assunto: sigilo médico e proteção de dados do paciente

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UFRN . Profa. Renata Oliveira Material de apoio da Disciplina Direito Médico: Assunto: Sigilo Médico e Proteção de Dados do Paciente Profa. Renata Oliveira Profa. Adjunta da UFRN; Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais – UFCG e UMSA; Doutora em Direito Privado – UFPE e ULISBOA; Mestre em Direito Privado – UFPE.

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UFRN . Profa. Renata Oliveira

Material de apoio da Disciplina Direito

Médico:

Assunto: Sigilo Médico e Proteção de Dados do Paciente

Profa. Renata Oliveira Profa. Adjunta da UFRN;

Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais – UFCG e UMSA;

Doutora em Direito Privado – UFPE e ULISBOA;

Mestre em Direito Privado – UFPE.

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ANOTAÇÕES

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SUMÁRIO

Excertos da LGPD

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Excertos da Lei 6.259 de 1975

7

Excertos da LGPD de Portugal

9

Jurisprudência de Portugal 1

11

Jurisprudência Portugal 2

18

Artigo 1: Vigilância em saúde na pandemia viola direitos de

personalidade do paciente?

24

Artigo 2: Privacidade versus interesse público: a polêmica

sobre o exame do presidente 28

Artigo 3: Pandemia do novo coronavírus: caso fortuito ou força maior? 31

Artigo 4: A relação entre coronavírus e caso fortuito ou

força maior

33

Artigo 5: Pandemia, quarentena e as lições de Agambem

36

Artigo 6: Limites do sigilo entre médico e paciente para fins

penais

42

Artigo 7: A Lei Geral de Proteção de Dados regula o segredo

médico?

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EXCERTOS DA LGPD

Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios

digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com

o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre

desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:

I - o respeito à privacidade;

II - a autodeterminação informativa (...);

IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem(...);

VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o

exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

Art. 3º Esta Lei aplica-se a qualquer operação de tratamento realizada por pessoa

natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do

meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados, desde que:

I - a operação de tratamento seja realizada no território nacional;

II - a atividade de tratamento tenha por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens

ou serviços ou o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional;

ou

III - os dados pessoais objeto do tratamento tenham sido coletados no território

nacional (...).

Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes

hipóteses: (...)

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VIII - para a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por

profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária (...);

Art. 11. O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas

seguintes hipóteses: (...)

f) tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de

saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária; (...).

Art. 11, § 4º É vedada a comunicação ou o uso compartilhado entre controladores de

dados pessoais sensíveis referentes à saúde com objetivo de obter vantagem

econômica, exceto nas hipóteses relativas a prestação de serviços de saúde, de

assistência farmacêutica e de assistência à saúde (...).

Art. 11, § 5º É vedado às operadoras de planos privados de assistência à saúde o

tratamento de dados de saúde para a prática de seleção de riscos na contratação de

qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneficiários.

Art. 13. Na realização de estudos em saúde pública, os órgãos de pesquisa poderão

ter acesso a bases de dados pessoais, que serão tratados exclusivamente dentro do

órgão e estritamente para a finalidade de realização de estudos e pesquisas e

mantidos em ambiente controlado e seguro, conforme práticas de segurança

previstas em regulamento específico e que incluam, sempre que possível, a

anonimização ou pseudonimização dos dados, bem como considerem os devidos

padrões éticos relacionados a estudos e pesquisas.

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EXCERTOS DA LEI 6.259 / 1975

Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa

Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de

doenças, e dá outras providências.

TÍTULO III

Da Notificação Compulsória de Doenças

Art 7º São de notificação compulsória às autoridades sanitárias os casos suspeitos ou

confirmados:

I - de doenças que podem implicar medidas de isolamento ou quarentena, de acordo

com o Regulamento Sanitário Internacional.

II - de doenças constantes de relação elaborada pelo Ministério da Saúde, para cada

Unidade da Federação, a ser atualizada periodicamente.

§ 1º Na relação de doenças de que trata o inciso II deste artigo será incluído item para

casos de "agravo inusitado à saúde".

§ 2º O Ministério da Saúde poderá exigir dos Serviços de Saúde a notificação negativa

da ocorrência de doenças constantes da relação de que tratam os itens I e II deste artigo.

Art 8º É dever de todo cidadão comunicar à autoridade sanitária local a ocorrência de

fato, comprovado ou presumível, de caso de doença transmissível, sendo obrigatória a

médicos e outros profissionais de saúde no exercício da profissão, bem como aos

responsáveis por organizações e estabelecimentos públicos e particulares de saúde e

ensino a notificação de casos suspeitos ou confirmados das doenças relacionadas em

conformidade com o artigo 7º.

Art 9º A autoridade sanitária proporcionará as facilidades ao processo de notificação

compulsória, para o fiel cumprimento desta Lei.

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Art 10. A notificação compulsória de casos de doenças tem caráter sigiloso, obrigando

nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido.

Parágrafo único. A identificação do paciente de doenças referidas neste artigo, fora do

âmbito médico sanitário, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de

grande risco à comunidade a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio do

paciente ou do seu responsável.

Art 11. Recebida a notificação, a autoridade sanitária é obrigada a proceder à investigação

epidemiológica pertinente para elucidação do diagnóstico e averiguação da disseminação

da doença na população sob o risco.

Parágrafo único. A autoridade poderá exigir e executar investigações, inquéritos e

levantamentos epidemiológicos junto a indivíduos e a grupos populacionais determinados,

sempre que julgar oportuno visando à proteção da saúde pública.

Art 12. Em decorrência dos resultados, parciais ou finais, das investigações, dos inquéritos

ou levantamentos epidemiológicos de que tratam o artigo 11 e seu parágrafo único, a

autoridade sanitária fica obrigada a adotar, prontamente, as medidas indicadas para o

controle da doença, no que concerne a indivíduos, grupos populacionais e ambiente.

Art 13. As pessoas físicas e as entidades públicas ou privadas, abrangidas pelas medidas

referidas no artigo 12, ficam sujeitas ao controle determinado pela autoridade sanitária.

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EXCERTOS DA LGPD DE PORTUGAL

Lei n. 67 de 1998

Lei da Protecção de Dados Pessoais (transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Directiva

n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à

protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à

livre circulação desses dados)

Artigo 7.º

Tratamento de dados sensíveis

1 - É proibido o tratamento de dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas,

filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o

tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos.

(...)

4 - O tratamento dos dados referentes à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos,

é permitido quando for necessário para efeitos de medicina preventiva, de diagnóstico

médico, de prestação de cuidados ou tratamentos médicos ou de gestão de serviços de saúde,

desde que o tratamento desses dados seja efectuado por um profissional de saúde obrigado

a sigilo ou por outra pessoa sujeita igualmente a segredo profissional, seja notificado à CNPD,

nos termos do artigo 27.º, e sejam garantidas medidas adequadas de segurança da

informação.

Artigo 11.º

Direito de acesso

5 - O direito de acesso à informação relativa a dados da saúde, incluindo os dados genéticos,

é exercido por intermédio de médico escolhido pelo titular dos dados.

Artigo 17.º

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Sigilo profissional

1 - Os responsáveis do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício

das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo

profissional, mesmo após o termo das suas funções.

2 - Igual obrigação recai sobre os membros da CNPD, mesmo após o termo do mandato.

3 - O disposto nos números anteriores não exclui o dever do fornecimento das informações

obrigatórias, nos termos legais, excepto quando constem de ficheiros organizados para fins

estatísticos.

4 - Os funcionários, agentes ou técnicos que exerçam funções de assessoria à CNPD ou aos

seus vogais estão sujeitos à mesma obrigação de sigilo profissional.

Artigo 47.º

Violação do dever de sigilo

1 - Quem, obrigado a sigilo profissional, nos termos da lei, sem justa causa e sem o devido

consentimento, revelar ou divulgar no todo ou em parte dados pessoais é punido com prisão

até dois anos ou multa até 240 dias.

2 - A pena é agravada de metade dos seus limites se o agente:

a) For funcionário público ou equiparado, nos termos da lei penal;

b) For determinado pela intenção de obter qualquer vantagem patrimonial ou outro benefício

ilegítimo;

c) Puser em perigo a reputação, a honra e consideração ou a intimidade da vida privada de

outrem.

3 - A negligência é punível com prisão até seis meses ou multa até 120 dias.

4 - Fora dos casos previstos no n.º 2, o procedimento criminal depende de queixa.

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JURISPRUDÊNCIA DE PORTUGAL 1

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora

Processo: 2003/11.0TAPTM.E1 Relator: MARIA ISABEL DUARTE Descritores: VIOLAÇÃO DE SEGREDO SEGREDO MÉDICO DANOS NÃO PATRIMONIAIS Data do Acordão: 29-04-2014 Votação: UNANIMIDADE Texto Integral: N Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: PROVIDO EM PARTE Sumário:

I – A criminalização da violação de segredo visa proteger o bem jurídico individual privacidade e também o bem jurídico supra-individual prestígio e confiança em determinadas profissões. II - A factualidade típica, isto é, os factos que se devem verificar para se poder afirmar estarmos perante o tipo legal de crime, são os seguintes: 1) Terá que se tratar de um segredo, isto é: a) Tratar-se de factos conhecidos de um número circunscrito de pessoas (que não sejam do conhecimento público ou de um círculo alargado de pessoas ou que não seja um facto notório); b) Que haja vontade de que os factos continuem sob reserva e c) Existência de um interesse legítimo, razoável ou justificado na reserva; 2) Terá que ser um segredo alheio (do paciente ou de terceiro); 3) Obtido no exercício da profissão: “só é segredo médico aquilo que o médico sabe de outra pessoa, apenas porque é médico;” “não é segredo penalmente relevante aquilo que o agente conhece em veste puramente “privada”.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora I - Relatório 1 - No processo comum, com intervenção do tribunal singular n.º 2003/11.0TAPTM, do 1º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, foi julgada a arguida: A, filha de ..., natural de Angola, nascida a 16.08.1951, divorciada, médica, residente ..., em Portimão, tendo sido proferida, a decisão seguinte:

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1) “ABSOLVO a arguida A. da prática de um crime de devassa da vida privada, p. e p. pelo art.º 192.º, n.º 1, al. d) do CPenal. 2) CONDENO a arguida A. pela prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo art.º 195.º do CPenal, na pena de 170 dias de multa, à taxa diária de 25 euros, num total de 4.250 euros (a que corresponde a pena subsidiária de 112 dias de prisão, caso a arguida não pague, voluntária ou coercivamente a multa aplicada). 3) Condeno ainda a arguida no pagamento ao assistente e demandante cível da quantia de 4.000 euros, acrescida de juros de mora legais, contados desde a data do trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se do demais peticionado. (…)”. 2 - A arguida, inconformada, interpôs recurso dessa sentença condenatória. As conclusões por ela apresentadas são as seguintes: (...)

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E POR VIA DELE, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E EM CONSEQUENCIA SER A RECORRENTE ASBOLVIDA DO CRIME DE VIOLAÇAO DE SEGREDO EM QUE FOI CONDENADA BEM COMO DO RESPECTIVO PEDIDO DE INDMNIZAÇAO CIVIL Fazendo-se assim A COSTUMADA JUSTIÇA!!!.”. 3 - Foram apresentadas respostas 3.1 - Pelo MP, com as conclusões seguintes: (...) 3.2 - Pelo assistente/demandante civil, concluindo pela improcedência do recurso. 4 - Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso. 5 - Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2, do C.P.P. O demandante civil respondeu, mantendo a sua posição inserida na resposta ao recurso, no sentido da improcedência do mesmo. 6 - Foram colhidos os vistos legais. Cumpre decidir II - Fundamentação 2.1 - O teor do acórdão recorrido, na parte que interessa, é o seguinte: “Factualidade Discutida a causa, apurou-se a seguinte factualidade com relevância para a decisão da mesma: Factos provados: (...) 2.3 - Feita esta introdução de âmbito geral e analisadas as conclusões de recurso, dir-se-á que o recorrente alega, no caso em análise, como fundamento do recurso: a) A matéria de facto dada como provada, na sentença recorrida, é passível de crítica, tendo sido incorrectamente valorada, no que concerne aos pontos 1, 3, 4, 5 e 7, da mesma; b) Verificação dos vícios expressos no art.º 410°, n° 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal; c) Violação do princípio in dúbio pro reo; d) A medida da pena de multa aplicada foi excessiva, devendo ser reduzida; e) O montante arbitrado a título de indemnização civil é excessivo e desproporcionado. 2.4 - Do conhecimento do objecto de recurso (...) 2.4.4 - Do crime de violação de segredo Este tipo legal de crime mostra-se previsto e punido no art.º 195.º do CPenal, o qual preceitua:

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«Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.»

A esta previsão não é alheio o juramento de Hipócrates: “O que, no exercício ou fora do exercício e no comércio da vida, eu vir ou ouvir, que não seja necessário revelar, conservarei como segredo.”

O aludido tipo legal de crime protege o bem jurídico individual privacidade e também o bem jurídico supra-individual prestígio e confiança em determinadas profissões.

A factualidade típica, isto é, os factos que se devem verificar para se poder afirmar estarmos perante o tipo legal de crime, são os seguintes: 1) Terá que se tratar de um segredo, isto é: a) Tratar-se de factos conhecidos de um número circunscrito de pessoas (que não sejam do conhecimento público ou de um círculo alargado de pessoas ou que não seja um facto

notório);

b) Que haja vontade de que os factos continuem sob reserva e

c) Existência de um interesse legítimo, razoável ou justificado na reserva;

2) Terá que ser um segredo alheio (do paciente ou de terceiro);

3) Obtido no exercício da profissão: “só é segredo médico aquilo que o médico sabe de outra

pessoa, apenas porque é médico;” “não é segredo penalmente relevante aquilo que o

agenteconhece em veste puramente “privada”.

É, pois, contrariamente ao entendimento da recorrente, punida a violação do segredo, quer do paciente, quer de terceiro.

Portanto, o facto da arguida não ter tido o assistente como paciente, não estaria desvinculada desse dever de segredo, dada a sua qualidade de médica, acrescido do facto de desempenhar funções como médica e como Directora de um Serviço Hospitalar, e que tomou conhecimento de tais factos justamente em virtude das funções médicas desempenhadas”

O Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Dec.- Lei. n.º 282/77, de 05.07, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 217/94, de 20.08, estabelece, no seu art.13.º, al. c), que constitui dever do médico “guardar segredo profissional”.

O segredo médico é concretizado, na sua essência, através do regime previsto no Regulamento da Ordem dos Médicos n.º 14/2009 – que aprova o Código Deontológico da Ordem dos Médicos –, publicado no DR, II Série, n.º 8, de 13.01.2009, designadamente nos arts. 85.º a 92.º.

A violação do segredo médico pode determinar responsabilidade criminal, em análise, nos termos previstos nos arts. 195.º a 198.º do CP, revestindo os tipos de crime em apreço natureza semipública, face ao disposto no art. 198.º do CP, além de responsabilidade civil profissional, e disciplinar, nos termos do art. 14.º do Estatuto da Ordem dos Médicos (É o seguinte o teor da norma citada: “Pela violação dos deveres referidos no artigo anterior ficam os médicos sujeitos às sanções previstas no artigo 74.º deste Estatuto”) e do art. 2.º do Estatuto Disciplinar dos Médicos (Dec.-Lei n.º 217/94, de 20.08, sendo o seguinte o teor da norma referida:

“Comete infracção disciplinar o médico que, por acção ou omissão, violar dolosa ou negligentemente algum ou alguns dos deveres decorrentes do Estatuto da Ordem dos Médicos, do Código Deontológico, do presente Estatuto, dos regulamentos internos ou das demais disposições aplicáveis”.), com possibilidade de aplicação das penas disciplinares de

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advertência, de censura, de suspensão até 5 anos e de expulsão (art.º. 74.º do Estatuto da Ordem dos Médicos e art.º 12.º do Estatuto Disciplinar dos Médicos), e de penas acessórias de perda de honorários e de publicidade da pena (art.º13.º do Estatuto Disciplinar dos Médicos).

Os artigos 67.º e 68.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos regulam a matéria relativa ao segredo médico. Na raiz da protecção da confidencialidade médica está a não revelação de segredos conhecidos no exercício da profissão, em ordem a proteger a esfera de segredo e de privacidade do paciente. Neste sentido, o artigo 68.º do Código Deontológico procura incluir no âmbito de protecção do segredo profissional factos a que o médico tenha acesso privilegiado pela conversa e observação do doente.

A consulta do site: http://www.ordemdosmedicos.pt e Luís VASCONCELOS ABREU, O segredo médico no direito português vigente, in Estudos de Direito da Bioética, Coimbra, Almedina, 2005, p. 267, conduz ao entendimento de que: “O segredo profissional abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do Médico no exercício do seu mister ou por causa dele, e compreende especialmente: a) Os factos revelados directamente pelo doente, por outrem a seu pedido ou terceiro com quem tenha contactado durante a prestação de cuidados ou por causa dela; b) Os factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiros; c) Os factos comunicados por outro médico obrigado, quanto aos mesmos, a segredo profissional. 2. A obrigação de segredo existe quer o serviço solicitado tenha ou não sido prestado e quer seja ou não remunerado.”

Daqui resulta que o segredo abrange não apenas os factos conhecidos directa e exclusivamente no exercício da profissão médica, mas ainda o conjunto de factos de que o médico teve conhecimento porque era médico.

Nesse sentido aponta quer o citado artigo 68.º do CDOM, quer o artigo 195.º do Código Penal (Cfr.Manuel da COSTA ANDRADE, Comentário ao artigo 195.º do Código Penal, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, (dirigido por Jorge de Figueiredo Dias), Parte Especial, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, 771-802, (771-783).), quer, no plano do direito civil, o princípio da boa-fé.”

Revertendo para o caso concreto, a arguida,” tomou, pois, conhecimento, em virtude da sua profissão, de factos acobertados pelo dever de segredo profissional e, não obstante não ter para tanto o consentimento do assistente, revelou os factos consignados no relatório médico de urgência, sabendo a mesma que se tratava de matéria sigilosa; que tinha sobre esta matéria responsabilidades acrescidas, dado ser Directora do Serviço de Urgências; e que os factos em causa não se enquadravam em qualquer das alíneas da norma permissiva quanto à escusa do segredo médico”.

Acresce que “a arguida não podia desconhecer a divulgação ampla a que sujeitava, assim, aqueles documentos, em particular aquele relatório médico.”

A mesma “não obteve, junto do assistente, qualquer autorização para o fazer, que, portanto, não consentiu na referida divulgação (aliás, desconhecia, em absoluto, a intenção da arguida). E, ao juntar aquele relatório ao processo, a arguida não podia desconhecer que do mesmo constava informação reservada, do foro da vida privada do assistente, bem como a menção a quaisquer doenças de que padecesse. Agiu, ainda conforme foi de sua vontade, a qual foi livre e esclarecidamente formada. Agiu, pois dolosamente”.

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Mostram-se, assim, preenchidos todos os elementos constitutivos deste tipo legal de crime, não se vislumbrando causas de exclusão da ilicitude. (...) 2.4.6 - De seguida analisar-se-á a invocada incorrecção no valor dos danos não patrimoniais causados ao demandante civil, B, pela actuação da recorrente/demandada.

Os eventuais direitos que este demandante civil pretende nos presentes autos resultam da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana por factos ilícitos dos demandados, cujo regime legal se encontra fixado nos artigos 483º e seguintes.

" São várias as condicionantes da obrigação de indemnizar imposta ao lesante, tal como pode ser aferido pela simples leitura do preceito citado. Assim" O dever de reparação resultante da responsabilidade por factos ilícitos está directamente conectado com a verificação dos seguintes pressupostos (cfr. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", Vol. I, Almedina. Coimbra, 73 edição, pág. 515 e ss.) : existência de um facto voluntário do agente (e não um mero facto natural causador de danos); que esse facto seja ilícito: que haja um nexo de imputação do facto ao agente; que da violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano; que se verifique um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima (de modo a que se possa afirmar que o dano é resultante da violação).

São, pois, estes os pressupostos que terão de se dar como verificados para que o demandante civil possa fazer valer os seus direitos nos presentes autos, que no presente recurso se mostram preenchidos.

Pois que, no caso dos autos, no que concerne à actuação da arguida/demandada, e aos danos com ela causados ao demandante, José Correia, reúnem-se todos os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos - a violação de um direito ou interesse alheio, a ilicitude, o vínculo de imputação do facto ao agente, o dano moral, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano não patrimonial, relativamente aos danos dados como provados.

A expressão "danos não patrimoniais" abarca os danos morais propriamente ditos (ofensas à honra, humilhações, vexames e medos), os sofrimentos físicos e psíquicos e os complexos de pura ordem mental e estética (vide Prof. Antunes Varela, RLJ ano 123, pág. 253). E, nos termos dos artes. 496° n.º 3 e 494° do Cód. Civil, o valor da indemnização por danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as circunstâncias do caso, com realce para a gravidade do dano.

Com efeito, o art.º 496° manda atender na fixação da indemnização por danos não patrimoniais àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, daqui se extraindo que "o montante da reparação deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios em que se tornam mais necessários o bom senso, o equilíbrio das proporções com que o julgador deve decidir" (Prof. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", pág. 627- 628). Assim, apenas são ressarcíveis os danos não patrimoniais graves, devendo a gravidade medir-se por critérios objectivos.

No âmbito destes danos é extremamente delicada a operação da respectiva quantificação porque estão em causa valores que não têm expressão pecuniária, socorrendo-se a lei aqui, com o em outros casos em que há manifesta dificuldade de quantificação abstracta das obrigações, da equidade, entregando aos tribunais a solução do caso concreto (a equidade vem sendo definida, desde Aristóteles, como a expressão da justiça no caso

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concreto), mas fixando os critérios dentro dos quais a equidade vai operar. Por outro lado, a indemnização por danos não patrimoniais não é uma indemnização no sentido próprio, sendo tão só uma satisfação ou compensação do dano sofrido, que não é verdadeiramente avaliável em dinheiro (Vide Prof. Vaz Serra, Boletim 83, pag. 83).

Como expõe o Prof. Antunes Varela, "a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar, de algum modo, mais do que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente" - ob. cit., pág. 568 -.

A propósito da ressarciabilidade dos danos de ordem moral, sempre se dirá que não há possibilidade de os anular com dinheiro, visto serem insusceptíveis de uma avaliação deste tipo. No entanto, apesar de se concordar que o dinheiro não apaga as dores físicas, tristeza e angústia infligidas pelos demandados, através do seu comportamento, no demandante, a prestação pecuniária a cargo dos lesantes pode contribuir para atenuar e de algum modo compensar os danos sofridos pelo lesado" além de constituir para os lesantes uma sanção adequada. "Entre a solução de nenhuma indemnização atribuir ao lesado, a pretexto de que o dinheiro não consegue apagar o dano" e a de se lhe conceder urna compensação, reparação ou satisfação adequada, ainda que com certa margem de discricionariedade na sua fixação, é incontestavelmente mais justa e criteriosa a segunda orientação" (Antunes Varela, obra cit., pág. 598).

O Código Civil consagrou a tese da reparabilidade dos danos não patrimoniais, mas, nos termos do art.º 496°, n.°1 daquele diploma, só são ressarcíveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, o que caso concreto se considera. Segundo o n.º 3, deste preceito, naquilo que concerne à indemnização dos danos não patrimoniais, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstância que o justifiquem.

Estes danos - tradicionalmente designados de danos morais - resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (a integridade física, a saúde, a tranquilidade, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a honra, a reputação), verificando-se quando são causados sofrimentos físicos ou morais, perdas de consideração social, inibições ou complexos de ordem psicológica, vexames, etc., em consequência de uma lesão de direitos, maxime, de personalidade (ver Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 85 e 86, edição de 1976).

Apenas são ressarcíveis os danos não patrimoniais graves, devendo a gravidade medir-se por critérios objectivos.

E, como se disse, esta quantificação é deixada pela lei ao bom senso do julgador mas dentro dos critérios legais. Por outro lado, impõe-se ao julgador a ponderação dos parâmetros de facto legais de forma actualizante e com respeito pelos valores e direitos fundamentais da pessoa humana, em ordem que o ofendido seja devidamente compensado, valorando-lhe equitativamente os danos morais sofridos.

Ou seja, para que a indemnização por danos não patrimoniais responda actual ao comando do art.º 496° citado e constitua uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, sem esquecer, no entanto, o nível de vida médio do nosso país.

Reportando-nos, agora, ao caso “sub judice”, temos como provado que a arguida, “como médica estava obrigada a guardar segredo médico sobre os elementos clínicos do assistente, tendo divulgado, um relatório médico de uma consulta de urgência deste. Do relatório médico em questão constava, para além de informações sobre o seu estado de

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saúde revelado em análises e exames, a referência a uma doença - diabetes de tipo II -, informações estas que pertencem ao foro da vida privada do assistente, a qual se encontra constitucional e civilisticamente protegida (cfr. art.º 26.º, n.º 1 da CRP e art.ºs 70.º e 80.º do CCivil). Violou, pois, a arguida, de forma dolosa, um direito de outrem (um direito fundamental, referente à sua personalidade e radicado na dignidade da pessoa).”

Deve, assim, indemnizar o demandante cível dos danos resultantes daquela violação. Os danos morais que lhe advieram, “da exposição, perante terceiros, num processo criminal, por iniciativa e actuação da arguida, médica de profissão e sua conhecida, provocou ao assistente sentimentos de angústia, revolta, nervosismo, ficando naturalmente decepcionado e sentindo-se traído na sua confiança em relação ao segredo médico, que não sofreria se a arguida assim não tivesse agido. Ou seja, a conduta da arguida foi a causa de tais danos psicológicos e emocionais, que não sendo patrimoniais, são suficientemente graves para merecerem a tutela do direito.”

O montante fixado para ressarcimentos dos danos não patrimoniais, causados ao demandante, pela demandada, deve ser fixado em 3000 € -, em substituição do montante fixado, por ser, em nosso entender, mais ajustado e equitativo, à situação concreta, pelos motivos expostos, acrescido dos juros legais. III – Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção Criminal deste Tribunal, em conceder provimento parcial ao recurso, consequentemente:

Pela prática, em autoria material, do referenciado crime de violação de segredo, p. e p. pelo art.º 195.º do CPenal, vai a arguida condenada na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 25 (vinte e cinco euros), num total de €3750 (três mil setecentos e cinquenta euros), a que corresponde a pena subsidiária de 100 dias de prisão;

Condena-se, ainda, a demandada cível, no pagamento, ao demandante cível, da quantia de €3000 (três mil euros), acrescida dos juros de mora fixados. Mantendo, no mais, o decidido na sentença recorrida.

Sem custas, atento o provimento parcial, no que concerne à parte crime do recurso. Custas, pela demandada e pelo demandante cível, na proporção do decaimento de vencimento, no que respeita à parte civil do recurso. (Processado e revisto pela relatora que assina e rubrica as restantes folhas - art. 94 n.º 2 do CPP). Évora, 29/04/2014 MARIA ISABEL ALVES DUARTE JOSÉ MARIA MARTINS SIMÃO

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JURISPRUDÊNCIA DE PORTUGAL 2

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Processo: 544/17.5GBOAZ-A.P1 No. Convencional: JTRP000 Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA Descritores: SIGILO PROFISSIONAL . MÉDICO. REQUISITOS Data do Acordão: 10/10/2018 Votação: UNANIMIDADE Texto Integral: N Meio Processual: CONFERÊNCIA Decisão: NÃO DISPENSADO O SIGILO

Sumário:

I - O segredo profissional define-se como a proibição de revelar factos ou acontecimentos de

que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade

profissional.

II - O dever de segredo profissional não é um dever absoluto, isto é, não prevalece sempre

sobre qualquer outro dever que com ele entre em conflito.

III - Cabe ao Tribunal Superior decidir da dispensa do dever de sigilo invocado pelo Médico

Psiquiatra da Assistente em conformidade com o princípio da prevalência do interesse

preponderante.

IV - Na ponderação a realizar para esse fim, importa considerar, como ponto de partida, o

interesse na protecção da reserva da vida privada, no caso da Assistente, a reclamar que o

sigilo médico só ceda perante interesse superior em sentido contrário, que justifique tal

quebra.

V - O artigo 135°, n.° 3, do CPP, manda ter em consideração, na referida ponderação,

nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a

gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

Proc. n.º 544/17.5GBOAZ-A.P1 Comarca de Aveiro. Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis. Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto. I.-Relatório.

Nos autos de Processo Comum singular n.º 544/17.5GBOAZ, o arguido B... suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação do Porto para que decrete a quebra do sigilo médico,

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com vista ao arguido poder exercer o direito de defesa e garantir-se a descoberta da verdade material, nos termos do disposto no art. 135º, n.ºs 2 e 3 do CPP.

Este requerimento de pedido de quebra de sigilo médico vem no seguimento do seu arrolamento como testemunha do médico C..., médico psiquiatra da Assistente; e do referido médico, conforme fls. 2 dos presentes autos, ter vindo ao processo pedir escusa de prestar declarações ao abrigo do disposto nos arts. 70º a 73º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos. Foi pedido à Ordem dos Médicos Parecer sobre a escusa de prestar depoimento, que foi junto aos autos e do qual se respiga: «O direito do paciente à confidência, isto é à preservação sigilosa dos factos relacionados com o seu tratamento, constitui um dos pilares de sustentação da profissão médica e é, desde logo, assegurado pela Constituição da República Portuguesa (CRP) - por via da tutela do direito fundamental à reserva da intimidade da ida privada (artigo 26.°, n° 1 in tine, e n° 2 da CRP) e de forma mediata pelo princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.0 da CRP), enquanto segredo que protege informações íntimas cuja revelação é susceptivel de afectar a integridade da dignidade da pessoa [Como bem referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada (2007) - Vol. I, Coimbra Editora, pág. 467-468, o direito, fundamental à reserva da intimidade da vida privada desdobra-se em dois direitos distintos: a) no direito de impedir que estranhos acedam às informações relativas à vida privada e familiar e b) no direito não divulgação dessas informações.]

No plano da legislação ordinária é alvo de protecção, em ultima ratio, do Direito Penal (artigo 195.º do Código Penal), mas também da Lei de Bases da Saúde (alínea b) do nº 1 da Base XIV da LBS), da Lei de Informação da Saúde (artigos 3.º e 7.º da Lei 12/2005, de 26.10), da Lei de Protecção de Dados Pessoais (artigo 7.º da Lei 67/98, de 26.10 -LPDP) e da Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina [Aprovada para ratificação da Assembleia da República, em 19 de Outubro e ratificada pelo decreto do Presidente da República n.º 1/2001, de 3 de Janeiro.] (artigo 10.º da CDHB), entre outros.

O sigilo médico representa, pois, um importantíssimo direito do doente e uma obrigação ética e deontológica do médico (vide artigo 139.º do Estatuto da Ordem dos Médicos (EOM) na versão aprovada pela Lei 117/2015, de 31 de Agosto e os artigos 29.º a 38.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CDOM), aprovado pelo Regulamento 707/2016, publicado no DR, 2 série, de 21 de Julho de 2016) consultáveis in https://ordemdosmedico&pt/estatutos-e-regulamentos/. O segredo médico é, pois, um mandamento privilegiado dos códigos éticos e deontológicos dos médicos constituindo um referente irrenunciável da auto-representação dos médicos em todo o mundo. (…)

In casu, o médico psiquiatra tem o dever irrenunciável de proteger as informações pessoalíssimas correlacionadas com o atendimento, ou seja os dados veiculados pela doente sobre aquilo que faz parte da esfera mais frágil e vulnerável da sua pessoalidade. Embora a densidade da protecção dos direitos de reserva da intimidade seja vertical a todas as especialidades médicas há algumas em que a intensidade da protecção releva sobremaneira e uma delas é, sem dúvida, a psiquiatria já que a realidade clínica é de uma sensibilidade extrema.

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(…) Em conclusão:

«- Numa perspectiva estritamente deontolágica, os valores e interesses ligados à manutenção do sigilo profissional tendo em consideração o acima expendido, sobrelevam àqueles que se pretendem fazer valer em sede de processo penal; - A quebra do sigilo médico por via da revelação de dados relacionados com a saúde mental de uma determinada doente, não é deontologicamente admissível, por desproporcionada e por poder afectar irremediavelmente e de forma substancial a relação de confiança e confidencialidade que tem de existir entre o psiquiatra e a sua doente;

Atento o exposto, a Ordem dos Médicos entende mostrar-se justificada, face às normas e princípios deontológicos, a invocação de segredo médico por parte do Dr. C... e a consequente recusa em depor na qualidade de testemunha ou fornecer dados do processo clínico da paciente D....» A assistente veio aos autos dizer que não dá o seu consentimento à revelação de quaisquer dados clínicos ou sobre a sua saúde. A Mma. Juíza no seu despacho de fls. 38 e 39, embora não o diga expressamente, tem por legítima a escusa do médico psiquiatra da assistente, pois invoca a relevância do segredo profissional no âmbito do sistema jurídico vigente, enfatizando inclusivamente a sua tutela penal, mediante a previsão do tipo legal de Crime de Violação de Segredo p. e p. pelo art. 195º do C.P.

*

Suscitada a intervenção deste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da justificação da escusa do depoimento pelo médico arrolado como testemunha, sem quebra do respectivo segredo profissional. Foi cumprido o contraditório com resposta no sentido das anteriores posições.

*

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, cumpre decidir:

*

II – Fundamentação

A única questão a tratar é a de saber se no caso dos autos se deve quebrar o segredo profissional respeitante ao médico psiquiatra da assistente. Vejamos.

O artigo 135.º do CPP estabelece, na parte que ao caso interessa, que: - Os médicos podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos pelo sigilo profissional [n.º 1];

- Se a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento [n.º 2];

- O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em

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conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento [n.º 3];

- Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável [n.º 4].

O n.º1, do artigo 135º do CPP enumera nominalmente ou por recurso a uma cláusula geral, as pessoas que podem escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo segredo profissional imposto ou permitido por lei, no caso o Médico Psiquiatra da Assistente.

Por sua vez, o n.º 3 do citado artigo estabelece uma fase do incidente que surge quando a autoridade judiciária, oficiosamente ou a requerimento, por não poder fazer uso do expediente estabelecido no n.º2 do artigo, pretende que, por a escusa ser legítima e dado o interesse da investigação [ou o interesse invocado], se quebre o segredo profissional, caso em que a decisão sobre o rompimento do segredo é da competência do tribunal superior àquele em que se suscita o incidente.

A legitimidade da escusa resulta necessariamente da circunstância de o facto estar abrangido pelo segredo.

Com efeito, configurando-se a escusa como legítima, a obtenção de informações escritas, imagens ou depoimentos já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto, a ponderar em incidente específico: os interesses protegidos pelo segredo, por um lado, os interesses no sucesso da investigação criminal, por outro.

É no que se traduz a aferição do interesse preponderante ou prevalecente na decisão do incidente de quebra do segredo profissional, revelado no n.º3 do artigo 135º, pela expressão: “(...) sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante…” Por sua vez, o juízo do interesse preponderante há de alcançar-se “nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos” – n.º 3 do citado artigo 135.º.

Com efeito, «a utilização pelo legislador do conceito “imprescindibilidade do depoimento”, tem em vista inculcar uma mais exigente ponderação, no plano concreto, dos juízos de necessidade, proporcionalidade, adequação, ou idoneidade do meio probatório em causa, como também uma utilização subsidiária da sua utilização - quando houver outro que conduza ao mesmo resultado, deve ser esse o preferencialmente utilizado» – vide neste sentido o Ac. do TRL de 15.07.2014, Relator Luís Gominho. Utilizando-se no mesmo acórdão o conceito de "absoluta necessidade".

O segredo profissional define-se como a proibição de revelar, factos, ou acontecimentos, de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional. Por outro lado, decorre do já acima referido que o dever de segredo profissional não é um dever absoluto, isto é, não prevalece sempre sobre qualquer outro dever que com ele entre em conflito.

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Impõe-se ainda atentar que o Parecer do Conselho Distrital da O. A., não obstante de solicitação obrigatória - n.º 4, do art. 135.º - não é vinculativo, atento o disposto no art. 202.º, n.ºs 1 e 2 da C.R.P. – vide também o Ac. STJ de 21.04.2005, Relator Cons. Pereira Madeira, acessível em www.dgsi.pt.. Cabe, portanto a este Tribunal decidir da dispensa do dever de sigilo invocado pelo Médico Psiquiatra da Assistente em conformidade com o princípio da prevalência do interesse preponderante.

Na ponderação a realizar para esse fim, importa considerar, como ponto de partida, o interesse na protecção da reserva da vida privada, no caso da Assistente, a reclamar que o sigilo médico só ceda perante interesse superior em sentido contrário, que justifique tal quebra.

O artigo 135.º, n.º 3, do CPP, manda ter em consideração, na referida ponderação, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. Neste pressuposto, importa considerar, em primeiro lugar, que o facto que o arguido pretende provar é: “a origem da perturbação da ofendida”; “quem é que afinal praticou os actos de violência sobre esta (ofendida): o Arguido ou qualquer outra pessoa”- artigos 7º e 8º do Seu requerimento de Incidente de Quebra de Sigilo; ou como diz no ponto 16º “…se torna imperioso a inquirição do médico que acompanhou a Ofendida em consultas de psiquiatria, no sentido de vir explicar ao Tribunal se, em algum momento, a sua paciente lhe transmitiu informações sobre acontecimentos traumáticos que se reportam à sua infância e, por isso, não imputáveis ao Arguido, ou se por outro lado, terá a Ofendida revelado que o Arguido teria praticado tais atos de violência contra ela, o que não se concede.»

A necessidade veiculada pelo requente do incidente reporta-se a um documento junto aos autos de um episódio de urgência, que o requerente do incidente apela de internamento [o que do documento não decorre dado que nele, a data de admissão e da alta foram no mesmo dia com intervalo de cerca de 4 horas]. Ora, parece-nos razoável considerar ante os factos alegados na acusação e a prova apresentada que saber “a origem da perturbação da ofendida”, por reporte ao referido documento [onde se fala em Síndrome depressivo crónico…; foi hoje avaliada pela Médica Assistente por quadro de provável síndrome maníaco-depressivo – períodos de depressão e períodos de maior euforia e compras compulsivas/alegria extrema. (…)] não tem qualquer relevância para o caso; assim como não tem qualquer relevância saber se a assistente transmitiu ao médico psiquiatra indicado como testemunha “informações sobre acontecimentos traumáticos que se reportam à sua infância”.

Sendo que o arguido ao referir “o que não se concede” na parte final do ponto 16 do requerimento onde suscita o incidente, demonstra não ter qualquer interesse, como é manifesto, em saber se terá “a Ofendida revelado que o Arguido teria praticado tais atos de violência contra ela”.

Assim, atento o número de testemunhas indicado quer pela acusação quer pelo arguido na sua contestação, e atendendo ainda aos relatórios periciais de avaliação do dano corporal de fls. 61 a 63 e de fls. 21 a 23 do apenso, entendemos que a prova existente e aquela que poderá ainda sobrevir, como seja a audição do perito/a ou peritos/as a propósito são suficientes para esclarecer cabalmente a questão em causa nos autos.

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Aliás, uma qualquer doença mental da Assistente não estará certamente na origem dos comportamentos imputados ao arguido, e o julgador na 1ª instância guiado pela defesa do arguido terá oportunidade de destrinçar uma realidade da outra, a verificar-se a existência pretérita de doença da Assistente. Assim, entendemos que o depoimento do médico psiquiatra, pretendido pelo arguido, não se mostra imprescindível nem para a descoberta da verdade material, nem para a defesa do arguido atento o alegado no seu requerimento do incidente, na sua contestação ou mesmo na acusação, pois se divisa desde logo meio de prova alternativo, como sejam a audição do perito/a/os/as, sobre o observado na personalidade da assistente.

Pelo exposto, tem de concluir-se que o interesse na protecção da reserva da vida privada da Assistente, no caso, é mais importante que o interesse invocado pelo arguido, e que contende com a investigação do caso, atenta a prova existente no caso concreto e aquela que a já produzida potencia, como referimos. Logo, justifica-se a recusa de depoimento pelo Médico Psiquiatra da Assistente e não se justifica a quebra do sigilo profissional deste médico, pelo que improcede o incidente.

*

III – Decisão.

Acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o presente incidente, sem quebra do sigilo profissional do médico psiquiatra da Assistente.

*

Sem tributação.

*

Notifique.

*

Processado em computador e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P. Porto, 10 de Outubro de 2018 Maria Dolores da Silva e Sousa Manuel Soares

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ARTIGO 1

Vigilância em saúde na pandemia viola direitos de personalidade do paciente?

24 de agosto de 2020, 11h43 - Conjur.

Por Renata Oliveira Almeida Menezes

Os direitos da personalidade dos pacientes, que se correlacionam à intimidade, na relação clínica ou hospitalar têm tutela reforçada pelo dever deontológico de sigilo. Esse compromisso de honrar a confidencialidade necessária para a operacionalização dos cuidados de saúde, não é restrito aos médicos, são igualmente responsáveis todos os demais profissionais da área e as instituições que intervierem no caso clínico ou tiverem acesso à documentação.

Não raras são as vezes em que ocorre a devassa dos dados sensíveis dos pacientes, sem que haja a correta ponderação dos direitos da personalidade atingidos, mesmo quando há possibilidade de se mitigar os danos e, ainda assim, conseguir atingir os interesses públicos pretendidos. A pandemia causada pela COVID-19 apresenta uma situação emergencial, em que as providências em sede de gestão pública e sanitária requerem urgência, mas é premente se verificar se a vigilância em saúde necessariamente implica em violação dos direitos da personalidade dos pacientes.

História clínica ou processo clínico é o suporte biográfico da assistência sanitária de um paciente e o seu acesso irrestrito por terceiros pode colocar em risco direitos da personalidade, especialmente a intimidade, o sigilo e a integridade moral e psíquica. Deste modo, a titularidade da história clínica é reflexo da titularidade dos direitos da personalidade, cabe em regra aos pacientes.

Considerando-se que “o serviço da saúde e o benefício social têm limites. Um limite intransponível está no benefício da Pessoa que se destinam a servir. Só esta os justifica [...]”1; há que se delimitar a extensão da vigilância em saúde e da notificação compulsória de doenças e agravos no contexto da pandemia, para garantir a proteção dos direitos da personalidade dos pacientes, e para que se proteja a dignidade contra uma exegese meramente utilitarista do direito à saúde.

Devido à variabilidade biológica, os efeitos dos fatores que causam doenças e suas consequências somente são caracterizados significativamente a níveis grupais2, demonstrando a importância da vigilância em saúde. Trata-se de processo contínuo e sistemático para a coleta, consolidação e disseminação de dados, que mapeia a situação sanitária da população brasileira, denominado;3 e fundamenta-se nos princípios da universalidade, integralidade e equidade.4

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Trata-se de medida pública contumaz e essencial na busca pela eficácia do Sistema Único de Saúde, que para conseguir dados bioestatísticos imprescindíveis à uma gestão eficaz da saúde, acaba por ter acesso a conteúdo sensível contido nas histórias clínicas dos pacientes.

A pandemia atual é uma Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional 5 e Internacional, o que faz com que seja mais constante e precise ser mais ágil o acesso dos dados e a obtenção de informações relacionadas à COVID-19, por parte das autoridades sanitárias. Esse imediatismo enseja ampla divulgação informacional, nas plataformas digitais oficiais do governo e na imprensa; ressaltando a necessidade de anonimato sobre os dados identificativos dos pacientes que serviram para a contabilização dos casos da doença.

O monitoramento da extensão doença no Brasil e a análise comparativa com outros países auxilia na gestão da crise, inclusive no que tange as decisões sobre a alocação de recursos públicos para a aquisição de fármacos e de equipamentos biotecnológicos; disponibilização de leitos; e viabilidade e necessidade de medidas de isolamento social, setorizadas ou não.

Nesse aspecto o dever de notificação compulsória é destacado pois obriga os médicos, demais profissionais de saúde e instituições de saúde a comunicarem as ocorrências diretamente ao Ministério da Saúde ou às secretarias de saúde municipal e estadual, que devem, por fim, remeter todas as informações ao Ministério e às demais esferas de gestão do SUS.

Deve ser feita a notificação compulsória quando houver suspeita ou confirmação de doença, agravo ou evento de saúde pública6; em complemento, a Lei 6.259 de 19757, afirma no artigo 7º, inciso I, que se aplica aos casos de doenças que podem implicar em medidas de isolamento ou quarentena, e no insico II, de doenças constantes na relação elaborada pelo MS.

A COVID-19 enquadra-se na previsão expressa no inciso I, o fato de requerer medidas de isolamento e quarentena, já basta para que enseje o dever de notificação. Já sobre o inciso II, a Portaria nº 264, de 17 de fevereiro de 2020, ao dispor a Lista Nacional de Notificação Compulsória, abarca outras modalidades do Coronavírus8, mas nela não consta a COVID-19.

A doença causada pelo Coronavírus na versão atual pode: ser assintomática; ter sintomas leves, configurando Síndrome Gripal; ou ser mais grave, resultar em Síndrome Respiratória Aguda Grave. A Nota Técnica Nº 20/2020 do Ministério da Saúde, de 17 de abril de 2020, ao estabelecer a notificação imediata de casos de Síndrome Gripal via plataforma do eSUS VE e de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave hospitalizada no SIVEP-Gripe, acabou por preconizar o dever de notificação da COVID-19. Há doenças e agravos que são de notificação semanal, porém a infecção pelo novo Coronavírus enseja a notificação compulsória imediata – em até vinte e quatro horas a partir do conhecimento da ocorrência.

Ora, se revelação do estado de saúde de uma pessoa atenta contra a personalidade, por desrespeitar o segredo profissional que se destina à proteção dos doentes9; a providência de notificação imediata, tão necessária para a gestão da crise, demanda mais ainda do Direito um constante controle eficacial da dignidade, igualmente rápido.

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O Ministério da Saúde dispõe de modelo de Ficha de Investigação de Síndrome Gripal Suspeito de Doença Pelo Coronavírus 2019 – COVID-19 (B34.2); ela auxilia na padronização da notificação; esclarece quais dados são essenciais para a vigilância em saúde; agiliza o monitoramento e a análise dos dados. Esse aumento de fluxo informacional sublinha a necessidade constante de equilibrar os propósitos públicos com a tutela da pessoa individualizada.

Há cessão, em alguma medida de privacidade, quando se concede aos outros o acesso às histórias pessoais ou aos corpos, mas se mantém algum controle sobre as informações.10 Esse comando é efeito do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, e consequentemente, da liberdade geral de ação; que na acepção positiva afirma que a pessoa é livre para se autogerenciar; e na negativa, impõe abstenção de terceiros, inclusive médicos, de invadirem a esfera individual do paciente.11

Na gestão dos seus desígnios está inserida a autonomia para ampliar ou restringir o acesso de terceiros aos dados pessoais clínicos, mas a carga negativa da liberdade geral de ação não necessariamente é desrespeitada por ser implementada a vigilância em saúde na pandemia atual; tampouco esse procedimento implica em ignorar as características dos direitos da personalidade, violando ou dispondo dos direitos à intimidade, ao sigilo e à integridade moral e psíquica.

Essa regra aplica-se contanto que o procedimento de notificação se atenha ao previsto nas plataformas competentes; não adicionem às fichas outras informações desnecessárias para os fins públicos e vexatórias para os titulares das histórias clínicas; e que as autoridades públicas, gestoras e sanitárias, ajam adstritas à divulgação dos dados necessários.

Em contraposição, situação não condizente com a tutela dos direitos da personalidade é configurada quando se divulgam os dados da COVID-19, sem preservar o anonimato dos enfermos ou mortos. Romper o anonimato não ocorre somente quando há a divulgação da identidade específica do indivíduo infectado, pode ocorrer se os entes públicos, ao publicarem mapas de rastreio dos casos de portadores da doença, forem tão minuciosos a ponto de terceiros conseguirem identificar o endereço dos enfermos, e consequentemente, identificá-los.

Ora, se com o aparecimento da doença cria-se uma nova situação de vida à qual o paciente tem que se adaptar; um reajustamento complicado e multidimensional;12 é indiscutível que o desrespeito aos direitos da personalidade é capaz de piorar os processos secundários do quadro clínico, que eventualmente podem consumir mais energias até que os aspectos fisiológicos de defesa, por ter a potencialidade de afetar a parte psíquica do doente.

De modo que a tutela da intimidade, via o direito ao sigilo médico, é imprescindível para que se proteja e se honre a confiança imprescindíveis ao atendimento clínico e hospitalar; e, por consequência, para que se estabeleça com eficácia a proteção global do enfermo. Em que pese a necessidade e a importância da vigilância em saúde, ainda que em situações extremas de pandemia, é dever da gestão pública não se olvidar que a proteção universal da pessoa, engloba o respeito à individualidade, e que deve-se, ao máximo, buscar a compatibilização entre interesse público e interesse privado.

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Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

1 ASCENSÃO, José de Oliveira. Ensaios clínicos – ponderações ético-jurídicas. In: GOZZO, Débora; LIGIERA, Wilson Ricardo. Bioética e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012.

2 COGGON, David. A importância da estatística na pesquisa em saúde. Cogitare Enferm. Jan/Mar; 20(1). 2015, p. 10.

3 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE. Curso de Vigilância em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

4 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Vigilância em Saúde. Brasília: 2017. Disponível em: https://www.saude.gov.br/vigilancia-em-saude/sobre-vigilancia-em-saude. Acesso em: 17 de junho de 2020, p. 5.

5 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria 188, de 03 de fevereiro de 2020 . Brasília: 2020. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0204_17_02_2016.html. Acesso em: 17 de junho de 2020.

6 Art. 2º, VI, da Portaria 204/2016, do Ministério da Saúde. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria 204, de 17 de fevereiro de 2016 . Brasília: 2020. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0204_17_02_2016.html. Acesso em: 17 de junho de 2020.

7 Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências.

8 No item 43 consta “Síndrome Respiratória Aguda Grave associada a Coronavírus. SARS-CoVb. MERS- CoV”.

9 RIPERT, Georges; BOULANGER, Jean. Traité de Droit Civil: D’après le Traité de Planiol. Tome Premier. Paris: Librairie de Droit et de Jurisprudence, 1956, p. 348.

10 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics. New York: Oxford University Press, 1994, p. 418.

11 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Paciente terminal e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Curitiba: Juruá Editora, 2017, p. 36.

12 BALINT, Michael. O médico, o seu doente e a doença. Lisboa: Climepsi Editores, 1998, p. 231.

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ARTIGO 2

OPINIÃO

Privacidade versus interesse público: a polêmica sobre o exame do presidente

2 de junho de 2020, 10h04 - Conjur.

Por Gabriela Totti

Desde que retornou de viagem aos Estados Unidos, em março deste ano, o presidente

Jair Bolsonaro está envolvido em uma polêmica. Ele informou ter testado negativo para o

novo coronavírus, mas recusou-se a apresentar o exame, alegando o seu direito de

privacidade e intimidade.

Tendo em vista que uma grande parte da comitiva que esteve na viagem contraiu a doença, criou-se um embate para que o presidente apresentasse o laudo dos exames realizados. No dia 27 de abril, a Justiça Federal garantiu a um jornal o direito de obter o resultado dos testes, devendo os mesmos serem apresentados pela União no prazo de 48 horas. A AGU recorreu desta decisão para impedir que os laudos dos exames fossem entregues.

O imbróglio chegou até o STF por meio da Reclamação 40.574, em razão da suspensão, por decisão do presidente do STJ, dos efeitos da liminar que determinava a apresentação dos exames pelo Presidente. A decisão do ministro teve como fundamento a garantia de proteção da intimidade e privacidade, independentemente de o presidente ser agente público. No entendimento do ministro João Noronha, relativizar esses direitos porque o indivíduo é detentor de cargo público seria presumir que as funções de administração retiram do indivíduo direitos que a todas as pessoas são garantidos.

A intenção aqui não é entrar no campo político ou partidário da situação, mas, sim, analisar a relação desse fato com a proteção de dados pessoais no Brasil, sob a ótica da Lei Geral de Proteção de Dados.

A LGPD tem como objeto os dados pessoais do titular. Ou seja, todos os mecanismos de controle e transparência estabelecidos na lei têm como finalidade garantir a proteção da privacidade, intimidade, honra e imagem das pessoas. Mas é fundamental que possamos entender o que são dados pessoais para que assim seja possível compreender a abrangência da lei.

Segundo a lei, dado pessoal é "informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável". Nesse sentido, é possível extrair que se trata de um dado que pode ser associado de forma direta ou indireta a uma pessoa, sendo importante ressaltar que a lei só protege dados de pessoas naturais, não sendo aplicada a pessoas jurídicas. Podemos citar como exemplos de dados pessoais nome, CPF, RG, número de telefone e e-mail, contudo, além destes, mais fáceis de identificar, existem outros que também são considerados dados

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pessoais, embora nem sempre consigamos identificá-los rapidamente. Por exemplo, o endereço IP, testemunhos de conexão (cookies), dados de localização, entre outros.

Além dos dados denominados comuns, como é o caso dos citados acima, existe uma espécie de dado pessoal que é considerado especial, vez que seu uso pode ensejar a discriminação de titular. Estes são chamados de dados pessoais sensíveis justamente por terem uma característica a mais do que os comuns. Além de serem dados que identificam uma pessoa, podem gerar um tratamento discriminatório em relação ao titular.

A lei descreve o dado pessoal sensível como aquele "sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural".

Dessa forma, dados relacionados à saúde são considerados pela lei como dados sensíveis e, por isso, têm um grau de proteção ainda mais rígido. A lei possui uma seção específica para estabelecer o regramento para seu tratamento. Nesse caso, o consentimento passa a ser a primeira hipótese de autorização, conforme artigo 11 da LGPD:

"Artigo 11 — O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses:

I — quando o titular ou seu responsável legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas;

II — sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para:

a) cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador;

b) tratamento compartilhado de dados necessários à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos;

c) realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais sensíveis;

d) exercício regular de direitos, inclusive em contrato e em processo judicial, administrativo e arbitral, este último nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem);

e) proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro;

f) tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária; ou

g) garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular, nos processos de identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos, resguardados os direitos mencionados no

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art. 9º desta Lei e exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais".

Contudo, como é possível constatar, o consentimento não é a única base legal para autorizar o tratamento de dados pessoais sensíveis, sendo previstas outras hipóteses quando não houver a autorização e for indispensável para determinadas finalidades. Como é o caso da hipótese de proteção da vida ou incolumidade física do titular ou de terceiro.

E é aqui que adentramos na polêmica supracitada. Deve ser garantida a proteção da intimidade e privacidade do presidente ou, pelo fato de ser um homem público e maior autoridade do país, tem o dever de apresentar os laudos de exames em razão da pandemia?

Apesar da LGPD ainda não estar em vigor, existem várias discussões a respeito de medidas e ações adotadas pelas autoridades para o combate à Covid-19 em torno da proteção de dados. Contudo, é importante frisar que, atualmente, já existem normas que regulamentam o sigilo médico. É o caso da Resolução 1.605/2000 do Conselho Federal de Medicina, que proíbe a divulgação de informações de prontuário ou ficha médica, garantindo assim o sigilo de diagnóstico, exceto quando há o consentimento do paciente.

Ao mesmo tempo, a Lei 6.259/75 determina a comunicação compulsória às autoridades sanitárias dos casos suspeitos ou confirmados de doenças que podem implicar em medida de isolamento ou quarentena, que é o caso da Covid-19. Ou seja, não há direito absoluto neste cenário, devendo haver ponderação entre eles para que seja aplicado o mais adequado ao caso concreto.

Ao site Consumidor Moderno, Rafael Zanatta, coordenador de pesquisa do Data Privacy, afirmou que dois parâmetros devem ser observados no caso de conflito entre o interesse público de se conter a pandemia e o direito à privacidade: a relevância da informação para a saúde pública e a necessidade de ser identificado o titular desta informação. Isto é, mesmo se tratando de um dado pessoal sensível, é possível que, para assegurar a proteção da vida, esse dado seja publicizado.

Voltando à polêmica do presidente, estamos diante de um conflito entre o direito de proteção ao sigilo dos dados de saúde versus a proteção da vida de terceiros. E por que isso? Pois, após seu retorno ao país, foi confirmada a Covid-19 em integrantes da comitiva oficial. Diante disso, além de ser um possível caso suspeito, não houve divulgação dos laudos dos exames realizados, o que gerou dúvida sobre esses resultados.

A crítica que se fez foi o fato de que o presidente, embora tenha tido contato direto com pessoas confirmadas com a doença, não permaneceu em quarentena e encontrou-se com muitas pessoas, como foi o caso da manifestação que ocorreu no dia 15 de março. O que nos leva à discussão sobre a proteção de dados sensíveis de saúde versus a proteção da vida de terceiros, que permite o tratamento desses dados mesmo sem o consentimento do titular. Neste momento, já foi realizada a divulgação dos exames do presidente, que deram negativo, sem a necessidade de o STF se manifestar sobre a discussão, uma vez que a AGU entregou a documentação espontaneamente. Mas o que fica de tudo isso é a pergunta: o que deve prevalecer em casos como este, a privacidade do indivíduo ou o interesse público?

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ARTIGO 3

Pandemia do novo coronavírus: caso fortuito ou força maior? 01.abr.2020, - GenJurídico.

Por Felipe Quintella

Neste sexto artigo da série sobre os impactos do novo coronavírus no Direito Civil,

voltarei à temática dos Direitos das Obrigações e dos Contratos, para auxiliar em uma

discussão teórica que tenho visto: a pandemia do novo coronavírus consistiria em caso

fortuito ou força maior?

Inicialmente, é preciso destacar dois pontos: (1) trata-se de um debate meramente

teórico, sem produção de efeitos práticos; (2) para entrar na discussão, é preciso escolher

um referencial teórico, ou seja, um entendimento a ser adotado.

Quanto ao primeiro ponto, veja-se que o Código Civil brasileiro não distinguiu o caso

fortuito da força maior ao estabelecê-los como excludentes de responsabilidade no art. 393:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior,

se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos

não era possível evitar ou impedir.

Logo, trate-se de caso fortuito, ou de força maior, o efeito será exatamente o mesmo:

impedir a configuração de responsabilidade.

Quanto ao segundo ponto, a questão é que há uma quantidade assustadora

de posicionamentos doutrinários acerca dos conceitos de caso fortuito e de força maior.

No Curso de Direito Civil, eu e o Prof. Elpídio Donizetti, seguindo a tradição mineira, adotamos

o posicionamento defendido por Caio Mário em suas Instituições de Direito Civil Brasileiro,

segundo o qual:

Costuma-se dizer que o caso fortuito é o acontecimento natural, ou o evento derivado

da força da natureza, ou o fato das coisas, como o raio do céu, a inundação, o terremoto. E,

mais particularmente, conceitua-se a força maior como o damnum que é originado do fato

de outrem, como a invasão do território, a guerra, a revolução, o ato emanado da autoridade

(factum principis), a desapropriação, o furto etc. (2019, p. 329.)

Carlos Roberto Gonçalves, em Direito Civil Brasileiro, por sua vez, segue entendimento

diferente, e ensina que:

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Em geral, a expressão caso fortuito é empregada para designar fato ou ato alheio à

vontade das partes, ligado ao comportamento humano ou ao funcionamento de máquinas

ou ao risco da atividade ou da empresa, como greve, motim, guerra, queda de viaduto ou

ponte, defeito oculto em mercadoria produzida etc. E força maior para os acontecimentos

externos ou fenômenos naturais, como raio, tempestade, terremoto, fato do príncipe (fait du

prince) etc. (2019, p. 385.)

Como se vê, seguindo o entendimento adotado por Caio Mário e, mais recentemente,

por mim e pelo Prof. Elpídio Donizetti, a pandemia, por derivar de força da natureza,

consistiria em hipótese de caso fortuito.

Por outro lado, seguindo-se o posicionamento adotado por Carlos Roberto Gonçalves,

a pandemia, por se tratar de fenômeno natural, consistiria em força maior.

Sendo assim, qual resposta está correta?

Ambas. Porque, nos dois casos, extraiu-se uma conclusão a partir do referencial

teórico adotado. E, nos dois casos, a conclusão está correta, à luz do marco estabelecido.

Errado seria adotar o primeiro posicionamento e concluir que, por se tratar de força

da natureza, a hipótese seria de força maior. Ou adotar o segundo entendimento e concluir

que, por se cuidar de fenômeno natural, a hipótese seria de caso fortuito.

A propósito, vale destacar que Flávio Tartuce explica, em seu Direito Civil: Direito das

Obrigações e Responsabilidade Civil, quatro diferentes correntes (2019, p. 419). E ainda

comenta a fato de que, antes, Washington de Barros Monteiro havia explicado seis (TARTUCE,

2019, p. 419)…

É Tartuce, ademais, quem bem relembra o conselho de Pontes de Miranda, no sentido

de que se deveria cuidar dos conceitos de caso fortuito e força maior como

equivalentes (2019, p. 409) — como, adequadamente, fez o Código Civil.

REFERÊNCIAS

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. Vol. 2. 16. ed. São Paulo:

Saraiva Educação, 2019.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. Rev. e atual. por

Guilherme Calmon Nogueira da Gama. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

QUINTELLA, Felipe; DONIZETTI, Elpídio. Curso de Direito Civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. Vol. 2. 14. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2019.

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ARTIGO 4

A relação entre coronavírus e caso fortuito ou força maior

26 de março de 2020 - Migalhas.

Por João Cláudio Marcondes e Augusto Leal

A pandemia é extraordinária, do que faz prova as medidas drásticas e inéditas a que estão

sendo submetidas as pessoas físicas e jurídicas.

As medidas legais que vêm sendo adotadas no mundo e no Brasil (União, Estados e

Municípios) com o objetivo de reduzir o contágio e os gravíssimos efeitos causados pelo

novo coronavírus, sobretudo os diversos entraves ao comércio mundial, à movimentação e

à reunião de pessoas, têm impactado direta e significativamente as atividades empresariais

no país.

O surpreendente cenário que vivemos hoje realça, mais do que nunca, a importância

dos princípios da probidade e da boa-fé contratual consagrados no art. 422, do Código Civil.

É com base nestes princípios que prováveis ajustes contratuais estarão por vir para garantir

a continuidade das relações comerciais e obrigacionais, não importa o segmento

empresarial, se público ou privado.

A pandemia do coronavírus também se enquadra nos conceitos de caso fortuito e

força maior previstos em lei, hipóteses em que, mesmo havendo o cumprimento

diferenciado da obrigação por uma das partes, esta não responde por eventuais

inconvenientes causados à outra. Com efeito, a pandemia configura "fato necessário, cujos

efeitos não era possível evitar ou impedir", nos exatos termos do parágrafo único do art.

393, do Código Civil.

Em que pese alguma doutrina diferenciar o caso fortuito da força maior, ambos

dizem respeito a um fato "necessário" (não determinado pela parte), superveniente e

inevitável, ou seja, "fora do alcance do poder humano"1. Todas as qualificadoras estão

previstas na atual pandemia, que de forma abrupta, violenta e inevitável atingiu de frente

as atividades da maioria da população.

No passado, durante a epidemia de H1N1 ocorrida em 2009, o judiciário paulista

autorizou, por exemplo, o cancelamento de um contrato, com a devolução do preço, uma

vez que "o agravamento da epidemia de gripe causada pelo vírus H1N1, nos países da

América do Sul, era imprevisível"2. Ainda se referindo ao H1N1, "a disseminação do vírus é

hipótese de caso fortuito, ou seja, acontecimento que escapa a toda diligência,

inteiramente estranho à vontade do devedor da obrigação".

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Em outra oportunidade, envolvendo crise muito menos graves do que a atual, foi

caracterizado evento de força maior e autorizada a suspensão de disposições contratuais

ajustadas entre as partes devido "a ocorrência de casos confirmados, nos Estados Unidos,

de infecção pelo vírus influenza A (H1N1), altamente contagioso, e popularmente conhecido

por 'gripe suína'"3.

A doutrina também reforça a classificação de pandemias como evento de força

maior. Luiz Olavo Baptista, por exemplo, cita doutrina estrangeira, que enquadra a

epidemia, juntamente com eventos como tufões, tempestades, incêndios, aluviões,

inundações, seca, raios e congelamento, entre os "Acts of God", praticamente a

equiparando a desastres naturais4. Se a epidemia, por si só, já é um evento de força maior

ou caso fortuito, com muito mais razão ainda são as medidas impostas pelo Poder Público

visando combatê-la e que afetam diretamente as atividades empresarias, caso, por

exemplo, do decreto 46.973/20, do Estado do Rio de Janeiro, com forte impacto sobre a

circulação de bens e pessoas entre a região metropolitana da capital e o interior do Estado,

e do recente Decreto determinando o fechamento de divisas do Estado do Rio.

Aplica-se aqui, ainda que por vias indiretas, o denominado Fato do Príncipe, definido

como a imposição de uma autoridade pública, ainda que legal, que torna impossível ou

excessivamente oneroso o cumprimento de uma obrigação. Embora desenvolvida no

âmbito dos contratos administrativos, o Fato do Príncipe já foi invocado como força maior

em contratos privados. Assim, por exemplo, já entendeu o STJ, ao concluir que "o fato do

príncipe, caracterizado como uma imposição de autoridade causadora de dano (...) rompe

o liame necessário entre o resultado danoso e a conduta dos particulares, configurando, em

disputas privadas, nítida hipótese de força maior"5.

A pandemia é extraordinária, do que faz prova as medidas drásticas e inéditas a que

estão sendo submetidas as pessoas físicas e jurídicas; e imprevisível, pois, a cada dia, novas

disposições, normas e regras são editadas pelo Poder Público, surpreendendo e afetando

diretamente as atividades empresariais e de toda a economia.

Assim, neste momento inédito e crítico, a boa-fé consagrada no art. 422, do Código

Civil, e a disposição do art. 479, também do Código Civil, são instrumentos que, se

necessário, poderão ser acionados para modificações e suspensões de obrigações

contratuais, preservando-se a relação até a superação desta crise, que, esperamos, será

rápida.

Entretanto, a incerteza é generalizada, a situação é drástica e não existe receituário

tradicional para tratamento. Ainda que o Poder Judiciário responda positivamente a futuros

anseios do jurisdicionado quanto à aplicação da teoria da força maior no cumprimento de

obrigações contratuais, talvez isto, por si só, não resolva o problema e não evite uma grande

onda de recuperações judiciais e até de falências. As pessoas precisarão de mais, como, por

exemplo, linhas agressivas de créditos e longos períodos de suspensão de impostos para

seguirem em frente, como forma de manter salários em dia, minimizar demissões e gerar

riquezas.

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1 BDINE JR., Hamid Charaf. In Código Civil Comentado. Coordenador: Ministro Cezar Peluso. 7ª Edição. Recista e Atualizada. 2013. Pg. 409. 2 TJ/SP - Ap 0017080-71.2010.8.26.0019 - j. 29/9/2014 - relator Gomes Varjão - DJe 1/10/2014. 3 TJDF - ApCiv no Juizado Especial 572.585 - j. 6/3/2012 - relator José Guilherme.

4 RISCO NAS TRANSAÇÕES INTERNACIONAIS - PROBLEMÁTICA JURÍDICA E INSTRUMENTOS (DE DEFESA) Doutrinas Essenciais de Direito Internacional | vol. 5 | p. 201 - 216 | Fev / 2012 | DTR\2012\2443.

5 REsp 1280218/MG, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/06/2016, DJe 12/08/2016.

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ARTIGO 5

Pandemia, quarentena e as lições de Agambem

30 de março de 2020, 19h15- Conjur.

Por Frediano José Momesso Teodoro

A pandemia do coronavírus ocasionou um toque de recolher no Brasil e no mundo.

Uma parte da população mantém-se confinada em suas residências, evitando ao máximo as

aglomerações, enquanto uma grande parte, empregadas domésticas, trabalhadores de

aplicativos, motoristas, entre outros, continua exposta e trabalhando normalmente.

A necessidade de isolamento coletivo e a suspensão das atividades em escolas,

universidades e empresas, disseminada pelos meios de comunicação, parece ter alcançado o

consenso unânime no Brasil e no mundo.

Diante desse novo cenário, o jusfilósofo Giorgio Agamben faz um alerta para o perigo

da submissão cega às radicais medidas restritivas de liberdade, características de estados de

exceção.

A pandemia exige sacrifícios (?)

Autor de uma a série de obras sobre a Teoria do Estado de Exceção, principiada com o Homo

Sacer: o poder soberano e a vida nua, Giorgio Agamben escreveu recentemente vários artigos

sobre a frenética e irracional reação à epidemia do coronavírus na Itália[2], destacando as

medidas de exceção impostas.

A quarentena recentemente decretada no Brasil e em vários países do globo, as

compulsórias medidas restritivas de liberdade e a dura postura assumida por agentes

públicos, em especial os agentes de segurança pública[3], mostra uma direta correspondência

com as lições de Agamben.

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Não se pode negar que o vírus já se espalhou para todos os continentes. Do mesmo modo,

não se pode negar que o vírus não é de uma gripe letal[4]. Ainda assim, se o número de

contagiados for excessivamente alto, os leitos hospitalares para os casos graves não serão

suficientes, o que motiva a uma reação coletiva no intuito de dificultar a propagação do vírus.

No dia 19 de março de 2020, praticamente um mês após a publicação do primeiro

artigo crítico de Agamben, a Itália ultrapassou a China, no número de vítimas fatais pelo

coronavírus, alcançando a cifra de 3.405 mortos[5]. Até o momento foram registrados

341.365 casos em todo o mundo[6]. No Brasil, até o dia 22 de março, o Ministério da Saúde

havia contabilizado 1.546 casos confirmados de contágio pelo coronavírus e 25 mortes[7].

Esses números podem parecer impactantes e gerarem um clima de temor, que

convença as pessoas a renunciarem suas liberdades civis, mas, sem dúvida, não se comparam,

por exemplo, aos números de casos de dengue no Brasil, neste ano de 2020. De acordo com

os dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, do início deste ano até março, foram

registrados 181.670 casos prováveis — não contabilizando os casos de Chikungunya ou Zika

— com a confirmação de que pelo menos 32 pessoas mortas pela dengue e mais 115 óbitos

em investigação[8].

Aqui no Brasil, diante de dados epidemiológicos tão destoantes, ao se comparar o

coronavírus com a dengue, não se vê uma reação correspondente à gravidade dessas

endemias. Não obstante à realidade, o Estado, em todas as esferas e em todos os poderes,

segue publicando atos normativos carregados de restrições de liberdades, inaugurando um

verdadeiro Estado de Exceção, em razão do Covid-19.

Agamben adverte sobre o fato de os meios de comunicação bombardearem a

população com notícias, utilizando-se da velha tática de difusão de um clima de pânico e

provocando um verdadeiro estado de exceção, com gravosas medidas de restrição das

liberdades. Para Agamben, tem havido uma crescente tendência no emprego do estado de

exceção como um paradigma normal de governo[9]. As profundas medidas de restrição de

liberdades espalharam-se pelo mundo. Muitos países fecharam suas fronteiras,

interromperam o tráfego de voos internacionais, restringem o acesso das pessoas aos locais

públicos e constrangem as pessoas a não deixarem suas casas.

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No Brasil, a lei federal temporária nº 13. 979, de 6 fevereiro de 2020, dispõe sobre

medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional

decorrente do coronavírus. Em seu artigo 3º determina que poderão ser adotadas medidas

de restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, por rodovias, portos ou

aeroportos, e a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas — leia-

se confisco.

Por meio da Portaria Conjunta Nº 1/2020 - Presi/Gabpres, de 12 de março, o Tribunal

Regional Federal da 3ª Região tornou facultativa aos magistrados a realização de audiências,

inclusive as de custódia de presos, audiências por videoconferência, além de recomendar a

restrição de acesso dos advogados aos fóruns federais.

Dias depois Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a Recomendação nº 62,

recomenda expressamente aos Tribunais e aos magistrados para a não realização de

audiências de custódia (artigo 8º). Trata-se de um ato controverso, que coloca a pessoa, alvo

de uma persecução penal, a mercê de decisões subjetivistas, posto que o artigo 4º recomenda

aos magistrados que reavaliem todas as prisões provisórias, bem como recomenda-se a

aplicação preferencial de medidas socioeducativas em meio aberto e a máxima

excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva, observado o protocolo das

autoridades sanitárias.

Por fim, a Resolução nº 313 do CNJ, de 13 de março, determina que seja aplicado o

disposto na Recomendação CNJ nº 62, nos processos envolvendo réus presos e adolescentes

em conflito com a lei internados, ou seja, determina a instauração de critérios próprios,

personalíssimos, sobre as liberdades civis.

Ainda é cedo para se afirmar se essas medidas preventivas e as restrições de

liberdades serão realmente eficazes ou não contra a propagação da Covid-19.

Agamben, ao discorrer sobre a Itália, surpreende-se com a desproporção da reação

frente ao que o Consiglio Nazionale delle Ricerche[10] identificou como uma gripe normal.

Consoante Agamben, poderia se dizer que, exaurido o terrorismo como causa de medidas de

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UFRN . Profa. Renata Oliveira

exceção, a invenção de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para ampliá-la muito

além de todos os limites[11].

É inquietante essa difusão do estado de medo nas consciências dos indivíduos e que

se manifesta em uma necessidade real de estados de pânico coletivos, a qual a epidemia volta

a oferecer o pretexto ideal. Assim, cria-se um perverso círculo vicioso, a limitação da liberdade

imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que se introduziu pelos

mesmos governos que ora intervêm para satisfazê-lo [12] . Outro fato não menos inquietante

é que a epidemia revela notadamente que o estado de exceção, ao qual os governos nos

acostumaram há muito tempo, tornou-se verdadeiramente a condição normal[13].

Em conformidade com os estudos sobre o Estado de Exceção, o totalitarismo

moderno pode definir-se como a instituição de uma guerra civil legal, a qual legitima a

eliminação física de inimigos políticos e de indivíduos que se revelem incompatíveis com o

sistema político. E esta tem sido uma prática recorrente dos Estados contemporâneos, qual

seja, a de instalar um permanente estados de emergência. Desse modo, essa fronteira turva

entre o jurídico e o político, esse momento de instabilidade, converte-se em um permanente

estado de necessidade[14].

Imposto por meio de leis, decretos e resoluções, o Estado de Exceção anuncia-se com

uma forma legal, a despeito de ser um fenômeno que anula a própria forma jurídica, o Estado

de Exceção inclui na ordem jurídica a própria exceção, como se fosse uma condição legal[15].

Os atos normativos do Poder Executivo suplantam as leis, violando a hierarquia imposta pela

Constituição Federal e enfraquece até desintegrar a democracia.

O estado de necessidade gera o fundamento de validade dos decretos com força de

lei emanados do Executivo[16], pois necessárias e excepcionais são as circunstâncias

declaradas como tais, ou seja, são resultados de uma avaliação moral e política

— extrajurídica —pela qual se julga a ordem jurídica e se considera que é digna de ser

conservada, ainda que à custa de sua eventual violação[17].

Nas condições atuais, o estado deixa de tratar cada um dos indivíduos como cidadãos

a serem protegidos e passa a tratá-los como sujeitos a serem detidos.

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UFRN . Profa. Renata Oliveira

Esse condicionamento massivo que faz com que as pessoas queiram se sentir seguras, em

prejuízo de parte de suas liberdades, pode gerar um sentimento de contrariedade em relação

às ideias expostas por Agamben.

Não se trata aqui de pregar contra as medidas preventivas ora impostas contra a

epidemia. Trata-se apenas de trazer à reflexão o futuro dos direitos. Ponderar sobre o

posicionamento de Agamben impede que sejam aceitas cegamente todas as radicais

restrições de liberdade, sem qualquer reflexão sobre a pertinência das medidas impostas e o

prolongamento destas no tempo.

Trata-se, não apenas de proteger a saúde pública, mas de reflexionar sobre as liberdades

essenciais de ir e vir, de associação ou reunião. Trata-se da preservação dos mais caros

direitos e garantias fundamentais em um futuro próximo.

Saberemos distinguir entre a proteção da saúde pública e a opressão velada?

Saberemos distinguir entre uma necessidade momentânea e um perene estado de exceção?

Referências AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

__________. Homo Sacer: o soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

__________. Chiarimenti. Quodlibet, 17.mar.2020. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-chiarimenti. Acesso em 22.mar.2020.

__________. L’invenzione di un’epidemia, Quodlibet, disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-invenzione-di-un-epidemia. Consultado em 22.mar.2020.

__________. Contagio. Quodlibet. 11.mar.2020. Disponível em: <https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-contagio>. Acesso em 22.mar.2020.

CORONAVIRUS: Italy death toll rises to 3,405, overtaking China. The Guardian. Disponível em: https://www.thejournal.ie/italy-death-toll-rise-china-5051812-Mar2020/. Publicado em 19.mar.2020. Acesso em 19.mar.2020.

GUTIÉRREZ, Pablo. Coronavirus map: how Covid-19 is spreading across the world. The Guardian. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/ng-interactive/2020/mar/16/coronavirus-map-how-covid-19-is-spreading-across-the-world. Acesso em 23.mar.2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, vol. 51. Março de 2020. Disponível em: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/06/Boletim-epidemiologico-SVS-10.pdf. Acesso em 19.mar.2020.

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[2] L’invenzione di un’epidemia, Quodlibet, disponível em: <https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-invenzione-di-un-epidemia>. Consultado em 22.mar.2020.

[3] TOMAZELA, José Maria. Crescem casos de polícia por desrespeito às regras para coronavírus em SP. Jornal O Estado de São Paulo. 22.mar.2020. Disponível em: <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,crescem-casos-de-policia-por-desrespeito-as-regras-para-coronavirus-em-sp,70003243539>. Acesso em 23.mar.2020.

[4] AGAMBEN, Giorgio. op. cit.

[5] CORONAVIRUS: Italy death toll rises to 3,405, overtaking China. The Guardian. 19.mar.2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/international>. Acesso em 19.mar.2020.

[6] GUTIÉRREZ, Pablo. Coronavirus map: how Covid-19 is spreading across the world. The Guardian. 23.mar.2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/ng-interactive/2020/mar/16/coronavirus-map-how-covid-19-is-spreading-across-the-world>. Acesso em 23.mar.2020.

[7] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Disponível em: <http://saude.gov.br/>. Acesso em 23.mar.2020.

[8] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, vol. 51. Março de 2020. Disponível em: <https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/06/Boletim-epidemiologico-SVS-10.pdf>. Acesso em 19.mar.2020.

[9] Op. cit.

[10] Conselho Nacional de Pesquisa.

[11] Si direbbe che esaurito il terrorismo come causa di provvedimenti d’eccezione, l’invenzione di un’epidemia possa offrire il pretesto ideale per ampliarli oltre ogni limite (AGAMBEN, op. cit.).

[12] Ibidem.

[13] L’altra cosa, non meno inquietante della prima, che l’epidemia fa apparire con chiarezza è che lo stato di eccezione, a cui i governi ci hanno abituati da tempo, è veramente diventato la condizione normale (AGAMBEN, Giorgio. Chiarimenti. Quodlibet, 17.mar.2020. Disponível em: <https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-chiarimenti>. Acesso em 22.mar.2020).

[14] AGAMBEN, Giorgio. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.

[15] Ibidem, passim.

[16] Ibidem, p 43.

[17] Ibidem, p. 46-47.

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ARTIGO 6

Limites do sigilo entre médico e paciente para fins penais

5 de maio de 2019, 6h5124 - Conjur.

Por Guilherme de Souza Nucci

O sigilo médico sempre foi consagrado pelas leis brasileiras, a fim de não expor a relação de confiança estabelecida entre o paciente e o profissional que o atende. Tanto é verdade que o Código de Processo Penal (1941) dispõe no artigo 207: “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”. No tocante ao médico, o Conselho Federal de Medicina não permitia a quebra de confiança nem mesmo no caso de consentimento do paciente, ao menos quando pudesse comprometer este último no cenário criminal.

Como regra, o Conselho Federal de Medicina veda a exibição do prontuário ou ficha médica do paciente, salvo com o consentimento deste. Para tanto, editou a Resolução CFM 1.605/2000, contendo os seguintes principais artigos:

“Art. 1º - O médico não pode, sem o consentimento do paciente, revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica. Art. 2º - Nos casos do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do prontuário médico do paciente. Art. 3º - Na investigação da hipótese de cometimento de crime o médico está impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo criminal. (...) Art. 5º - Se houver autorização expressa do paciente, tanto na solicitação como em documento diverso, o médico poderá encaminhar a ficha ou prontuário médico diretamente à autoridade requisitante. (...) Art. 7º - Para sua defesa judicial, o médico poderá apresentar a ficha ou prontuário médico à autoridade competente, solicitando que a matéria seja mantida em segredo de justiça” (grifamos).

Diante dessas normas, sempre defendi que o médico não deve enviar o prontuário do paciente ao juiz, seja de que vara for. E mais: em particular no âmbito criminal, tratando-se de autoria do crime (ou circunstâncias pessoais do agente, como personalidade, conduta social etc.) há de se preservar o sigilo médico. Assim sendo, a proibição de depor, para guardar segredo, sempre envolveu o médico quanto ao seu paciente.

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Por outro lado, cuidando-se de prova da materialidade do crime, nunca concordei com a omissão do médico, em nome do sigilo. Nem mesmo o advogado pode ocultar dados sobre a existência do crime (por exemplo, o cliente não pode guardar, impune, drogas ilícitas no escritório do causídico). Portanto, se houver um exame médico em mulher que acabou de abortar, não pode o profissional da medicina ocultar das autoridades a ocorrência do referido aborto. É a materialidade do delito. Deve enviar a ficha clínica ou prontuário a juízo (ou para instruir inquérito).

Argumentando ainda, se o assassino confessa o crime ao médico psiquiatra, este não pode mandar o prontuário do paciente para a Justiça, pois estaria quebrada, de vez, a confiança existente entre ambos. Mas se o paciente pretender esconder o cadáver no consultório do médico (materialidade), por óbvio, não há sigilo algum a protegê-lo.

Ocorre que, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública perante a 3ª Vara Federal de Florianópolis requerendo a declaração de inconstitucionalidade do artigo 4º da Resolução CFM 1.605/2000 e do parágrafo 1º do artigo 89 da Resolução CFM 1.913/2009, bem como para que o CFM não mais limite o acesso ao prontuário e ficha médica de qualquer paciente, quando houver requisição judicial. Assim sendo, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, deu provimento à apelação para declarar ilegal o referido artigo 4º da Resolução CFM 1.605/2000 e parágrafo 1º do artigo 89 da Resolução 1.931/2009, afirmando que o prontuário ou ficha clínica seja disponibilizado apenas ao médico nomeado perito judicial, quando houver requisição do juiz.

Surge então o artigo 4º da Resolução 1.605/2000, nos seguintes termos: “Se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento” (vide circular CFM-COJUR 16/2018).

Ora, a situação, hoje, encontra-se em verdadeiro conflito aparente de normas. Enquanto o artigo 207 do CPP veda o depoimento do médico acerca de seu paciente, o artigo 4º da Resolução 1.605/2000 (com nova redação) prevê a entrega do prontuário/ficha médica ao perito judicial. Há de se ponderar o seguinte:

a) se o médico deve guardar sigilo sobre seu paciente, não devendo depor a respeito, como pode enviar o prontuário/ficha médica ao perito judicial? É contraditório. Se deve ficar calado diante do juiz, não tem como prestar declarações por meio de prontuário. Daria no mesmo: falar sobre o paciente ou enviar os dados do paciente por escrito;

b) a ação civil contra norma constante em resolução do CFM tem o risco de não ter eficácia em face do artigo 207 do CPP, ou seja, por meio da resolução não haveria óbice ao envio do prontuário/ficha médica; porém, segundo o artigo 207 do CPP, não pode depor;

c) retirando-se do tema a referência à materialidade do crime, os médicos, pelo menos em seus consultórios, podem manipular dados para entrar (ou não) no prontuário do

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paciente; com isso, nada se conseguiria obrigando o profissional a enviar o texto a juízo. Pode ser remetido um prontuário vazio de dados.

Dar depoimento em juízo ou enviar, por escrito, o mesmo texto sobre o qual seria falado à frente do juiz são situações idênticas. Se o médico não é obrigado a depor sobre seu paciente, não pode, também, mandar o prontuário/ficha clínica ao perito judicial, expondo seu paciente.

Acima da resolução do CFM está o Código de Processo Penal.

Em conclusão, mantenho a minha ótica no tocante ao sigilo médico. Não se pode omitir dados quanto à materialidade de um crime. Pode o médico, lastreado no artigo 207 do CPP, recusar-se a enviar o prontuário/ficha médica do paciente caso diga respeito à autoria ou circunstâncias pessoais do delito.

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ARTIGO 7

DIREITO CIVIL ATUAL

A Lei Geral de Proteção de Dados regula o segredo médico? 12 de outubro de 2020, 10h36 - Conjur.

Por Renata Oliveira Almeida Menezes

Antes da aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados, se asseverava, sem incertezas, que o segredo médico, em si, não era tratado expressamente na legislação pátria; em que pese ser plenamente defensável à luz de direitos generalistas e que seguem a vertente principiológica dos direitos humanos. Essa realidade resultava, e ainda resulta, na constante suscitação de normas éticas, destinadas aos médicos – nem sequer a toda a equipe de saúde – para tratar da matéria em Direito. No Brasil, há o seguinte contrassenso: as normativas éticas emitidas pelo Conselho Federal de Medicina, que apenas têm força de soft law, são mais completas e detalhadas, a priori, que a legislação strictu sensu, coercitiva. A LGPD modificou esse cenário?

A principal disciplina contida na Constituição Federal de 1988, capaz de proteger os dados, é a que dá base axiológica e pragmática para justificar o direito ao sigilo médico, são os princípios e os direitos fundamentais. No âmbito constitucional, a questão do sigilo é aplicada em vários contextos, mas nenhum que de modo expresso aborde o segredo médico. A título de exemplificação, pode-se mencionar o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, previsto no Art. 5º, XII.

Afora a proteção normativa no corpo do Código Civil, sobre os direitos da personalidade; pode-se apontar o Código Penal de 1940, como uma fonte legislativa importante, pois tipifica os atos de divulgação de segredo e de violação do segredo profissional, nos artigos 1531 e 1542. Ora, como o sigilo médico e dos demais profissionais da saúde diz respeito aos dados e às informações no exercício dos seus trabalhos, os dispositivos aplicam-se, por obviedade, a tal classe de profissionais.

No entanto, mister é se atentar para o fato de que o sigilo aplicado ao trabalho na área da saúde demanda um cuidado especial, já que o processo clínico abarca dados sensíveis, cuja violação tem grande probabilidade de resultar em lesão aos direitos da personalidade e à dignidade que figura em seus cernes. Não se pode comparar a capacidade lesiva de violação de informações obtidas na prática profissional médico àquela, por exemplo, apresentada no campo de vendas.

O direito ao segredo destina-se a conservar de modo completamente inacessível ao conhecimento dos outros, certas manifestações, assegurando-o tanto no tocante às correspondências, quanto no que tange outros documentos, públicos ou privados, que não se enquadrem nesse conceito.3 Apesar de ter tido sua gênese na questão clássica da

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inviolabilidade do domicílio, evoluindo para o sigilo de correspondência e comunicações em geral, o direito de segredo profissional resultou em um direito dotado de autonomia, e que fomenta a construção e desenvolvimento da personalidade, pautando-se na dignidade da pessoa humana.4

Em relação às pesquisas científicas patrocinadas, são conhecidos os problemas como o alto grau de sigilo, conflitos de interesses, manipulação de dados, uso seletivo dos resultados e perda da autonomia em prol da comunidade científica5. No que tange o sigilo médico, se pode verificar também uma situação de heteronomia e hipersuficiência, favorável ao profissional da saúde; de modo que é necessária que a tutela jurídica contrabalanceie essa situação, e garanta o pleno acesso de dados, assim como a máxima autonomia dos pacientes sobre a revelação externa ou não.

A fonte legislativa que em tese poderia ter cuidado da proteção de dados de forma mais afirmativa, mas não o fez, é a Lei 12.965/14, o Marco Civil da Internet; tal necessidade tampouco foi suprida pelo decreto que o regulamentou, Decreto 8.771/ 15. Esse marco apenas menciona a proteção de dados pessoais como um dos princípios para o uso da internet6; assegura aos usuários o não repasse de dados a terceiros e a necessidade de consentimento expresso sobre a armazenagem de dados7; entre outros. Vê-se que a abordagem é superficial em relação à temática; pudera, tem o foco no uso da internet, nada menciona acerca dos dados sensíveis, tampouco disciplina a proteção a ser destinada processos clínicos armazenados eletronicamente.

Considerando-se que “a proteção dos dados pessoais tem sido compreendida como o direito de o indivíduo autodeterminar as suas informações pessoais: autodeterminação informacional”8; pode-se afirmar que a Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD, é a que mais se aproxima de um regramento mais aprofundado sobre o tema. Teve redação alterada pela Lei 13.853, de 08 de julho de 2019 e entrou em vigor em 18 de setembro de 2020.

Para que se perquira se a LGPD regula expressamente o sigilo médico, ou se, ao menos, as suas disposições contribuem para a proteção dos dados pessoais dos pacientes, seguem os principais aspectos detectados em seu corpo legislativo:

a) A lei tem como objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural9 - verifica-se uma consonância entre os seus propósitos e os objetivos indiretos do dever de sigilo médico;

b) Apresenta como fundamentos, entre outros, o respeito à privacidade, a autodeterminação informativa, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade e a dignidade10 - convergindo com as bases do segredo médico;

c) Aplica-se às operações de tratamento feitas por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado11 – nesse rol se encontram os profissionais e as instituições de saúde, sujeitos passivo do dever de sigilo;

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d) Contribui para dirimir divergências conceituais acerca da classificação dos dados, o que serve para melhorar a identificação deles por parte dos profissionais da saúde que fazem os registros nos processos clínicos, ou lidam com dados previamente expressados:

Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se: I - dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável; II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural; III - dado anonimizado: dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento (...).

e) Expressa a possibilidade de tratamento de dados pessoais12 e de dados pessoais sensíveis13 para a tutela da saúde, e tem o cuidado de restringir esse procedimento a profissionais e serviços de saúde e autoridade sanitária – evidenciando a preocupação com a privacidade do paciente;

f) Em relação aos dados pessoais sensíveis da saúde, proíbe que os controladores compartilhem ou comuniquem esse conteúdo, com fito de proveito econômico, à exceção de casos de assistência de saúde14. Proíbe, também, o uso de dados pelos serviços de saúde suplementar, como critério discriminatório na contratação15 - demonstra o interesse precípuo no bem-estar do paciente e a vertente da Medicina com foco na pessoa, e não na doença; e obediência à boa-fé objetiva; em detrimento de práticas mercantilistas; coadunando, pois, com os fundamentos do segredo médico;

g) Trata da questão de o interesse particular do titular dos dados ter que ceder, em certas hipóteses, ao interesse público em realizar estudos em saúde pública 16 - como o direito de sigilo médico não é absoluto, dita relativização, contanto que obedeça aos requisitos legislativos, mostra-se justificada.

Verifica-se que a LGPD brasileira dá destaque ao tratamento específico dos dados pessoais e dados pessoais sensíveis da saúde, não se contentando com a proteção geral e mais abstrata que a proporcionada pelo Código Civil. Embora, como se depreende da própria nomenclatura, a LGPD é igualmente generalista, o que faz com que as regulamentações específicas, eventuais normativas setoriais, devam se submeter aos seus princípios gerais.

O dever de proteção de dados pessoais é mais amplo que o dever específico de sigilo médico, de modo que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD17, por ter competências de fiscalizar os direitos de exercício e os deveres de guarda e manutenção de dados, também fiscalizará o sigilo médico.

Em que pese ter deixado de tratar expressamente do sigilo médico, ao destinar vários dispositivos à tutela dos dados de saúde, acabou por contribuir para a sua observância; dotando de maior coercibilidade o dever deontológico de sigilo em relação aos dados dos processos clínicos. É verdade que as normativas de cunho ético, deontológico, principalmente aquelas enunciadas pelo Conselho Federal de Medicina, continuam sendo mais específicas;

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mas o esforço da LGPD é considerável, no sentido de favorecer a eficácia social dos direitos de privacidade em âmbito clínico e hospitalar. A nova lei dá ênfase à sua base axiológica, a qual é atrelada à dignidade da pessoa humana, e tem propósitos coincidentes com aqueles que motivam a defesa de sigilo médico.

O ceticismo que ainda persiste - dada a tradição paternalista da Medicina, que tanto se combate à luz da autonomia do paciente – na eficácia do dever de sigilo médico, não deve servir para tolher as iniciativas em prol da sua manutenção. Deve alertar para que, seja pelas vias deontológicas, seja pelas vias estritamente jurídicas, se busque alternativas para sopesar a necessidade de comunicação informativa clínica, entre os profissionais da saúde e as instituições da mesma área, e a intimidade e demais direitos da privacidade do paciente.

É necessário que no âmbito de aplicação da LGPD se leve em conta a individualidade de cada enfermo, para que considere os mais diferentes contextos e anseios deles, inclusive em relação às necessidades individuais de extensão do sigilo; só assim, a universalidade dos direitos da personalidade, especialmente da intimidade, será respeitada.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

1 Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem (...).

2 Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem (...).

3 CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Trad. Afonso César Furtado Rezende. São Paulo: Quorum, 2008, p. 158 e 169.

4 PEZZELLA, Maria Cristina Cereser; GHISI, Silvano. A manipulação de dados pessoais nas relações de consumo e o sistema “crediscore”. Civilistica.com. a. 4. n. 1. 2015, p. 3-4.

5 NAGELL, Hilde W. A penny for your thoughts – Ethics in sponsored research. In: GUNNING, Jennifer; HOLM, Søren (Eds.). Ethics, law and Society. UK: Ashgate, 2005, p. 35.

6 Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: (...) III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei.

7 Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: (...) VII - não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais (...); IX - consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais.

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8 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. XXVII, grifos do autor.

9 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

10 Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: I - o respeito à privacidade; II - a autodeterminação informativa (...); IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem(...); VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

11 Art. 3º Esta Lei aplica-se a qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados, desde que: I - a operação de tratamento seja realizada no território nacional; II - a atividade de tratamento tenha por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços ou o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional; ou III - os dados pessoais objeto do tratamento tenham sido coletados no território nacional (...);

12 Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: (...) VIII - para a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária (...);

13 Art. 11. O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses: (...) f) tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária; (...).

14 Art. 11, § 4º É vedada a comunicação ou o uso compartilhado entre controladores de dados pessoais sensíveis referentes à saúde com objetivo de obter vantagem econômica, exceto nas hipóteses relativas a prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica e de assistência à saúde (...).

15 Art. 11, § 5º É vedado às operadoras de planos privados de assistência à saúde o tratamento de dados de saúde para a prática de seleção de riscos na contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneficiários.

16 Art. 13. Na realização de estudos em saúde pública, os órgãos de pesquisa poderão ter acesso a bases de dados pessoais, que serão tratados exclusivamente dentro do órgão e estritamente para a finalidade de realização de estudos e pesquisas e mantidos em ambiente controlado e seguro, conforme práticas de segurança previstas em regulamento específico e que incluam,

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sempre que possível, a anonimização ou pseudonimização dos dados, bem como considerem os devidos padrões éticos relacionados a estudos e pesquisas.

17 Art. 55-A. Fica criada, sem aumento de despesa, a Autoridade Nacional de Proteção de dados (ANPD), órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República.

“É preciso erradicar da alma todo medo e terror do que o futuro possa trazer ao homem”.

Rudolf Steimer1

1 Versos para Época de Micael. Bremen,1910.