atualizações do conceito antropológico de magia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DISCIPLINA DE PROJETO DE PESQUISA SOCIAL PROF. MARCOS LANNA TRABALHO FINAL Atualizações do Conceito Antropológico de Magia Lênon Kramer RA 346390

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Page 1: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

DISCIPLINA DE PROJETO DE PESQUISA SOCIAL

PROF. MARCOS LANNA

TRABALHO FINAL

Atualizações do Conceito Antropológico de

Magia

Lênon Kramer

RA 346390

São Carlos

2010

Page 2: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

“Vontade, percepção e consciência – nós estamos imersos

neles assim como o peixe está imerso n’água”.

Lincoln Order Of Neuromancers

“Qualquer ciência suficientemente avançada é indistinguível

de magia”.

Arthur C. Clarke

“Neste livro, fala-se de Sephiroth e de Caminhos, de Espíritos e

de Encantamentos, de Deuses, Esferas, Planos e muitas outras

coisas que podem ou não existir.

Não importa se existem ou não. Fazendo certas coisas, certos

resultados acontecem; estudantes são seriamente avisados a não

atribuir realidade objetiva ou validade filosófica a qualquer um

deles”.

Aleister Crowley

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 2

Page 3: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

Índice

Introdução 4

I – Divisores 6

II – Magia em Teoria e Prática 9

Conclusão 13

Referências Bibliográficas 14

Apêndice I – Algumas Definições Nativas de Magia 16

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 3

Page 4: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

Introdução

“Não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião nem magia”. É

assim que começa Malinowski seu estudo sobre magia1, o qual se baseará em parte em

seu estudo de campo entre os habitantes do arquipélago de Trobriand e em parte nos

estudos antropológicos de Tylor e Frazer, os quais haviam estudado magia e religião

entre os povos “primitivos”. Marcel Mauss2 vai elaborar seu Esboço de uma Teoria

Geral da Magia baseado em etnografias e pesquisas bibliográficas de diversos povos

também concebidos como “primitivos”: Arunta, Murring, Tanna, Iroqueses, Cherokee,

Ojibwa, antigo México (pré-colombiano), Malaios, Hindus, Assírios, Hebreus3 da

antiguidade, Gregos e Latinos clássicos e o folclore europeu medieval. Por sua vez,

Evans-Pritchard4 não está preocupado com uma teoria geral sobre a magia, mas

simplesmente com a etnografia da magia em uma sociedade específica, os Azande do

Sudão Anglo-Egípcio.

Malinowski e Mauss desconsideram em suas teorizações as fontes

contemporâneas a respeito de magia. O primeiro cita ter conhecimento sobre, porém o

único comentário que aparece em todo o artigo a respeito da magia contemporânea é

bastante vago, impreciso e até hostil: “Mesmo para os que não comungam daquela ânsia

do oculto, dos pequenos golpes na ‘verdade esotérica’, esse interesse mórbido, hoje em

dia tão livremente auxiliado pelo renascer de antigos credos e cultos semi-

compreendidos, cozinhados sob as designações de ‘teosofia’, ‘espiritismo’ ou

‘espiritualismo’, e várias pseudo-‘ciências’, -ologias e –ismos – mesmo para o claro

espírito científico, o tema da magia constitui atrativo especial” (p. 73). Já Mauss se

propõe a “estudar, paralelamente, magias de sociedades muito primitivas e magias de

sociedades muito diferenciadas. É nas primeiras que encontraremos, na sua forma

perfeita, os fatos elementares, os fatos principais, dos quais os outros derivam; as

segundas, com suas instituições diferenciadas, fornecerão fatos para nós mais

1 MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. In: MALINOWSKI, B. Magia, Ciência e Religião. Trad. Maria Georgina Segurado; Lisboa: Edições 70, 1984. p. 18-94.2 MAUSS, Marcel. Esboço de uma Teoria Geral da Magia. In: MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. Trad. Lamberto Puccinelli. São Paulo, EPU, 1974, vol.1 p.37-176.3 É de espantar que o autor reclame da ausência de fontes para estudar a magia judaica, que é talvez uma das mais bem documentadas dentre as citadas: existem centenas de livros facilmente disponíveis sobre cabala, inclusive alguns de data imprecisa, como o Sepher há Zohar e o Sepher Yetzirah (que alguns situam ao redor do primeiro século antes de cristo e outros datam do século XII ou XIII da era cristã, quando ocorreu o auge do movimento cabalístico na Espanha). Para uma breve introdução ao pensamento mágico judaico, cf. SENDER, Tova. Iniciação à Cabala. Rio de Janeiro: Nova Era, 1991.4 EVANS-PRITCHARD, Edward E.. Bruxaria, Oráculos e Magia Entre Os Azande. Edição resumida e introdução, Eva Gilles; trad. Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

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inteligíveis que nos permitirão compreender os primeiros” (pp. 42, 43). Porém esta

proposta deixa uma pergunta: se é de interesse do autor fazer uma comparação entre

magias de sociedades “diferenciadas” e de sociedades “primitivas”5, por que não utilizar

fontes contemporâneas? Por que as fontes mais “próximas” são as da Europa medieval?

De duas uma: ou o autor simplesmente não teve acesso a tais fontes ou mesmo

conhecimento delas (o que eu considero pouco provável), ou há algum motivo

subjacente para descartá-las, mas tal não é expresso em nenhum momento. Em uma

passagem fugaz do texto, o autor afirma que “o mencionado esforço de levar magia à

ciência é naturalmente mais perceptível nas suas formas superiores, que supõem

conhecimentos adquiridos, uma prática refinada e são exercidas em meios onde a idéia

de ciência positiva já se encontra presente” (p. 93). Mas a frase é apenas uma

formulação en passant, que quase passa despercebida no parágrafo. Ela indica que o

autor tem conhecimento de magias “em formas superiores”, onde “a idéia de ciência

positiva já se encontra presente”, então qual o motivo de não utilizá-las? Se elas são

formas já distorcidas e que não mais correspondem plenamente (por sua imiscuidade

com a ciência) à magia pura, porque não explicitar isso ao tratar da escolha de fontes?

Pois a magia não é, e este constitui nosso argumento, privilégio ou especificidade

de um conjunto de sociedades que nossa cosmologia antropológica constitui como

“eles”, os “simples” e “primitivos”. “Nós” também temos sistemas mágicos extensos e

complexos, assim como magia “popular” ocasional e “folclórica”. Nas grandes

metrópoles, especialmente, mas também nas cidades pequenas, nos deparamos com

magia por todos os lados. Nas avenidas, nos pontos de ônibus... Por todo lado se vêem

cartazes “leio tarô, runas, búzios e trago seu amor de volta em sete dias”. Não se joga

uma copa do mundo ou se celebra o ano novo sem aparecer na TV alguma celebridade

que irá fazer alguma divinação sobre o futuro evento. Nas livrarias a seção de

esoterismo/ocultismo é muitas vezes maior que a de ciências humanas. Em qualquer

banca de revistas se compra material sobre tarô ou astrologia. Qualquer jornal que se

preze tem uma seção de horóscopo. Isso sem contar as dezenas de ordens mágicas

secretas e os efervescentes fóruns de discussão na Internet. Mesmo que não se

“acredite” em signos astrológicos, são raras as pessoas que não sabem pelo menos qual

é o seu signo.

5 Entendo eu que com isso ele quis dizer o que comumente se diz por sociedades “simples” e “complexas”. Roma e Grécia clássicas seriam mais “complexas” que os trobriandeses e cherokee – afinal, “possuem” escrita, “história”, etc.

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E mesmo assim se estabelece um divisor: de um lado temos as sociedades

“tradicionais”, imbuídas de crença, de religião, de magia. Do outro lado, temos a

sociedade “moderna”, racional, científica. Entre as duas se constrói um abismo tal que

não permite sequer ver a magia que existe do lado de cá, assim como tende a tratar os

sistemas de conhecimento do “lado de lá” como “pseudo-ciências” ou a afirmar que

“sem dúvida que mesmo as comunidades selvagens mais inferiores detêm os princípios

da ciência, conquanto rudimentares” (Malinowski, p. 36), e é “claro que a ciência não

existe em qualquer comunidade bárbara como força motriz crítica, renovadora e

construtora” (idem, p. 37). A primeira seção (I – Divisores) do artigo explorará este

tema.

A segunda seção (II – Magia em Teoria e Prática) vai proceder à busca de uma

definição de magia. Trabalhando comparativamente as definições dos autores

mencionados (Malinowski, Mauss e Evans-Pritchard), em conjunto com algumas

definições nativas de magia (dadas pelos praticantes contemporâneos desta em algumas

de suas obras teóricas publicadas), efetuaremos uma atualização crítica do conceito e

suas características. Finalmente iremos da magia à percepção, ou seja, daremos algumas

indicações sobre como o estudo antropológico da magia pode trazer contribuições para

o estudo da percepção, das técnicas corporais, da construção do conhecimento e da

experiência

I – Divisores

Em seu estudo dos grandes divisores, Márcio Goldman6 utiliza o termo criado por

Jack Goody para a separação antropológica entre “nós” (ocidentais, modernos,

complexos, etc) e “eles” (não-ocidentais, primitivos, simples, etc) e procura demonstrar

como a antropologia os constrói. Uma das linhas favoritas é a separação entre magia e

ciência, e sobre ela o autor afirma que “em geral, a grande divisão exige uma

identificação primeira a fim de estabelecer uma base de comparação, ou melhor, uma

garantia de comensurabilidade. Os adivinhos africanos e os cientistas ocidentais

apresentariam, por exemplo, uma semelhança fundamental, a de aplicarem uma teoria

para explicar e resolver praticamente situações inquietantes. (...) Sempre impressionista

6 GOLDMAN, Marcio; STOLZE, Tânia. Como Se Faz Um Grande Divisor?. In: GOLDMAN, M.

Alguma Antropologia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999. p. 70-78;

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e analógica, a identificação apela à nossa complacência: para provar a identidade

profunda de dois conjuntos bastaria designá-los com o mesmo nome”. E mais adiante:

“o grande divisor opera com escalas heterogêneas, nunca assumidas como tais. Essa

heterogeneidade pode ser de ordem temporal: resultados obtidos em uma investigação

da história da ciência são contrapostos a resultados da observação etnográfica dos

sistemas de divinação. Ora, essa diferença entre a perspectiva sincrônica da etnografia e

a perspectiva diacrônica da história da ciência condena de imediato a comparação. Ou

seja, é evidente que é o método etnográfico que determina o caráter ‘fechado’ de

sistemas como a divinação; mas tudo se passa como se esse ‘fechamento’ fosse uma

propriedade inerente a esses sistemas, em oposição ao caráter ‘aberto’ da ciência – que

só aparece como tal porque investigada de uma perspectiva diacrônica. O resultado

desta comparação entre realidades tão desproporcionais parece deduzir-se logicamente,

não obstante sua coincidência com os nossos mais profundos preconceitos: a ciência se

aproxima progressivamente da verdade, enquanto o sistema divinatório se situa a uma

intransponível distância dela” (pp 71 a 74).

Nos permitimos expor uma citação tão extensa por entendermos a importância

desta exposição para podermos analisar a problemática colocada explícita ou

implicitamente nos autores clássicos que estudaram magia: a comparação entre magia e

ciência. Para Malinowski a pergunta principal é saber se o “selvagem” possui

racionalidade ou se é completamente místico, e daí deriva-se perguntar em que a magia

se assemelha e em que se distingue da ciência. Mauss está mais preocupado com a

forma como magia, ciência e religião organizam a vida social dos povos, assim tenta

comparar os três sob esta perspectiva.

Enquanto os termos da comparação estão em eqüidade, não há problemas em

efetuá-la. Estes aparecem quando se busca fazer uma comparação assimétrica, por

exemplo, comparando a divinação zande com a ciência moderna, como propõe

Giumbelli7, entre outros. Eles não ocupam a mesma posição estrutural, por mais que

ambos sejam “onipresentes e nevrálgicos” em suas respectivas sociedades. Não é uma

simples questão de mudar os termos da comparação (ao invés de comparar os dois sob a

perspectiva de serem uma explicação teórica do mundo – intercambiáveis enquanto tais

–, eleger um outro aspecto, como a ação à distância), mas uma questão de metodologia:

eleger um termo de comparação em detrimento de todos os outros aspectos de cada

7 GIUMBELLI, Emerson. Os Azande e Nós. In: Horizontes Antropológicos, ano 12, n. 26, jul/dez, p.

261-297, 2006;

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objeto implica em uma singularização, essencialização e diminuição dos objetos

etnográficos; isolar o aspecto “explicação de fenômenos” de todos os demais pode

aproximar magia e ciência, mas faz perder toda a perspectiva de o que seja a magia e o

que seja a ciência. Para um zande comum, magia (e bruxaria e oráculos) possui um

significado, e tentar reduzi-lo a qualquer conceito ocidental que permita compará-lo

com “nossa ciência” é apenas isso: um reducionismo gratuito que diz mais sobre o

antropólogo do que sobre o zande ou a magia. A magia zande não representa o todo da

organização de conhecimento e pensamento de seu povo, há uma série de técnicas que

ficam de fora dela, a julgar pela etnografia de Evans-Pritchard, e ela tampouco se arvora

como única fonte de conhecimento possível ou verdadeira. Por outro lado, a ciência

“moderna” não apenas se arvora como único saber-verdade, como procura ativamente

deslegitimar os demais. Se o antropólogo levar a sério a bazófia de nossa ciência, seu

trabalho fica seriamente comprometido, ele passa a ver um modo de percepção de uma

sociedade como o modo de engajamento desta, o que produz comparações e

generalizações não apenas vazias, como falhas.

Uma possibilidade de comparação mais simétrica seria, por exemplo, dentro de

uma mesma sociedade, comparar magia e ciência nas sociedades contemporâneas. Por

que se recusa a pensar na nossa sociedade como também portadora de um conhecimento

mágico que estrutura a vida social (se não na mesma intensidade que em outras, mas em

alguma intensidade)? Se compara a etnografia da “magia nas sociedades primitivas”

com a ideologia da “racionalidade científica moderna”, que produtividade isso pode ter?

E por essa mesma ideologia se postula a priori que não existe magia em nossa

sociedade. Porém, como eu já coloquei na introdução, ela está presente por todos os

cantos, é uma despercebida realidade. Os modernos possuem a estranha superstição de

que a racionalidade os torna imunes à magia.

Porém essa comparação só pode ser possível se colocarmos ao lado do estudo

diacrônico da História das Ciências um estudo igualmente diacrônico da História da

Magia. Se fizermos uma etnografia sincrônica da magia e compararmos com a história

diacrônica da ciência, isso nos levará novamente ao vazio, a postulados

metodologicamente falhos. Um estudo sincrônico só é comparável a outro, etnografia

com etnografia.

Quero concluir esta seção fazendo um eco a Márcio Goldman: “Em primeiro

lugar, a distinção entre etnografia (ou ‘descrição’) e antropologia (ou ‘teoria’). Seria

preciso abandonar definitivamente preconceitos que supõem que quanto maior a

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 8

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amplitude da realidade coberta por um conceito, mais ‘científico’ ele é, ou que a

produção de conceitos passe necessariamente pela perda etnográfica. Seria preciso

admitir que a etnografia não é um simples meio para a antropologia, uma vez que isso

só lhe dá ares de ciência ao preço de uma perda etnográfica, ao preço de generalizações

mais ou menos fáceis e vazias.

Em segundo lugar, comparação e generalização produzem fenômenos

empobrecidos que passam, facilmente, por ‘constantes’, gerando o impressionismo de

segunda categoria que é uma das condições e um dos resultados dos grandes divisores.

É daí que resultam, simultaneamente, os universais e as partilhas: sempre haverá algo

em ‘nós’ que não pode ser dissolvido na natureza humana; nunca haverá nada entre

‘eles’ que pareça suficientemente específico para não se apagar na identidade de todos

eles. É no mesmo lance em que nós mesmos incorporamos essa identidade

empobrecedora e empobrecida (feita de coisas unidimensionalizadas como

‘reciprocidade’, ‘hierarquia’ ou ‘oralidade’), que nos distinguimos deles (os que

ignoram a mercadoria, o indivíduo, a escrita ou a ciência)”8 (Goldman, 1999, p. 77).

II – Magia em Teoria e Prática

A primeira dificuldade com a qual nos deparamos ao falar de magia é conseguir

distinguir exatamente sobre o que estamos falando. Isto se torna bastante palpável ao

olharmos o trabalho dos antropólogos que se debruçaram sobre o tema: cada um traz

uma definição diferente, para cada um as características distintivas dela são diferentes.

Salta mais ainda aos olhos o fato de em nenhum momento (com a exceção de Evans-

Pritchard) se buscar ou sequer mencionar um conceito nativo de magia. Mauss,

Malinowski, Frazer, os doutos antropólogos catalogando fontes dos quatro cantos e

organizando segundo o que lhes parece serem as características do que eles procuram,

sem em momento algum perguntar o que os nativos definem que estão fazendo quando

fazem o que fazem. Mesmo Mauss, que tem uma preocupação em enumerar as

formulações nativas das leis da magia e sobre como esta funciona, ignora qualquer

reflexão que venha de suas fontes no momento de definir o que é aquilo que ele

pretende estudar.

8 Soa engraçado comparar esta crítica à antropologia com a crítica do antropólogo Marcel Mauss sobre as representações mágicas, cf Mauss, op. cit. Seção sobre Representações impessoais abstratas, pp. 93 e seguintes.

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 9

Page 10: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

Nossa proposta é que deve-se buscar, para melhor entendimento do fenômeno, as

definições sobre o que é magia dadas pelos praticantes da mesma. Somente com um

entendimento do que eles dizem de si mesmos e do que fazem é que nós poderemos

afirmar qualquer coisa a seu respeito. E mais: há de se perguntar se aquilo que os

trobriandeses fazem, ou os ojibwa, ou quem quer que seja, tem para eles o significado

que “magia” tem para nós, se esse termo é realmente de eficaz explicação ou se é

apenas uma projeção de nossa cosmologia sobre a deles.

Para contornar este último problema, apresentamos como proposta a elaboração

de um estudo da magia contemporânea, a magia existente em nosso território espaço-

temporal: as ordens mágicas, com suas correntes, publicações e autores; os movimentos

esotéricos; as benzedeiras; as bruxarias de banca de revista; as amarrações de cartaz de

ponto de ônibus. Mesmo algumas fontes literárias são passíveis de estudos, literaturas

escritas por magistas notórios cujo tema é a própria magia (por exemplo, obras de

quadrinistas como Alan Moore – Promethea –, Grant Morrisson – The Invisibles – e

Neil Gaiman – Cadernos de Magia).

Como um pequeno exercício, vamos comparar alguns conceitos antropológicos de

magia com alguns conceitos nativos de magia. Malinowski define magia (a exemplo de

Frazer) como uma pseudo-ciência, mas de um tipo específico: ela serve para dominar

aquilo que a técnica profana não dá conta: o acaso, o destino. Na agricultura, enquanto

os conhecimentos empíricos e práticos podem definir quais as melhores sementes para

se plantar, sobre qual solo e em qual época do ano, eles não têm poder sobre a

possibilidade de seca ou de chuva fora de época, e todas as vicissitudes da sorte e do

azar que podem destruir uma colheita apesar de todo o cuidado aplicado, ou então fazê-

la gerar uma quantidade enorme e uma excelência “sobrenatural” à mesma9. É esse

9 É interessante notar uma contradição implícita na teoria malinowskiana: o autor postula a priori, assim como toda a antropologia de sua época, que o nativo vive em uma constante escassez e luta contra a falta de alimentos. “Nunca para o homem primitivo, nem sequer nas melhores condições, longe da ameaça de fome, a abundância de alimentos é uma condição primária da vida normal” (p. 45). E disso ele extrai um corolário: o selvagem possui um interesse seletivo sobre a natureza, isto é, que ele só se interessa por aquilo que o alimenta. “Os alimentos são o elo primário entre o primitivo e a providência. (...) O caminho do mato até a barriga do selvagem e, conseqüentemente, até o seu cérebro é muito curto e para ele o mundo é um ambiente indiscriminado no qual se destacam as espécies úteis, principalmente as comestíveis, de animais ou plantas” (p. 47). Destas bases lógicas o autor constrói sua explicação sobre o totemismo e os ritos religiosos e mágicos. Porém tais postulados são contraditos por ele mesmo: Malinowski constata que, apesar de uma tecnologia pouco desenvolvida, os trobriandeses possuíam uma agricultura que, além de sustentar com abundância uma “densa população”, ainda pode armazenar reservas (p. 29), e usa isso para justificar a “racionalidade dos selvagens” e sua “superioridade sobre o meio”. Que ele não note que isso dissolve o postulado básico de toda sua construção teórica é impressionante. Não se percebe mais quem, afinal, está criando explicações “irrefletidas” a partir da “repetição automática da tradição”, se o nativo ou o antropólogo.

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 10

Page 11: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

aspecto imprevisível que a magia se propõe a controlar. Mas há também um outro

aspecto da magia, que a aproxima (e a diferencia) da religião, é a sua função cultural.

Acompanhemos as palavras do autor: “vimos que todos os instintos e emoções, todas as

atividades práticas, colocam o homem perante impasses em que as lacunas do seu

conhecimento e as limitações do seu poder de observação e raciocínio iniciais o traem

num momento crucial. O organismo humano reage por acessos espontâneos, em que se

geram as rudimentares formas de comportamento e também rudimentares crenças na

sua eficácia. A magia instala-se nestas crenças e ritos rudimentares e estandardiza-os em

formas tradicionais constantes. Assim, a magia proporciona ao homem primitivo uma

série de atos e crenças rituais prontos a utilizar, com técnica mental e prática definida

[...]. a função da magia é ritualizar o otimismo do homem”10.

Para Evans-Pritchard, a magia entre os azande é dividida em quatro aspectos:

bruxaria, oráculos, magia e feitiçaria. Bruxaria é definida pelo autor como a ferramenta

para a explicação social dos infortúnios. Oráculo é a ferramenta para distinguir de onde

veio o golpe da bruxaria, ou se há alguma bruxaria à espreita por perto. Magia é a arma

para se defender da bruxaria e contra-atacá-la, através de seus apitos, suas drogas e

técnicas que permitem ver a substância-bruxaria e esconjurá-la em ritos públicos (como

as apresentações de adivinhos) ou em situações privadas, como quando o zande sopra

um apito para sorte na caçada, por exemplo. Já a feitiçaria é uma modalidade da magia

de drogas que utiliza as mesmas técnicas, mas com objetivo de produzir malefícios, o

que torna a feitiçaria um aliado da bruxaria.

Mauss, depois de analisar alguns conceitos já clássicos de magia, constrói uma

definição provisória: “todo rito que não faz parte de um culto organizado, rito privado,

secreto, misterioso e que toca as raias do rito proibido” (p. 53). Porém isso gera uma

complicação, percebida pelo próprio autor, uma vez que mais adiante ele estabelece que

“os diversos elementos da magia são criados e qualificados pela coletividade, e este é

um segundo resultado real que é necessário registrar” (p. 117). Daí ele tira a conclusão

de que a magia se aproxima da religião – por ser um sistema de crenças e representações

de grupo –, enquanto fenômeno social, porém são “praticados por indivíduos isolados

do grupo social, que agem no seu próprio interesse ou no de outros indivíduos e em

nome deles” (p. 175) e daí decorre que “de fato, a magia não é, como o sacrifício, um

daqueles hábitos coletivos que se podem nomear, descrever, analisar, sem jamais temer

a perda do sentimento de que têm uma realidade, uma forma e uma função distintas. Ela

10 Op cit. (p. 92, 93, grifos do autor)

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 11

Page 12: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

é, apenas, em grau mínimo, uma instituição; é uma espécie de totalidade de ações e de

crenças, mal definida, mal organizada, mesmo para quem a pratica e nela acredita” (pp

175, 176). “Os atos e as representações, nela, são de tal maneira inseparáveis, que se

pode muito bem chamá-la de uma idéia prática” (p. 121, grifo do autor).

Assim nós vemos a magia ora se aproximando de uma pseudo-ciência do inefável

e da causalidade mística; ora de uma crença/explicação lógica e não-empírica de

infortúnios e seu antídoto; e finalmente de uma entidade social que transita entre técnica

e religião, uma idéia prática. A explicação de Evans-Pritchard é uma etnografia

específica e não-generalizável (nem mesmo ele tenta fazer tal generalização), pois afinal

não é muito provável, a partir de algumas etnografias feitas, por exemplo, entre os

ojibwa11, que aquilo que acontece entre eles, e que Mauss chama de magia, possa ter a

mesma explicação. As de Mauss e Malinowski concorrem como explicações gerais do

tema, que poderiam ser generalizáveis e aplicáveis a qualquer situação. Vou agora fazer

um resumo geral de um conceito nativo de magia12.

Magia é descrita como uma Tecnologia de Crença Orgânica. Isto é, um conjunto

de saberes e técnicas que visa embutir um estado de percepção do universo a partir de

uma série de estados corporais. Por isso a “crença” é “orgânica”: ela é induzida via

posturas e treinamentos físicos, os quais podem ser de dois tipos: estáticos (asanas,

postura de morte, imobilidade, respiração, isolamento, escuridão, drogas ao estilo

opiáceo) e extáticos (ritmos musicais repetitivos, danças histéricas, gargalhadas, tocar

tambor, sexo, drogas ao estilo ecstasy)13. É uma forma de compreensão, um modo de 11 HALLOWELL, Irwin. Ojibwa ontology, behavior and world view. In: DIAMOND, S. (Ed.). Culture in history: essays in honor of Paul Radin. New York: Columbia University Press, pp. 19-52.12 Para uma descrição mais aprofundada, vide Apêndice I – Algumas Definições Nativas de Magia.13 Todos os antropólogos citados se referem à importância desses estados não-convencionais de consciência na prática da magia: Malinowski se refere a eles afirmando que “o cenário emocional, os gestos e expressões do feiticeiro durante o ato (...) são da maior importância” (op cit. p. 74); Mauss se apercebe de passagem esse aspecto, citando-o em meio parágrafo de sua obra: “poder-se-ia, do ponto de vista em que nos colocamos, considerar como ritos preparatórios umas tantas cerimônias que freqüentemente assumem importância desproporcional com relação ao rito central (...). tais são as danças mágicas, a música contínua, os tan-tans; tais são ainda as defumações, as intoxicações. Todas essas práticas levam os oficiantes e seus clientes a um estado especial, diferente, não só do ponto de vista moral e psicológico, como também fisiológico (...), estado que se atinge perfeitamente nos transes xamânicos, nos sonhos voluntários ou obrigatórios, que também são ritos” (op cit. p. 79), porém para ele esses são aspectos secundários dos ritos e servem apenas para “limitar [o rito mágico] e de distinguir dos outros meios”. Finalmente, Evans-Pritchard cita o estado alcançado pelos adivinhos nos rituais públicos: “por vezes, nessas reuniões, os participantes dançam até atingirem um estado de fúria, lacerando alíngua e o peito com facas. (...) Vi homens num estado de excitação selvagem, embriagados com a intoxicante música orquestral dos gongos e dos tambores, sinos e chocalhos, jogando suas cabeças para trás e golpeando o peito com facas” (Evans-Pritchard, op cit. p. 99, 100), e faz uma longa digressão buscando entender o porquê disso, até chegar a duas conclusões. Em uma, a explicação é que o adivinho “cria uma atmosfera” para “excitar a fé do público” (pp. 104 e seguintes). Em outra, o adivinho “não adivinha apenas com a boca, mas com o corpo inteiro. Ele dança as questões que lhe são colocadas” (p. 108, grifo do autor) até que a resposta da pergunta surja automaticamente na sua consciência.

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 12

Page 13: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

engajamento, um discurso, um modo de produção de saberes sobre si – sobre seu corpo,

sua mente, sua realidade, sua percepção e, especialmente, sobre como cada uma dessas

coisas se engaja com todas as outras na vida cotidiana.

Efetivamente, toda iniciação mágica inclui algum treinamento de percepção e de

atenção (os asanas, mantras e sutras hindus; toda a ritualística iniciática thelêmica que

inclui uma série de posturas, respirações e auto-sugestões; a iniciação da I.O.T. –

principal ordem da magia do caos – que começa com treinamento de imobilidade e

segue por respiração e visualização; e etc.) e, além disso, pelo menos alguns dos

sistemas mágicos possuem todo um sistema simbólico codificado, uma cosmologia

própria, complexa e singular (a cabala dos herméticos, as runas dos nórdicos constituem

exemplos de tais mapas existenciais ou psicocosmos). Tentar compreender os rituais

mágicos ou suas explicações sem compreender todo o sistema simbólico que lhe serve

de base pode facilmente se tornar um exercício vago e vão. Dessa forma, o estudo da

magia é um estudo de técnicas do corpo, de técnicas de engajamento (engagement,

INGOLD, 2000), e de seus saberes e seus discursos; é uma ontografia, no pleno sentido

dado por Viveiros de Castro (2008) ao termo cunhado por Martin Holbraad (2003):

“descrição das condições de auto-determinação ontológica dos coletivos estudados”.

Referências Bibliográficas

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___________ Principia Caotica. Disponível online em www.iot.org.br em

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Apêndice I – Algumas Definições Nativas de Magia

Aleister Crowley é um dos maiores teóricos da magia contemporânea. Bruxo

inglês da virada do século XIX para o XX, definiu-a com uma simples frase: “Magia é a

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 15

Page 16: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

Arte e a Ciência de causar a ocorrência de Mudanças em conformidade com a

Vontade”14 (CROWLEY, 1998, p. 27), do que se deriva o teorema de que “todo ato

intencional é um ato mágico”. Porém, se isso é magia, qual o seu objetivo? Pois

justamente, o objetivo da magia, dentro da corrente Hermética que vem desde a

alquimia, e da qual a Thelema (corrente fundada por Crowley) é uma vertente, é

construir a Grande Obra. A Pedra Filosofal, a conversão do chumbo da vida humana no

ouro da iluminação divina, a ascensão do homem a um estágio divino. Quando Crowley

assina juramento para iniciação na ordem hermética Astrum Argentum15 ele afirma:

“Eu, Aleister Crowley (...), de agora em diante resolvo, na presença de (...), perseguir a

Grande Obra, que é obter um conhecimento científico da natureza e dos poderes de meu

próprio ser”. Segue um trecho de seu capítulo “O Que É Magia?” no livro “Magick

Without Tears”:

“I. Definição

Magia é a Arte e a Ciência de causar a ocorrência de Mudanças em

conformidade com a Vontade.

(Ilustração: É a minha vontade informar ao mundo certos fatos de meu

conhecimento. Eu, portanto, tomo as "armas mágicas", caneta, tinta e papel;

escrevo "encantamentos" - estas sentenças - em linguagem mágica i.e., a

qual é entendida por pessoas que desejo instruir. Eu invoco "espíritos" tais

como tipógrafos, editores, livreiros, e assim por diante, e os instruo a

transmitir a minha mensagem àquelas pessoas. A composição e distribuição

são, desta maneira, um ato de - Magia - pelo qual eu causo Mudança em

conformidade com a Minha Vontade.)

II. Postulado

(Princípio ou fato demonstrável ou não demonstrado, cuja admissão é

necessária para estabelecer uma demonstração).

Qualquer mudança requerida deve ser efetuada através da aplicação

do tipo e grau de Força apropriados, da maneira apropriada, através o meio

apropriado do objeto apropriado. (Ilustração: Desejo preparar uma "onça"

de Clorido de Ouro. Eu preciso utilizar o tipo certo de ácido,

nitrohidroclorídrico e nenhum outro, na quantidade suficiente e com a

14 CROWLEY, Aleister. Magick Without Tears. Editado e introduzido por Israel Regardie. Tempe, AZ, Estados Unidos: New Falcon Publications, 1998.15 O juramento está reproduzido em TORRIGO, Marcos. Rituais de Aleister Crowley. São Paulo: Madras Editora, 2001, p. 41.

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 16

Page 17: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

potência adequada; colocá-lo num recipiente que não venha a se quebrar,

vazar ou corroer, de forma a não ocorrerem resultados indesejáveis; devo

utilizar a quantidade suficiente de ouro, e assim por diante. Toda Mudança

tem suas próprias condições. No presente estado de nosso conhecimento e

poder, algumas mudanças não são possíveis na prática; não podemos causar

eclipses, por exemplo, ou transformar chumbo em lata, ou gerar homens a

partir de cogumelos. Mas teoricamente é possível causar a qualquer objeto

qualquer mudança da qual este objeto seja capaz por natureza; e as

condições são descritas no postulado acima.)

III. Teoremas

(Enunciado de uma verdade que se quer demonstrar por um raciocínio

lógico, partindo de fatos dados ou de hipóteses justificáveis, contidos neste

enunciado)

1. Todo ato intencional é um ato Mágico.

2. Todo ato bem sucedido obedeceu ao postulado.

3. Todo fracasso prova que um ou mais dos requisitos do postulado

não foram preenchidos.

4. O primeiro requisito para se causar qual quer mudança é

preenchido através do entendimento qualitativo e quantitativo das condições.

5. O segundo requisito para se causar qualquer mudança é a

habilidade prática de direcionar corretamente as forças necessárias.

6. "Todo homem e toda mulher é uma estrela". Quer dizer, todo ser

humano é intrinsecamente um indivíduo independente com seu papel e

direção próprios.

7. Todo homem e toda mulher tem um curso, dependendo parcialmente

de si próprios e parcialmente do ambiente, curso esse que é natural e

necessário para cada um. Qualquer pessoa que seja forçada para fora de seu

próprio curso, quer através do não entendimento de si própria ou por meio

de oposição externa, entra em conflito com a ordem do Universo e, assim,

sofre.

(...)

10. A Natureza é um fenômeno contínuo, apesar de nós não sabermos,

em todos os casos, como as coisas são conectadas.

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 17

Page 18: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

11. A ciência nos capacita a tomar vantagem da continuidade da

Natureza, pela aplicação empírica de certos princípios, cuja interação

envolve diferentes ordens de idéias, conectadas entre si de uma maneira

além de nossa atual compreensão.

12. O homem é ignorante da natureza de seu próprio ser e poderes.

Mesmo a idéia que ele próprio tem sobre suas limitações é baseada na

experiência passada, e, em seu progresso, todo passo estende seu império.

Não há, portanto, razão alguma para que se assinalem limites teóricos para

o que ele possa ser, ou para o que ele possa fazer.

(...)

23. Magick é a Ciência de entender-se a si próprio e suas condições. É

a Arte de aplicar este entendimento à ação.”

Para Sóror Nema, uma discípula de Crowley que depois da morte deste fundou

sua própria vertente, a Corrente de Maat, o propósito da magia é levar o indivíduo à

expansão da percepção da realidade através de uma série de iniciações16:

“Ao contrário do conceito popular, o propósito da Magick não é

violar ou suspender as leis da natureza para produzir milagres no plano

físico, senão para transformar ao Mago através do processo de Iniciação. A

Iniciação é uma série de estados de realização que expande tua visão da

realidade além dos planos físico, mental e emocional, incluindo o espiritual,

o divino e sua transcendência.

A Magick transcende a habilidade das religiões organizadas para unir

a alma com Deus, já que é um esforço individual de experiência direta, não

mediada por um sacerdócio oficial, e independente de dogma, doutrina e

prisão à fé. As iniciações mágickas te provém de experiência, não de

discursos; de conhecimento em lugar de fé”.

Segundo Austin Osman Spare, outro discípulo de Crowley que se distanciou deste

e fundou seu próprio secto, o Zos Kia Cultus, a magia é uma Tecnologia de Crenças

16 NEMA, Sóror. Maat, La Corriente Del Nuevo Aeon. Disponível online em www.alexandriavirtual.com.br em 23/02/2007

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 18

Page 19: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

Orgânicas, e defendeu que ela acaba seguindo mais ou menos esta estrutura17 (uma

espécie de simplificação extrema de conceitos):

1) Seleção de Resultado – você decide o que quer alcançar com a magia que

está fazendo. Seja ela uma mudança na realidade ao seu redor, ou em si mesmo. Uma

seleção cuidadosa do que se quer é imprescindível.

2) Gnose – um Estado Alterado de Consciência, uma espécie de

“superconsciência” na qual toda feitiçaria é feita. É um transe de extrema concentração

e êxtase. É o momento em que a mente do mago fica limpa de qualquer outra coisa que

não o seu propósito. Esse estado é alcançado através de exaustivas práticas de

meditação, dança, música (tocar tambor é um exemplo clássico), yoga, sexo ritual ou

sacramentos psicodélicos, entre outros. Isto varia de sistema para sistema.

3) Embutindo uma nova crença orgânica – o mago tem que entrar num

paradigma em que a realidade mudou e o efeito desejado será alcançado. É neste ponto

em que ele “escolhe o universo em que quer viver”, entre todos os possíveis. O novo

padrão de realidade não pode estar em desacordo com os pressupostos inconscientes do

mago, ou a magia simplesmente não funcionará.

O efeito da crença orgânica na realidade consensual – aqui é o resultado do

feitiço, dependendo da potência da gnose e da congruência do resultado desejado com a

crença orgânica do mago.

Peter Carrol, um dos fundadores da corrente da Magia do Caos, postula o

seguinte:

“Nossa criatividade subconsciente e nossos poderes parapsicológicos

são mais que adequados para criar ou destruir qualquer deus ou Eu ou

demônio ou qualquer outra entidade espiritual na qual possamos acreditar

ou desacreditar. (...) Os resultados freqüentemente aterradores alcançados

pela criação de deuses através do ato de comportar-se ritualisticamente

como se eles existissem não deverá conduzir o mago no abismo de atribuir

realidade definitiva a qualquer coisa. Este é o engano transcendentalista,

que leva a um estreitamento do espectro do Eu. O verdadeiro terror reside

no leque de coisas que podemos descobrir que somos capazes de fazer,

mesmo se tivermos que temporariamente acreditar que os efeitos se devem a

17 Estrutura apresentada por Dave Lee em seu livro Caostopia, publicado pela editora Kaotic Revolution, baseado nas idéias de Austin Oman Spare.

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 19

Page 20: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

algo externo para que possamos criá-los. Os deuses estão mortos. Longa

vida aos deuses.

A Magia apela aos que têm muito orgulho e uma imaginação fértil,

somadas a uma forte suspeita de que ambas, a realidade e a condição

humana, possuem as características de um tipo de jogo. O jogo possui final

aberto, e joga a si mesmo por diversão. Os jogadores podem criar suas

próprias regras até certo ponto(...) [magia] consiste em uma série de

técnicas que atuam como extensões extremas das estratégias normais que

são possíveis dentro do jogo.

Um mago é alguém que vendeu sua alma pela chance de participar

mais inteiramente da realidade. Apenas quando nada é verdadeiro e a idéia

de um Eu verdadeiro é abandonada, tudo se torna permitido. (...)

Precisa-se apenas da aceitação de uma simples crença para que

alguém se torne um mago. Esta é a meta-crença de que a crença é uma

ferramenta para obter efeitos. (...) O mago não é aquele que busca por uma

identidade particular e limitada, mas aquele que deseja a meta-identidade

que o torna capaz de ser qualquer coisa”18

Phil Hine, outro importante autor da corrente da Magia do Caos, expressou-se

nos seguintes termos:

“We live in a world subject to extensive and seemingly, allembracing

systems of social & personal control that continually feed us the lie that we

are each alone, helpless, and powerless to effect change. Magick is about

change. Changing your circumstances so that you strive to live according

to a developing sense of personal responsibility; that you can effect change

around you if you choose; that we are not helpless cogs in some clockwork

universe. All acts of personal/collective liberation are magical acts.

Magick leads us into exhiliration and ecstacy; into insight and

understanding; into changing ourselves and the world in which we

participate. Through magick we may come to explore the possibilities of

freedom.”19

18 CARROLL, Peter. Principia Caotica. Disponível online em www.iot.org.br em 07/11/2010.19 HINE, Phil. Condensed Chaos. Tempe, AZ, Estados Unidos: New Falcon Publications, 1995.

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 20

Page 21: Atualizações do Conceito Antropológico de Magia

Já para Dave Lee, magia não é definível por um aspecto apenas, mas sim um

conjunto de aspectos. Para ele, magia é o conjunto de quatro atributos: Religião (no

sentido original de Re-ligare – Ligar com o sagrado; conjunto de crenças e meta-

crenças que dizem coisas definidas sobre a vida, o universo e tudo mais), Misticismo

(conjunto de filosofias e técnicas projetadas para se integrar à consciência extática

suprema), Feitiçaria (Poder; Fazer Coisas Acontecerem no Universo de Acordo com A

Vontade) e Auto-Transformação (Poder; Fazer Coisas Acontecerem Dentro de Si

Mesmo de Acordo com A Vontade)20. Dessa forma, não seria possível fazer uma

separação conceitual entre religião e magia, ou entre misticismo e magia; portanto,

fenômenos como a incorporação de espíritos na umbanda, ou os rituais de descarrego

da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) são vistos pelo autor – e outros da

corrente da magia do caos – como magia, independentemente de estarem ou não

inseridos dentro de um contexto religioso. “Então, a Magia pode ser vista como busca

de poder, através da tensão dinâmica entre o êxtase e o controle. Existem vários outros

modos de se definir a Magia, mas, como declaramos acima, todos eles implicam em

controle. Assim, quais são os limites da magia? Muitos magistas do Caos tendem a

aceitar a visão de que Magia = Feitiçaria; i.e. se não se tem algum tipo de resultado na

realidade de consenso, não é magia, mas misticismo ou religião. Para darmos um bom

exemplo, os partidários da Thelema, como esta é praticada pela O.T.O., estão

praticando religião, misticismo e, ocasionalmente, feitiçaria, e resumindo tudo com o

termo Magia”. (p. 17)

20 LEE, Dave – “Caostopia: Magick e Êxtase no Pandaemonaeon”; 1ª Edição Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Kaotic Revolution, 2004.

Atualizações do Conceito Antropológico de Magia 21