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III. Atitudes Frente à Natureza ATITUDES FRENTE À NATUREZA 1 1 John Passmore Resumo Seria a natureza completamente “estranha” ao ser humano? Teria ela uma existência objetiva? Haveria algum aspecto em que os homens seriam únicos em relação a outros seres vivos? Ao longo da história, as atitudes dos homens frente à natureza deram respostas variadas a esses questionamentos. No mundo ocidental, foco do artigo, desde a filosofia greco-cristã até a de Hegel, passando por Descartes e Kant, a natureza foi vista quase exclusivamente como existindo apenas e tão-somente para servir ao homem e garantir o seu bem-estar, justificando qualquer forma de exploração. Nas últimas décadas, no entanto, críticos ecológicos vêm clamando por uma nova filosofia da natureza, uma nova metafísica, menos antropocêntrica, que deixe de perceber a natureza como “estranheza”. O autor questiona a real necessidade dessa nova filosofia. Concordando que alguns aspectos das filosofias tradicionais devem ser ultrapassados, ele acredita que uma nova atitude frente à natureza está ligada a uma visão mais realista da mesma e ao seu significado para o ser humano. Palavras-chaves: filosofia da natureza; idéia de natureza; história ambiental. Abstract Would the nature be completely “strange” to human being? Would it have an objective existence? Would there be some aspect in which men would be unique compared to other living being? roughout history, attitudes of men to nature gave varied answers to these questions. In the Western world, focused in this paper, from the greco-Christian philosophy until Descartes, Kant and Hegel, nature was seen almost exclusively as existing only to serve men and ensure their welfare, justifying any form of exploitation. In recent decades, however, ecological critics have been clamoring for a new philosophy of nature, new less anthropocentric metaphysics, that no longer perceive nature as strange. e author questions the real need for this new philosophy. Agreeing that some aspects of traditional philosophies should be overcome, he believes that a new attitude to nature is linked to a more realistic view of it and its significance for the human being. 1 PASSMORE, John (1914-2004). “Attitudes to Nature”. In: PETERS, R. S., Ed. Nature and Conduct. Royal Institute of Philosophy Lectures, Vol. VIII, 1973-74. London: McMillan, 1975, p. 251-264. Tradução Christine Rufino Dabat, revisão da 1ª edição Edvânia Tôrres Aguiar Gomes e Fabiana dos Santos Firmino; 2ª edição revisada por José Marcelo Marques Ferreira Filho. Tradução publicada com a autorização do Royal Institute of Philosophy Lectures, 1995 e da Revista de Geografia em que esta tradução foi publicada anteriormente (v. 11, n. 2, jul./ dez. 1995, p. 91-102). O artigo original foi incorporado como anexo a outra obra, posterior, pelo próprio autor: PASSMORE, John. Man’s Responsibility to Nature. Ecological Problems and Western Traditions. London: Duckworth, 1980.

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III. Atitudes Frente à Natureza

ATITUDESFRENTE À NATUREZA1

1John Passmore

Resumo

Seria a natureza completamente “estranha” ao ser humano? Teria ela uma existência objetiva? Haveria algum aspecto em que os homens seriam únicos em relação a outros seres vivos? Ao longo da história, as atitudes dos homens frente à natureza deram respostas variadas a esses questionamentos. No mundo ocidental, foco do artigo, desde a filosofia greco-cristã até a de Hegel, passando por Descartes e Kant, a natureza foi vista quase exclusivamente como existindo apenas e tão-somente para servir ao homem e garantir o seu bem-estar, justificando qualquer forma de exploração. Nas últimas décadas, no entanto, críticos ecológicos vêm clamando por uma nova filosofia da natureza, uma nova metafísica, menos antropocêntrica, que deixe de perceber a natureza como “estranheza”. O autor questiona a real necessidade dessa nova filosofia. Concordando que alguns aspectos das filosofias tradicionais devem ser ultrapassados, ele acredita que uma nova atitude frente à natureza está ligada a uma visão mais realista da mesma e ao seu significado para o ser humano.

Palavras-chaves: filosofia da natureza; idéia de natureza; história ambiental.

Abstract Would the nature be completely “strange” to human being? Would it have an

objective existence? Would there be some aspect in which men would be unique compared to other living being? Throughout history, attitudes of men to nature gave varied answers to these questions. In the Western world, focused in this paper, from the greco-Christian philosophy until Descartes, Kant and Hegel, nature was seen almost exclusively as existing only to serve men and ensure their welfare, justifying any form of exploitation. In recent decades, however, ecological critics have been clamoring for a new philosophy of nature, new less anthropocentric metaphysics, that no longer perceive nature as strange. The author questions the real need for this new philosophy. Agreeing that some aspects of traditional philosophies should be overcome, he believes that a new attitude to nature is linked to a more realistic view of it and its significance for the human being.

1 PASSMORE, John (1914-2004). “Attitudes to Nature”. In: PETERS, R. S., Ed. Nature and Conduct. Royal Institute of Philosophy Lectures, Vol. VIII, 1973-74. London: McMillan, 1975, p. 251-264. Tradução Christine Rufino Dabat, revisão da 1ª edição Edvânia Tôrres Aguiar Gomes e Fabiana dos Santos Firmino; 2ª edição revisada por José Marcelo Marques Ferreira Filho. Tradução publicada com a autorização do Royal Institute of Philosophy Lectures, 1995 e da Revista de Geografia em que esta tradução foi publicada anteriormente (v. 11, n. 2, jul./dez. 1995, p. 91-102). O artigo original foi incorporado como anexo a outra obra, posterior, pelo próprio autor: PASSMORE, John. Man’s Responsibility to Nature. Ecological Problems and Western Traditions. London: Duckworth, 1980.

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Keywords: philosophy of nature; Idea of nature; environmental history.A ambiguidade da palavra “natureza” é tão notável que dispensa

comentários. Exceto, talvez, para enfatizar que esta ambiguidade – quase tão aparente quanto Aristóteles o denotou, há muito tempo, no seu equivalente grego “physis” – não representa um produto meramente acidental de confusões ou fusões etimológicas: reflete fielmente as hesitações, dúvidas e incertezas com as quais os homens têm se deparado frente ao mundo ao seu redor. Para os meus objetivos específicos, é o bastante dizer que usarei a palavra “natureza” em um de seus sentidos mais restritos: apenas incluindo aquilo que, deixando de lado o sobrenatural, designa o que não é humano, nem por si próprio, nem nas suas origens. Neste sentido, nem o arquiteto Sir Christopher Wren, nem a catedral de Saint Paul fazem parte da “natureza”, ou pode ser difícil decidir se uma pedra lascada de forma esquisita ou uma paisagem onde as árvores estão regularmente espaçadas é ou não “natural”. A questão que estou levantando, então, é: quais têm sentido e quais devem ser nossas atitudes frente à natureza, neste entendimento delimitado da expressão, que exclui tanto o humano quanto o artificial. E, mais restritamente ainda, devotarei a maior parte de minha atenção para nossas atitudes frente àquela parte da natureza passível de modificação pelo poder do homem e, em particular, frente ao que Karl Barth chama “a estranha vida dos animais selvagens e das plantas que nos cerca”, uma vida que podemos destruir pelas nossas ações.

Em que sentido a vida animal e vegetal é “estranha”? As próprias atitudes dos seres humanos para com outros seres humanos são variáveis e complicadas; nossos pares humanos agem, muitas vezes, de modos estranhos aos nossos olhos. Mas há modos de lidar com seres humanos que nos faltam quando nos confrontamos com a natureza. Podemos argumentar com os seres humanos, debater com eles, tentar alterar suas condutas pela admoestação ou pela súplica. Não há dúvidas de que existem pessoas com as quais isto não é verdade: as irremediavelmente insanas. E por esta razão mesma, houve uma tendência em excluí-las da humanidade, em algumas sociedades como seres sobrenaturais, em

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outras como meros animais: o antigo hospício de Bedlam era, certamente, um tipo de zoológico. O psicopata, imune à argumentação ou à súplica, desperta em nós um tipo peculiar de medo, e horror. Quanto aos artefatos, é claro que não podemos modificá-los da mesma maneira que modificamos os seres humanos; é inútil implorar um prédio para que saia da frente do nosso carro. Todavia, entendemo-los como realizando um papel determinado no quadro de um comportamento humano que é possível, a princípio, tentar modificar: olhamos através deles para seus criadores humanos. Quando não é o caso, quando encontramos algo que claramente parece ser um artefato, mas não podemos supor de que forma de vida faz parte, nós o achamos, como Stonehenge, “incomum”.

“Estranho” como Karl Barth usa a palavra, não apenas significa pouco familiar, mas estrangeiro, alienígena. (Os incultos chamam qualquer forasteiro de “incomum” porque não podem se comunicar com ele – para fazê-lo agir é necessário “empurrá-lo” como um objeto natural ao invés de falar com ele). Nem sempre os homens reconheceram a natureza como estranha. Durante a maior parte da sua história, eles pensaram os processos naturais como tendo intenções e como capazes de serem influenciados exatamente à maneira dos seres humanos, pela oração e súplica – não através de um Deus concebido antropomórficamente – mas diretamente, sem mediação.

Nos últimos dois mil anos, entretanto, o mundo ocidental greco-cristão tem rejeitado inteiramente esta concepção de natureza. Pelo menos, em sua ciência oficial, tecnologia e filosofia: foi mais difícil de convencer o homem comum de que processos naturais não podem ter intenções, mesmo quando nem animais são. Em épocas bem recentes, como o século XIX, os lenhadores alemães pensavam que era prudente explicar para uma árvore que estavam prontos a abater, exatamente porque ela teria que ser cortada. No Pato Selvagem de Ibsen, o velho Ekdal está convencido de que a floresta procurará se vingar por ter sido cruelmente raleada; em Woyzeck, de Büchner, um camponês explica o afogamento de um homem num rio dizendo que este tinha ficado a procura de uma vítima por um longo tempo. (Relembrando a metáfora familiar dos jornais: “Um perigoso trecho da costa traga uma nova vítima”).

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Tais atitudes, acredito, ainda exercem certa influência; em alguns escritos ecológicos recentes, a visão de que a natureza “terá sua revanche” sobre a humanidade pelos crimes cometidos, é usada mais do que como metáfora, assim como velhas idéias sobre poluição, sacrilégio, hubris, são ainda, em tais escritos, conceitos poderosos.

O fato é que a tradição estóico-cristã tem insistido na absoluta unicidade do homem, uma unicidade particularmente manifesta segundo o cristianismo, no fato de que Deus se dirigiu apenas a ele – nas palavras de Karl Barth – e, portanto, apenas ele pode ser salvo ou condenado, como também, ainda na tradição estóico-cristã geral, é evidenciada a sua capacidade única de comunicação racional. Se a natureza, dentro desta visão, não é de todo estranha, é apenas porque ela foi criada por Deus para ser usada pelos homens. Animais e plantas podem, por esta razão, ser assimilados, ao menos em certos aspectos, a uma categoria de ferramentas, a bestas irracionais, todavia menos obedientes à vontade dos homens. Pedro Lombardo resumiu a visão cristã tradicional em suas Sentenças: “Da mesma forma que o homem é feito a bem de Deus, ou seja, para serví-lo, então o mundo é feito a bem do homem, para servi-lo”. Assim, apesar de “estranha”, por não ser racional, a natureza, para os ortodoxos, não é hostil nem indiferente, a despeito das aparências em contrário. Todos os processos naturais existem ou como uma ajuda material aos homens, ou como um guia espiritual, lembrando seu estado corrupto através do dilúvio, vulcões e tempestades.

Nesta doutrina, que eles remetem ao Antigo Testamento, os críticos ecológicos da cultura ocidental discernem as raízes de sua destrutividade. Trata-se de um erro em dois sentidos. Primeiro, que tudo existe pra servir o homem, não é certamente o ensinamento constante do Antigo Testamento, que insiste regularmente na idéia de que, segundo o livro de Jó, Deus “provoca chuva em terras onde não há homens, nas áreas selvagens onde não há homem, para satisfazer o chão desolado e gasto; para fazer brotar a erva terna e a primavera”. À questão

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retórica de Paulo: “será que Deus cuida dos bois?”, um judeu do Antigo Testamento teria respondido: “Sim, naturalmente”. Eram os estóicos que defendiam a visão contrária. E eram eles, sob o pretexto de que isto era o Antigo Testamento, que eram seguidos por alguns intelectuais cristãos influentes, como Orígenes. Em segundo lugar, a doutrina segundo a qual “tudo é feito para o homem” não significa necessariamente que o homem deva ir adiante e transformar o mundo. Pelo contrário, por séculos isto foi interpretado de um modo conservador: Deus sabe melhor do que precisamos. Tentar reformar o que Deus criou, é uma forma de presunção, de “hubris”. Homens pecadores e corruptos não devem tentar refazer o mundo a sua própria imagem.

Após as cruzadas, a Europa testemunhou o desenvolvimento das “artes mecânicas” como, por exemplo, a roda d’água, os moinhos de vento, o compasso, o relógio. Mas essas invenções eram, por muitos, condenadas como diabólicas. Num exemplo maravilhoso de etimologia heideggeriana, sustentou-se que “mecânico” derivara de “moecha”, a adúltera. Deus, argumentava-se, tinha provido na terra, já pronto, tudo o que era apropriado os homens desejarem. Para eles, tentar tornar seus trabalhos menos pesados, significava ir diretamente contra a vontade de Deus, na medida em que se procurava construir um mundo que fosse tal como se Adão nunca tivesse pecado.

Porém, isto é muito verdadeiro no diagnóstico ecológico: a visão de que todas as coisas existem para servir o homem encorajou o desenvolvimento de um modo particular de ver a natureza, não como algo a ser respeitado, mas sim como algo a ser utilizado. A natureza não é, em sentido algum, sagrada. Este era um ponto no qual a teologia cristã e a cosmologia grega concordavam. Deus, sem dúvida, poderia tornar certos lugares particulares ou objetos sagrados, escolhendo tomar residência neles, como, no cristianismo romano, ele fez sagrados o pão e o vinho sacrificiais. Contudo, nenhum objeto natural era sagrado por si mesmo; não havia risco de sacrilégio em derrubar uma árvore, ou matar um animal. Quando Bacon colocou, como seu ideal, a transformação da natureza – ou, mais exatamente, a recriação do Jardim de Éden –

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ele teve que lutar contra a visão de que o homem era corrupto demais para empreender qualquer tarefa deste tipo, mas não que a natureza era sagrada demais para ser tocada. Foi o homem, enfatizava, que Deus fez a sua própria imagem, não a natureza.

Quando os apologistas cristãos vêem na ciência e na tecnologia o produto de uma civilização claramente cristã, eles têm razão neste particular: o cristianismo ensinou aos homens que não havia sacrilégio nem em analisar, nem em modificar a natureza. Mas, somente quando ele modificou sua crença no pedado original, apenas quando ele se tornou, na prática, pelagiano, poderia ele testemunhar, sem desaprovação – sem falar em encorajar positivamente – a tentativa de criar na terra uma nova natureza, mais adequada às necessidades humanas. O ataque vigoroso de Locke contra o pecado original – explícito em seus escritos teológicos, implícito em seu “Ensaio” (“Essay”) – fez parte de sua tarefa de trabalhador removendo obstáculos que se opunham à transformação da natureza – e do homem – pelo homem.

Associada ao conceito cristão de natureza havia uma tese ética particular: que nenhuma consideração de ordem moral pairava sobre as relações dos homens com os objetos naturais, exceto onde tais objetos fossem a propriedade alheia ou exceto onde tratá-los cruel ou destrutivamente poderia encorajar atitudes correspondentes contra outros seres humanos. Esta tese foi mantida fortemente pelos estóicos e não menos vigorosamente defendida por Agostinho. Jesus, argumentava ele, transformou os demônios em suínos – embora os suínos sejam inocentes de qualquer crime – ao invés de destruí-los, como uma lição para os homens de que eles podem fazer o que quiserem com os animais. Nem mesmo a crueldade para com estes, diz Aquino, é errada em si. “Se alguma passagem nas Sagradas Escrituras parece proibir-nos de crueldade contra os animais brutos, isto é ou porque através da crueldade contra eles podemos nos tornar cruéis para com seres humanos, ou porque ferindo animais, conduz a um prejuízo temporal do homem”. Em outras palavras, a crueldade para com os animais é errada apenas em virtude de seus efeitos sobre os seres humanos, como disse Kant,

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nesta mesma tradição, mantinha ainda nos decênios finais do século XVIII. E o que é verdade da crueldade para com os animais, aplica-se, ainda mais obviamente, nessa visão, a nossas relações com outros membros do mundo não-humano. Somente especulações judaicas, ou inspiradas pelo judaísmo, opuseram-se a esta visão corrente. Em vários trechos, o Talmude defende uma atitude mais atenciosa para com a natureza, e quando Kant reafirma a posição tradicional, é em oposição a Baumgarten, que tinha seguido o Talmude neste ponto.

A questão de saber se a crueldade para com os animais é intrinsecamente errada tem uma importância muito maior do que aparenta inicialmente. É precisamente por esta razão que filósofos como Kant, embora fossem certamente muito humanos, insistiram na opinião de que a maldade contra os animais apenas é errada na hipótese empírica – de fato algo muito duvidoso – de que ela encoraja a maldade contra seres humanos. Pois, se a crueldade para com os animais é intrinsecamente errada, por conseguinte, não é moralmente indiferente o modo como os seres humanos se comportam frente à natureza; em um caso, ao menos – e talvez em outros – a relação do homem com a natureza tem que ser governada por considerações morais não redutíveis a uma preocupação com interesses puramente humanos, a um dever para com os outros ou, segundo o pensamento de Kant, para consigo mesmo.

Há um meio simples e decisivo de negar que seja errado infligir sofrimento aos animais, isto é, negando que os animais possam, de fato, sofrer. Este passo, Descartes deu. A filosofia de Descartes representa, em certos aspectos, o auge da tendência do pensamento greco-cristão de diferenciar o homem dos demais animais. Pois Descartes nega que os animais possam até sentir, muito menos utilizar a inteligência. (Isto nos leva a relembrar a opinião de Cícero, que ele aprova, segundo a qual não existe doutrina tão absurda que não tenha sido defendida por algum filósofo). Todo sofrimento, diz seu seguidor Malebranche, é o resultado do pecado de Adão: os animais, que não foram implicados neste pecado, não podem sofrer. Como resultado das nossas ações, os animais não sofrem realmente, eles apenas se comportam exatamente como se

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sofressem – uma doutrina em que alguns estóicos também conseguiram acreditar. Portanto, não só está errado supor que possamos raciocinar com os animais, mas até mesmo que possamos simpatizar com eles. É verdade que o preço para alcançar essa conclusão foi colocar o próprio corpo humano dentro da natureza, como alguma coisa que não é sagrada; o que ficou fora da natureza era unicamente a consciência. Todavia, ao mesmo tempo, para Descartes, o corpo humano era único por ser, de alguma forma, “unido” à consciência; o ser humano, associando mente e corpo podia, deste modo, ser colocado em oposição total com o mundo não-humano com o qual se deparava.

Assim, o dualismo cartesiano podia ser usado, e foi usado, para justificar a idéia de que, nas suas relações com a natureza, o homem não era sujeito a nenhuma restrição moral. Mas, ao mesmo tempo, Descartes separou sua doutrina da sua associação histórica com a opinião segundo a qual tudo é feito para o uso do homem – opinião que ele qualificava de “infantil e absurda”. Era patente, achava ele, que “uma infinidade de coisas existem, ou existiram, que nunca foram contempladas ou entendidas por homem algum, e que nunca foram de qualquer uso para ele.” Sem dúvida, o homem podia de fato utilizar o que ele encontrara na natureza, e ele realmente tinha que fazê-lo, mas a natureza não existia como alguma coisa feita, toda pronta para ele. Efetivamente, para utilizá-la, ele tinha que primeiro transformá-la. Não é surpreendente, portanto, encontrar Descartes proclamando que é tarefa do homem “tornar-se senhor e dono da natureza”; a atitude correta frente ao mundo é, na sua opinião, a de explorá-lo. O caso paradigmático de uma substância material se expressa, para Descartes, num pedaço de cera, o símbolo tradicional da maleabilidade.

A exemplo de Bacon, seu antecessor, ele também sugere um método particular de exploração, que ele chama de “filosofia prática”, o que chamaríamos de “tecnologia baseada na ciência”. Assume-se que apenas podemos tornar processos naturais menos “estranhos”, sujeitando-os, primeiramente, a conceitos que são ou inerentes à razão humana, ou criados por ela e, depois, usando este domínio conceitual

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para fazê-los trabalharem de uma forma que seja mais conforme aos interesses humanos. Essa é a atitude frente à natureza que tem regido a ciência ocidental: compreensão através de leis, transformação através da tecnologia.

A filosofia da ciência associada a este empreendimento tem sido, sob certos aspectos, platônica. “Compreensão” tem sido identificada com a descoberta de relações funcionais que podem ser expressas de forma matemática, entre processos e objetos concebidos de forma abstrata. A ciência, diz-se então, não diz respeito às coisas particulares que vemos e com as quais tentamos lidar no mundo que nos cerca, exceto de forma bastante indireta. O manual de física fala de objetos naturais que podemos encontrar todos os dias, unicamente quando descreve os dispositivos experimentais. E supõe-se que a física é a ciência na sua forma ideal. A famosa descrição da ciência por Rutherford como sendo “a física e fazer coleção de selos”, expressa, precisamente, essa atitude; a história natural, o exame direto da natureza de um modo que se contenta com a descrição de relações qualitativas entre objetos e processos naturais comuns, é condenada como simples “colecionar selos”. Só espíritos de terceira categoria, continua essa presunção, poderiam dedicar-se a estudar, por exemplo, a vida das baleias. Ser o que Platão chamava “um amante de vistas e sons”, ter prazer olhando para o vôo dos pássaros, mas de forma diferente dos problemas matemáticos que este vôo coloca, logo, isto significa mostrar-se um ser inferior, sensual.

Evidentemente, essa atitude para com a natureza sempre teve críticos. Poetas como Blake protestaram contra isto; a pintura, antes dos pintores serem também seduzidos a expressarem-se pela geometria pura, chamou a atenção de maneira sensual para as formas e cores do mundo ao nosso redor. Biólogos como John Ray enfatizaram, ao contrário de Descartes, a importância da multiplicidade e diversidade das formas da vida. Mas, a corrente principal da ciência tem sido de cunho cartesiano- platônico.

Filósofos, no entanto, estavam geralmente insatisfeitos com o dualismo cartesiano, por razões que os cientistas, exercendo sua

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profissão, achavam e ainda acham difícil de entender. Descartes, diziam os filósofos, separou a consciência da natureza de forma tão absoluta que não se podia mais colocá-las em relação novamente. Em geral, se bem que de formas diversas, eles reagiam contra Descartes, tentando afirmar que a natureza era muito mais parecida com a humanidade do que Descartes estava pronto a admitir. Mas, eles o faziam freqüentemente às custas de negar à natureza sua existência totalmente independente, ou, no melhor dos casos, tratando a natureza independente como alguma “coisa em si”, e não como a natureza que encontramos e com a qual temos que lidar na vida cotidiana.

Para Berkley, certamente, toda a natureza é apenas um vasto sistema de sinais que advertem e admoestam os homens. Numa tradição distinta, para Hegel, bem como para Marx, depois dele, a natureza em si é “negatividade”. Isto não significa, evidentemente, que ela não existe. Mas, ela existe simplesmente para ser dominada, para ser humanizada. O homem lhe oferece a liberdade, liberta-a dos seus grilhões unicamente tornando-a humana, como ele faz, para citar um dos exemplos favoritos de Hegel, quando ele come plantas e carne. Isto é, de uma forma ou de outra, os metafísicos pós-cartesianos – obviamente com algumas notáveis exceções - tentam defender a idéia de que a natureza está centrada no homem mesmo até o ponto, em casos extremos, de negar que ela existe quando o homem não a está percebendo, frustrando assim completamente o objetivo do argumento de Descartes contra o antropocentrismo. A natureza se torna menos “estranha” quando é transformada numa ferramenta, numa linguagem, num aliado secreto, num aspirante à humanidade; ou então quando é negada como realidade, além das oportunidades em que o homem importa-se em outorgar-lhe realidade. (Lembram a referência de Hume, embora não fosse ele um fenomenalista coerente, às percepções “que escolhemos dignificar” com o nome de realidade).

Associada a esta atitude frente à natureza, temos a depreciação da beleza natural como sendo bem inferior às obras de arte: o sentimento encontrado na literatura clássica e ainda formulado por Hegel, segundo

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o qual a natureza só merece apreço quando ela foi transformada numa fazenda, num jardim e perdeu sua selvageria, sua estranheza. Era um tema comum no pensamento cristão que o mundo foi criado como um globo perfeito; a natureza como a vemos agora, com suas montanhas e vales, é uma ruína lúgubre, uma lembrança melancólica do pecado de Adão. Malebranche lamentava que a natureza contivesse formas outras que as dos sólidos regulares; o jardineiro do século XVII, no mais agostiniano dos séculos, esforçava-se ao máximo para converter a natureza em tais formas com suas árvores piramidais e sebes cúbicas. Os hegelianos, menos orientados pela geometria, tinham também certeza de que a natureza era como realmente deveria ser apenas depois que o homem a tinha transformado, convertendo a natureza selvagem em paisagens domesticadas. Herbert Spencer via a incumbência humana como sendo a conversão do mundo num vasto jardim.

As duas principais tradições no pensamento ocidental moderno podem, portanto, ser assim colocadas: a primeira, de inspiração cartesiana, defende que a matéria é inerte, passiva e que a relação do homem com ela é de um absoluto despotismo, reformando-a, remodelam-do-a; ela não tem em si nenhum poder de resistência, nenhum tipo de ação. A segunda tradição, hegeliana, defende que a natureza só existe potencialmente, como alguma coisa que o homem tem por tarefa de efetivar através da arte, ciência, filosofia, tecnologia, convertendo-a em algo humano, alguma coisa na qual o homem possa sentir-se completamente à vontade, em nenhum sentido estranha ou alheia a ele, um espelho no qual ele possa ver sua própria imagem. O homem, de acordo com este segundo ponto de vista, completa o universo, não só pelo fato de viver nele, como o mito do Gênese o sugere, mas realmente ao contribuir para fazê-lo.

É fácil ver, a partir desse breve histórico, porque os críticos ecológicos da civilização ocidental apelam agora para uma nova religião, uma nova ética, uma nova estética, uma nova metafísica. Poder-se-ia imaginar uma história sardônica da filosofia ocidental que a descreveria como uma longa tentativa de acalmar os medos dos homens, suas

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incertezas, persuadindo-os que os processos naturais não representam nenhum perigo real, ou porque eles são completamente maleáveis sob as pressões humanas, ou porque os homens estão, afinal de contas, totalmente em segurança num mundo previsto para favorecer seus interesses – um empreendimento que produziu absurdezas cada vez mais desvairadas, numa tentativa desesperada de negar os fatos óbvios. Isto não seria, contudo, uma história da filosofia inteiramente exata; até o fenomenalismo tem seus méritos como a reductio ab absurdum da teoria da percepção de aspecto plausível. A filosofia, como já sugerimos, tem boas razões para rejeitar o dualismo cartesiano, mesmo que se essas razões não sejam tão boas para substituí-lo por uma nova versão do antropocentrismo. Ao mesmo tempo, pensar a filosofia desta forma não é de todo uma interpretação inteiramente monstruosa; é bastante fácil entender que a filosofia deveria parecer uma apologia do antropocentrismo àqueles que dão agora tanta ênfase à responsabilidade do homem para com a natureza. A metafísica e a ética ocidentais longe de ter desencorajado a exploração impiedosa da natureza, contribuíram para encorajá-la, quer tenham elas visto nessa exploração a manipulação legítima da natureza, como uma cera na mão do homem, ou a sua humanização de um modo que satisfaria, de uma maneira ou de outra, os interesses reais da natureza.

Evidentemente, enquanto filósofos, não podemos simplesmente concordar com a demanda de uma nova metafísica ou nova ética, com a mera justificativa que a ampla aceitação das antigas metafísicas e antigas éticas têm encorajado a exploração da natureza – da mesma forma que um biólogo não poderia aceitar a exigência de uma nova biologia se essa demanda fosse baseada simplesmente no fato, ou fato alegado, de que os homens tenderiam menos a agir de forma ecologicamente destrutiva se eles fossem persuadidos de que todos os seres vivos têm um cérebro desenvolvido. Em particular, é improvável que o filósofo esteja satisfeito com a exigência da ala primitivista do movimento ecológico, que demanda que ele encoraje o homem a voltar à crença de que a natureza é sagrada. Temos de fato razão em condenar como superstição a crença

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de que as árvores, os rios, os vulcões podem ser persuadidos por argumentos; temos razão em acreditar que achamos na ciência meios de entender seu comportamento; temos razão em considerar que a civilização é importante, até na sua tentativa de transformar a natureza. Não é abandonando a nossa tradição de racionalidade – duramente conquistada – que nos salvaremos.

Entretanto, podemos, de fato, nos perguntar quais as condições gerais que qualquer filosofia da natureza deva preencher para atender aos temas científicos do movimento ecológico, isto é, distinguindo-os de suas conotações reacionárias e místicas. Qualquer filosofia da natureza satisfatória tem que reconhecer:

Que os processos naturais têm seus próprios cursos, de forma indiferente aos interesses humanos e não são incompatíveis com o desaparecimento total do homem da face da terra.

Quando os homens atuam sobre a natureza, eles não modificam simplesmente uma qualidade particular de uma substância particular. O que eles fazem, realmente, é interagir com um sistema de interações, colocando em andamento novas interações. É precisamente por essa razão que existe sempre o risco de que suas ações tenham consequências por eles não previstas.

Em nossa tentativa de entender a natureza, a descoberta de leis gerais, nos moldes da física, tem freqüentemente uma importância muito limitada. A queixa de que a biologia e a sociologia são inferiores porque elas não têm leis, pode ser invertida e utilizada como um argumento contra uma ênfase indevida sobre a análise platônico -cartesiana da “compreensão”. Quando se trata de entender as estruturas biológicas ou sociais, podemos dizer que o que importa é a compreensão detalhada de circunstâncias muito específicas, mais do que o conhecimento de relações funcionais de alto nível. As “leis” em questão são muitas vezes cediças e mal formuladas, servindo unicamente como limites para o que é possível. As baleias, para voltar ao meu exemplo anterior, devem, como todos os animais, comer e se reproduzir; podemos descrever isto, se quisermos, como uma ‘‘lei biológica’’, segundo a qual todo animal

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tem que ingerir alimentos e tem que ter algum meio de se reproduzir. Mas essas ‘leis’ deixam praticamente tudo o que é interessante sobre as baleias ainda para ser descoberto.

Poderíamos retomar as condições gerais que coloquei dizendo que de certa – e importante – maneira, o filósofo tem que aprender a viver com a “estranheza” da natureza, com o fato de que os processos naturais são completamente indiferentes a nossa existência e bem-estar – não positivamente indiferentes, evidentemente, mas incapazes de importar-se conosco – e são complexos de tal forma que exclui a possibilidade de conseguirmos dominá-los ou transformá-los completamente. Expressas desta maneira, tais conclusões parecem tão banais e óbvias que sinto quase vergonha em colocá-las. Mas, a partir do que já foi dito, é claro que elas não foram satisfeitas na maioria das tradicionais filosofias da natureza. Nessa medida, penso, é verdade que precisamos de uma nova ‘metafísica’ que seja realmente não-antropocêntrica e que considere mudança e complexidade com a seriedade que merecem. Certamente, ela não deve pensar os processos naturais ou como dependendo do homem para sua existência, como infinitamente maleável, ou então como sendo construídos de forma a garantir a continuação da sobrevivência dos seres humanos e de sua civilização.

Evidentemente, tal filosofia da natureza não seria de modo algum inteiramente nova. Suas bases foram estabelecidas pelos vários tipos de naturalismo. As filosofias naturalistas, entretanto, como a biologia darwiniana que lhes dá sustentação, tentam, com freqüência, reduzir a “estranheza” da natureza – mesmo se elas fazem isto naturalizando o homem em vez de espiritualizar a natureza. A maneira como eu utilizei a palavra “natureza” até agora é completamente enganadora, diriam os filósofos naturalistas; deveríamos pensar a “natureza” como alguma coisa da qual o homem faz parte, não estranha a ele já que ele participa dela plenamente. E, obviamente, eu concordo com os filósofos naturalistas que num sentido determinado e muito importante da palavra “natureza”, ambos o homem e as criações humanas fazem parte da natureza: eles são

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sujeitos às leis naturais. A natureza não tem essa “estranheza” metafísica que Descartes lhe atribuía. Entretanto, ambos os sentidos de “natureza” desempenham papeis peculiares: eles são importantes em diferentes tipos de discussão. Os filósofos naturalistas são, às vezes, tentados pelo reducionismo no sentido de negar que nossas relações com nossos pares humanos sejam diferentes em qualquer aspecto importante, das nossas relações com outras coisas, que a natureza seja de alguma forma “mais estranha” do que os outros seres humanos com quem não temos familiaridade. Essa é uma tentação à qual temos que resistir. Não é antropocêntrico pensar que os seres humanos e o que eles criam tenham algum valor e importância especiais, ou sugerir que os seres humanos têm modos únicos de se relacionar uns com os outros – particularmente através de sua capacidade de afirmar e negar, mas também porque, como dizem os existencialistas, eles são os únicos a se preocuparem com o futuro. Para muitos propósitos não é arbitrário, mas essencial, contrastar o que é humano com o que não é humano – com o “natural” no sentido especial, limitado da palavra.

Assim, não podemos aceitar o argumento de que o que aconteceu no mundo apenas é: o homem, como espécie dominante, destruindo, numa competição biológica normal, outras espécies competitivas, e que se atormentar pelo fato do desaparecimento destas espécies é tão absurdo quanto lamentar que o mundo não contenha mais dinossauros. É verdade que, como qualquer outra espécie, os homens só podem sobreviver à custa de outras espécies. Mas os homens podem ver o que está acontecendo: eles podem observar o desaparecimento de espécies em concorrência; eles podem avaliar as consequências deste desaparecimento; eles podem – pelo menos em princípio – preservar uma espécie e modificar seu próprio comportamento de forma a torná-lo menos destrutivo. Que de várias e fundamentais maneiras os homens não sejam únicos é o ponto de partida de uma metafísica satisfatória. Mas em outros sentidos eles são sem igual. Uma “nova metafísica”, para não falsificar os fatos, terá que ser naturalista, mas não reducionista. A elaboração desta metafísica é, na minha opinião, a tarefa mais importante

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proposta à filosofia.O que acontece com a controvérsia em termos da idéia de

que o Ocidente está precisando agora de uma nova ética, centrada na responsabilidade para com a natureza? Esse debate também vai mais longe do que eu estou disposto a ir. O argumento reza que os homens têm que reconhecer que eles “formam uma comunidade” com as plantas, os animais, a biosfera e que todos os membros desta comunidade têm direitos – inclusive o direito de viver e o direito de serem tratados com respeito. Em oposição a essa doutrina, os estóicos argumentaram, há muito tempo, que desta forma a civilização seria impossível, e que os seres humanos não poderiam nem sobreviver se os homens fossem obrigados a atuar de forma justa para com a natureza. Os primitivistas inverteriam este argumento: desde que a civilização depende do fato dos homens atuarem de forma injusta para com a natureza, a civilização, diriam eles, deve ser abandonada. Os homens, diz Porfírio, devem reduzir suas exigências ao mínimo, sobrevivendo, nessas circunstâncias mínimas, apenas comendo as frutas das quais as plantas não precisam para a sua sobrevivência.

Mesmo as frutas de que a planta não necessita podem, contudo, ser utilizadas por uma variedade de microorganismos; os homens não podem sobreviver, como já sugeri, sem ser, numa certa medida, predadores. Como disse Hume, uma coisa é dizer que os homens têm que agir de forma humana em relação aos animais; outra coisa, bem diferente, é afirmar que eles devem agir de forma justa com eles. A primeira dessas doutrinas baseia-se na simples assunção segundo a qual os animais sofrem; a outra doutrina fundamenta-se na assunção muito menos plausível de que os animais têm reivindicações ou interesses num sentido que torne a noção de justiça aplicável a eles. Alguns filósofos morais – por exemplo, Leonardo Nelson – defenderam esse ponto de vista. Mas eu não estou convencido que seja apropriado falar dos animais como tendo eles “interesses”, a não ser que esses “interesses” sejam identificados como necessidades – e ter necessidades, como uma planta também as tem, não é absolutamente a mesma coisa de ter direitos. Uma

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coisa é dizer que é errado tratar as plantas e os animais de certa forma, outra coisa completamente distinta é dizer que eles têm direito a serem tratados de forma diferente.

Não há dúvida de que os homens, as plantas, os animais, a biosfera formam parte de uma única comunidade no sentido ecológico da palavra; cada um depende dos outros para continuar a existir. Mas isto não é o sentido de comunidade que gera direitos, deveres, obrigações; homens e animais não estão envolvidos numa rede de responsabilidades ou concessões mútuas. Isto é a razão pela qual, mesmo na filosofia naturalista, a natureza ainda é “estranha”.

Podemos acrescentar que, numa certa medida, princípios éticos bem familiares são suficientemente fortes para justificar ações contra os saqueadores ecológicos. Não precisamos da ajuda de uma “nova ética” para justificar o fato de condenarmos aqueles que tornam nossos rios esgotos e nosso ar irrespirável, aqueles que dão à luz crianças num mundo superpovoado ou – e isto é um pouco mais discutível – aqueles que desperdiçam os recursos dos quais a posteridade precisará. Só naqueles assuntos onde os interesses humanos não são tão obviamente envolvidos pode surgir a questão da “nova ética”. Até a preservação das espécies selvagens e da natureza bruta pode ser amplamente defendida da forma habitual, utilitarista.

O que certamente deve ser abandonado, no entanto, é a doutrina agostiniana segundo a qual, nas suas relações com a natureza, o homem é simplesmente isento de censura moral, exceto quando surgem interesses especificamente humanos. Poucos filósofos da moral aceitariam atualmente esta visão na sua forma original irrestrita. Certamente, é muito notável a unanimidade com a qual é condenada a velha doutrina segundo a qual a crueldade para com os animais é condenável moralmente apenas quando ela afeta diretamente seres humanos. Dizem, então, que seus predecessores eram culpados de cegueira moral, uma cegueira com origens teológica, pelo fato de que eles não viam que é errado causar desnecessário sofrimento aos animais. No entanto, a

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questão permanece de saber se os filósofos da moral ainda não sofrem, em certa medida, de “cegueira moral” nas suas atitudes frente à natureza e, particularmente, em relação àquelas partes da natureza que não são sensíveis e, portanto, não sofrem.

Certamente eles – e nós – tendem a restringir tais epítetos de condenação moral como vandalismo e filistinismo à destruição de bens e indiferença a obras de arte. Diante disto, entretanto, a condenação do vandalismo é aplicável àqueles que prejudicam ou destroem a natureza da mesma forma que o é àqueles que prejudicam ou destroem artefatos. Quando, por exemplo, Baumgarten condena o que ele chama “o espírito da destruição”, isto se aplica tanto à destruição voluntária de objetos naturais quanto à destruição de bens ou de coisas que são passíveis de serem úteis aos homens. O último homem na terra seria condenável, por essa razão, se ele colocasse um fim aos seus dias numa orgia de destruição, mesmo que suas ações não possam afetar negativamente nenhum outro ser humano.

Da mesma forma, a incapacidade de apreciar o cenário natural é uma fraqueza humana tão séria quanto a incapacidade de apreciar obras de arte. Uma vez que nos livremos completamente da doutrina agostiniana segundo a qual a natureza existe unicamente como alguma coisa para ser usada, não para ser apreciada, a extensão das noções morais – tais como as de vandalismo e filistinismo – à relação do homem com árvores, paisagens, parecerá tão óbvia quanto a extensão da idéia de crueldade à relação do homem com os animais. Nisto consiste a grande importância do romantismo: o fato dele ter percebido isso parcialmente e ter-nos encorajado a olhar a natureza, a vê-la diferentemente de simples instrumento. Mas não precisamos aceitar a identificação romântica de Deus com a natureza para acatar essa maneira de olhar o mundo. Certamente, a divinização da natureza, mesmo fora do problema filosófico que ela levanta, subestima perigosamente a fragilidade de tantos processos e relações naturais, fragilidade para a qual o movimento ecológico tem chamado tão insistentemente a atenção.

Em geral, se pudermos admitir plenamente a independência

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da natureza, o fato de que as coisas seguem seus próprios e complexos modos, sentiremos provavelmente mais respeito pelas formas como elas se perpetuam. Somos preparados para contemplá-las com admiração, para desfrutá-las sensualmente, para estudá-las na sua complexidade, o que é diferente de procurar métodos simples para manipulá-las. A sugestão de que não podemos fazer isto, que, inevitavelmente, enquanto pensamos a natureza como “estranha”, não podemos, como pensava Hegel, interessarmo-nos por ela ou preocuparmo-nos com ela – subestima o grau em que podemos ultrapassar o egoísmo e atingir o desinteresse. A emergência de atitudes morais novas frente à natureza está então ligada à emergência de uma filosofia da natureza mais realista. Este é o único fundamento adequado para uma preocupação ecológica efetiva.

Recebido em: 27/12/2011Aceito em: 20/01/2012