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Atividades lúdicas: prazer, desafio e auto-expressão na prática educativa. configurando as bases da bioexpressão Lucia Helena Pena Pereira Para começar... Este texto foi, inicialmente, escrito para ser apresentado no XVI EPENN - Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste, em junho de 2003. Enquanto fazia as últimas revisões, fiquei imaginando que, com algumas modificações, seria um texto apropriado para a Artes de Cura na medida em que uma prática educativa lúdica pode ser curativa e, principalmente, prevenir futuras neuroses, atingindo o que considero o verdadeiro sentido da educação: tornar melhor a qualidade de vida do ser humano. Como professora de Didática e Prática de Ensino, tenho vivenciado o desafio de adequar minha prática pedagógica a uma visão transformadora e crítica, por acreditar que este é o caminho e para não sofrer o risco de merecer o ditado popular: "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço", ou seja, de apresentar um discurso dissociado da ação. Além disso, tenho acompanhado muito de perto as dificuldades não só de meus alunos e alunas, quando trocamos experiências em sala de aula ou os acompanho em seus estágios, como também de colegas de profissão, de quebrarem o padrão que vivenciaram ao longo de sua formação acadêmica e a angústia de não saberem como fazê-lo. Considero que essas dificuldades, em grande parte, estão relacionadas à contenção de sua capacidade de se expressarem em sua singularidade, ao não desenvolvimento da auto-expressão. No nosso processo de educação formal, nos habituamos, de modo geral, à transmissão de conceitos, ao recebimento de técnicas de ensino como receitas de bolo, usadas e aprovadas, não se considerando que cada sala de aula é um espaço peculiar, cada grupo de alunos, um grupo diferente; e que cada professor possui uma experiência de vida particular, habilidades diferentes, características próprias, crenças e valores que serão levados para sua sala de aula. Ter essa consciência é fundamental, principalmente, para nós que estamos envolvidos com a formação de professores, para que estimulemos os futuros educadores, a terem maior clareza de que o conhecimento isolado não se faz significativo. Ele se torna coerente através da apropriação que dele fazemos, da ação desenvolvida para trabalhá-lo, das relações tecidas e apreensões que ocorrem a partir de nossa visão de mundo, de nossa concepção de educação, da nossa corporeidade, afetividade e compromisso com nosso fazer. De que adianta oferecer apenas teorias, se estas são efêmeras e se com elas não podemos tornar a vida mais significativa? Como educadores, poderemos sugerir caminhos, mas caberá a cada um trilhá-los, apoiando- se nas próprias pernas. E os caminhos nunca são os mesmos, até porque cada olhar percebe paisagens diferentes. Assim considerando, cabe-nos acolher e estimular nossos educandos, especialmente os futuros professores, para que possam cada vez mais manifestar sua forma de ser, sua singularidade, adquirindo maior espontaneidade e segurança. Essas reflexões me estimularam a buscar novas possibilidades de ação

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Atividades lúdicas

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Page 1: Atividades lúdicas

Atividades lúdicas: prazer, desafio e auto-expressão na prática educativa. configurando as bases da bioexpressão Lucia Helena Pena Pereira 

Para começar...Este texto foi, inicialmente, escrito para ser apresentado no XVI EPENN - Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste, em junho de 2003. Enquanto fazia as últimas revisões, fiquei imaginando que, com algumas modificações, seria um texto apropriado para a Artes de Cura na medida em que uma prática educativa lúdica pode ser curativa e, principalmente, prevenir futuras neuroses, atingindo o que considero o verdadeiro sentido da educação: tornar melhor a qualidade de vida do ser humano.Como professora de Didática e Prática de Ensino, tenho vivenciado o desafio de adequar minha prática pedagógica a uma visão transformadora e crítica, por acreditar que este é o caminho e para não sofrer o risco de merecer o ditado popular: "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço", ou seja, de apresentar um discurso dissociado da ação. Além disso, tenho acompanhado muito de perto as dificuldades não só de meus alunos e alunas, quando trocamos experiências em sala de aula ou os acompanho em seus estágios, como também de colegas de profissão, de quebrarem o padrão que vivenciaram ao longo de sua formação acadêmica e a angústia de não saberem como fazê-lo. Considero que essas dificuldades, em grande parte, estão relacionadas à contenção de sua capacidade de se expressarem em sua singularidade, ao não desenvolvimento da auto-expressão. No nosso processo de educação formal, nos habituamos, de modo geral, à transmissão de conceitos, ao recebimento de técnicas de ensino como receitas de bolo, usadas e aprovadas, não se considerando que cada sala de aula é um espaço peculiar, cada grupo de alunos, um grupo diferente; e que cada professor possui uma experiência de vida particular, habilidades diferentes, características próprias, crenças e valores que serão levados para sua sala de aula. Ter essa consciência é fundamental, principalmente, para nós que estamos envolvidos com a formação de professores, para que estimulemos os futuros educadores, a terem maior clareza de que o conhecimento isolado não se faz significativo. Ele se torna coerente através da apropriação que dele fazemos, da ação desenvolvida para trabalhá-lo, das relações tecidas e apreensões que ocorrem a partir de nossa visão de mundo, de nossa concepção de educação, da nossa corporeidade, afetividade e compromisso com nosso fazer.De que adianta oferecer apenas teorias, se estas são efêmeras e se com elas não podemos tornar a vida mais significativa? Como educadores, poderemos sugerir caminhos, mas caberá a cada um trilhá-los, apoiando-se nas próprias pernas. E os caminhos nunca são os mesmos, até porque cada olhar percebe paisagens diferentes. Assim considerando, cabe-nos acolher e estimular nossos educandos, especialmente os futuros professores, para que possam cada vez mais manifestar sua forma de ser, sua singularidade, adquirindo maior espontaneidade e segurança. Essas reflexões me estimularam a buscar novas possibilidades de ação que, por sua vez, apontaram que era hora de aprofundar estudos quanto às práticas que levo para a sala de aula. Encontrei, nas teorias de Wilhelm Reich e de alguns de seus seguidores, Alexander Lowen, Stanley Keleman e David Boadella, e nas pesquisas sobre ludicidade, a fundamentação necessária para melhor compreender os resultados que obtinha em minha sala de aula e compartilhá-los com meus alunos, professores em formação. Minha intenção, neste texto, é apresentar algumas questões que venho desenvolvendo em minha pesquisa de Doutorado, que apontam as atividades lúdicas como um recurso valioso para a educação de crianças, jovens e adultos e para o estímulo à auto-expressão, tendo por base as teorias psicossomáticas dos autores citados e alguns estudos sobre ludicidade, o que constitui uma nova possibilidade de pensar a Educação, um conjunto de saberes e vivências que denominei Bioexpressão1, meu objeto de estudo. 

Mas o que é ludicidade?

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Há muitas conceituações para ludicidade, algumas contradições e até confusões. Não é meu objetivo discuti-las aqui, e sim apresentar uma possibilidade de compreender o lúdico. Para traçar os contornos de como o considero, aproprio-me da conceituação de alguns estudiosos desse tema. O primeiro aspecto a destacar é que as atividades lúdicas não se restringem ao jogo e à brincadeira, mas incluem atividades que possibilitam momentos de prazer, entrega e integração dos envolvidos. Segundo Luckesi2, são aquelas que propiciam uma experiência de plenitude, em que nos envolvemos por inteiro, estando flexíveis e saudáveis. Para Santin3, são ações vividas e sentidas, não definíveis por palavras, mas compreendidas pela fruição, povoadas pela fantasia, pela imaginação e pelos sonhos que se articulam como teias urdidas com materiais simbólicos. Assim elas não são encontradas nos prazeres estereotipados, no que é dado pronto, pois, estes não possuem a marca da singularidade do sujeito que as vivencia.Na atividade lúdica, o que importa não é apenas o produto da atividade, o que dela resulta, mas a própria ação, o momento vivido. Possibilita a quem a vivencia, momentos de encontro consigo e com o outro, momentos de fantasia e de realidade, de ressignificação e percepção, momentos de autoconhecimento e conhecimento do outro, de cuidar de si e olhar para o outro, momentos de vida, de expressividade.Uma aula com características lúdicas não precisa ter jogos ou brinquedos. O que traz ludicidade para a sala de aula é muito mais uma "atitude" lúdica do educador e dos educandos. Assumir essa postura implica sensibilidade, envolvimento, uma mudança interna, e não apenas externa, implica não somente uma mudança cognitiva, mas, principalmente, uma mudança afetiva. A ludicidade exige uma predisposição interna, o que não se adquire apenas com a aquisição de conceitos, de conhecimentos, embora estes sejam muito importantes. Uma fundamentação teórica consistente dá o suporte necessário ao professor para o entendimento dos porquês de seu trabalho. Trata-se de ir um pouco mais longe ou, talvez melhor dizendo, um pouco mais fundo. Trata-se de formar novas atitudes, daí a necessidade de que os professores estejam envolvidos com o processo de formação de seus educandos. Isso não é tão simples, pois, implica romper com um modelo, com um padrão já instituído, já internalizado. A escola tradicional, centrada na transmissão de conteúdos, não comporta um modelo lúdico. Por isso é tão freqüente ouvirmos falas que apóiam e enaltecem a importância do lúdico estar presente na sala de aula, e queixas dos futuros educadores, como também daqueles que já se encontram exercendo o magistério, de que se fala da importância da ludicidade, se discutem conceitos de ludicidade, mas não se vivenciam atividades lúdicas. Fala-se, mas não se faz. De fato não é tão simples uma transformação mais radical pelas próprias experiências que o professor tem ao longo de sua formação acadêmica. Como bem observa Tânia Fortuna, em uma sala de aula ludicamente inspirada,

convive-se com a aleatoriedade, com o imponderável; o professor renuncia à centralização, à onisciência e ao controle onipotente e reconhece a importância de que o aluno tenha uma postura ativa nas situações de ensino, sendo sujeito de sua aprendizagem; a espontaneidade e a criatividade são constantemente estimuladas4. 

Podemos observar que essas atitudes, de um modo geral, não são, de fato, estimuladas na escola. Como afirmei em um texto recente, "as atividades lúdicas permitem que o indivíduo vivencie sua inteireza e sua autonomia em um tempo-espaço próprio, particular. Esse momento de inteireza e encontro consigo mesmo gera possibilidades de autoconhecimento e de maior consciência de si"5. Considero como lúdicas as atividades que propiciem a vivência plena do aqui-agora, integrando a ação, o pensamento e o sentimento. Tais atividades podem ser uma brincadeira, um jogo ou qualquer outra atividade que possibilite instaurar um estado de inteireza: uma dinâmica de integração grupal ou de sensibilização, um trabalho de recorte e colagem, uma das muitas expressões dos jogos dramáticos, exercícios de relaxamento e respiração, uma ciranda, movimentos expressivos, atividades rítmicas, entre outras tantas possibilidades. Mais importante, porém, do

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que o tipo de atividade é a forma como é orientada e como é experienciada, e o porquê de estar sendo realizada. Ela deve permitir que cada um possa se expressar livre e solidariamente, que as couraças, bloqueios que se estabelecem, possam ser flexibilizadas e que haja um maior fluxo de energia. A espontaneidade do indivíduo, sua auto-expressão e criatividade são bloqueadas quando ocorre a contenção da bioenergia, isto é, da energia vital que circula em nosso organismo através da corrente sanguínea e de outros fluidos energéticos como a linfa e os fluidos intracelulares. Mas este fluxo energético pode ser restabelecido através da mobilização da energia estagnada. Para que este processo seja entendido, trago algumas questões básicas da teoria reicheana, que nos permitem a compreensão dos bloqueios e desbloqueios da energia, que constituem a base para uma prática educativa lúdica.

Corpo e psique como totalidadeReich, psiquiatra austríaco, trouxe, através de seus estudos e pesquisas clínicas, contribuições importantes não só para a psiquiatria e a psicologia, mas também para outras áreas de conhecimento como a educação, a sociologia e a biologia. Um dos aspectos significativos da teoria reicheana foi a formulação do conceito de caráter como o modo de ser do indivíduo, que vai sendo formado ao longo de suas experiências de vida; é sua maneira de agir e reagir, de se relacionar com o outro e com as várias situações com que se confronta. O caráter, para Reich, não é algo inato, mas sim uma estrutura resultante de situações vividas, de um processo de construção histórica.Para Reich, o caráter pode ser genital ou neurótico. O primeiro caracteriza um comportamento auto-regulado e produtivo, a capacidade de resolver conflitos de uma forma mais fluida, sem couraças cronificadas. O caráter neurótico indica uma estrutura de caráter marcada pela cronificação, pela rigidez, por mecanismos repetitivos de ação e proteção automáticos, que inibem as possibilidades de mobilidade do indivíduo, portanto, inibem uma expressão mais espontânea. As várias situações com que nos confrontamos ao longo da vida produzem o caráter, que vai expressar-se através do ego, que nada mais é que "o sujeito em ação". O ego só existe enquanto o sujeito age, selecionando e controlando sua forma de ação, mesmo que de forma inconsciente. É este sujeito que é mais fluido ou mais estático (congelado) em uma determinada estrutura. O congelamento é expresso pelo caráter neurótico; a fluidez pelo caráter genital. O congelamento se dá pela estagnação da bioenergia que deixa de fluir livremente pelo corpo, criando couraças. As couraças de caráter são defesas criadas pelo ego, parte do indivíduo com a qual administra sua relação com o mundo. Procuremos entender como essas couraças se formam. Os nossos impulsos naturais se expandem e expressam, em uma idade mais tenra, como uma manifestação psicobiológica básica e natural da vida. Quando, entretanto, são proibidos de serem expressos (por proibições, atitudes de desamor, de desrespeito, atitudes autoritárias, enfim, por situações vividas como ameaçadoras), os impulsos são reprimidos pelo ego para que a integridade do indivíduo seja preservada. Esse mecanismo é, a princípio, salutar e natural. Mas se o ego é levado a se defender consecutivamente de agressões externas, não permitindo que os impulsos naturais se mostrem, as defesas acabam se tornando automáticas e inconscientes, ou seja, se manifestam mesmo não havendo mais a situação externa que representava ameaça. Pode-se dar o exemplo de uma menina que nunca pôde negar-se a fazer o que lhe era exigido, mesmo não gostando. Para evitar surras, reprimendas e castigos acabou aprendendo a ceder. Mulher feita continua incapaz de dizer não ao que lhe é pedido, mesmo as ameaças não existindo mais. Criou-se um padrão automático de resposta. Podemos dizer que as estases são cronificações de soluções que foram bem sucedidas para resolver problemas específicos em um determinado momento, mas que, como formas de proteção não mais necessárias e que se tornaram cronificadas, impedem que se criem novas soluções, que se vislumbrem novas possibilidades, que haja maior flexibilidade. Com a continuidade de suas pesquisas, Reich pôde verificar que às couraças de

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caráter correspondem as couraças musculares, havendo uma identidade funcional, ou seja, as atitudes de caráter e as atitudes musculares têm a mesma função no mecanismo psíquico: "O espasmo da musculatura é o lado somático do processo de repressão, e a base de sua contínua preservação"6.Pesquisas em laboratório, paralelamente ao seu trabalho clínico, fizeram Reich observar, de forma bastante objetiva, o funcionamento da energia no organismo. Constata que a emoção é basicamente um movimento plasmático, levando-se em conta o sentido literal da palavra emoção - "movimento para fora" ou "expansão". Estímulos agradáveis provocam uma "emoção" do protoplasma, do centro para a periferia, enquanto os desagradáveis provocam uma "emoção" ou, mais exatamente, uma "remoção" do protoplasma da periferia para o centro do organismo. Essas duas direções fundamentais da corrente plasmática - expansão e contração são um alicerce da teoria biofísica orgônica de Reich e essenciais para a compreensão da teoria reicheana e as de seus seguidores. Elas correspondem aos dois afetos básicos do aparelho psíquico - prazer e angústia7.As funções biológicas fundamentais de contração e de expansão foram observadas tanto no psíquico quanto no somático. Essas duas funções básicas se relacionam com o funcionamento do sistema nervoso vegetativo ou autônomo. Esse sistema regula processos corporais básicos como respiração, pulsação cardíaca, circulação, digestão, entre outras. Sua ação foge ao controle voluntário, daí ser "autônomo". Possui uma subdivisão: o sistema nervoso simpático e o parassimpático, que funcionam de forma antitética:

O sistema nervoso parassimpático opera na direção da expansão "para fora do eu, em direção ao mundo", do prazer e da alegria; ao contrário, o sistema nervoso simpático opera na direção da contração "para longe do mundo, para dentro do eu", da tristeza, do desprazer. O processo vital consiste em uma contínua alternância entre expansão e contração. (...) No mais alto nível psíquico, a expansão biológica é experimentada como prazer; a contração é experimentada como desprazer8.

Sejam as emoções reativadas tendo como ponto de partida o psiquismo ou o corpo, são produzidas excitações e movimentos plasmáticos. O que se move é a bioenergia, contida nos fluidos do corpo, que promove um pulsar permanente. Stanley Keleman observa que "a pulsação é um ciclo de expansão e contração, um continuum de compressão e descompressão, que vai em direção ao mundo e volta para o self. (...) Expansão e contração são as bombas essenciais da existência"9. É a pulsação que produz sentimentos essenciais como alegria, vitalidade e bem-estar. Como vimos, com a restrição das expressões espontâneas, através do encouraçamento, em conseqüência da necessidade do indivíduo se adaptar ao seu meio sociocultural, ocorre a estase de energia resultante dessa contenção, ou seja, a estagnação dessa energia, que se concentrará em pontos determinados, deixando outros sem energia suficiente, provocando alterações. Essas alterações tanto ocorrem pela falta de energia em determinada parte do corpo quanto pelo excesso de energia de forma bloqueada (estase), sem movimento, sem fluidez, também, em alguma parte do corpo. A persistência de um conflito ou de conflitos semelhantes entre as próprias necessidades e o mundo externo percebido como ameaçador faz com que o ego crie couraças, ou seja, torne-se rígido para se proteger. A couraça dá à personalidade condições para se proteger, aparando e enfraquecendo tanto os golpes do mundo externo quanto os clamores das necessidades internas. Mas se, por um lado, essa proteção diminui a dor e o desprazer, por outro, diminui a capacidade da pessoa de sentir prazer, de viver com maior plenitude as emoções agradáveis, pois, restringe sua motilidade10 agressiva e libidinal, seu fluxo de bioenergia. Com suas pesquisas, se inicia um longo caminho de estudos e experiências que fundamentam uma nova visão do ser humano, unindo instâncias até então vistas como formas isoladas - a corporal, a emocional, a mental e a social. Reich detectou que o psíquico e o somático são dois processos paralelos que atuam reciprocamente um sobre o outro. Pôde constatar que "a estrutura psíquica é ao

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mesmo tempo uma estrutura biofísica que representa um estado específico indicativo da interação das forças vegetativas de uma pessoa"11. A psique, na sua função emocional, é completamente dependente das funções de expansão e contração do sistema nervoso autônomo.

O corpo e a linguagem expressiva da vidaReich distinguiu três camadas na expressão emocional das pessoas: a primária, a secundária e a terciária. A primeira camada, a mais profunda, se constitui por impulsos espontâneos para expandir-se e manter contato. É a que guarda nossa forma mais autêntica de ser. Reich a denomina de cerne biológico, e seus continuadores, self. A segunda camada é o inconsciente reprimido, onde estão os impulsos proibidos, geralmente, confusos e destrutivos. A segunda camada se forma devido à frustração e repressão desses sentimentos mais espontâneos, que geram sentimentos destrutivos e raivosos. Nesta camada, se encontram os encouraçamentos musculares que reprimem esses impulsos. A camada mais externa, a terciária, se relaciona às defesas do caráter e ao verniz social conformista, bem-adaptado aos padrões socioculturais. É a camada das máscaras (mecanismos de defesa do ego). Reich afirmava que os impulsos primários de cada um poderiam se manifestar de forma espontânea se os impulsos destrutivos da camada secundária pudessem ser libertados da repressão e dissolvidos. Ele observou isso quando trabalhou com a linguagem expressiva fundamental do corpo em níveis profundos de relaxamento durante sua prática clínica. Mas ter acesso a essa liberação não é fácil ou simples, tendo em vista o contexto sociocultural em que vivemos. Lowen, discípulo de Reich e criador da Bioenergética, pode nos ajudar nessa compreensão:

Nossos corpos são moldados por forças sociais, dentro da família, que modelam e determinam nosso destino... que é o de termos que tentar agradar para receber aprovação e amor. (...) Por que não desistimos do papel, não interrompemos o jogo, deixamos cair o disfarce, arrancamos as máscaras? A resposta é que não somos conscientes de que nossa aparência e nosso comportamento não são inteiramente genuínos. A máscara ou disfarce tomou conta de nosso ser. O papel passou a ser uma segunda natureza para nós, e nos esquecemos de como era nossa natureza original. Tornamo-nos tão identificados com o papel e com o jogo que não podemos conceber a possibilidade de sermos de outra maneira12.

Os estudos de Reich e de seus continuadores mostram que as práticas que mobilizam nossa bioenergia abrem caminhos de acesso a nossa forma mais autêntica de expressão, daí ser importante buscarmos o contato com nosso corpo e exercitar formas de expressarmos nossas emoções, sentimentos e necessidades.À proporção que entramos em maior contato conosco, através da percepção corporal e das atividades lúdicas, vamos reorganizando nosso campo energético, percebendo emoções e sentimentos que estavam escondidos, fragilidades e potencialidades, desejos e necessidades mais profundos. Vamos, aos poucos, flexibilizando as couraças e acessando a camada primária, nosso self.Sendo o corpo nossa história de vida congelada, como diz Reich, entrar em contato com ele, nos propicia ir, aos poucos, descongelando essa história. Liberar tensões corporais, flexibilizar as couraças significa trazer mais energia para nosso corpo, mais vida. Como nos diz Lowen, "ser é o estado de vitalidade do corpo. Quanto mais cheio de vida, maior é o ser. (...). O ser é realçado toda vez que nos permitimos sentir profundamente e que deixamos manifestar nossos sentimentos e sensações em ações apropriadas"13.A expressão autêntica do indivíduo se caracteriza pela espontaneidade que se manifesta por uma motilidade corporal. Quando isto acontece, a organização do pensamento ocorre de uma forma mais natural, com maior fluidez. Se não nos sentimos à vontade ou se expressamos idéias que desejamos que sejam aceitas por quem nos ouve ou lê, temendo a sua não aceitação, acabamos por perder a espontaneidade. Acabamos por expressar, não a verdadeira individualidade, a verdadeira forma de ser, mas um pensamento ou uma forma de agir que julgamos

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ser o esperado ou o desejado. Como observa Lowen14, ser se liga a sentir, e também se relaciona aos movimentos e gestos espontâneos e involuntários que representam a auto-expressão autêntica. A força da vida em nós é vivenciada através de nossas verbalizações e movimentos espontâneos. Estar vivo não significa apenas ter o coração batendo, respirar e se locomover. Muito mais que isso, estar vivo se marca pela possibilidade de estar presente no mundo, de se inserir em seu movimento, de sentir, de se expressar, não se estagnando em determinados padrões ou idéias paralisantes. Corporalmente isso se manifesta através de mobilidade, de respiração ritmada e profunda e do fluxo da energia corporal. Reich nos trouxe esta compreensão.

Atividades lúdicas, flexibilização das couraças e auto-expressão: algumas conclusõesQuando verbalizamos ou nos movimentamos de forma espontânea, entramos em contato com o pulsar de nossa energia, integramos corpo e psique. As atividades lúdicas permitem a manifestação, em qualquer idade, daquilo que as brincadeiras infantis permitem à criança manifestar: a ação do impulso criativo, a espontaneidade do ser humano. O lúdico para o adulto ou o adolescente não significa brincar como a criança, e sim estar inteiro em sua atividade, vivenciá-la com prazer. É estar pulsando. A teoria de Reich e as de seus continuadores são significativas para os estudos na área da educação, na medida que apontam possibilidades de um novo olhar para o corpo na sala de aula e maior compreensão das relações indissociáveis entre o corpo, as emoções e o pensamento. Reich sempre se preocupou em apontar a possibilidade de prevenir neuroses através de uma mudança nas práticas educativas. Tendo em vista as atividades que desenvolvo em sala de aula, o aprofundamento teórico e a pesquisa de campo em andamento no Doutorado, fica cada vez mais evidente para mim a viabilidade de trabalhar nessa perspectiva, o que vem me permitindo configurar as bases teóricas e metodológicas da Bioexpressão como uma proposta pedagógica, que tem como objetivo principal oferecer possibilidades para o desenvolvimento da auto-expressão.Como apontei no início deste texto, a ludicidade é vivenciada através de muitas atividades, o que inclui atividades de respiração. Retomo esta atividade por ser a respiração um ato fundamental para o ser humano, do que ninguém discorda. Mas, mesmo sabendo que sem respirar não se vive, a maioria de nós não tem muita consciência de que respiramos muito mal. Respiramos de forma superficial e limitada, o que provoca incapacidade de concentração, e traz intranqüilidade, ansiedade e irritação, fatores prejudiciais também à aprendizagem. Respirar mal reduz a vitalidade do organismo.Respirar de forma natural e consciente, sem forçar nada, permite que, após alguns ciclos de inspiração e expiração, a respiração se torne mais profunda, e a bioenergia possa fluir pelo corpo. A respiração propicia relaxamento físico e mental, a liberação de tensões, maior contato do indivíduo consigo mesmo. E como frisa Lowen, a respiração é a pulsação básica (expansão e contração) que envolve todo o corpo15. "O prazer é a percepção de estar cheio de vida aqui e agora - o que significa estar plenamente vivo num sentido corporal"16. As atividades prazerosas oportunizam a expressão criativa, a expressão própria, a autonomia. E respirar mais plenamente significa estar mais vivo, portanto, com maiores possibilidades de vivenciar o momento, o prazer e, também, lidar com as dificuldades.O professor pode contribuir para a flexibilização das couraças que impedem ou dificultam a expressão de seus educandos através da abertura a novas possibilidades e do acolhimento de suas manifestações expressivas. Afirma Boadella que "no processo de transformação de padrões de sentimentos e expressões que estão bloqueados, o elemento mais importante é a receptividade viva de outro ser humano"17. Não podemos desconsiderar que a nossa receptividade e acolhimento como educadores é ponto significativo para estimular a expressão de nossos alunos.O conhecimento de novas idéias e teorias é importante em muitos momentos de nossa vida. Mas será que só o conhecimento é suficiente? Creio que não. A leitura

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de muitos livros dificilmente nos traria uma apreensão que passa também pela vivência de determinadas experiências. Será que apenas a discussão teórica nos traria a compreensão que adquirimos em nossas vivências? Quando nos propomos a unir conhecimentos científicos adquiridos, como os que Reich nos legou através de suas pesquisas cuidadosas e contínuas, à percepção de como isso se manifesta em nós, ou seja, unir a vivência e a organização mental desses conhecimentos, poderemos transformá-los em sabedoria. Só assim, poderemos expandi-la a todas as áreas de nossa vida, seja afetiva, mental, corporal ou espiritual. Poderemos também, a partir dessa apropriação, ter maior segurança e capacidade de criar modos próprios de transferir para a prática pedagógica nossas aquisições, criando novas possibilidades em sala de aula.

Notas:1 A Bioexpressão é uma proposta pedagógica e, também, um modo de compreender o ser humano. Inicialmente a denominei Bioexpansão, tendo sido, desde o primeiro semestre de 1997, ministrada por mim como disciplina optativa na Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ e como atividade regular no Programa FUNREI com a Terceira Idade nessa Instituição, até meu afastamento para cursar o Doutorado na Faculdade de Educação da UFBA, em Salvador, em 2001. Com o aprofundamento dos estudos no Doutorado, passei a denominá-la Bioexpressão. A mudança se deve a duas razões. A primeira, por ser a expansão um dos pólos de um processo pulsátil de expansão e contração que a proposta busca trabalhar como um todo inseparável. A segunda razão, por ser o objetivo maior dessa proposta possibilitar condições para o desenvolvimento da expressão própria, para a manifestação pessoal de se inserir no mundo.

2 LUCKESI, Cipriano Carlos. Educação, ludicidade e prevenção das neuroses futuras: uma proposta pedagógica a partir da Biossíntese. In: LUCKESI, Cipriano Carlos (org.) Ludopedagogia - Ensaios 1: Educação e Ludicidade. Salvador: Gepel, 2000.

3 SANTIN, Silvino. Educação física: da opressão do rendimento à alegria do lúdico. Porto Alegre: Edições EST/ESEF - UFRGS, 1994.

4 FORTUNA, Tânia Ramos. Formando professores na Universidade para brincar. In: SANTOS, Santa Marli P.dos (org.). A ludicidade como ciência. Petrópolis: Vozes, 2001, p.116.

5 PEREIRA, Lucia Helena P. Ludicidade: algumas reflexões. In: PORTO, Bernadete de Souza (org.). Ludicidade: o que é mesmo isso? Salvador: Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Gepel, 2002, p.17.

6 REICH, Wilhelm. A função do orgasmo. Problemas econômico-sexuais da energia biológica. Tradução de Maria da Glória Novak. 19 ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.256.

7 REICH, Wilhelm. Análise do caráter. Tradução de Ricardo Amaral do Rego. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

8 REICH, 1995, p. 245-246.

9 KELEMAN, Stanley. Anatomia emocional: a estrutura da experiência. Tradução de Myrthes Suplicy Vieira. 3 ed. São Paulo: Summus, 1992, p.77.

10 Motilidade corporal é o fluxo interno, diferente do movimento, que se manifesta externamente; "é a vitalidade do padrão pulsátil, a força e a intensidade das pulsações dos órgãos que dão energia e identidade pessoal" (KELEMAN,1992, p.42).

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11 REICH, 1995, p.255.

12 LOWEN, Alexander. Medo da vida. Tradução de Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1989, p.81-82.

13 LOWEN, 1989, p.114.

14 LOWEN, 1989.

15 LOWEN, Alexander. Prazer. Uma abordagem criativa da vida. Tradução de Ibanez de Carvalho Filho. 6 ed. São Paulo: Summus, 1984.

16 LOWEN, 1984, p.29.

17 BOADELLA, David. Correntes da vida. Uma introdução à Biossíntese. Tradução de Cláudia Soares Cruz. 2 ed. São Paulo: Summus, 1992, p.11.

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