aula 05 direito natural escolÁstico medieval santoa agostinho

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Professora Doutora Leila Bijos AULA 05 20.08.2007 DIREITO NATURAL ESCOLÁSTICO-MEDIEVAL Principais Tópicos a serem abordados: 1. Santo Agostinho 2. São Tomás de Aquino 3. Lei eterna, lei natural e lei humana 4. Direito natural racionalista: precursores 5. Grócio 6. Laicização do Direito 7. Direito International e Direito de Guerra. A COMPREENSÃO FILOSÓFICA E CONCEITUAL DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO PRINCIPAIS TÓPICOS A SEREM ABORDADOS: 1.Antecedentes históricos do Direito Internacional Humanitário: conflitos armados, pessoas protegidas, bens protegidos 2. A compreensão filosófica e conceitual do Direito Internacional Humanitário. DEFINIÇÃO DE DIREITO DIREITO: droit em francês, right em inglês, Recht em alemão, diritto em italiano e direito em português provém de uma metáfora onde a figura geométrica adquiriu sentido moral e em seguida jurídico: o direito é a linha reta, que se 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA – UCB FILOSOFIA DO DIREITO

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Page 1: AULA 05 DIREITO NATURAL ESCOLÁSTICO MEDIEVAL SANTOA AGOSTINHO

Professora Doutora Leila Bijos

AULA 0520.08.2007

DIREITO NATURAL ESCOLÁSTICO-MEDIEVAL

Principais Tópicos a serem abordados:1. Santo Agostinho2. São Tomás de Aquino3. Lei eterna, lei natural e lei humana4. Direito natural racionalista: precursores5. Grócio6. Laicização do Direito7. Direito International e Direito de Guerra.

A COMPREENSÃO FILOSÓFICA E CONCEITUAL DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO

PRINCIPAIS TÓPICOS A SEREM ABORDADOS:

1.Antecedentes históricos do Direito Internacional Humanitário: conflitos armados, pessoas protegidas, bens protegidos 2. A compreensão filosófica e conceitual do Direito Internacional Humanitário.

DEFINIÇÃO DE DIREITO

DIREITO: droit em francês, right em inglês, Recht em alemão, diritto em italiano e direito em português provém de uma metáfora onde a figura geométrica adquiriu sentido moral e em seguida jurídico: o direito é a linha reta, que se opõe à curva, ou à oblíqua e que se liga à noção de retidão, de franqueza e de lealdade nas relações humanas.

DIREITO SUBJETIVO E DIREITO OBJETIVOO direito subjetivo é o que se considera como pertencente à pessoa, indivíduo ou

coletividade: é a faculdade que cabe a cada um de exercer uma ou outra atividade.O direito objetivo é a norma - ou o conjunto de normas - que se aplicam aos

indivíduos (ou às coletividades) e que devem ser observadas sob penas de sanções.

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA – UCB

FILOSOFIA DO DIREITO

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Se o direito subjetivo é uma faculdade, uma liberdade, o direito objetivo é essencialmente uma obrigação. Perguntamos, então, como pode um mesmo termo comportar dois conceitos tão diferentes e praticamente antagônicos?

O direito subjetivo, embora se apresente como conquista do indivíduo, e por isso mesmo longe da idéia de coerção, não deixa de ser um conjunto de regras que implicam sanções e que têm por finalidade garantir o funcionamento das liberdades que proclama. Embora não sendo aplicada da mesma forma, é certo que a idéia da obrigação constitui a base tanto do direito subjetivo como do direito objetivo.

CATEGORIAS DO DIREITO

Direito público e direito privado

Pertencem ao direito público as regras que regem os Estados entre si, como o direito público internacional, outrora chamado direito das gentes, ou que regem as relações entre os indivíduos e as coletividades a que pertencem, como o direito constitucional, o direito administrativo e outros.

DIREITO PRIVADONo direito privado, entretanto, entram em jogo apenas os interesses particulares, como acontece no direito civil ou no direito comercial. E, afinal, como proceder quando as situações implicam interesse geral e interesse particular?

DIREITO PENAL E DIREITO PROCESSUAL

Onde devemos classificar o direito penal ou o direito processual?

De acordo com as necessidades práticas ou pedagógicas, classificamo-los indiferentemente no direito público ou no direito privado.

SURGIMENTO E POSIÇÃO DO DIREITO

O próprio direito civil, que é tradicional matéria do direito privado, está cheio de elementos tirados do direito público, em conseqüência da intrusão cada vez mais importante da coletividade nas relações entre particulares. Ex.: contratos. O que se chama de “publicização” do contrato, mesmo nos países capitalistas.

TRÊS GRANDES TEORIAS DO DIREITO

A doutrina espiritualista

A doutrina marxista

A doutrina sociológica

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AS DOUTRINAS ESPIRITUALISTAS

A idéia diretora é que o direito é uma inspiração - racional ou sobrenatural, pouco importa - plantada no coração do homem para lhe traçar o caminho a seguir e lhe ditar a conduta a ser mantida CONCEPÇÕES DA ANTIGUIDADE

Doutrina surgida entre os gregos: Platão e Aristóteles, mas também nos Estóicos.Cícero, o intérprete da filosofia grega entre os romanos, expô-la eloqüentemente em diversas passagens de seus discursos e particularmente no trecho seguinte, tirado de De Republica:

“Existe uma lei verdadeira, reta razão, conforme à natureza, difusa em todos, constante, eterna, que apela para o que devemos fazer, ordenando-o, e que desvia do mal, que ela proíbe; que, no entanto, se não ordena nem proíbe em vão aos bons, não muda por suas ordens nem por suas proibições os maus..”. CÍCERO, De re publica, 3, 22, 33

É de instituição divina que não se possa propor ab-rogar essa lei e que não seja permitido derrogá-la... Não é preciso procurar um Élio Sexto para comentar ou interpretar; ela não é diferente em Roma ou em Atenas; não é diferente hoje nem será amanhã; mas sim, lei única e eterna, e imutável, ela será para todas as nações e para todos os tempos...”

PENSAMENTO HELÊNICO

Imbuídos do pensamento helênico, os jurisconsultos romanos elaboraram sobre essas bases, uma concepção do direito muito próxima desses princípios e profundamente impregnada da moralidade. Para Celso (século segundo de nossa era), o direito é a arte do bom e do justo (ars boni et aequi).

CONCEPÇÕES DA ANTIGUIDADE

Ulpiano (meio século depois) resume o direito nas três máximas seguintes:

1. honeste vivere (viver honestamente);2. alterum non laedere (não prejudicar ao próximo); 3. suum cuique tribuere (dar a cada um o que lhe pertence).

Preceitos ideais de conduta, mais do que regras precisas de direito. Deu-se-lhe o nome de direito natural, em oposição ao direito civil, termo que então designava as regras próprias a cada Estado (civitas).

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No espírito dos jurisconsultos, existe uma espécie de hierarquia nas prescrições jurídicas, e as leis civis devem sempre basear-se nos grandes princípios acima enunciados.

CONCEPÇÃO MEDIEVAL

No momento em que a civilização antiga se esboroa, sob a pressão conjugada dos povos germânicos e da religião cristã, o direito entra em declínio evidente, pelo menos no Ocidente. Assistimos à construção de uma sociedade inteiramente nova, que foi o feudalismo.

FEUDALISMO

No feudalismo, as normas de direito deixaram de se basear no princípio de igualdade - como se verificava com as normas do direito romano - para, ao contrário, basearem-se no princípio da hierarquia e de subordinação.

O elemento primordial de tal sistema jurídico é o contrato, mas um contrato profundamente diferente do contrato romano ou do contrato moderno. Em primeiro lugar, pertence tanto ao direito público como ao direito privado, visto que a noção da soberania do Estado desapareceu quase completamente, e as funções públicas tornaram-se, em grande parte, patrimoniais.

O CONTRATO MEDIEVAL

O contrato medieval não corresponde absolutamente à definição romana e moderna, segundo a qual ele é, teoricamente, o produto de duas vontades iguais e livres. É uma espécie de tratado que coloca ou mantém uma pessoa ou uma terra em estatuto preciso, o qual comporta direitos e obrigações determinadas.

O DIREITO NA IDADE MÉDIA

O direito era transmitido oralmente, sob forma de costumes escrupulosamente observados que nunca eram objeto de qualquer reflexão crítica. Por essas razões, compreende-se por que o direito feudal não mereceu da parte dos contemporâneos uma elaboração doutrinal aprofundada.

ELEMENTOS DE UMA DOUTRINA JURÍDICA

É na Igreja, através dos teólogos e dos juristas (os canonistas), que vamos encontrar os elementos de uma doutrina jurídica - doutrina que se aproxima, em grande parte, do pensamento dos jurisconsultos romanos, a despeito de seu paganismo.

CATEGORIAS DE DIREITO

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SANTO TOMÁS DE AQUINO, o mais ilustre doutor da Idade Média, distingue três categorias de direito:

1a. Direito Divino: baseado nas Escrituras e nas decisões de papas e concílios; 2a. Direito Natural: quase não se diferencia do direito natural apregoado pelos

romanos. Suas regras têm fundamento racional: a razão não se opõe à fé; pelo contrário, deve-se ver nela sua expressão mais loquaz.

PRESCRIÇÕES DO DIREITO

Por isso, é evidente que essas prescrições do direito prevaleçam sobre o direito positivo, sempre que houver entre ambos alguma contradição. Assim, por exemplo, admite-se a desobediência, se dela depender o respeito do direito natural, que é também, indiretamente, pode-se dizer, um direito divino.

RENASCIMENTO DO DIREITO ROMANOPartindo de Bolonha, no fim do século XI, o movimento expandiu-se por toda a

Europa Ocidental, principalmente na Itália e na França. Causas dessa ressurreição: transformações sociais e econômicas que se

verificaram então e que estimularam a criação de uma população urbana pouco propensa a se acomodar com o regime jurídico feudal.

O DIREITO NATURAL

Durante a Idade Média, o direito natural era considerado como racional, sem dúvida, mas também como de direito divino; ao passo que no Renascimento ele sofreu um processo de laicização, cujo traço significativo podemos encontrar posteriormente nas teorias do grande jurista holandês GROTIUS.

TEORIAS DO GRANDE JURISTA HOLANDÊS GROTIUS

“O que dissemos teria algum fundamento, mesmo supondo, o que não seria sem crime, que Deus não existe ou não se ocupa dos problemas humanos”.

Corajoso, expunha-se ao dizer que o direito não depende de nenhuma vontade exterior, nem mesmo da vontade divina.

GROTIUS E O DIREITO NATURAL

GROTIUS foi o primeiro a aplicar o direito natural nas relações internacionais, ou seja, num campo que até então nunca fôra submetido a qualquer regulamentação. Neste aspecto realizou progresso considerável, podendo, só por isso, ser considerado benfeitor da humanidade.

Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso, de subordinação do poder executivo ao poder legislativo, de

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poder limitado, de direito de resistência, conforme exposto na teoria do Estado liberal de John Locke.

Genericamente, pode-se dizer que, para o jusnaturalismo contratualista, a sua regra básica consiste na necessidade de basear as relações sociais e políticas não instrumento de racionalização, o direito, ou de ver no pacto a condição formal da existência jurídica do Estado.

Resumidamente, pode-se retomar este debate para dizer que, para Hobbes, o contrato social, à maneira de um pacto em favor de terceiro, é firmado entre os indivíduos que, com o objetivo de preservarem suas vidas, transferem a outrem não-partícipe (homem ou assembléia) todos os seus poderes – não há, ainda, que se falar em direitos, pois estes só aparecem com o Estado. Ou seja: para pôr fim à guerra, despojam-se do que possuem em troca da segurança do Leviatã1.

Streck e Bolzan de Morais (2004: 38) ressaltam que “contrapondo Hobbes, para Locke o poder estatal é essencialmente um poder delimitado. O erro do soberano não será a fraqueza, mas o excesso. E, em conseqüência, por isso, admite o direito de resistência. A soberania absoluta, incontrastável, do primeiro cede passo à teoria do pai do individualismo liberal, na qual ainda consta o controle do Executivo pelo Legislativo e o controle do governo pela sociedade (cernes do pensamento liberal)”.

Já no terceiro contratualista – Jean Jacques Rousseau – há um deslocamento da noção de soberania. Para chegar naquilo que Rousseau denominou de contrato social, é fundamental que se compreenda o estado de natureza e a inserção do homem em comunidade. Com efeito, o estado de natureza em Rousseau é somente uma categoria histórica para facilitar esse entendimento. Assim, no “Discurso sobre a desigualdade”, Rousseau diz que “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, depois de haver delimitado um terreno, pensou em dizer 'isto é meu', e falou a outros, tão ingênuos para nele acreditarem”. A desigualdade nasceu, pois, junto com a propriedade, e, com a propriedade, nasce a hostilidade entre os homens. Com isso se percebe a visão pessimista de Rousseau sobre a história, ao ponto de Voltaire ter classificado o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens como sendo um “libelo contra o gênero humano”.

Ao contrário de Hobbes, Rousseau não considera o homem como “o lobo do homem”; na verdade, o homem se transforma no lobo do homem no decorrer da história. É fácil perceber, assim, que o estado de natureza rousseauniano é antitético ao de Hobbes: “Tudo é bom quando sai das mãos do Autor das coisas”, porém “tudo se degenera nas mãos do homem”, sentencia. Conseqüentemente, no seu Contrato Social, Rousseau diz que o homem nasceu livre, e, paradoxalmente, encontra-se aprisionado. Rousseau pretende, assim, devolver a liberdade ao homem, e o modelo que propõe se sustenta na consciência humana e deve estar aberto à comunidade: “A passagem do estado de natureza até o estado social produz no homem uma mudança bem acentuada, substituindo, em sua conduta, o instinto pelo sentimento de justiça, e outorgando a suas ações relações morais que antes estavam ausentes (Streck e Bolzan de Morais, 2004: 38-39).

O SÉCULO XVIII

1 A respeito do tema, ver: Bolzan de Morais, José Luis. Ainda Hobbes. Revista da Faculdade de Direito da URI/FW. Frederico Westphalen: EDURI, 1999.

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Por ser fundamento racional, a teoria do direito natural ligava-se como vimos, às doutrinas dos jurisconsultos da Antiguidade. Concordava, igualmente, com o espírito dos pensadores do século XVII e mais ainda com os pensadores do século XVIII. Nessa época, preocupações de caráter social e político vieram acentuar as tendências individualistas que as teorias racionalistas traziam em germe.

DIREITO DA GUERRA E AS CORRENTES DE PROTEÇÃO

PRINCIPAIS TÓPICOS A SEREM ABORDADOS:

1.Convenção de Genebra: 1864 2. Diferenciação entre jus ad bellum e jus in bello. 3. Identificação das Correntes de Proteção: Haia, Genebra, Nova Iorque. 4. Princípios do Direito Internacional Humanitário: situações de aplicação.

1. INTRODUÇÃO

Ao abordarmos o tema do direito internacional humanitário surgem certas interrogações que requerem explicação. A primeira delas é a questão das relações que existem entre esse corpo de regras internacionais e o resto do direito pelo qual são regidas as relações na comunidade internacional. Muito freqüentemente, expressa-se a opinião de que o direito internacional humanitário é uma espécie de direito à parte, ou seja, que se encontra fora do direito internacional público geral, e ainda mais, separado dos ramos especializados deste direito. Não obstante, esta opinião, imputável a certo desinteresse pelo direito internacional humanitário – desinteresse que se manifestou, especialmente nas décadas de 40 e 50 – não tem fundamentos na história do direito internacional público.

O desenvolvimento do direito internacional moderno faz com que esta questão seja supérflua, pois este direito, na versão clássica vigente até hoje, pelo menos até 1945, delimita, no conjunto de suas regras, dois grandes âmbitos dotados praticamente da mesma importância. O primeiro contém as normas pelas quais eram regidas as relações entre Estados em situações de paz; o segundo, as que regiam as relações em caso de conflito armado. Tanto o direito da paz como o direito da guerra constituíam o conjunto do direito internacional público. Cabe lembrar que o Estado soberano tinha o direito de recorrer à força em suas relações com outros Estados. Além disso, recorrer à força era o atributo de sua soberania, a expressão mais cabal da sua qualidade de Estado.

2. DIREITO DA GUERRA

Costuma-se considerar o ano de 1864 como a data do nascimento do direito internacional humanitário – ano em que foi celebrada a primeira convenção de Genebra – muito embora os dispositivos deste direito já existissem muito antes, a nível consuetudinário.

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Segundo as fontes que temos para conhecer o direito internacional, no ano 1000 antes de Cristo já existiam regras sobre os métodos e os meios de condução das hostilidades, por um lado, e por outro lado, algumas normas tendentes à proteção de certas categorias das vítimas dos conflitos armados. Mesmo fora do direito consuetudinário, convém lembrar grande número de tratados internacionais bilaterais e multilaterais que contém normas deste tipo. Referimo-nos, principalmente, a tratados de paz, acordos internacionais de capitulações, rendições e certos acordos de cessação de hostilidades, como por exemplo, os tratados de armistício.

O direito humanitário, como parte do direito internacional da guerra, adquiriu características mais específicas quando começou a conter normas que se referem, com maior detalhe, ao regime geral da proteção internacional das vítimas de conflitos armados. A relativa facilidade com que os Estados-membros da comunidade internacional de então procederam – no ano de 1864 em Genebra – à codificação e à especificação das primeiras normas que protegeriam os feridos e doentes no campo de batalha, é uma prova de que, tanto do ponto de vista da conveniência de se aprovar tais normas, a comunidade internacional sentia-se preparada para estabelecer, mesmo que ainda muito embrionário, um regime geral de proteção das vítimas da guerra.

Do ponto de vista do direito internacional, a Convenção de 1864 constitui a outorga da proteção do direito internacional a toda uma categoria de vítimas como tal. Além disso, representa a limitação da soberania do Estado na condução das hostilidades no tocante aos indivíduos que estejam envolvidos nas mesmas. Trata-se, em ambos os casos, de medidas de proteção, das quais a primeira é o dever que os Estados em guerra têm de tomar certas iniciativas para com as vítimas do conflito armado, enquanto que a segunda é uma limitação imposta pelo direito internacional público à soberania absoluta “ratione personae”, ou seja, em relação ao indivíduo (Swinarski, 1996: 16). 3. DIREITO DE GENEBRA – DIREITO DE HAIA

Paralelamente ao desenvolvimento da proteção das vítimas de conflitos armados, os Estados consideram necessário estabelecer limites de direito aos métodos e aos meios de combate. A guerra, considerada ainda uma necessidade, não devia ocasionar mais sofrimentos e nem mais destruições que os imprescindíveis para o desempenho da sua função. Em outras palavras, qualquer meio e qualquer método tendente a estendê-la além de seus objetivos, causando sofrimentos inúteis, foram excluídos pela comunidade internacional, ou seja, declarados ilícitos do ponto de vista do direito internacional público. O princípio da guerra lícita, a qual utilizaria só métodos e meios permitidos pelo direito, tinha-se fortalecido em razão das codificações realizadas nos anos de 1899 e 1907 em Haia com o título de Convenções de Haia.

A partir da Convenção de Genebra de 1864, da Declaração de São Petersburgo de 1868 e das Convenções de Haia, o direito de guerra orienta-se, na área do direito internacional convencional, para perspectivas bem articuladas: a proteção internacional das vítimas de conflitos armados, por uma parte, e por outra, a limitação dos meios e dos métodos de combate. Estes dois corpos de normas são conhecidos como Direito de Genebra e Direito de Haia, respectivamente. O conjunto destes dois corpos de normas

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constitui o que se costuma denominar “jus in bello”, ou seja, a parte do direito da guerra pela qual é regido o comportamento do Estado em caso de conflito armado.

4. JUS AD BELLUM (DIREITO À GUERRA) – JUS IN BELLO (DIREITO APLICÁVEL NA GUERRA)

Não obstante, nos anos em que esta nova orientação para o desenvolvimento do direito internacional já iniciara, o direito da guerra continha também outro conjunto de normas cuja finalidade era regulamentar o direito à guerra de que o Estado soberano ainda dispunha. Esta regulamentação da guerra “lícita” referia-se aos procedimentos para o uso da força e tinha como finalidade excluir do âmbito das relações internacionais o recurso abusivo à guerra, com a finalidade de diminuir a sua freqüência como meio para solucionar as contravérsias internacionais. Este conjunto de normas, conhecido como “jus ad bellum” (direito à guerra) completava o conjunto do direito da guerra como ramo do direito internacional público.

Sem avançar mais na história do direito à guerra, podemos concluir que hoje em dia esta parte do direito internacional público praticamente desapareceu. De fato, com a proibição do recurso à força, consagrada definitivamente pela Carta das Nações Unidas, os Estados vêem-se impedidos, na atualidade, de solucionar seus lítigios por esse meio, ou seja, mediante conflitos armados.

As exceções a esta regra fundamental da proibição da guerra são apenas três:

- Em primeiro lugar , trata-se de medidas de segurança coletiva que podem ser tomadas pela Organização das Nações Unidas, como órgão da comunidade internacional, no tocante a um Estado que represente uma ameaça para a paz (desde as origens da ONU até os nossos dias, as medidas do Capítulo VII, no qual são considerados estes casos, nunca foram aplicadas.

- A segunda exceção à proibição geral da guerra é o direito ao recurso à força em caso de guerra de libertação nacional. A problemática da guerra de libertação nacional é, evidentemente, complexa e está muito politizada. Não obstante, existem regras que não devem permitir o recurso abusivo ao pretexto da guerra de libertação nacional para infringir a proibição geral do recursos à força.

- A terceira exceção , que é sem dúvida a mais séria ameaça à observância da proibição do recurso à força, é a que permite a guerra defensiva. São sabidas as dificuldades que a comunidade internacional tem encontrado para definir a noção de agressão e, portanto, a de agressor, assim como da politização a nível mundial de todo litígio internacional, devido à estrutura atual da comunidade internacional; esta exceção à proibição geral do recurso ao uso da força pôe permanentemente em perigo a observância desta proibição.

5. DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO

Apesar disso, na atualidade a guerra está proibida e encontra-se fora do que é lícito em direito internacional. Portanto, e feita a ressalva da observação anterior, podemos chegar à conclusão de que o “jus ad bellum” praticamente desapareceu, de maneira que o que ainda resta do direito à guerra está nos dois grupos de normas antes

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mencionados, ou seja, o Direito de Genebra e o Direito de Haia; ambos constituem o direito aplicável na guerra (“jus in belo”).

Assim, das regras do direito internacional clássico da guerra só restam as tendentes a tornar o conflito armado, agora ilícito, mais humano, no tocante ao seu desenvolvimento, mediante as proibições do Direito de Haia e, mediante o Direito de Genebra, as tendentes a proteger as suas vítimas. As normas do direito da guerra que ainda continuam em vigência são as que atualmente constituem o direito internacional humanitário.

Podemos definir assim este direito:

“O direito internacional humanitário é o conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não-internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das Partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito”.

Definido desta maneira, o direito internacional humanitário é parte integrante do direito internacional público positivo, ocupando o lugar do conjunto de regras que antes era conhecido com a denominação de direito da guerra. 6. DIREITO DE GENEBRA VIGENTE

Afinal, em que consiste atualmente este direito internacional humanitário?- Podemos responder que continua apresentando quase as mesmas características

que o direito clássico de guerra. Assim, existem normas consuetudinárias confirmadas por tratados multilaterais e

normas que eram parte de um tratado e que, mediante a sua aceitação geral pela comunidade internacional, conseguiram ter valor de normas consuetudinárias. É, principalmente, o caso de muitas das normas do Direito de Haia, para as quais seria supérfluo tentar saber se ainda estão em vigor total ou parcialmente, como direito convencional, pois, desde que foram aprovadas as Convenções de Haia, a estrutura da comunidade internacional que as elaborou modificou-se consideravelmente.

Ao contrário, desde 1864 e no tocante ao Direito de Genebra, o direito consuetudinário sofreu, neste particular, modificações e desenvolvimentos importantes, aos quais foram-se somando regras de origem meramente convencional. Neste aspecto, o processo de elaboração do direito internacional humanitário foi sendo realizado mediante uma série de tratados multilaterais habitualmente conhecidos com o nome genérico de Convenções de Genebra.

Modificações:

1906 – A Convenção de Genebra foi ampliada e complementada para adaptar-se às novas regras das Convenções de Haia de 1899.1929 – Depois da Primeira Guerra Mundial, pareceu necessário ampliar, mais uma vez, o âmbito do direito humanitário, quando foi acrescentado à nova versão da Convenção,

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referente aos feridos e aos doentes, um novo tratado para regulamentar juridicamente o estatuto dos prisioneiros de guerra. 1949 – Por último, quando a Segunda Guerra Mundial fazia sentir, na consciência da comunidade internacional, a urgência originada pelos sofrimentos de novas categorias de vítimas, foram aprovadas as quatro Convenções de Genebra que passaram a constituir a codificação completa do direito internacional humanitário em vigor.

Na primeira Convenção é regulamentada a proteção aos feridos e aos doentes em caso de conflito armado internacional em terra;

O segundo tem como finalidade a proteção dos feridos, doentes e náufragos em caso de conflito internacional no mar;

Pelo terceiro é regido o tratamento e o estatuto devidos aos prisioneiros de guerra; No quarto elaborado pela primeira vez em 1949 – protege-se os civis nos

territórios ocupados e os estrangeiros no território beligerante.

Convém destacar que atualmente 156 Estados são Partes nestas Quatro Convenções, o que equivale à maior comunidade convencional de Estados, com exceção daquela constituída pelos Estados Partes na Carta das Nações Unidas; o que nos autoriza a dizer que se trata de um direito internacional universal.

Nestas quatro Convenções de Genebra figura um artigo comum, o artigo 3. No mesmo é prevista a possibilidade de se ampliar a aplicação das Convenções além da situação de conflito armado internacional interestatal, visando-se a aplicação dos princípios fundamentais deste direito também no caso de conflito não-internacional.

Precisamente desde 1945, entre os conflitos armados, têm os conflitos não-internacionais sido muito mais freqüentes em todo o mundo do que a guerra entre Estados. Esta situação, junto ao desenvolvimento de novos meios bélicos, originaram a necessidade de complementação da obra das Convenções de Genebra.

Assim, no ano de 1974, em Genebra, por iniciativa do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), o Governo suíço convocou uma Conferência Diplomática na qual, durante três anos, os Estados elaboraram instrumentos adicionais às Convenções de Genebra, os quais foram aprovados em 1977: são os Protocolos Adicionais I e II.

Protocolo Adicional I – São completados e desenvolvidos os dispositivos das Convenções de Genebra aplicáveis no caso de conflito armado internacional; também são desenvolvidas e completadas certas regras do Direito de Haia sobre os métodos e os meios para a condução das hostilidades.

Protocolo Adicional II – São desenvolvidas e completadas, de acordo com o artigo 3, comum às Convenções de Genebra, as regras aplicáveis em caso de conflito armado não-internacional.

7. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA (CICV) E O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO

O que representam as Convenções de Genebra no âmbito internacional?- São tratados multilaterais elaborados pelos Estados no âmbito das Conferências

diplomáticas, e se, desde a primeira Convenção de Genebra de 1864, é o Governo

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helvético que toma a iniciativa de convocar essas Conferências, existe um fator que não deve ser esquecido quando são considerados o desenvolvimento e a promoção desta parte do direito internacional humanitário. Esse fator é o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).

Fundado em 1863, sob o impulso das idéias de Henry Dunant, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que junto a 133 Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho e com a Liga de Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, constituem o Movimento Internacional da Cruz Vermelha, tem desempenhado, no processo de desenvolvimento deste ramo do direito internacional público, uma função muito especial, para não dizer única. Esta instituição, fundada na Suíça por suíços, e que conserva até hoje o seu caráter de uninacional, por sua ação e pelas idéias que dela resultaram, a inspiração para os instrumentos do Direito de Genebra.

Ações do CICV:

Convenção de 1864 – atuou em prol da Conferência. Primeira Guerra Mundial – empreendeu uma ampla ação em favor da proteção e da assistência aos prisioneiros de guerra, sem que esta competência lhe tivesse sido conferida por uma convenção internacional, pois tal Convenção, baseada em sua experiência a respeito, só foi aprovada em 1929.Segunda Guerra Mundial – empreendeu ações em favor das vítimas civis da II Guerra Mundial, competência convencional que só lhe seria conferida em 1949 pela IV Convenção de Genebra.Ações atuais – a importante ação que atualmente é realizada pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no tocante à detenção e a favor das vítimas de distúrbios e tensões internos também não é fundamentada na competência conferida pelos tratados internacionais. Pode-se destacar uma constante no desenvolvimento do Direito de Genebra, que é o fato de que a ação do CICV antecede a aprovação dos instrumentos internacionais nos quais é fundamentada. Se no Direito de Genebra, como nos outros ramos do direito internacional público, o ato antecede o direito, neste ramo do direito internacional humanitário o autor deste ato era, quase sempre o CICV.

Paralelamente à influência que exercia a ação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha sobre o desenvolvimento do direito internacional humanitário, convém sublinhar a importante função desempenhada pelo CICV na convocação das Conferências Diplomáticas que aprovaram os instrumentos de Genebra. Os trabalhos preparatórios que antecederam essas Conferências inspiraram-se, em grande parte, nas idéias do Comitê, que quase sempre tomou a iniciativa de convocá-los e de promovê-los.

Finalmente, deve-se destacar um fato muito importante. Nas Convenções de Genebra, assim como nos Protocolos, foram conferidas ao CICV competência internacionais em vários setores da assistência e da proteção às vítimas dos conflitos armados. É um caso único na história do direito internacional, que a uma instituição privada sejam conferidas, mediante tratados, competências próprias no âmbito internacional. Junto com os Estados Partes, aos quais cabe a responsabilidade primordial da aplicação das Convenções de Genebra e dos Protocolos Adicionais, é o

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CICV também titular de vários direitos e obrigações. Assim, não só nos fatos, mas também em direito, esta instituição é um verdadeiro agente internacional da aplicação e da execução do Direito de Genebra. Nesse sentido, o CICV custodia os princípios dessas Convenções e pode-se dizer, em grande medida, que vela para que eles sejam observados pela comunidade internacional (Swinarski, 1996: 16-22).

DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E DIREITOS HUMANOS

PRINCIPAIS TÓPICOS A SEREM ABORDADOS:

1. Princípios do Direito Internacional Humanitário: situações de aplicação. 2. Conferência de Direitos Humanos, Teerã, 1968. 3. Diferenças entre direitos humanos e direito internacional humanitário. 4. O Direito Internacional Humanitário em Situações de Conflito Armado Internacional.

2. A QUESTÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Ao repensarmos o Estado, necessitamos raciocinar acerca de suas crises. No transcurso de sua história, o Estado Moderno, erigido como tal a partir do século XVI, viu-se envolto em um largo processo de consolidação e transformações, passando nos dias de hoje por uma longa transformação/exaustão. Ou melhor, por várias crises interconectadas.

A primeira delas diria respeito à crise que atinge as suas características conceituais básicas, em particular a idéia de soberania.

A segunda, atingiria não só a idéia mesma de Estado, mas uma de suas materializações, o Welfare State, ou Estado do Bem-Estar Social.

A terceira se projeta por sobre a fórmula moderna de racionalização do poder, ou seja o Estado Constitucional, sem descurarmos de uma quarta vertente que atinge a tradição da separação funcional do poder estatal.

Aquela poderia ser discutida sob duas variantes: uma, pelo surgimento de pretensões universais da humanidade, referidas pela emergência dos direitos humanos; outra, pela superação da supremacia da ordem estatal por outros loci de poder, tais como as organizações supranacionais e, particularmente, pela ordem econômica privada ou pública (Streck e Bolzan de Morais, 2004: 128).

Os direitos humanos são, a nosso ver, um dos aspectos fundamentais para que entendamos privilegiadamente o quadro das relações internacionais contemporâneas, em especial no que diz respeito ao problema da soberania.

Para que entendamos os direitos humanos, temos que compreender os direitos de primeira geração (direitos de liberdade), circunscritos às liberdades negativas em oposição à atuação estatal, para os de segunda geração (direitos sociais, culturais e econômicos), vinculados à positividade da ação estatal e preocupados com a questão da igualdade.

Os direitos humanos estão vinculados aos anteriores e adquirem um conteúdo de universalidade, não como projeção, mas como compactuação, comunhão, como

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direitos de solidariedade, vinculados ao desenvolvimento, à paz internacional, ao meio ambiente saudável, à comunidação.

Fala-se já, de uma quarta geração de direitos que incorporariam novas realidades, tais como aquelas afetas às conseqüências, por exemplo, da pesquisa genética, ou, ainda, de uma quinta geração vinculada às questões surgidas em face do desenvolvimento tecnológico da cibernética2.

3. NOÇÕES GERAIS DE DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO

O direito internacional humanitário é uma espécie de direito à parte, ou seja, que se encontra fora do direito internacional público geral, e ainda mais, separado dos ramos especializados deste direito. Na verdade, houve um desinteresse pelo direito internacional humanitário nas décadas de 40 e 50.

O desenvolvimento do direito internacional moderno faz com que esta questão seja supérflua, pois este direito, na versão clássica vigente até hoje, pelo menos até 1945, delimita, no conjunto de suas regras, dois grandes âmbitos dotados praticamente da mesma importância.

O primeiro contém as normas pelas quais eram regidas as relações entre Estados em situações de paz.

O segundo, as que regiam as relações em situações de conflito armado. Tanto o direito da paz como o direito da guerra constituíam o conjunto do direito

internacional público. Swinarski (1976: 13) chama a atenção para o fato de que o Estado soberano tinha o direito de recorrer à força em suas relações com outros Estados. Além disso, recorrer à força era o atributo supremo de sua soberania, a expressão mais cabal da sua qualidade de Estado.

Como o ato de recorrer à força estava incluído no direito, e as relações de conflito armado entre membros da comunidade internacional eram tanto ou mais freqüentes que na atualidade, uma vez que as relações pacíficas entre Estados estavam menos desenvolvidas em muitos âmbitos da atividade internacional, pois o Estado ainda não assumia todas as funções que em nossos dias deve assumir, podemos notar que o direito da guerra tinha uma dimensão, pelo menos, tão ampla como o direito da paz, se considerarmos o volume total das regras do direito internacional em vigor, sejam elas de origem consuetudinária, sejam de origem convencional.

As tentativas de submeter a relação internacional de conflito armado ao regime do direito aparecem já no advento do direito internacional público moderno (ver: Grotius, Vitoria ou Emer de Vattel). A diferença entre a guerra justa e a que não o era, baseada sobretudo em considerações filosóficas e ideológicas, seria interpretada depois, em direito, como a elaboração das regras da primeira, com o propósito de, pelo menos, excluir das relações internacionais a segunda.

A função que desempenha o direito da guerra no desenvolvimento do direito internacional público remonta às origens deste direito, pois os primeiros contatos entre grupos sociais e comunidades pré-estatais eram, sobretudo, relações de conflito. Neste contexto, apareceram as primeiras normas consuetudinárias.

4. DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E DIREITOS HUMANOS

2 Ver, neste sentido: Oliveira Jr., José Alcebíades de. O novo em Direito e Política, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

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A proteção dos Direitos Humanos surgiu na Inglaterra, em 1215, com a célebre Carta Magna de João Sem Terra. Ela dispunha que o rei deveria subordinar-se ao parlamento e estabelecia alguns direitos individuais que deveriam ter proteção legal. Passados mais de 450 anos, mais precisamente em 1689, surgiu o segundo documento que versava sobre Direitos Humanos: o “Bill of Rights”. A ele seguiram-se as liberdades fundamentais proclamadas pela Revolução Francesa de 1789 e a Constituição dos Estados Unidos, também no final do século XVIII. Os direitos aí consagrados foram copiados pelas constituições do mundo ocidental.

Desde meados do século XIX, os direitos humanos passaram a ter proteção do Direito Internacional; foi, porém, a Carta das Nações Unidas que iniciou o processo da proteção universal desses direitos, ao dispor em seu art. 55 que a ONU

“promoverá o respeito universal aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos, sem fazer distinção por motivos de raça, sexo, idioma ou religião, e a efetividade de tais direitos e liberdades”.

Em seguida, surgiram a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1996.

No continente americano, a primeira tentativa de criar uma declaração de Direitos Humanos partiu da Organização dos Estados Americanos, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, aprovada na IX Conferência de Bogotá, em abril de 1948, a qual não foi adotada como convenção. A ela seguiu-se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – conhecida como Pacto de São José da Costa Rica -, assinado em novembro de 1969, tendo entrado em vigor somente em 1978.

Essa Convenção representou uma grande conquista, no sentido da implementaçáo dos Direitos Humanos no continente americano. Para a proteção de seu corpo normativo, foi criada uma Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tem competência para tratar dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos contraídos pelos Estados-partes na Convenção. Também foi criada uma comissão que tem como função essencial promover a observância dos Direitos Humanos e servir como órgão consultivo da organização da matéria.

Os direitos civis e políticos protegidos pela Convenção são:- direito ao reconhecimento da personalidade jurídica;- direito à vida;- direito à integridade pessoal;- proibição da legalidade e da não-retroatividade;- direito a indenização; - proteção da honra e da dignidade;- liberdade de consciência e de religião;- liberdade de pensamento e de expressão:- direito de retificação ou resposta; - direito de reunião;- liberdade de associação;- proteção da família;

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- direito ao nome;- direitos da criança;- direito à nacionalidade;- direito à propriedade privada;- direito de circulação e de residência;- direitos e oportunidades na vida pública;- igualdade perante a lei e proteção judicial.

Os direitos econômicos, sociais e culturais figuram na Carta da OEA e no Protocolo aprovado sobre a matéria na Assembléia de El Salvador de 1988.

Depois da Segunda Guerra Mundial, vários países perceberam a necessidade de proteger os direitos essenciais a todo ser humano numa esfera que ultrapassasse seus limites geográficos, na tentativa de assegurar que as atrocidades ocorridas durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais não mais se repetissem, daí a criação das convenções anteriormente mencionadas.

O conteúdo dessas convenções gerou consideráveis alterações no plano jurídico. Antes, o Direito Internacional público voltava-se apenas para a regulamentação das relações entre Estados e organizações internacionais. Ao regulamentar matéria relativa a direitos fundamentais, entrou numa área jurídica que era restrita ao Direito Público interno de cada país.

Ainda no plano jurídico, houve uma espécie de revolução com a superação do formalismo jurídico e a retomada da esfera valorativa dos direitos, onde os Direitos do Homem não se exaurem naqueles expressamente descritos pelas Cartas Magnas, mas são criados de acordo com a evolução e as necessidades sociais. O conceito tradicional de soberania foi alterado com a regulamentação de matéria antes restrita ao âmbito interno de cada país.

No mundo ocidental, as duas mais significativas Convenções de Direitos Humanos da atualidade são a Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdade Fundamentais – que entrou em vigor em 1951 – e a Convenção Americana sobre os Direitos do Homem – de 1978 (Pinheiro, 2001: 56-58).

5. DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

Moraes (2005) ressalta que “na visão ocidental de democracia, governo pelo povo e limitação de poder estão indissoluvelmente combinados. O povo escolhe seus representantes, que, agindo como mandatários, decidem os destinos da nação. O poder delegado pelo povo a seus representantes, porém, não é absoluto, conhecendo várias limitações, inclusive com a previsão de direitos humanos fundamentais, do cidadão relativamente aos demais cidadãos e ao próprio Estado. Assim, os direitos fundamentais cumprem, no dizer de Canotilho,

“a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano

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jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”3

Como sintetiza Ekmekdjian (1993: 5-7), o homem, para poder viver em companhia de outros homens, deve ceder parte de sua liberdade primitiva que possibilitará a vida em sociedade. Essas parcelas de liberdades individuais cedidas por seus membros, ao ingressar em uma sociedade, se unificam, transformando-se em poder, o qual é exercido por representantes do grupo.4 Dessa forma, o poder e a liberdade são fenômenos sociais contraditórios, que tendem a anular-se reciprocamente, merecendo por parte do direito uma regulamentação, de forma a impedir tanto a anarquia quanto a arbitrariedade. Nesse contexto, portanto, surge a Constituição Federal, que além de organizar a forma de Estado e os poderes que exercerão as funções estatais, igualmente consagra os direitos fundamentais a serem exercidos pelos indivíduos, principalmente contra eventuais ilegalidades e arbitrariedades do próprio Estado.

A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significou mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, a partir dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário para a concretização da democracia. Ressalte-se que a proteção judicial é absolutamente indispensável para tornar efetiva a aplicabilidade e o respeito aos direitos humanos fundamentais previstos na Constituição Federal e no ordenamento jurídico em geral (Moraes, 2005: 2-3).

Como ressaltado por Afonso Arinos de Mello Franco,

“não se pode separar o reconhecimento dos direitos individuais da verdadeira democracia. Com efeito, a idéia democrática não pode ser desvinculada das suas origens cristãs e dos princípios que o Cristianismo legou à cultura política humana: o valor transcendente da criatura, a limitação do poder pelo Direito e a limitação do Direito pela justiça. Sem respeito à pessoa humana não há justiça e sem justiça não há Direito (Curso de direito constitucional brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. I, p. 188)”.

O respeito aos direitos humanos fundamentais, principalmente pelas autoridades públicas, é pilastra-mestra na construção de um verdadeiro Estado de direito democrático.

O conflito entre direitos e bens constitucionalmente protegidos resulta do fato de a Constituição proteger certos bens jurídicos (saúde pública, segurança, liberdade de imprensa, integridade territorial, defesa nacional, família, idosos, índios etc.), que podem vir a encontrar-se numa relação do conflito ou colisão. Para solucionar esse conflito, compatibilizando-se as normas constitucionais, a fim de que todas tenham

3 Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 541. Ver: no mesmo sentido: BARILE, Paolo. Diritti dell'uomo e libertá fondamentali. Bolonha: Il Molino, 1984. 4

Ver: Miguel Ángel Ekmekdjian. Tratado de derecho constitucional, Buenos Aires: Depalma, 1993.

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aplicabilidade, a doutrina aponta diversas regras de hermenêutica constitucional em auxílio ao intérprete.

A palavra intérprete tem origem latina – interpres, que designava aquele que descobria o futuro nas entranhas das vítimas. “Tirar das entranhas ou desentranhar era, portanto, o atributo do interpres, de que deriva para a palavra 'interpretar' o significado específico de desentranhar o próprio sentido das palavras da lei, deixando implícito que a tradução do verdadeiro sentido da lei é algo bem guardado, entranhado, portanto, em sua própria essência”.5

6. SITUAÇÕES DE CONFLITO ARMADO INTERNACIONAL Em suma, dissertar sobre o direito humanitário implica, de maneira inevitável, nos

referir à problemática das guerras, da violência armada, e dos enfrentamentos de todo gênero, fenômenos que marcam infelizmente a história da humanidade, e até apresentam uma das manifestações mais universais da natureza do ser humano, tanto nas relações entre indivíduos, como entre grupos sociais organizados, povos e nações (Peytrignet, 1996: 126).

Devemos nos atentar para o fato que, apesar dos conflitos, a história universal gerou inúmeros esforços e tentativas de submeter o uso da força a limitações e condições destinadas a proteger o ser humano contra as conseqüências da arbitrariedade, a limitar o uso da violência e a reduzir os sofrimentos induzidos pela guerra, evitando assim os danos e as perdas humanas e materiais inúteis, ou supérfluos, e procurando conciliar, até onde for possível, os imperativos militares e as necessidades humanitárias.

Peytrignet (1996: 126) ressalta ademais que, o direito internacional sempre se preocupou em tentar definir as condições nas quais podia ser considerado como lícito o uso da força entre nações, com as conhecidas disputas relativas ao conceito da “guerra justa”. O direito da guerra era então praticamente restringido ao “Jus ad bellum”, ou “direito de se fazer a guerra”, cujo fundamento era justamente excluir do âmbito das relações internacionais a utilização abusiva das armas como meio de solucionar controvérsias.

6.1 Proibição da Guerra Na Carta das Nações Unidas

Com a adoção, em 1945, da Carta das Nações Unidas, que declara a ilegalidade da guerra, salvo em contadas e conhecidas situações:

- As “ações militares de segurança coletiva”, previstas no capítulo VII da Carta, nas quais se prevêem medidas de força contra Estados que represetem uma ameaça para a paz ou a segurança internacional (situação que cobrou muita atualidade nos últimos anos, com o entendimento unânime dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU).

-As “guerras de legítima defesa”, nas quais os Estados têm o direito de se defender contra uma agressão armada.

5 Ver: Fernando Coelho. Lógica jurídica e interpretação das leis, Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 182.

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- As “guerras de libertação nacional”, no âmbito do direito consagrado de autodeterminação dos povos, sendo excluídas destas categoria as guerras internas de tipo revolucionário (Peytrignet, 1996: 127).

BIBLIOGRAFIA:

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: Teoria Geral, Comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, Doutrina e Jurisprudência, São Paulo: Editora Atlas, 2005.

PEYTRIGNET, Gérard. Sistemas Internacionais de Proteção da Pessoa Humana: O Direito Internhacional Humanitário, in: As Três Vertentes da Proteção Internacional dos Direitos da Pessoa Humana, Direitos Humanos, Direito Humanitário, Direito dos Refugiados, San José, Costa Rica/Brasília: IIDH/CICV/ACNUR, 1996.

PINHEIRO, Carla. Direito Internacional e Direitos Fundamentais, São Paulo: Editora Atlas, 2001.

SWINARSKI, Christophe. Introdução ao Direito Internacional Humanitário. Comitê Internacional da Cruz Vermelha no Brasil (CICV), Brasília: 1996.

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