piá - espaço de encontro fabi ribeiro
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PIÁ, ESPAÇO DO ENCONTRO
Fabi Ribeiro Artista educadora
PIÁ – CCJ – 2014
“Tenho um livro sobre águas e meninos
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.(...)
O mesmo que criar peixe no bolso. O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio
do que do cheio.(...)” Manoel de Barros
Narrativas de dragão – Piá –CCJ -2014
O processo dos dragões deve inicio com o Ítalo, artista educador do Piá
(Programa de Iniciação Artística), ensinando a construir um brinquedo da
sua infância – o “barangão”. Jornal, papel crepom e barbante. Ei-lo ágil,
suave e sonoro pelo ar.
Mas num encontro onde todos são “crianças que carregam água na peneira”
o brinquedo é um dragão e a sala acústica do estúdio do CCJ um útero.
Sala-acústica-útero. Útero de dragões.
Na sala forrada de espuma, silenciosa e aconchegante nasce o dragão.
Um dragão que dança.
Um dragão que se aventura em busca de outros lugares e pessoas.
Encontra personagens nas rodas de criação coletiva de histórias. E estas
ganham movimento-voz-canto... vida no corpo dos piás e da dupla de artistas
educadores.
Viaja com um menino no trenzinho caipira e conhece artistas educadores na
Emia e pais no CCJ.
Vai para casa na mão e na cabeça dos piás e volta para nosso encontro em
histórias escritas e ilustradas.
Se encanta e encanta os monitores do CCJ que os constroem com crianças
ainda não piás.
A partir deste relato inicial me entrego a este impulso ensaístico.
Interessa compreender o espaço “encontro” no Piá. É uma aula de iniciação
artística que acontece uma vez por semana? Sim e não. Talvez além. É um
momento de iniciativa artística? Um espaço facilitador para criança acessar o
faz de conta e ter experiências artísticas-estéticas-afetivas? Um espaço de
resistência a uma educação bancária?
Também procuro investigar o desenvolvimento da autonomia da criança
neste programa. Esta relação de autonomia do indivíduo que por vezes
apresenta-se como um impulso a um movimento de expressão do coletivo.
No processo das narrativas de dragões um dos pías da turma de sábado de
manhã trouxe uma história escrita por ele em casa e depois de uma atenta
escuta do grupo surgiu no mesmo a ideia e o desejo de encená-la. Da
narrativa à cena. Da criação literária individual à encenação em coletivo. E
por semanas foram sendo escritas e apresentadas histórias de dragões.
Contribuições literárias espontâneas que reverberaram na turma de sábado à
tarde que passou a ler as histórias da turma da manhã no inicio do nosso
encontro.
Na turma de quarta-feira um dos piás trouxe uma câmera fotográfica de
papelão e esta foi o start para o grupo se mobilizar. Com a possibilidade de
“fotografar”, o grupo trouxe um repertório de dança e teatro para ser clicado
pelo olhar do outro. Fotografia e memória. Com cadeiras e tecidos edificaram
um teatro no meio da brinquedoteca e revezaram-se nas funções de atores,
dançarinos, dj, apresentador, fotógrafo e público.
Momentos de iniciativa artística que confirmam no Piá a prática de uma
educação não “bancária”, pois “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si
mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”3.. Assim a
educação se faz por meio de uma relação dialógica entre as crianças do
programa e equipe de artistas educadores.
A certeza de pertencimento pouco a pouco transformou o encontro também
em “Ágora”. Espaço de experiência política genuína de compreender-se
como ser social atuante na sociedade em que vive.
Em um determinado momento da ocupação do PIÁ no CCJ fomos informados
pela equipe de segurança que estava proibido correr no centro cultural. Neste
dia a turma escreveu uma carta- manifesto pelo direito de brincar.
No período da eleição criou-se um experimento de vídeo chamado “Partido
do Piá” e entre perguntas e respostas refletiram sobre educação, fome,
moradia e o espaço do brincar.
Surgiu uma proposta de “aula sem governo” quando conversamos sobre o
encerramento das aulas em novembro.
Propostas assim me fazem pensar em como é importante discutir o espaço
para a experiência filosófica no encontro....o pensar...a práxis.
Paulo Freire nos diz que “a educação qualquer que seja o nível em que se
dê, se fará mais verdadeira quanto mais estimule o desenvolvimento desta
necessidade radical do ser humano, a de sua expressividade.”
O PIÁ é um espaço de ser e de criar. Lugar para expressão estética, política e social.
Lugar da invenção e da surpresa.
Lugar onde ganhos individuais são compartilhados e potencializados no
coletivo.
Lugar assim deveria ser a regra, mas é uma exceção.
É um espaço de resistência em uma sociedade capitalista, tecnicista, que
trata a educação como mercadoria.
Hoje o ensino formal está voltado para a especialização. Afastando cada vez
mais o ser humano de uma educação integral.
É importante lembrar que os piás são crianças que participam
simultaneamente de no mínimo duas experiências educacionais: a escolar e
a do nosso programa que propicia conhecimento por meio de uma
experiência interlinguagem. Faz-se necessário investigar como se dá esse
processo na criança.
E quem são os participantes destes encontros?
São seres curiosos.
(O ser curioso está aberto ao encontro e em busca de diálogo).
São pessoas que carregam água na peneira. Capazes de modificar a tarde
botando uma chuva nela.
Crianças e artistas-educadores unidos e dispostos a “ver com olhos livres”1 .
Entendo a palavra cultura como cultivo. Cultivamos a terra com o objetivo de
cuidar da vida que nela se desenvolve.
Talvez esta seja a função do artista-educador e das crianças no Piá: cultivar
vida.
PS A POESIA EXISTE NOS FATOS 2
A POESIA EXISTE NAS FOTOS
EXISTE
POESIA FATO
POESIA FOTO
POESIA
1 e 2 Oswald de Andrade. Manifesto Pau-Brasil
3 Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido, capitulo 2 - A concepção “bancária”
da educação como instrumento de opressão. Seus pressupostos, sua crítica.