aula 11_varela, julia. categorias espaço-temporais e socialização escolar

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Categorias espaço-temporais e socialização escolar Do individualismo ao narcisismo * Julia Varela Introdução Emile Durkheim foi um dos primeiros sociólogos clássicos que se interessou pelo estudo das categorias de pensamento com a preocupação de dar conta da gênese e das transformações dos conceitos no marco de uma sociologia do conhecimento. Categorias são noções essenciais que regem nossa forma de pensar e de viver. Formam "o esqueleto da inteligência", o marco abstrato que vertebra e organiza a experiência coletiva e individual. Durkheim confere especial importância às categorias de espaço e de tempo, pois são estas noções as que permitem coordenar e organizar os dados empíricos e tornam possíveis os sistemas de representação que os homens de uma determinada sociedade e em um momento histórico concreto elaboram sobre o mundo e sobre si mesmos. [p.74] As categorias de pensamento variam em função das culturas e das épocas históricas, estão se refazendo constantemente e não são, como pensava Kant, categorias a priori da sensibilidade e sim conceitos, representações coletivas, que estão relacionadas de algum modo com as formas de organização social, e, mais concretamente, com as formas que o funcionamento do poder e do saber adotam em cada sociedade. As categorias de pensamento são, portanto, o resultado de uma imensa cooperação em que numerosas gerações foram depositando seu saber. O sociólogo francês valoriza-as como "um capital intelectual muito particular", infinitamente mais rico e complexo que o que se possa adquirir ao longo de uma só vida. Constituem sábios instrumentos de pensamento que os grupos humanos forjaram laboriosamente ao longo de séculos nos quais se foi acumulando o melhor desse capital intelectual, o qual não apenas permite aos homens de uma determinada sociedade comunicar-se uns com os outros, mas, além disso, torna possível um certo conformismo lógico necessário para poder viver em comunidade. Para saber com mais precisão o que significam estes marcos de inteligibilidade e de sociabilidade não basta, assinala Durkheim, buscar em nosso interior, mas " é preciso olhar para fora de nós, é preciso observar a história, é preciso construir de cima a baixo uma ciência; ciência complexa que não pode senão avançar lentamente, com base num trabalho coletivo" 1 . Na realidade, esta ciência, destinada a dar conta da gênese do desenvolvimento e das funções sociais das categorias de pensamento, ainda está longe de haver alcançado a * Este texto foi publicado originalmente na Revista de Educácion. n. 298, 1992. p. 7-29. Publicado aqui com a autorização da autora. Tradução de Jandira O. Fraga. Revisão de Guacira Lopes Louro. 1 Cf. Durkheim. E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989. VARELA, Julia. Categorias espaço-temporais e socialização escolar: do individualismo ao narcisismo. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Escola básica na virada do século: cultura, política e currículo. São Paulo: Cortez, 1999. p. 73-106.

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Sobre o espaço e a educação

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  • Categorias espao-temporais e

    socializao escolar

    Do individualismo ao narcisismo*

    Julia Varela

    Introduo

    Emile Durkheim foi um dos primeiros socilogos clssicos que se interessou

    pelo estudo das categorias de pensamento com a preocupao de dar conta da

    gnese e das transformaes dos conceitos no marco de uma sociologia do

    conhecimento. Categorias so noes essenciais que regem nossa forma de

    pensar e de viver. Formam "o esqueleto da inteligncia", o marco abstrato

    que vertebra e organiza a experincia coletiva e individual. Durkheim

    confere especial importncia s categorias de espao e de tempo, pois so

    estas noes as que permitem coordenar e organizar os dados empricos e

    tornam possveis os sistemas de representao que os homens de uma

    determinada sociedade e em um momento histrico concreto elaboram sobre o

    mundo e sobre si mesmos. [p.74]

    As categorias de pensamento variam em funo das culturas e das

    pocas histricas, esto se refazendo constantemente e no so, como pensava

    Kant, categorias a priori da sensibilidade e sim conceitos, representaes

    coletivas, que esto relacionadas de algum modo com as formas de organizao

    social, e, mais concretamente, com as formas que o funcionamento do poder e

    do saber adotam em cada sociedade. As categorias de pensamento so,

    portanto, o resultado de uma imensa cooperao em que numerosas geraes

    foram depositando seu saber. O socilogo francs valoriza-as como "um

    capital intelectual muito particular", infinitamente mais rico e complexo que o

    que se possa adquirir ao longo de uma s vida. Constituem sbios

    instrumentos de pensamento que os grupos humanos forjaram laboriosamente

    ao longo de sculos nos quais se foi acumulando o melhor desse capital

    intelectual, o qual no apenas permite aos homens de uma determinada

    sociedade comunicar-se uns com os outros, mas, alm disso, torna possvel um

    certo conformismo lgico necessrio para poder viver em comunidade.

    Para saber com mais preciso o que significam estes marcos de

    inteligibilidade e de sociabilidade no basta, assinala Durkheim, buscar em nosso

    interior, mas " preciso olhar para fora de ns, preciso observar a histria,

    preciso construir de cima a baixo uma cincia; cincia complexa que no pode

    seno avanar lentamente, com base num trabalho coletivo"1. Na realidade,

    esta cincia, destinada a dar conta da gnese do desenvolvimento e das funes

    sociais das categorias de pensamento, ainda est longe de haver alcanado a

    * Este texto foi publicado originalmente na Revista de Educcion. n. 298, 1992. p. 7-29. Publicado aqui

    com a autorizao da autora. Traduo de Jandira O. Fraga. Reviso de Guacira Lopes Louro. 1 Cf. Durkheim. E. As formas elementares da vida religiosa. So Paulo: Paulinas, 1989.

    VARELA, Julia. Categorias espao-temporais e socializao escolar: do individualismo ao narcisismo. In:

    COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Escola bsica na virada do sculo: cultura, poltica e currculo. So

    Paulo: Cortez, 1999. p. 73-106.

  • maioridade, mas no h dvida de que sua construo supe, na atualidade, um

    apaixonante desafio.

    Inserindo-se no phylum aberto por As formas elementares da vida religiosa,

    Norbert Elias ocupou-se tambm das categorias de pensamento. Em sua obra

    intitulada Sobre o tempo, ressalta [p.75] uma vez mais a idia de que as

    categorias so instituies sociais e insiste no seu carter simblico quando

    assinala que os homens as adquirem e utilizam como meio de orientao e de

    saber.2 E assim, somente em pocas muito tardias de desenvolvimento da

    humanidade, o tempo converteu-se em "um smbolo de uma coao inevitvel e

    totalizadora".

    A partir da formao dos Estados modernos e sobretudo com o

    desenvolvimento das sociedades industrializadas, as exigncias sociais que

    pesam sobre a determinao do tempo e do espao se fazem cada vez mais

    prementes no interior do "processo de civilizao".3 Deste modo, a paulatina e

    cada vez mais intensa rede de reguladores temporais vai permitir viver tempo

    como um continuum, como um fluxo invarivel, o que facilitar que a prpria

    existncia seja percebida tambm como um continuum que serve de fundamento

    categoria de identidade pessoal, to arraigada em nossas sociedades ocidentais.

    Esse inteligente socilogo alemo levanta uma srie de questes de capital

    importncia para o tema que aqui vamos desenvolver. Como as categorias espao-

    temporais influem na regulao da conduta e da sensibilidade? Como as regulaes

    espao-temporais so incorporadas na estrutura social da personalidade? A

    sensibilidade moderna constri-se no Ocidente em relao com um tempo que

    percebido de forma imperiosa, sintoma de um processo civilizador no qual as

    exigncias temporais so cada vez mais intensas, se as comparamos com outras

    sociedades menos complexas. Nessas ltimas sociedades, seus membros no tm

    nossa concepo do tempo, no seguem os ditames que essa categoria impe, nem

    desenvolveram uma conscincia individual como a nossa, carecendo da prpria

    categoria de identidade pessoal: um homem pode ser idntico a outro, possuir

    ao mesmo tempo as qualidades de um homem [p.76] e de um animal, ou estar em

    dois lugares distintos simultaneamente.

    Os controles socialmente induzidos atravs da regulao do espao e do

    tempo contribuem, ao interiorizar-se, para ritualizar e formalizar as condutas,

    incorporam-se na prpria estrutura da personalidade, ao mesmo tempo que

    orientam uma determinada viso do mundo, j que existe uma estreita inter-

    relao entre os processos de subjetivao e de objetivao.

    A Norbert Elias interessa especialmente explicar como em nossas

    sociedades ocidentais, constituiu-se um tempo subjetivo, a sensao de que

    existe um tempo individual prprio separado do tempo objetivo. E afirma que,

    2 Cf. Elias, N. Sobre el tiempo. Mxico: FCE, 1989.

    3 Cf. Elias, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

  • pelo menos desde o nascimento do racionalismo moderno, comea a se

    intensificar uma concepo do tempo mais centrada no indivduo,

    antropocntrica, a qual, curiosamente, coexiste com uma tendncia social, cada

    vez mais forte, para determinar, medir e diferenciar os ritmos temporais aos

    quais tero que se submeter todos os sujeitos4.

    Essas progressivas e intensas regulaes tm suscitado conflitos e lutas

    entre as diferentes foras sociais, particularmente entre a Igreja e o Estado, que

    visam adquirir, atravs delas, posies hegemnicas. Foi precisamente a

    instituio do Estado que, com a formao dos Estados modernos, conseguiu

    progressivamente a vitria atribuindo-se, praticamente de forma exclusiva, a

    determinao do espao e do tempo. Mas isso foi sobretudo a partir do sculo

    XVIII, com o peso que ento adquiriram as cidades, com a intensificao do

    comrcio e a revoluo industrial, quando se fez mais premente a necessidade de

    sincronizar um nmero cada vez maior de atividades e transaes e quando,

    em conseqncia, elaborou-se uma rede temporal e espacial contnua e

    uniforme que serviu de marco de referncia a toda a vida social.

    Medir e regular o tempo de uma determinada forma implica no apenas

    relacionar os acontecimentos de um modo [p.77] especfico, mas tambm

    perceb-los e viv-los de um modo peculiar. A categoria de identidade pessoal e

    a percepo da prpria vida como um continuum esto, pois, em ntima relao com

    o fato de que, em nossas sociedades, no apenas se mede o tempo com uma

    pontual exatido, mas que, alm disso, ele percebido socialmente como um

    fluxo que vai do passado ao presente e do presente ao futuro, o que supe a

    elaborao conceitual de um smbolo para referir-se a uma relao, que no

    causal, entre estes diferentes perodos temporais. Todo o livro citado de Norbert

    Elias constitui uma tentativa de decifrar como, nas sociedades ocidentais,

    chegou-se a pensar o tempo fsico, o tempo social e o tempo subjetivo ou individual

    como se fossem diferentes, como se coexistissem justapostos e no

    relacionados entre si.

    A maioria dos trabalhos destinados a dar conta da gnese das modernas

    categorias espao-temporais tiveram a tendncia, sistematicamente, de relegar o papel

    que as instituies educativas desempenharam e seguem desempenhando, na

    formao, reproduo e transformao de nossas concepes de espao e de

    tempo. Sem dvida, tem contribudo para este esquecimento a prpria especializao

    dos saberes sociolgicos, o parcelamento dos saberes em reas hierarquizadas e

    separadas. E assim, enquanto o estudo destas categorias converteu-se numa

    parte da sociologia do conhecimento, a sociologia da educao permaneceu, em

    geral, alheia a essas questes. E foi assim que a especializao converteu-se em

    um obstculo que preciso salvar.

    O ponto de partida deste estudo a idia de que os processos de

    socializao dos sujeitos nas instituies escolares pem em jogo determinadas

    4 Cf. Elias. N. Sobre el tiempo, op. cit., p. 46.

  • concepes e percepes do espao e do tempo. Para entender os processos escolares

    de socializao e as diferentes pedagogias necessrio levar em conta a

    configurao que, em cada perodo histrico, adotam as relaes sociais e, mais

    concretamente, as relaes de poder que incidem na organizao e definio dos

    saberes legtimos, assim como na formao de subjetividades especficas.

    Categorias espao-temporais, poder, pedagogias, saberes e sujeitos constituem

    [p.78] dimenses que se cruzam, se imbricam e se ramificam no interior das

    instituies educativas. Desenvolver as interdependncias complexas que se tm

    produzido e continuam produzindo entre esses processos supera em muito as

    possibilidades e o objeto deste trabalho. Mas, pelo menos, tentaremos mostrar

    que se trata de um problema pertinente, ilustrando-o atravs de trs perodos

    histricos distintos, nos quais se produzem, sob a forma de tendncias, de

    tipos ideais, trs modelos pedaggicos: as pedagogias disciplinares que se

    generalizam a partir do sculo XVIII; as pedagogias corretivas, que surgem em

    princpios do sculo XX em conexo com a escola nova e a infncia

    "anormal"; e, enfim, as pedagogias psicolgicas, que esto em expanso na

    atualidade. Trs modelos pedaggicos que implicam diferentes concepes do

    espao e do tempo, diferentes formas de exerccio do poder, diferentes formas de

    conferir um estatuto ao "saber" e diferentes formas de produo da subjetividade.

    Do tempo mgico das idades da vida ao tempo disciplinar: a formao

    do indivduo moderno

    Para os socilogos clssicos, e em especial para Marx, Weber e

    Durkheim, um dos traos que caracteriza a Modernidade o processo de

    individualizao. A partir do sculo XVI e, sobretudo, a partir da constituio

    dos Estados modernos, tal processo se intensifica e estende em conexo com a

    crescente diviso social do trabalho, o aumento da densidade da populao nas

    zonas urbanas, a acumulao primitiva do capital e o desenvolvimento da

    propriedade privada, a influncia da tica protestante e o impulso da

    Administrao.5 Todos esses soci-[p.79]logos se ocuparam, portanto, do

    processo de individualizao o qual consideram o reverso do processo

    de estatizao , partindo de anlises de processos de carter estrutural e

    sem relacion-lo, a no ser de forma indireta, com a construo das categorias

    de pensamento.6 A partir do marco traado por eles tentaremos "descer" a

    processos de alcance mdio, com a inteno de analisar como incide a

    regulao social do espao e do tempo e suas formas de transmisso e

    interiorizao mediante tcnicas pedaggicas nas sutis conexes que se

    5 Max Weber analisou em relao ao surgimento da Administrao, como o Estado moderno, no exigir de

    uma parte importante de seus funcionrios a superao de provas e exame nos quais deviam demonstrar

    que possuam conhecimentos e capacidades para desempenhar o cargo a que aspiravam, inaugura uma via

    individual meritocrtica oposto do sangue e da linhagem que at ento havia dominado. 6 O prprio Durkheim que, como se tem assinalado, prope a criao de urna cincia das categorias, de

    uma sociologia do conhecimento, o faz na ltima etapa da sua vida, j que As formas elementares da vida

    religiosa foi publicado em 1912, ou seja, cinco anos antes de sua morte.

  • estabelecem historicamente entre o processo de individualizao e os modos

    de educao, ou seja, entre as tecnologias de produo de subjetividades

    especficas e as regras que regem a constituio dos campos do saber.

    Na segunda metade do sculo XVI se configuram novos modelos de

    educao que marcam a pauta para a socializao das jovens geraes dos

    grupos sociais dominantes. A intensa preocupao dos reformadores e

    humanistas pelo "governo da terna idade", os programas de ensino que por

    tal motivo planejam, bem como sua aplicao, constituram um dispositivo

    fundamental para definir o novo estgio temporal que hoje denominamos

    infncia. Esse dispositivo desempenhou igualmente um papel importante na

    constituio do tempo subjetivo enquanto tempo separado do tempo fsico e do

    tempo social objetivo7.

    No Renascimento, contudo, "as idades da vida" eram conceitos que

    supunham a existncia de uma unidade fundamental entre os fenmenos

    "naturais", "csmicos" e "sobrenaturais". O movimento descrito pelos planetas

    em suas rbitas celestes, o ciclo das estaes, as fases da lua e o ciclo da

    [p.80] vida humana regiam-se pela mesma lgica8. O microcosmo era um reflexo

    do macrocosmo e o homem se relacionava com todos os seres do universo segundo

    laos profundos e misteriosos. As idades de vida expressavam uma continuidade

    cclica e inevitvel, inscrita na ordem geral das coisas. A semelhana e suas

    diferentes figuras organizavam as relaes existentes entre os smbolos de um

    mundo que se dobrava sobre si mesmo, se duplicava, se encadeava e refletia

    permanentemente. Conhecer as coisas consistia em descobrir o sistema de

    semelhanas que as fazia prximas e solidrias ou distantes e incompatveis.

    Essa percepo do mundo e da vida humana, essas formas de classificao, essa

    correspondncia entre microcosmo e macrocosmo, que permitiu a coexistncia da

    magia, da adivinhao e da erudio como formas de saber, rompeu-se em fins do

    sculo XVI9.

    Com o incio da Modernidade, os cdigos de saber transformam-se e o

    homem deixa de ser um pequeno microcosmo, em contato permanente com todo o

    universo, para iniciar um longo exlio destinado a separ-lo cada vez mais da

    "natureza natural", que ento se institui, para distanci-lo da animalidade. A

    partir de agora, o homem ter que se converter em ser "civilizado", em ser cada

    vez mais individualizado o qual, com o passar dos sculos, se transformar no

    "tomo fictcio" de uma "sociedade formada por indivduos". Mas justamente o de que

    se trata aqui mostrar mais detidamente alguns dos processos que contriburam para

    que esse homem renascentista, integrado no cosmos, se perceba hoje como Homus

    7 Em relao s formas de educao e moderna definio de infncia, assim como sobre o papel

    estratgico da educao institucional na formao de um novo tipo de sociedade, pode-se ver meu livro

    Modos de educacin en la Espana de la Contrarreforma, Madri, La Piqueta, 1983. 8 Cf. Aris, Ph. Histria social da criana e da famlia, Rio de Janeiro. Zahar. 1981. 2. ed.

    9 Sobre as regras que regem no campo do saber, mais concretamente sobre a episteme renascentista, ver

    M. Foucault. As palavras e as coisas, So Paulo. Martins Fontes. 1987.

  • clausus, para utilizar o conceito cunhado por Norbert Elias10

    . [p.81]

    Voltemos, pois, aos modos de educao que se configuraram a partir do

    sculo XVI e que no so alheios a essa importante mutao. A moderna

    definio de infncia, as novas formas que adotou a educao das crianas

    contriburam, junto com outros muitos fatores, para pr fim a um tempo csmico,

    mgico e cclico. Ao particularizar a idade infantil, ao conferir-lhe determinadas

    qualidades que correspondem, a partir de ento, a aprendizagens especficas, os

    reformadores renascentistas vincularam a noo de infncia a um novo ciclo que

    se desgarrava daquele que regia a ordem celeste e terrestre: o desenvolvimento

    biolgico individual. A educao institucional, predominantemente urbana e elitista

    que encontrou uma de suas figuras paradigmticas nos colgios jesutas

    sups a elaborao de uma pedagogia que, ao mesmo tempo que se movia e

    transmitia seguindo uma nova concepo do espao e do tempo como

    vamos ver a seguir , contribui na produo do honnte homme, quer dizer, do

    indivduo burgus.

    Michel Foucault mostrou de forma muito precisa como tempo e o espao se

    reorganizaram no sculo XVIII mediante o exerccio de um novo tipo de poder

    que denominou poder disciplinar. Tal poder parte do princpio de que mais

    rentvel vigiar do que castigar. Domesticar, normalizar e fazer produtivos aos

    sujeitos mais rentvel do que segreg-los ou elimin-los. Esse tipo de poder,

    cuja tradio se encontra na teologia e o ascetismo, "numa considerao poltica

    das pequenas coisas, do detalhe", e que comeou se forjando em instituies

    tais como os colgios e o exrcito, se consolidar e estender na idade das

    disciplinas: tecnologias de individualizao que estabelecem uma relao com o

    corpo que ao mesmo tempo que o fazem dcil fazem-no tambm til. Esse

    modelo de poder est ligado a profundas transformaes que tiveram lugar no

    sculo XVIII: transformaes econmicas (acrscimo e conservao das

    riquezas), sociais (evitar motins e sublevaes; demanda de uma maior segurana),

    polticas (tornar vivel o novo modelo de sociedade, ou seja, a aceitao da

    nova soberania baseada no contrato social). [p.82]

    O poder disciplinar serve-se no apenas das tecnologias de individualizao

    como tambm das tecnologias de regulao das populaes, tecnologias diferentes

    que, s vezes, se superpem e reforam e, outras vezes, entram em contradio. Essas

    tecnologias acarretam uma autntica revoluo ao permitir que o corpo e a vida

    tomem parte do domnio do poder que, dessa forma, se fez ainda mais material. De

    qualquer modo, constituram peas importantes para alcanar uma sociedade

    disciplinada e produtiva, uma sociedade que comeou a deixar de ser uma sociedade

    eminentemente jurdica j que tais tecnologias tornaram possvel o surgimento de novos

    dispositivos de poder que no se serviram para seu funcionamento tanto da lei e da

    proibio, como da norma. Ao lado do aparato jurdico passaram, portanto, a ter maior

    10

    A iluso do individuo, como ser auto-suficiente, constitui para Nobert Elias a outra face de um processo

    de civilizao e individualizao crescente que implica a interiorizao dos controles sociais. Cf. Elias. N. O processo civilizador, op.cit., assim como La sociedad de ls indivduos. Barcelona. Pennsula,

    1990.

  • importncia as instncias de normalizao11

    .

    Esse poder disciplinar, em razo de sua economia e de seus efeitos, tendeu a

    se estender por todo o corpo social, mas seus efeitos se deixaram sentir de forma

    mais sensvel no mbito institucional e, mais concretamente, nas instituies

    educativas. As tecnologias disciplinares, que esto na base da produo social de novos

    saberes e de novos sujeitos, funcionam atravs de uma nova concepo e organizao

    do espao e do tempo. Implicam a existncia de um espao e um tempo

    disciplinares. Para o espao disciplinar, o princpio de clausura deixa de ser constante,

    indispensvel e suficiente. O importante agora a redistribuio dos indivduos no

    espao, sua reorganizao, a maximizao de suas energias e de suas foras, sua

    acumulao produtiva to necessria para a acumulao de riquezas, para a

    acumulao de capital. A cada indivduo h de se determinar um lugar, uma

    localizao precisa no interior de cada conjunto. Os indivduos ho de estar

    vigiados e localizados permanentemente para evitar encontros perigosos e

    comunicaes inteis, se de fato se quer favorecer exclusivamente as relaes teis

    e produtivas. [p.83]

    Como j assinalamos, Foucault considerava os colgios das ordens

    religiosas e os quartis como os lugares especficos onde comearam a vigorar

    as tecnologias disciplinares12

    . E, de fato, em Vigiar e punir dedica algumas

    pginas muito ilustrativas para mostrar a forma que adotou o ensino nos

    colgios dos jesutas. Pouco a pouco o espao escolar esboado e

    minuciosamente organizado pela Companhia de Jesus converteu-se em um

    espao homogneo e hierarquizado que pouco tinha a ver com o espao

    acondicionado por outras instituies educativas do Antigo Regime, no qual

    coexistem justapostos uns alunos ao lado dos outros sob o olhar de um s

    mestre. Os colgios dos jesutas contriburam, portanto, para configurar um

    espao disciplinar seriado e analtico que permitiu superar o sistema de

    ensino no qual cada aluno trabalhava com o mestre durante alguns minutos, para

    permanecer em seguida ocioso e sem vigilncia, misturado com o resto de

    seus companheiros.

    A classificao ou posto um dos procedimentos de distribuio e

    diviso dos colegiais no espao escolar a partir do sculo XVIII: filas de

    colegiais na classe, nos corredores, na Igreja e nas excurses. O posto que

    se atribui a cada colegial em funo de seu xito ou fracasso nas provas

    ou nos exames, o posto que se obtm ao final de cada semana, de cada ms e

    de cada ano no interior da classe, o posto que se ocupa em uma classe em

    11

    Cf. Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrpolis, Vozes, 1977, especialmente o cap. III, dedicado as

    disciplinas. 12

    Em numerosos momentos histricos parecem entrecruzar-se e reforar-se as tecnologias pedaggicas e

    militares no mbito escolar, tal como sucede concretamente no ensino dos jesutas.

  • relao s outras classes.

    Neste conjunto de alinhamentos obrigatrios, cada aluno, segundo

    sua idade, seus resultados, sua conduta, ocupa um posto ou outro;

    desloca-se sem cessar em uma srie de compartimentos, alguns

    ideais, que indicam hierarquias do saber ou das capacidades, e

    outros que traduzem materialmente, no espao da classe ou do

    colgio, esta diviso dos valores ou dos mritos13

    .

    As pedagogias disciplinares implicam tambm mudanas importantes

    com relao ao tempo. O tempo disciplinar se [p.84] impe

    progressivamente na prtica pedaggica especializando tempo da formao

    escolar e separando-o do tempo dos adultos, e do tempo de formao nos ofcios.

    Alm disso, face mistura de estudantes de idades distintas numa mesma sala,

    prtica habitual nas instituies educativas do Antigo Regime como, por exemplo,

    nas Universidades e escolas de primeiras letras e inclusive nos prprios

    colgios dos jesutas nos seus incios , lentamente se vo separando os mais

    velhos dos menores e, finalmente, a idade se converte no critrio fundamental

    de distribuio dos colegiais. A nova concepo do tempo exige organizar as

    atividades de acordo com um esquema de sries mltiplas, progressivas e de

    complexidade crescente. Organiza distintos nveis separados por provas graduais,

    que correspondem a etapas de aprendizagem e que compreendem exerccios de

    dificuldade cada vez maior. Rompe-se assim com um ensino no qual o tempo era

    concebido globalmente e a aprendizagem sancionada com uma nica prova.

    Essa nova forma de perceber e de organizar o espao e o tempo permite um

    controle detalhado do processo de aprendizagem, permite o controle de todos e de

    cada um dos alunos, faz com que o espao escolar funcione como uma mquina

    de aprender e ao mesmo tempo possibilita a interveno do mestre em qualquer

    momento para premiar ou castigar e, sobretudo, para corrigir e normalizar.

    A incorporao direta do poder no espao e no tempo est na base de uma

    utopia social regida pela transparncia e a visibilidade que o panptico de J.

    Bentham reflete de forma paradigmtica. A busca desta sociedade de cristal na

    qual o olhar desempenha um papel primordial est intimamente ligada

    quadriculao progressiva do espao e historicidade progressiva do tempo. Um

    tempo e um espao divididos, segmentados, seriados, que deveriam permitir,

    segundo os reformadores da poca uma sntese e uma globalizao totais. Essa

    modalidade de poder no apenas torna possvel a viso de uma sociedade em

    contnuo e ascendente progresso, mas tambm uma percepo funcional do corpo, um

    corpo-segmento pronto e disposto a articular-se com outros em conjuntos

    produtivos [p.85] mais amplos que tornem possvel a obteno de seu mximo

    rendimento, um resultado timo de conjunto.

    As pedagogias disciplinares no podem ser analisadas, portanto, a partir

    da noo de represso, j que seus efeitos, como estamos vendo, so

    enormemente produtivos: supem uma mudana na percepo social do

    13

    Cf. Foucault, M. Vigiar e punir. op. cit.

  • espao e do tempo, mudana que se manifesta, ao mesmo tempo, na

    organizao do espao e do tempo pedaggicos, e em sua interiorizao pelos

    colegiais. Essas pedagogias so tambm um instrumento de primeira ordem na

    construo, por um lado, de uma forma de subjetividade nova, o indivduo, e,

    por outro, na organizao do campo do saber.

    A produo social do indivduo

    Michel Foucault afirmou que o indivduo exigido por uma representao

    burguesa da sociedade a sociedade definida como a soma de sujeitos

    individuais no apenas uma "fico ideolgica" mas tambm uma

    realidade construda por essas tecnologias especficas de poder chamadas

    disciplinas.

    Qual o principal dispositivo utilizado pelas disciplinas na produo

    desse tipo determinado de sujeitos que so os indivduos? Esse dispositivo o

    exame que se generaliza como forma de subjetivao e tambm de

    objetivao, de extrao de saberes no sculo XVIII. O exame instituiu-se em

    mltiplas instituies quartis, colgios, hospitais, administrao e

    tambm aplicou-se a campo aberto estatstica, higiene etc. Em

    conseqncia, por meio de notas, fichas, registros e histricos se introduz a

    individualidade no terreno da escritura, convertendo cada sujeito em um caso.

    As pedagogias disciplinares fazem das instituies educativas instituies

    examinadoras, espaos de observao eminentemente normalizadores e

    normativos, j que o exame implica duas operaes fundamentais: a vigilncia

    hierrquica e a sano normalizadora. Ambas coordenadas permitem decifrar,

    medir, comparar, hierarquizar e normalizar aos colegiais. [p.86]

    A "escola examinadora' atribui a cada aluno como estatuto sua prpria

    individualidade, a qual o resultado de provas e exames contnuos que, por sua

    vez, supem uma extrao de saberes dos prprios colegiais, o que tornar

    possvel a formao e o desenvolvimento da cincia pedaggica. Os exames no

    apenas avaliam as aprendizagens, a formao que recebem os escolares, como

    tambm conferem a cada estudante uma natureza especfica: convertem-no em um

    sujeito individual.

    As pedagogias disciplinares implicam, portanto, novas relaes de poder

    que so tanto menos visveis quanto mais fsica e materialmente esto presentes

    e quanto mais vinculadas esto ao processo de aprendizagem. Da que o poder

    disciplinar tenha podido suprimir, em teoria, as penalizaes e os castigos fsicos,

    j que as sanes, as correes, consistem, a partir de agora, em repetir as

    atividades, em repetir os exerccios, em fazer novamente a mesma coisa.

    O disciplinamento dos saberes

    O poder disciplinar afeta tambm o campo do saber . Ao final do sculo

    XVIII produziu-se uma luta poltico-econmica em torno dos saberes, saberes

    que at ento estavam dispersos e apresentavam um carter heterogneo. A

  • medida que o Estado se consolidou, e medida que se desenvolveram as

    relaes de produo com o impulso da Revoluo Industrial, se

    desencadearam processos de anexao e confisco de saberes locais e artesanais

    por saberes mais gerais ou industriais. Nessas lutas o Estado intervm, direta ou

    indiretamente, como mostrou Michel Foucault, mediante quatro operaes:

    eliminao dos saberes irredutveis, inteis ou economicamente muito custosos;

    normalizao dos saberes; hierarquizao dos saberes: os mais gerais, os mais

    formais sendo legitimados; enfim, centralizao dos saberes. Todas estas

    operaes permitem sua seleo e controle e implicam o surgimento de toda

    uma srie de prticas, de iniciativas e instituies que vo desde A

    Enciclopdia at a criao de instituies acadmicas e o nascimento de um

    [p.87]novo tipo de Universidade controlada pelo Estado. Os saberes

    se vero assim reduzidos a disciplinas, com uma organizao e uma lgica

    interna especficas, dando lugar ao que na atualidade conhecemos como

    cincias. A partir deste momento as instituies acadmicas vo exercer um

    monoplio no campo do saber de tal forma que unicamente os saberes formados e

    sancionados por estas instituies recebero um estatuto de cientificidade.

    As formas de controle sobre o territrio do saber sofreram assim uma

    mudana. J no se trata, como ocorria com a ortodoxia eclesistica, de

    suprimir e censurar enunciados, mas de assegurar que esses enunciados

    remetam a uma lgica especfica que permita vincul-los a uma disciplina

    concreta, e situ-los nessa ordem quadriculada e hierarquizada dos saberes legtimos.

    O controle passa de um nvel externo a um nvel interior tornando menos visvel

    e aparentemente menos coativo o exerccio do poder.

    O poder disciplinar joga, portanto, e complementarmente, em dois terrenos,

    o da produo dos sujeitos e o da produo dos saberes. E, assim, as tecnologias

    disciplinares aplicadas ao corpo permitem a extrao de saberes sobre os sujeitos,

    saberes que por sua vez, ao serem devolvidos ao sujeito, o constituem como

    indivduo, constroem seu "eu". Mas, alm disso, essas tecnologias, ao serem

    admitidas no campo do saber, produzem um disciplinamento dos saberes que a

    prpria condio de possibilidade da formao das cincias14

    .

    Uma etapa de transio: as pedagogias corretivas e a busca da criana

    natural

    O poder disciplinar, que comea a gestar-se no Antigo Regime, e que

    alcanar o auge a partir de fins do sculo [p.89] XVIII, se perpetuar

    durante todo o sculo XIX nos pases ocidentais. Em princpios do sculo XX

    surge um novo tipo de poder. E precisamente nesse momento histrico que se

    retomam e reformulam as propostas educativas dos ilustrados e especialmente o

    modelo pedaggico proposto por Rousseau. O Estado Interventor, modelo

    iniciado por Bismarck na Alemanha no ltimo quartel do sculo XX, triunfou em

    14

    Sobre a disciplinalizao dos saberes, ver M., Foucault, Genealogia del racismo. Madri, La Piqueta.

    1992.

  • praticamente todos os pases da Europa ocidental. Tratava-se de solucionar a

    questo social, de neutralizar a luta de classes por meio de uma poltica de

    harmonizao dos interesses do trabalho e do capital que permitisse integrar ao

    movimento operrio.

    Justamente neste marco imps-se a obrigatoriedade escolar convertida em um

    dos dispositivos fundamentais de integrao das classes trabalhadoras. A escola

    obrigatria fazia parte, portanto, de um programa de regenerao e de profilaxia

    social baseado nos postulados do positivismo evolucionista. Numerosos filantropos,

    economistas e reformadores sociais, ao aceitar a teoria segundo a qual a

    ontognese recapitula a filognese (Lei de Haeckel), vo estabelecer toda uma

    srie de analogias entre a criana, o selvagem e o degenerado15

    . Deste modo, se

    far corresponder o estgio de selvageria com o da infncia. As crianas, e

    especialmente as crianas das classes populares, se identificam com os selvagens.

    Civiliz-los e domestic-los constitui o objetivo dessa escola pblica obrigatria

    na qual seguiro reinando as pedagogias disciplinares.

    Essa escola para os filhos dos pobres, suas prticas, seus sistemas de

    valorao, a percepo do mundo que transmite e o estatuto de infncia que

    veicula, rompe a tal ponto com os modos de educao das classes trabalhadoras,

    com seus hbitos e seus estilos de vida que ir provocar, desde sua imposio

    por via legal, toda uma srie de conflitos e desajustes que sero interpretados

    a partir de uma enviesada tica que responsabiliza a m ndole dos alunos por

    todos os males. Surgir [p.89] assim, em relao s crianas que resistem escola

    disciplinar, um novo campo institucional de interveno e de extrao de saberes

    destinado ressocializao da "infncia anormal e delinquente" 16

    .

    Os textos da poca pem claramente em relevo as funes de controle social

    destes novos centros educativos quando nos apresentam seus ainda balbuciantes e

    rudimentares sistemas de classificaes. O Dr. Binet, herdeiro das medidas

    realizadas pelo psiquiatra Bourneville com as crianas do manicmio de Bictre,

    afirma que necessrio detectar o quanto antes os alunos que so "refratrios

    disciplina escolar" para o que elaborar, em colaborao com o Dr. Simon, seu

    clebre Teste Menta 17

    . As crianas "insolentes, indisciplinadas, inquietas, faladoras,

    turbulentas, imorais e atrasadas" sero qualificadas por Binet como anormais 18

    .

    No menos detalhadas e expressivas so as classificaes de alguns autores

    espanhis. Roso de Luna, por exemplo, encontra ainda mais gneros e

    15

    Cf. "La escuda obrigatria, espacio dc civilizacin del nino obrero", em J. Varela e F. Alvarez-Uria.

    Arqueologa de la escuela, Madri, La Piqueta, 1991. pp. 175-98. 16

    Sobre a constituio do campo da infncia anormal, cf. Muel, F. "La escula obligatoria y la invencin

    de la infancia anormal", em VVAA. Espacios de poder, Madri, La Piqueta, 1981, pp. 123-43, assim como

    Alvarez-Urfa, F. "La infancia tutelada", em VVAA, Perspectivas psiquitricas, Madri, CSIC, 1987, pp.

    179-90. Em relao ao peso que adquirem os cdigos mdico-psicolgicos na socializao infantil, cf.

    Donzelot, J. A polcia das famlias, Rio de Janeiro, Great, 1980. 17

    Os testes, esses "cientficos instrumentos de medidas", se estenderam rapidamente s crianas

    "normais" - "j que estas no diferem das anormais mais a no ser que por seu grau de evoluo" - e

    posteriormente aos adultos. 18

    Cf. Binet, A., Les ides modernes sur les enfants, Paris, Flammarion, 1973, p. 130.

  • espcies que Binet nessa infncia que resiste obrigatoriedade escolar: "ablicos,

    teimosos, mimosos, parablicos, cretinos, sem sentimentos, desconfiados, frios,

    desmemoriados, memoriosos, visionrios, terroristas, surdos-mudos, cegos, de gostos

    grosseiros, inexpressivos, imbecis, histricos, hiperestsicos, passionais e

    masturbadores" 19

    . [p.90]

    Na medida em que a adaptao em geral, e a escola em particular, definida

    por estes primeiros pedagogos da infncia anormal e pelos primeiros

    psiclogos como "a funo geral da inteligncia", as diferentes instituies

    que ento surgem para educar as crianas "inadaptadas" se converteram em

    espaos privilegiados, em laboratrios de observao, nos quais se obtiveram

    saberes e se ensaiaram tratamentos que implicaram uma mudana importante em

    relao s pedagogias disciplinares at ento dominantes. E foi precisamente nestas

    instituies de correo onde comearam a aplicar-se, por conhecidos membros

    da chamada Escola Nova, novos mtodos e tcnicas, onde se ensaiaram novos

    materiais, enfim, onde se aplicaram novos dispositivos de poder que implicavam

    uma reutilizao do espao e do tempo, uma viso diferente da infncia, a

    produo de novas formas de subjetividade, que eram inseparveis de um novo

    estatuto do saber 20

    .

    Maria Montessori e Ovidio Decroly aceitam, da mesma forma que a maioria

    dos representantes da Escola Nova, a lei biogentica fundamental e a lei do

    progresso, e pensam que para ser um bom civilizado a criana tem que ser

    previamente um bom selvagem. Da sua crtica s pedagogias disciplinares, aos

    mtodos tradicionais de ensino, aos horrios inflexveis, aos espaos rgidos, e

    enfim, aos programas sobrecarregados. [p.91]

    Quase todos eles viram nos exames uma das maiores imperfeies e, de

    fato, como j vimos, isto constitua a ponta da lana das pedagogias disciplinares.

    Ferrire, por exemplo, afirma que os exames so a imagem mais estereotipada da

    escola da imobilidade e que viciam toda a aprendizagem: cada idade se parece a

    todas as demais, cada cadeira a todas as demais e cada criana a todas as

    demais.

    Estes novos pedagogos em sua maior parte procedentes da medicina, j que

    exerceram a profisso de psiquiatras e de psiclogos clnicos aceitam as teorias

    19

    Cf. "Los nios anormales. Constitucin del campo de la infancia, deficiente y delincuente" em J. Varela

    e F. Alvarez-Uria. Arqueologia de la escuela, op. cit., pp. 209-34, p. 227. 20

    A. Binet no oculta que a adaptao est no centro de seu trabalho e da elaborao dos testes mentais:

    "Penso que o conhecimento das aptides das crianas o problema mais bonito da pedagogia. Ainda no

    tem sido tratado por ningum, ao menos que eu conhea, e no possumos atualmente nenhum

    procedimento seguro para detectar as aptides de um sujeito, seja criana ou adulto. No entanto, existe

    esta preocupao em diferentes meios: os sindicatos patronais compreendem o enorme interesse que

    existiria em fazer conhecer a cada um seu valor e a profisso a que sua natureza lhe destina. Os mtodos e

    exames que esclarecessem as vocaes, as aptides, e tambm as inaptides proporcionariam servios

    incomensurveis a todos". Cf. Binet, A., "Bilan de la psychologie en 1910", L'Anne Psychologique,

    XVII, 1911, p. X. E Maria Montessori escreve: "No eduquemos as nossas crianas para o mundo de

    hoje. Este mundo no existir quando eles forem maiores. Nada nos permite saber que mundo ser o seu

    em conseqncia ensine-mo-lhes a adaptar-se". Cf. Pedagogia scientifique, Paris, Descle de Brouwer,

    1958.

  • pedaggicas rousseaunianas, situam a criana no centro da ao educativa, so

    partidrios da aprendizagem atravs da ao, j que a atividade da criana

    constitui o centro de um processo de auto-educao. A escola deve adaptar-se aos

    "interesses e tendncias naturais" da criana. A misso do mestre precisamente

    condicionar o espao e o tempo para dar forma e sentido a essas atividades. Como

    escreve textualmente o Dr. Decroly, uma das finalidades da escola primria

    "organizar o meio de forma que a criana encontre nele os estimulantes

    adequados a suas tendncias favorveis" 21

    . E para fundamentar cientificamente

    seus sistemas tericos no apenas iro observar as crianas recolhidas em

    instituies especiais e fazer experincias com elas, mas, alm disso, procuraro

    descobrir as leis que regem seu desenvolvimento. Aceitaro assim, na busca de

    um estatuto cientfico para seu trabalho pedaggico, a ajuda que lhes brinda a

    nascente psicologia - em princpio, a psicofisiologia na condio de psicologia

    experimental e pouco depois a psicologia gentica.

    O Dr. Bourneville no apenas foi uma autoridade para o Dr. Binet como

    tambm para a Dra. Montessori, para o Dr. Decroly e, mais tarde, para um dos

    pais da psicologia evolutiva, Jean Piaget. Todos eles comearam trabalhando com

    crianas "anormais" e logo deslocaram seu interesse para as crianas "normais" e

    para a "primeira infncia". Montessori inicia sua atividade criando, em 1907, "A

    casa de Bambini", uma insti-[p.92]tuio localizada nos bairros baixos de

    Roma onde as crianas no iam escola cujos moradores "viviam nas

    piores condies de higiene e promiscuidade". A referida instituio

    educativa no era alheia necessidade de procurar uma existncia melhor para

    os operrios, baseada na higiene e na harmonia familiar e social. Foi

    precisamente a onde Maria Montessori realizou suas primeiras pesquisas e

    aprimorou sua metodologia que em seguida aplicou s escolas de pr-escolares

    que continuaram chamando-se da mesma maneira. Decroly, por sua vez, seguiu

    uma trajetria paralela, j que tambm em 1907, e depois de haver trabalhado

    com crianas anormais, fundou a clebre "cole de l'Ermitage" para crianas

    normais. Tratava-se tambm de um centro de carter experimental que exerceu

    uma grande influncia no campo educativo.

    O regeneracionismo e o reformismo social constituram a base terica na

    qual ambos renovadores se movimentaram, como demonstram em toda sua obra.

    Maria Montessori diz explicitamente que sua metodologia e seu material tm

    como finalidade alcanar a concentrao, a perseverana e a auto-disciplina da

    criana. A ao educativa deve produzir, ao final, uma personalidade equilibrada

    e adaptada. Decroly, por sua vez, afirma que

    na luta contra a degenerao e suas mltiplas conseqncias, a inter-

    veno do mdico deve, ao mesmo tempo, ser profiltica e

    teraputica e o conceito teraputico implica tratamento mdico e

    tratamento pedaggico.

    Para entender as transformaes que operam as pedagogias corretivas no

    21

    Segers, J. A., En torno a Decroly, Madri: MEC, 1985, p. 32.

  • apenas preciso levar em conta o momento histrico no qual surgem, como

    tambm a preocupao de seus autores pelas crianas anormais e seu trabalho

    com elas. Suas produes esto vinculadas a questes polticas e sociais de

    primeira ordem, posio que estes reformadores adotam no campo social e

    prtica que realizam nessas instituies especiais. Que significam suas

    proclamaes em favor de uma educao ativa e criativa que respeite o

    desenvolvimento infantil [p.93] e permita "ao aluno" ser livre e autnomo? Para

    poder responder a esta questo preciso ir alm das funes explcitas que

    indicam seus sistemas educativos. Em sua rejeio das pedagogias

    disciplinares se percebe a necessidade de evitar um controle considerado

    exterior e demasiado coativo. Seu grande problema como conseguir um novo

    controle menos visvel, menos opressivo e mais operativo. Para alcan-lo, no

    apenas situam a criana no centro do prprio processo educativo, fazendo

    passar, em teoria, o mestre a um segundo plano, mas, alm disso, fazem

    coincidir um meio educativo "artificial", minuciosamente organizado e

    preparado, com algumas supostas "necessidades naturais" da criana. Seus

    sistemas tericos implicam a aceitao de uma viso ideolgica da

    sociedade formada por indivduos e aceitam tambm, como j assinalamos, o

    positivismo evolucionista, o qual os leva a pensar que a histria da educao,

    em sua evoluo ascendente, tem passado por um estgio teolgico-dogmtico-

    autoritrio - que identificam com a pedagogia tradicional -, e se encontra em

    um estgio metafsico-revolucionrio, que tende, com a ajuda das inovaes que

    eles mesmos introduzem, a alcanar um estgio cientfico-positivo que ser o

    resultado de estudos experimentais sobre a criana e do conhecimento das leis

    que regem seu desenvolvimento.

    O controle, portanto, que o mestre exercia no ensino tradicional atravs

    da programao das atividades e dos exames, se desloca agora, tornando-se

    indireto, para a organizao do meio. E o objetivo, ao qual se volta j no

    a disciplina exterior, produto de um tempo e de um espao disciplinares, mas

    a disciplina interior, a autodisciplina, "a ordem interior".

    Que novas formas de socializao so promovidas por estas pedagogias

    corretivas que surgiram sombra das "crianas anormais", e de instituies

    especiais, para generalizar-se s pr-escolares e mais tarde s escolas de ensino

    primrio? Em primeiro lugar, supem a afirmao de que existe a possibilidade

    de uma socializao universal, individualizada, vlida para qualquer sujeito,

    desligada das classes sociais e do contexto [p.94]histrico e legitimada por

    cdigos chamados experimentais. As resistncias a essa nova forma de socializao

    podem ser, e sero desde ento, tratadas como "desvios" individuais. Produz-se assim,

    uma negao dos conflitos sociais e das lutas pela hegemonia social atravs da

    construo da "criana natural". Seus interesses e necessidades j no esto ligados

    posio social, nem ao capital econmico e cultural familiar, seno que so

    estritamente individuais. Da o fato que alguns autores vejam nestas prticas pedaggicas

    uma transferncia dos princpios do liberalismo econmico ao mbito da educao, j

    que, de fato, ao deixar livre a concorrncia entre os alunos, favorece a reproduo das

  • elites, permite a "seleo" dos "melhores" 22

    .

    As pedagogias corretivas, ao colocar em ao novas tcnicas pedaggicas

    destinadas a condicionar o meio " medida das necessidades e interesses infantis",

    supem uma transformao das categorias espao-temporais nas quais ir se desenvolver

    a atividade escolar. Neste sentido, a obra de Maria Montessori aparece como

    exemplar ao se dirigir ao ensino pr-escolar. Construir um mundo adaptado ao aluno

    implica uma mudana radical na organizao da sala de aula, concebida agora como a

    prolongao do corpo infantil, como um espao proporcionado a suas necessidades de

    observao e experimentao: salas claras e iluminadas, com mveis pequenos e de

    formas variadas: pequenas mesas, pequenas cadeiras, pequenas poltronas, armrios fceis

    de abrir, diminutos lavabos de fcil acesso, enfim, mveis leves, simples e

    transportveis. Configura-se assim todo um mundo "em miniatura" que rompe com a

    rgida organizao do espao disciplinar no qual o estrado de madeira era o smbolo

    da autoridade e o poder do mestre. Alm deste mobilirio e de outros objetos

    destinados a ensinar, a realizar atos da vida prtica cotidiana, Montessori elaborou "o

    material de desenvolvimento, sistemas de objetos - slidos [p.95] encaixveis,

    tabuinhas, objetos geomtricos, campainhas, cartazes, barrinhas... - para educar os

    sentidos, a sensibilidade, aprender o alfabeto, os nmeros, a leitura, a escritura

    e a aritmtica", A funo da mestra consiste, neste caso, em ajudar a criana a

    orientar-se entre estes variados objetos em contato com os quais, e trabalhando

    com eles o tempo que deseje - o tempo disciplinar se rompe tambm e deixa

    margem a um tempo cada vez mais subjetivo - poder realizar uma aprendizagem

    livre de coaes. A mestra , segundo suas palavras, "a guardi e protetora do

    meio".

    No h dvida de que este modelo de educao, fortemente experimentalista,

    vinculado aos postulados rousseaunianos e educao das crianas "anormais"

    (crianas, portanto, que se distraem facilmente, que fazem gestos desordenados e

    para os quais o jogo dificilmente reconduzvel a trabalho) suscita toda uma

    srie de questes, ainda mais se levamos em conta que ir ser progressivamente

    extrapolado para etapas posteriores do ensino. Na realidade, no apenas o

    material, no apenas o espao e o tempo devem adaptar-se s supostas

    necessidades e interesses individuais dos alunos, como tambm os saberes. Para

    Decroly, por exemplo, o mtodo da globalizao do ensino e seu programa dos

    centros de interesse se inscrevem nessa direo e supem uma modificao dos

    programas escolares tradicionais e do trabalho escolar. A organizao dos

    conhecimentos deve ser feita de forma que esses estejam relacionados com as

    necessidades fundamentais da vida da criana. A observao, a associao e a

    expresso, assim como a supresso de horrios fixos, esto na base deste ensino

    "atrativo" atravs dos centros de interesse, um ensino que permitir a cada aluno

    adquirir, seguindo o processo cognoscitivo global prprio de sua idade, um

    saber cuja organizao j no corresponde tradicional diviso em disciplinas.

    Ainda que o mtodo Montessori ou o mtodo Decroly, seus "atrativos materiais"

    22

    Uma crtica fundada da Escola Nova foi formulada por G. Snyders, in Pedagogia progressista.

    Coimbra, Almedina, 1974.

  • ou "os centros de interesse adaptados s necessidades infantis" fiquem distantes, na

    atualidade, do que consideramos "atrativos" e "interessantes" para as crianas,

    nem por isso podemos esquecer que foram os iniciadores de uma redefinio da

    "infncia" que [p.96] sups a afirmao, na prtica, de uma especificidade

    teorizada por Rousseau, a qual constitui um dos pilares bsicos de uma nova

    construo e percepo do sujeito: o sujeito psicolgico. O processo de

    separao do mundo infantil e do mundo adulto caracteriza e pe em ao

    um modelo de ensino para "liliputianos" no qual a manipulao, a observao

    e a experimentao passam a um primeiro plano 23

    . A insistncia nesta

    "criana natural", em suas potencialidades criativas e expressivas, supe

    "uma infantilizao" das crianas pequenas e, progressivamente, das crianas

    em geral s quais essas pedagogias distanciam da possibilidade e

    capacidade de compreenso do mundo dos adultos e, mais concretamente,

    dos saberes da "cultura legtima", j que todo processo de objetivao tem

    agora que partir da prpria atividade individual e individualizada.

    Vimos, na seo anterior, como o poder disciplinar havia surgido graas

    a determinadas tecnologias de poder que se haviam comeado a ensaiar

    em certas instituies, entre as quais figuravam com um importante peso

    as educativas, para logo se converterem numa ttica geral na segunda

    metade do sculo XVIII. Poder-se-ia avanar a hiptese de que a nova

    forma de exerccio do poder que se esboa no incio do sculo XX, o

    psicopoder, gerido fundamentalmente nestas instituies educativas de

    correo e de educao pr-escolar 24

    . Foram elas que serviram de ponta de

    lana de novas tecnologias de poder, de novas formas de socializao que

    supuseram uma determinada [p.97] viso do mundo, o que implicou uma

    mudana no estatuto do saber e nas formas de produo da subjetividade.

    O auge das pedagogias psicolgicas: do psicopoder ao Homo clausus

    O fato de que numerosos representantes da Escola Nova, assim como o

    primeiro ncleo de especialistas em psicologia infantil, tenham sido mdicos ou

    tenham estado ligados clnica, explica, em parte, o interesse que prestaram s

    funes profilticas e teraputicas da educao, ao mesmo tempo que os coloca

    em uma posio privilegiada frente s pedagogias tradicionais ou disciplinares

    para impor suas teorias mais fundadas cientificamente. As perspectivas abertas

    por eles se intensificaram e estenderam medida que avanou o sculo XX. O

    23

    Na realidade, esta separao vem de longe. Richard Sennet demonstrou que a reorganizao do espao

    social, do pblico e do privado, est ligada, ao menos a partir do sculo XVIII, a uma nova definio da

    infncia, s diferenas graduais que se estabelecem entre as formas de jogo das crianas e dos adultos e

    funo do ato de amamentar os filhos que passam a ser de responsabilidade exclusiva da famlia. Cf.

    Declnio do homem pblico. So Paulo, Companhia das Leiras, 1989. 24

    Se observarmos outros mbitos e instituies sociais - escola pblica, colgios de ordens religiosas,

    fbricas, quartis, hospitais etc. - podemos comprovar que segue vigente nelas o exerccio do poder

    disciplinar. Assim pois, longe daqueles que conferem uma posio superestrutural s instituies

    educativas, estas podem ser, e de fato tm sido, um espao importante de experimentao e de inovao

    social.

  • campo da psicologia escolar diversificou-se: psicologia gentica, da aprendizagem,

    infantil, evolutiva, da instruo, cognitiva, de educao especial etc. E converteu-

    se no fundamento de toda ao educativa que aspirasse a ser cientfica.

    Configuram-se assim as pedagogias psicolgicas que fundam suas razes nas

    pedagogias corretivas. Uma vez mais, a gesto da anormalidade converteu-se em

    ponta de lana do governo de populaes mais amplas. Neste sentido, a infncia

    anormal, que parecia uma populao residual e secundria, serviu, na condio de

    objeto de tratamento e de tcnicas, de laboratrio de experimentao de novos

    saberes e poderes com desejo de expanso.

    Piaget e Freud, ambos ligados uma vez mais clinica, iro constituir dois

    referentes obrigatrios, a partir de finais dos anos 20, para a educao

    institucional 25

    . Tanto eles, como [p.98] seus discpulos imediatos, apesar de os

    sistemas tericos que elaboraram serem muito diferentes, coincidem em perceber o

    desenvolvimento infantil como etapas ou estgios progressivos e diferenciados,

    supostamente universais. Psicanalistas e piagetianos situam a criana no centro do

    processo educativo e atribuem ao mestre uma funo de ajuda. O ensino, em

    conseqncia, deve adequar-se cada vez mais aos interesses e necessidades dos

    alunos, sua suposta percepo especfica do espao e do tempo. A adaptao

    continua sendo o objetivo principal da educao. No foi em vo que Piaget fez

    sua a frase de Binet segundo a qual "a adaptao a lei soberana da vida", e

    para Freud o processo de sublimao conduz ao homem civilizado. A atividade

    segue ocupando o primeiro lugar nessas teorias da aprendizagem e, no caso

    concreto de Piaget, os exerccios sensrio-motores no apenas fazem parte do

    desenvolvimento da motricidade como jogam um importante papel no desempenho

    cognitivo. Neste sentido, situa-se em linha direta em relao com os promotores

    das pedagogias corretivas.

    A que formas de regulao social, ou seja, de exerccio do poder,

    encaminham essas formas de socializao escolar? Para responder a esta

    questo necessrio uma vez mais remeter esta instituio a uma configurao

    social mais ampla, sem esquecer os enfrentamentos e os conflitos sociais. Tudo

    parece indicar que foram certos grupos da burguesia os que desde os anos trinta

    aceitaram para seus filhos pequenos estes modos de educao ligados em sua

    origem s pedagogias corretivas. Tais grupos no pertenciam burguesia

    tradicional, que continuava aspirando a uma formao para seus filhos que

    expressasse e, se possvel, reforasse sua posio de poder e prestgio, e lhes

    conferisse uma identidade social e individual clara, forte e bem delimitada.

    25

    A primeira obra de J. Piaget, Le langage et la pense chez l'enfant foi publicada em 1923 e tambm

    por essa poca que comea a vulgarizao da psicanlise. E assim, entre os numerosos colaboradores da

    Revista de Pedagogia (fundada em 1922 por Lorenzo Luzuriaga), no apenas figuram todos os membros

    da Escola Nova como tambm psicanalistas e, entre eles, Oskar Pfister, que publicou durante esta dcada

    um texto de grande influncia, El psicoanlisis y la educacin.

  • As pedagogias psicolgicas caracterizam-se por um controle exterior frgil:

    a criatividade e a atividade infantis so promovidas e potencializadas e as

    categorias espao-temporais devem ser flexveis e adaptveis s necessidades de

    desenvol-[p.99]vimento dos alunos. Mas, nelas, o controle interior cada vez mais

    forte, j que agora no se baseia predominantemente na organizao e planificao

    minuciosa do meio, mas em normas cientificamente marcadas pelos estgios do

    desenvolvimento infantil. Como muito bem expressa Valerie Walkerdine, as

    estratgias pedaggicas destinadas a um desenvolvimento sem coaes desta suposta

    "criana natural e universal" "implicavam uma constante programao e vigilncia do

    que se considerava o desenvolvimento correto". Poder-se-ia dizer sem dvida que,

    como por ironia, esta criana foi vigiada e controlada muito mais do que nas "velhas

    pedagogias", porque no apenas se requeriam dela as respostas corretas, mas tambm agora

    era necessrio que mesmo seu verdadeiro mecanismo do desenvolvimento fosse

    controlado 26

    . Os alunos tm assim cada vez um menor controle sobre sua prpria

    aprendizagem, j que apenas os mestres, e sobretudo os especialistas, podem conhecer os

    progressos ou retrocessos que realizam. A verdade sobre eles mesmos e seus verdadeiros

    interesses torna-se uma realidade distante e alheia. Sofrem, portanto, um processo de

    expropriao cada vez mais intenso que constitui a outra face da intensificao de um

    estatuto de minoria que, alm dos cnticos criatividade, liberao e autonomia,

    supe dependncia e subordinao cada vez maiores.

    medida que nos adentramos na dcada de 60 poderia, talvez, afirmar-se que as

    leis e os estgios de desenvolvimento comeam a ser substitudos ou, em todo caso, a

    verem-se solapados, pelas leis do ritmo, mais diretamente vinculadas a certas correntes

    de vulgarizao da psicanlise, que colocam no centro do processo de aprendizagem

    o ritmo individual e as relaes interpessoais. Cada aluno tem um ritmo prprio,

    especfico, que deve ser respeitado. Toda ao educativa deve procurar que o aluno se

    expresse, se manifeste, encontre seu [p.100] estilo prprio, redescubra uma suposta

    "natureza natural" original e livre de coaes. A expresso, a comunicao, a

    criatividade, as relaes interpessoais reduzidas a um jogo de status, de papis, de

    funes so chamadas a desempenhar neste marco uma funo liberadora. Da que

    as leis do ritmo estejam diretamente relacionadas ao desenvolvimento do corpo, das

    linguagens, da gestualidade, da imagem: esporte, expresso corporal e verbal, teatro,

    psicodrama, dinmica de grupos, mmica, msica, dana e outras atividades que supem

    determinadas operaes de coordenao e de percepo espao-temporais passam a fazer

    parte da educao institucional.

    Muitos so os inspiradores destas pedagogias cada vez mais psicologizadas, que

    vo desde J. L. Moreno e K. Rogers at G. Bateson o qual trabalhou no hospital

    psiquitrico de Palo Alto e cujo modelo de interpretao da realidade parece ter

    infludo na viso do grupo como jogo de interaes. O grupo, um grupo psicologizado,

    26

    Cf. Walkerdine. V. "Enseaza comprensiva y educacin progresiva en Gran Bretaa", em Educar, para

    qu? Revista Archipilago, n. 6, 1991, pp. 20-6.

  • adquire assim um especial destaque ao servir de catalisador e regulador de tenses:

    refora a imagem de cada aluno, sublima conflitos e ajuda a superar deficincias afetivas.

    Da que, segundo algumas correntes, aprender consista em aprender a expressar-se

    l`ivremente". Ao mestre atribuem-se novos dispositivos de controles sutis, j que quem

    interpreta aquilo que perpassa o manejo de cdigos cada vez mais sofisticados e

    sempre em um suposto clima de no-diretividade 27

    . A ao educativa aproxima-se, desta

    forma, a uma espcie de psicoterapia cujos pilares so tambm a expresso e a liberao

    de energia, e a aprendizagem adota a forma de uma catharsis cuja finalidade seria

    desbloquear e eliminar resistncias.

    Toda essa literatura que se centra na atividade, na criatividade, na espontaneidade,

    enfim, na liberao, parte em geral da premissa de que o aluno - no singular e

    masculino - [p.101] pode liberar-se - no ser livre - mediante um intenso e

    sistemtico trabalho sobre si mesmo, mediante um processo de

    personalizao - no mais de individualizao. A noo de indivduo,

    caracterstica do processo de individualizao, j mais adequada a sistemas,

    como o de personalizao, que enfatizam a diversidade e uma relao entre

    pessoas que, em teoria, se ope a uma relao baseada no status.

    As pedagogias psicolgicas transmitem uma viso enviesada do mundo que

    tem de se adaptar no apenas a algumas supostas necessidades e interesses infantis

    como tambm a suas motivaes e desejos. Tal verso implica uma

    determinada percepo da infncia e, correlativamente, da idade adulta, e isso

    no apenas porque se acredita que a resoluo de conflitos que se produzem na

    infncia so determinantes no futuro desenvolvimento pessoal. Por trs destas

    racionalizaes, reformas e mudanas de modelos pedaggicos se escondem na

    realidade batalhas e interesses entre grupos sociais que tratam de impor e

    legitimar sua prpria viso do mundo e da cultura 28

    . O sistema de regulao

    espao-temporal com o qual operam implica uma flexibilizao mxima do

    tempo e do espao ao ter que se adaptar as distintas tarefas da aprendizagem,

    como destacamos, ao ritmo interno de cada aluno, dinmica particular de cada

    grupo. Neste sentido, a classe percebida, em sua organizao, atravs de uma

    tica psicolgica (interaes, papis, lderes, grupos dominados...) passando agora

    o controle, como acertadamente observou Basil Bernstein, pela comunicao

    interpessoal 29

    . Os saberes, os contedos perdem assim

    progres-[p.102]sivamente seu valor, pois j no se trata tanto de transmitir

    27

    Um dos "ensaios" mais conhecidos, baseado em princpios psicanalticos, foi o de Summerhill: uma

    instituio dedicada tambm educao de crianas e adolescentes "inadaptados" das "novas classes

    mdias", e destinada liberao e afirmao radical da criana como bom selvagem. 28

    Cf. Varela. J. "Una reforma educativa para las nuevas clases medias", em Educar para qu?,

    Archipilago, n. 6, 1991, p. 65-71. 29

    Basil Bernstein, um dos socilogos da educao mais lcido e coerente, tambm um dos poucos

    autores que tem tentado relacionar a sociologia do conhecimento - no em vo um bom conhecedor de

    Durkheim - com a sociologia da educao. Nosso questionamento apresenta muitas afinidades com o seu,

    mas se diferencia dele, entre outras coisas, pelo fato de que Bernstein, mais do que se referir a categorias

    de pensamento, utiliza conceitos tais como "formas de classificao" e "marcos de referncia", no

    momento de definir as pedagogias visveis e invisveis, e concede uma menor importncia s formas de

    subjetivao.

  • saberes, nem de partir em caso extremo da globalizao de destrezas

    mltiplas ligadas "relao", que se converte no motor da formao.

    Aprender a aprender , em ltima instncia, aprender a escutar-se atravs

    dos outros. Frente ao poder disciplinar, caracterstico das pedagogias tradicionais,

    o psicopoder, caracterstico das pedagogias psicolgicas, baseia-se em tecnologias

    cuja aplicao implica uma relao que torna os alunos tanto mais dependentes e

    manipulveis quanto mais liberados se acreditem.

    Explica-se, pois, que esteja no auge uma programao educativa opcional,

    preparada e disponvel, na qual o culto personalizao se incrementa. A educao

    institucional volta-se cada vez mais busca de si mesmo, a viver livremente sem

    coaes, sem esforo, no presente. Trata-se de formar seres comunicativos,

    criativos, expressivos, empticos, que interajam e comuniquem bem. Essas

    personalidades flexveis, sensveis, polivalentes e "automonitorizadas" capazes

    de autocorrigir-se e auto-avaliar-se esto em estreita interdependncia com

    um neoliberalismo consumista que to bem se harmoniza com identidades

    moldveis e diversificadas em um mercado de trabalho cambiante e flexvel que

    precisa de trabalhadores preparados e disponveis para funcionar.

    Um dos autores que cantam as vantagens deste neoliberalismo e destacam o

    vertiginoso campo de possibilidades que, segundo dizem, existe no presente,

    includas as do processo de personalizao, escreve:

    A apatia (atual) no um deleito de socializao, mas uma

    socializao flexvel e econmica, uma expanso necessria

    para o funcionamento do capitalismo moderno enquanto

    sistema experimental acelerado e sistemtico. Fundado na

    combinao incessante de possibilidades, inditas, o

    capitalismo encontra na indiferena uma condio ideal para

    sua experimentao que pode cumprir-se assim como um

    mnimo de resistncia. 30

    [p.103]

    O texto suficientemente claro em relao a esta espcie de harmonia

    preestabelecida entre as exigncias de uma neocapitalismo agressivo e a

    construo de "personalidades apticas".

    O peso to forte que adquirem os especialistas na vida cotidiana e

    especialmente os psi (psiquiatras, psicanalistas, psiclogos) justifica que outros

    analistas sociais vejam nesta busca incessante e insatisfatria de si prprios uma

    dimenso prototpica da atual sociedade teraputica. A crescente preocupao por

    si prprio, a popularizao, nos pases de capitalismo avanado, das terapias

    paranormais, a identificao cada vez maior do eu com o corpo e com a

    imagem, o auge de um misticismo e espiritualismo sectrios, assim como dos

    fundamentalismos, enfim, todos estes fatores estariam intimamente vinculados a

    uma sociedade burocratizada e consumista na qual abundam personalidades

    narcisistas. Frente ao individualismo resultado de tecnologias de poder

    30

    Cf. Lipovetsky. G. Imprio do efmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. So Paulo,

    Companhia das Letras, 1989.

  • disciplinares - no qual o sujeito tinha que se fazer a si mesmo, ser competitivo e

    ambicioso e alcanar o sucesso "graas a suas capacidades e mritos prprios", o

    narcisismo - resultado de tecnologias de psicopoder - seria prprio de sujeitos

    voltados sobretudo conquista e ao cuidado de si prprios, busca da riqueza

    e da paz interiores. O mundo dos afetos e dos desejos parece, pois, predominar

    neste tipo de subjetividade fechada, para a qual o amor, a amizade, a

    generosidade, o trabalho bem-feito, a confrontao dos desejos com as realidades e

    as possibilidades de compreender e transformar o mundo que nos rodeia parecem

    distanciar-se cada vez mais, pois, como temos tentado mostrar, a formao destas

    subjetividades enclausuradas est em estreita relao, no apenas com a aplicao de

    especficas tecnologias de poder, mas tambm com a psicologizao e

    pedagogizao dos saberes. como se as instituies escolares que funcionam com

    pedagogias psicolgicas se afastassem nas primeiras etapas de formao da funo

    explcita da transmisso de saberes, como se a paixo pelo conhecimento e a

    compreenso dos mundos da natureza e da cultura se vissem relegados ou quase

    excludos em detrimento de um processo de formao de [p.104]

    personalidades apenas encoberto mediante referncias ao ldico-tecnolgico, a

    processos de simulao de problemas, a jogos na "realidade virtual" que fazem

    de muitas destas escolas verdadeiros parques de alucinado entretenimento.

    Christopher Lasch, em uma espcie de tipologia da personalidade narcisista -

    para quem o mundo e os demais so um reflexo do eu -, apresenta-a como

    prpria de pessoas encantadoras que manejam bem suas relaes com os demais,

    so brilhantes, obsequiosas e sedutoras, movem-se bem em encontros

    espordicos e superficiais, evitam o compromisso, anseiam estima e

    reconhecimento, temem o passar do tempo, tm fantasias de onipotncia e se

    crem com direito a manipular e explorar a quem as rodeia 31

    . Essa exitosa

    "personalidade" de nossos dias est ligada utopia de um exerccio de poder

    cada vez menos visvel, mais capilar e microscpico que se incorpora em formas

    de socializao e em modos de educao especficos, e que produz "um corpo

    prprio", frente ao corpo-segmento do poder disciplinar. O narcisismo constitui,

    certamente, um paradigma de subjetividade a qual apenas podem se aproximar

    alguns dos indivduos existentes que, por pertencer a determinados grupos sociais,

    podem rentabilizar ao mximo esse "capital relacional" to em alta na

    atualidade.

    As mudanas que se tm operado nas ltimas dcadas e que, como estamos

    vendo, incidem cm uma percepo e em uma construo determinada do

    mundo, dos saberes e dos sujeitos - percepo que coexiste com outras

    percepes e culturas -, implicam modificaes importantes nas formas de

    conceber e interiorizar as regulaes espao-temporais: tempos e espaos

    flexveis e adaptveis s motivaes e desejos do sujeito no presente. Tais

    processos nos obrigam a nos perguntar se no esto ligados ao que se

    31

    Cf. Lasch, Ch. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro, Tinago. 1983.

  • convencionou chamar a perda do sentido histrico o to propagado fim da

    histria , da memria histrica, a qual suporia uma ruptura com relao

    percepo social do tempo como continuum. Esta ruptura [p.105] no apenas

    incidiria na viso do mundo como tambm na da prpria identidade pessoal: na

    atualidade, quando alguns parecem alardear possuir mltiplos eus, a grande

    maioria dos sujeitos tem trabalho suficiente para tratar de manter o que

    adquiriram com dificuldades e que, em muitos casos, implica uma conscincia de

    fragilidade que leva a uma busca de ajuda e de tratamento.

    A este tempo e espao subjetivados, psicologizados e "interiores" se

    oporiam, em nossos dias, espaos e tempos sociais, objetivos, "exteriores", cada

    vez mais regrados e coativos. Frente ao tempo e espao pblicos, cuja

    regulao depende dos profissionais da poltica, da Administrao e de um

    sem-fim de peritos, o tempo e o espao privatizados so percebidos pelos sujeitos

    como algo pessoal e prprio, "ntimo", um reduto onde expressar-se e expressar

    seu prprio eu supostamente sem reaes e interferncias.

    Norbert Elias, que analisa com grande lucidez, a partir de outra

    perspectiva, alguns dos processos que tentamos ligar socializao escolar,

    mostra como, nas sociedades ocidentais, foi-se conferindo, atravs de uma lenta

    aprendizagem social, mais valor "identidade como eu" que "identidade

    como ns". Existe, no entanto, para isso, uma discordncia entre esse desejo

    construdo e estimulado socialmente de autonomia, criatividade e liberao pessoal

    - que supe uma ampla margem de escolha a que apenas tem acesso uma

    minoria - e as possibilidades reais de satisfaz-lo, j que os modos e mbitos

    para consegui-lo esto fortemente delimitados e so de difcil acesso. Da que

    frente sensao de auto-realizao de uns poucos, a maioria manifeste um mal-

    estar de viver caracterizado pela apatia, o vazio e a culpa. Esta sensao de

    fracasso existencial continuar existindo, em sua opinio, enquanto no se

    produzir um maior ajuste entre a configurao social das necessidades e desejos

    e as possibilidades socialmente abertas para canaliz-los, ou seja, enquanto se

    continue aprofundando a diviso e separao entre "o exterior" e "o interior",

    entre o pblico e o privado, separao que carrega importantes [p.106]

    conflitos atualmente existentes, ao mesmo tempo que serve para ocult-los e

    escamote-los. O Homo clausus correlativo de uma sociedade na qual

    desapareceram as paixes polticas, tem-se psicologizado e burocratizado as

    decises, prima o nvel de vida sobre a qualidade de vida, enfim, onde no

    apenas as crianas, como tambm os adultos, se converteram em seres

    "egocntricos" 32

    .

    A escola no alheia a estes desajustes nos quais se forjam a

    insolidariedade, a solido e a dependncia e infantilizao dos homens. So

    32

    Robert Castel tem mostrado com lucidez em vrios de seus livros at que ponto o auge da cultura

    psicolgica, a afanosa busca da liberao individual, supe um parntese das relaes sociais que serve de

    parapeito tambm prpria psicologia como instituio. Cf. O psicanalismo, Rio de Janeiro, Graal, 1978;

    La societ psychiatrique avance, Paris, Grasset, 1979; e La gestion des risques. Paris, Minuit. 1981.

  • muitos os que pensam que as instituies escolares carecem de autonomia e se

    movem como um barco a vela merc dos ventos que sopram. Mas seu papel

    no to subordinado, nem to secundrio como tantas vezes se pretende. A

    transmisso de categorias de pensamento na escola e sua interiorizao so hoje

    fundamentais para a manuteno do status quo, da ordem escolar e da ordem

    social. Neste sentido, as anlises e as discusses sobre a organizao das escolas

    no podem, hoje, evitar os problemas relacionados com as categorias, as formas

    de subjetividade, o estatuto do saber e os mecanismos de poder . Em torno destas

    dimenses giram no apenas a mudana escolar como tambm a mudana social.

    As alternativas, portanto, escola disciplinar e escola psicologizada poderiam

    servir de lugar de encontro para os que, tanto a partir da teoria como a partir da

    prtica, seguem comprometidos na busca de novos modos de educao que

    promovam uma sociedade mais igualitria e mais livre.