, como se não tivesse fim, até o velho djim ficar envolto na sua própria nuvem e se tornar completamente invisível aos olhos dos dois jovens djins. Depois foi como se a lâmpada tivesse inspirado rapidamente, pois, de súbito, todo o fumo foi sugado para dentro da lâmpada através do orifício, revelando, depois de o último fiozinho de fumo se ter finalmente evaporado do ar do deserto, que o Sr. Rakshasas tinha desaparecido completamente.- Fixe - comentou John.177UM PIQUENIQUE NO ROCHEDO DESAPARECIDONa manhã seguinte, pouco depois do romper da aurora, quando ainda só metade do Sol tinha aparecido sobre o horizonte oriental, parecendo a boca de um enorme túnel ardente, Nimrod chegou no seu Cadillacbranco, conduzido por Felício, e com um ar muito entusiasmado; pelos vistos, aliás, demasiado entusiasmado, para perguntar aos gémeos como tinha corrido a sua noite no deserto. Indo directo ao assunto, mostrou-Lhes uma carta que tinha recebido naquela mesma manhã.- É de um velho amigo meu, chamado Hussein Husseiout - explicou ele. -

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Esta pode muito bem ser a notícia de que eu estava à espera. Hussein Husseiout é um dos saqueadores de túmulos mais bem sucedidos do Egipto. Ele diz que seria vantajoso para mim irmos à sua loja, na Cidade Velha. Parece que descobriu uma coisa muito interessante.- Como uma múmia? - perguntou Philippa.- Muito mais interessante do que isso, espero eu - disse Nimrod. - É muito provável que seja algo que o recente terramoto revelou, e que Hussein Husseiout já encontrou.178Contudo, teremos de ter o máximo cuidado. Os Ifrit podem estar a vigiá-lo. - Nimrod olhou para o seu relógio.- Por isso, quanto mais cedo começarmos o vosso treino, melhor, caso sejam obrigados a defender-se de um ataque djim.- Um ataque? - perguntou Philippa.- No que diz respeito aos Ifrit - disse Nimrod -, é melhor estarmos preparados para tudo. - Acendeu um charuto. - A vossa própria sobrevivência pode depender de, ao menos, conseguirem compreender os rudimentos do uso do poder djim. Lamento muito, mas é assim que as coisas são. E lembrem-se de que alguém já tentou matar o John.- Então não há motivo para preocupação, não é? - disse Philippa, com um forte sarcasmo que não passou despercebido a Nimrod.Ele soltou uma das suas gargalhadas estridentes e disse:- Muito bem, muito bem. - E depois: - Pois bem, John, se não estou em erro, tu és dez minutos mais velho do que a tua irmã, por isso és o primeiro. Ouçamos, então, a tua sugestão.- A minha palavra de concentração vai ser ABECEDAR- disse John. - Tem qualquer coisa a ver com o alfabeto. Não me parece que alguma vez precise de usar uma palavra destas quando posso simplesmente dizer alfabeto ou alfabético.

Nimrod riu-se.- Ficarias surpreendido com o número de adultos que não concordariam contigo - disse ele. - Nem sabes a quantidade179de pessoas que usam uma palavra comprida e obscura quando uma curta teria o mesmo efeito. Mas continua, vá lá.- Tem uma sonoridade especial - continuou John. Como se alguém a pudesse usar para fazer qualquer coisa aparecer ou desaparecer. E também soa um pouco como ABRACADABRA.- É verdade - admitiu Nimrod. - Acho que é uma palavra excelente. Na verdade, estou até com um pouquinho de inveja. Parece uma palavra realmente poderosa.- Nimrod olhou para a sua sobrinha. - Philippa? Que palavra é que tu escolheste?- Eu queria uma palavra que fosse só minha. Uma palavra nova, que nunca tivesse existido.- Mas isso é ambicioso. Gosto disso. Ouçamo-la, então. Philippa respirou fundo e disse-a:- FABULONGOSOMARAVILHOSIFANTÁSTITICO.- Não há dúvida de que é especial - admitiu Nimrod. Isso tenho de admitir. Mas para ser fácil de usar, não sei se não preferia BILTONG a. hã. FABULONÃOSEIOQUÊ.- Mas com certeza que o próprio facto de o tio ter acabado de a ouvir e não se conseguir lembrar dela é uma vantagem, não acha? - argumentou Philippa.- Sim, isso é verdade - concedeu Nimrod. - Bem pensado, Phil.Depois, apontou para uns grandes rochedos a cerca de trinta metros de

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distância de onde eles estavam.- Muito bem, vejam se conseguem começar por fazer um daqueles rochedos desaparecer. Primeiro, tentem180acumular algum poder na palavra que escolheram. Isso implica fecharem os olhos e concentrarem-se muito bem.Philippa e John cerraram os olhos enquanto começavam a concentrar-se nas suas palavras, cada um investindo a respectiva palavra com o sentido de que continha toda a energia djim dos seus jovens corpos.- Tentem criar na vossa mente a impressão de que a vossa palavra só deve ser usada com muita moderação, como se fosse o botão vermelho para lançar um míssil ou disparar uma arma gigantesca.John? Tenta tu primeiro. Quero que abras os olhos e visualizes a ausência de um rochedo específico. Imagina o desaparecimento do rochedo como uma situação no espaço lógico. Fixa-o na tua mente, como se a realidade não pudesse ser diferente do que estás a imaginar. E depois, mantendo esse mesmo pensamento, profere a tua palavra de concentração tão claramente quanto conseguires. "John concentrou-se e, lembrando-se de como Nimrod exercia os seus próprios poderes, juntou os pés, levantou as mãos no ar mais ou menos à altura do peito, como um futebolista prestes a marcar um penalty, e gritou:- ABECEDAR!Durante dez ou quinze segundos, não aconteceu nada, e John estava prestes a pedir desculpa e a dizer está a ver, eu bem Lhe disse" a Nimrod quando, incrivelmente, o rochedo de dois metros que ele tinha escolhido, vibrou a olhos vistos e um fragmento do tamanho de uma noz se soltou e caiu.

181- Uau! - disse John. - Viram aquilo? Viram? - Desatou a rir, quase histérico. - Eu consegui. Bem, consegui qualquer coisa, em todo o caso.- Nada mau para uma primeira tentativa - disse Nimrod. - Não desapareceu, mas acho que podemos dizer com toda a certeza que deixaste a tua marca no rochedo. Philippa? Experimenta com o rochedo maior, ao lado do de John. Pensa em como a tua imagem da ausência do rochedo está ligada à realidade - sugeriu ele. - Lembra-te de que o desaparecimento do rochedo é uma possibilidade que deve ter estado no rochedo desde o início.Fez uma pausa.- Quando estiveres pronta, quando tiveres aceite que a lógica lida com todas as possibilidades e que todas as possibilidades são os seus próprios factos, carrega no botão vermelho que é a tua palavra de concentração.Enquanto se concentrava no pedregulho e se preparava para proferir a palavra de concentração que tinha escolhido, Philippa levantou uma mão, como uma bailarina, e depois agitou a outra como um polícia de trânsito.- FABULONGOSOMARAVILHOSIFANTÁSTITICO!No momento em que a última consoante saía dos seus lábios, o pedregulho que tinha escolhido começou a oscilar, e continuou a oscilar, com muita violência, pensou Philippa, durante quase um minuto inteiro antes de voltar a parar. Ela bateu palmas e soltou guinchos de satisfação.- Sim - disse Nimrod pacientemente. - Não há dúvida de que perturbaste a estrutura molecular da pedra. Isso182é óbvio. Só que parece-me que vocês têm de ter uma ideia mais clara do nada nas vossas cabeças. Estão ambos a confundir a ideia de alteração

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com a de desaparecimento, o que é um erro filosófico comum. Alterar a aparência de uma coisa é muito diferente de fazê-la desaparecer completamente.Agora tentem outra vez. Lembrem-se que tudo o que é possível na lógica, também é permitido. Um pensamento contém a possibilidade da situação que representa. Por isso, aquilo que é pensável também é possível. "Os gémeos estavam surpreendidos com o nível de concentração que era necessário para usarem os seus poderes djim, pelo que logo lhes pareceu ser algo bastante difícil e fez com que se sentissem sem fôlego, como se tivessem, simultaneamente, levantado um objecto pesado, atravessado um campo a correr e tentado resolver uma complicada equação de Álgebra. Duas horas depois, tudo o que tinham conseguido fazer tinha sido transformar algumas pedras grandes em pedras mais pequenas, e foi então que Nimrod os deixou descansar por alguns minutos.- Isto é mesmo duro - admitiu John.- No início, sim - disse Nimrod. - Mas é como ficar em boa forma física. Vocês têm de aprender a desenvolver a parte do cérebro onde os vossos poderes estão concentrados. A parte a que nós, djim, chamamos Neshamah. É a fonte do vosso poder djim. O fogo subtil que arde dentro de vós. Um pouco como a chama de uma lâmpada.Nimrod esfregou as mãos.183

- Muito bem, vamos tentar fazer aparecer qualquer coisa. Está quase na hora do almoço, por isso, que tal um piquenique? Venham, eu mostro-vos do que é que estou a falar.E, com estas palavras, Nimrod agitou os braços e criou um grande piquenique no solo do deserto, com uma manta de xadrez escocês e um cesto de piquenique com imensas sanduíches, coxas de frango, fruta e garrafas-termo com sopa quente.- Aqui temos - disse ele. - Tudo o que têm de fazer é lembrar-se que não podem criar nada contrário às leis da lógica. A verdade é que nenhum de nós seria capaz de dizer como seria um mundo ilógico. E, assim sendo, o simples facto de vocês conseguirem pensar em fazer qualquer coisa com a energia que têm no vosso interior é o suficiente para admitir a possibilidade. Assim que se tiverem convencido da possibilidade de criarem um piquenique a partir de vocês próprios, torna-se mais fácil concretizá-lo. Estão a perceber?Foi preciso mais algum tempo, mas a pouco e pouco, à medida que os gémeos se começaram a aperceber de que todos os objectos contêm, afinal, a possibilidade de todas as situações, começaram a perceber como funcionava o poder djim. Por fim, após mais noventa minutos de pensamento intenso e concentração semelhante à de um exame, havia três piqueniques muito diferentes no chão mas, pela aparência, todos eles comestíveis.Primeiro, Nimrod aproximou-se do piquenique de Philippa e pegou numa sanduíche de pepino.184- Vamos lá tirar a prova dos nove, por assim dizer - declarou, provando a sanduíche com um ar circunspecto. Quase de imediato, cuspiu-a. - Isto sabe muito mal - declarou, decidindo provar um dos cachorros quentes do piquenique de John. - E isto não sabe a nada.Nimrod deixou cair o pedaço de cachorro quente que tinha na boca no chão, como se de uma bola de barro se tratasse.- Ugh. Parece borracha.Tirou o seu lenço vermelho do bolso e limpou a língua.- Ambos cometeram o mesmo erro elementar. Estavam tão preocupados com a

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aparência do piquenique, que se esqueceram de imaginar a que é que saberia. Tentem outra vez, mas agora tentem imaginar que têm de comer o piquenique. O piquenique mais delicioso de sempre. Lembrem-se de que não há nada pior do que um piquenique com bom aspecto mas que, na verdade, não se pode comer.Por fim, passada mais uma hora de várias tentativas falhadas, os três djins sentaram-se para comerem os pique niques que os gémeos tinham criado com os seus poderes djim. Os gémeos comeram, enquanto Nimrod falava.- Assim está melhor - disse ele, provando os respectivos piqueniques. - John, estas pipocas sabem. hã. mesmo a pipocas. Não percebo por que é que alguém haveria de querer levar pipocas para um piquenique, mas gostos não se discutem. A mim sempre me souberam a plástico. E Philippa, não me lembro de alguma vez ter185comido um salgadinho que soubesse mais a salgadinho.- Abanou a cabeça. - Tenho mesmo de falar com a vossa mãe. Nem quero pensar no tipo de piqueniques que vocês já devem ter feito.

- E eu não acredito que estou a comer comida que fiz a partir do nada - admitiu John, abrindo um terceiro pacote de batatas fritas.- É precisamente isso que estava mal nas vossas pri meiras tentativas - disse Nimrod, servindo-se de mais um pouco do piquenique de Philippa. - Vocês não estão a fazer as coisas a partir do nada. E este cheesekake é um exemplo disso. Vocês fazem as coisas a partir da fonte de energia que têm no vosso interior. O fogo subtil. Lembram-se? E os elementos que vos rodeiam, como é óbvio.- Como é que funciona? - perguntou John, espetando o garfo numa fatia de fiambre e em alguns picles, ao mesmo tempo que os ia dispondo no seu prato. - O poder djim? Quero dizer, deve haver alguma explicação científica para isto.- Há, de facto, alguns djins que eram cientistas tentaram perceber como o poder djim funciona. Nós pensamos que tem alguma coisa a ver com a nossa capacidade de afectar os protões e as moléculas dos objectos. Fazer qualquer coisa aparecer ou desaparecer exige que acrescentemos ou removamos protões, transformando um elemento noutro. Quando fazemos alguma coisa desaparecer, como aquele rochedo, estamos a subtrair neutrões dos vários átomos que o constituem. Como vêem, isto não tem nada186de mágico. Isto é ciência pura. Física. É impossível fazer uma coisa a partir do nada, sobretudo um bom piquenique. Agora, se tivesses dito que o tinhas feito de ar e vento, estarias mais perto da verdade, John.Nimrod bocejou.- Seja como for, acho que por hoje já chega de treino. É melhor não pensarmos muito sobre ciência, não vá isso afectar-vos a capacidade de usarem o vosso poder. Nesse aspecto, é um pouco como andar de bicicleta; é mais fácil fazer do que explicar. Para a próxima, vamos tentar fazer um camelo aparecer ou desaparecer. Uma coisa viva. Isso é muito mais difícil do que um piquenique. Criar qualquer coisa com vida pode correr um pouco mal. Por isso é que fazemos estas coisas no deserto, onde ninguém se importa se fizermos uma criatura com o corpo ao contrário.Instantes depois, Nimrod soltou um gemido terrível.- Oh, não! - exclamou ele, olhando para o seu relógio.- O que foi? - perguntaram os gémeos, ansiosos.- Acabei de me lembrar do que me levou a pensar em fazer um piquenique

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- respondeu. - Foi porque a Sra. Coeur de Lapin nos convidou para um piquenique em sua casa, à hora do almoço. Daqui a exactamente trinta minutos.- Eu estou cheio - disse John. - Não consigo comer mais nada.- Eu também - concordou Philippa. - Se comer mais alguma coisa, rebento.- Vocês não estão a perceber - disse Nimrod. - Não podemos faltar. Por um lado, ela é minha vizinha. E por187outro, é francesa. Ora, os franceses levam a comida mais a sério que qualquer outro povo no planeta. Ela não se deve ter poupado a esforços para o preparar. Ouçam bem o que vos digo: se não formos, pode haver um grande incidente diplomático entre os nossos países.- Mas nós não podemos ir e depois não comer nada- disse John. - Isso seria tão grosseiro como nem sequeraparecer.

- O tio não a pode fazer desaparecer? - perguntou Philippa. - Só durante algum tempo. Pelo menos até depois do almoço.- Não posso fazer isso - disse Nimrod. - Ela é a mulher do embaixador francês. As pessoas iriam pensar que ela tinha sido raptada, ou algo bem pior. Não, não e não. Nem pensar nisso.Nimrod levantou-se e abanou o dedo, pensativo.- Podíamos fazer desaparecer o piquenique de um modo que a levasse a pensar que o tínhamos comido.- Pegamos numa sanduíche - concordou John -, levamo- la à boca, sorrimos à Sra. Coeur de Lapin e depois, quando ela não estiver a olhar, fazemo-la desaparecer. Sim, talvez isso resulte.- Tem de resultar - decidiu Nimrod.De volta à Cidade Jardim, Nimrod e os gémeos mu daram rapidamente de roupa, aperaltando-se, e depois foram até à casa do lado, que era ainda maior do que a de188Nimrod e estava cercada por um muro alto, o que fazia com que parecesse mais uma fortaleza. Nimrod apresentou os seus passaportes a um antipático funcionário francês que estava na portaria e que olhou para os seus documentos britânicos e americanos com aparente repugnância.Quando, por fim, com relutância, o funcionário os deixou entrar nos jardins da embaixada, outro funcionário, não menos carrancudo, conduziu-os através de um belo e bem tratado relvado, passando por uma escultura moderna e um mastro onde a bandeira tricolor francesa pendia como um trapo mole no calor do início da tarde, até uma pequena casa de Verão onde um piquenique encantador estava disposto no relvado, como a paisagem de um quadro. Nimrod e a Sra. Coeur de Lapin beijaram o ar junto às orelhas um do outro e, por alguns instantes, falaram em francês, que parecia ser outra língua na qual Nimrod era totalmente fluente.Enquanto eles falavam, Philippa aproveitou para contemplar a Sra. Coeur de Lapin com mais atenção, pois estava na idade de se interessar pela aparência de mulheres mais velhas e decidiu que, embora aquela mulher francesa fosse inegavelmente bonita, as suas roupas eram um pouco excêntricas - sobretudo a fita preta e dourada que insistia em usar uma vez mais. A Sra. Coeur de Lapin lembrava-Lhe o modo como as pessoas se vestiam nos anos 60, quando as flores, o cabelo comprido e a pintura do rosto com cores estranhas era - pelo menos a crer na televisão - a moda dominante.189Entretanto, Nimrod olhou para toda a comida que estava sobre a manta

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com um ar de grande entusiasmo.- Olhem para isto, crianças - disse ele, esfregando as mãos. - Alguma vez viram um piquenique com melhor aspecto do que este? É maravilhoso. Foie gras, lagosta, caviar, trufas, ovos de tarambola. E estes queijos. Brie, Roquefort. Consigo cheirá-los daqui. Minha cara Sra. Coeur de Lapin, não há dúvida de que a senhora sabe o que os jovens gostam de comer, não sabe?A Sra. Coeur de Lapin sorriu calorosamente e passou os seus dedos finos pelo espesso cabelo castanho de John.- Não há nada como boa comida, não é?Posteriormente, convidou-os a sentarem-se na manta.- Isso é a mais pura verdade - concordou Nimrod.

- Bem, estes dois vão fazer isto tudo desaparecer num instante. Assim: Puf?Ele estalou os dedos.- Não vão, meninos?- Certamente que faremos o nosso melhor - disse John, sentando-se como se tivesse muito apetite.Philippa sentou-se ao lado do irmão e serviu-se de uma grande fatia de foie gras que estava espalhada numa bolacha como um pedaço de mármore rosa. Ela não fazia a mínima ideia do que era e teria ficado horrorizada se alguém lhe tivesse dito; mas não teve dificuldade em reconhecer o caviar e a lagosta e estava contente por não ter mesmo de comer nada daquilo, uma vez que detestava190quase tudo o que tinha sido preparado para o piquenique. Mas, sorrindo à Sra. Coeur de Lapin, elogiou:- Está delicioso - e, assim que a mulher francesa desviou o olhar, acrescentou: - FABULONGOSOMARAVILHO SIFANTÁSTITICO!Ofoie gra e a bolacha que ela segurava com as pontas dos dedos desapareceram imediatamente.- O que é que disseste, chérie? - perguntou a Sra Coeur de Lapin.- Nada - disse Philippa, servindo-se de mais um pedaço de lagosta fria.- QWERTYUIOP - murmurou Nimrod, e um ovo de tarambola desapareceu da sua mão.John tinha enchido um prato com uma selecção variada de comida e, quando se sentiu preparado, apontou para os canteiros de flores.- Que flores tão bonitas, Sra. Coeur de Lapin - disse com delicadeza. - É uma variedade local?- São Lírios do Nilo Azul - disse ela, olhando para as flores e acrescentando que o seu jardineiro, Fatih, era o melhor de todo o Cairo.- ABECEDAR - sussurrou John, enviando todo o conteúdo do seu prato para o nada.- Não comas tão depressa, John - disse Nimrod, nervoso. - Há muita comida. Ainda apanhas uma indigestão.- Desculpe, tio - disse John. - Mas estou com bastantefome.191- Eu também - disse Philippa, lambendo os lábios demodo melodramático. - Foi a senhora que fez tudo isto, Sra. Coeur de Lapin?- Não, minha querida. A maior parte é importada de França. E depois é preparada pelos nossos dois cozinheiros.- A senhora tem dois cozinheiros? - perguntou John, +sorrindo.- Sim, temos o Monsieur Impoli, de Paris e o Monsieur Malélevé, de

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Vezelay.Nimrod esvaziou a pata de lagosta que tinha na mãonum abrir e fechar de olhos.- Ah, la belle France - disse ele. - Como tenho saudades. É muito interessante da sua parte trazer todas estas iguarias para o Egipto. Deve ser muito caro.- oh, non - ela encolheu os ombros. - O contribuinte francês. É ele que paga.

O almoço prosseguiu deste modo durante quase quarenta e cinco minutos, até quase toda a comida ter sido feita desaparecer, ou comida pela Sra. Coeur de Lapin. Só então Nimrod abanou a cabeça, quando a Sra. Coeur de Lapin lhe perguntou se queria mais Brie.- Não, obrigado - disse ele, lançando um olhar elucidativo de intenção aos gémeos. - Não consigo comer mais nada. Foi uma refeição magnífica. Não foi, meninos?- Sim - disse John, pousando o guardanapo tal como Nimrod havia feito. - A comida estava mágica.Nimrod estremeceu, mas sentiu-se obrigado a deixar aquele comentário passar.192- Mas que apetites tão saudáveis - comentou a sua anfitriã quando chegou a altura de partirem. - O vosso tio não vos alimenta em casa?- Sempre que queremos - disse Philippa. - Só temos de estalar os dedos e dizer a palavra mágica para a comida aparecer.- Então têm de voltar cá, e em breve - disse a Sra. Coeur de Lapin. - É um grande prazer conhecer jovens americanos que parecem gostar muito de comida decente.- Graças a Deus que isto acabou - disse Philippa enquanto caminhavam pela rua até à casa de Nimrod. - Não acham que ela tenha reparado nalguma coisa estranha, pois não?- Eu acho que talvez vocês pudessem ter sido um pouco mais subtis - disse Nimrod, repreendendo-os. - A certa altura, John, parecia que tinhas comido um prato cheio de comida de uma só vez. É provável que ela já tenha visto cavalos com menos apetite do que aquele que agora pensa que vocês os dois têm.- Eu só estava a tentar fazer justiça à comida, como o tio disse - explicou John.- Pobre mulher - disse Philippa. - Ter todo aquele trabalho para depois nós não comermos nada. Parece-me um grande desperdício de comida boa.- Pobre mulher, de facto - disse Nimrod, pensativo, e depois bocejou.- Repararam nos olhos dela? - perguntou Philippa.- Era estranho. Ela olhava para nós como se não estivéssemos lá.193John encolheu os ombros.- Ela é francesa. Todos os franceses olham para os americanos como se eles não estivessem lá.- Não só para os americanos - disse Nimrod. - Na verdade, eles pensam assim em relação a praticamente toda a gente que não é francesa. Sim, é o que eles chamam Civilization".Voltou a bocejar.- Pela santa lâmpada, eu não paro de bocejar. Depois daquela comida toda gostava mesmo de dormir uma sesta. Infelizmente não há tempo para isso. Temos de ir já para a Cidade Velha, visitar Hussein Husseiout.194O RAPAZ DOS PÉS AZUIS

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A parte mais velha do Cairo ficava a sul da Cidade Jardim e aí, saindo de uma sossegada viela pavimentada com seixos e flanqueada por casas com muros altos, igrejas medievais e cemitérios bem tratados, numa ruela comprida e estreita, ficava uma grande loja onde se podia comprar todo o tipo de lembranças baratas.- Hussein sabe que eu sou um djim, como é óbvio- disse Nimrod, quando eles se aproximavam da loja. Mas, por enquanto não lhe vamos dizer que vocês os dois também o são. Quando se é um djim, não é bom deixar que muitas pessoas saibam que o somos. Além disso, o facto de Hussein pensar que vocês não passam de um par de miúdos normais pode dar-vos a oportunidade de se tornarem amigos do seu filho, Baksheesh. O rapaz fala bem inglês e é capaz de vos dizer alguma coisa que o pai não diria. Por isso, mantenham-se bem atentos e de olhos e ouvidos abertos.John olhou para a montra da loja.- Isto é tudo lixo, não é? Coisas para turistas195- Ele guarda as coisas genuínas numa sala do piso de cima - disse Nimrod. - Um de vocês podia ir dar uma vista de olhos, enquanto o outro distrai o Baksheesh.Encontraram Hussein Husseiout perto da frente da loja, vestido com um fato branco e sentado entre um amontoado de almofadas com belos bordados beduínos, atrás de uma mesa de café repleta com pistácios, doces árabes, limonada e copos. Nervoso, manuseava um fio com contas de azeviche do século xIx, enquanto fumava algo que cheirava muito a morango, num cachimbo de água do tamanho de um fagote, e bebia café doce e quente por uma pequena taça de prata. Hussein era um homem atraente, de cabelo branco, com um bigode mais escuro e um espaço entre os dentes que lhe dava um ar ligeiramente matreiro.Quando viu Nimrod, sorriu, tocou na testa com as pontas dos dedos e curvou ligeiramente a cabeça.- Com que então vieste - disse ele. - Estava a começar a perguntar-me se virias.Depois levantou-se e beijou Nimrod na face. Nimrod voltou-se para os gémeos.- Estes são os meus jovens amigos, John e Philippa. São meus parentes, da América. Vão ficar comigo duranteumas semanas.Hussein Husseiout esboçou o seu sorriso desdentado, e fez uma vénia às crianças.- Sejam bem-vindos - disse ele, semi-cerrando os olhos com desconfiança. - Mas o Egipto não é demasiado quente para vocês?196Pressentindo que aquela era uma pergunta que poderia ter sido concebida para descobrir se os gémeos eram djins, como o seu tio, Philippa moveu penosamente a cabeça. Pois apenas um djim teria achado que o calor do Verão do Cairo era suportável, e apenas um humano se teria queixado dele.- Sim. É muito quente - disse ela, abanando-se com um mapa da Cidade Velha.- Demasiado quente - acrescentou John, apercebendo-se do que se estava a passar. - Se ficar mais quente, derreto.- Mas nós não queremos isso - disse Husseiout, servindo um copo de limonada aos gémeos. - Aqui têm qualquer coisa fresca para beber.Os gémeos, que teriam preferido um pouco daquele café com um cheiro delicioso, pegaram cada um num copo de limonada e agradeceram-lhe.

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- Poucas pessoas são tão tolerantes ao calor como Nimrod. Mas, vendo bem, ele é inglês e, como diz a canção, só os cães danados e os ingleses é que saem com o sol do meio-dia.- Tem toda a razão - disse Philippa, tentando manter a aparência de que ela e o irmão eram apenas dois miúdos americanos normais. - É estranho ele nunca ter calor.- Sim, ele é um pouco estranho. - Hussein Husseiout sorriu. - É um verdadeiro excêntrico inglês.Nimrod sentou-se num trono dourado que era uma cópia daquele que fora encontrado no túmulo de Tutan197khamon e que estava no Museu do Cairo, e encarou Hussein Husseiout.- Como é que está o teu filho, o Baksheesh? - perguntou Nimrod, percorrendo a loja com o olhar.- Está muito bem, obrigado.- Está na escola? Não o vejo.- Sim, está na escola.Nimrod meneou a cabeça.- Muito bem. Vamos ao que interessa. Recebi a tuacarta.Hussein Husseiout olhou para os gémeos.- Não há problema? Podemos falar destas coisas à frente das crianças?- Aquilo que não compreendem não lhes pode fazer mal - sossegou Nimrod.- Então, talvez fosse melhor eles não ouvirem mesmo nada - disse Hussein Husseiout.- Como queiras, meu amigo.Nimrod olhou para os gémeos e, piscando um olho, acenou na direcção das traseiras da loja.- Meninos, por que é que não vão procurar umas lembranças bonitas para levarem?- Sim, tio - disseram os gémeos, obedientes, e foram até às traseiras para verem alguns dos sarcófagos de brincar. Dentro de cada um dos pequenos sarcófagos havia uma imitação perfeita de uma múmia embrulhada em ligaduras. Mas os gémeos estavam mais interessados no que estava a ser dito e, usando as suas mentes para ouvirem melhor, descobriram, para grande surpresa sua, que198conseguiam ouvir quase tudo o que Nimrod e o vendedor egípcio de curiosidades, diziam. Ao mesmo tempo, mantinham-se atentos a Hussein Husseiout, esperando por uma oportunidade para se escapulirem por uma porta das traseiras que dava para um pátio, e darem uma vista de olhos, como Nimrod tinha sugerido.- Então - disse Nimrod -, na tua carta, dizias que tinhas encontrado qualquer coisa.- É esse o meu trabalho. - Hussein Husseiout sorriu.- Talvez qualquer coisa que o terramoto trouxe à superfície, não?- É uma calamidade que não traz nada de bom a ninguém - disse Hussein Husseiout. - Sobretudo no Egipto. Todo o tipo de coisas aparece neste país depois de um terramoto. Tu, por exemplo. E Iblis. Ambos à procura da mesma coisa.- Viste o Iblis? Aqui no Cairo?

- Sim. Anteontem. No Museu do Cairo - explicou Husseiout. - Como sabes, eu vou lá muitas vezes de manhã cedo para ver os tesouros ancestrais, e para me inspirar. Aquelas pedras velhas estão cheias de vibrações. Por isso, era um dia como os outros. Pelo menos, era o que parecia, até olhar para trás e ver que estava a ser observado por Iblis. E não vi só

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Iblis, mas também vários Ifrit da sua linhagem. Maymunah, o seu pai Al Dimiryat, e Dahnash. O nosso encontro não teve nada de coincidência, pelo menos foi o que me disseram. Não tinham ali ido para ver o museu, mas sim para me verem a mim. Por isso, subimos até ao café do museu para conversarmos. Tudo muito cordial, como deves imaginar.199- E como está o Iblis? - perguntou Nimrod.- Agora tem barba.- Ai sim?- Sim, é apenas uma pequena barba loira no queixo e um bigode fino. Como um árabe. Tirando isso, é o mesmo Iblis de sempre. Afável. Pragmático. Modos impecáveis. Fatos caros da Savile Row. Sapatos feitos à mão. Muito inglês, como tu, Nimrod.Hussein Husseiout sorriu e tocou no espaço entre os dentes da frente com a unha do seu dedo mindinho.- Vocês têm muito em comum, meu amigo.- Como por exemplo?- Ele disse-me que estava interessado em comprar alguns artefactos egípcios, que poderiam ter sido encontrados depois do terramoto. Artefactos autênticos. Artefactos da Décima Oitava Dinastia, mais precisamente. E o dinheiro não era obstáculo. Mas também nunca o é, com vocês. Poderia estabelecer qualquer preço, se os artefactos fossem de boa qualidade.- Não há outra dinastia que tenha interesse para os djins - disse Nimrod. - Como tu sabes, é claro.- Iblis disse que tinha ouvido dizer que eu tinha alguma informação sobre o túmulo perdido de Akhenaton.- E isso é verdade?O vendedor de curiosidades fumou o seu narguilé e sorriu.- Eu disse-lhe que era, como, aliás, ele próprio tinha dito, apenas um boato. Afinal, se fosse verdade, essa informação valeria uma fortuna.200- E também poderia provocar a tua morte - disse Nimrod.- Sim, se Iblis soubesse que eu te chamei, ficaria muito irritado comigo. Por isso, deves compreender a minha reticência em falar de tal assunto contigo agora.- Suponhamos que essa informação existia mesmo- começou Nimrod, cuidadoso. - Que aspecto é que teria?- Um mapa.Nimrod riu-se.- Um mapa? Neste país? Toda a gente tem mapas de tesouros para vender. E são todos inúteis. As areias movediças tornam aquilo que descreveste insignificante, como tu bem sabes. Seria o mesmo que me dares um mapa da Lua.- Há mapas e mapas - disse Husseiout. - Mas isto não é um mapa de papiro ancestral. Nem um mapa num oleado tirado da mão de um explorador morto.- Estás a fazer-me perder tempo - disse Nimrod. A não ser. - Nimrod deteve-se por momentos. - A não ser que tenhas encontrado a chave para a placa de Netjer. Uma estela de pedra que te permitisse decifrar o que está lá escrito.

- Quem sabe se isso existe? - Husseiout sorriu. - E, para ser franco, um homem que encontrasse tal coisa, sabendo o que poderia implicar, faria bem em destruí-la imediatamente. Esta é a minha opinião.Hussein Husseiout levantou a mão para silenciar aspalavras de protesto que o djim estava prestes a proferir.

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201- Por outro lado, qualquer homem que tivesse com preendido a placa poderia desenhar um mapa sozinho. Mais precisamente, um mapa de Medinet el-Fayyum e os seus arredores. Um mapa que tem um novo significado depois do terramoto. - Husseiout bateu levemente na sua testa. - Ele podia desenhar esse mapa com a ajuda de um papel, um lápis e uma grande quantidade de dinheiro, como é óbvio. Esse mapa podia muito bem ser tão bom, ou tão inútil como um velho mapa de papiro qualquer.- Mas isso é verdade? - perguntou Nimrod. - Viste a placa Netjer? Sabes mesmo onde está o túmulo de Akhenaton?- É uma possibilidade bem real - admitiu Hussein Husseiout.- Se disseste isto aos Ifrit, estou surpreendido por eles te terem deixado viver - disse Nimrod. - Sobretudo Iblis. Ele é um djim bastante impaciente.- Eles estão mais inclinados para os negócios do que tu imaginas, Nimrod. Estão dispostos a comprar aquilo que outrora teriam tirado à força.No outro lado da loja, John pousou o gato mumificado que segurava e, vendo que Hussein Husseiout e o seu tio estavam agora absortos na conversa, demasiado absortos para sequer repararem que estavam sozinhos, deu um pequeno toque à sua irmã com o cotovelo e apontou para a porta das traseiras, que estava aberta.- Anda - disse. - Vamos dar uma vista de olhos para ver se descobrimos alguma coisa.202John e Philippa deram por si num enorme pátio poeirento cheio de grandes artefactos de pedra egípcios, muitos dos quais pareciam, pelo menos aos olhos dos gémeos, autênticos. Num canto havia outra porta aberta com um quarto de banho bastante malcheiroso, que várias moscas pareciam achar muito atraente; e noutro, uma terceira porta que deixava entrever uma velha escadaria frágil que conduzia ao piso superior.- Por aqui, acho eu - disse John, dirigindo-se para as escadas. - Nimrod disse que havia uma sala especial lá em cima, onde estavam guardadas todas as coisas boas. Depois da luz intensa do Sol no pátio, a escadaria parecia-Lhes muito escura, sombria e, pensou Philippa, um pouco assustadora - sobretudo o modo como chiava sob os seus pés enquanto eles subiam, como num filme de terror. Com tantos objectos egípcios ancestrais à sua volta, ela contava encontrar uma múmia destapada à sua espera, no cimo das escadas.- Não gosto nada disto - admitiu ela quando chegaram ao patamar e dobraram a esquina, entrando num corredor escuro e poeirento que estava cheio de fotografias emolduradas de velhas escavações e exploradores.- Tem calma - disse John. - Só vamos dar uma vista de olhos e depois voltamos a descer.Foi então que ouviram um gemido ténue vindo de uma porta aberta no fundo do corredor. Philippa sentiu-se arrepiada.

- O que foi aquilo? - sussurrou ela, agarrando no braço do irmão.203- Não sei - disse John, que também se estava a sentir bastante assustado e teve de se lembrar que era um djim, ainda que um djim jovem, e que, se as histórias de As Mil e Uma Noites fossem um exemplo a seguir, teria de se habituar a ver coisas bastante assustadoras - o tipo de coisas que poderiam aterrorizar um rapaz normal.- Fica aqui, se quiseres - sussurrou ele.- Sozinha? - disse Philippa, olhando em volta para o corredor sombrio e comprido. Estava a sentir-se tão assustada que teve de manter a sua

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palavra de concentração bem presente na mente para conseguir encontrar a coragem para pôr um pé à frente do outro. - Não, obrigada. Eu vou contigo.Mas, por um longo momento, ela virou o rosto para a parede, encostando-o à argamassa fria e ligeiramente húmida.- Estás bem?Pegando na mão da irmã, John apertou-a carinhosamente.- Vamos. Temos de ir dar uma vista de olhos. Senão Nimrod vai Ficar desiludido connosco.- Eu acho - disse Philippa, engolindo em seco - que ele vai ficar mais desiludido se nós formos despedaçados por um monstro qualquer.No preciso momento em que ela falava, outro gemido emanou do quarto ao fundo do corredor, um gemido ténue e inumano que poderia ter saído de um túmulo, ou de um sarcófago aberto. Naquele instante, já eles estavam204suficientemente perto para ouvirem não só os gemidos, mas também o som desagradável de uma respiração que parecia de um animal feroz ou de uma pessoa com muitas dores, ou com muito medo.Philippa pensou que o som não era tão alto como o bater do seu coração e, apavorada, perguntando-se onde John iria buscar a sua coragem, seguiu-o a custo, enquanto este atravessava a porta aberta e entrava no quarto de onde vinham os gemidos. Houve um grande silêncio antes de John começar a falar.- Está tudo bem, Philippa - disse. - Não há nada a temer.Ela espreitou para dentro do quarto e viu a figura de um rapaz semi-nu, pouco mais velho do que ela, deitado numa grande cama de latão. Parecia estar inconsciente, embora se agitasse febrilmente na cama, coberto de suor e murmurando, delirante. A sua pele estava pálida e bastante azul à volta dos lábios e dos pés, um dos quais tinha duas marcas de perfuração vermelho-escuras, como se o rapaz tivesse sido perfurado duas vezes no calcanhar, com uma agulha afiada.John olhou mais de perto para o pé azul do rapaz.- Se soubesse do que estou a falar, diria que este rapaz foi mordido por alguma coisa - disse ele. - Talvez um morcego vampiro.- Os morcegos vampiros são da América do Sul, e não do Egipto - disse Philippa.- Uma cobra, então. Como a que quase me mordeu.205John engoliu em seco e pensou no destino desagradável de que tinha escapado por um triz.- Achas que o Sr. Husseiout sabe disto?

- Tem de saber.John apontou para a mesinha de cabeceira, onde estava uma fotografia do rapaz que estava na cama ao lado de um Land Rover com Hussein Husseiout. - Eu diria que este é o filho de Hussein Husseiout, Baksheesh.Os dois pareciam estar muito felizes e, tendo em conta a fotografia, Husseiout não parecia o tipo de pai que teria descurado o seu filho.- Mas ele não disse que Baksheesh tinha ido para a escola? - perguntou Philippa.Sentou-se na cabeceira da cama e pôs a mão na testa dorapaz.- Está muito quente. Eu acho que ele devia estar num hospital.Sentindo o toque de Philippa, o rapaz pareceu relaxar um pouco, e depois os seus olhos abriram-se, pestanejando.- Não ir para hospital - sussurrou ele. - Por favor.

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- Porque não? - perguntou Philippa.- Vocês têm de ir embora - rouquejou o rapaz. - Aqui é muito perigoso para vocês.Philippa levantou-se abruptamente. - Não achas que isto é contagioso, pois não, John?Não ouvindo uma resposta, ela olhou em volta.- John?206John estava a olhar fixamente para uma caixa aberta que estava perto da janela.- Olha para isto - disse calmamente.Philippa olhou e viu que a caixa continha o corpo de um cão morto.- Talvez seja melhor irmos chamar o tio Nimrod - disse ela.- Nimrod? - disse Baksheesh, exaltando-se. - Não, ele não pode vir aqui. Ele está em muito perigo. Vocês têm de lhe dizer para partir.- Perigo da parte de quem? - perguntou John. - DosIfrit?- Digam-lhe para se ir embora, antes que seja tarde de mais - disse Baksheesh antes de voltar a perder os sentidos.- Vamos - disse Philippa. - Vamos sair daqui. Voltaram a descer as escadas e a atravessar o pátio até à loja de curiosidades, onde Nimrod e Hussein Husseiout ainda estavam absortos na sua conversa.- Não é que eu não te queira ajudar - disse Husseiout.- Eu quero ajudar. É claro que quero. Achas que quero fazer um acordo com os Ifrit? - Depois mordeu o polegar furioso. - Isto é o que eu penso acerca deles. Mas, olha à tua volta, meu amigo. Tudo está à venda. Eu sou um homem de negócios. Não tenho as tuas capacidades especiais. Os teus recursos infindáveis. Tenho de ganhar a vida.Esboçou um sorriso aberto.- Tu compreendes, Nimrod. Não é nada pessoal. Amigos, amigos, negócios à parte.207- Quanto? - perguntou Nimrod, categórico.- Não se trata de dinheiro. Não de ti, velho amigo. Pelo menos, não directamente. Eu consigo obter dinheiro de qualquer pessoa. Não é isso que eu quero.- O que é que queres, então?- De um djim? Que mais senão três desejos?

- Podias conseguir isso dos Ifrit - disse Nimrod.- Mas será que podia confiar na palavra deles? Eles podiam conceder-me três desejos e depois, assim que tivessem o que queriam, voltavam e transformavam-me numa pulga, só por maldade. A reputação deles precede-os, Nimrod. Tal como a tua. Eu posso confiar na tua palavra. Mas mesmo que eles conseguissem o que querem, não se pode esperar gratidão dos Ifrit.Nimrod pensou por um momento.- Só três desejos.- Três desejos.- Pelas regras de Bagdade? Primeiro uma lista de desejos.- Se quiseres.- Não sei - disse Nimrod.Hussein Husseiout pôs o fio de contas à volta do seu pulso peludo e sorriu.- Vá lá. Eu sei que tu vais consentir. E, na verdade, o que é que isso te custa? Um dia ou dois de vida? - Husseiout encolheu os ombros. - Com o tipo de duração de vida que tens pela frente, podes dar-te a esse

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luxo.Nimrod lançou um olhar ansioso aos gémeos, mordendo as unhas por um momento.208- O que é que vais pedir? - perguntou ele.- Regras de Bagdade, como disseste. Não será nada que pese na tua consciência. Não, vão ser as coisas do costume. Muito dinheiro, tornar-me mais atraente para as mulheres, melhorar a minha saúde. - Husseiout tossiu de modo eloquente e continuou. - Eu tenho esta tosse terrível, sabes. Provavelmente por fumar demasiado. Para ser sincero, precisava de um par de pulmões novo. Vá lá. Que dizes? Temos negócio?- Está bem - disse Nimrod.- Óptimo. Não te vais arrepender. Prometo.- E, três desejos, só depois de tu cumprires a tua parte.- Então quanto mais cedo partirmos, melhor. Que tal hoje à noite?- Muito bem - concordou Nimrod. - Como é que vamos para lá?- Volta perto das seis. Podes levar-nos lá no teu belo Cadillac. A viagem deve demorar cerca de uma hora. Mas vem sozinho.Nimrod levantou-se.- Muito bem, então. Até às seis.Os dois homens apertaram as mãos e depois Nimrod e os gémeos despediram-se de Hussein Husseiout e da sua loja de curiosidades.Assim que chegaram cá fora, à ruela, os gémeos começaram a contar a Nimrod que tinham visto o rapaz e o cão morto, mas Nimrod fez sinal para que se calassem e disse-lhes para esperarem até estarem no carro, onde não pudessem ser ouvidos.209- Nestas ruas velhas - disse ele, olhando em volta, desconfiado -, nunca se sabe quem poderá estar a escutar. As paredes têm ouvidos. Sobretudo quando essas paredes podem conter o espírito vivo dos Ifrit.- E isso é possível? - perguntou Philippa, tentando acompanhar o tio enquanto ele avançava a passos largos à sua frente. - Um djim assumir a forma de uma parede?

- Oh, sim. É mais comum assumir-se a forma de uma árvore, mas uma pedra ou uma parede também são possíveis, embora não seja lá muito confortável. E só está ao alcance de djins muito experientes, que conseguem controlar a tremenda sensação de claustrofobia.Por fim, chegaram ao Cadillac.- Pois bem - disse Nimrod, enquanto eles entravam e Felício fechava a porta grande e pesada do carro. - O que é que se passou com Baksheesh?Os gémeos contaram a Nimrod o que tinham visto no quarto por cima da loja. Ele escutou pacientemente sem os interromper e, quando acabaram, suspirou e abanou a cabeça.- Gostava de saber por que é que ele me disse que o rapaz tinha ido para a escola - referiu. - Não parece nada dele. E aquela conversa toda sobre negócios. Eu mal o reconheci. O Baksheesh tinha febre, dizem vocês?- Sim - disse Philippa. - Muita.- Ele ama mais aquele rapaz do que a sua própria vida- disse Nimrod. - Não deixaria que nada lhe acontecesse.- Talvez já se tenha vendido aos Ifrit.210Nimrod olhou para John e franziu o sobrolho, desconFiado.- Como é que sabes isso?- Nós conseguíamos ouvir-vos - disse John. - O rapaz encolheu os ombros. - Pelo menos quando nos concentrávamos.

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- Sim, eu ponderei essa hipótese - disse Nimrod. Então devem saber o que ele disse sobre fazer um acordo com os Ifrit. Ele nunca poderia confiar na palavra deles. Sabe que os Ifrit não conseguem deixar de ser traiçoeiros.- E o que é que o tio vai fazer?- Vou perguntar-lhe pelo Baksheesh quando o vir hoje à noite.- O tio não pode estar mesmo a pensar em ir lá - protestou Philippa. - Pode ser uma cilada.- É verdade, mas não tenho alternativa. E isto é demasiado importante. Não posso desperdiçar a oportunidade de encontrar o túmulo de Akhenaton.- Quem é Akhenaton? - perguntou John.Nimrod inclinou-se para a frente e disse a Felício para não parar na Cidade Jardim e seguir em frente, em direc ção ao extremo norte de Maidan Tahrir, até ao Museu de Antiguidades Egípcias do Cairo.- Eu vou apresentar-vos - decidiu. - Está na altura de vocês conhecerem o ser humano mais temido e odiado de toda a história djim.211AKENATONO Cairo tem mais de uma dúzia de museus, dos quais o Museu de Antiguidades, também conhecido como Museu do Cairo, é o maior, o mais cor-de-rosa e o mais popular. É um sítio enorme, quente, sujo, malcheiroso e caótico, com janelas partidas, um tecto com fendas, pouca iluminação, expositores antiquados e explicações desleixadas sobre as exposições de valor incalculável do edifício. É também um dos melhores museus do mundo.Enquanto entravam pela porta da frente e passavam pelos muitos seguranças em direcção à rotunda, Nimrod disse aos gémeos que, antes de os apresentar a Akhenaton, tinha uma confissão importante a fazer.

- É algo que já vos devia ter contado - disse - sobre o exercício dos vossos poderes como djins. Algo que talvez tenham ouvido Hussein Husseiout mencionar em relação à concessão dos seus três desejos. Queria explicar-vos por que é que não usamos o poder djim com mais frequência. Por que é que voamos num avião, por exemplo, e não num tapete. Por que é que eu normalmente prefiro212ter alguém a preparar-me a comida, em vez de fazer com que ela apareça à minha frente. Em suma, por que é que eu faço tantas coisas do modo humano, e não do modo djim.- Eu também já tinha pensado nisso - admitiu John.- Como provavelmente já perceberam - disse Nimrod- um djim pode viver durante muito tempo. Muito mais do que os seres humanos. Pode viver até quinhentos anos. E muito mais do que isso se estiver dentro de um frasco ou de uma garrafa, onde pode entrar num estado virtual de morte aparente. Mas, de cada vez que usamos o nosso poder djim, gastamos um pouco da nossa força vital. Por isso é que vocês se sentem cansados depois de usarem o vosso poder. Porque perderam algo que não pode ser reposto.- Pois é - disse Philippa. - Agora estou a lembrar-me. Quando concretizei o desejo da Sra. Trump, senti que tinha perdido alguma coisa. Fez-me sentir bastante fraca, por momentos.- E é precisamente por isso - disse Nimrod - que o vosso poder deve ser usado com moderação. Sempre que vocês concedem um desejo importante, ou fazem qualquer coisa aparecer ou desaparecer, o fogo que arde dentro de vós, o fogo djim, extingue-se um pouco; e parte do vosso quinhão de tempo nesta Terra, perde-se. E quanto mais velho for um djim, mais força vital despende ao conceder um desejo.

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- Quanto tempo é que se perde? - perguntou o pragmático John.213- Ninguém sabe ao certo - admitiu Nimrod. - Mas um método prático e simples, para um djim da minha idade, é contar um dia por cada desejo concedido. Isto não parece muito para alguém da vossa idade. Mas quando se tem a idade do Sr. Rakshasas, um dia pode parecer muito precioso. Por isso é que, hoje em dia, ele raramente usa os seus poderes, excepto para fazer uma transubstanciação, o que felizmente é algo que gasta muito pouco poder djim. Eu até estava a pensar em não vos contar isto durante algum tempo, para vocês se poderem divertir um pouco, sem pensarem nas consequências. Mas visto que ouviram o que Husseiout disse, não tenho alternativa. Pelo menos agora compreenderão por que é que os djins não andam por aí a conceder três desejos a toda a gente. Muito para além do caos que isso iria causar na sociedade, como é óbvio, também iria encurtar as nossas vidas de um modo bastante considerável.- Quanto tempo mais é que um djim poderia viver dentro de uma garrafa ou de uma lâmpada? - perguntou Philippa.- Isso é uma boa pergunta - disse Nimrod. - E é também um dos motivos pelos quais estamos aqui agora, neste museu. Durante muito tempo, ninguém soube quanto tempo é que um djim poderia viver em clausura. Mas desde 1974 que temos uma noção mais clara. Já ouviram falar do Exército de Terracota, na cidade ancestral de Xi'an, na China central? Foi descoberto por camponeses em 974, depois de dois mil e duzentos anos debaixo da terra; e, por

214entre os soldados de terracota, estava um recipiente com vários djins.- Quer dizer que passados dois mil e duzentos anos eles ainda estavam vivos? - perguntou Philippa.- Sim. Desde então percebemos que, quando engarrafados, no nosso estado de morte aparente, podemos viver quase indefinidamente. E é neste contexto que Akhenaton começa a tornar-se importante.Nimrod conduziu-os até ao piso de cima, virou à direita, passando pelas casas de banho malcheirosas do museu, e seguiu até ao outro extremo do edifício, onde estava a estátua mais estranha de toda a estrutura. A figura que estava à frente deles tinha um rosto comprido, os olhos amendoados, lábios grossos, um queixo descaído, um pescoço comprido como o de um cisne, ombros descaídos, uma barriga enorme e as maiores coxas que os gémeos alguma vez tinham visto.- John. Philippa. Gostaria de vos apresentar Akhenaton- disse Nimrod.- Nunca vi ninguém tão feio - disse Philippa, com o olhar fixo na estátua que estava à sua frente.- Ele é bastante grotesco, não é? - admitiu Nimrod.- Akhenaton, também chamado Amenhotep o Quarto, Rei do Egipto da XVIII Dinastia, que reinou no Egipto há três mil e quinhentos anos.John tocou na grande estátua de granito, uma das quatro na Galeria Amarna do Museu do Cairo, e meneou afavelmente a cabeça.215- Como está, vossa majestade? - brincou.- Ele recebeu o nome Amenhotep quando nasceu - explicou Nimrod. - Mas mudou-o quando se desfez de todos os velhos deuses egípcios - Ísis, Anúbis, Seth, Thot - em favor de um só deus, Aton, e provocou uma revolução religiosa. Esta medida foi muito mal recebida pelos sacerdotes, que eram as pessoas mais ricas e poderosas do Egipto. Ainda hoje, Akhenaton é conhecido como o faraó herege, o que significa que é

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alguém que todos pensam ter cometido um crime terrível contra a sua religião. Por causa da devoção de Akhenaton à nova religião, diz-se que ele descurou o seu povo e a defesa do país. As forças inimigas aproveitaram-se da fraqueza militar do Egipto, provocada pela indiferença do rei pelo exército, e invadiram o país. Akhenaton foi obrigado a fugir para o seu palácio e morreu pouco tempo depois. Isto é o que nos diz a História, em todo o caso. Mas a verdade é um pouco diferente.De facto, Akhenaton era mais do que um simples faraó e rei. Também era um grande mágico. A mãe dele era uma bruxa, filha de um djim, e tinha aprendido a obrigar um djim a servi-la. Ela ensinou estas artes ao seu filho que usou o conhecimento para se tornar mais poderoso do que qualquer outro djim. Não se sabe como é que Akhenaton conseguiu obrigar tantos djins a servirem-no. Mas o certo é que foi o poder dos djins que Akhenaton comandava que acabou por se transformar na fonte do seu próprio poder. Os historiadores acreditam que Akhenaton216

introduziu a prática da adoração do Sol no Egipto. Mas o suposto Deus Sol não era de todo um deus, mas antes a força colectiva dos setenta escravos djins de Akhenaton, a que chamou Aton, segundo o disco do sol com o mesmo nome. Este disco do sol, o Aton, tornou-se então no símbolo da nova religião.Os outros djins ficaram horrorizados perante esta blasfémia, e ajudaram o povo egípcio a derrubar Akhenaton e á acabar com a adoração dos djins. E foi assim que, com muitos dos seus seguidores e os setenta djins que tinha ao seu serviço, Akhenaton fugiu de Amarna, a capital que tinha erigido como centro da sua nova religião.Ele desapareceu, penetrando no deserto e nem ele, nem os setenta sacerdotes djins que o serviam voltaram a ser vistos. Deve ter morrido no deserto, mas o seu túmulo nunca foi encontrado. Nimrod apontou para a grande figura negra que estava à sua frente.- Então por que é que o tio, o Iblis e os Ifrit haveriam de querer encontrar o seu túmulo perdido? - perguntou Philippa.- Pelo tesouro, é claro - disse John. - Há um tesouro, não há, tio Nimrod?- Um tesouro? Sim, deve haver um tesouro. Mas não é isso que eu quero. Não é isso que os Ifrit querem. Eles têm muito dinheiro dos seus casinos.- O que é, então?- Como já vos disse, no mundo dos djins existe um equilíbrio de poder entre o bem e o mal.217- O sortímetro - disse John. - E a homeostasia.- Exactamente. O equilíbrio homeostático foi perturbado pela última vez em 1974, quando vários djins emergiram de vasos encontrados com o Exército de Terracota, em Xi'an. Durante algum tempo, parecia que aqueles djins ancestrais se iriam aliar aos Ifrit, aos Shaitan e aos Ghul contra as tribos djins que estão do lado do bem. Mas, na prática, não foi isso que aconteceu, e os djins chineses, que eram seis no total, acabaram por se dividir igualmente entre o bem e o mal. Mas se Iblis e os seus amigos Ifrit alguma vez conseguirem encontrar os djins perdidos de Akhenaton, as coisas podem ter um desfecho bem diferente daquilo que aconteceu em Xi'an. Esse equilíbrio de poder poderia ser perturbado. E setenta djins são mais do que o suficiente para o fazer.- Se quer que lhe diga - replicou John -, parece haver já muito azar no mundo. Não consigo imaginar um cenário pior do que o que temos agora.

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- Se todos os setenta djins passassem para o lado do azar, as consequências seriam praticamente demasiado terríveis de imaginar - disse Nimrod. - Pessoas a perderem coisas, a perderem dinheiro, a esquecerem-se de coisas, a perderem comboios e aviões, a magoarem-se. Sim, muitos pretensos acidentes são provocados pelo azar infligido aos seres humanos por djins maliciosos. - Nimrod abanou a cabeça e estremeceu. - Passei toda a minha vida a conceber sistemas para ganhar aos casinos, a influenciar os governos para que condenassem os esquemas de enriquecimento218

rápido, a combater as forças do azar de todos os modos possíveis, mas acabo sempre por ter de recorrer ao meu próprio poder para dar sorte a alguém. Sim, às vezes até tenho de conceder três desejos. Mas, com muito mais azar no mundo, os djins bons como eu, e mais tarde vocês, teriam de trabalhar muito mais para o compensar. E com um custo tremendo. Iríamos acabar por gastar todo o nosso poder e morrer, o que colocaria a própria raça humana em perigo de extinção. Isto é o que poderia acontecer, John.- Mas por que é que estes djins haveriam de ser diferentes dos djins chineses? -perguntou Philippa. - Por que é que não se hão-de dividir igualmente entre o bem e omal?- Não é assim tão simples - disse Nimrod. - Ninguém andava à procura dos djins chineses. A sua existência era desconhecida. Foram descobertos por acidente. Mas, em 1974, depois da descoberta do Exército de Terracota e daqueles seis djins, percebeu-se que os djins perdidos de Akhenaton, que sempre soubemos existir, poderiam alterar o equilíbrio de poder se alguma vez fossem encontrados. E, assim, há trinta anos que tanto os Ifrit, como os Marid, os procuram. Quem os encontrar terá o poder para controlá-los. Esta é a tradição dos djins. Os setenta djins serão obrigados a servir quem os encontrar primeiro.- Mas como é que Hussein Husseiout poderia saber onde está o túmulo? - perguntou John. - Talvez ele esteja a mentir.219- Se ele diz que sabe é porque sabe - disse Nimrod.- Ele pode ter uma loja de curiosidades que vende recordações baratas, mas Hussein Husseiout, o seu pai, e o seu pai antes dele, foram e são os maiores exploradores de túmulos da história do Egipto. Eu duvido que haja alguém neste país com mais experiência neste tipo de trabalho do que Hussein Husseiout.Além disso, ele tem tido uma grande vantagem que mais nenhum arqueólogo possui. Talvez já tenham ouvido falar na Pedra de Roseta. É um grande pedaço de pedra com um texto em três línguas que permitiu que um inglês chamado Thomas Young decifrasse o signiFicado dos hieróglifos egípcios. Diz-se que uma pedra semelhante, a placa Netjer - uma palavra Kemetica ou em antigo egípcio que significa "poder divino" - foi encontrada pelo pai de Hussein Husseiout, nos anos 50. Pensa-se que a placa Netjer teria algumas pistas importantes quanto ao paradeiro de vários túmulos reais, incluindo o de Akhenaton e o de Ramsés II. Só que estava escrita num código que não poderia ser decifrado sem uma placa mais pequena, uma estela. Eu acho que Hussein deve ter encontrado esta estela de pedra depois do terramoto.- Então, quando é que voltamos à loja? - perguntouJohn.Nimrod abanou a cabeça em sinal de negação.- Não. Desta vez, não. Eu vou sozinho. Isto pode ser perigoso. Hoje à noite vocês podem ficar em casa a estudar as cartas djins que o Sr.

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Rakshasas vos deu.220Estavam a afastar-se, para irem ver o resto das antiguidades do Museu do Cairo, incluindo as múmias e o tesouro de Tutankhamon, quando John reparou em qualquer coisa na parede, por trás da estátua de Akhenaton.- É a fenda - disse ele. - A que foi provocada pelo terramoto. Lembras-te Phil? A que vimos no jornal. A fenda que é idêntica à da parede do meu quarto.- Pois é - disse Philippa.

- Por esta é que eu não esperava - disse John. - Será que o facto de aparecer aqui, na parede ao lado da estátua de Akhenaton, é apenas uma coincidência?- Eu não vos disse? - retorquiu Nimrod. - Coincidência é apenas uma palavra de cientistas para acaso. Não, isto não é um acidente. Tal como vos disse em Londres, é uma mensagem. Mas de quem?Depois de verem a estátua de Akhenaton, Nimrod e os gémeos foram para casa e estiveram a aquecer-se ao sol do final da tarde como um trio de lagartos dourados.Depois, às cinco e meia, Nimrod saiu no seu Cadillac Eldorado, sozinho, não sem antes dizer aos gémeos que Felício lhes tinha preparado o seu prato Super Especial e para não se esquecerem de oferecer um bocado ao Sr. Grunho, antes de ele os levar a passear.- Tenha cuidado - disse Philippa ao seu tio.- Terei.- Pode ser uma cilada - acrescentou John.- Eu sei.O Super Especial de Felício era, afinal de contas, um guisado cheio de malaguetas que, sendo extremamente221picante, era algo de que John e Philippa descobriram gostar muito, para grande satisfação de Felício. Estavam a começar a comer quando o Sr. Grunho, vestido com um fato de explorador bege, segurando um panamá, e parecendo muito mais magro do que na última vez que o tinham visto, emergiu do seu quarto nas traseiras da casa e disse aos gémeos que estava pronto para os acompanhar.- Não antes de o senhor provar isto - disse John. - É um dos pratos Especiais de Felício, e é delicioso.- Devo admitir que cheira bastante bem - disse o Sr. Grunho. - Mas normalmente evito a comida deste país abominável. Os padrões de higiene não são lá muito bons. É muito fácil apanhar aquilo a que eles chamam, com grande displicência, uma ligeira dor de barriga com diarreia. - O Sr. Grunho riu-se, irónico, com azedume.- Mas uma coisa é certa. Garanto-vos que é tudo menos uma simples diarreia. Comparado com isto, os Bórgias, o próprio Dr. Harvey Crippen, bem como outros envenenadores famosos da mesma estirpe, seriam uns santos. Imagino, mais ou menos, como teria ficado a barriga de William Wallace, aquele famoso rebelde escocês que foi não menos famosamente estripado por Edward Longshanks I. Mas, por favor, não me venham falar de diarreia. Diarreia é uma palavra demasiado simpática para descrever o horror das cólicas, do tormento de um estômago indisposto no meio deste lugar miserável.John devorou uma grande garfada do tal prato Especial de Felício com uma satisfação ruidosa.222- Mas então como é que sobrevive, se não come nada?- perguntou ele.

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- Tenho um frigorífico no meu quarto - disse o Sr. Grunho. - Está cheio de água mineral engarrafada e boiões de comida para bebé, que trouxe de Londres. É isso que como.- O senhor come comida para bebé? - perguntou John, que quase se engasgava de espanto. - Maçãs e pêras cozidas, arroz-doce e damascos, e esse tipo de coisas?

- É tudo esterilizado - disse o Sr. Grunho. - Em frasquinhos selados. Neste país imundo, é a única comida que descobri ser cem por cento fiável quando toca ao departamento aqui da barriga.Grunho olhou para a comida do prato de John e lambeu os lábios com um ar esfomeado.- Mas, por acaso, isso até cheira bastante bem e tem bom aspecto.- Coma um bocado - disse John.- Não sei se conseguiria - disse Grunho.Sentou-se à mesa de mogno, puxou para si a grande travessa com o Especial do Felício, e deixou que o aroma invadisse o seu nariz.- Aquele Felício não é mau cozinheiro, devo admitir- disse ele, contrariado. - Se gostarem de porcaria estrangeira.Grunho posicionou o seu longo nariz sobre a travessa e inspirou profundamente.223- Diacho, este cheiro limpa mesmo a cabeça. Se um homem comesse isto, certamente nunca mais voltaria ater catarro.- É o facto de só ter um braço que o torna mais preocupado com coisas como a higiene? - perguntou John.- Talvez.- Espero que não se importe com a pergunta - disse John. - Mas como é que o perdeu? O braço, digo eu.- É uma história interessante, sem dúvida - disse Grunho, que agora já direccionava avidamente o seu olhar para o caril. - Estava a trabalhar como bibliotecário na velha sala de leitura da biblioteca do Museu Britânico, e detestava as pessoas que iam lá para ler os livros. Um bando de pestes empertigadas. Havia um leitor, em particular, que todos nós detestávamos. Era um domador detigres chamado Thug Vickery. Thug Vickery, um anglo- indiano de Dulwich, andava a escrever o que esperava vir a ser o melhor livro de sempre sobre tigres mas, num certo dia quente de Verão, impedido de trabalhar por nós, bibliotecários do Museu Britânico, pelo menos na sua perspectiva, decidiu vingar-se de todos nós de um modo terrível.Escolhendo uma altura do dia perto do fecho, quando muitos dos outros leitores já tinham ido para casa, Thug trouxe um par de tigres brancos esfomeados para a enorme sala de leitura e soltou-os. Muitos dos outros biblio tecários foram mortos e comidos, e eu tive a sorte de só perder um braço. "224- O que é que aconteceu aos tigres? - perguntou John.- Foram alvejados e mortos pela Sociedade Protectora dos Animais. Pouco tempo depois, perdi o meu emprego e dediquei-me ao furto, e foi assim que conheci o vossotio. Esta é a minha história.Seguidamente, pegou no seu garfo.- Acho que um bocado disto não me vai matar - disse Grunho, colocando um grande pedaço do Especial do Felício num prato vazio. - Não consigo sobreviver indefinidamente à base de brócolos e cenouras com queijo. Perdi dez quilos desde que chegámos a este país. Estou a definhar de

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fome e preocupação.

- Mas está um pouco picante - avisou John. - É melhor ter cuidado.O Sr. Grunho riu-se.- Escuta, meu menino, eu já comia caril picante antes de vocês nascerem. Vindaloo, Madras, se há uma coisa para a qual viver no norte de Inglaterra nos prepara, meu rapaz, é para comer caril picante. Por isso, não te preocupes comigo. Preocupa-te é com o teu próprio organismo, que eu trato do meu. - Grunho bufou com desdém. - Mas que miúdo atrevido - murmurou antes de levar uma garfada generosa do Especial de Felício à sua grande boca.Por um momento, tudo parecia estar bem. Grunho dirigiu um sorriso sarcástico a John e preparava-se para comer uma segunda garfada, quando tudo aquilo aconteceu. O rosto de Grunho começou a adquirir um tom de cor-de-rosa vivo, depois Ficou vermelho e, por fim, roxoescuro.225- Cruzes, credo! - exclamou ele, soluçando e largando o seu garfo. - Rápido. Não fiquem aí sentados. Água. Água.Philippa pegou na caneca de água e estava prestes a encher-lhe um copo quando ele lhe tirou a caneca da mão e a esvaziou pela goela abaixo.- Acho que isso só piora as coisas, não? - observou John.- Credo! - repetiu o Sr. Grunho. - Mais. - E voltou a soluçar.- Caril?- Água! Água! Pelo amor de Deus, dêem-me água!Philippa pegou na caneca e preparava-se para ir à cozinha buscar mais água mineral quando o Sr. Grunho tirou as flores da jarra que estava no centro da mesa e bebeu a água esverdeada que as alimentava. Porém, a própria água da jarra pareceu não o aliviar.- Façam alguma coisa - pediu ele, de um modo muito pouco distinto. - A minha língua. Parece uma brasa. Chamem um médico! Chamem uma ambulância!- Para que número é que ligo? - perguntou Philippa, pegando no telefone.- Não faço a mínima ideia - disse John.Por breves instantes, o rapaz pensou em usar o seu poder djim para ajudar o Sr. Grunho, mas depois repudiou a ideia por temer que o mordomo maneta de Nimrod acabasse por ficar sem língua.Philippa, pensando mais ou menos o mesmo, tinha medo de tentar fazer desaparecer o lume da boca do Sr. Grunho, não fosse congelá-la de uma assentada.226E, por fim, foi Felício que lá acabou por ajudar Grunho. Impedindo Grunho de acabar de beber a água da jarra de flores que estava no aparador, disse:- Água muito má para si, por favor. - Depois, passou o açucareiro a Grunho.- Coma - disse ele. - Coma. Coma.E vendo que Grunho ainda não se conseguia servir, Felício encheu uma colher de sobremesa com açúcar e obrigou o homem a comê-lo.

- Açúcar ajudar boca ardente muito bem - disse ele. Grunho comeu a tal colher de açúcar e depois, como parecia ligeiramente aliviado, comeu mais outra; e, cerca de dez minutos depois, o fogo da sua boca tinha sido suficientemente encharcado para ele poder voltar a falar.- Diacho, aquele caril era mesmo picante. O que é que tinha, lava derretida? Pensava que tinha chegado a minha hora. Não sei como é que vocês conseguem comer aquilo, não sei mesmo. - Descolou a camisa do corpo. - Olhem para mim. Estou encharcado em suor.

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O mordomo pegou num pano de mesa e começou a abanar-se furiosamente.- De quem era aquela receita? De Lúcifer? Da Inquisição Espanhola? - Continuou, soltando um suspiro sonoro. - Achas que isto tem piada, rapaz? Achas?- Não, senhor - disse John. - Se se lembrar, eu tentei avisá-lo de que poderia estar um pouco picante.- Isso é verdade - concordou Grunho. - Não o posso negar. Só que aquilo devia ter um aviso sanitário do governo, ou qualquer coisa do género.227John decidiu não mencionar que tinha sido Nimrod a sugerir que ele oferecesse um bocado do Especial do Felício ao mordomo. Era óbvio que a dor e a aflição do pobre homem tinham sido genuínas e parecia pouco provável que ele fosse capaz de ver, tão cedo, o lado cómico do que tinha acontecido. Pelo menos por enquanto. Já recuperado, Grunho levou os gémeos ao espectáculo de luz e som nas pirâmides (por delicadeza, não conseguiram dizer-Lhe que já o tinham visto, apesar da distância) quase sem se queixar, e não voltou a mencionar o tal incidente com o Especial de Felício.228O TERCEIRO DESEJONa manhã seguinte, não havia sinal do tio Nimrod à mesa do pequeno-almoço.- Talvez se tenha deitado tarde - sugeriu Philippa, esperançosa.- Vamos ver no quarto dele - decidiu John. Mas nenhum dos gémeos estava mesmo à espera de encontrar o tio na cama.O quarto de Nimrod ocupava a maior parte do primeiro piso. Do lado de fora da porta dupla estavam duas figuras de Anúbis, em tamanho real, o deus dos mortos com a cabeça de chacal. Lá dentro, as coisas eram um pouco mais propícias ao trabalho do que ao sono, pois Nimrod também usava o enorme quarto como escritório. Havia um computador em cima de uma mesa de nogueira. Ao lado de uma cadeira feita de chifres de veado estava um conjunto de prateleiras altas, sobre as quais se via uma grande garrafa em forma de sino com uma grande lagosta azul e um letreiro tosco dizendo NÃO COMER. Ao lado da cama estava uma grande arca dourada de aspecto egípcio,229

coberta de hieróglifos, que guardava uma variedade infinita de frascos de medicamentos. O resto do quarto transmitia a impressão de um tio que coleccionava objectos, ou que não deitava nada fora; era difícil saber qual destas opções seria a mais adequada: havia montes de pastas de documentos, computadores portáteis, cDs ainda nas suas embalagens de celofane, peças de astaragli, caixas cheias de óculos, relógios, canetas de tinta permanente de ouro, isqueiros, charuteiras, medicamentos, agendas, e um quarto de vestir com prateleiras cheias de chapéus, sapatos, camisas, dúzias de cabides para gravatas e centenas de fatos de várias cores e tecidos. Vários zigurates de livros rodeavam uma enorme cama imperial francesa com belos lençóis de linho irlandeses, onde ninguém tinha dormido.- A garagem - lembrou Philippa. - Talvez o carro esteja lá.A garagem de Nimrod, que ficava nas traseiras da casa, estava tão apinhada como o seu quarto. Havia uma motorizada antiga chamada Vincent, um trenó da equipa olímpica britânica (o que parecia duplamente incongruente no Egipto), pelo menos uma dúzia de tapetes persas empilhados uns em cima dos outros como panquecas, vários sacos de críquete cheios de equipamento, uma máquina de correr e um sarcófago de granito. Não havia, no entanto, qualquer vestígio do Cadillac

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Eldorado e, por fim, os gémeos foram obrigados a admitir nas suas cabeças o que já sabiam nos seus corações: isto é, que o seu tio não tinha regressado da viagem da noite anterior.230- Tenho um mau pressentimento acerca disto - disse Philippa.- Eu também - admitiu John. - O que é que vamos fazer?- Temos de dizer ao Felício e ao Sr. Grunho. E depois vamos procurá-lo, como é óbvio.Os gémeos encontraram o Sr. Grunho no seu quarto, a ler o Daily Telegrapb do dia anterior e a comer um boião de comida de bebé como pequeno-almoço.- Farinha de aveia com amora e maçã - disse, mal viu os gémeos. - Simplesmente delicioso.- Não sei como é que o senhór consegue comer isso - observou John, olhando em volta do quarto, que estava forrado com retratos desbotados de Shakespeare, Shelley e Lord Byron.- Isto dito pelo rapaz com entranhas de amianto - disse ele, levando uma colher de chá cheia da papa gelatinosa à boca. - Em que é que vos posso ajudar?- É o tio Nimrod - disse Philippa. - Não está cá. Não voltou a casa ontem à noite. Ninguém dormiu na cama dele e o carro não está aqui.O Sr. Grunho soltou um leve gemido.- Então e o que é que querem que eu faça?Rapou o que restava da comida para bebé do boião e depois lambeu a colher vorazmente.- Ele deve estar a aparecer. Além disso, sabe tomar conta de si. Fala meia dúzia de línguas, incluindo o árabe. Tem dinheiro no bolso. Conhece o país como a palma da mão. Já para não falar no facto de possuir poderes sobrenaturais.231Não é propriamente indefeso, pois não? Eu, por outro lado, não falo uma palavra de árabe, não tenho sequer um tostão do dinheiro local, não era capaz de encontrar o caminho até ao aeroporto, por muito que isso me agradasse, e, caso não tenham reparado, só tenho um braço. Por isso, não vejo mesmo o que possa fazer.- O senhor tem de nos ajudar a encontrá-lo - insistiu Philippa. - Ele disse que o que ia fazer ontem à noite podia ser perigoso. Por isso é que insistiu para que nós ficásse mos em casa.- Foi muito sensato da sua parte - confessou Grunho.- Sendo assim, o que é que vos faz pensar que ele gostaria que vocês fossem à sua procura agora? Se querem que vos diga, seria melhor fazerem o que ele vos mandou até voltar a aparecer aqui em casa.

Os gémeos contaram-lhe a história de Hussein Husseiout e dos djins perdidos de Akhenaton, e disseram-lhe que os dois homens tinham partido para um ponto qualquer no deserto, para procurar o túmulo de Akhenaton.- Isso parece um assunto de djins - disse Grunho, lim pando as mãos a um pano de tabuleiro com uma fotografia da Madonna. - É melhor falarmos com o Sr. Rakshasas. Vamos ver o que é que ele pensa de tudo isto.Desceram até à sala de estar à procura daquela lâmpada de bronze ancestral que albergava o velho djim. Estava na mesa onde Nimrod a tinha deixado. John pegou nela e esfregou-a, impaciente, tal como Aladino, pensou o rapaz. Tal como anteriormente, um fumo azul brotou, encapelado, do orifício da lâmpada; e, quando o fumo se232desvaneceu, o Sr. Rakshasas já estava sentado numa das cadeiras da biblioteca. O djim escutou pacientemente o que os gémeos lhe contaram e

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depois abanou a cabeça com seriedade.- Receio que talvez tenham razão - disse ele. - É possível que tenha acontecido alguma coisa ao nosso caro amigo, pois é certo que, por esta altura, já teria entrado em contacto connosco, para nos assegurar que está tudo bem. Mas, antes de mais, vamos ver se conseguimos entrar em contacto com ele.- Como? Usando o poder djim? - perguntou John.- Não - disse o Sr. Rakshasas, pegando no telefone. Vou tentar ligar para o telemóvel dele.Marcou um número e depois esperou um pouco antes de voltar a pousar o telefone.- O telefone parece estar desligado. - O Sr. Rakshasas franziu o sobrolho. - Ou é isso, ou então não tem rede. Mas pode ser que ele tenha sido preso a um talismã, ou tenha sido escravizado por alguém que queira que Nimrod obedeça às suas ordens.- Não há nada como ser optimista - comentou Grunho, sarcástico. - Por outro lado, alguém pode ter simplesmente posto a rolha na sua garrafa. Como quando Nimrod entrou numa loja de antiguidades em Wimbledon, e acabou por se introduzir numa garrafa só para dar uma vista de olhos. Teria ficado lá para sempre, se não fosse eu.- Sim, isso também é uma possibilidade - reconheceu o Sr. Rakshasas. - Mas isso só pode acontecer quando um233djim se transforma em fumo, para entrar numa garrafa ou numa lâmpada. Para se enclausurar um djim, enquanto ele está no seu corpo normal, é preciso manietá-lo. Para isso, seria preciso saber o seu nome djim e ter algo do corpo do próprio djim. Como uma unha. Ou uma madeixa de cabelo.- Quer-me parecer que o melhor sítio para começarmos a nossa busca - disse o Sr. Grunho - é a loja do Nãoseiquê Nãoseiquemais.- Hussein Husseiout - disse John.- Hussein Husseiout é um bom homem, e um amigo leal dos Marid - disse o Sr. Rakshasas. - Mas é possível que ele se tenha tornado uma criatura dos Ifrit e esteja sob o seu controlo. É o único motivo pelo qual ele poderia ter traído o vosso tio. E, se assim for, é melhor terem cuidado. Isto pode ser perigoso.- O senhor não vem connosco? - perguntou o Sr. Grunho.

- Não vos poderei acompanhar pessoalmente - disse o Sr. Rakshasas. - Mas levem a minha lâmpada convosco. Talvez possa aconselhar-vos. Além disso, se Husseiout estiver sob o controlo dos Ifrit, é melhor não revelarmos já os nossos trunfos. Isto porque, tanto quanto sei, o vosso tio não tencionava dizer a Husseiout que vocês são djins, não é? Se Hussein Husseiout for escravo dos Ifrit, será melhor que ele e os Ifrit pensem que vocês são simples humanos. Assim, não vos verão como uma ameaça.- E como é que vamos até lá? - perguntou John.234- O Felício pode levar-nos - respondeu o Sr. Grunho.- Não se está a esquecer de um pormenor? Nós não temos carro. O tio Nimrod levou-o ontem à noite - disseJohn.- Então teremos de alugar um carro - rebateu Grunho.- Não - contrapôs John. - Isso demoraria muito tempo. Teremos de criar um, nós próprios. Usando o poder djim. O que é que acha, Sr. Rakshasas?- Não vos posso ajudar muito nesse aspecto, John. Infelizmente, estou muito velho e os meus poderes estão tão gastos como a toalha de banho

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de uma mulher de Galway. Mas, talvez, se tu e a tua irmã me dessem as mãos, eu vos pudesse ajudar a concentrar a vossa energia jovial. Querem criar um automóvel, não é?- Sim - disse John.- Então temos todos de tentar visualizar o mesmo automóvel.- Estava com medo de que o senhor dissesse isso - admitiu Philippa. - Eu mal sei distinguir um, Jeep deum, Jaguar.- O que é um Jeep? - perguntou o Sr. Rakshasas.- Não te preocupes - disse John, que, correndo até ao andar de cima, foi buscar a revista de carros que tinha comprado no aeroporto de Heathrow, em Londres, e trouxe-a para a sala de estar.- Aqui tens - disse ele, apontando para o carro vermelho com um aspecto aerodinâmico que estava na capa.- O Ferrari 575 llaranello. Cem quilómetros à hora em 4, 25 segundos, e uma velocidade máxima de 320 quilómetros235por hora. Este é um carro difícil de esquecer. E até tem quatro lugares.Grunho tirou a revista das mãos de John e folheou- a.- Não podes arranjar-nos uma coisa menos extravagante? - resmungou ele. - O que queremos é algo prático. Um veículo utilitário e desportivo. Um todo-o-terreno em condições. Um Range Rover. Esse Ferrari devia estar numa pista de corridas e não numa estrada deserta nos arredores do Cairo.- Na realidade, muitos Xeiques árabes do petróleo com pram este carro - disse John.Philippa olhou cuidadosamente para o carro que estava na capa. Os pais de um dos seus amigos da escola tinham um Range Rover, e ela gostava bastante do carro; mas não tanto como gostava daquele Ferrari.- Eu gosto do carro - disse ela. - É bonito. Prefiro o vermelho ao preto. O pai escolhe sempre um carro preto. Acho que ter um carro vermelho seria bom.

Em seguida, foram buscar Felício e depois entraram na garagem, onde o Sr. Rakshasas lhes deu a mão, cerrou os olhos e os convidou a pensarem na sua mente como sendo uma espécie de amplificador que os iria ajudar a aumentar o poder dos seus próprios pensamentos.- Sr. Grunho? - disse ele. - Se não se importasse, será que podia fazer uma contagem decrescente a partir de dez? John, Philippa, quando ouvirem o Sr. Grunho dizer zero, essa é a deixa para proferirem as vossas palavras de concentração. Percebido?236- Percebido - responderam os gémeos.- Quando quiser, Sr. Grunho.- 10-9-8-7-6-5-4-3-2-1-Zero!- FABULONGOSO.- ABECEDAR!-. MARAVILHOSIFANTÁSTITICO!Durante vários segundos, o ar da garagem encapelou-se como uma miragem sobre um deserto escaldante. Houve também uma subida assinalável da temperatura, seguida por um leve ruído metálico, como o som de uma colher a bater num copo de vinho. O Sr. Grunho pestanejou, só que continuava a não haver nada; porém, quando voltou a pestanejar, deparou com um reluzente Ferrari cor-de-rosa na garagem.- Cor-de-rosa? - gritou John. - É a cor errada. Por que é que apareceu um Ferrari cor-de-rosa? E as rodas? O que é que aconteceu às rodas?Era verdade; as rodas também estavam mal. Em vez das rodas luzidias e

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discretas de liga de alumínio com os cavalos empinados, que normalmente se vêem num Ferrari, este tinha rodas maiores, de todo-o-terreno, como as de um Range Rover.- A culpa é minha - disse Philippa, acanhada. - Acho que comecei a pensar num carro cor-de-rosa no último instante.- Então, e as rodas? - perguntou John.- Bem, eu fiquei um pouco confusa - disse ela. - Quando o Sr. Grunho mencionou um Range Rover, comecei a pensar no carro dos pais da Holly Reichmann.237- Não saiu assim tão mal como isso - disse Grunho, abrindo a porta e levantando o assento de couro para que os gémeos pudessem subir para os dois pequenos lugares de trás. - Se querem que vos diga, até é um grande meLhoramento.- Então vamos - disse John. - Vamos andando. Aquela foi a deixa para que o Sr. Rakshasas voltasse para a sua lâmpada, que Philippa arrebatou e segurou junto ao peito.Felício carregou num botão na parede para abrir a porta eléctrica da garagem, enquanto o Sr. Grunho entrava no carro, depois dos gémeos, e fechava a porta do lado do passageiro.- Eu prefiro um Rolls Royce. Isto é um pouco apertado para o meu gosto.Felício murmurou qualquer coisa em árabe e, apontando para o interruptor da ignição, abanou a cabeça.- Será que aquele miúdo não bate bem da lâmpada? resmungou Grunho, voltando-se no seu assento para encarar John. - Esqueceste-te das chaves, meu pateta.- Desculpem - disse John, cerrando os olhos e concen trando-se muito por um momento.- ABECEDAR!

Alguns segundos mais tarde, Felício meneou a cabeça e ligou o motor, que parecia muito menos potente do que John imaginara. Felício tirou o sui generis Ferrari da garagem e seguiu pela estrada que ia para sul da Cidade Jardim, em direcção à parte velha do Cairo e à loja de curiosidades.238É óbvio que o tráfego poeirento do Cairo raramente tinha visto um carro tão estranho como aquele Ferrari cor-de-rosa, e as pessoas debruçavam-se perigosamente das janelas dos autocarros, ou saíam das lojas só para o verem. Grunho gemeu ruidosamente quando Felício foi obrigado a desviar-se para evitar bater num burro que puxava uma carrada de milho, enquanto o homem do burro se levantava e apontava para o Ferrari cor-de-rosa. John reparou que o homem se estava a rir.- Isto é muito embaraçoso - disse John afundando-seno seu assento.Felício encontrou um pedaço de estrada deserta e pôs o pé no acelerador. O carro acelerou, deixando lentamente o resto do tráfego para trás. Um pouco desiludido com o seu primeiro Ferrari, John ficou contente quando, por fim, chegaram à Cidade Velha e Felício parou o carro.- Lembrem-se do que o Sr. Rakshasas disse - advertiu Grunho. - Diga ele o que disser, acho que é melhor darmos a impressão de que ainda confiamos nele. Há um velho ditado que temos em Lancashire: mantém os amigos por perto, mas os teus inimigos debaixo de olho.E, deixando a lâmpada do Sr. Rakshasas no carro com Felício, o Sr. Grunho e os gémeos caminharam pela pequena ruela pavimentada com seixos até à loja de curiosidades de Hussein Husseiout.

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Foi bom o Sr. Grunho ter aconselhado os gémeos a demonstrarem conFiança, pois a primeira coisa que viram quando entraram na loja de curiosidades foi o filho de239Hussein Husseiout, Baksheesh, que, excepção feita à ligadura que tinha no pé, parecia já estar recuperado. O próprio Husseiout, sentado no mesmo monte de almofadas, vestindo o mesmo fato branco e fumando o mesmo narguilé, parecia cansado e preocupado, mas, quando viu os gémeos e o Sr. Grunho, esforçou-se por parecer acolhedor.- Olá - disse ele. - O que é que vos traz aqui? Depois, como se só então se tivesse lembrado, acrescentou inocentemente:- E onde está o Nimrod?- Estávamos à espera que o senhor nos pudesse responder a essa pergunta! - exclamou o Sr. Grunho. - Eu sou o mordomo do Sr. Nimrod, senhor. Não o vemos desde que ele saiu de casa para vir para aqui, ontem à noite.- Mas ele não chegou a aparecer - disse Husseiout, levantando-se e adquirindo uma expressão preocupada.- Parti do princípio de que algum assunto mais importante o teria retido, e que voltaria hoje.Philippa não acreditava muito naquela história.- Se ele não veio aqui, então onde é que acha que ele terá ido? - perguntou ela a Husseiout, com delicadeza,O egípcio encolheu os ombros.- Por favor, Sr. Husseiout - disse John. - O senhor pode ajudar-nos a encontrá-lo?Hussein Husseiout lançou um olhar ansioso ao seu filho

que, felizmente, parecia não se lembrar da presença dos gémeos no seu quarto, no dia anterior.- Claro - disse ele. - Por que é que vocês não vãopara casa e esperam que eu vos telefone. Eu vou fazer algumas240investigações. Vou percorrer alguns dos seus poisos favoritos. O mais importante é vocês não se preocuparem demasiado. Como digo, o Cairo é uma cidade grande. Estão sempre a desaparecer pessoas. Mas, normalmente, voltam a aparecer. Se achar que há motivo para preocupação, eu mesmo telefono à polícia. Que é que vos parece?- É muito amável da sua parte - disse o Sr. Grunho. E é muito reconfortante saber que Nimrod tem um amigo tão bom como o senhor, Sr. Husseiout. Não é, meninos?- Sim - responderam os gémeos, sentindo-se pouco, ou mesmo nada, reconfortados, e bastante convencidos de que Hussein Husseiout Lhes estava a mentir. Havia algo na recuperação acelerada do seu filho, Baksheesh, que parecia estar ligado ao desaparecimento de Nimrod. O próprio rapaz encarava os gémeos com nervosismo, alternando o olhar entre John e Philippa, como um robô com ar de ter culpas no cartório.- Só mais uma coisa - acrescentou John quando estavam prestes a sair da loja. Era algo que ele tinha visto advogados astutos fazerem, sobretudo em julgamentos, na televisão: deixar que a testemunha acreditasse que não havia mais questões e depois atirar-lhes uma última pergunta, na esperança de os apanhar desprevenidos. - Esse sítio para onde vocês iam, no deserto. Não lhe parece que ele tenha ido lá sozinho, pois não?Hussein Housseiout tentou parecer pensativo por um momento.- Não - disse ele. - Não me parece. Só lhe dei uma ideia muito vaga de onde ficava.241

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- E onde é que o senhor lhe disse que ficava?- Medinet el Fayyum - disse Husseiout, abanando a cabeça com firmeza. - Mas vocês não o vão encontrar lá. Tenho a certeza. Por que é que ele haveria de ir para lá sem mim? Não faz qualquer sentido. Só eu sei onde ele está.Depois, Hussein Husseiout corrigiu-se rapidamente.- Quero dizer, só eu sei onde é. Esse sítio perto de Medinet el Fayyum. Onde eu o ia levar. Não valeria a pena procurarem-no lá.- Nós vamos esperar pelo seu telefonema - disse o Sr. Grunho.- Sim. Sim, façam isso, por favor.Quando já estavam dentro do carro, o Sr. Grunho fez um esgar.- É um tipo matreiro, sem dúvida - disse ele.- Se isso significa que ele não inspira confiança - disse Philippa -, então, concordo plenamente consigo.- Terá sido a minha imaginação? - perguntou John.- Ou ele ficou mesmo muito nervoso perante a simples ideia de irmos àquele sítio, Medinet el Fayyum?- Não, eu também reparei nisso - disse Philippa. E ouviram o que ele disse? Só eu sei onde ELE está. Depois corrigiu-se, como é óbvio, e disse: Só eu sei onde É. Há um nome para quando se faz um erro destes. Quando o nosso cérebro diz uma coisa e a nossa boca diz outra.- Sim, tens razão - concordou Grunho. - É um lapsofreudiano. Significa que há uma causa inconsciente242

ou uma palavra errada numa frase que, por vezes, poderá ser facilmente subentendida.- Eu acho que devíamos fazer exactamente o que ele não queria que nós fizéssemos - disse John.- E o que é? - perguntou Philippa.- Ir a Medinet el Fayyum, como é óbvio. Talvez alguém tenha visto o carro dele. Um velho Cadillac Eldorado branco não é propriamente um carro comum no Egipto.O Sr. Grunho bateu ao de leve na velha lâmpada de bronze do Sr. Rakshasas.- Ouviu isto, Sr. Rakshasas? - disse em voz alta. - Nós estamos a pensar em ir a Medinet para procurarmos Nimrod sozinhos.Uma vozinha etérea parecida com alguém a gritar do fundo de um poço muito profundo respondeu-Lhe.- A ideia do rapaz é melhor do que tudo o que me ocorreu até agora - disse ele.- Então, está decidido - declarou Grunho, apertando o seu cinto de segurança. - Felício? - Apontou através do pára- brisas do Ferrari cor-de-rosa. - Medinet el Fayyum. E não poupes nos cavalos.Duas horas mais tarde, o Ferrari cor-de-rosa parou em Medinet el Fayyum, uma cidade de tamanho considerável a oeste do grande rio Nilo. Tendo estacionado no mercado; o Ferrari depressa atraiu uma grande multidão de espectadores e, com a ajuda de algumas fotografias do Cadillac Eldorado branco de Nimrod, que transportava orgulhosamente243na carteira, Felício perguntou aos habitantes locaisse algum deles se lembrava de ter visto o carro na noiteanterior. Mas parecia que ninguém o tinha visto e, passadoda uma hora de interrogatório o pacient grupo de buscacomeçou a sentir-se um pouco decepcionado.- Talvez pudéssemos dar uma volta por aqui - dissePhilippa. - Para ver se conseguimos encontrar o carro

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sozinhos.Grunho apontou para a outra margem de um canal deirrigação que ligava o rio à cidade.- Estás a ver aquilo? - indicou ele. - É o Deserto Ocidental. Tem vários milhares de quilómetros quadrados.Em seguida, apontou para o outro lado, que pareciaigualmente vazio.- E aquilo é o Deserto Oriental. Também tem váriosmilhares de metros quadrados. Vamos Dar uma volta por aqui?Não me parece.- O Sr. Grunho tem razão - disse John. - Seria comoprocurar uma agulha num palheiro.- E se nos transformássemos em aves de rapina - sugeriu Philippa - e o procurássemos a voar?- Eu não o recomendo - disse o Sr. Rakshasas do interior da sua lâmpada. - Primeiro, a transformação animalrequer muita experiência. E, depois, nenhum de vocêsaprendeu ainda a voar.- E pronto! - exclamou John, pontapeando uma pedra.Naquela altura, o Sol começava a pôr-se, e era evidenteque, em breve, teriam de voltar ao Cairo. Os gémeos244

não conseguiam esconder a sua desilusão, ou o seu receio pela segurança de Nimrod. Por fim, quando Felício estava prestes a ligar o carro para se dirigir para casa, um cameleiro que tinha ouvido falar no Ferrari cor-de-rosa e na busca do Cadillac Eldorado aproximou-se e encetou uma conversa com Felício, que terminou com o homem a apontar para a estrada e a dar o que pareciam ser direcções bem definidas.- Cadillac - disse Felício que, depois de agradecer ao cameleiro, ligou o carro. - Ele ver.O Sr. Rakshasas, traduzindo o árabe para inglês, acrescentou que o cameleiro dissera a Felício que tinha visto um carro americano na aldeia de Biahmu, que ficava a alguns minutos do cruzamento com a estrada principal, perto de um grupo de rochedos e de algumas ruínas ancestrais.Sendo assim, voltaram rapidamente para a estrada principal onde, encontrando uma tabuleta para Sennuris e Biahmu, Felício conduziu o Ferrari por uma estrada de terra batida durante vários quilómetros.- Ainda bem que pusemos as rodas do Range Rover neste carro - observou Grunho, enquanto o carro batia ruidosamente noutro buraco, estremecendo. - Se tivéssemos colocado as rodas originais jamais conseguiríamos andar nesta estrada.Por fim, chegaram a um grupo de rochedos ladeado por um par colossal de pés de pedra, e o rosto de um qualquer faraó esquecido. Felício parou o carro e saíram todos.245- Estas devem ser as ruínas - disse John.- Não, ruínas, não - disse Grunho calmamente. - Istoé poesia.- Poesia? - perguntou Philippa. Ela gostava bastante de poesia, mas não percebia muito bem de que é que o Grunho estava a falar. Contudo, antes mesmo de ter oportunidade de lhe perguntar, Grunho já tinha começado a recitar um dos poemas mais famosos da literatura inglesa:Conheci um viajante de um país antigoQue disse: Duas colossais pernas de pedra, sem tronco Erguem-se no deserto. Ali próximo, na areia, Meio enterrada, jaz uma face

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esfacelada, cujo cenhofranzido, E lábio enrugado, e sorriso de frio escárnio, Atestam que seu escultor leu bem aquelas paixões Que vivem, ainda estampadas naquelas coisas semvida, A mão que delas zombou, o coração que alimentou, E no pedestal, estas palavras surgem:O meu nome é Ozimândias, Rei dos Reis: Olhai as minhas obras, ó Poderosos, e desesperai! " Nada mais resta. Em redor da decadência Daquela ruína colossal, sem fim e nua,As areias solitárias e planas estendem-se na distância.Grunho deteve-se por alguns segundos, como se quisesse deixar que o poema surtisse o devido efeito nas mentes dos seus dois jovens ouvintes.246- Que poema é esse, Sr. Grunho? - perguntou Philippa, que pensou que gostaria de o voltar a ouvir, quem sabe, um dia.- Não me digam que nunca tinham ouvido Ozymandias" - pasmou Grunho, abanando a cabeça. - Lembrem-me de vos dar um exemplar do New Oxford Boo ofEngli. quando voltarmos. Aquilo era Ozymandias". O primeiro poema que aprendi na escola. É de Shelley. Um dos maiores poetas ingleses que alguma vez viveu.

- Suponho que esteja a querer ser irónico - replicou John, saltando para cima de um rochedo para ter uma melhor visão da área circundante. De súbito, o rapaz esboçou um sorriso rasgado.- E que tal nada mais resta. excepto um Cadillac branco"?O Cadillac branco de Nimrod estava, de facto, estacionado junto a uma parede de pedra, no outro lado das ruínas. Estava incólume e destrancado, e a capota parcialmente enterrada na areia, como se uma grande tempestade de areia a tivesse coberto.- Vou dar uma vista de olhos ao carro - declarou John.- Talvez ele tenha deixado um bilhete.Porém, não havia nada.Philippa pôs as mãos em concha à volta da sua boca e gritou o nome de Nimrod, enquanto John voltava a subir para a posição privilegiada que os rochedos lhe proporcionavam, para ver se conseguia avistar mais alguma coisa;247porém, nem sequer havia abutres a circundar os céus, o que poderia eventualmente indicar a presença de um corpo numa qualquer duna distante.Philippa voltou a gritar. Depois, teve uma ideia e, cerrando os olhos por um momento, proferiu a sua palavra de concentração:- FABULONGOSOMARAVILHOSIFANTÁSTITICO!Um grande megafone de latão, igual aos que outrora eram usados pelos marinheiros para falarem entre si de um navio para outro, apareceu na areia.- Assim está melhor - disse Grunho, enquanto Philippa começava a percorrer a área, gritando o nome de Nimrod através do seu megafone.- Seria impossível ele não ouvir isso - disse Grunho, tapando um ouvido com a sua única mão.- Pára! - gritou John. - Acho que ouvi alguma coisa. Philippa baixou o seu megafone e escutou cuidadosamente.Por fim, Grunho soltou um suspiro e abanou a cabeça.- Não há aqui nada - disse calmamente. E, acenando com a sua mão à paisagem árida, acrescentou:- Nada. Se querem que vos diga, ele veio até aqui num carro e voltou a partir noutro. O mais provável é ter sido raptado. Ou engarrafado e

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levado embora.John estava de cócoras atrás do Cadillac.- Só há um conjunto de marcas de pneus, para além do nosso - disse. - Parece que ele trouxe o carro até aqui e depois desapareceu.248O rapaz caminhou até à frente do carro e examinou a duna que cobria o capot.- Acham que isto parece ter chegado aqui naturalmente? Esta areia toda? Não me lembro de ter havido vento hoje.- Areia é areia - disse Grunho. - E o modo como ela chega aonde quer que seja é um mistério para todos nós.- Isso não é resposta - disse John, irritado. Mas Grunho já se dirigia para o Ferrari cor-de-rosa.- Ouçam o que vos digo, não há aqui nada - disse o mordomo num tom zangado, e, entrando no carro, fechou a porta e ligou o ar condicionado. Grunho gemeu de alívio à medida que o ar fresco envolvia o seu corpo. Observou John e Philippa a falarem com a lâmpada do Sr. Rakshasas durante vários minutos e, quando voltaram ao carro,

pareceu-Lhe que os gémeos o estavam a Fitar de um modoestranho.Philippa abriu a porta do carro, deixando sair todo o ar frio.- Sr. Grunho - disse ela com cuidado.- Sim, o que foi?E, pressentindo algum tipo de conspiração entre osgémeos, franziu o sobrolho e acrescentou:- Seja o que for, não quero saber. Tenho calor, estoucansado, tenho sede e quero voltar para o meu quarto.- Tive uma ideia - disse Philippa, cautelosa. - Masrequer um grande sacrifício da sua parte.249- Sacrifício? Eu não vou ser sacrificado para salvar o raio do vosso tio.- Nós não queremos sacrificá-lo, Sr. Grunho - disse Philippa. - O que queremos é que o senhor use umacoisa que tem em seu poder, algo que era para seu pró prio benefício, em benefício de outra pessoa.Grunho franziu o sobrolho.- Um pouco menos de enigmas, minha menina - disse ele. - E um pouco mais de clareza. Até agora, não faço a mínima ideia do que estás a falar.- Há muito tempo atrás, Nimrod concedeu-lhe três desejos, e, até agora, o senhor só usou dois, não foi?Fez uma pausa:- Então, não é óbvio? O senhor pode usar o seu terceiro desejo para encontrar Nimrod. Tudo o que tem de fazer é dizer: Desejava saber onde está Nimrod, e nósencontramo-lo.- Vocês querem que eu use o meu terceiro. Muitos anos de hábito impediam Grunho de dizer a palavra desejo, e, em vez disso, ele fez uma espiral com o seu dedo indicador, como se quisesse representar um djim a satisfazer um desejo.- É isso mesmo - disse Philippa, sorrindo.- Mas isso significaria ficar sem coisos - objectou Grunho. - Significaria que todos estes anos que gastei a tentar pensar num coiso verdadeiramente fantástico teriam sido desperdiçados em vão. - E franziu o sobrolho:

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250- De qualquer modo, não seria preciso Nimrod estaraqui, para conceder o meu coiso?- Nós já falámos sobre isso com o Sr. Rakshasas - dissePhilippa. - Se Nimrod estiver num perímetro de oitoquilómetros, é provável que, se o senhor gritar alto osuFiciente, ele ouça o seu desejo. Mas, se não o ouvir, fica tudo como está, pelo que não temos nada a perder.- E, de qualquer das formas, o senhor deixará de ter oseu terceiro desejo se o tio Nimrod estiver morto, não éverdade? - disse John.- Além disso - disse Philippa. - Nós estivemos a conversar e vamos conceder-lhe três desejos, nós próprios.Grunho riu-se.- Com o devido respeito, nenhum de vocês está aindana mesma classe que o vosso tio Nimrod. Vejam o queaconteceu quando tentaram criar um Ferrari vermelho.Eu não estou a dizer que não presta; é só que, bem, noque toca a coisos, ninguém quer ficar com o segundomelhor, pois não?

Fez uma pausa, saiu do carro e começou a andar de umlado para o outro, enquanto pensava no assunto.- Peço perdão - disse ele - mas depois de tantos anosde indecisão, isto requer alguma ponderação. Estamos afalar de uma coisa muito importante. Algo que podeafectar o resto da minha vida.Esta alusão ao resto da sua vida pareceu tocar no âmagode Grunho; e, de súbito, apercebeu-se do tempo da sua251vida que tinha desperdiçado a contemplar as possibili dades do seu terceiro desejo. Será que o resto da sua vida iria ser estragado do mesmo modo? E, de súbito, ele soube precisamente o que tinha de fazer. E não era apenas por Nimrod, mas também por si próprio.- Vou fazê-lo - disse ele. - Vou fazê-lo, vou fazê-lo. " Não fazem ideia de como este coiso me tornou miserável.Todo este tempo, atormentado pela indecisão quanto ao que coisar, e sempre preocupado em não usar a palavra coiso por acidente, desperdiçando o coiso em algo inútil.- Neste passo, o Sr. Grunho sorriu. - Ai, meu Deus. Seria maravilhoso se eu pudesse usar o coiso de um modo útil e acabar com isto de uma vez. Não acham?- É esse o espírito, Sr. Grunho - disse John.- Mas, esperem um momento - disse o Sr. Grunho. Esperem só um minuto.Apontou o dedo aos gémeos.- Tem de se ter muito cuidado com os coisos. Às vezes usamos a palavra e ela resulta de um modo que jamais poderíamos prever. Acreditem no que vos digo, eu sei do que estou a falar. Por isso, supondo que eu digo que coiso saber onde está Nimrod neste momento? É possível que seja transportado para onde quer que ele esteja; e aí, depois eu iria saber, mas vocês ficariam na mesma. Estão a perceber?- Talvez fosse melhor escrevermos o desejo de antemão - disse John. - Exactamente. De acordo com aquilo252a que Nimrod chama as Regras de Bagdade, se não estouem erro.- Sim, é isso. As Regras de Bagdade. - Grunho acenou em concordância. -

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Sim, é assim que devemos fazer.- Sem sair de onde estamos neste preciso momento no tempo - disse Philippa. - Desejava que todos pudéssemos saber exactamente.- Exactamente - repetiu Grunho. - Excelente.- Exactamente onde Nimrod está agora - disse Philippa. John olhou com um ar inquiridor para o Sr. Grunho e depois para Philippa e, vendo-os acenar em concordância, escreveu o desejo. Em seguida, arrancando a folha de papel da sua agenda, leu o desejo ao Sr. Rakshasas, que estava dentro da sua lâmpada.- É um bom desejo - disse o Sr. Rakshasas. - Muito preciso. Não dá azo a erros. Segundo o espírito da Secção 93 das Regras de Bagdade. Esperemos que Nimrod o ouça. Caso contrário, não sei o que fazer a seguir. Podemos percorrer o Egipto todo a repetir este desejo na esperança de que Nimrod o ouça. Nesse caso, o Cadillac é talvez a nossa única hipótese de limitar a busca.John passou o papel ao Sr. Grunho.

- Está preparado? - perguntou ele.- Mais preparado não podia estar - confessou o Sr. Grunho. O mordomo olhou para o que John tinha escrito, como um actor que tentava familiarizar-se com o seu papel numa peça de teatro, e depois meneou a cabeça. - Muito bem. Aqui vai.253Nervoso, Grunho lambeu os lábios e depois começou a formular o seu desejo:- Sem sair de onde estamos neste preciso momento no tempo - disse, cuidadosamente -, desejava que todos pudéssemos saber exactamente onde Nimrod está agora.Passado um momento o solo tremeu e, durante alguns segundos, todos pensaram que era outro terramoto.- Que raio foi aquilo? - perguntou Grunho.- Aquilo era o vosso desejo a ser concedido, seus idiotas chapados - disse a voz incorpórea de Nimrod. - Eu estou aqui. Não me ouviram gritar, há bocado?- Nós conseguimos ouvi-lo - gritou Philippa. - Mas não conseguimos vê-lo.- É claro que não conseguem - disse a voz de Nimrod.- Isso é porque estou enterrado vivo. Num túmulo sob a areia a cerca de duzentos metros do carro. Comecem a caminhar para oeste, em direcção ao Sol e eu aviso-vos quando estiverem perto.- O tio está bem? - perguntou Philippa.- Sim, estou bem - disse a voz de Nimrod. - Só que estou um pouco zangado comigo próprio por ter sido preso tão facilmente por Hussein Husseiout.- Mas como é que ele fez isso? - perguntou Philippa caminhando na direcção da voz de Nimrod.- Porque roo as unhas - disse Nimrod. - Sempre tive este hábito. É uma das coisas de que um humano precisa para prender um djim. Uma parte do seu ser, como um dente, uma madeixa de cabelo, ou um pedaço de unha.254- Quando estávamos na loja de Hussein Husseiout, o tio estava a roer as unhas - lembrou John.- Parece que sim - disse Nimrod. - Mas, por qualquer motivo, ele sabia o meu nome secreto. Com estas duas coisas, conseguiu aprisionar-me neste túmulo.- Mas por que é que Hussein Husseiout haveria de querer traí-lo? - perguntou John.

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- Porque está a ser chantageado pelos Ifrit. Enquanto jazia, atordoado, no chão do túmulo, ouvi-o a desculpar-se e a pedir-me perdão. O pobre tipo não tinha grande alternativa. Os Ifrit envenenaram o seu filho, Baksheesh, e o cão, Effendi, e deixaram que o cão morresse como exemplo do que aconteceria a Baksheesh se Hussein Husseiout não fizesse exactamente o que lhe pediam.- Nós vimos Baksheesh - disse John. - Ele melhorou bastante, desde a última vez que o encontrámos. Quando voltámos à loja fingimos acreditar no que ele nos disse: que o tio não tinha chegado a aparecer na loja de curiosidades. Acho que ele não desconfia que nós somos djins.

- Tenho sorte em ter um sobrinho e uma sobrinha brilhantes, caso contrário poderia ter ficado aqui preso durante séculos. Foi muito perspicaz da vossa parte. Já para não falar no facto de se terem lembrado de que o Sr. Grunho ainda tinha um dos seus desejos. Por falar nisso, Sr. Grunho: estou em dívida para consigo.- Não se preocupe com isso agora - disse Grunho, enquanto caminhavam através do deserto escaldante, rumo ao Sol poente.255- Já estamos perto?- Mais cinquenta metros e chegam aqui - disse a voz de Nimrod.- Quando virem uma pequena escarpa, caminhem até ao sopé e esperem por mais instruções.- Estou a vê-la - disse John.Pararam no sopé da escarpa, seguindo as instruções de Nimrod, e contemplaram uma área onde só havia dunas. Parecia quase impossível que Nimrod estivesse algures ali perto.- No sítio onde vocês estão parados agora - disse a voz de Nimrod -, eu estou mesmo por baixo dos vossos pés. Vão ter de remover a maior parte da duna que está mesmo à vossa frente. Sozinhos. Não vos posso ajudar. Como este túmulo foi selado com poder djim, não posso fazer nada para vos ajudar.- Podemos fazê-la desaparecer? - perguntou Philippa.- Isso demoraria demasiado tempo - disse Nimrod.- A areia é uma coisa complicada de fazer desaparecer, para novatos como vocês. Cada grão de areia tende a comportar-se como um objecto individual, o que a torna difícil de manobrar com poder djim. Vocês não podem fazê-la desaparecer e não podem detoná-la. Por isso, terão de pensar num modo de a mover.- Muito bem! - exclamou John. - Qualquer coisa que remova terra. Uma escavadora.O rapaz olhou para Philippa e perguntou:- Achas que sabes como é o aspecto de uma escavadora?256- Não tenho a certeza.- Eu tenho uma escavadora telecomandada em casa - disse John. - É amarela. Está em cima da minha estante. Lembras-te?- Por acaso - disse Grunho -, acho que passámos por umas obras na estrada, a caminho de Medinet el Fayyum, e tenho quase a certeza de que havia lá uma escavadora. Façamos assim: eu fico aqui com o Sr. Rakshasas, para não nos esquecermos do local onde Nimrod está enterrado. Enquanto isto, vocês os dois e o Felício voltam à estrada principal e tentam trazer a escavadora. Ou então tentam fazer outra. Não sei. Mas é melhor despacharem-se. Em breve anoitecerá, e este sítio já me está a pôr nervoso.257O ESCORPIÃO

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Sozinho, no deserto, à espera que Felício e os gémeos voltassem, Grunho sentia-se um pouco como uma estátua esquecida. Ter-se-ia sentado no chão, não fosse o medo de poder ser picado por um escorpião, uma criatura perigosa e bastante comum naquela parte do mundo.- Então? - perguntou a Nimrod, nervoso, enquanto qualquer coisa - um morcego? - rasava a sua cabeça.- Como é isso aí em baixo?- Frio e escuro - respondeu Nimrod. - Não pude tornar este espaço mais confortável. O poder djim que me prende é muito forte e os meus poderes quase não

servem para nada, aqui dentro. Hussein deve ter usado uma prisão dupla. Ou mesmo tripla. Tenho uma lanterna, mas as pilhas estão a acabar. O meu telemóvel não funciona. E já comi o chocolate que tinha no bolso. Por isso, as coisas estão bastante más.- Então como é que o senhor conseguiu satisfazer o meu desejo? - perguntou Grunho. - Se os seus poderes estão inutilizáveis?258- Regras de Bagdade - disse Nimrod. - Secção 152. Um desejo ilustre tem prioridade sobre a prisão de outro djim. Quando um desejo é concedido, o poder desse desejo liga-se, de imediato, ao seu portador. De certo modo, nem precisava de estar por perto para que o seu desejo se concretizasse. - Nimrod suspirou. - Que pena só Lhe restar aquele desejo. Mais um desejo e eu estaria fora daqui.- Não me iria fazer diferença nenhuma - disse Grunho. Olhou em volta ao aperceber-se de que qualquer coisa deslizava pelo solo, e viu uma cobra a desaparecer dentro de um buraco.- Este país dá-me arrepios.Quarenta minutos e quarenta segundos mais tarde Felício e os gémeos regressaram com uma escavadora cor de laranja, com uma capacidade de carga de três metros cúbicos e uma profundidade máxima de escavação de sete metros. Para surpresa de Grunho, a escavadora parecia estar a andar sozinha; pelo menos era o que parecia, até que John saiu do Cadillac com um comando à distância.- É tal e qual a escavadora de brincar que tenho em casa - explicou o rapaz. - Tenho bastante jeito para a conduzir, por isso decidi que talvez fosse mais fácil fazer algumas modificações à escavadora a sério.E, de facto, sob o controlo hábil do rapaz, a escavadorajá estava a retirar a primeira carga de areia, despejando-a a vários metros de distância do sítio que eles tinham identificado anteriormente.259Uma hora de escavação deixou-os quase à porta do tú mulo, e Felício retirou o resto da areia com uma pá que tinha encontrado na parte de trás da escavadora. Entretanto, já tinha anoitecido e, apenas acompanhados pelos morcegos que esvoaçavam ao luar, Felício foi obrigado a trabalhar à luz dos faróis da escavadora, enquanto John segurava uma lanterna que trouxera da mala do Cadillac.- Este sítio é malévolo - disse Grunho. - Consigo senti-lo. É terrível.- Não diga isso - disse Philippa. - Já estou assustada que chegue.- Estamos quase lá - gritou John.Felício afastou-se da porta de pedra e, atirando a pá para o lado, gritou a John que descesse os degraus com a lanterna. Philippa começou a seguir o irmão até à porta de pedra. Nessa altura, já John estava a examinar o espaço que existia entre a porta e a parede.- Esperem um minuto - pediu. - Há qualquer coisa presa à porta.- Faças o que fizeres, não Lhe toques, John - berrou Nimrod. - Já receava que isto acontecesse. Provavelmente é um selo djim.

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- O que é que isso quer dizer? - perguntou Philippa.

- Quer dizer que Iblis, ou um dos Ifrit, devia estar com Hussein Husseiout - disse Nimrod. - Só eles poderiam ter feito isto. É muito provável que seja feito de jade ou cobre, que são ambos talismãs para os Marid; a verdade é que nós não podemos tocar nesses materiais depois de terem sido submetidos ao poder djim.260- Isso explica por que é que a mãe não gosta de jade - murmurou Philippa.- Mas é claro - disse Nimrod. - Por isso, seja por que motivo for, vocês não lhe devem tocar. O selo só deve ser quebrado por Felício ou pelo Sr. Grunho, pois se vocês lhe tocassem, o poder dos Ifrit acabaria por vos prender também. Ou talvez acontecesse algo pior.John abanava a cabeça, inquieto.- Não me parece de todo jade ou cobre - informou John. - Parece haver um grande pedaço de uma substância semelhante a cera, no espaço entre a porta e a parede. Tem aproximadamente o tamanho de uma bola de futebol americano e parece ser semi-transparente. Esperem um minuto. Vejo que há um movimento. Parece que há qualquer coisa avermelhada a mover-se lá dentro. Santo Deus! É um escorpião.- Um selo vivo - explicou Nimrod. - São os mais perigosos de todos. Tanto para os seres humanos, como para os djins. O que significa que o próprio Iblis deve ter estado aqui. Certamente que isso explica, então, o poder da prisão. Independentemente do que fizerem, não quebrem o selo, senão o escorpião escapará e tentará matar-vos. Em vez disso, devem acender uma fogueira sob o selo para derreter a cera e matar o escorpião.Voltaram a subir os degraus de pedra para procurarem qualquer coisa para queimar, o que, no escuro e com a escassez de árvores e arbustos do deserto, não era assim tão fácil.261- Podíamos usar os tapetes do Ferrari - sugeriu Phi lippa. - Se os embebermos em gasolina devem arder facilmente.- Só mais uma coisa - acrescentou Nimrod, enquanto eles amontoavam os tapetes encharcados em gasolina sob o selo da porta do túmulo de Akhenaton. - Quando o escorpião for consumido pelas chamas, é provável que ouçam a palavra que Iblis deu a Hussein para fazer a prisão. Se isso acontecer, não se esqueçam de a anotar. Pode ser uma pista útil.O Sr. Grunho acendeu um fósforo.- Adoro uma boa fogueira - disse ele, antes de atirar o fósforo para os tapetes encharcados de gasolina.Ergueu-se do solo uma bola de fogo, iluminando os seus rostos sujos e sombrios e começando, quase de imediato, a derreter a bola de cera que estava na porta, enquanto o escorpião que lá estava dentro se começava a agitar num frenesim. Mesmo através da cera eles conseguiam ver o ferrão afiado da criatura a enrolar-se sobre o seu dorso e a tremer como um dedo com unhas negras e afiadas de uma qualquer bruxa má.- Eu não quero estar perto daquela coisa quando a cera derreter - admitiu Grunho, subindo mais uns degraus para se afastar do perigo. Porém, durante mais alguns momentos, os gémeos e Felício mantiveram-se firmes, Por fim, quando já não havia mais cera na porta, o maior escorpião que eles, incluindo Felício, alguma vez tinham visto, acabou por cair nas chamas.262

Os gémeos engoliram em seco, horrorizados. O corpo de trinta

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centímetros daquela nojenta criatura era tão espesso e coriáceo como o de um pequeno tatu; as suas pinças pareciam ter saído da bandeja de um qualquer torturador diabólico; as suas oito patas, semelhantes às de uma aranha, pareciam extraterrestres; porém, o pior era a cauda, que tinha mais de vinte e cinco centímetros de comprimento e culminava num ferrão tão grande como o polegar de um homem. Para grande horror de todos, o aracnídeo estava a arder, embora não tivesse sido consumido pelo fogo, e, com uma grande chama azul, que se estendia quase trinta centímetros acima do seu comprido, encrespado e venenoso ferrão, o escorpião ressaltou nos tapetes em chamas e começou a correr instintivamente em direcção aos gémeos, como se reconhecesse que eles eram da mesma tribo djim que o prisioneiro que o tinham encarregado de guardar para sempre.Felício e John recuaram um passo, mas John escorregou no solo acidentado e estatelou-se em frente ao escorpião em chamas. Pressentindo a sua oportunidade de matar o rapaz, o escorpião cor de cobre correu em direcção ao braço nu de John, com as suas pinças a estalar bem alto, o ferrão levantado como uma agulha hipodérmica, e uma dose letal de veneno pingando dos sacos alimentadores da sua ponta oca.- Não! - gritou Philippa, tentando esmagar e, em seguida, pontapear a criatura. Enquanto o fazia, o escorpião conseguiu apanhar o cordão da sapatilha dela com263as suas garras sujas, e subiu para o pé da menina, avançando para o seu tornozelo nu; e foi aí que, agora que a criatura jazia sobre o seu pé, Philippa se apercebeu, enojada, de como o bicho era pesado, pensando que devia rondar cerca de um quilo. Philippa soltou um grito lancinante e deu um pontapé com toda a força na direcção da porta do túmulo, projectando o escorpião para o chão em frente ao túmulo, onde se enrolou numa bola, lançou um grande glóbulo de veneno que lhe rasou a cabeça, e, por fim, se incendiou. Ouvindo aquilo que mais parecia ser ar escapando do corpo coriáceo do escorpião, Philippa curvou-se cuidadosamente e colocou-se a uma distância suficientemente segura para ouvir o que, tudo indicava, seria uma palavra sussurrada das profundezas de um qualquer abismo infernal. Seguidamente, subiu as escadas, saiu do buraco a correr e desatou a vomitar numa duna.Alguns instantes depois, John levantou-se a custo eseguiu-a.- Salvaste-me a vida - disse ele. - Aquele escorpiãoestava prestes a picar-me. Philippa limpou a boca.- Oh, tu terias feito o mesmo - disse ela.John meneou a cabeça e apertou-lhe a mão, agradecido.- Posso garantir-vos que eu não o faria - admitiu Gru nho. - Detesto escorpiões.Eles retiraram os restos do selo da porta do túmulo, abriram-na a custo e depois entraram no túmulo ancestral, onde depararam com Nimrod, avançando na sua direcção.264saído da escuridão e com um ar ligeiramente mais sombrio do que era habitual. Os gémeos correram até ele e abraçaram- no calorosamente.- Pensávamos que nunca mais o iríamos ver - disse Philippa.- E por pouco foi isso mesmo o que aconteceu - admitiu Nimrod. - Podia ter ficado aqui em baixo durante

muito, muito tempo.Soltou um suspiro de alívio e, tirando o seu lenço do bolso, limpou uma lágrima do olho.

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- Devo-vos a minha vida, meninos, devo-vos a minha vida.Depois, Nimrod conteve as suas emoções, manteve-se firme, aclarou a voz, pigarreando, guardou o lenço e aproximou-se do seu mordomo com um sorriso de esguelha.- E o senhor, Sr. Grunho - disse Nimrod. - Apesar de a secção 42, sub-secção 12, das Regras de Bagdade, excluir a satisfação de três desejos a um humano que ajude a libertar um djim através de uma anterior concessão de três desejos, sinto-me forçado a evocar a seccção 44, que se reporta a situações que envolvam a prática de actos de grande altruísmo e, como tal, a conceder-lhe mais três desejos, Sr. Grunho, assim que os desejar.Grunho gemeu bem alto.- Não - gritou. - Por favor. Mais desejos não. Pela primeira vez em muitos anos estou a gozar da liberdade de não ter quaisquer desejos. Vocês, djins, não fazem ideia de como pode ser terrível viver com tal decisão. Não fazem265ideia da tensão que cria num homem. Hei-de querer isto, ou querer aquilo? Hei-de tornar-me nisto, ou hei-de tornar-me aquilo? É extenuante, bolas. Por isso, mais, não. - Só que agora já o disse - exclamou Nimrod. - E desejos concedidos não podem ser retirados.- Então desejo não ter mais desejos - disse Grunho. Porque a verdade é que me apercebi de uma coisa muitoimportante sobre os desejos. Às vezes, estamos condenados a não querer aquilo que desejamos quando o obtemos. Não, nem sequer um braço novo, pois a verdade é que já me habituei a ter só um, e não saberia o que fazer como outro.- Bem dito, Sr. Grunho. Bem dito.Depois olhou para os gémeos.- A propósito, alguém ouviu a palavra que escapou do corpo do escorpião? Que palavra é que ouviram quando o escorpião morreu?- Não foi uma palavra que eu reconhecesse - disse Philippa.Em seguida, encolheu os ombros.- Pareceu-me ser Rabat.- Rabat - repetiu John. - É o nome de uma cidade em Marrocos, não é?- Com que então foi Rabat? - murmurou Nimrod.- Diz-lhe alguma coisa?Nimrod abanou a cabeça com bastante Firmeza.- Não. Absolutamente nada.266Entretanto, o Sr. Rakshasas tinha ressurgido da sua lâmpada de bronze e, pegando na lanterna de John, começou a examinar os belos relevos das paredes do túmulo, que, de resto, estava vazio. Imbuídas de magia, as gravuras de pedra serviam para facilitar o caminho de um egípcio morto até ao além e preservá-lo eternamente. O Sr. Rakshasas tocou-lhes com a ponta dos dedos como se, tal como um cego, estivesse a ler Braille, e os gémeos tiveram de segui-lo pelo túmulo adentro, isto se não queriam ficar na imensa escuridão.

- Há dezenas de câmaras neste túmulo - disse Nimrod, de algures nas sombras. - Estende-se por centenas de metros, até aos rochedos onde deixei o carro, onde há outra entrada que foi revelada pelo terramoto. A prisão que Hussein usou deve tê-las coberto a ambas com alguma espécie de tempestade de areia, quando ele partiu. Eu vim até aqui na esperança de encontrar outra saída. Mas isto parece ser uma espécie de labirinto e, às escuras, não consegui encontrar o caminho de volta à

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entrada original.- Olhem para estes hieróglifos - disse o Sr. Rakshasas.- Não há nenhuma das habituais referências a Osíris, deus do Além que, normalmente, apareceriam no túmulo de um qualquer egípcio que acreditasse nos deuses comuns. Todos estes relevos apenas prestam homenagem a Aton. Não há dúvida de que este é o túmulo de Akhenaton.- Mas onde está o tesouro? - perguntou John.- Boa pergunta - murmurou Nimrod.267- É possível que parte dele já esteja dispersa pelos museus do mundo - disse o Sr. Rakshasas. - Tendo em conta a localização do túmulo e estes murais, atrever-me-ia adizer que este é o túmulo quarenta e dois, descoberto pelaprimeira vez em 1923, e perdido durante uma grande tempestade de areia, depois de ter sido obviamente mal classificado como sendo o túmulo de um funcionário da tesouraria, ou de algum tipo de administrador. E é fácil perceber porquê. Os relevos que estão perto da entrada que usámos são muito diferentes daqueles que encontramos mais à frente. Como se Akhenaton quisesse disfarçar o túmulo, com receio de que fosse profanado por quem o considerava um herege. Provavelmente, até fez bem em ter sido prudente.O Sr. Rakshasas apontou para uma grande pintura egípcia que cobria uma parede inteira do túmulo vazio. Retratava um homem alto com um ceptro de ouro do tamanho de uma bengala, do qual os raios do Sol se estendiam em direcção aos corpos nus de dezenas de homens ajoelhados diante dele.- Mas isto - disse ele, entusiasmado -, isto é inconfundível. Para alguém com conhecimentos de história djim, a história ilustrada nestas imagens é bastante explícita. Os sacerdotes ajoelhados diante dele são setenta, um número demasiado estranho para ter sido escolhido por egípcios; mas que me leva a presumir que este é o retrato" talvez o único existente, dos djins perdidos de Akhenaton:- O Sr. Rakshasas olhou por cima do ombro na direcção268de Nimrod. - Tem um toucado interessante, não achas, Nimrod?- Estava mesmo a pensar nisso - disse Nimrod. - Na maioria dos toucados egípcios normais, a frente é composta pelo corpo inteiro da deusa serpente Uadjet. Mas o corpo desta serpente parece envolver toda a cabeça do rei. Também me parece mais realista. Quase como se pudesse ser uma cobra verdadeira. O corpo preto e dourado é muito parecido com o da cobra-capelo egípcia. E repara no modo como Uadjet parece segurar o Aton - o disco do sol - sob o seu corpo, quase como se. - Nimrod socou a palma da mão. - Sim, é claro. Por que é que não pensámos nisto antes?- O que foi? - perguntou Philippa.

- Há milhares de anos que a nossa tribo pondera sobre como foi possível que um humano, apesar de ser um humano com uma parte djim, controlasse tantos djins. Os setenta djins. Mas este toucado parece sugerir que Akhenaton nunca chegou sequer a ser mestre de si próprio. Mas que, pelo contrário, estaria a ser controlado por um djim. O mais provável é que fosse um dos Ifrit que tivesse o hábito de assumir a forma de cobras e escorpiões.- E isso explicaria muita coisa - concordou o Sr. Rakshasas.- Como, por exemplo, o motivo pelo qual os Ifrit parecem saber mais sobre isto do que nós.- Tu não achas que eles já os têm, pois não? - perguntou Nimrod. - Os setenta djins perdidos de Akhenaton, digo eu?

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269- Se os tivessem - sugeriu Philippa - não se teriam dado a tanto trabalho para o afastar do caminho, pois não?- Bem visto - retorquiu Nimrod. -Já deteriam o equilibrio do poder djim e, muito provavelmente, eu até estaria morto.- Acho que, tendo em conta este mural, é óbvio - disse o Sr. Rakshasas - que os djins perdidos já estiveram aqui.Num recipiente qualquer, provavelmente. Talvez num vaso canópico. Com o resto dos tesouros de Akhenaton. Mas, quanto ao sítio onde eles poderão estar agora, quem sabe? É muito provável que estejam num museu.- Mas qual? - questionou Nimrod. - Um recipiente desses poderia estar em qualquer parte. Mal classificado, demoraria anos a encontrar.- Sendo assim, a suposição dos Ifrit quanto ao local onde esses tesouros se encontram pode valer tanto como a nossa - comentou Philippa.- Talvez - concordou Nimrod. - Mas só um homem pode responder a qualquer destas perguntas. O homem que redescobriu o túmulo quarenta e dois. Hussein Husseiout.Olhou para o seu relógio.- Além disso, ele deve-nos algumas explicações. Acho que seria útil fazermos-lhe uma pequena visita a caminho de casa. De certeza que não está a contar connosco hoje à noite.Voltaram às ruínas e ao Cadillac, onde Nimrod lançou um olhar crítico ao Ferrari cor-de-rosa.- Mas o que é que vem a ser isto? - perguntou.270- Não havia tempo para alugar um carro - explicouJohn. - Por isso, tivemos de usar o poder djim. - E abanou a cabeça. - Eu sei, eu sei. As rodas não estão bem.E a cor...- Sim, mais parece algo que um Xeique árabe do petróleo encomendaria para a mulher que menos amasse,para que ela pudesse atravessar as dunas e ir buscar osFilhos à escola. Ainda assim, tendo em conta que há cercade vinte mil peças diferentes num carro, acho que vocês sesaíram bastante bem, a sério. - Sorriu. - A pergunta quese coloca é o que é que vocês vão fazer com ele agora?Mantê-lo e levá-lo de volta ao Cairo para ser alvo do escárnio e da galhofa de algumas pessoas bastante sensatasque seriam incapazes de o conduzir? Ou mandá-lo paraum bem merecido limbo?- Decididamente, mandá-lo para o limbo - disseramos gémeos em uníssono.- Essa é a resposta certa - disse ele, e, agitando as mãos,Nimrod enviou o estranho Ferrari para o nada. - Então,

e aquela escavadora?- Essa é emprestada - admitiu John.- Foi o que eu pensei. Tem uma aparência demasiadovulgar para ter sido criada por vocês os dois. Primeiro,cor de laranja não é decididamente a tua cor, Philippa.Tenho a certeza de que terias preferido uma cor-de-rosa,não é? A propósito, quando pedirem alguma coisa emprestada, tentem sempre devolvê-la em melhor estadodo que estava antes, está bem? É uma questão de boas271maneiras. - E, naquele preciso momento, a Hitachi adquiriu uma nova demão de tinta cor de laranja, umas lagartas e uma caixa de velocidades

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a estrear, bem como um depósito cheio de gasolina.Enquanto eles exploravam o túmulo de Akhenaton, Felício e Nimrod haviam estado a desenterrar o Cadillac da areia e, assim que voltou a ver o seu carro, Nimrod abriu o porta-luvas, pegou numa caixa de charutos, acendeu um e, de imediato, soprou um anel de fumo com a forma do seu próprio carro.- Vocês não fazem ideia de como eu ansiava por este momento - declarou, fumando o charuto com um prazer evidente. - Sinceramente, pensava que nunca mais ia saborear um charuto destes.Depois, amontoaram-se todos no carro e seguiram a escavadora telecomandada enquanto, ainda usando o seu comando à distância, John a conduzia lentamente até à estrada principal, e a devolvia ao local das obras onde a tinham encontrado, antes de Felício os levar outra vez para norte, de regresso ao Cairo.272OS JOVENS VISITANTESJá passava muito da meia-noite quando, finalmente, chegaram à Cidade Velha do Cairo. Como era habitual, as ruas ainda estavam apinhadas de gente. Nimrod e os gémeos deixaram Felício, o Sr. Grunho e a lâmpada do Sr. Rakshasas no Cadillac, e foram procurar Hussein Husseiout. Porém, assim que entraram na viela estreita e pavimentada com seixos que conduzia à sua loja, aperceberam-se logo de que algo estava muito errado. A viela estava apinhada de gente e, no exterior da própria loja, vários polícias de uniforme branco estavam de guarda, impedindo a entrada de qualquer pessoa.- O que é que aconteceu aqui? - perguntou Nimrod a outro homem, em árabe.- O dono da loja, Hussein Husseiout, foi encontrado morto - foi a resposta.- Como é que morreu?- As pessoas estão a dizer que foi roubado. Mas eu ouvi dizer que foi mordido por uma cobra.- Quando é que isso aconteceu?- Há menos de uma hora - disse o homem.273Nimrod deu a mão às crianças, conduziu-as por umaviela mais sossegada, através de um portal ornamentadoe por uma escadaria íngreme acima, até ao interior deuma velha igreja onde mandou sentar os gémeos e lhescontou o que tinha ouvido.- Assassinado? - Philippa sentiu o seu queixo a tremer.

- Pobre Baksheesh.- Esperemos que ele esteja bem - disse Nimrod. - Éabsolutamente imperativo entrarmos naquela loja e descobrirmos o que aconteceu exactamente, mas é possívelque os Ifrit estejam a vigiar este sítio. Ao mesmo temponão quero que tenhamos de passar a noite na esquadra dapolícia, respondendo a uma série de perguntas disparatadas. E isso é o que acontecerá se nos apresentarmos à portae dissermos que conhecíamos o pobre Hussein Husseiout.A polícia do Cairo é conhecida pela sua incompetência.- Pobre Hussein Husseiout? - protestou John. - Masele tentou matá-lo.- Talvez - admitiu Nimrod. - Mas é óbvio que eleestava a agir sob um tipo de coacção qualquer. Tencionodescobrir o que era precisamente essa coacção. Agora

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ouçam-me atentamente. Para entrarmos na loja, temosde nos transformar em polícias.John e Philippa trocaram um olhar intrigado.- Como é que podemos fazer isso?- Teremos de deixar os nossos corpos dentro destaigreja - disse Nimrod. - Ninguém os vai incomodar,se pensarem que estamos a rezar. Depois flutuamosviela acima e ocupamos os corpos de três polícias, 274precisamente do mesmo modo que ocupámos os corpos daqueles camelos. Não tem nada que saber.John fez que sim com a cabeça. Para ele, ser um polícia, mesmo um polícia egípcio, parecia um enorme progresso em relação a ser um camelo; mas Philippa sentia-se obviamente incomodada com a ideia. O camelo dela tinha sido uma fêmea, mas um polícia era um homem, e a ideia de ocupar o corpo de um homem adulto, ainda que só por alguns minutos, perturbava-a.- Por que é que não podemos simplesmente flutuar até lá? - perguntou a menina. - Por que é que precisamos do corpo de outra pessoa?- É simples - disse Nimrod. - Se quisermos que alguém fale connosco, assim é mais fácil. E é o único modo de podermos pegar em alguma coisa e olharmos para ela. Além disso, se estivermos fora do nosso corpo durante demasiado tempo, corremos o risco de sermos arrastados para o espaço. Um corpo é como uma âncora. Mantém-nos no planeta, em solo firme. - O tio abanou a cabeça com delicadeza. - Mas, se a ideia não te agrada, Philippa, então fica aqui a vigiar os nossos corpos.Philippa olhou em volta para aquela pequena e estranha igreja. Do tecto ancestral, que mais parecia um barco virado ao contrário, candeeiros a óleo acesos pendiam de enormes correntes e alguém estava a entoar uma oração. A igreja parecia ter mil anos.- E se alguém fizer alguma coisa aos nossos corpos, enquanto estamos ausentes? - quis saber ela.275- Numa igreja? - Nimrod ajoelhou-se num genuflexório e curvou a cabeça numa atitude de oração. - Eras capaz de perturbar alguém que estivesse nesta posição?- Não - admitiu Philippa. - Está bem. Eu faço-o.

- É esse o espírito - disse Nimrod. - E é mesmo do espírito que se trata. Tentem lembrar-se de não dizer nada enquanto estamos fora dos nossos corpos. Lembrem-se de que é bastante assustador para os mundanos ouvir vozes vindas do nada.- Para quem? - perguntou John.- Mundanos - disse Nimrod. - Do latim nundus, que significa mundo. É o que, às vezes, chamamos aos seres humanos. De qualquer modo, não se esqueçam do que vos disse. Muitas das religiões e superstições do mundoforam causadas por djins descuidados ou maldosos, que falaram a mundanos enquanto estavam fora dos seus corpos. Por isso, a não ser que queiram ter esse peso na consciência, sugiro que fiquem de bico calado. O que mais? Ah, e tentem não derrubar nada, a menos que queiram que alguém pense que está a ser assombrado por um fantasma. Acreditem no que vos digo, é bastante fácil fazê-lo, sobretudo quando não conseguimos ver as nossas próprias mãos e pés.- Só mais uma coisa. É provável que não seja um problema numa noite quente como esta mas, de qualquer modo, tenham isto em consideração. Quando estão nuestado de invisibilidade, evitem as correntes de ar frio.

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O frio afecta sempre de um modo nocivo o poder djin.276e, num estado de invisibilidade, pode tornar-vos semi-transparentes, pelo que podem parecer fantasmas.- Isso quer dizer que os fantasmas não existem? - perguntou Philippa.- Há fantasmas, sim. Fantasmas humanos, em qualquer dos casos. Em geral são bastante benignos. Mas umfantasma humano pode ser muito mau, se for possuídopelo espírito de um djim morto. Pelo menos, é o que eupenso. Felizmente, nunca encontrei esse tipo de coisaspessoalmente. Geralmente, os djins não se tornam fantasmas. Mas já aconteceu o espírito de um djim, o seuNeshamah, possuir um fantasma humano, do mesmo modo que nós estamos prestes a possuir um corpo humano. Mas, como eu digo, tudo isto é muito diferente daexperiência extra-corporal que vamos ter agora. - Nimrodsorriu. - Tentem apenas relaxar e desfrutar da experiência.É natural que, ao princípio, se sintam algo estranhos, masvamos encontrar corpos rapidamente, e aí verão que tudovai voltar ao normal. Prometo.Abanou a cabeça para ambos os lados.- Vamos lá, então.John ajoelhou-se à esquerda de Nimrod e curvou acabeça.- Estou pronto - disse ele.- Eu também - disse Philippa, adoptando a mesmaatitude, à direita de Nimrod.Nimrod segurou nas mãos de ambos os gémeos.- Tentem não largar a minha mão até encontrarmos alguns polícias para ocuparmos - pediu. - Fica tudo mais277fácil, se soubermos onde estamos a todo o momento. Mas, se por acaso nos separarmos, encontramo-nos no carro. Muito bem, acho que é tudo.- Isto vai ser muito Fxe - disse John.- Espero bem que não - disse Nimrod. - Cá vai. QWERTYUIOP.

Philippa soltou um pequeno grito, mal se sentiu a sair do seu próprio corpo. Por um momento, foi como se estivesse a ficar mais alta, muito mais alta, só que, quando olhou para baixo, deu por si a olhar para a cabeça de uma pessoa ruiva com óculos, que não reconheceu, e depois passaram vários segundos até se aperceber, sobressaltada, de que se tratava da sua própria cabeça.Mas por que é que ela tinha o cabelo assim? Por seu turno, John estava tão desorientado como a sua irmã e, não fosse a sensação da mão de Nimrod envolvendo a sua, facilmente teria entrado em pânico.- É bastante normal que vocês se sintam um pouco estranhos - disse Nimrod, pressentindo a inquietação dos gémeos. - Mas respirem fundo e sigam-me.- Se nós não estamos aqui, então onde estamos? - questionou John enquanto flutuavam pela viela escura, rumo à loja de curiosidades.- Pode dizer-se que estamos a ocupar duas dimensões diferentes - explicou Nimrod. - Ou, para ser bastant mais preciso, o vosso corpo está de um lado da cerca, mas o vosso espírito está do outro. Podia dar-vos uma explicação mais científica, mas vocês precisariam de uma licenciatura278em Física para a compreenderem. Talvez mesmo duas licenciaturas.

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- Por favor - pediu Philippa, nada de Física. Detesto Física.- Oh, não digas isso - disse Nimrod. - Tudo o que um djim faz e pode fazer é resultado da Física. Um dia vocês ainda vão compreender isto.- Desde que não tenha de fazer um exame para provar que o compreendo - disse Philippa -, parece-me bem.Passaram pela barreira policial e entraram, despercebidos, na loja bem iluminada, que estava cheia de polícias. Um deles estava a usar um pedaço de giz amarelo para delinear o corpo de Hussein Husseiout, que jazia no chão, entre os tabuleiros de xadrez e os tronos egípcios.Para os gémeos, o homem morto estava imensamenteparecido com Baksheesh, quando este estivera doente nacama; os seus lábios e mãos estavam bastante azuis.- Pobre homem - sussurrou Philippa.Ouvindo isto, um dos polícias olhou em volta, mas, não vendo nada, estremeceu visivelmente e depois passoupara o outro lado da loja, juntando-se a dois polícias queestavam encostados à parede, a fumar cigarros com umar bastante aborrecido.- Ali - sussurrou Nimrod. - Aqueles três estão mesmoa pedi-las!Nimrod apertou elucidativamente a mão da sua sobrinha e conduziu os gémeos até ao ar que estava directamente por cima dos três polícias incautos.279 Mantenham os dedos dos pés para baixo e os vossos olhos fixos no polícia que escolheram - aconselhou calmamente. - É tão fácil como vestir um fato de mergulho. Assim que estiverem lá dentro, vão ver que o espírito que ocupa o corpo ficará tão confundido pela vossa chegada que nem vos vai incomodar. Depois de sairmos, eles não se lembrarão de nada.Assim que se instalaram nos seus respectivos corpos, Philippa olhou para os dois homens que estavam ao seu lado e disse, numa voz estranha que só em parte reconhecia:- Tio Nimrod?

Um dos polícias acenou em assentimentoe Philippa sorriu.- É estranho ser homem - disse ela.- Sim - disse o polícia que continha Nimrod, que era um sargento.- É melhor não voltares a dizer isso, está bem? Se Não, um dos colegas do pobre tipo pode ouvir-te e ficar com uma impressão algo errada acerca do sujeito. E tenta falar árabe, Philippa.- E nós conseguimos falar árabe? - perguntou o polícia de John.- Claro - disse o polícia de Nimrod. - És um egípcio, lembras-te- Consigo lembrar-me de todo o tipo de coisas estranhas- admitiu John. - Algumas não são muito agradáveis.- Vamos - disse o polícia de Nimrod, atirando o cigarro para o chão. - Por aqui.280Seguiram o sargento da polícia pela porta das traseiras, através do pátio e pelas escadas de madeira acima atéaos aposentos, onde encontraram Baksheesh sozinho noseu quarto e sentado na beira da cama de latão onde osgémeos o tinham visto pela primeira vez a chorar emsilêncio. O sargento ajoelhou-se em frente a Baksheesh eagarrou-lhe em ambas as mãos.- Ouve-me bem, Baksheesh - disse o sargento. - Não

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te assustes com o que te vou dizer. O teu pai era um bomhomem. E era meu amigo.O rapaz franziu o sobrolho, enquanto tentava lembrar-sede o seu pai ter alguma vez mencionado aquele sargentoda polícia.- Era?- Eu sei que ele te contou tudo sobre os djins. Por issosei que não vais ficar assustado quando te disser que éNimrod quem te fala do interior do corpo deste polícia.Por um momento, o rapaz ficou apavorado, arregalandoos olhos cheio de medo, e os gémeos tiveram a impressãode que ele estava prestes a fugir do quarto, aos gritos. Sóue Nimrod não largou as suas mãos e, numa voz quasehipnótica, continuou a falar com Baksheesh até acalmaro rapaz.- O senhor está morto? - perguntou ao sargento.- É por isso que agora está nesse corpo?- Não, não estou morto - disse o sargento. - Estouneste corpo porque é possível que quem matou o teu paiainda esteja a vigiar a loja.281O rapaz recomeçou a chorar.- Lembras-te dos meninos que vieram visitar-vos ontem à noite? - perguntou o sargento. - Os meus sobrinhos. Eles estavam à minha procura. Lembras-te?- Sim - disse Baksheesh, limpando os olhos com a manga. - Lembro-me deles.- Eles também são djins - disse o sargento. - E estão aqui comigo. Nos corpos destes polícias. Andem, venham cá falar com o Baksheesh, com a vossa própria voz, seconseguirem.

Philippa ajoelhou-se ao lado do sargento e tentou transformar o rosto por barbear dum polícia em algo semeLhante a uma expressão compreensiva mas, para sua surpresa, descobriu que ainda podia usar a sua própria voz de menina.- Baksheesh - começou, com doçura. - Lamento muitoo que aconteceu ao teu pai.- Fico contente por o vosso tio estar bem - disse Baksheesh. - O meu pai não fez por mal.- Eu sei - replicou ela, afagando-lhe o cabelo.- Iblis obrigou-o a enganar-vos. A cobra dele mordeu-me no pé, e eu estive entre a vida e a morte, enquanto omeu pai era obrigado a fazer o que ele queria. Só quandoo senhor foi capturado é que Iblis permitiu que o seu setvPalisto, lambesse o meu pé para extrair o veneno.- Palis? - repetiu o sargento. - O lambe-pés? Ele também esteve aqui?- Ele é um djim muito mau - disse Baksheesh, olhando para o seu pé ligado.282O sargento olhou para Philippa e explicou.- Palis lambe a planta dos nossos pés até conseguir sugar-nos o sangue. A língua dele é muito áspera, como lixa. Como a do búfalo da água. Depois, ele bebe o nossosangue.Voltando-se para Baksheesh, retomou:- Tiveste sorte por ele só ter bebido um bocado do teu sangue,

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Baksheesh. Normalmente, Palis bebe-o todo.- Eu não acho que seja assim tão sortudo - suspirou Baksheesh.- Não, é claro que não. - Nimrod deteve-se por instantes. - E chegaste a ver Iblis?- Não, só ouvi a sua voz: fala com tanta brandura que pensar-se-ia que é muito amável. Só que ele ficava sempre nas sombras. Acho que tinha medo de deixar que eu ovisse. Sempre nas sombras. Falava sempre muito suave- mente, como a cobra que veio com ele. A cobra-capelo egípcia listada. A maior que alguma vez vi.- Conta-me exactamente o que aconteceu ao teu pai - pediu Nimrod.O rapaz ficou calado por um momento, após o queNimrod acrescentou:- Para poder vingar o teu pai, preciso de saber exactamente o que se passou.Baksheesh respirou fundo e de modo irregular, e depoisacenou em concordância.- Um escorpião morreu - disse ele. - Estava numa gaiola de bambu. Era precisamente o gémeo daquele que283Iblis deixou a guardar o seu túmulo, segundo ele me disse. Vai daí, deixou-o aqui com o meu pai e, quando morreu, o meu pai ficou muito pálido e muito assustado, pois sabia que isso significava que o senhor tinha fugido e que Iblis iria voltar para o impedir de lhe contar fosse o que fosse. O meu pai sabia que não tinha tempo para fugir. Iblis move-se como o vento, disse ele. Só houve tempo para me esconder dentro de um velho sarcófago no pátio, para impedir que Iblis mandasse a sua cobra morder- me outra vez. Por isso, ela só mordeu o meu pai.- E os djins perdidos de Akhenaton? - quis saber Nimrod. - Os Ifrit têm os djins perdidos?

- Não - respondeu o rapaz, a sorrir. - Eles fizeram muitas perguntas ao meu pai. Acho que ainda estão à procura deles.- Mas onde é que eles estão? - perguntou Philippa. Sabes?O rapaz abanou a cabeça.- Como é que eles estão guardados? - perguntouo sargento.- Não sei.- Vais ficar bem, Baksheesh? - perguntou Philipa.- Quem é que vai tomar conta de ti? Há alguma coisaque possamos fazer por ti?- Tenho uma tia em Alexandria e um tio em Heliópolis. Presumo que, a partir de agora, vão tomar contade mim.- Não te esqueças de que tens um tio em Inglaterradisse o sargento, com delicadeza. - Um dia, quando284tiveres acabado a tua instrução, vem visitar-me e eu ajudar-te-ei a fazer o que quiseres. Vou enviar-te a minha morada.Percebeste?- Sim. Obrigado, senhor.Ouvindo o som de vozes a subir as escadas, Nimrodlevantou-se.- Temos de ir embora. Boa sorte para ti, meu rapaz.Adeus.- Adeus, senhor.-John? Philippa? Temos de ir embora.

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Philippa levantou-se e voltou-se para a porta.- Não - disse o sargento. - Não temos tempo paraisso. Será mais rápido se viajarmos como corpos celestes.Rápido. Dêem-me as mãos.Quando os gémeos seguraram as mãos estendidas dosargento, sentiram-se uma vez mais a flutuar até ao tecto,só que desta vez foi mais rápido e só tiveram tempo dever os três polícias, e o seu enorme embaraço quando,recuperando os seus próprios corpos, se aperceberam deque estavam de mãos dadas.- Vamos voltar para a igreja - sussurrou a forma espiritual de Nimrod, conduzindo-os de novo até lá abaixo.- O que é que vamos fazer agora? - perguntou Johnenquanto saíam da loja e regressavam pelas sombras, e aolongo da viela de seixos, em direcção à pequena igreja.- Temos de encontrar Iblis e os seus lacaios Ifrit, antesque eles encontrem os djins perdidos de Akhenaton - respondeu Nimrod.285- E, para fazermos isso, teremos de o tirar das sombrase trazê-lo para a claridade.- Mas como é que vamos fazer isso? - perguntouPhilippa.- Não vai ser fácil. E pode ser perigoso.Tendo recuperado os seus próprios corpos na pequena eestranha igreja, regressaram (um pouco vacilantes, diga-se de passagem, no caso dos gémeos, que não estavam habituados a fazer a transição entre corpo e espírito) pelas ruas sombrias, ao local onde tinham deixado o Cadillac, onde, voltando a vê-los, Felício fez sinais de luzes para os ajudar a encontrar o caminho.

- Amanhã tenho um trabalho importante para vocês os dois - disse Nimrod aos gémeos, quando chegaram à casa da Cidade Jardim.- E isso tem a ver com trazer Iblis para a claridade? perguntou John.- Sim - disse Nimrod. - Deixem-me mostrar-voso que tenho em mente. - Levou-os até ao telhado e apontou sobre os relvados sombrios que delimitavam a casa para a residência do embaixador francês, que ficava no outro lado do muro do jardim. A casa do embaixador estava iluminada por projectores, com guardas a deambular pelo terreno, e uma luz que ardia numa torre quadrada, ao estilo italiano.286- Estão a ver aquela torre? - perguntou. - É a biblioteca do embaixador francês. Para além de ser um estudantefervoroso de egiptologia, é também um astrónomo amador, e a biblioteca tem, não só um grande número delivros, como também um poderoso telescópio. Usando-o, seria possível alguém ver quase tudo o que se está a passar neste lado da casa e do jardim. Amanhã tenciono perguntar à Sra. Coeur de Lapin se vocês os dois podem passar o dia a ver os livros que tem na sua biblioteca.- O quê? - gemeu John. - Temos mesmo de fazer isso?- queixou-se. - Ela está sempre a tocar no meu cabelo e a dizer que sou muito bonito. E não vejo como é que ler uns livros velhos nos poderá ajudar a apanhar Iblis.- Nós não somos propriamente crianças, sabe - disse Philippa. - Se não fôssemos nós, o tio ainda estaria preso naquele túmulo.- E por isso estou-vos, como é óbvio, imensamente grato - disse Nimrod. - Mas deixam-me acabar o meu raciocínio?

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Os gémeos assentiram.- Usando o telescópio da biblioteca da Sra. Coeur de Lapin, vocês poderão manter esta casa sob vigilância.- Porquê? - perguntou John.- Porque, meu querido e impaciente sobrinho, eu vou montar uma cilada a Iblis e preciso que vocês os dois aaccionem.- Uau! - entusiasmou-se John.- E que tipo de cilada? - perguntou Philippa.287- Vou espalhar por certos sítios no Cairo, onde às vezes os Ifrit são vistos, tal como o Café Íbis, nas traseiras do Hilton do Cairo, o Groppi's, como é óbvio, e o clube de dança do ventre de Yasmin Alibhai, que encontrei uma caixa com os djins perdidos de Akhenaton. Com alguma sorte, Iblis vai então aparecer aqui, na esperança de roubar a caixa para os Ifrit. Vai encontrar a casa vazia, claro, e aproveitar-se da nossa ausência para a revistar. Num dos quartos deste lado da casa, e observado por vocês através do telescópio da Sra. Coeur de Lapin, ele vai então encontrar uma caixa de madeira da Décima Oitava Dinastia com o nome de Amenófis III, na qual terei posto uma armadilha especial para djins. Uma forma deo capturar.- Onde é que o tio vai arranjar uma caixa dessas? perguntou Philippa.

- Tenho uma no meu quarto - disse Nimrod. - Uso-a como uma espécie de caixa de medicamentos. Como é óbvio, Iblis não é estúpido e, se eu ou o Sr. Rakshasas estivéssemos por perto, sem dúvida iria pressentir a nossa presença. O que apenas servirá de incentivo para que eleassalte a casa. Mas não me parece que ele possa detectar a vossa presença na casa ao lado. Como vocês ainda não estão completamente desenvolvidos, não emitem a mesma aura que eu ou o Sr. Rakshasas.Nimrod encolheu os ombros e prosseguiu.- E isto é tudo, basicamente. Assim que virem que Iblis foi capturado na caixa, podem telefonar para o meu telemóvel.288- Onde é que o tio vai estar? - perguntaram eles a Nimrod.- A vários quilómetros de distância. Assim que souber que Iblis está dentro da caixa, venho imediatamente para casa e completo o processo de aprisionamento. Como é óbvio, Felício e o Sr. Grunho estarão comigo. Não vale a pena nenhum deles correr riscos desnecessários. Bons empregados como Grunho e Felício são difíceis de encontrar.Philippa semicerrou os olhos, desconfiada. Havia algo no plano de Nimrod em que lhe custava a acreditar.- O tio tem a certeza de que não está apenas a tentar desembaraçar-se de nós? - perguntou a Nimrod. - Para poder ir fazer qualquer coisa mais perigosa, noutro sítio qualquer?- Como vocês bem sabem - disse Nimrod -, a Sra. Coeur de Lapin gostou bastante de vocês os dois e, dado que não me parece que ela se importe muito que vocês usem o telescópio do seu marido, acho que ela seria um pouco menos amável e indulgente se fosse eu, o Felício ou o Sr. Grunho a pedir para irmos até à biblioteca. Não, não estou apenas a tentar desembaraçar-me de vocês. Como verão, se se derem ao trabalho de pensar um pouco nisso, todo este plano depende de vocês, meus queridos sobrinhos.- OK - respondeu ela. - Faremos tudo o que o tio disser.- Isso seria uma mudança bem agradável.289

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Na manhã seguinte, quando acordaram, depararam-se com uma história em todos os jornais egípcios sobre um sensacional assalto ao Museu de Antiguidades do Cairo na noite anterior. Ignorando os fabulosos tesouros de ouro do jovem rei Tutankhamon, os intrusos tinham-se concentrado noutras salas do museu, onde estavam expostos artefactos muito menos valiosos da Décima Oitava Dinastia. Ainda mais curioso para os jornais e para a polícia, que confessava estar perplexa com o crime, foi descobrir que nenhum dos artefactos tinha sido roubado, sendo apenas retirados dos seus expositores: um ceptro real e algumas figuras usbebti tinham sido partidas, e vários vasos canópicos, usados para guardar as entranhas de múmias egípcias embalsamadas, tinham sido danificados ao serem abertos.- Não há dúvida - disse Nimrod. - A Décima Oitava Dinastia é o período correcto para um artefacto de Akhenaton. Devo dizer que tudo isto encaixa muito bem no nosso plano.290- Não lhe parece que eles tenham encontrado aquilo que procuravam? - perguntou John.Philippa abanou a cabeça com firmeza.

- Segundo o jornal - referiu ela -, os ladrões entraram no museu por volta das nove horas. Mas Hussein Husseiout foi morto pela cobra por volta da meia-noite. Eles nunca se teriam dado ao trabalho de o silenciar se já tivessem aquilo que procuravam. Aposto que há muitos museus, por todo o mundo, que vão ser assaltados deste modo, sem que nada seja roubado.- A não ser que nós cheguemos lá primeiro - adiantouJohn.- Nós temos de chegar lá primeiro - disse Nimrod.- Não temos alternativa. A homeostasia exige-o. Depois do pequeno-almoço, Philippa telefonou à Sra. Coeur de Lapin, que disse que teria muito gosto em tomar conta dos dois irmãos durante todo o dia e, logo que ficaram prontos e elucidados em relação ao plano para capturar Iblis, foram até à embaixada francesa com uma pequena prenda: um frasco de perfume antigo que Nimrod disse ter vindo de Huamai, o perfumista de Gizé.- Que amável da parte dele - agradeceu a Sra. Coeur de Lapin quando viu o perfume. - Ai aquele vosso tio. É tão encantador. E, para inglês, também é muito romântico. Acho que têm muita sorte em terem um tio como ele. É um homem muito interessante.- Sim, ele é maravilhoso - concordaram os gémeos.- Muito bem. O que é que gostariam de fazer, meninos?Estou ao vosso dispor.291- Bem - disse Philippa. - Nimrod disse-nos que a senhora tem uma biblioteca maravilhosa.- Sim, é verdade.- Com um grande telescópio - acrescentou John com uma demonstração muito fingida de entusiasmo pueril que provocou um olhar acutilante da sua irmã.- O que se passa, Sra. Coeur de Lapin - disse Philippa- é que eu gostava de ler sobre algumas destas escavações arqueológicas, para as poder apreciar melhor quando as vir.- E eu estou interessado em observar pássaros - disse John. - Contava poder usar o telescópio para ver alguns dos pássaros do nosso jardim.- Têm a certeza? - perguntou a Sra. Coeur de Lapin.- Podíamos fazer um passeio de barco, se quisessem. Ou talvez

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pudéssemos ir à piscina do Nile Hilton. É uma piscina muito agradável, a melhor do Cairo, acho eu. E servem almoços muito bons. Ou talvez um passeio até às pirâmides de Saqqará.- Não, a sério - disse John. - Preferimos a biblioteca. Para ser sincero, apanhámos demasiado sol nos últimosdias e estamos ansiosos por poder ficar dentro de casa, com o ar condicionado.Philippa acenou em concordância, pensando que, quando lhe apetecia, o seu irmão conseguia ser um mentirosobastante convincente.- Muito bem, como queiram - aquiesceu a Sra. Coeur de Lapin, sorrindo, antes de os acompanhar à biblioteca.292

A biblioteca não era nada como eles tinham imaginado. Era muito limpa e funcional, com imensas pinturas abstractas de mau gosto, um tapete bege, mobília que outrora fora tão moderna que agora parecia antiquada, e muitas dezenas de metros de prateleiras de metal polido que alojavam várias centenas de livros. Vários expositores de vidro estavam espalhados por toda a sala para expor a colecção de pequenos artefactos egípcios dos Coeur de Lapin, enquanto na janela, junto a uma mesa com um computador e umas elegantes garrafas de vidro lapidado, estava um grande telescópio assente sobre um tripé de alumínio.Philippa observou os objectos e depois examinou alguns dos livros com delicadeza.- A senhora deve saber muito sobre o Egipto - observou ela. - É arqueóloga ou alguma coisa do género?- Sou só amadora - admitiu a Sra. Coeur de Lapin. Monsieur Coeur de Lapin é mais entendido nessa matéria do que eu.John apontou para cerca de uma dezena de pequenas figuras verdes com a forma de múmias que estavam sobre o friso de mármore da lareira.- Aquilo veio de um túmulo?- Sim. São figuras que foram concebidas para serem os servos de um egípcio morto, no além.A Sra. Coeur de Lapin pegou numa das figurinhas verdes e mostrou-a aos gémeos mais de perto.293- Eu adoro pegar nestas figuras, por serem tão antigas. Fazem-me sentir como se estivesse em contacto com o passado. Sinto que quase consigo compreender como era viver no Antigo Egipto. Percebem?- Posso usar o seu telescópio agora? - perguntou John. A Sra. Coeur de Lapin sorriu e passou a mão pelo cabelo de John. O rapaz estremeceu. Detestava que as pessoas tocassem no seu cabelo, sobretudo a Sra. Coeur de Lapin, que parecia gostar muito de o fazer.- É claro - disse ela, agitando uma mão elegante na sua direcção. - Está à vontade. Desde que não estejas à espera que eu te explique como funciona. É do meu marido.- Acho que sei trabalhar com ele - disse John. Depois acenou em agradecimento e, subindo um escadote que estava junto ao telescópio, apontou a lente poderosa para as janelas de guilhotina, abertas, da sala de estar de Nimrod. A caixa do Faraó egípcio estava no meio do chão e, ajustando o visor, John descobriu que conseguia ver suficientemente perto para ler os hieróglifos que cobriam a madeira dourada. Seria, pensou ele, impossível alguém abrir a caixa sem ser facilmente avistado por uma pessoa que estivesse a usar o telescópio do Sr. Coeur de Lapin.A tarefa ia ser relativamente fácil, isto partindo do princípio de que

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o plano de Nimrod iria funcionar às mil maravilhas. Só que ele não tinha bem a certeza quanto ao que seria uma armadilha para um djim. Nimrod tinha sido pouco vago sobre esse ponto, mas pensou que tudo se esclareceria se e quando Iblis aparecesse.294- Consegues ver bem, John? - perguntou a Sra. Coeur de Lapin, passando a sua mão pelo cabelo do jovem outra vez. - Percebes como funciona, não?- Sim - disse ele, incomodado. - Sim, eu estou bem, obrigado.Havia, pensou ele, qualquer coisa esquisita na Sra. Coeur de Lapin que o simples facto de ser francesa não explicava. Talvez fosse a fita preta e dourada que ela usava sempre e que John achava que a fazia parecer um índio Apache. Ou talvez fossem os seus olhos azuis e bastante apagados, mortiços, quase sem vida, que pareciam atravessá-lo, mesmo quando estava a sorrir. De qualquer modo, não havia como fugir ao facto de a Sra. Coeur de Lapin fazer com que John se sentisse nervoso e pouco à vontade.

- John - disse ela -, queres ver a minha colecção de escaravelhos?Philippa estava a pensar exactamente o mesmo que o irmão: que a Sra. Coeur de Lapin era um pouco excêntrica. E estava contente por ser John quem estava a fazer as despesas da conversa com ela. Enquanto ele admirava a colecção de escaravelhos - pequenas jóias de jade e lápis-lazúli de cores vivas - e, de tempos a tempos, ia espreitando através do telescópio, Philippa começou a examinar alguns dos livros da estante da Sra. Coeur de Lapin. A maioria estava escrita em inglês, mas mesmo os que estavam em francês pareciam ter alguma coisa a ver com Egiptologia e os faraós. Ela sentou-se numa cadeira moderna de ângulos desconfortáveis e pegou num295livro que estava no chão e que parecia ter estado a ser lido pelo Sr. ou pela Sra. Coeur de Lapin, pois havia um par de óculos de leitura pousado em cima do livro, que estava marcado com uma página arrancada de uma qualquer revista ou de um catálogo.Para grande surpresa de Philippa, era um livro sobre Akhenaton, como de facto eram todos os outros que estavam no chão, ao lado da cadeira. A descoberta provocou um arrepio no sangue quente de djim de Philippaque sentiu um aperto no coração. Seria uma mera coincidência, o facto da Sra. Coeur de Lapin ter estado a ler livros sobre Akhenaton? Ou será que havia um motivo mais sinistro por trás do seu interesse no faraó herege do Egipto?Philippa fitou a mulher do embaixador francês de um modo que esperava não parecer um olhar fixo. Agora, a Sra. Coeur de Lapin estava a rir-se das piadas medonhas e nervosas de John com um riso que parecia ter sido espremido de um dos pequenos peluches fofnhos que estavamna cama de Philippa, em Nova Iorque. A Sra. Coeur de Lapin era tão estranhamente feminina, decidiu Philippa. Tal como os seus gestinhos estúpidos. As suas estúpidasunhas compridas. A sombra carregada que tinha nos olhos: A sua fita ridícula. Mas por que é que ela tinha sempre de usar aquela fita ridícula - tipo rapariguinha dos anos 20: E porquê, pensou Philippa - por que é que, de súbito aquela fita lhe parecia tão familiar, como se já a tivesse visto em qualquer sítio, e recentemente?296E seria imaginação sua, ou aquela fita parecia sempre um pouco viva?Philippa pestanejou, esfregou os olhos, e depois tentou olhar mais de perto para a fita, sem despertar a suspeita da Sra. Coeur de Lapin de que ela e a sua fita eram agora um alvo de curiosidade. Discretamente,

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com as mãos atrás das costas, Philippa serpenteou até à mesa onde os escaravelhos estavam expostos, ao lado do telescópio, e depois pegou num.- Por que é que os egípcios achavam que estes escaravelhos eram suficientemente interessantes para quererem fazer modelos deles? - perguntou John, olhando rapidamente através do telescópio e depois de novo para os escaravelhos, ao mesmo tempo que lançava um olhar carrancudo à sua irmã.

- Porquê? - A Sra. Coeur de Lapin colocou um belo exemplar na sua mão ossuda. - Eu digo-te porquê. Há muitas espécies de escaravelhos. E muitos destes modelos são escaravelhos bosteiros.- Isso significa aquilo que eu estou a pensar? - perguntou John. Ele olhou em volta quando se apercebeu de que alguém tinha ligado o computador.A Sra. Coeur de Lapin soltou o seu riso agudo de peluche.- Sim - disse ela. - Eles apanham bosta das ovelhas ou dos camelos, enrolam-na numa esfera do tamanho de uma bola de ténis, e depois rebolam-na até às suas casas subterrâneas, onde as fêmeas põem os seus ovos sobre a bola. E, quando as larvas chocam, comem a bosta.297- Isso é uma treta! - exclamou John. - Depois, quandoviu o ar perplexo da Sra. Coeur de Lapin, acrescentou,como que traduzindo: - A senhora está a brincar.- Não - disse a Sra. Coeur de Lapin, rindo-se. - Nãoestou a brincar. - Dirigiu-se ao computador e desligou-o.- Foste tu quem ligou isto? - perguntou ao rapaz.John estava demasiado ocupado a sentir-se chocado pararesponder à pergunta.- Comer bosta de camelo? Não vejo o que é que issotem de sagrado. E não é propriamente o tipo de animalque eu escolheria como inspiração para um ornamento.O rapaz esboçou um esgar, como o de um cadáver, e,furtivo, lançou outra olhadela rápida pelo telescópio à salade estar de Nimrod, onde ainda nada acontecia. Aquelamissão estava a revelar-se bem mais difícil do que eleprevira, com a Sra. Coeur de Lapin a mostrar-Lhe o raiodos seus escaravelhos, a despentear-lhe o cabelo e a maçá-lo com a sua tagarelice incessante.- Pelo contrário - disse a Sra. Coeur de Lapin. - É umanimalzinho notável. Os egípcios acreditavam que o escaravelho representava o seu deus Sol, Ra. Ra era o deusegípcio que rolava o Sol através do céu e o enterrava todasas noites. Tal como o escaravelho. Acreditava-se que estesescaravelhos esculpidos conferiam ao seu proprietário ascaracterísticas do escaravelho.- Como? - perguntou John, franzindo o sobrolho- Quer dizer que eles comiam bosta?A Sra. Coeur de Lapin abanou veementemente a cabeça.298-John - disse ela -, não digas disparates. Não, os egípcios admiravam a persistência dos escaravelhos por rolarem uma bola de estrume, bem como a sua utilidade ecológica. É um símbolo de uma vida nova. E também de ressurreição, pelo modo como o escaravelho sai do solo.Philippa deixou cair no tapete o escaravelho que segurava, junto aos pés da Sra. Coeur de Lapin, como se tivesse ficado um pouco chocada com aquilo tudo, mas a verdade é que o gesto dela ocultava outro objectivo.

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- Peço desculpa - disse.- Não faz mal - disse a Sra. Coeur de Lapin, curvando-se para apanhar o seu escaravelho. - Eles são muito resistentes. Mesmo agora, passados vários milhares de anos, são quase inquebráveis.

Enquanto a Sra. Coeur de Lapin se baixava para apanhar o escaravelho de pedra verde do tapete, Philippa aproveitou a oportunidade para examinar mais de perto a sua fita preta e dourada; enquanto o fazia, ficou com a clara impressão de que, pelo menos por um breve momento, a fita tinha inchado muito ligeiramente e depois voltado a comprimir-se, quase como se (e Philippa não tinha outra explicação) se tivesse enchido de ar. E, no preciso momento em que Philippa começava a desconfiar que a fita que envolvia a cabeça da Sra. Coeur de Lapin tinha inspirado e depois expirado uma lufada de ar, lembrou-se do motivo pelo qual a fita Lhe tinha parecido, de certo modo, familiar. A fita que tinha diante dos seus olhos era quase idêntica à fita que Akhenaton usava no mural da parede299do túmulo. Quase idêntica, tirando o facto de aquela cobra dourada e preta (se era mesmo disso que se tratava)parecer não ter nenhuma cabeça proeminente.John não tinha reparado em nada. Estava demasiadoocupado a aproveitar o facto de a Sra. Coeur de Lapin se tercurvado para voltar a olhar pelo telescópio, para prestarqualquer atenção à fita. Philippa decidiu que tinha dehaver uma forma de descobrir ao certo se a fita era mesmo uma cobra viva, ou não. O que é que as cobras comiam?questionou-se. Pequenos roedores? Será que alguma cobra com um pingo de dignidade, mesmo que tivesse escolhido viver embrulhada à volta da cabeça pateta da mulher do embaixador, seria capaz de recusar uma refeição gratuita, como, por exemplo, um rato? Philippa começou aconcentrar-se com muita força, com muito mais força,durante muito mais tempo do que era habitual e como talvez convinha à criação de uma criatura viva - algo quenunca tinha feito antes. Por fim, quando a sua concentração lhe pareceu completa, proferiu a sua palavra de concentração tão alto quanto ousou.- FABULONGOSOMARAVILHOSIFANTÁSTITICO.- Disseste alguma coisa, minha querida? - perguntoua Sra. Coeur de Lapin.- Hã, disse muito obrigado por nos ter mostrado estacolecção fabulosa - respondeu Philippa, tentando ignorar o pequeno rato do campo que tinha feito aparecer nemeda de cabelo loiro que a Sra. Coeur de Lapin tinha emcima da cabeça.300Philippa não morria de amores por ratos mas, vendo o rato no cabelo da Sra. Coeur de Lapin, apercebeu-se de que a ideia de um rato era menos simpática do que o animalzinho querido que já estava a explorar o seu ambiente; e desejou que as suas suspeitas sobre a fita preta e dourada estivessem erradas, quanto mais não fosse para bem do rato. Porém, naquele preciso momento, a fita começou a rodar na cabeça da Sra. Coeur de Lapin como uma tampa a desatarraxar-se do gargalo de uma garrafa, e o que outrora parecia seda ou cetim, revelava-se agora claramente como uma pele de cobra reluzente.

Philippa sentiu um arrepio na espinha e pontapeou John na barriga da

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perna, enquanto a sinistra cabeça achatada de uma enorme cobra-capelo egípcia surgia do meio dos caracóis da Sra. Coeur de Lapin e, num silvo, estalando a língua, olhava de modo hipnótico para o rato. John voltou-se, prestes a explodir, e depois, apercebendo-se da cara da irmã, deslocou o seu olhar para o cabelo da Sra. Coeur de Lapin - precisamente na altura em que, pressentindo o perigo, o rato espreitava sobre o limite do corpo da cobra, tentando avaliar a altura do salto necessário para pular da cabeça da mulher francesa para o chão. Mas era demasiado tarde! Já que, um segundo depois, a cobra atacou com a velocidade de um golpe de chicote e, numa questão de segundos, o pobre rato tinha sido engolidointeiro.301ENGARRAFADOSFantástico - sussurrou John enquanto a cobra fechava a boca e começava a comprimir o ratopelo seu longo pescoço abaixo.- Não gosto nada disto - sussurrou Philippa. - Acho que é melhor irmos embora.- Talvez tenhas razão - concordou John, afastando o tubo do telescópio com indiferença, como se não estivesse minimamente preocupado com o que quer que dissesse respeito ao penteado da Sra. Coeur de Lapin, e sorrindo com delicadeza, enquanto descia o escadote e se dirigia para a porta.- Mas vocês não podem ir embora - protestou a Sra. Coeur de Lapin, aparentemente alheia ao que estava a acontecer no cimo da sua própria cabeça. - Acabaram agora mesmo de chegar!Em seguida, estremeceu um pouco, como se, de repente,uma mola se tivesse partido dentro dela.- Acabaram agora mesmo de chegar. Acabaram agoramesmo de chegar.Era como se a Sra. Coeur de Lapin fosse um discoriscado, que se repetia continuamente.302- Acabaram agora mesmo de chegar. Acabaram agoramesmo de chegar.E depois, de súbito, ficou totalmente inexpressiva, comum olhar vítreo; a sua boca abriu-se, a dentadura postiçasaltitou para fora e a cabeça tombou para a frente, comose alguém tivesse desligado um interruptor na sua nuca.- Vamos sair daqui - disse John.- Estou a tentar - disse Philippa -, mas não consigomexer as pernas.- Ei! Eu também não. Mas o que é que se passa? Estouparalisado.- Quem me dera que o tio Nimrod estivesse aqui.Depois de engolir o rato, a cobra-capelo egípcia levantoua cabeça e a parte superior do corpo diante da Sra. Coeurde Lapin e começou a desenrolar o corpo, que parecia interminável, até que por fim chegou ao chão. Uma vez aí, acobra começou a crescer até o seu corpo ficar tão espessocomo o de um homem e a cabeça adquirir o tamanho deuma pá.- Não a olhes nos olhos - disse Philippa. - Está a tentarhipnotizar-nos.- Estou mais preocupado com a hipótese de ser mordido do que de ser hipnotizado - atalhou John, que já se

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sentia um pouco hipnotizado, pois parecia-lhe que a cobracomeçava gradualmente a ganhar braços e pernas, transformando-se no que parecia ser um homem com um narizem forma de gancho, uma barbicha loira e uma expressãobastante desagradável no seu rosto de traços finos. Algunsinstantes mais tarde, o réptil já tinha sido praticamente303

absorvido por um belo homem inglês com um ar arrogante e um forte odor misto de presunção e réptil.Quando percebeu que não podia fugir, Philippa tentouconter o seu medo.- Iblis, presumo - disse ela, calmamente.- Presumes de mais, vermezinho miserável - silvouIblis, com desdém. - Se há uma coisa que eu detesto maisdo que um jovem djim dos Marid, é dois jovens djins dosMarid. - Iblis engoliu em seco, pouco à vontade, e levouuma mão ao estômago. - Deves achar que és muito esperta, com aquele rato, não?- Nem por isso - respondeu Philippa, apreensiva.- Tens alguma noção do sabor nojento que um rato tem?Ugh, estou enjoado. Que nojo. Cheiro como o reptiláriodo jardim zoológico de Londres.Lambeu o interior da boca várias vezes, fungou ruidosamente e puxou de um modo horrível o escarro do narizpara a garganta, após o que cuspiu um muco verde e nojento para o tapete.- Não. Bem me parecia.- Então por que é que o comeu? - perguntou Philippa.- Porque isso é o que as cobras fazem, Menina Espertalhona - respondeu Iblis. - As cobras comem ratos. Eucomi-o antes mesmo de ter tempo de me perguntar comoé que um rato tinha aparecido a rastejar no cabelo da SraCoeur de Lapin. Ela pode ser francesa mas, ao contráriodo que normalmente se diz, até os franceses lavam o cabelode vez em quando.304Iblis vestia um fato de riscas finas comprado na Savile Rozu, um par de sapatos de pele de cobra feitos à mão e segurava uma bengala intrincadamente esculpida com um castão de prata. Soltou a sua velha gravata de Eton, desapertou o botão da sua camisa Turnbull Asser, e tossiu de modo desagradável. Rapidamente, a tosse tornou-se um sonoro esforço para vomitar.- Isto é o que acontece quando assumimos a forma humana tão pouco tempo depois de comermos um rato - disse Iblis, vomitando mais escarro verde para o chão.- A culpa é do pêlo. E voltou a vomitar.- Fica preso na garganta. Até as cobras vomitam essa parte, depois de comerem.Iblis dirigiu-se ao tabuleiro das bebidas, pegou numa garrafa de conhaque, em vidro fumado, e bebeu todo o conteúdo de uma enorme golada. Por instantes, olhou para o computador com um ar irritado, como que momentaneamente distraído. Depois, com os olhos semi-cerrados, fitou os gémeos com uma expressão de ódio.- É claro que eu não teria necessidade de voltar a assumir a forma humana tão subitamente se tu não tivesses mergulhado os teus dedinhos sujos no óleo da minha lâmpada. - Pôs-se a abanar a cabeça com

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impaciência e esboçou um sorriso sarcástico. - Mas não. Tu não conseguiste resistir, pois não? Isso é tão típico dos Marid. Sempre a interferir. Ali estava eu, sossegado e disposto a ser piedoso por vocês serem crianças, e tu tinhas logo de me atirar aquele maldito rato.305Iblis voltou a vomitar de um modo asqueroso e, destavez, conseguiu vomitar o rato, que ainda estava vivo, bemno meio do chão.

- Bem, preparem-se pois vão arrepender-se, miúdos - ameaçou Iblis com rispidez.Encharcado em conhaque, o rato ficou quieto pormomentos, e depois levantou-se, pois, por incrível queparecesse, ainda estava mesmo vivo. Esfregou os bigodespor um segundo e, em seguida, correu em direcção àporta. Philippa aplaudiu em silêncio o facto de o rato tersobrevivido àquela terrível provação.- Estão a ver aquele rato? - perguntou Iblis e, então,escassos centímetros antes de o rato alcançar a porta e a sualiberdade, Iblis reduziu a pobre criatura a cinzas com umolhar severo dardejado pelos seus olhos cruéis. - Quandoacabar de tratar de vocês - continuou - vão acabar por pensar que, afinal, aquele rato teve mais sorte do que aquele homem que caiu de um avião sem pára-quedas e aterrounuma fábrica de colchões. O único motivo pelo qual ainda não estão mortos, é eu ainda não ter decidido se voucomer-vos ou atirar os vossos corpinhos inúteis para afossa mais funda do mundo, que, caso queiram saber, ficanum hotel em Sampetersburgo, na Rússia. Acreditem noque vos digo: vocês nunca saberão o que é o verdadeirosofrimento até terem ficado num hotel russo. Quanto àsfossas, imaginem algo extraído de um cenário de Dante.Enquanto Iblis ia falando, John pressentiu que Philipaestava a tentar preparar a sua força de vontade para o 306preciso momento em que, juntos, talvez pudessem libertar-seda força djim que os mantinha presos ao chão, pelo quetentou fazer o mesmo.- Nem pensem em tentar usar o vosso poder contramim - zombou Iblis, ajustando os impecáveis botões depunho da sua bela camisa feita à mão. - Jovens djinscomo vocês não têm a mais ínfima hipótese contra umdjim com a minha experiência e malvadez. Eu comer-vos-ia como a uma bolacha de água e sal, muito fina einsípida, com o meu café matinal. Além disso - e Iblisergueu alguns fios de cabelo na ponta dos seus dedos - eu tenho o vosso cabelo. O que faz com que prender-vosseja canja.- Então era por isso que estava sempre a passar as mãospelos nossos cabelos - disse John. - Eu sabia que isso tinhaqualquer coisa de esquisito.- E eu sempre soube que vocês tinham qualquer coisade esquisito. Desde que assumi o controlo desta mulherpara poder vigiar Nimrod. Desde o piquenique que percebi que vocês estavam a esconder qualquer coisa. Umacriança humana jamais seria capaz de comer caviar efoiegras, tal como eu nunca poderia vir a comer rato. - Iblis

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tirou um último pedaço de pêlo dos seus lábios com umar manifestamente aborrecido.- Nós não Lhe fizemos nada - disse John, em jeito dedesafio.- Estás a esquecer-te do rato, é claro.- À parte o rato.307- Quer que imploremos pelas nossas vidas? Iblis sentou- se na desconfortável cadeira moderna e esboçou um sorriso irónico.

- Estejam à vontade. Depois de comer um rato, bem que precisava de me rir um bocado.- Não, a sério. Por que é que nos quer matar? - insistiu John.- Oh, estou a ver que o querido tio Nimrod não tem cumprido o seu dever, se ainda não vos explicou isto - disse Iblis. - Nós estamos em lados diferentes nesta guerra, meu rapaz. É esse o motivo. Seria o mesmo que perguntarem por que é que os ratos não se entendem com as cobras. Eu lido com o azar e vocês lidam com a sorte. Só que, novosso caso, a sorte parece escassear.- Mas isso não tem necessariamente de ser assim - argumentou Philippa.Iblis riu-se, como se estivesse genuinamente divertido com o comentário de Philippa.- Mas que ingenuidade tão tocante - contrapôs. A famosa consciência Marid, suponho.O rosto de Iblis adquiriu uma expressão deveras ameaçadora quando, levantando-se rapidamente, o aproximou do de John, suficientemente perto para que este conseguisse sentir o cheiro do seu hálito a rato.- Mas o que é que se passa com a vossa tribo? Esse desejo de estragar a diversão dos outros djins. Como jovens djins, vocês devem compreender, mais do que ninguém, como é muito mais divertido infligir azar às pessoas do308que tentar criar algum bem. Melhor do que ninguém, devem saber como isso é uma luta árdua.Iblis franziu a testa e, em seguida, recuperou o fôlego quando viu um sinal de dúvida estampado no rosto deJohn.- Ou será que Nimrod não vos disse? Já vejo que não. A verdade é que nós começámos todos do mesmo modo. Marid, Ifrit, Jann, Ghul. Todos gostamos de uma boa partida. Como tirar uma cadeira a uma mulher gorda. Atirar uma casca de banana para a frente de um polícia estúpido. Não é, John? Nunca quiseste aprofundar uma poça de água à frente de um cego que está a atravessar a rua? Ou fazer com que a tinta de uma caneta permanente se derrame sobre o smoking branco de um noivo? Vejo que já. - Iblis sorriu e endireitou-se. - Quando ele era novo, tão novo como vocês, não havia nada de que Nimrod mais gostasse, do que de distribuir um pouco de azar, aqui e ali. Sim, ele não foi sempre um bom rapaz. Só que, à medida que foi envelhecendo, como o resto da vossa tribo, foi ficando pomposo e enfadonho. A famosa consciência Marid. A homeostasia. Disparates. Não há homeostasia. A verdade é que haverá sempre mais azar do que sorte e que a vossa gente está a lutar por uma causa perdida. - Iblis voltou a fitar John de perto. - Vejo que tu tens a mesma opinião, não é, John?- Não - disse John. - Eu detesto-o a si e a tudo o que representa.- Vocês têm muito bons princípios, não têm? - Iblis voltou a rir-se. - És tão pomposo como o teu tio. Não é309

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que isso tenha importância. Os Ifrit sempre detestaramos Marid e vice-versa. Sempre. Eu diria que será sempreassim, não fosse o facto de a vossa tribo ter os dias contados. Assim que eu deitar as mãos aos djins perdidos deAkhenaton... - Iblis agitou a garrafa de conhaque queainda segurava na mão. - Mas, por acaso, até nem vou

matar-vos. Seria um desperdício. Vou engarrafar-vos eguardar-vos no meu frigorífico, até chegar o dia em quevocês estejam prontos a chamarem-me mestre.- Esse dia nunca chegará - disse Philippa.- Nós nunca lhe chamaremos mestre - reforçou John.- São palavras corajosas, jovens djins, mas vocês aindanão leram bem as Regras de Bagdade. Vocês não têm votona matéria. São obrigados a conceder três desejos a quemvos libertar. Inclusive eu.- Nunca! - disse Philippa.- Não é que as Regras tenham muita importância.Garanto-vos que ainda vão ter uma opinião muito diferente, depois de um ou dois anos presos dentro desta garrafa. - Iblis voltou a agitar a garrafa nos seus dedos. Estar preso numa garrafa ou numa lâmpada é um modomaravilhoso de concentrar a mente. Acreditem no que vosdigo. Não há nada que não façam, nenhuma má acção quese recusem a realizar, depois de terem tido a oportunidadede passar uns tempos aqui dentro.Deixou cair as últimas gotas de conhaque na sua língua esverdeada e, em seguida, colocou cuidadosamente agarrafa entre os escaravelhos da Sra. Coeur de Lapin.310- Algum último pedido de misericórdia? Palavras de desaFio? Não? É pena.- Vá-se matar! - disse John.Iblis riu-se.- É melhor rezares para que isso não me aconteça, meu pequenote djim - disse ele. - Pensa bem nisto; depois, quem é que vai saber que vocês estão presos nesta garrafa de cristal? Na verdade, podem muito bem acabar como aquele idiota chapado, o Rakshasas. Agorafóbicos. Doido varrido. Completamente chanfrado. O velho Rakshasas ficou preso numa garrafa suja de leite durante cinquenta anos. Pensem bem nisso, meninos. Cinquenta anos. Parece que o cheiro a leite azedo, queijo e depois bolor, o enlouqueceu. De facto, é espantoso como é que ele consegue sequer funcionar numa sociedade djim normal. Pensem nisso, quando estiverem a cumprir a vossa longa pena nesta garrafa de conhaque, está bem?Um fumo denso começou a surgir sob os pés dos gémeos, pelo que, durante um segundo, eles pensaram que o tapete poderia estar a arder; mas, de facto, pouco a pouco, o fumo acabou por envolver os seus corpos até deixarem de ver Iblis ou mesmo a sala onde estavam.- E fiquem gratos por eu não estar a usar uma prisão dupla. E, já agora, por estar a prender-vos dentro de uma garrafa com um tamanho aceitável - disse Iblis - em vez de algo muito mais pequeno. Podia muito bem ter-vos confinado no interior da minha caneta de tinta permanente, ou na câmara de veneno oca da minha bengala. Pelo menos ficarão confortáveis.311A voz de Iblis parecia elevar-se acima deles e, só depois de alguns instantes, é que os gémeos se aperceberam de que tal se devia ao facto

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de se estarem a dissolver e a metamorfosear em fumo.

Depois, o processo pareceu inverter-se, e aquilo que era fumo começou a solidificar-se e a assumir uma forma humana, ao mesmo tempo que a sensação intensa de estar a flutuar deu lugar à impressão de estarem novamente com os pés assentes no chão, seguida rapidamente por uma nítida sensação de clausura. Quando o último fiozinho de fumo desapareceu pelos seus sapatos e meias adentro, os gémeos deram por si naquilo que parecia ser uma enorme sala de vidro e, imediatamente assolados pela claustrofobia e pelos vapores do conhaque, demoraram vários minutos antes de se sentirem capazes de lidar com a sua nova situação.Philippa soltou um suspiro profundo e, sentando-se no chão de vidro macio, resmungou:- Lá se foi o plano de Nimrod. - E depois, contendo a vontade de chorar, acrescentou: - O que é que vamos fazer agora?- Podia ser pior - propôs John. - Podíamos estar mortos.- Sim, acho que tens razão. - Philippa mordeu o lábio,- Tenho medo, John - confessou a rapariga.- Também eu - disse John. - Acho que temos de nos conformar.Passando a sua mão trémula pela parede macia e brilhante, acrescentou:312- Lar, doce lar. Até alguém nos salvar.- Não me imagino a decidir viajar pelo mundo deste modo - disse Philippa.Tentou respirar fundo, mas percebeu que só podia aspirar uma quantidade de ar limitada para os pulmões.- Quem me dera que houvesse mais ar aqui dentro. Ver a respiração difícil da sua irmã pareceu afectar John, que também tentou respirar fundo para controlar aquela sensação crescente de pânico.- Não achas que vamos ficar sem ar aqui dentro, pois não?- Não ouviste o que Iblis disse? O Sr. Rakshasas esteve dentro de uma garrafa durante cinquenta anos.- Nem me lembres. -John abanou a cabeça. - Gostava de saber como é que ele conseguia respirar.- É este cheiro. Provavelmente faz-nos pensar que não há ar suficiente. Que cheiro será este? É um pouco inebriante.- Suponho que sejam vapores do conhaque. - John lambeu a parede.- Sabe bem - continuou, e, lambendo um pouco mais, riu-se, pouco à vontade. - Devias experimentar. Talvez te ajude a acalmar.- Não vejo onde está a piada - disse Philippa.- Estava só a pensar. Djim numa garrafa de conhaque. Philippa esboçou um sorriso ligeiramente sarcástico.- Estou só a tentar ver o lado agradável das coisas - disseJohn.313- E isto lá tem um lado agradável? - Philippa pegou no seu lenço e limpou o canto do olho. - Explica-te melhor.- Temo-nos um ao outro - disse John, sentando-se ao lado da irmã e pondo um braço em volta dos seus ombros.- Eu ia detestar estar aqui sozinho.- Eu também - disse Philippa.- Quero dizer, preferia que tu não estivesses aqui, se é que me entendes. Mas, já que estás, bem, fico contente, só isso.Passado algum tempo, Philippa sacudiu o braço do irmão e percorreu o perímetro da garrafa de conhaque, o que demorou vários minutos.

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- É estranho - disse ela. - Isto parece muito maior do lado de dentro.- Isso é porque estamos fora do espaço tridimensional- disse John.- Gostava de saber se isso também significa que estamos fora do tempo. É o que Einstein diz, não é? Que o tempo é relativo. Que depende do espaço.- O que significa que.Philippa encolheu os ombros.- Não sei. É só que, talvez o tempo passe a uma velocidade diferente, dentro desta garrafa.- Oh, isso é um pensamento animador - lançou John:- E eu que estava a tentar habituar-me à ideia de passar cinquenta anos preso aqui dentro, e agora tu sugeres que talvez esses cinquenta anos possam passar ainda mais devagar.314Philippa engoliu em seco, enjoada.- Tens razão.E depois retomou:- Por outro lado, talvez o tempo passe mais rápido aqui dentro. E assim, cinquenta anos vão parecer cinco minutos. Seja como for, gostava de ter alguns dos comprimidos de carvão da mãe.- Por que é que não tentas fazê-los? - perguntou John.- O tio Nimrod não disse qualquer coisa sobre usar o poder djim dentro de uma garrafa, para mobilar o espaço e fazer comida e bebidas? Não deve ser muito difícil criar alguns comprimidos de carvão.Quase sem hesitar, Philippa proferiu a sua palavra de concentração e dois comprimidos apareceram na palma da sua mão.- Fixe - disse John, engolindo o comprido que ela lhe deu.- O que dizes de um tapete? - perguntou Philippa.- Este chão é um pouco duro e escorregadio.- De que cor?- Cor-de-rosa - disse Philippa. - Eu gosto de cor-de-rosa.- Cor-de-rosa? - John fez uma careta. - E por que não preto? Eu gosto de preto. Preto é fixe. E, além disso, não seria melhor um televisor?- Queres ver televisão, agora? John encolheu os ombros.- E há mais alguma coisa para fazer?315Depois de várias tentativas que mais pareciam escul turas modernas do que um televisor, John conseguiu fazer uma televisão e, assim que fez uma cadeira de braços, sentou-se e ligou o aparelho.- É típico - disse Philippa. - Nós estamos presos aqui dentro e tu só consegues pensar em televisão.Porém, assim que a imagem apareceu, John soltou um gemido.- Óptimo - disse ele. - Televisão egípcia.- De que é que estavas à espera? Estamos no Egipto.- Ela encolheu os ombros. - Quem sabe, talvez possas aprender árabe.John lançou o comando à distância contra o ecrã do televisor, soltou um grito de raiva e deixou cair o rostoentre as suas mãos.- Nunca vamos sair daqui - suspirou o rapaz.316O CEPTRO SÉBEN

Dentro da garrafa, os minutos deram lugar a horas, as horas transformaram-se em dias e os gémeos distraíram-se a tentar decorar e mobilar a garrafa de conhaque da Sra. Coeur de Lapin de um modo que agradasse a ambos. No entanto, isto revelou-se impossível pelo que,

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passada uma semana, decidiram dividir o espaço com um biombo, e escolher estilos de design completamente distintos. John criou um espaço muito moderno, em tons de preto e cinzento, que incluía uma grande cadeira reclinável em couro, um enorme frigorífico, uma Play station e um televisor de ecrã gigante com um leitor de DVD,para ter sempre alguma coisa para ver. O espaço de Philippa era, de um modo geral, mais cor-de-rosa e fofo, comuma cama grande, muitos peluches, um rádio (que sópassava música egípcia, e que Philippa quase aprendeu aapreciar), uma biblioteca cheia de livros sobre os Faraós,e uma cozinha bem equipada onde aprendeu a cozinharsozinha. Certo dia, decidiu cozinhar uma refeição paraJohn e convidou-o a ir à sua metade da garrafa. Tinhamacabado de se sentar quando um estrondoso ruído metálico 317bem por cima das suas cabeças, anunciou que a garrafa estava a ser novamente destapada.Philippa engoliu em seco de modo bem audível enquanto, mais uma vez, começava a desintegrar-se.- Talvez Iblis tenha mesmo decidido matar-nos - disse John, enquanto a garrafa se começava a encher de fumo.- E se experimentasses ver o lado positivo das coisas?- perguntou Philippa.- Desde que seja rápido, não me importo - disse John.- Estou a enlouquecer, aqui dentro.- O que é que te faz pensar que Iblis seja o tipo de djim que concede uma morte rápida a quem quer que seja? - perguntou ela, soltando um grito de susto quando sentiu que estava a ser transportada pelo gargalo da garrafa acima, até ao mundo exterior.Quando o fumo se desvaneceu, os gémeos aperceberam-se de que tinham sido devolvidos à biblioteca da Sra. Coeur de Lapin. A mulher francesa estava deitada numa chaise longue, de olhos cerrados e a ressonar bem alto, mas não havia vestígios de Iblis, nem mesmo de uma cobra e, em seu lugar, os gémeos ficaram encantados por verem o seu tio Nimrod sentado na tal cadeira moderna tão desconfortável, fumando um grande charuto e com um ar bastante satisfeito consigo mesmo.- O que é que aconteceu? - perguntou John.- Onde está Iblis? - perguntou Philippa.- Iblis? - Nimrod agitou o pequeno frasco de perfume antigo que os gémeos tinham oferecido à Sra. Coeur de Lapin.318- Oh, ele está bem seguro aqui dentro - disse. - E nãovai voltar a incomodar-nos.- O tio capturou-o? - exclamou Philippa. - Como? - Sem dúvida que não o teria conseguido sem vocês osdois. A verdade é que eu vos mandei vir aqui com umfalso pretexto. Desde aquele piquenique que eu desconfiava da Sra. Coeur de Lapin. E, na verdade, estava a contar que vocês pensassem o mesmo. Sobretudo, porque iampassar um dia inteiro com ela. Iblis tem-na controladodesde que chegámos ao Cairo.

- Então, tudo o que o tio nos disse sobre a caixa, esobre como devíamos vigiá-la com o telescópio era mentira - disse John.- O tio usou-nos como isco - disse Philippa. - Comouma cabra para um tigre.- Isso parece-me um pouco forte - disse Nimrod.

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- Como vos digo, vocês nunca estiveram seriamenteameaçados.- Podíamos ter morrido - insistiu Philippa.- Oh, não - disse Nimrod, fumando alegremente oseu charuto. - Iblis nunca teria desperdiçado dois djinsem perfeitas condições como vocês. Sobretudo sendo vocêstão jovens. Mais dois para lhe obedecerem? Não me parece.Ele não é assim tão estúpido. Aquilo que ele vos dissesobre comer-vos e enterrar-vos numa fossa era só para vosamansar.- O tio ouviu-o dizer isso? Como? - perguntou John.319- Vocês não acham mesmo que eu vos deixaria vir aqui sozinhos, pois não? Estava dentro de um objecto inanimado. Bem, quase inanimado.- O quê, o tio esteve aqui o tempo todo? - exclamou Philippa.- Claro. Estava dentro do computador que está na secretária. E até houve um momento, logo depois de Iblis beber aquele conhaque, em que pensei que ele me tinha detectado. Eu liguei-me inadvertidamente, por momentos.- Sim, eu lembro-me disso - disse John. - Na altura, achei um pouco estranho.- Sim, e Iblis também. Tenho de admitir que ele é um tipo astuto. Seja como for, eu sabia que ele vos iria engarrafar. E era esse o momento por que esperava. Um djim está precisamente no seu ponto mais fraco quando usa os seus poderes sobre outro djim. E fica ainda mais fraco quando é obrigado a usar o seu poder em dois djins. E, se por acaso, esses dois djins forem gémeos, bem, então... vocês percebem a ideia. Logo que ele vos pôs naquela garrafa de conhaque, eu agi. Posso garantir-vos que não havia outra forma tão formidável de lidar com um djim como Iblis.- Então onde é que o tio esteve durante este tempotodo? - perguntou Philippa. - Nós estivemos dentro daquela garrafa durante várias semanas.Nimrod abanou a cabeça.- Apenas vos pareceram semanas. Mas, na verdade estiveram lá dentro durante, vejamos - Nimrod olhou para o seu relógio -, cerca de quinze minutos.320- Quinze minutos? - questionou John. - Só? O tiotem a certeza?Nimrod pestanejou.- Sim, lamento muito o que aconteceu. Lembram-se doque vos disse acerca do facto de o interior de uma garrafadjim estar fora do espaço tridimensional? Infelizmente,não tive tempo para vos falar no modo adequado de umdjim se transubstanciar e entrar numa garrafa. No hemisfério norte, vocês têm de se lembrar que devem entrar nosentido inverso aos ponteiros do relógio, contra o sentido normal da rotação do hemisfério norte, senão o tempopassa devagar, e vice-versa no hemisfério sul. É o mesmo

princípio que se aplica quando a água desce pelo ralo deuma banheira. Bem, mais ou menos. Devo admitir que émais difícil lembrarmo-nos deste tipo de coisas quandoé outra pessoa que nos mete na garrafa. Mas, se conseguirem acertar, isso pode poupar-vos imenso tempo. Por exemplo, um voo de Londres para a Austrália, que normalmente demora

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cerca de vinte e quatro horas, pode parecerapenas vinte e quatro minutos. Se errarem, pode muito bem parecer-vos vinte e quatro semanas. O tempo depende do espaço. Pensava que hoje em dia vos ensinassemeste tipo de coisas aos cinco anos.Tudo funcionou às mil maravilhas. E vocês forammagníficos. Nunca me teria lembrado de fazer aparecerum rato no cabelo da Sra. Coeur de Lapin. Foi um momento de inspiração. Tu desmascaraste-o na perfeição,Philippa.321Porém, os gémeos ainda pareciam um pouco irritados com o tio.- Peço desculpa por vos ter enganado - disse Nimrod- mas, para ser sincero, não havia alternativa. Vocês nem sequer teriam vindo aqui, se pensassem que estavam a ser afastados da verdadeira acção. E eu não vos podia dizer que faziam parte da minha armadilha djim, sem correr o risco de vocês denunciarem o meu plano. Por favor, digam que me perdoam.- Oh, está bem - responderam eles.- Não temos de lhe conceder três desejos? - perguntou John. - Segundo as Regras de Bagdade.- Não é preciso. Secção 18. Consanguinidade. Nós somos aparentados, por isso, não é preciso.Nimrod fumou, satisfeito, o seu charuto e expeliu um anel de fumo com a forma de uma cobra-capelo.- Mas como é que o tio sabia que Iblis estava a con trolar a Sra. Coeur de Lapin? - perguntou Philippa.- Pela fita, claro. É a mesma que Akhenaton tem no mural do túmulo. Bem, este foi um motivo.- E o outro?- Foi algo que tu própria me disseste, Philippa.-E o que foi?- A palavra de verdade que tu ouviste, quando o es pião que Iblis usou para me prender foi consumido pelas chamas.- Rabat?322- Exactamente. Só que a palavra que tu ouviste não era Rabat, mas sim algo muito parecido. Rabbit, para ser mais preciso.- Rabbit! - exclamou John. - É claro. Tanto lapin como rabbit significam coelho.- Exactamente - disse Nimrod. - Apesar de ser muito esperto, Iblis é um djim preguiçoso. E, lá no fundo, eu tinha esperanças de que ele pudesse dar uma palavra de prisão a Hussein Husseiout que me fornecesse uma pista quanto a onde e o que é que ele estava a fazer. Mesmo assim, demorei algum tempo a ligar rabbit a lapin.- E o resto dos Ifrit? - perguntou John. - Palis, o lambe-pés. E os outros.- Oh, eles jamais se atreverão a agir, agora, sem o seu líder tribal, Iblis. São demasiado covardes.

Nimrod inclinou-se para trás, apoiando-se nos calcanhares, e soprou uma enorme coluna de fumo, que assumiu a forma de um V de vitória, ao estilo de Churchill, e subiu até ao tecto.- Aquilo que fizemos é verdadeiramente maravilhoso. Podemos não ter encontrado os djins perdidos de Akhenaton, mas isto é quase tão bom como tal. Impedimos os Ifrit de os encontrar.- Na verdade - disse Philippa -, tenho uma ideia quanto ao local onde

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os podemos procurar. Os djins perdidos de Akhenaton.As cinzas caíram do charuto de Nimrod, enquanto ele olhava para Philippa com um ar ligeiramente surpreendido.- Tens?- Sim.Philippa ajoelhou-se ao lado da desconfortável cadeira moderna e, pegando no livro sobre Akhenaton que a Sra. Coeur de Lapin tinha estado a ler, tirou uma página rasgada que estava a ser usada como marcador e passou-a a Nimrod.Nimrod e John olharam para uma página onde havia quatro imagens a cores, todas do mesmo estranho objecto. O objecto tinha cerca de sessenta centímetros de altura e a forma de uma bengala, com um grande topo em losango que tinha cerca de dez centímetros de espessura e vinte centímetros de comprimento.- Isto são ceptros - disse ela. - Ceptros reais que eram usados pelos reis egípcios e altos dignitários como marca de autoridade, e que eles agitavam sobre oferendas nos túmulos para dar poder à pessoa que tinha morrido. - A rapariga encolheu os ombros e prosseguiu,- Estive a ler muita coisa sobre o Egipto.Nimrod dirigiu um sorriso amável a Philippa.- Mas eu não vejo como é que estes ceptros nos poderiam ajudar a encontrar os djins perdidos.- Alguém assinalou com um círculo uma imagem de outro ceptro real neste livro - disse Philippa. - Partindo do princípio de que foi Iblis quem assinalou o ceptro, ou a Sra. Coeur de Lapin sob sua instrução, tudo indica que Iblis está interessado em ceptros reais.- Continua - disse Nimrod.324- Primeiro - disse Philippa -, há isto. Na notícia do jornal sobre o assalto ao Museu do Cairo, dizia-se que vários ceptros reais haviam sido quebrados.- É verdade - disse Nimrod, pensativo. - Mas também havia alguns vasos canópicos que tinham sido abertos. Vasos de armazenamento egípcios.- Suponhamos que esses vasos eram apenas uma distracção, para os jornais, concebida para nos despistar. Imaginemos que, na verdade, eles só estivessem à procura dos ceptros.- Está bem - disse Nimrod. - Partindo desse princípio. Por que é que alguém haveria de querer quebrar um ceptro. rekbem?- Quando nós estivemos no túmulo de Akhenaton - disse Philippa -, a pintura que estava na parede, o mural, retratava o faraó a segurar um ceptro bem acima das cabeças dos setenta djins. Lembra-se do modo como os raios de Sol pareciam emanar do cimo do ceptro - aquela parte grossa - e tocar em cada um dos djins?- Sim - disse Nimrod.

- Pois bem, eis a terceira parte da minha teoria. Foi algo que Iblis disse quando nos estava a aprisionar dentro daquela garrafa de conhaque. Ele disse que nós tínhamos sorte em não ser na sua caneta de tinta permanente nem na câmara de veneno oca da sua bengala. E isso fez-me pensar. Imaginemos que a parte grossa do ceptro também era oca. Não seria um bom sítio para guardar os setenta djins que estariam na origem do seu poder? Não325num vaso ou numa garrafa qualquer, mas sim no seu ceptro, no próprio símbolo da sua autoridade. Eu só estive numa garrafa de conhaque. Mas quer-me parecer que se poderia facilmente guardar setenta djins lá dentro. E, se assim é, por que não dentro do topo de um ceptro, onde

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estão todos os hieróglifos?- O ceptro sebem está ligado a Osíris - disse Nimrod.- Por vezes, Osíris era conhecido como o Grande Serébem. Sebem significa poder" ou força". Mas tu tens razão, Philippa. Sendo os djins a sua fonte de força e poder, seria o sítio perfeito para guardar os setenta djins.Nimrod pôs-se a olhar mais atentamente para a ima gem dos ceptros.- Não vejo por que não haveria espaço para todos elesali dentro, se o topo fosse oco, como tu disseste. Até daria para esconder uma garrafa secreta. Sim, pela minha lâmpada, é uma teoria brilhante.- Mas como é que, antes de mais, Akhenaton conseguiucontrolar tantos djins? - perguntou Philippa. - Ainda não sabemos isso.- Eu acho que sabemos - interrompeu John. - Sobre tudo agora, que vimos a forma como Iblis controlava a Sra. Coeur de Lapin. Aposto o que quiseres como há quatrocentos anos atrás, os Ifrit controlavam Akhenaton, do mesmo modo que Iblis manteve a sra. Coeur de Lapin sob o seu poder. E aposto como um deles tinha assumido a forma de uma cobra verdadeira, no toucado do rei.- Sim - disse Nimrod. - Isso não está nada mal, John:326Depois, dirigiu-se até à mesa e pegou no telefone.- Para quem é que o tio vai telefonar? - perguntouJohn.- Para a polícia - disse Nimrod. - Quero fazer-lhes umapergunta sobre o assalto ao museu.Nimrod falou em árabe durante vários minutos e, quandopousou o telefone, parecia bastante entusiasmado.- Os ceptros não foram partidos a meio - disse ele.- Foi a parte de cima, com a cartela, que foi danificada.Na verdade, foi esmagada, como se alguém tentasse descobrir se eram ocos.E caminhou rapidamente até à porta.- Onde é que o tio vai? - perguntou Philippa.- Para casa. Temos de contar isto ao Sr. Rakshasas.Imediatamente.- E ela? - disse Philippa, apontando para a Sra. Coeurde Lapin, que ainda estava a dormir no sofá. - Vai ficarbem?- Vai ficar óptima depois de dormir um pouco - disseNimrod. - Não acredito que se lembre de muita coisadepois de acordar. E, na verdade, é melhor assim. Sejacomo for, ela é francesa. É provável que quando acordarpense que bebeu demasiado vinho ao pequeno-almoço.

Regressados à casa de Nimrod, Grunho trouxe a lâmpada de bronze do Sr. Rakshasas para a biblioteca e esfregou-a vigorosamente para invocar o velho djim.327O Sr. Rakshasas ouviu pacientemente o que Nimrod lhe contou e em seguida meneou a cabeça.- Não vejo outra explicação possível - concordou.- A tua sobrinha deve ser louvada pelo seu engenho.- Não é espantoso? - exclamou Nimrod. - Agora sabemos o que procuramos, embora não saibamos onde procurá-lo.- É verdade - disse o Sr. Rakshasas. - Há muitos cep tros reais em museus, por todo o mundo.

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Acenou com a cabeça apontando para os gémeos.- Creio que há um no Metropolitan Museum de Nova Iorque. Mas só conheço um ceptro sebem da Décima Oitava Dinastia que esteja fora do Cairo. E esse está no Museu Britânico, em Londres.Nimrod suspirou.- Não é espantoso? Ando à procura destes djins perdidos há trinta anos e afinal é possível que eles tenham estado sempre nas minhas barbas.- Significa isso que vamos voltar para Inglaterra? - perguntou John.- Sim, receio que sim - confirmou Nimrod. - Sr. Grunho, é melhor o senhor telefonar para a British Airways e pôr-nos a todos no próximo voo para Londres.- Graças a Deus - disse Grunho, caminhando a passos largos até à porta. - Graças a Deus. Já não aguento mais este calor.- É uma pena - disse Nimrod, ignorando o seu mordomo. - E logo quando vocês estavam a descobrir os vossos328poderes djim. O facto de estarem longe do calor pode afectá-los e muito.- Não há nada a fazer - disse John, encolhendo osombros.- Isto é muito mais importante - concordou Philippa.- Podemos sempre voltar ao Egipto noutra altura - disseJohn. - Não podemos?- Claro - disse Nimrod. - Da próxima vez que tiverem férias da escola. - O tio tinha razão, sabe - disse John a Nimrod. Quanto àquilo que disse sobre o Cairo. Nunca imaginei que gostasse tanto da cidade. Pode ser sujo, pode ser malcheiroso, pode estar sobrelotado, mas não há nenhum sítioigual na Terra.- Eu disse isso? - perguntou Nimrod. - Bem, é maravilhoso, claro que sim. Mas esperem até verem Alexandria. E Jerusalém. E Deli. E Istambul. Já para não falar no Deserto do Sara. Mesmo Berlim, que, como sabem, é onde o Djim Azul da Babilónia vive actualmente. O que encontrarmos em Londres pode afectar todo o futuro, não só dos djins, mas também do próprio universo mundano.329A SALA 65

Como habitualmente, os londrinos não estavam a gostar muito do Verão de Londres. Os dias eram demasiado quentes, ou demasiado frios. Havia demasiada chuva, ou então não havia chuva suficiente. E parecia que havia sempre alguém para se queixar do tempo, fosse ele qual fosse. Um dos poucos londrinos que nunca se queixavam do Verão de Londres era Grunho.- Aquilo de que mais gosto é das mudanças climatéricas - explicou ele quando chegaram à casa de Kensington Gardens. - Não há dois dias iguais. Hoje está quente, muito quente para Londres. Por isso, é provável que amanhã esteja a chover, e no dia seguinte pode muito bem estar vento. Experimentem ver um jogo de críquet de quatro dias, se não acreditam em mim. Apanha-se todo o tipo de tempo, durante um jogo de críquete.John, que achava que já era bastante difícil ver críquet durante quatro minutos, quanto mais por quatro dias, disse a Grunho que teria de acreditar nele.Na manhã seguinte, às dez horas em ponto, Nimrod levou os gémeos a Bloomsbury e ao imenso edifício330do Museu Britânico ou, como Nimrod preferia chamar-lhe, o MB ".

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O MB é um edifício imponente, ligeiramente parecidocom um grande templo grego, mais concretamente o grande templo grego sagrado dedicado à deusa Atena, no Parténon da Acrópole, em Atenas. Contudo, quando subiram os degraus da frente, que davam para a Great Russell Street, Nimrod e os gémeos só encontraram um autocarro cheio de turistas japoneses que tinham vindo a Londres para venerar Hermes, o deus grego da viagem, do comércio e das carteiras estupidamente caras.Nimrod conduziu os gémeos através do grande átrio,até um pátio coberto chamado Great Court, passando pela velha sala de leitura, que era um enorme edifício redondo no meio do Great Court. Fez sinal para que o seguissem, em direcção ao lado ocidental do Great Court, onde entraram nas chamadas Galerias Egípcias, local onde estava exposta a fina-flor das antiguidades egípcias do MB. Ignorando a maioria das exposições de grandes dimensões, o tio conduziu-os para norte, pela escadaria ocidental acima, e até às salas 60-66 onde, num expositor de vidro - entre os muitos cadáveres mumificados da realeza egípcia, alguns com quinhentos anos, e várias peças de arqueologia fúnebre - Nimrod encontrou o que procuravam. Porém, pondo os óculos para examinar mais atentamente o ceptro, instalado num pequeno plinto de pedra, o djim franziu o sobrolho e abanou a cabeça.331- Valha-me Deus! - exclamou. - Diz aqui, ceptro real, Décima Sétima Dinastia. É demasiado antigo para ter pertencido a Akhenaton. Espero bem que o Sr. Rakshasas não se tenha enganado.Philippa examinou o ceptro e encolheu os ombros.- Então, o MB não pode saber tudo - disse ela, voltando a olhar. - Talvez se tenham enganado.Nimrod soltou um grunhido, como se achasse que aquilo era altamente improvável.- Embora tenha de admitir - declarou Philippa - que parece um pouco vulgar. Não me parece que pudesse conter setenta djins.- É verdade - suspirou Nimrod.- O tio não consegue perceber se é este o ceptro - perguntou ela. - Quero dizer, ele não emite uma espécie de vibração, ou qualquer coisa assim?- Eu não sou uma varinha de vedor - disse Nimrod.

- Ou um médium. Seja como for, se emitisse vibrações, como dizes, não achas que passadas várias décadas eu, ou outro djim, já teríamos reparado nisso?- Suponho que sim - admitiu Philippa.Com o nariz encostado ao expositor, e olhando tão de perto para o ceptro quanto o vidro permitia, Joha estava quase disposto a concordar com a sua irmã, quando reparou numa coisa estranha.- Esperem um minuto - disse ele. - Não notaramnada?Recuou vários passos e apontou.332- É só um traço muito Fino, mas há uma racha no vidro.Nimrod e Philippa afastaram-se do expositor, enquantojohn acrescentava:- E sabem que mais? É idêntica à da parede do meuquarto!- Tens toda a razão - disse Nimrod. - Muito bem. Tenhode arranjar outros óculos diferentes. Estes já não servempara nada.- Sim, mas o que é que isto significa? - perguntou

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Philippa.- É uma mensagem - disse Nimrod. - E desta vez achoque sei de quem é.De quem? - perguntou Philippa. - Dos djins perdidos de Akhenaton, claro - disse John.- É essa a resposta.- Meu Deus, sim - sussurrou Nimrod. - Tens razão,John. Tem de ser essa a explicação.- É um sinal para que soubéssemos que este era o ceptrocerto - concluiu John.durante alguns instantes, limitaram-se a ficar aliparados, a olhar para o objecto.- É de ouro? - perguntou Philippa. - Não parece ouro.- Se fosse de ouro seria demasiado pesado para transportar - disse Nimrod. - Um ceptro não serve de nada sefor demasiado pesado para transportar. Não, é madeira,coberta a folha de ouro.- Então, vamos roubá-lo agora? - perguntou John.333- Meu Deus, não - disse Nimrod. - Nós estamos a fazer o que é conhecido no submundo do crime como articular um esquema. Estamos a avaliar o terreno, por assim dizer. Resumindo, estamos a dar uma boa vista de olhos ao local antes de concebermos um plano que nos permita apoderarmo-nos do ceptro.- Por que é que não fazemos desaparecer o vidro e agarramos no ceptro? - perguntou John. - Não deve ser muito difícil, com aquela racha no vidro.Nimrod olhou para John e depois moveu a cabeça na direcção da câmara de vigilância que estava no canto superior da sala.- Faça aquilo desaparecer também - disse John.- Meu querido sobrinho - disse Nimrod -, não te aconselhei a usares o teu poder djim com moderação? Não te avisei quanto ao preço a pagar pelo exercício desregrado da tua vontade? Sempre que possível, tentamos fazer as coisas do modo mundano. Além disso, neste caso em particular, usar o poder djim pode até ser bastante perigoso.- Perigoso? Como?

- Agora que sabemos ao certo que este ceptro contém os djins perdidos de Akhenaton, usar o poder djim tão perto dele pode ser arriscado para quem está lá dentro. Ou mesmo para nós. E, por isso, embora seja possível entrar no próprio MB usando o poder djim, para abrirmos este expositor acho que é melhor usarmos métodos de assalto mais convencionais. Arrombar e entrar.334- Tais como? - perguntou Philippa. Nimrod bateu ao de leve no vidro, para o testar.- Um maçarico - disse ele. - Este vidro é, na verdade,plástico. O que significa que, embora possa não partir muito facilmente, vai derreter como manteiga.- Óptimo - disse Philippa. - E, já agora, podemos usar camisolas pretas de gola alta? Tal como eles fazem nosfilmes, quando assaltam um sítio?Nimrod estremeceu.- Nós não estamos, como tu disseste, a planear assaltaro MB.- Mas estamos a planear entrar ilegalmente! - exclamou John.Nimrod lançou um olhar incomodado a alguns turistas japoneses que se

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estavam a fotografar uns aos outros, à frente de uma das múmias, e afastou-se do ceptro. - Podes falar um pouco mais alto? - sussurrou ele a John. - Acho que aqueles turistas japoneses não te ouviram bem.Nimrod olhou em volta da Sala 65, como se estivesseà procura de qualquer coisa. John seguiu o seu olhar.- De que é que o tio está à procura? - perguntou.- De um bom sítio para nos escondermos, quando voltarmos aqui mais tarde - disse Nimrod.- E a câmara não nos vai detectar?- Não, porque nós vamos estar dentro de algum tipode recipiente.335John virou a cabeça quando um dos turistas japoneses tirou uma garrafa de Coca-Cola de uma mochila e começou a beber.- Como uma garrafa de Coca-Cola, quem sabe - disseele.- Sim - concordou Nimrod. - Ninguém iria reparar numa garrafa daquelas.John atravessou a sala e curvou-se, como se quisesse veruma das múmias, só que o seu olhar estava pousado sobre o espaço entre o fundo do expositor e o chão alcatifado.- O Sr. Grunho bem que podia pôr uma garrafa con nosco lá dentro, sob uma destas múmias - sugeriu.- Sim - admitiu Nimrod, pensativo. - Talvez seja possível.Em seguida, passou o dedo indicador pelo rebordo de um expositor e examinou a sujidade que tinha acumulado,- A avaliar pela sujidade deste espaço, atrever-me- iaa dizer que só passados vários dias é que uma das pessoas da limpeza encontraria a garrafa.Nimrod levantou-se e cofiou o queixo, pensativo, enquanto considerava o plano de John.- Sim - começou, - nós voltaremos aqui, dentro de garrafa, pouco antes das cinco horas, que é quando o MB fecha. O Sr. Grunho colocará a garrafa por baixo deste pobre tipo e, mais tarde, depois de escurecer, nós transubstanciar-nos-emos e deitaremos mãos à obra.John estava entretido a ler a legenda do expositor.336

- EgÍpcio desconhecido da classe alta, Décima Nona Dinastia. Abanou a cabeça e prosseguiu.- Parece-me um pouco estranho acabar assim. Num expositor de vidro de um museu. Acho que eu não ia gostar de ter o mesmo fim. O pobre tipo nem sequer tem nome. E este que está ao lado dele também não. Na verdade, é um pouco triste.- Eu acho horrível - disse Philippa. - Todas estas pessoas tinham vidas. Amigos, pais, filhos. Eram iguais a nós, provavelmente. Bem, não exactamente como nós, mas vocês percebem o que eu quero dizer. Devia haver uma lei contra este tipo de coisas.- Eu acredito que haverá, um dia, se já não houver - observou Nimrod. - Parece haver uma lei contra tudo em Inglaterra, excepto contra ser-se ignorante ou estúpido. Mas, neste preciso momento, estou muito mais preocupado com os djins perdidos do que com os direitos humanos deste velho saco de ossos. Além disso, passados 5000 anos, não me parece que se possa ser muito exigente quanto ao sítio onde repousamos. Eu sempre preferi ser sepultado no mar e comido por peixes. Parece-me justo, tendo em conta a quantidade de peixe que eu próprio tive o prazer de comer. E, por falar nisso, está na hora do almoço.

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Depois de comerem caranguejo da Cornualha com molho e linguado de Dover, num restaurante onde Nimrod era bem conhecido, o tio comprou um maçarico na loja de ferragens local em Seven Dials e testou-o numa janela da sua estufa, ao lado da casa. Exceptuando o facto337de provocar um cheiro medonho a plástico queimado, a experiência correu bem e Nimrod demorou menos de quinze minutos a derreter um buraco do tamanho de prato raso, numa das janelas.- Espero que os guardas não tenham um olfacto apurado - disse Philippa. - Isso cheira muito mal.Por volta das três horas, John bebeu uma garrafa de Coca-Cola, que Grunho em seguida lavou escrupulosamente; e, depois de os gémeos se vestirem de um modo que achavam adequado para levar a cabo um assalto (com camisolas de gola alta, rostos enegrecidos e mochila - Nimrod, cuja única concessão à malvadez do seu projecto era usar um fato mais escuro e um chapéu preto de abas largas, transubstanciou-os directamente para a garrafa vazia.- Aqui têm - disse ele, entregando um comprimido de carvão a cada um. - É melhor tomarem um destes con primidos. É que podemos ficar aqui dentro várias horas!- Esboçou um sorriso. - Falando de uma perspectiva relativa, como é óbvio.- Esta é a parte de se ser djim de que gosto menos - admitiu Philippa, caminhando impacientemente à volta da circunferência do interior da garrafa.- Hás-de habituar-te - disse Nimrod. - E já experimentaste viajar de avião na classe económica nestes últimos tempos? Ou no metro de Londres? Se queres que te diga, o interior de uma garrafa de Coca-Cola é muito mais agradável. De qualquer modo, ainda não acabei de tratar nosso do bem-estar. Precisamos de uns assentos.338

Nimrod usou os seus poderes para criar três enormes cadeiras reclináveis, de couro, com cintos de segurança.- Eu uso sempre este modelo - adiantou. - São os mesmos assentos que existem na Primeira Classe da BritishAirways. São muito úteis para viajar. - Sentindo que a garrafa começava a mover-se, acrescentou: - A propósito, é melhor apertarem os cintos. Sei, por experiência própria, que o Sr. Grunho pode ser um pouco bruto quando está a manusear uma garrafa com djins. Isto deve-se ao facto de nunca ter estado dentro de uma garrafa, como é óbvio.John e Philippa berraram alto quando, de súbito, a garrafa começou a balouçar como um sino.- Ele está a caminhar até ao carro - informou Nimrod, rindo-se. - É o problema de só se ter um braço. Ele não pára de o balançar.- Eu acho que o tio lhe devia dar uma ideia de como é estar aqui dentro - disse John. - Quanto mais não seja, para o tornar um pouco mais atencioso, no futuro.- Oh, não, isso é impossível - disse Nimrod. - Pura e simplesmente, os mundanos não estão à altura de tal experiência. É provável que vocês não tenham reparado nisso, mas um djim não precisa de respirar muito quando ele ou ela está dentro de uma garrafa ou de uma lâmpada. Quando um djim está neste estado incorpóreo, pode sobreviver durante longos períodos de tempo quase sem ar.É um pouco como a morte aparente. Mas os mundanos morrem, não só devido à necessidade de inspirarem, mas339

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também à necessidade de expirarem. O que os mata é o dióxido de carbono, e não a falta de oxigénio. Por isso, nunca caiam na tentação de porem uma pessoa numa garrafa. É por isso que transformamos aqueles que nos incomodam em animais. Para eles poderem respirar.- A propósito - disse Philippa. - O que é que aconteceu ao frasco do Iblis?- Está no meu congelador - disse Nimrod. - Na casa do Cairo. É para o seu próprio bem. Os djins são um pouco como os lagartos. Ficam mais lentos quando está frio.- No congelador? - disse Philippa. - Isso não é um pouco cruel?- Não te estás a esquecer de uma coisa? - disse John.- Ele estava prestes a fazer-nos o mesmo. Ou talvez pior.- O teu irmão tem razão, Philippa - disse Nimrod. Não tenhas muita pena do Iblis. Ele não é boa peça. Manter o Iblis semicongelado vai impedi-lo de ficar zangado, pelo que, se alguém abrisse acidentalmente aquela garrafa, ele não começaria imediatamente a destruir à toa as coisas por aí. Os Ifrit são conhecidos pelo seu mau génio, mesmo nas melhores alturas. Já ouviram falar no Grande Fogo de São Francisco, em 1906, que foi causado pelo terramoto? Foi Iblis quem o começou. Mas não foi nada, comparado com o que o pai de Iblis, Iblis Sénior, fez em 1883. Destruiu uma ilha inteira perto da Indonésia. Um lugar chamado Cracatoa. A explosão foi tão ruidosa, que chegou a ser ouvida a 5000 quilómetros de distância; caíram cinzas em Singapura, mais de 800 quilómetros340a norte de Cracatoa, e a explosão provocou uma onda gigante com mais de trinta metros de altura. Morreram pelo menos trinta e seis mil pessoas.

Nimrod abanou a cabeça.- Decididamente, não. Não queiram estar por perto de um Ifrit que tenha acabado de sair de um longo período de prisão.Vinte minutos mais tarde, Grunho estacionou o Rolls Royce em Montagu Place e, transportando a garrafa de Coca-Cola no bolso do seu casaco, entrou no MB através da menos espectacular porta das traseiras. Mesmo nos melhores momentos, ele não gostava nada de ir ao MB, pois este lembrava-o de como tinha perdido o seu braço, havia mais de dez anos. Nunca conseguia passar pela porta de Montagu Street, ou mesmo pela entrada de Great Russell Street do MB, sem reviver os acontecimentos daquele dia terrível. O modo como os tigres tinham andado à solta na Sala de Leitura, rugindo bem alto, antes de saltarem sobre o balcão de empréstimos e atacarem o aterrorizado pessoal da biblioteca.Entretanto, a biblioteca tinha sido mudada para um horrível armazém de tijolo em St. Pancras, que Nimrod dizia ter todo o charme de uma casa de banho pública, mas a Sala de Leitura estava praticamente na mesma, excepção feita aos animais selvagens. E foi assim, com a memória dos rugidos terríveis dos tigres ainda a zumbir-lhe nos ouvidos, que Grunho subiu até ao primeiro piso, em direcção à Sala 65.341Na Sala das Múmias, andou de um lado para o outro com um ar de indiferença, como qualquer outro turista, antes de se ajoelhar e, fingindo apertar os atacadores, colocar a garrafa de Coca-Cola sob o tal expositor que albergava a múmia anónima. Seguidamente, deu trêspancadinhas na garrafa.Dentro da garrafa, as pancadas de Grunho pareciam um gongo zurzido com violência. Nimrod e os gémeos olharam para os seus relógios. Eram cinco menos um quarto e ainda faltavam várias horas para escurecer.- Vocês já estão no sítio indicado, precisamente onde me disseram - disse. - Vou-me embora.

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- Obrigado, Grunho - disse Nimrod. - Vemo-nos amanhã.Depois, Grunho saiu da sala, mas não sem antes dar uma vista de olhos ao ceptro e pensar que parecia mais um remo do que um ceptro, e que era extremamente difícil imaginar setenta formigas, quanto mais setenta djins, enclausuradas num objecto tão estranho.- Alguém quer tomar chá? - perguntou Nimrod, fazendo aparecer uma mesa de chá cheia de comida, no meio deles. Numa toalha de damasco branca e engomada havia sanduíches, scones, bolos, compotas, uma variedade de chás e Coca-Cola para os gémeos.- Eu não tenho muita fome - confessou John.- Tomar chá não tem nada a ver com ter fome - disse Nimrod. - Para os ingleses, é como uma hora canónica. E é um ritual quase tão importante como a cerimónia do342

chá, no Japão. Excepto num aspecto. Na cerimónia do chá, no Japão, entende-se que cada encontro entre seres humanos é uma ocasião singular que pode não ocorrer, e efectivamente nunca irá ocorrer, exactamente do mesmo modo. Assim, todos os aspectos da cerimónia devem ser saboreados pelo que esta dá aos seus participantes. Mas, em Inglaterra, a importância de tomar chá está ligada ao facto de este ritual ser sempre igual, e de poder acontecer vezes sem conta, hoje, como no futuro, exactamente do mesmo modo. Porque, se assim não for, como é que se avalia a resistência de uma grande civilização?- Eu também não tenho fome - declarou Philippa. A miúda estava a tentar ler o livro que Grunho Lhe tinha dado: The New Oxford Book ofEnglish verse.Nimrod emitiu um ruído de impaciência, como se desaprovasse veementemente a falta de interesse que John e Philippa pareciam ter em tomar chá.- Mais Fica para mim - disse ele avidamente, enchendo o seu prato com sanduíches de pepino.- Não sei como é que o tio consegue comer - disse Philippa.- É fácil - disse Nimrod. - Limito-me a pôr a comida na boca e a mastigar até estar pronta para engolir. - Pôs-se a olhar à sua volta para as paredes de vidro esverdeadas.- É claro que isto não é aquilo a que estou habituado. Uma garrafa de Coca-Cola. Normalmente, viajo numa garrafa atraente, feita de cristal de Veneza, e muito bem equipada. Tem um ginásio, um pequeno cinema, uma343cozinha, é claro, e uma cama magnífica. Chamo-lhe o Palácio Grotti'. É uma piada. Suponho que vocês não a conseguem perceber, mas não importa. Lembrem-me de vo-la explicar um dia destes. No entanto, temos de viver com o que temos, suponho.John abriu uma garrafa de Coca-Cola e bebeu-a, antes de se aperceber de como era estranho estar a beber Coca-Cola dentro de uma garrafa de Coca-Cola.- Aposto que nunca foi feito - disse para si mesmo.- Não sei como é que o tio pode estar tão calmo - disse Philippa a Nimrod.- Nós estamos a planear roubar o Museu Britânico e o tio está a falar sobre chá. O que vamos fazer não o deixa nem um pouco nervoso?- Oh, minha querida, isso é um pouco forte, não achas?- protestou Nimrod. - Nós não somos propriamente criminosos.- Eu sinto-me como uma criminosa - disse Philippa.- Quer-me parecer que isso é porque insististe em ter a aparência de um criminoso - comentou Nimrod servindo-se de mais chá. - Rostos

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enegrecidos, camisolas de gola alta, luvas de couro, sapatilhas? Se eu me vestiss assim chamava a polícia e pedia que me prendessem imediatamente. Vocês parecem estar mesmo desesperados!Nimrod tirou uma caixa de comprimidos do bolso das suas calças.344- Aqui têm. Tomem outro comprimido de carvão.O tempo passou muito depressa e, antes de darem por ela, eram nove horas e Nimrod estava a lembrar aos gémeos as vantagens de uma transubstanciação no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio no hemisfério norte, e a dizer que agora era seguro voltarem a materializar-se na Sala 65.- Suponho que as pessoas da limpeza já devem ter ido embora, por estas horas - comentou. - Se é que vieram. O MB já não é como dantes.- E as câmaras de vigilância? - perguntou John.Nimrod mergulhou as mãos no seu bolso e tirou um pequeno dispositivo electrónico, mais pequeno do que um rato de computador.

- É um pequeno aparelho que eu próprio concebi - disse ele. - Chamo-lhe o meu Filtro de Idiotas. Interfere com os sinais de rádio e de televisão. Costumo usá-lo nas pessoas que falam ao telemóvel nos comboios, para acabar com aquela tagarelice. Fi-lo para suprimir a minha tendência anterior, que consistia em tornar essas pessoas mudas durante algumas horas. Mas funciona perfeitamente com quase qualquer sinal de transmissão, como o de um circuito interno de televisão.Depois, Nimrod apontou para Oeste e continuou.- Philippa, quero que vás até àquela porta ali e fiques de guarda, caso alguém apareça pelas escadas, para ver o que se passa com a câmara. Não é que haja muita coisa que valha a pena roubar. Na verdade, não há muita procura de cadáveres com 5000 anos.345- Por favor, não fale nisso - disse Philippa. -Já estouassustada que chegue.-John, tu podes ajudar-me a descarregar o nosso equipamento.Nimrod montou o seu equipamento num dos lados dagaleria, à frente do expositor de vidro que albergava osceptros. No meio da sala havia outro expositor de vidrocom uma selecção de sarcófagos; e, no outro lado dagaleria, num terceiro expositor, estavam dezenas de múmias, incluindo várias múmias humanas - cadáveres mirrados e embrulhados em ligaduras cinzentas, empilhadosuns em cima dos outros, como os charutos de uma dascaixas humidificadoras de Nimrod. As Galerias Egípciaseram bem mais sinistras à noite do que durante o dia.As sombras pareciam mudar de posição, enquanto osreflexos silenciosos dos expositores de vidro pregavampartidas estranhas à imaginação, pelo que foram várias asvezes em que, tanto John, como Philippa, tiveram de olharpara uma peça duas vezes, para verificarem que esta nãose tinha movido. Mas não era só a luz ou a ausência destaqueatormentava as mentes dos gémeos: também os perturbava a sensação de estarem a realizar uma profanaçãoancestral, que a conversa mórbida de Nimrod, sobre oculto da morte egípcio, não tinha ajudado a esquecer.Philippa pôs os braços à sua volta, como se fossem umxaile.- Este sítio faz-me arrepios - disse ela.

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346- Devo admitir que há uma certa atmosfera aqui dentro- disse Nimrod, pegando no seu isqueiro. - Um destes velhos sarcófagos, acho que é o de ouro, tem a reputação de já ter contido a múmia que estava no Titanic. Com a respectiva maldição, como é óbvio.- Havia uma múmia no Titanic? - perguntou John passando-lhe o maçarico. - Não sabia.

- É verdade - disse Nimrod, acendendo o maçarico. A princesa Amon-Rá. O Titanic afundou-se, provocando a morte de mil e quinhentas pessoas e, na altura, em 1912, houve muita gente que atribuiu a culpa à múmia da Princesa. Na verdade, não é muito surpreendente, dado o número de pessoas que acabaram por morrer de um modo estranho depois de terem conhecido a Princesa Amon-Rá. Segundo consta, antes de a múmia sair desta sala, quando foi comprada por um coleccionador americano, os guardas-nocturnos e o pessoal da limpeza não ousavam aproximar-se do seu sarcófago. Afirmavam mesmo que conseguiam ouvir o som de alguém a martelar e a chorar dentro do caixão. - Nimrod riu-se com desdém. - É só uma história, como é óbvio. E, se eu fosse a vocês, não me preocupava com ela. Como disse, a sua múmia está no fundo do Oceano Atlântico com todos os passageiros do Titanic que não conseguiram sair do navio. Por isso, acho que ela não nos vai incomodar.- Isso é muito animador - ironizou Philippa.- Antigamente havia muito mais múmias humanas aqui dentro, como é óbvio - disse Nimrod. - As poucas347que estão expostas agora são apenas uma pequena selec ção de entre as muitas dezenas que o MB possui. A maioria está armazenada na caixa-forte da cave, creio eu. Estão escondidas, para não ofenderem as pessoas. Na verdade, não vejo por que é que as pessoas haveriam de ficar ofendidas. Afinal de contas, quando estamos mortos, estamos mortos. - Nimrod riu-se. - Não é que eles só tenham múmias humanas lá dentro - continuou. - Acho que tambémtêm algumas múmias de animais.Entretanto, abanou a cabeça.- Estou surpreendido por os tipos dos direitos dos animais ainda não se terem queixado.Enquanto Nimrod aplicava a chama azul do maçarico no vidro de plástico, à frente do ceptro, John voltou a dar uma espreitadela. Era verdade: havia gatos, babuínos, cães, crocodilos, falcões, cobras - e até uma enguia mumificada. John abanou a cabeça, impaciente.- Mas por que é que alguém haveria de querer mumificar uma enguia? - resmungou, tentando, sem sucesso, afastar a morte e as múmias do seu pensamento. Com o seu pavor de múmias, o cheiro do plástico a derreter, e a conversa arrepiante de Nimrod, o rapaz já começava asentir-se um pouco enjoado.- É claro - continuou Nimrod - que tudo em que os egípcios acreditavam sobre ressurreição foi inspirado por nós. Não que essas coisas tenham qualquer ponta de verdade, mesmo para nós, djins.Mas John mal ouvia o seu tio, pois parecia-lhe que uma das múmias se tinha movido muito ligeiramente.348Ou seria a sua imaginação? Passaram mais alguns instantes e ele disse para si mesmo que devia ter sido a sua imaginação, que os vapores do plástico a derreter lhe tinham afectado a cabeça, e que múmias com 5000 anos não se moviam, excepto nos velhos filmes de terror. Disse para si mesmo que estava em Londres, no século xxI e que as coisas mortas não

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podiam ressuscitar. E, por outro lado, aqueles guardas-nocturnos, que Nimrod tinha mencionado, deviam ter-se enganado. Era impossível a Princesa Amon-Rá ter sido enterrada viva e sobrevivido durante 5000 anos.

Mordeu o lábio, tentando controlar o tremor que afectava o seu queixo. Aquilo também era estranho; era como se o seu corpo já reconhecesse o que a sua mente se recusava a admitir. E foi então que qualquer coisa no expositor se voltou a mover. John pestanejou, esfregou os olhos e, voltando a olhar, apercebeu-se de que não tinha sido uma das múmias a mover-se, mas sim algo que vinha do interior da múmia e tinha a forma de um ser humano, mas que, de certo modo, era transparente, como se não estivesse mesmo lá. Por momentos, pensou que era o reflexo do maçarico no vidro do expositor da múmia, antes de se aperceber de que Nimrod já tinha desligado o maçarico e estava a agora a examinar o buraco do expositor que alojava os ceptros, perfeitamente alheio ao que estava a acontecer num dos expositores atrás de si.A forma levantou-se da múmia deitada e saiu do expositor. Era mais alta do que John pensava. E, por outro lado,349revelava-se agora bastante óbvia para o seu nariz, como se a emanação trouxesse consigo o cheiro imundo e pútrido de um túmulo ancestral, como um livro muito velho com humidade, bolor e, quem sabe, talvez algo bem pior.- Tio Nimrod - chamou, mal se atrevendo a tirar os olhos da figura alta e quase transparente que estava dentro do expositor das múmias. - Acha mesmo que é possível existirem fantasmas?- Oh, sim. Os fantasmas existem!- Então acho que é melhor o tio ver isto.350O REGRESSO DE AKENATONPhilippa estava à entrada da Sala das Múmias, a vigiar a escadaria ocidental e, como estava empenhada em cumprir a sua missão em condições, prestava pouca atenção ao que estava a acontecer atrás de si, na Sala 65. Quando ouviu o maçarico a ser desligado, pensou que o trabalho estaria quase terminado, e pediu a Nimrod que lhe fizesse o ponto da situação. No entanto, não recebeu qualquer resposta e, quando se voltou, viu que o caminho para a Sala das Múmias estava bloqueado pela silhueta azul eléctrica de um enorme babuíno macho com um ar bastante feroz, que caminhava na sua direcção, apoiado nos nós dos dedos.- Uau! - disse ela, engolindo em seco. - Que é isto? Philippa nunca tinha visto um fantasma, muito menos o fantasma de um babuíno, pois era disso que se tratava, mas manteve-se calma e resistiu à vontade momentânea de gritar de medo, pois não queria alertar os guardas do museu. Por isso, tanto ela como o babuíno fantasmagórico circundaram-se um ao outro cautelosamente, por um momento, antes de, grunhindo bem alto e mostrando351os dentes de um modo agressivo, o babuíno começar a aproximar-se de Philippa. Tentando controlar o seu medo, a rapariga recuou para o interior da Sala 65; porém, o babuíno não se mexeu, como se estivesse a guardar a entrada.- Tio Nimrod - chamou. - Está aqui um fantasma. Pelo menos, parece um fantasma. De um babuíno, achoeu. - Sim - disse Nimrod, num tom calmo e ponderado como se aquela notícia

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não o surpreendesse. - É um claero pitecus. Desconfio que seja de uma das múmias da sala.Tenta manter-te calma, minha querida.- Para si é fácil dizer isso - disse Philippa.Um crocodilo com o mesmo aspecto fantasmagórico juntou-se ao babuíno. E depois uma cobra.- Agora há mais - queixou-se ela. - Um crocodilo e uma cobra. E não parecem nada amistosos. Venha ver.

- Infelizmente não posso - disse Nimrod calmamente.- É que também há um fantasma aqui dentro. Philippa afastou-se dos animais fantasmagóricos, con tornando um expositor, e depois, olhando por cima doombro, viu Nimrod e John perfeitamente imóveis, como se estivessem presos ao chão da Sala 65. À primeira vista pensou que estivessem a olhar para alguma espécie de estátua feita de uma pedra reflectora em tons de azul, e só quando a figura se moveu é que ela se apercebeu, horrorizada, de que esta era quase transparente, e feita da mesma matéria insubstancial que os animais. E ficou com os cabelos em pé ao reconhecer a tal Figura fantasmagórica.352Pois o rosto sinistro e comprido do fantasma, os seus cruéis olhos amendoados, os lábios grossos, o queixo descaído, a sua enorme barriga asquerosa e as suas coxas gigantescas eram inconfundíveis.Tratava-se do fantasma de um faraó egípcio. O fantasma do rei herege, o próprio Akhenaton. John estremeceu. Talvez por ser um fantasma, Akhenaton parecia bastante mais assustador do que Iblis.- Põe-te atrás de mim, John - ordenou Nimrod. - Tu também, Philippa.Os gémeos obedeceram, sem hesitação.- Não há motivo para preocupação, mas não façam nadasem eu vos dizer.Com os gémeos atrás de si, Nimrod endireitou as costas e fitou o rosto do fantasma do rei.- Como é que vieste aqui parar? - perguntou Nimrod ao fantasma.A voz espectral que lhe respondeu começou como um gemido mórbido e sussurrado, como uma pedra mole desfeita em pó num chão de madeira, mas pouco a pouco foi ficando mais ameaçadora, à medida que se tornava mais forte.- Foste tu que me trouxeste para aqui, djim - disse o fantasma de Akhenaton. - O teu próprio poder djim evocou-me, a mim e aos meus. Durante quase dois séculos, jazi aqui neste lugar profano, despojado do meu nome e de todos os meus tesouros, adormecido e tão anónimo como as areias do deserto. Mas sabia que, um dia, um djim como tu viria a este lugar à procura daquilo.353O fantasma de Akhenaton apontou para o outro extremo da galeria, para o ceptro, que ainda estava noexpositor que Nimrod tinha perfurado com o maçarico.- O meu ceptro real e o poder secreto que ele contém.- Os lábios espessos e carnudos abriram-se, revelando umsorriso hediondo. - E, quando vieste, usei o teu própriopoder djim contra ti, para regressar.- Estiveste aqui este tempo todo e ninguém sabia quemtu eras? - perguntou Nimrod, recuando com as criançasquando o babuíno e o crocodilo se aproximaram.- Exactamente - disse o fantasma. - Quando vocêssurgiram daquela garrafa, estavam mesmo por baixo do

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corpo mumificado de Akhenaton. E o vosso poder djimchegou e sobrou para ajudar a fazer regressar o meu espírito da eternidade. O meu e o de muitas das minhascriaturas.

- Mas como é que conseguiste regressar? - perguntouNimrod. - Os djins não se tornam fantasmas. A não ser...- Nimrod fez uma pausa. - A não ser que o fantasmahumano de Akhenaton tenha sido possuído por um espírito djim.- Finalmente compreendes - retorquiu o fantasma deAkhenaton.- Começo a compreender - retomou Nimrod. foi a Princesa Amon-Rá que assustou aqueles guardas-nocturnos. Foste tu. Mas isso foi em 1910. Por que é que estiveste em silêncio durante todos estes anos?- Houve uma sessão espírita aqui. Em 1910. Veio aquioutro djim, secretamente.354- É claro. Harry Houdini.- Ele pressentiu que qualquer coisa estava mal e parou, antes de eu me poder manifestar. Mas tu trouxeste mais dois djins. Mais do que o suficiente para proporcionar o meu regresso.- Bem, foi um prazer - disse Nimrod. - E lamento ter de fazer isto depois de todos estes anos, mas está na altura de partires.Nimrod agitou as mãos no ar e depois proferiu a sua palavra de concentração, mais alto do que os gémeos alguma vez tinham ouvido.- QWERTYUIOP! Akhenaton riu-se.- Passados quinhentos mil anos, seria preciso mais do que um djim para me prender, Marid - sibilou o fantasma. - E há imensas maneiras de prender um djim, maneiras ancestrais, inconcebíveis na tua filosofia.Akhenaton lançou um olhar ao babuíno fantasmagórico.- Babi! - rosnou o faraó.Nimrod gritou de dor quando, de súbito, o babuíno deu um salto em frente e cravou os dentes na sua perna. E voltou a gritar quando o babuíno o perseguiu pela sala e Lhe mordeu a perna uma segunda vez. Num instante, o babuíno colocou-se ao lado do seu pérfido mestre e, obedecendo a uma ordem, deixou que uma gota do sangue de Nimrod escorresse dos seus dentes afiados para o pedaço de tecido coberto de hieróglifos, que Akhenaton segurava na mão.355- Agora só preciso do teu nome ancestral. - O fantasma de Akhenaton sorriu. - O teu nome Gemátrico, como lhe chamam hoje em dia.Cambaleante, afastando-se dos gémeos em direcção à porta, Nimrod gritou-lhes: -John, Philippa, fujam daqui!Porém, antes de eles se poderem mover, Akhenaton agarrou os gémeos.- Diz-me o teu nome ancestral, ou eu digo a Babi pararasgar os seus pescoços - ameaçou Akhenaton.- Não lhe diga, tio - gritou Philippa, o que fez com que o babuíno soltasse um grunhido furioso.Nimrod não hesitou.- É Nunmemtsadeedalet - respondeu. Akhenaton sorriu e libertou as duas crianças da prisão fantasmagórica dos seus braços. Depois, pegou num grande vaso canópico de um plinto e retirou-lhe a tampa com a forma da cabeça de um babuíno antes de o prender debaixo do seu braço.

- Fujam, meninos, fujam! - gritou Nimrod que, atacado pelo crocodilo e pela cobra, se debatia para afastar Akhenaton dos gémeos.- Vocês não têm poder suficiente para o defrontar. O fantasma de

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Akhenaton fitou John e Philippa com um olhar pérfido.- Eu voltarei para tratar de vocês os dois, quando tiver acabado de o engarrafar - ameaçou, perseguindo Nimrodsem pressa.Os gémeos trocaram um olhar de desespero.356- O que é que vamos fazer? - perguntou John. - Não podemos deixá-lo.Na entrada, Nimrod gritou de dor quando o crocodilo o mordeu pela terceira vez. O djim olhou à sua volta e viu o fantasma de Akhenaton acercar-se de si com o vaso canópico aberto. Tentou defender-se, mas sabia que não havia nada a fazer. Um djim mau a incitar um fantasma humano já era suficientemente tremendo, mas Akhenaton parecia ter a força de vários djins. Milhares de anos num túmulo não o tinham enfraquecido e Nimrod apercebeu-se, súbita e dolorosamente, de que estava a lidar com algo muito mais poderoso do que simplesmente Akhenaton. Akhenaton e os Ifrit anónimos que, outrora, o tinham controlado, deviam ter morrido ao mesmo tempo, pois os seus espíritos estavam agora entrelaçados.Akhenaton pousou o vaso canópico junto à cabeça de Nimrod.- Tu serás meu escravo - disse ele. - Para toda a eternidade.- Fujam - gritou Nimrod uma última vez aos gémeos. Um grito que se tornou num berro prolongado, à medida que as mandíbulas fantasmagóricas do babuíno se apoderavam do seu antebraço.No entanto, John e Philippa permaneciam na Sala das Múmias, com medo de ficar, mas também com receio de abandonar Nimrod a um destino terrível.- Akhenaton não disse que seria preciso mais do que um djim para o prender? - perguntou John, e, metendo357o braço no buraco que o maçarico de Nimrod tinha abertono vidro de plástico, pegou no ceptro e voltou-o nosentido do comprimento e tirou-o para fora. - Pois bem,há mais de setenta djins neste ceptro. Certamente que issoé mais do que o suficiente para enfrentar Akhenaton.- Mas, como é que sabemos se eles nos vão ajudar? perguntou Philippa. - Afinal, estes são os djins que outrora obedeciam a Akhenaton.- Um djim tem de cumprir a promessa que faz quandoé libertado - disse John. - A regra é essa.O rapaz começou a examinar a parte superior e maisespessa do ceptro com extremo cuidado, à luz da lanternade Philippa.- Mas, como é que o abrimos?Uma voz do interior do ceptro respondeu-Lhe e, por instantes, John quase deixou cair o objecto ancestral no chão.- Tens de dar vida a setenta - disse a voz. - Olha paraos escritos. Os escritos ajudar-te-ão.- Eu estou a olhar! - berrou John. - Mas não vejo comoisso possa ajudar.- Os hieróglifos - disse Philippa. - Ele está a referir-seaos hieróglifos. Olha, aquele círculo chama-se cartela e sócontém um símbolo: o an, que significa a vida. E achoque cada um destes símbolos que parecem a letra nH,sob aquela cartela, é um número dez.

- Tens razão - disse John. - São sete símbolos. Setevezes dez é igual a setenta. A resposta deve ser esta. Masxcomo é que levamos aqueles sete símbolos? 358

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Os dedos de John começaram a pressionar os hieróglifos. De súbito, sentiu um dos n", que equivaliam a um dez, a mudar de posição.- É como um puzzle - comentou. - Os hieróglifos movem-se.- Empurrou um dos dez para uma cartela e colocou-o ao lado de um anb.- Está a resultar - gritou.- Espera - alertou Philippa. - Ainda não extraímosuma promessa dos djins que estão dentro do ceptro.Então, falando para a voz do ceptro, John disse:- Ouçam, djins, eu libertar-vos-ei a todos, se prometerem destruir Akhenaton e trabalhar apenas para o bem.Sem hesitar, a voz respondeu:- Há três mil anos que esperamos pela vossa chegada,jovens djins. Aguardamos as vossas ordens.Entretanto, os dedos de John já estavam a deslocar ossete dez para a cartela que continha o anb da vida.John sentiu imediatamente que algo estava a acontecer.- Acho que resultou - referiu, largando instintivamenteo ceptro.O objecto manteve-se de pé sozinho e, por um momento, ficou imóvel, como uma cana petriFicada. Depois, como uma grande flor dourada, a parte superior do ceptroabriu-se, e uma enorme nuvem de fumo húmido e esverdeado começou a sair do objecto ancestral, em muitomaior quantidade do que quando Nimrod e os gémeostinham saído da garrafa de Coca-Cola. John pensou que359cheirava a bolor, e Philippa pensou que tinha o mesmo cheiro que o interior do túmulo de Akhenaton, no Egipto. O fumo com três mil anos encheu rapidamente a sala, activando o alarme de fumo, e depressa se tornou tão denso que era quase impossível os gémeos verem-se um ao outro. John agarrou na mão da irmã.Passado o que pareceu uma eternidade, o fumo desvaneceu-se repentinamente, revelando uma galeria repleta com os djins que eles tinham libertado do ceptro. dezenas de homenzinhos carecas e de olhos sombrios vestidos com os trajes brancos dos sacerdotes egípcios, exactamente iguais às figuras em baixo-relevo da parede do túmulo de Akhenaton, perto do Cairo. Cada homem juntou as suas mãos cheias de anéis, curvou-se delicadamente e exprimiu a sua reverência a John e Philippa, antes de todos formarem um círculo à volta de Akhenaton e dos seus animais fantasmagóricos. Depois, entoando cânticos numa língua que os gémeos não reconheceram, os setenta djins começaram a desejar colectivamente a sua derrota.- Parem! - gritou o fantasma de Akhenaton. - É umaordem!Porém, o cântico dos djins continuou, agora mais alto, formando um som arrepiante e assustador e, embora John e Philippa não percebessem nada do que era dito, era óbvio, pelos grunhidos histéricos do babuíno fantasma e das imprecações do próprio Akhenaton, que uma qualquer força poderosa estava a ser evocada. Foi nesta altura que

360um vento terrível pareceu soprar pelas galerias egípcias, dirigindo-se directamente para o centro do círculo, como se pretendesse arrebatar Akhenaton e levá-lo para um abominável limbo. O crocodilo bramia e o babuíno guinchava em histeria, à medida que o cântico e o vento pareciam combinar-se num crescendo profano.

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- Não - gritou o fantasma de Akhenaton. - Não! Foi um grito tão desesperado e deplorável, que Philippa quase teve pena dele.Quando, por fim, o vento parou e Akhenaton e os animais foram silenciados, os gémeos abriram caminho em direcção à entrada, onde tinham visto Nimrod pela última vez, na esperança de o encontrarem são e salvo, movendo-se por entre os corpos odorosos daqueles seres ancestrais que, pelo menos até John e Philippa os terem preso à sua vontade, tinham detido o equilíbrio de poder entre o bem e o mal. Os djins voltaram a curvar-se reverentemente à passagem dos gémeos. - Tio Nimrod - chamou John. - O tio está bem? Onde é que está? O vaso canópico de pedra calcária com a cabeça de babuíno jazia no chão, aos pés de um sacerdote djim queparecia ser o líder. Ele pegou no vaso, tocou-lhe com a sua testa e, curvando-se acentuadamente, entregou-o a John, com uma palavra. - Akhenaton - disse ele.- Ele está aqui dentro? O sacerdote djim meneou a cabeça afirmativamente.361Philippa olhou em volta da sala.- Mas onde está Nimrod? Onde está o nosso tio? O sacerdote olhou, por um momento, para o vaso canópico.- Não nos está a dizer que ele também está aqui dentro, pois não? - perguntou Philippa.O sacerdote djim voltou a menear a cabeça. John pegou no vaso e preparava-se para retirar a tampa, mas o sacerdote djim prendeu-lhe a mão e abanou a cabeça.- Akhenaton - disse ele. - Akhenaton.- Ele tem razão - disse Philippa. - Nós não podemos libertar o tio Nimrod sem também libertarmos Akhenaton. John ergueu o vaso à altura da sua cabeça e gritou: - Tio Nimrod? Consegue ouvir-nos? O tio está bem? Uma voz muito ténue, pois o vaso era muito espesso respondeu, como se estivesse muito, muito longe, mas nem John, nem Philippa conseguiram ouvir o que dizia. - O que é que vamos fazer? - perguntou John. Já se ouviam os berros dos guardas, subindo a escadaria ocidental. - Não podemos deixar o vaso aqui - disse Philippa. - Alguém podia abri-lo e deixar sair Akhenaton acidentalmente. - Bem visto - disse John. Os sacerdotes djins começaram a sentar-se no chão da Sala 65, como se estivessem à espera de ser capturados. - Vamos - disse John. - Tive uma ideia. 362Agarrou no filtro de idiotas e começou a caminhar na direcção contrária à escadaria ocidental.- Não há tempo a perder.

Era bem verdade. Alguns guardas já estavam a subir as escadas ladrilhadas a mosaico, e o seu espanto perante a descoberta do que pareciam ser setenta homens vestidos com aqueles pomposos e ancestrais trajes egípcios foi nitidamente audível.- Céus - disse um dos guardas. - De onde é que veio esta gente?- O que é que pensas que estás a fazer, Mustafá? - perguntou um segundo. - Isto é alguma espécie de manifestação? Ou é arte performativa?- Telefona para a polícia - disse um terceiro. - Telefona para o Ministério do Interior. Telefona para o Departamento de Imigração. Acho que estes tipos são estrangeiros.- Pode ser uma dessas insurreições espontâneas e despropositadas. - disse outro. Já li sobre essas coisas no jornal.

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Com tantos homens carecas bloqueando a entrada da Sala 65, os guardas não repararam na fuga dos gémeos rumo à colecção Grega e Romana.John conduziu Philippa para uma sala que albergava alguns vasos romanos e etruscos, mais pequenos e de menor interesse. Estava uma noite quente e havia bastante humidade no MB, e, graças à proximidade da sua irmã gémea, o rapaz sentiu que o seu poder djim não estava a363ser afectado pelo clima inglês. Por um momento, John concentrou-se muito no vidro, e depois proferiu:- ABECEDARI!Uma bela porta apareceu no expositor e, abrindo-a, Johncomeçou a reorganizar as peças expostas.- O que é que estás a fazer?- Vais ver. Traz o vaso.Philippa passou-lhe o vaso com o fantasma de Akhenaton e Nimrod, e John colocou-o muito cuidadosamente na parte de trás do expositor, sobre um plinto de madeira com uma etiqueta que dizia Vaso da Azilia, e que o rapaz tinha desocupado.- Eles nem vão notar a diferença - insistiu, relegando o verdadeiro vaso da Apúlia para o outro lado do expositor. Quando ficou satisfeito com as suas remodelações, fechou a porta.- Não teria sido melhor ter posto o vaso numa das galerias egípcias? - objectou Philippa.- Talvez - disse John. - Mas, o mais provável é que, por esta altura, as galerias egípcias estejam infestadas de guardas. Ainda para mais, é provável que eles passem vários dias a verificar os expositores, para ver o que foi roubado. Talvez até as fechem durante algum tempo. Ao passo que esta sala parece bastante tranquila.- Isso é tudo muito bonito - disse Philippa. - Mas onde é que nos vamos esconder?- Também pensei nisso - disse John, apontando para um vaso azul-cobalto que tinha um expositor só para si.364O rapaz já estava a usar o seu poder djim para criar. um pequeno buraco no cimo do expositor pelo qual eles se pudessem transubstanciar.- Mas nós nunca fizemos uma transubstanciação - disse Philippa. - Pelo menos, não sozinhos. E muito menos num clima frio.

- Não temos alternativa - insistiu John. - Ou fazemos isto, ou somos apanhados pelos guardas. E, se formos apanhados, é provável que sejamos enviados para casa e então o tio Nimrod ficará preso aqui durante muito tempo. Além disso, é um vaso bonito. E, caso não tenhas reparado, está uma bela noite de calor. Sinto-me forte. Acho que conseguimos fazer isto. -John pegou na mão de Philippa.- Mandamo-nos para dentro deste vaso e depois, amanhã, quando o rebuliço tiver acalmado e o caminho estiver livre, saímos, agarramos no vaso canópico do tio Nimrod e vamos para casa.- Por que é que não vamos para casa agora? - replicou ela.- Porque, com o fantasma de Akhenaton lá dentro, não podemos correr o risco de usar o poder djim com o vaso canópico - disse John. - Teremos de esperar até o museu reabrir amanhã de manhã, às dez horas, e depois tentar levá-lo furtivamente pela porta principal, dentro da minha mochila.Aprovando o plano de John, pois não lhe ocorria outro melhor, Philippa acenou em sinal de concordância. E, colocando-se à frente do vaso, os gémeos deram as365

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mãos e tentaram acalmar-se. Philippa começou a concentrar-se no vaso em que planeavam entrar.- Este é o vaso Portland - disse ela. - Feito por volta do início do primeiro milénio. O vaso foi desfeito em mais de duzentos pedaços por um jovem irlandês em 1845, mas hoje em dia é mais conhecido como tema de um famoso poema de John Keats intitulado Ode a uma Urna Grega". Oh, isso está no meu livro de poesia - disse ela, apontando para a sua mochila. - O que o Sr. Grunho me deu.-Já acabaste? - perguntou John, impaciente. O rapaz conseguia ouvir o som de cães-polícia a ladrar.- Sim - respondeu Philippa. - Estava apenas a tentarconcentrar-me no vaso.- Contamos até três?- Até três - concordou Philippa. - Não, espera. Temos de nos lembrar de entrar no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio.John lançou-lhe um olhar inexpressivo.- Hemisfério norte. Lembras-te? Tempo espacial. Para que o tempo dentro do vaso pareça passar mais depressa.John meneou a cabeça.- Contamos até três, então.Philippa retribuiu o aceno. - Até três.- Um. dois. três.- FABULONGOSO.- ABECEDAR!- MARAVILHOSIFANTtISTITICO!366NO VASO PORTLANDA noite dentro do vaso Portland pareceu bastante longa a John, e a verdade é que a sua irmã a tornou ainda mais longa. Assim que Philippa se sentou confortavelmente numa cadeira cor-de-rosa concebida por si, tirou o The New Oxford Book of English da sua mochila de assaltante, e começou a ler.- Como é que consegues ler numa altura destas? - perguntou John, andando de um lado para o outro no interior do vaso. - Depois do que aconteceu ao tio Nimrod.- Estou a tentar não pensar no que aconteceu ao tio - disse Philippa. - Se pensasse nele, chorava. O que é que preferes?- Tens razão - concordou John. - Continua a ler. Eu também precisava de me distrair um pouco.

Philippa leu em voz alta o primeiro verso do poema, inspirado pelo vaso Portland, que Keats escrevera:Tu, noiva ainda inviolada da tranquilidade, filha adoptiva do silêncio e de um lento passado, rústica historiadora que nos podes dizer um conto367Florido e mais belo do que o nosso poema: Que lenda cercada de folhagens assombra o teu contorno De deuses ou mortais, ou de ambos, nos vales da Arcádia? Que homensOu que deuses são estes? Que donzelas esquivas? Que perseguição desesperada e que luta para fugir? Que flautas e tambores? Que êxtase impetuoso?- Acho estranho que alguém tenha querido escrever um poema sobre um vaso velho e estúpido - declarou John.- Keats. O que eu sei é que ele poderia ter tido uma opinião bastante diferente sobre uma urna grega, se tivesse necessidade de passar uma noite dentro duma.- Não sei se teremos de passar a noite aqui dentro - disse Philippa. -

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Pelo menos em termos relativos.John lançou-lhe um olhar inexpressivo.- Nós entrámos no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, não foi?John fez que sim com a cabeça.- E, sendo assim, podemos presumir que o tempo no exterior do vaso vai passar mais rápido do que cá dentro.- Claro - disse John. - Nós só temos de ficar aqui durante dez ou quinze minutos e quando sairmos já deve ser de manhã. - Olhou para o seu relógio. - A todo o momento, teremos de sair daqui.- Espero ver o Sr. Grunho - disse Philippa. - Ele vai ficar preocupado se não conseguir voltar à Sala das Múmias para procurar aquela garrafa de Coca-Cola.368- Não tão preocupado como ficará se conseguir mesmo entrar, levar a garrafa para casa e depois descobrir que nós não estamos lá dentro.Encostando os ouvidos ao vidro, pois era disso que o vaso Portland era feito, ouviram com muito cuidado o som da sala, para descobrir se estava alguém lá fora.- Parece tudo bastante silencioso - disse John.- Ccch, continua a escutar - disse Philippa. - As pessoas são sempre silenciosas num museu. Se andassem por aí a fazer barulho, o mais provável é que lhes pedissem para sair.Outro minuto passou e eles continuavam a não ouvir nada.- Acho que devíamos arriscar - disse John. Agarrou na mão da sua irmã.- Estás preparada?- Sim.

O vaso Portland tem apenas vinte e cinco centímetros de altura. O vidro azul e fundo da parte principal do vaso é revestido com várias figuras humanas feitas de vidro branco. Estas figuras humanas são mitológicas: Posídon, Afrodite e, talvez, Páris, o grande guerreiro troiano; por causa destas figuras, o vaso tem um ar um pouco mágico, como se, de súbito, a cobra que Afrodite segura pudesse crescer e consumir o Cupido voador que paira sobre a cabeça da deusa. Ou, pelo menos; era o que pensava o estudante de arte que, naquele preciso momento, o estava a esboçar para o seu trabalho escolar.369Primeiro, perguntou-se se o fumo que brotava, enca pelado, do vaso não seria uma ilusão óptica, ou se não o estaria a imaginar, pois não havia dúvidas de que andava a fazer muitos serões para acabar um retrato para um cliente. Dizia-se que Van Gogh tinha enlouquecido por trabalhar de mais, e o estudante de arte disse para si mesmo que, se também ele estava a enlouquecer, pelo menos que fosse na companhia de alguém ilustre.O rapaz pousou o lápis e o bloco, tirou os óculos e esfregou os olhos, numa altura em que o fumo já tinha descido até ao chão, de um modo que parecia mais próprio de ectoplasma, que é aquilo de que algumas pessoas pensam serem feitos os fantasmas. O estudante recuou instintivamente vários passos do ponto onde imaginava que o vaso estivesse, pois o fumo tinha-se tornado bastante denso. Estava prestes a fugir da sala para dar o alerta quando o fumo se desvaneceu com uma rapidez invulgar e revelou duas crianças, de cerca de doze anos, trajadas de preto e de rostos enegrecidos por graxa, como dois pequenos ladrões.- Distrai-o enquanto eu vou buscar o vaso canópico - murmurou John pelo canto da boca.Philippa dirigiu um sorriso amável ao estudante, e, pegando no seu bloco de esboços, examinou o desenho

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com interesse.- Não está mal - declarou ela de modo amigável. Suponho que isto seja bastante difícil de desenhar.O estudante tirou o seu bloco a Philippa e abanou acabeça.370- Eu não sou talentoso. Se fosse talentoso, tudo seria diferente. Desejava muito ser talentoso.- Oh, estou a sentir-me um pouco esquisita - disse ela, sentando-se no chão.Mas Philippa já conhecia aquela sensação. Era a mesma sensação que tinha tido em Nova Iorque quando a Sra. Trump tinha desejado ganhar a lotaria.- Está bastante fresco aqui dentro.- Estás bem? - perguntou o estudante. - Queres que vá buscar um copo de água?- Não - disse Philippa. - Eu vou ficar bem. John aproximou-se e ajudou-a a levantar-se. A sua mochila parecia pesada com o fardo do vaso canópico. Philippa lançou-lhe um olhar inquisitivo e John meneou a cabeça em assentimento.- Estou bem - disse ela, dirigindo um sorriso amável ao estudante. - Senhor.- Finger - completou o estudante. - Frederick Finger. Philippa tocou no seu bloco e voltou a olhar para o desenho, reconhecendo a verdade inerente a tudo aquilo que ele próprio dissera. O desenho era de um artista com pouco talento. Só que agora tudo seria diferente. Ela tinha a certeza.- Bem, temos de ir embora - disse. - E, sabe, Sr. Finger? O senhor está errado. O senhor tem talento. Muito ta lento. Só que ainda não o descobriu. Aceite o meu conselho e procure-o novamente, amanhã. Acho que vai ficar surpreendido com a diferença que um dia faz.371

- Vamos - sibilou John. - Vamos sair daqui.- Concedeste-lhe um desejo? - perguntou John, quando eles estavam nas escadas.- Tu disseste que eu devia distraí-lo - rebateu Philippa.- Era exactamente isso que estava a fazer.- É um bocado maluco, se queres que te diga - disse John. - Por que é que alguém haveria de querer desenhar um vaso velho?- Ele é um artista. E isso é o que os artistas fazem.Alguns minutos mais tarde já eles estavam no exterior do MB, em frente a um quiosque, à procura de um táxi. E foi então que viram o cabeçalho do Daily Telegrap: 70 EGÍPCIOS ASSALTAM MUSEU BRITÂNICO, e uma fotografia dos vários sacerdotes egípcios a subirem para um furgão da polícia. Philippa comprou o jornal e leu a história em voz alta:- Setenta homens vestidos como antigos sacerdotes egípcios foram detidos na terça-feira à noite quando a polícia foi chamada ao Museu Britânico, após relatos de um assalto à Sala das Múmias, nas galerias do antigo Egipto. Não se sabe ao certo se os homens, que tinham todos a cabeça rapada, estavam vestidos como sacerdotes do antigo Egipto e falavam muito pouco inglês, se teriam reunido para protestar contra a exposição de cadáveres mumificados, alguns com vários milhares de anos, que foram retirados dos seus locais originais no início do século passado. Um porta-voz do Museu Britânico 372confirmou que vários artefactos de pequenas dimensões foram danificados

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ou estão desaparecidos. Um advogado dos homens, que parecem ser todos originários do Médio Oriente, embora até agora nenhum deles tenha sido identificado, disse ao Telegraph que os homens iriam pedir asilo no Reino Unido. Na quarta-feira, o Primeiro-ministro disse à Câmara dos Comuns que, se se viesse a saber que todos os homens tinham entrado no país ilegalmente, seriam deportados. Nos últimos anos têm havido vários apelos da parte de manifestantes, para que as múmias do Museu Britânico tenham direito a um funeral adequado. A Sra. Deirdre Frickin-Humphrey-Muncaster, do grupo de reivindicação Mães pelas Múmias, declarou que "este incidente evidencia um escândalo que existe há décadas, no Museu Britânico. Toda a gente tem direito a um funeral decente, independentemente do tempo e altura da sua morte". " Eu concordo com isto - disse Philippa. - Está na altura de aprendermos a respeitar um pouco mais as outras culturas.John soltou um gemido sonoro.- Não me fales em tempo - pediu, arrancando o jornaldas mãos de Philippa. - Olha.Apontou para o cabeçalho da primeira página.- Este é o jornal de quinta-feira a descrever os acontecimentos de terça-feira à noite. Nós devemos ter estado dentro do vaso durante cerca de trinta e seis horas!- Oh, não! - suspirou Philippa. - O Sr. Grunho deve estar muito preocupado.373Os gémeos chamaram um táxi e regressaram a Kensington Gardens, onde encontraram Grunho e o Sr. Rakshasas, ansiosos, à sua espera.- Céus, vocês deixaram-nos preocupados - disse Grunho.

- Eu nem sequer me consegui aproximar daquelas galerias egípcias ontem, pois estavam cheias de polícias. E logo de manhã, quando fui lá, não encontrei nada. Nem sequer a garrafa de Coca-Cola.Grunho franziu o sobrolho.- Onde está Nimrod?- É uma longa história! - exclamou John, contando- lhes o que tinha acontecido. Explicou-lhes que Nimrod estava preso no vaso canópico com o djim que tinha possuído o fantasma de Akhenaton, e que eles esperavam que o Sr. Rakshasas soubesse o que fazer a seguir. O velho djim ouviu atentamente o problema, examinou o vaso canópico que continha tanto Nimrod como o fantasma de Akhenaton, e depois abanou a cabeça com tristeza.- Façamos o que fizermos - disse o Sr. Rakshasas -, não podemos tirar a tampa deste vaso; senão, deixamos Akhenaton sair outra vez.E soltou um suspiro de resignação.- Pobre Nimrod.- Mas o tio Nimrod poderá tornar o espaço mais cómodo, não? - perguntou John.- Oh, ele não se atreverá a usar muito o seu poder - disse o Sr. Rakshasas. - Por temer que isso possa ajudar a fortalecer Akhenaton.374- Então o que é que vamos fazer? - perguntou Philippa.- Isto é bastante complicado - admitiu ele. - É difícil saber como comer o ovo sem partir a casca. Isto lembra-me os Doze Trabalhos que Euristeu encomendou a Hércules. Ou, já agora, o enigma da Esfinge. Sim, de facto é um enigma.- Isso já nós sabemos - contrapôs John pacientemente.- Mas, como é que vamos resolvê-lo?- Não sei - admitiu o Sr. Rakshasas. - Sinceramente, nunca me deparei

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com um problema como este. Nunca, em todos os meus anos de djim.- Deve haver uma maneira - insistiu John. - Hércules executou os Doze Trabalhos que lhe foram encomendados; e Édipo resolveu o enigma da EsFinge. Com certeza que nós conseguiremos resolver este problema, se nos concentrarmos.O Sr. Rakshasas meneou benignamente a cabeça.- As vossas mentes jovens são muito mais ágeis do que a minha - disse ele. - Um cachimbo velho tem o melhor fumo, mas um novo arde mais depressa. Pode ser que vocês se lembrem de alguma coisa. Porém, devo confessar que, pelo menos por enquanto, não me lembro de nada.- Vou fazer café - disse Grunho, que não gostava de ter de pensar muito quando estava a dar críquete na televisão.Philippa bateu ao de leve no lado da sua cabeça com o nó de um dedo indicador como se, de certo modo, 375pudesse extrair algum pensamento útil das partes menos usadas do seu cérebro.E isso pareceu dar resultado.- Quando estávamos dentro da garrafa - começou a rapariga, por fim, pois o pensamento demorou algum tempo a chegar à boca. - Nimrod disse uma coisa sobre Iblis. Qualquer coisa sobre os djins serem como os lagartos. Sobre como o seu sangue quente abranda com o frio.- Eu lembro-me - disse John.- Disse que tinha posto a garrafa que continha Iblis no congelador para o tornar mais lento. Estava a pensar.

E se levássemos o vaso canópico para um sítio muito frio e deixássemos que Nimrod e Akhenaton também arrefecessem? Então, quando eles estivessem ambos bastante entorpecidos, ou seja, quando o frio os tivesse abrandado o suficiente, podíamos abrir o vaso, ir nós próprios lá dentro e ajudar o tio Nimrod; e depois voltávamos a fechar o vaso antes de Akhenaton conseguir fugir.- Mas - objectou o Sr. Rakshasas -, uma vez dentro do vaso, vocês também ficariam frios; e, se assim fosse, os vossos próprios poderes acabariam por ficar muito enfraquecidos.- Podíamos usar fatos espaciais - propôs John, aprovando o plano de Philippa. - No espaço, a temperatura é zero absoluto, mas dentro de um fato espacial podemos ficar bem quentinhos. Assim, podíamos entrar no vaso sem sermos afectados pelo frio.- Grande ideia - aprovou Philippa. - Mas onde é que está suficientemente frio?376- Que tal no Pólo Norte? - sugeriu John. - Assim, se Akhenaton conseguisse fugir haveria menos hipóteses de alguém ser ferido. E de ele danificar alguma coisa.- Eu sempre quis ver o Pólo Norte - disse Philippa.- Eu também - disse John. - Esperemos que Nimrod consiga aguentar até chegarmos lá.377O LUGAR MAIS FRIO DA TERRAOs gémeos voaram para Moscovo com Grunho e a lâmpada do Sr. Rakshasas, na primeira etapa da suaviagem ao Pólo Norte. Assim que aterraram, um funcionário da alfândega russa, de semblante severo e carregado, pediu aos gémeos que abrissem as suas mochilas e, examinando o vaso canópico que continha Nimrod e o fantasma de Akhenaton, pediu-lhes que o abrissem.- Está tudo perdido - disse Grunho, afastando-se da

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cena como se não conseguisse olhar.Philippa proferiu a sua palavra de concentração, tão rápido quanto o seu comprimento lhe permitia; ela não se atrevia a usar o seu poder djim sobre o próprio vaso, mas pensou que provavelmente não haveria mal em usá-lo no funcionário da alfândega.- Abra, por favor - repetiu o funcionário. Philippa recuou um passo e apontou para o boné do funcionário com evidente repugnância. Franzindo o sobrolho, irritado, o funcionário tirou o seu chapéu e viu que, tal como muitas coisas no aeroporto Sheremetyevo, em Moscovo, este estava infestado de baratas. Soltou um grito de repugnância e deixou-o cair no chão.378

Aproveitando a clara distracção do funcionário, Philippa voltou a proferir a sua palavra de concentração, desta vez para criar um fac-simile perfeito do vaso canópico que continha Nimrod e o fantasma de Akhenaton, enquanto voltava a pôr o vaso original na sua mochila. E, assim que o funcionário se recompôs; ela tirou a tampa com a forma da cabeça de um babuíno do vaso e revelou um segundo vaso canópico, idêntico ao original mas mais pequeno; e, tirando a tampa deste, outro, e depois outro, e depois outro, até a mesa do funcionário ficar repleta de partes de baixo e tampas de mais de uma dúzia de vasos canópicos, exactamente como uma boneca Matriosca russa. Cansado daquela inspecção, e descobrindo mais uma barata a rastejar na sua nuca, o funcionário mandou-os prosseguir com um aceno, impaciente.- Credo - disse Grunho, depois de Philippa ter voltado a fechar a sua mochila. - Cheguei a pensar que estivesse tudo perdido, ali atrás. Achei mesmo que estivesse tudo perdido. E que iríamos todos para um campo de trabalho na Sibéria.- Foi um raciocínio rápido, Phil - disse John. - Muito bem. As baratas foram geniais. Onde é que foste buscar a ideia?Philippa apontou para o balcão de um café próximo, onde várias baratas se passeavam ociosamente sobre um pedaço de bolo abandonado.- Este sítio está infestado de baratas. Não me pareceu que, mais uma ou duas, parecessem desenquadradas no chapéu daquele tipo.379Com um par de horas de espera no aeroporto de Shere metyevo pela frente, a descoberta de uma praga de baratas pouco fez para os encorajar a comer em qualquer dos restaurantes, antes mesmo de embarcarem no seu próximo voo, com destino a Norilsk.De Norilsk, uma das maiores cidades do Círculo Árctico, voaram para Khatanga, na Península do Taimyr; e de Khatanga voaram mais uma vez para Norte, atravessando o Cabo Chelyuskin, o ponto mais a norte do continente euro-asiático, até à Ilha Srednij, onde pernoitaram. Srednij albergava um pequeno destacamento militar, alguns glaciólogos, muitas focas e quase tantos ursos polares. Os ursos eram uma maçada, conforme dissera um dos cientistas; para além de roubarem o lixo à noite, eram extremamente perigosos.Da Ilha Srednij voaram de helicóptero até à Base de Gelo - um campo de aviação situado sobre uma placa de gelo flutuante, que ficava a menos de cem quilómetros do Pólo Norte. Ali, os dias duravam vinte e quatro horas e as temperaturas estavam sempre bem abaixo de zero; enão havia nada para ver, excepto a neve que pisavam - que parecia apenas ligeiramente diferente do céu azul-acinzentado - as tendas de cores vivas onde passariam a sua segunda noite na Rússia, e um velho helicóptero militar que já tinha visto melhores dias, e que os levaria até ao Pólo Norte, no dia seguinte.

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- Não sei o que é que estou a fazer aqui - queixou-se Grunho, nessa noite, quando estavam sentados a tiritar380dentro da sua tenda própria para tempestades. - Não sei mesmo. Nunca saberei como é que fui capaz de deixar que me convencessem a vir para este sítio miserável. Isto é o último sítio na Terra onde quero estar, neste preciso momento. Confesso que pensava que o Egipto era mau, mas isto é bem pior. Para o Sr. Rakshasas não há problema. Ouso dizer que ele deve estar comodamente instalado dentro da sua lâmpada. Aposto que tem todo o conforto material. Mas não me importo de vos dizer que estou farto. Um homem da minha idade e com a minha incapacidade! Não fui feito para qualquer tipo de viagem em que possa acabar como almoço para o raio de um urso polar. Eu ouvi-os ontem à noite, a farejar os caixotes do lixo, lá fora. Não dormi nada. Não dormi mesmo nada.Philippa passou uma chávena de café quente a Grunho, na esperança de que ele parasse de rabujar.

- Olhem lá, vocês os dois - começou, puxando a barba que, entretanto, deixara crescer após chegar à Rússia.- De qualquer modo, para que é que vocês querem ir até ao Pólo Norte? Se querem que vos diga, o sítio onde estamos agora já é suficientemente frio para o vosso objectivo. Não vai estar mais frio lá do que está aqui. E o Pólo Norte nem sequer é um sítio em condições. Trata-se apenas de coordenadas da bússola num mapa, ou um coiso qualquer de navegação por satélite. Não é propriamente um local onde se possam tirar umas fotografias. Se eu agora tivesse três desejos.- Não - interveio John. - Não.381- Mas ele tem alguma razão - disse Philippa.- É claro que tenho razão. Por que é que vocês não abrem o vaso aqui? Hoje à noite. À meia-noite. Quando toda a gente estiver a dormir. Com vinte e quatro horas de luz solar, será tão fácil ver o que estamos a fazer, como o seria ao meio-dia.- De facto está bastante frio - disse Philippa. - E talvez seja melhor fazer isto mais cedo do que mais tarde, para bem do tio Nimrod.- Está bem.John tirou o vaso canópico da mochila de Philippa e levantou-se, cheio de intenção.- Onde é que vais agora? - perguntou Grunho.- Vou pôr o vaso lá fora, ao frio - explicou John. - Quero ter a certeza de que o fantasma de Akhenaton está praticamente congelado quando tirarmos a tampa desta coisa. Entretanto, é melhor dizer a Volodya que houve umapequena alteração nos nossos planos.O guia deles, Volodya, um homúnculo com óculos sujos e um bigode fininho e desgrenhado, ficou compreensivelmente desconcertado quando Grunho e Philippa lhe disseram que tinham mudado de ideias e que, na realidade, não queriam viajar até ao ponto geográfico - zero graus de latitude e de longitude - que assinalava o Pólo Norte.- Mas o vosso certificado de explorador? - insistiu ele.- Para dizer que vocês estiveram lá. E o vosso certificado?Philippa encolheu os ombros.382- É só a coordenada de uma bússola, não é? Nem sequer há lá uma bandeira ou qualquer coisa do género, pois não?- Posso reembolsar-vos - disse ele. - Se é isso que querem dizer.- Nós não queremos um reembolso - rebateu John.

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- Não, não é isso que queremos dizer. É só que o membro adulto do nosso grupo, o Sr. Grunho, já está farto.Volodya encolheu os ombros.- Vir até aqui e depois parar tão perto do destino. Parece um pouco estranho, mais nada. Mas vocês têm razão. Isto é tanto o Pólo Norte como qualquer local a cem quilómetros daqui. Cem quilómetros não são nada, aqui no meio do gelo.Depois, deu uma ligeira pancada na sua cabeça.- O Pólo Norte é um estado de espírito. Por isso, talvez eu vos dê mesmo o vosso certificado de explorador, não acham?- É esse o espírito - disse Grunho. - A propósito, Volodya. O que é o jantar?- Guisado de foca e gelado - disse Volodya, esboçando o seu sorriso desdentado. - É bom, não é?

- Outra vez, não - disse Grunho. - Nós comemos o raio desse guisado de foca ontem à noite. Foi como comer fatias de borracha quente.- Borracha - disse Volodya com um sorriso rasgado.- Muito bom, sim?383- Não - disse Grunho. - Não tens um bocado de urso polar, ou qualquer coisa assim?- Muito difícil matar urso polar - disse Volodya. - Mas muito fácil urso polar matar caçador.Volodya encolheu os ombros e voltou à carga.- Foca é melhor. E, claro, gelado russo.- Se tu o dizes - disse Grunho.- O que foi? Não gosta de gelado russo? Toda a gente sabe que gelado russo é o melhor do mundo.- Quem lhe disse aquilo? - perguntou Grunho, depoisde regressarem à tenda. - Mas quem é que lhe disse que o gelado russo era o melhor do mundo? É óbvio que ele nunca comeu gelado italiano. Esse é que é o melhor do mundo. Não é que o gelado inglês tenha alguma coisa de mal. Ou o gelado americano, já agora. Pelo menos, o nosso gelado tem ovos, leite e açúcar. O único ingrediente do gelado russo é praticamente o gelo.- O que é que isso importa, se acreditar nisso o deixa feliz? - perguntou Philippa.- Mas, simplesmente, não é verdade - argumentouGrunho.- Sim, mas o que é que isso importa? Quando se está aqui, no meio do nada, e não há mais nada para comer a não ser gelado russo, até deve ajudar pensar-se que o gelado russo é o melhor do mundo.Depois de jantarem na tenda grande que estava ao lado do helicóptero, Volodya jogou às cartas com a piloto do helicóptero, uma mulher tristonha chamada Anna,384cujos dentes eram quase tão maus como os de Volodya, e que tinha o hábito assustador de arrotar, de cada vez que perdia uma mão.- Se fosse eu - observou Grunho -, acho que era capaz de deixar a mulher ganhar algumas mãos. Ganharíamos todos, se ela tivesse um pouco de sorte, acho eu.- Estou mesmo inclinada a concordar consigo - disse Philippa e, proferindo a sua palavra de concentração, certiFicou-se de que Anna ganharia as quatro mãos seguintes, o que, como Grunho previra, melhorou bastante o ambiente da tenda principal.Cerca de meia hora mais tarde, Grunho e os gémeos foram para a sua

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própria tenda, e, enquanto Grunho foi dormir, John e Philippa esperaram acordados, à escuta até os dois russos pararem de jogar cartas e irem dormir, antes de acordarem Grunho e invocarem o Sr. Rakshasas da sua lâmpada. Com a sua barba branca e o seu fato de sobrevivência vermelho, era incontestável que, na neve, o Sr. Rakshasas se parecia exactamente com o Pai Natal.Enquanto os dois homens esperavam que os gémeos subissem para os seus fatos espaciais, olhavam fixamente para a paisagem deserta e gelada, tremendo de frio. Uma brisa gélida agitava a aba da tenda e, de vez em quando, o gelo movia-se de forma sinistra sob os seus pés, com um estalido sonoro.

- Isto é um sítio terrível - disse o Sr. Rakshasas, olhando em volta com tristeza.385- Concordo consigo - disse Grunho, içando a mochilaque continha o fato de sobrevivência de Nimrod para ascostas de John.- Digam-me, por favor - pediu o Sr. Rakshasas -, o queé este cheiro terrível?- Guisado de foca - disse Grunho. - Acredite no quelhe digo, por muito mau que seja o cheiro, não é nada,comparado com o sabor.- Cheira muito a carne - constatou o Sr. Rakshasas,enrugando ainda mais o seu nariz enrugado, com repugnância. - Eu nunca como carne. Pelo menos agora, coma minha idade. A carne é para os jovens. É preciso dentesbons e muito esforço metabólico para a digerir.- Quanto a isso, não sei - admitiu Grunho. - Masacredite em mim: não perdeu nada de especial. A comidaé horrível. E as tendas são de má qualidade. Nem queropensar se aquele helicóptero estará em condições de voar.A única coisa que se está a dar bem, aqui, é a minhabarba.- Costuma dizer-se que, no Inverno, o leite sobe paraos cornos da vaca - comentou o Sr. Rakshasas.Depois de os gémeos terem trepado para os fatos espaciais, excedentes da NASA, que John tinha comprado noHarrods, ele e a irmã saíram da tenda e enfrentaram anortada cortante, sentindo-se tão quentes como uma torrada. Grunho e o Sr. Rakshasas seguiram-nos.- Um pequeno passo para o homem - troçou o miúdo,- Um salto gigante para humanidade.386John foi buscar o vaso canópico ao sítio onde o tinha deixado, na neve, e apontou para o vazio.- Vamos afastar-nos das tendas - gritou aos outros para se fazer ouvir de dentro do seu capacete espacial.- Não vá alguém ouvir-nos.A comunicação entre ele e Philippa era mais fácil, pois os seus capacetes estavam equipados com microfones radiofónicos.E ainda segurando o vaso por entre as luvas cor de laranja do fato espacial, o rapaz caminhou cerca de cem metros para norte do acampamento.- Acho que este sítio é tão bom como qualquer outro- comentou, olhando para cima, enquanto qualquer coisa leve e fofa flutuava pelo ar e aterrava no visor do seu capacete. Estava a começar

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a nevar - flocos de neve do tamanho de pires.John contava conseguir completar a sua missão antes que o vento começasse a soprar mais forte e eles se deparassem com uma tempestade de neve, o que tornaria tudo ainda mais difícil. Pousou o vaso canópico na neve e recuou um passo.O Sr. Rakshasas ajoelhou-se ao lado do vaso e colocou a sua mão enluvada sobre a tampa com a forma da cabeça de um babuíno.- Esperarei até vocês começarem a transubstanciar-se, antes de retirar a tampa - gritou ele, sobrepondo-se ao vento crescente. - Se desconfiar que Akhenaton é o primeiro a tentar sair do vaso, volto a tapá-lo imediatamente. Perceberam?387

- E como é que o senhor pode saber isso? - perguntou Philippa.- Um escaravelho reconhece outro escaravelho - disse o Sr. Rakshasas, sorrindo. - Eu saberei distinguir se é Nimrod, ou não.John e Philippa levantaram o polegar e depois deram as mãos.- Vocês têm de se agarrar um ao outro juntamente com Nimrod antes de se começarem a transubstanciar - continuou o Sr. Rakshasas. - E em caso algum deverão transubstanciar-se se Akhenaton vos estiver a tocar. Isso seria extremamente perigoso para vocês os três.Os gémeos voltaram a levantar o polegar.- Vou fazer uma contagem decrescente - disse o Sr. Rakshasas.-Três... dois... um...- FABULONGOSO.- ABECEDAR!- MARAVILHOSIFANTáSTITICO!O ar frio à frente dos seus capacetes transformou-se em fumo, e o Sr. Rakshasas levantou a tampa do vaso canópico. A última coisa que os gémeos viram, antes de o fumo contrário ao sentido dos ponteiros do relógio os envolver e transportar para o vaso, foi um urso polar gigante a correr, esfomeado, na sua direcção.Algures no espaço entre o exterior e o interior do vaso,John comentou:388- Um urso. Viste aquilo? Um urso polar enorme. Deve ter sentido o cheiro do guisado de foca.- Pelo menos há alguém que o aprecia - disse Philippa.- O que é que achas que eles vão fazer?- Isso depende da capacidade do Sr. Rakshasas usar o seu poder djim - disse Philippa, enquanto o fumo desvanecia, e eles davam por si no interior do vaso canópico semi-congelado. - O mais provável é tentarem fugir.Vestido com um casaco de pele espessa, um chapéu, luvas e botas de pele, Nimrod estava sentado no chão do vaso, encostado a uma parede inclinada de pedra calcária, com os joelhos encostados ao peito. O seu cabelo estava tão rijo como uma escova de arame e não havia qualquer vestígio de respiração saindo da sua boca e das suas narinas. No lado oposto do chão estava uma figura que, à primeira vista, lhes pareceu uma peça de arte moderna: uma silhueta brilhante, azulada e semi-transparente da mesma figura grotesca que tinham visto no Museu do Cairo. Era o fantasma de Akhenaton, também ele congelado.Os gémeos ajoelharam-se junto ao seu tio e espreitaram para o seu rosto branqueado pelo gelo. Nimrod permaneceu imóvel, e não mostrou qualquer sinal visível de que se apercebera da presença dos gémeos ao seu lado, no vaso canópico. Os seus olhos castanhos, normalmente calorosos e brilhantes, estavam imóveis e abertos e, mesmo quando John lhe tocou

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com uma mão enluvada, o corpo do tio estava duro, como se estivesse 389completamente congelado. Por momentos, ambos os gémeos ficaram em silêncio.- Está morto? - sussurrou John.

- Se ele não fosse o que é, diria que sim - respondeu Philippa, mordendo o lábio, receosa. - Mas como estar dentro de uma lâmpada ou de uma garrafa é o mesmo que a morte aparente, e fora do normal continuum espacio-temporal, o que implica que, enquanto estamos aqui dentro, nenhum de nós está vivo no verdadeiro sentido da palavra, não vejo como é que ele possa estar morto.- Diz isso outra vez - pediu John. - Não, pensando melhor, não o repitas. Não me parece que o meu cérebro aguente.- O que quero dizer é que ele não está morto, porque não está realmente vivo aqui dentro. Temos de o tirar daqui e aquecê-lo, e depois teremos uma ideia mais precisa quanto ao seu estado de saúde.De súbito, o vaso oscilou de modo precário e os gémeos olharam para o fantasma congelado de Akhenaton, para verem se tinha sido ele o responsável; mas o faraó não se tinha movido; e, passado um instante, uma lufada de ar invadiu o vaso.- O urso - gritou John. - Está a cheirar o vaso para ver se tem alguma coisa para comer.Outra lufada de ar invadiu o vaso, e os olhos perspicazes de Philippa viram a ponta de uma madeixa do cabelo congelado de Nimrod dobrar-se um pouco, antes de se transformar numa gota de humidade.390- Ele está a derreter - gritou a criança, levantando-se do chão do vaso e, Fitando o rosto do seu tio, pareceu- Lhe que a pupila de um dos seus olhos se tinha contraído ligeiramente. - Ele está vivo. Está vivo.John verificou o indicador da temperatura exterior do seu fato espacial.- Isso é porque a temperatura cá dentro está a subiradiantou. - Olha! O bafo quente do urso está a aquecer o interior do vaso.Antes de acabar de falar, John voltou-se e, lançando um olhar ansioso a Akhenaton, viu que o fantasma djim do Faraó também estava a derreter; e mais rápido do que Nimrod, pois, na verdade, os fantasmas, mesmo os fantasmas djim do Egipto, têm uma maior tolerância ao frio do que qualquer djim. Não havia dúvida; os olhos amendoados de Akhenaton começavam agora a abrir-se, como se estivessem a despertar de um sono longo e profundo.- Não há tempo para pormos o tio Nimrod num fato de sobrevivência - disse John. - Temos de sair daqui agora mesmo, enquanto ele ainda está congelado, e antes que Akhenaton recupere os sentidos.- E o urso polar? - perguntou Philippa. - Ele podeatacar-nos.- Teremos de correr esse risco. Acho que não temosalternativa. Esperemos que o fumo da nossa transubstanciação o confunda durante o tempo suficiente para nos lembrarmos de alguma coisa.391John agarrou na mão de Nimrod e depois na da sua irmã.- Estás pronta?- Sim.- Vamos!- FABULONGOSO.- ABECEDAR!- MARAVILHOSIFANTÁSTITICO!

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Alguns segundos mais tarde os três estavam lá fora, deitados na neve a apenas escassos metros de distância do urso que continuava a enfiar avidamente o nariz no vaso, aparentemente convencido de que havia qualquer coisa boa para comer lá dentro. O Sr. Rakshasas e Grunho tinham desaparecido.O calor do poder djim combinado dos dois gémeos e da sua transubstanciação foi o suficiente para reanimar Nimrod um pouco mais, após o que ele soltou um sonoro e involuntário gemido. Ouvindo isto, o urso voltou-se e viu-os.- Uh-oh - advertiu John, levantando-se. Era óbvio que o urso polar estava prestes a atacar. John tinha poucos segundos para decidir o que fazer.O enorme urso polar nunca tinha comido um ser hu mano, ou mesmo um djim, mas certamente que estava disposto a experimentar aquela carne nova. Com o seu nariz preto como carvão aspirando o ar entre ele e a sua presa, o urso começou a correr em direcção aos três djins, rugindo bem alto.392Não havia muito tempo para pensar. Ou mesmo para se concentrarem muito bem. Foi a primeira coisa de que John se lembrou. Lembrou-se do dia em que Nimrod os tinha levado para o deserto, para experimentarem as suas palavras de concentração, e da primeira coisa que tinha criado com a sua nova palavra de concentração. Um piquenique.- ABECEDAR!Um enorme piquenique, completo com uma manta de xadrez escocês e um cesto apareceu imediatamente à frente do urso polar que se preparava para os atacar. E não era um piqueniquezito qualquer. Aquele era, nada mais, nada menos, do que o campeão mundial de pesos pesados dos piqueniques, para o campeão de pesos pesados dos ursinhos de peluche, com fiambres, perus assados, carneiro frio, um salmão cozido inteiro, várias dezenas de sanduíches, dois enormes pães-de-ló, um cheesekake e quatro garrafas grandes de limonada. John não sabia se os ursos polares bebiam limonada. Não que isso parecesse ter muita importância porque, mal acreditando na sua sorte, o urso polar travou com as suas enormes patas, cheirou um dos fiambres, lambeu as costeletas e sentou-se para comer.- Br-br-br-bravo - rouquejou Nimrod.- Ufa - disse Philippa. - Esta foi por pouco.- O-o-o-vaso - disse Nimrod, com os dentes a bater violentamente. - P-p-p-p-ponham a t-t-tampa no v-vaso. Com o urso a comer tão alegremente e quase sem prestar atenção aos três djins, embora passando ao largo da393criatura, não fosse ela pensar que ele pretendia participar no seu piquenique, John correu rumo ao vaso canópico abandonado. E, pelos vistos chegou mesmo a tempo, pois um fumo fino e azulado começava já lentamente a surgir perto do topo do vaso, como o fumo de um cigarro apagado, e John supôs que fosse o próprio fantasma de Akhenaton a tentar levar a cabo a sua própria fuga semi-congelada. Mas onde é que estava a tampa com a forma da cabeça de um babuíno do vaso canopo? Como era feita de pedra calcária branca não era propriamente a coisa mais fácil de encontrar naquele chão coberto de neve.- Vamos, vamos - disse ele, motivando-se a si próprio para a encontrar antes que Akhenaton conseguisse fugir. Tirou o seu capacete na esperança de que, sem o visor cor de laranja, conseguisse ver a tampa com mais nitidez.

Estava ainda a vasculhar o solo quando, a trinta ou quarenta metros de

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distância, um grande monte de neve se moveu e, por alguns instantes, John pensou que pudesse ser um segundo urso polar; depois, do interior da neve, que revelou ser uma espécie de iglu, emergiu o Sr. Rakshasas, seguido por Grunho.- É disto que estás à procura? - perguntou Grunho, atirando a tampa do vaso canópico a John. Para alguém com um braço normal, o lançamento teria sido difícil; mas, para o único e bem desenvolvido braço de Grunho, foi canja, e a tampa do vaso silvou na direcção da luva estendida de John, como um enorme disco de hóquei.394No preciso momento em que o apanhava, John mergulhou em direcção ao vaso canópico aberto. Conseguiu alcançar o vaso mesmo a tempo e fixou a tampa com força sobre o mal que se preparava para emergir do seu interior. Por instantes, sentiu alguma resistência sob as suas mãos enluvadas, até que tudo ficou quieto.O Sr. Rakshasas e Grunho ajudaram-no a levantar-se.- Foi bem apanhada, meu rapaz - disse Grunho. - Belo movimento. Davas um bom jogador de críquete.- Foi um belo lançamento - devolveu John.- Eu costumava jogar, quando era novo - disse Grunho.- Parabéns - disse o Sr. Rakshasas. - Acho que chegaste mesmo a tempo. Mais um segundo, e Akhenaton teria fugido.- O que é que aconteceu quando o urso apareceu? perguntou Philippa. - Estávamos preocupados convosco.- Quando o urso apareceu? - disse o Sr. Rakshasas. Usei os meus muito limitados poderes djim para criar um iglu à nossa volta. Foi a única coisa que me ocorreu na altura.- E foi mesmo a tempo - disse Grunho. - Se não fosse o iglu, nesta altura já estaríamos na barriga daquele urso.Cautelosos, olharam todos na direcção do urso polar que,felizmente, continuava a ignorá-los enquanto começava a comer o salmão.Não há nada de que um urso mais goste do que salmão.E, sendo assim, também eles passaram ao largo do urso,395enquanto seguiam Philippa e Nimrod em direcção ao acampamento.- Como é que se sente? - perguntou John a Nimrod, quando chegaram ao acampamento.- Não muito mal - disse Nimrod. - Graças a ti e a Phil. Nunca nenhum tio teve sobrinhos tão corajosos. Vocês são uma honra para toda a raça djim.- O que é que lhe vamos fazer? - perguntou John, apon tando para o vaso canópico que ainda segurava nas mãos.- Sim, tens razão - disse Nimrod. - Não me sentirei bem enquanto não destruirmos aquele espírito grotesco.Cerca de uma hora mais tarde, depois de recuperar os poderes djim no calor da sua tenda, Nimrod prendeu o vaso com um cesto de fio de titânio e deixou-o cair no buraco profundo que tinha aberto até ao Oceano Árctico.- Pronto - disse. - Acho que é a última vez que vemos o fantasma de Akhenaton.- Espero que sim - disse Philippa.

- E agora - disse Nimrod -, se não se importar, acho que está na altura de eu entrar na sua lâmpada, Sr. Rakshasas. Preciso de um banho quente, de uma chávena de chá e, depois, uma boa noite de sono. Não fazem ideia de como foi cansativo estar dentro daquele vaso infernal. A lutar contra o espírito maléfico de Akhenaton, de manhã à noite. Estou

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exausto.- Há quem tenha sorte - queixou-se Grunho, depois de Nimrod e o Sr. Rakshasas entrarem na lâmpada de396bronze. - Há quem tenha mesmo muita sorte. - Quem me dera poder tomar um banho quente e beber uma bela chávena de chá.- E porque não? - disseram eles.Por muito incrível que parecesse a Volodya, antes de partirem para a Ilha de Srednij e depois para casa, Grunho passou a sua última hora na Base de Gelo dentro da tenda a beber uma chávena de chá e a tomar o melhor banhoda sua vida.397EPÍLOGO De regresso a Londres, a grande notícia era que os djins perdidos de Akhenaton, que agora eram mais conhecidos como os Setenta de Bloomsbury, tinham sido deportados para o Egipto. Isto deixara-os extremamente felizes já que, depois de vários milhares de anos, tinham todos muitas saudades do seu próprio país e da vista das pirâmides. Entretanto, uma vaga de calor abatera-se sobre a cidade, para enorme satisfação dos gémeos. Com temperaturas na casa dos quarenta graus, Londres estava quase tão quente como o Cairo e, durante o pouco tempo que restava antes de regressarem a Nova Iorque, John e Philippa puderam aproveitar as temperaturas quase desérticas para continuarem o seu treino de djins, sob a hábil tutela de Nimrod. Começaram a aprender como desfazer três desejos, como viajar para lá dos limites dos seuscorpos, e como detectar outros djins; aprenderam maiscoisas sobre história djim, e bastante mais sobre as Regras de Bagdade, com o Sr. Rakshasas; e também aprenderam a jogar astaragli.398- Qualquer djim que se preze aprende a jogar artaragli- explicou Nimrod. - É um velho jogo de dados, inventado há dois ou três milénios, que foi concebido para minimizar o efeito da sorte. Sete dados hexagonais são lançados dentro de uma caixa com uma tampa, sem que ninguém os veja, e oferecidos ao jogador seguinte com o repto de executar uma jogada melhor do que a anterior. Sempre que uma jogada é desafiada, o apostador ou o receptor perdem um desejo, consoante essa oferta seja genuína ou mentira. É a habilidade e capacidade de fazer essa aposta, seja ela verdadeira ou falsa, que diminui o efeito da sorte. Hoje em dia, apenas os djins jogam este jogo, mas tempos houve em que até os romanos o jogavam. Contudo, creio que ainda é jogado por alguns humanos na Alemanha, onde Lhe chamam Unzuabrbeit Notluge, que, como por certo saberão, quer dizer Mentiras Inocentes", em alemão.Os gémeos afeiçoaram-se ao jogo com entusiasmo e revelaram ser particularmente subtis em estratégias de oferta, de tal modo que Nimrod Lhes disse que deviam pensar em entrar no próximo Torneio dos Estados Unidos, que iria ter lugar, ainda nesse ano, em Chicago, muitas vezes considerada a cidade mais azarada da América.- Como participantes do torneio de juniores, será uma

óptima oportunidade para conhecerem outros djins da vossa idade - disse Nimrod -, bem como para ver o Grande Djim Azul da Babilónia, que normalmente está presente na qualidade de Árbitro Supremo.399- O tio vai estar lá? - perguntou John.- Nunca falto.- Então, gostaríamos de participar - disseram eles.

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- Nesse caso, aconselho-vos a praticarem muito - disse Nimrod. - É a única arena em que as seis tribos de djins se encontram em condições de absoluta neutralidade e, por motivos óbvios, a competição é feroz.Em breve, aliás cedo de mais, chegou a altura de partirem para Nova Iorque num voo da British Airways. Muita coisa tinha acontecido durante aquele tempo, mas Nimrod aconselhou-os a não contarem a maior parte dospormenores aos seus pais.- Digam-lhes que foram ao Egipto e que se divertiram imenso - explicou Nimrod, enquanto Grunho os levava ao Aeroporto de Heathrow. - A diversão é umacoisa boa. Os pais gostam que os seus filhos se divirtam. É o que se espera de jovens como vocês. Mas assaltar o MBe viver aventuras quase fatais no Circulo Árctico é algo completamente diferente. Nenhum pai quer saber que oseu filho quase foi comido por um urso polar. A vossa mãe vai ter imensas suspeitas, como é óbvio. Ela pode ter renegado os seus poderes djins, mas com certeza que deve ter sentido a mudança na homeostasia que a conquista dos djins perdidos de Akhenaton para o lado da sorte provocou. Graças a vocês os dois.Depois, digam-lhes que visitaram muitos museus. O que é verdade. E que viram muitas coisas interessantes, como as pirâmides. Os pais mundanos gostam de ouvir400histórias de museus e de como são interessantes. Melhor ainda, comprem mais alguns livros e leiam-nos. Olhem que isto é uma ordem.Nunca é demais ler livros. Quantos mais, melhor. Leiam jornais, também. Comecem a aprender a tocar piano. É assim que dois jovens djins se devem comportar quando têm um pai humano.Por outras palavras, tentem ser mundanos. Sejam tão mundanos quanto possível para dois jovens djins. Isso significa não conceder desejos às pessoas, Philippa. Se ouvirem alguém a formular um desejo, respirem fundo, contem até cem e, enquanto o fazem, tentem reflectir sobre se a vida daquela pessoa seria mesmo melhor, se aquilo que mais quer, no mundo, lhe fosse dado de mão beijada. Acho que nunca ninguém exprimiu melhor esta ideia do que você, Grunho. - Obrigado, senhor.- Lembre outra vez aos gémeos aquilo que disse,Grunho.- Tenham cuidado com o que desejam - disse Grunho.- Não porque o venham a ter, mas porque estão condenados a deixar de apreciar tal desígnio mal este seja concretizado.- Não se preocupe - disse Philippa. - Nós já pensámos numa maneira de os deixar mais descansados quanto ao nosso regresso ao número 7 da East 77th Street.E, depois dos gémeos Lhes terem contado o seu plano, Nimrod concordou que, para além de serem jogadores401

de astaragli bastante promissores, provavelmente teriam também carreiras no serviço diplomático pela frente.- Vou ter saudades vossas - disse Nimrod, quando chegaram ao aeroporto.- Não tantas saudades como nós teremos de si - disse Philippa abraçando Nimrod e limpando uma lágrima do canto do olho.- Promete que nos vem visitar em breve? - perguntou John, sentindo-se, ele próprio, um pouco choroso.- É claro. Eu disse que ia a Chicago, não disse? Para o torneio de astaragli. - Nimrod pegou no seu lenço vermelho e assoou o nariz.

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Quando chegaram a Nova Iorque, os gémeos foram recebidos pelo motorista do seu pai, e foram directamente para a sua casa de Verão de Quogue, em Long Island, devido ao feriado americano do Dia do Trabalhador.O Sr. e a Sra. Gaunt ficaram muito satisfeitos por voltarem a ver os seus filhos; e é claro que os gémeos também ficaram muito satisfeitos por vê-los, pois só então se aperceberam das saudades que tinham sentido deles e de como os amavam. O Sr. Gaunt ficou particularmente encantado por ver os seus filhos tão atenciosos e interessados em cultura, e até parecia ter ultrapassado o medo de John e Philippa, e esquecido o motivo pelo qual eles agora tinham uma governanta que todos os dias vinha trabalhar numa402limusina, e que usava um colar de diamantes Tiffany, enquanto lavava o chão da cozinha.Os dois rottweilers, Winston e Elvis, anteriormente conhecidos como Alan e Neil, também ficaram bastante satisfeitos com o regresso dos gémeos, e, com o tempo, John e Philippa esqueceram-se de que, outrora, estestinham planeado assassinar o seu pai.Eram apenas os dois dedicados animais de estimação da família e sempre se comportariam como tal, enquanto fossem cães.É claro que a sua mãe, Layla, pressentiu que os gémeos não lhe estavam a contar tudo o que lhes tinha acontecido. Sendo, ela própria, cem por cento djim, sentira uma mudança no equilíbrio de poder entre o bem e o mal, provocada pela descoberta dos djins perdidos de Akhenaton; e não precisou de grandes poderes de dedução para atribuir a descoberta dos djins e a sua conversão ao bem à sua própria família.- Então, vocês vão contar-me o que realmente aconteceu, ou não? - perguntou ela na primeira noite dos gémeos, na casa de praia em Quogue.- O tio Nimrod contou-nos que somos djins e mostrou-nos muitas coisas - disse Philippa. E depois, tentando desviar a curiosidade da sua mãe, Philippa procurou virar o feitiço contra o feiticeiro: - Mas o que eu gostava de saber é o seguinte: a mãe vai dizer-nos por que é que nunca nos explicou quem e o que é que somos?- Apoiado - completou John. - Em vez de deixar tudo para o tio Nimrod.403

- É simples - disse Layla. - Porque prometi ao vosso pai que iria tentar educar-vos como duas crianças normais. E, enquanto vocês eram iguais às outras crianças, eu mantive essa promessa. Mas tudo mudou quando os vossos dentes do siso surgiram. A partir desse momento, passaram a ser djins. E eu deixei de estar presa à promessa que fiz ao vosso pai. Ele estava preocupado convosco e era por isso que tinha medo de vocês.- E por isso é que temos uma sugestão a fazer - disse Philippa. - Decidimos, para bem da nossa família, não usar este poder sem a consultarmos primeiro. - Afinal, aquela era a ideia que eles tinham debatido com Nimrod.- A mãe não pode estar à espera que nós finjamos que nada aconteceu, ou que neguemos aquilo que somos - acrescentou John. - Mas pode contar que usemos esse poder com discrição e responsabilidade.- Acho que é uma excelente sugestão - concordou Layla.- Então e se alguém - podia ser o vosso melhor amigo da escola, a Sra. Trump, ou até o vosso pai - formulasse um desejo?Philippa meneou a cabeça.- Nós teríamos de respirar fundo, contar até cem e depois reflectir sobre se a vida daquela pessoa seria mesmo melhor, se aquilo que ela

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mais quer no mundo lhe fosse dado de mão beijada.- E depois não faríamos nada - acrescentou John.- Estou impressionada - admitiu Layla. - Vejo que aprenderam algo muito importante. Que os desejos são404perigosos. Sobretudo, quando se realizam. Lembrem-sedisso, meus filhos. O desejo de riqueza e poder põe o mundo inteiro de pernas para o ar. Se os desejos fossem cavalos, os pedintes seriam cavaleiros. Se os desejos fossemsoldados, os fracos governariam. E se os desejos fossem elixires, então, todos os homens viveriam para sempre.- Se não for incómodo - interrompeu Philippa. - Gostaríamos de discutir um pequeno desejo consigo, agora.- Sou toda ouvidos.- Desejamos que a mãe faça as pazes com o tio Nimrod- disse John.- Isso é fácil. - Layla sorriu. - Telefonar-lhe-ei hoje ànoite. Que é que vos parece?- Óptimo.- O vosso pai está muito contente por vos ter em casa- disse ela.- Acha que sim? - Eu sei que está - disse Layla.- Como é que sabe? - perguntou John.- Vê-se bem.E, naquele preciso momento, ouviram um som que raramente tinham ouvido. Nada mais, nada menos, do queo seu pai a cantar no banho.

Fim