atualidade filosofia adorno
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A Atualidade da Filosofia em Adorno
Bruno Pucci1
No trabalho atualmente com o ensino da Filosofia no 2 grau, nem mesmo
nos cursos de graduao. Ano sim ano no desenvolvo no ps-graduao em
educao da UNIMEP a disciplina Terminologia Filosfica e Educao, com o
objetivo de subsidiar os mestrandos e doutorandos na construo de seus
referenciais tericos e tendo como fio condutor o desenvolvimento histrico de
algumas categorias filosficas. No caso, parto dos clssicos da modernidade e
chego at alguns pensadores contemporneos, insistindo na leitura de textos de
Descartes, Locke, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Freud, Weber, Gramsci,
Benjamin, Horkheimer, Adorno, Marcuse, Merleau-Ponty.
A contribuio que pretendo trazer neste texto vem de um ensaio de
Theodor Adorno, intitulado A Atualidade da Filosofia2. Quero apenas levantar
alguns tpicos que possam, quem sabe, ajudar os professores de filosofia a
pensar sua prxis filosfica e educativa.
A Atualidade da Filosofia o nome da aula inaugural de Adorno, na
Faculdade de Filosofia da Universidade de Frankfurt, no dia 07 de maio de 1931.
Adorno tinha ento 28 anos.
A situao da Alemanha, em 1931, j comeava a se complicar. Nesse ano
aconteceram as eleies em que o partido nazista se tornou majoritrio e preparou
o terreno para a tomada do poder por Hitler, em 1933.
Nesse perodo, particularmente de 1928 a 1932, Adorno est muito prximo
de Walter Benjamin. Reuniam-se com freqncia, em Frankfurt e redondeza, onde
1 Professor Titular da Faculdade de Educao da Universidade Metodista de Piracicaba e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa "Teoria Crtica e Educao", CNPq e FAPESP. 2 ADORNO, T. W., Die Aktualitt der Philosophie, In ADORNO, T. W., Philosophische Frhschriften, Band I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, pg. 325-344. Traduo, ainda no publicada, de Bruno Pucci e Newton Ramos de Oliveira.
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aconteceram conversaes inolvidveis, dir mais tarde Adorno3. Benjamin leu
para seu amigo, nesses encontros, os primeiros esboos do Trabalho das
Passagens, trechos de A infncia em Berlim em 1900; correspondiam-se amide.
Em suma, os dois jovens filsofos desenvolveram um tipo de trabalho em
conjunto, alimentaram preocupaes comuns4. Adorno, nas correspondncias,
faz, em alguns momentos, referncia a um programa filosfico comum5. E
aproximaram-se do marxismo, via Lukcs, embora dando a essa teoria
conotaes especficas. Segundo Buck-Morss, a partir desses anos, quase todos
os escritos de Adorno levam a marca da linguagem de Benjamin6. Na aula
inaugural de 1931, Adorno, auxiliado por categorias benjaminianas, est buscando
um novo arranjo do materialismo, diferente da configurao hegemnica
zelosamente defendida pelo ortodoxismo sovitico. Rolf Tiedemann, editor das
Obras Completas de Adorno, no prefcio das Philosophische Frhschriften
(escritos filosficos juvenis) afirma que os ensaios Atualidade da Filosofia (1931) e
A Idia da Histria Natural (1932) vo mostrar a passagem de Adorno do
idealismo transcendental (referencial terico de sua tese de doutorado) ao
materialismo histrico, na verdade, o incio de sua filosofia materialista7.
A estrutura de A Atualidade da Filosofia se desdobra em 07 densos
pargrafos, assume propositadamente a forma cientfica de ensaio e apresenta
um programa para a interveno filosfica contempornea. Trata-se de uma
conferncia, escrita e falada em tom coloquial, cujo texto s foi publicado aps a
morte de Adorno, em 1969.
Pontos que merecem ser destacados para se pensar sobre:
3 Carta de Adorno a Benjamin, de 10 de novembro de 1938. In BUCK-MORSS, S., Origen de la dialctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y el Instituto de Frankfurt. Siglo vientiuno editores: Mexico, 1981, pg. 65. 4 Cf. GAGNEBIN, J.M. Divergncias e convergncias metodolgicas sobre o mtodo dialtico entre Adorno e Benjamin. Trabalho apresentado no Colquio Nacional Dialtica negativa, esttica e educao. Piracicaba: UNIMEP, 2000. Publicao interna. 5 Cf. NOBRE,M., Excurso: Theodor Adorno e Walter Benjamin, 1928-1940, In NOBRE,M.A Dialtica Negativa de Theodor W. Adorno: a Ontologia do Estado Falso. So Paulo: Iluminuras, 1998, p. 60. 6 BUCK-MORSS, S. op. cit. p.66. 7 TIEDEMANN, R. Editorische Nachbemerkung. In ADORNO. T. W. Ges. Schriften, Vol I, Philosophische Frhschriften, Band I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, pg.383.
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1 A filosofia deve abandonar a iluso de que possvel se apoderar da totalidade do real.
Assim se inicia o ensaio Atualidade da Filosofia: Quem hoje em dia escolhe o trabalho filosfico como profisso, tem que, desde o incio, abandonar a iluso de que partiam antigamente os projetos filosficos: que possvel, pela fora do pensamento, se apoderar da totalidade do real. Nenhuma razo justificadora poder-se-ia encontrar novamente em uma realidade, cuja ordem e conformao rebaixaria qualquer pretenso da razo; apenas polemicamente uma realidade se oferece como total a quem procura conhec-la, e apenas em vestgios e runas mantm a esperana de que um dia venha a se tornar uma realidade correta e justa. A filosofia, que hoje se apresenta como tal, no serve para nada, a no ser para ocultar a realidade e perpetuar sua situao atual. (...) A plenitude do real, como totalidade, nem se deixa subordinar idia do ser, que lhe atribui o sentido; nem a idia do ente se deixa construir a partir dos elementos do real. Ela se perdeu para a filosofia, e, com ela, sua pretenso de atingir na origem a totalidade do real8
Duas proposies complementares, nesta citao, me chamam a
ateno: a filosofia deve abandonar a iluso de que possvel se apoderar da
totalidade do real; apenas em vestgios e runas (em fragmentos) a filosofia
mantm a esperana de que um dia venha a se tornar uma realidade correta e
justa (no alemo, correto e justo = richt e gerecht, possuem o mesmo radical:
recht).
Ancorando-se na histria da filosofia, desenvolve Adorno, nos pargrafos 2 e
3, crticas s filosofias contemporneas que se constituram com pretenso de
abarcar a totalidade. Questiona a ratio autnoma idealista da Escola
Neokantiana de Marburgo, o naturalismo cego e obscuro do ente na filosofia de
vida de Simmel, o reducionismo das filosofias cientificistas, que apenas
atribuem validade s cincias particulares, especialmente s da natureza. A
seguir, questiona a fenomenologia, que, para ele, se apresenta como o esforo
de recuperar a ratio autnoma, mas com o mesmo instrumental do idealismo
ps-cartesiano. E no contexto da fenomenologia vigente mostra o paradoxo do
pensamento de Husserl, a falsa passagem para a fenomenologia material de
Max Scheler e se detm, especialmente, na crtica s categorias existenciais de
Heidegger, que, segundo Adorno, so ontologizadas e se mostram impotentes
8 ADORNO, T. W. A Atualidade da Filosofia. Traduo de Bruno Pucci e Newton Ramos de Oliveira. Piracicaba: UNIMEP. 2000. Publicao Interna, pargrafo 01, p. 01.
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para atingir as manifestaes concretas do existente. Para Buck-Morss, o
discurso inaugural de Adorno pode ser interpretado como um contra-programa
ao de Heidegger, cuja obra Ser e Tempo, publicada quatro anos antes, era
muito influente entre os crculos das faculdades da Universidade de Frankfurt9.
A filosofia deve desistir em seus exerccios, de querer atingir a idia da
totalidade do real; deve abandonar os problemas por cuja grandeza antes
queria a totalidade se responsabilizar; hoje a interpretao se escorrega por
entre as malhas dos grandes problemas; desenvolve-se atravs da combinao
de elementos mnimos, desprovidos de inteno. a virada da filosofia para a
escria do mundo dos fenmenos (Freud)10. A filosofia se detm na
abordagem do particular concreto11. Este no se constitui como um caso do
geral, no pode ser identificado com sua localizao informe dentro de uma
categoria geral, j que seu sentido reside antes em sua especificidade que em
sua universalidade. O particular no uma expresso tautolgica de si mesmo.
Ele supera seus limites restritos por sua relao mediada com a sociedade.
Como as mnadas de Leibniz, cada particular nico, porm cada um contm
uma imagem tensa e contraditria do todo, uma imagem do mundo, coisa que,
dentro do marco marxista, significa uma imagem da estrutura social burguesa.
Trata-se do olhar microscpico de Benjamin, como o chamava Adorno,
atravs do qual se destacam os objetos mais triviais, como possibilidades
frutferas para o conhecimento filosfico; um meio atravs do qual cada
mnima particularidade do objeto libera uma significao que dissolve sua
aparncia reificada e se revela como algo mais que simplesmente idntico a si
mesmo. Ao mesmo tempo, o conhecimento liberado permanece vinculado ao
particular em lugar de sacrificar sua especificidade material uma abstrata
generalidade ahistrica. A no identidade o lugar da verdade. As fraturas, as
ambigidades e contradies so os detalhes filosficos em que Adorno vai
centrar seus esforos interpretativos. Ainda que esteja convencido de que a
verdade jaz no objeto e no no entendimento que se esfora por conhec-lo,
9 Cf. BUCK-MORSS, S. op. cit. p. 154. 10 In ADORNO, T.W., op. cit. pargrafo 5, p. 12. 11 Cf. BUCK-MORSS, S., op. cit. pp.154-167.
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pelo pensamento, ainda nesse caso ela no intencional. A realidade dada
no concorda de nenhum modo com a inteno divina, com uma idia a priori
ou com a razo absoluta de Hegel. No tarefa da filosofia retratar a realidade
como significativa em sentido positivo e justific-la. Para Adorno, o processo
interpretativo necessita de algo mais que a experincia imediata do dado,
requer a interveno ativa do sujeito pensante. Nem a mente e nem a matria
podem dominar o outro como primeiro princpio filosfico. A verdade reside no
objeto, porm no est mo; o objeto material necessita do sujeito racional
para liberar a verdade nele contida12.
A crtica s filosofias sistemticas, o olhar microscpico na busca do
particular concreto, a forma ensastica de se expressar filosoficamente so
elementos teorico-metodolgicos que vo acompanhar Adorno em seus escritos
posteriores, desde as Minima Moralia (1944-47), Dialtica do Esclarecimento
(1947) at suas Notas de Literatura (1958-1972), a Dialtica Negativa (1966) e a
Teoria Esttica (1969).
2 A filosofia enquanto interpretao: Deutung. O que interpretar? De um lado, Adorno analisa a tentativa de liquidao da filosofia pelas
cincias, particularmente pela lgica e pela matemtica. Estas cincias, com a
ajuda de instrumentos metodolgicos e epistemolgicos mais precisos (veja a
nova escola de Viena, por exemplo) e em estreita ligao com a logstica de
Russell, defende como cientfico apenas aqueles conhecimentos que provm da
experimentao e, por conseguinte, classifica como analticos, tautolgicos, todos
os enunciados que vo alm da experincia. Segundo isso explicita Adorno a pergunta kantiana pela constituio dos juzos sintticos a priori carece simplesmente de fundamento, porque no existem absolutamente tais juzos; fica proibido qualquer rebaixamento da faculdade de verificao pela experincia; a filosofia se converte apenas em instncia de ordenao e de controle das cincias particulares, sem poder acrescentar nada aos resultados essenciais das cincias particulares13.
De outro lado, no obstante a pretensa superioridade de investigao das
cincias particulares, a filosofia no deve desistir do contato com as mesmas, e
12 Cf. BUCK-MORSS, S., op. cit, pp. 168-176. 13 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 4, p. 8.
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nem diminuir sua relao com elas, pois isso constitui uma das conquistas mais
importantes em sua longa histria. Ainda mais, ela s conquistar resultados
objetivos e plenos se conseguir enfrentar os problemas que o estado
contemporneo das cincias modernas lhe contrape como desafios. Por sua
vez, a filosofia no pode olhar as cincias particulares, de cima, com
superioridade estabelecida, e desse posicionamento supremo entreter-se com
os resultados das cincias e refletir sobre eles. Antes, deve analisar os
resultados das cincias por dentro, na concretude de sua realizao, pois, os
problemas filosficos se encontram continuamente, e, em certo sentido,
indissoluvelmente encerrados nas questes mais definidas das cincias
particulares. S a partir dessa relao imanente, tensa mas frutfera, ela
reencontrar seu espao e sua potncia nos tempos modernos14.
Assim sendo, a questo da atualidade da filosofia ganhar importncia no
embate com a cincia, que a quer liquidar, se a filosofia assumir plenamente
sua especificidade. Adorno, seguindo o caminho de outros pensadores, mostra
que a filosofia no se distingue da cincia pelo fato de desenvolver seu
percurso terico atravs de categorias mais gerais e abstratas e nem pela
natureza de seu material de anlise. H sim uma diferena prpria que
caracteriza a filosofia. Diz ele: A diferena central se encontra em que a cincia particular acolhe seus resultados, pelo
menos seus ltimos e mais fundamentais resultados, como inextinguveis e repousando sobre si prprios, enquanto que a filosofia apreende o primeiro resultado, com que se depara, como um sinal que a desafia a decifrar. Dito de uma forma mais simples: a idia da cincia investigao, a da filosofia interpretao (g.n.)15. Ento, para Adorno, a especificidade da filosofia a interpretao. E enquanto interpretao, vive o tempo todo, um enervante paradoxo: de um lado,
para continuar a ser filosofia conclamada, permanentemente, a proceder
interpretando os dados do real, com a pretenso de atingir a verdade; de outro
lado, ela no possui a priori nenhuma chave segura de interpretao; tem de
construir suas chaves, e as deve construir a partir de indcios evanescentes que
as figuras enigmticas do ente e em seus admirveis entrelaamentos lhe 14 Cf. ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 5, p. 9. 15 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 5, p. p. 9.
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apresentam. Para Adorno, a histria da filosofia a histria de tais
entrelaamentos. por isso que, quase sempre, se depara ela com os mesmos
problemas, tem de comear sempre de novo, reavaliando as respostas dadas
pelos pensadores antecedentes, e, em sua longa histria de constituio e de
interveno tem produzido to poucos resultados, se comparados com a breve
vida das cincias particulares. E por isso mesmo, ela deve continuamente
auscultar seu passado, no pode desprezar o fio mais insignificante nele
entrelaado, e, quem sabe, numa nova trama desses fios enroscados, consiga
construir tentativas de figuras e imagens originais.16.
Mas como se configura a interpretao, a Deutung, para Adorno? Quais so
as suas caractersticas? O que o distingue de outros pensadores da poca que
tambm apontavam a interpretao como a chave fundamental da filosofia? O
texto, em seu desenrolar, mostra algumas caractersticas dessa categoria:
Interpretar no buscar um sentido oculto. A idia de interpretao, na
maioria das vezes, confundida com a busca de um sentido oculto que est
escondido por detrs da aparncia dos seres. Para Adorno, no tarefa da
filosofia nem atingir um sentido j dado e nem comprov-lo, porque, para ele, a
realidade mesma no plena de sentido. O trabalho do filsofo no se reduz a um
passatempo ldico na descoberta de coisas ocultas ou objetos desaparecidos; ele
antes de tudo um cansativo labor para decifrar enigmas, para abrir novas
veredas em terrenos cheios de empecilhos e de perigos. O texto que a filosofia
tem de ler incompleto, contraditrio e fragmentrio e grande parte dele pode
estar entregue a cegos demnios. Talvez a leitura seja precisamente nossa tarefa,
para que lendo aprendamos a conhecer melhor e a banir os poderes
demonacos17. Interpretar no , pois, procurar alguma coisa que se encontra por
detrs de outra e faz-la presente atravs de um processo de imerso. Adorno
critica aqui o dualismo kantiano, do inteligvel e do emprico, afirmando que esse
dualismo est presente antes na idia de investigao cientfica que na
interpretao filosfica. Quem interpreta, quando busca atrs do mundo emprico
um mundo em si, que lhe serve de base e lhe d sentido, se comporta como 16 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 5, pp. 9-10.
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algum que procura no enigma a manifestao de um ser que se encontra detrs
e que o enigma reflete; enquanto que a arte da soluo do enigma se d na
iluminao instantnea da figura construda, em faz-la emergir e no teimar em ir
at o fundo do enigma e assemelhar-se a ele18
Interpretar construir constelaes ou tentativas de novas ordenaes.. A
filosofia enfrenta a questo que se lhe apresenta como se fosse enigma, a ilumina
repentina e instantaneamente at desvendar sua nova configurao. O filsofo
contemporneo trabalha como um autntico detetive, parte de pequenos detalhes,
observa atentamente as suas possibilidades, na busca de uma soluo que
emerge da nova reordenao desses mesmos detalhes. Assim como na soluo
de um enigma, os elementos singulares e dispersos da questo so colocados em
diferentes posicionamentos at que se juntem em uma figura, da qual salta fora a
resoluo, assim tambm a filosofia tem de dispor os elementos, que recebe das
cincias, em forma de constelaes mutveis, ou tem de dar a eles diferentes
tentativas de ordenao, at que se encaixem uma figura legvel como resposta
questo, que desaparece. Isso explica porque o ensaio o caminho preferido por
Adorno para compor suas produes filosficas. A sua forma fragmentria, aberta,
experimental, em que o esttico se com-funde com o filosfico, d ao texto
possibilidades mltiplas de expresso e de configurao. No tarefa da filosofia,
pois, investigar intenes ocultas e preexistentes da realidade, mas interpretar
uma realidade carente de intenes, mediante a capacidade de construir figuras,
imagens a partir dos elementos isolados da realidade. A filosofia levanta questes,
cuja investigao posterior tarefa das cincias resolver19. Voc no resolve uma
questo tal como colocada, se voc no conseguir olh-la de maneira diferente,
isto , destruir a maneira como a questo colocada. Voc no responde a
questo, tal como colocada, porque ela colocada de maneira errada. Voc
consegue colocar a questo de uma outra maneira e a voc resolve e ao mesmo
tempo faz desaparecer a questo. Como nos romances de detetive, h uma
reorientao do olhar, da ateno. Algo que no chamava a ateno: lapsos, atos
17 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 5, p. 10 18 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 5, p.10. 19 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 5, p. 11.
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falhos, um elemento absurdo nos sonhos, um detalhe. A partir desse elemento
mnimo se compe uma nova configurao20. a idia de constelao, de uma
nova ordenao da realidade.
3 Afinidade entre a filosofia interpretativa e o materialismo histrico.
Adorno, ao fundamentar a idia de interpretao, se surpreende com a
afinidade, aparentemente inesperada, existente entre a filosofia interpretativa e o
programa do materialismo histrico: interpretao do desprovido de inteno,
mediante a combinao de elementos analiticamente separados, e iluminao do
real mediante essa mesma interpretao21. E mostra, para ilustrar sua tese, que a
forma mercadoria, algo sem importncia, que ningum tinha reparado antes, em
sua apario histrica, primeira e nica, se transforma na pea chave de um
modelo interpretativo, que vai transformar a viso de realidade. Se a filosofia
contempornea quisesse perguntar pela relao entre a coisa-em-si e o
fenmeno, ou, dizendo em outras palavras, pelo sentido do ser, ela se aprisionaria
nas malhas arbitrrias do formalismo lgico ou se desmembraria numa
multiplicidade de pontos de vistas ideolgicos. Com a construo da figura
mercadoria, a partir dos elementos isolados da realidade, foi dada uma nova
ordenao realidade, antes no conhecida, nem preexistente organicamente. A
produo dessa nova categoria mudou radicalmente os eixos de interpretao e
de interveno na contraditria realidade. O problema da coisa-em-si no foi
absolutamente resolvida, continua problemtica na percepo idealista. O
problema, porm, foi deslocado a partir dessa nova percepo e a figura histrica
da forma mercadoria e do valor de troca, semelhana de uma fonte de luz, pe
descoberto a configurao de uma nova realidade. E a funo que a questo
filosfica tradicional aguardava das idias supra-histricas seria agora realizada
por idias intra-histricas22
Adorno, a seguir, indica um segundo entrelaamento essencial entre a
filosofia interpretativa e o materialismo histrico. Para ele, s dialeticamente
20 Cf. GAGNEBIN, J.M. op. cit., pp. 6-10. 21 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 5, p. 11. 22 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 5, p. 13.
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possvel a interpretao filosfica. Pela argumentao anterior, o autor mostrou
que a resposta ao enigma no o sentido do enigma, de modo que ambos, o
enigma e seu sentido, pudessem subsistir ao mesmo tempo. Antes, a resposta ao
enigma est em oposio direta ao prprio enigma, necessita ser construda a
partir do enigma e, ao fazer isso, destroi o prprio enigma. No materialismo,
porm, a soluo ao problema no permanece na dimenso restrita do
conhecimento; a prxis que lhe d. A interpretao da realidade com que se
encontra e sua superao se relacionam entre si. A realidade no superada no
conceito, como expressavam os idealistas. A partir da construo da figura do real
se segue sempre a exigncia de sua transformao, que somente a prxis
materialista pode realizar. Adorno defende que, quando Marx dizia que os filsofos
apenas haviam interpretado o mundo de diferentes formas, que se tratava de
transform-lo, essa expresso no legitimava apenas a prxis poltica e sim
tambm a teoria filosfica. O pensamento puro no capaz de realizar
autenticamente a interpretao filosfica; esta leva forosamente prxis. E
Adorno finalizam ironicamente o pargrafo: suprfluo procurar uma concepo
de pragmatismo, em que teoria e prxis explicitamente se cruzem de tal maneira,
como na dialtica23.
Estaria aqui Adorno em contraposio sua concepo de teoria e prxis
presente na Dialtica Negativa e no ensaio Anotaes sobre Teoria e prxis24?
Parece-me que no. Talvez aqui ele acentue a importncia da prxis no interior do
materialismo histrico do incio dos anos 30, em que esperanas de transformao
da realidade subsistiam como indcios e desafios. Nos textos do final dos anos 60,
mesmo apontado a dimenso dialtica da relao teoria-prxis, Adorno mais
cauteloso em relao transformao do social, no em relao interveno no
real.
23 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 5, p. 14. 24 ADORNO, T.W. Dialctica negativa. Versin castellana de Jos Maria Ripalda. Madrid: Taurus, 1976 e ADORNO, T.W.Notas marginais sobre teoria e prxis. In ADORNO, T.W. Palavras e Sinais: modelos crticos. Traduo de Maria Helena Ruschel. Petrpolis: VOZES, 1995, p. 202-229.
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4 A ars inveniendi a servio da interpretao filosfica.
O termo ars inveniendi (antiga expresso filosfica, vinculada
historicamente a Bacon e a Leibniz) significa a arte de inventar, de encontrar algo
pela primeira vez. Contra a postura receptiva e observadora do sujeito positivista,
cientfico, Adorno insiste: O organon da ars inveniendi a fantasia. Em lugar de
tomar a realidade tal como se apresenta imediatamente, a fantasia do sujeito
dispe ativamente seus elementos, colocando-os em relaes diversas at que se
configurem em uma forma que expresse sua verdade de maneira cognitivamente
visvel. O que diferencia essa fantasia da pura elucubrao, da especulao solta,
sua adeso estrita aos fatos. Por isso Adorno d a ela o nome de fantasia
exata25. Um conceito dialtico que reconhece a mediao mtua do sujeito e
objeto sem permitir que um obtenha vantagem sobre o outro. No a imaginao
no sentido de projeo subjetiva que vai alm do mundo existente, em direo ao
passado, ou em direo ao futuro; ela permanece imanente aos fenmenos
materiais, em cuja facticidade atua como controle do pensamento. A fantasia
exata se torna cientfica em sua recusa de sair do permetro dos elementos. E,
como a arte, reacomoda os elementos da experincia, as enigmticas figuras da
existncia emprica, at que estas se abram compreenso cognitiva. Uma das
caractersticas do sujeito kantiano era sua espontaneidade, sua funo ativa na
experincia cognitiva. Mas o sujeito kantiano era criativo somente enquanto
moldava os objetos segundo formas e categorias a priori do entendimento
racional; o entendimento tinha uma estrutura prvia permanente segundo a qual
se conformavam os objetos da experincia. Porm Adorno, dando um giro na
revoluo coprnica de Kant, sustenta que o objeto, e no o sujeito, o
preeminente: a prvia estrutura historicamente desenvolvida da sociedade que
faz com que as coisas sejam assim. O momento cognitivo e espontneo reside na
recusa em aceitar a fetichizao do pensamento; o sujeito deve sair da sua
subjetividade entregando-se ao objeto, entrando nele, como havia afirmado
25 ADORNO, T.W., op. cit., pargrafo 6, p. 17.
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Benjamin no Drama barroco alemo. Essa imerso na interioridade no conduz
ao redescobrimento de si mesmo do sujeito, e sim a um descobrimento da
estrutura social em uma particular configurao. Ali onde Hegel, tambm
argumentando contra Kant, considerava que a estrutura da realidade era, em
ltima instncia, idntica subjetividade racional, Adorno considera o objeto como
simplesmente no racional, ainda que compreensvel racionalmente. S uma
lgica dialtica pode captar as contradies internas aos fenmenos, que
reproduzem no microcosmos a dinmica do contraditrio todo social. O sujeito se
entrega aos objetos, porm no os deixa intactos. Em lugar da mera duplicao no
pensamento, estes se transformam no interior da representao verbal. A fantasia
exata efetua uma metamorfose que, apesar de toda sua iluminada racionalidade,
conserva uma certa imagem de truque de magia26.
Levantei, neste texto, a partir do ensaio de Adorno A Atualidade da
Filosofia, alguns elementos teorico-metodolgicos como contribuio para se
pensar a prxis filosfica e educativa de nossos professores de filosofia. Talvez os
pontos que destaquei no sirvam para nada. Talvez sirvam para nos levar a refletir
sobre elementos cotidianos que perpassam nossas vidas, nosso trabalho. Talvez
sirvam para nos ajudar a desenvolver o jogo entre o esttico e o filosfico, to a
gosto de Adorno, e que no servem apenas para adornar nossos textos, mas
sobretudo para torn-los mais densos e expressivos. Termino esta minha
interveno com a leitura de uma pequena crnica que escrevi sobre expresses
preconceituosas que permeiam nossas relaes cotidianas. O escrito tenta
iluminar uma expresso estereotipada regional com as luzes da ars inveniendi
adorniana.
A histria suspensa. Voc sabe como que, em regies de Minas, se chama
aquele nibus inter-municipal, generoso, que pra em todas as curvas para pegar
passageiros, que demora um tempo pr chegar a seu destino? Cata-jeca! isso
mesmo, cata-jeca! A primeira vez que ouvi essa denominao, em estradas de
26 Cf. BUCK-MORSS, op. cit. pp. 177-202.
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Minas, me senti um tanto chocado. Cata-jeca! Pensei comigo mesmo: quanto
preconceito est embutido nessa frase-feita, tida como usual, corriqueira, e, no
entanto, expressiva de uma realidade opressiva e dura. Ento todas aquelas
pessoas simples, humildes, empobrecidas pela violncia da vida so jecas?! E o
seu veculo nico de locomoo para um centro maior, cata-jeca?! Corri ao Aurlio
para ouvir dele, com mais propriedade, o que ser jeca. ser caipira, matuto,
roceiro, sertanejo; habitante do campo ou da roa, particularmente de pouca
instruo, de convvio e modos rsticos e canhestros; indivduo sem traquejo
social, casca-grossa. O jeca um caipira, desajeitado, rstico, casca-grossa,
porque a vida de trabalho e de solido no lhe ensinou boas maneiras; de pouca
instruo e traquejo social, porque onde morava no havia escola para freqentar,
ou, se havia, ele no teve tempo nem oportunidade para freqentar; obrigado a
tomar sua conduo beira da estrada, debaixo de sol ou de chuva, porque no
tem condio de possuir seu prprio veculo; mora no campo ou na roa, porque
ainda no teve jeito de fugir para a cidade. E para ele oferecida uma opo de
viagem: um cata-jeca. Nada mais natural que isso! Como o preconceito ronda
nossas vidas a todo momento! Estamos to envolvidos em suas malhas
nominativas e descritivas, que nem percebemos a agressividade que se esconde,
sutil, nas entranhas. Assim expresses do cotidiano apenas reforam uma postura
indiferente e superior em relao aos homens do campo, aos negros, aos
deficientes, aos homossexuais, aos estrangeiros, aos idosos. Essas expresses,
sedimentadas, se revestem, por assim dizer, de uma segunda natureza, de uma
histria paralisada. como se a realidade sempre fosse assim; como se no
houvesse uma histria de explorao que foi fazendo as coisas assim. E no se
trata apenas de chamar os homens do campo de jeca, a situao tensa de negra,
o jovem que fez uma opo sexual diferente da sua, de bicha. Trata-se de, atravs
de esteretipos, de olhares enviesados, analisar os fatos, julgar as pessoas,
desenvolver o convvio social. E considerar tudo isso normal. A histria, que
dinamismo, tenso, ir-e-vir, se torna natureza (segunda natureza), repetio,
petrificada pelos olhares de medusa dos tidos como raa pura. Benjamin nos
convida a escovar a histria a contrapelo, para ouvir os gritos de dores e de
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injustias que esto nela sufocados. Adorno nos incita a solapar a aparncia falsa
da realidade, tida como absoluta, e a despojar essas expresses mgicas de seu
feitio, desentravando a histria sedimentada em seu interior. A partir de sua
forma dada possvel se chegar aos elementos histricos de sua produo.
Mas, como difcil acabar com os preconceitos. to difcil quanto acabar com a
fome no mundo. Alis ambos os processos so momentos decisivos na
construo de uma sociedade emancipada.