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ASSISTINDO AS FAMÍLIAS OPERÁRIAS MINEIRAS DO COMPLEXO CARBONÍFERO DO SUL DE SANTA CATARINA: A IGREJA CATÓLICA LEGITIMANDO A DESIGUALDADE DE GÊNERO
Giani Rabelo 1
Resumo:Este texto apresenta parte de uma pesquisa que procurou inventariar e analisar, numa perspectiva histórica, as práticas assistenciais protagonizadas por cinco congregações religiosas femininas em vilas operárias do complexo carbonífero do sul de Santa Catarina, entre os anos de 1950 a 1980. No intuito de compreender tais práticas junto às famílias em uma das vilas operárias, este trabalho elegeu a atuação das religiosas do Instituto Coração de Jesus, na Vila Operária de Guatá, da Companhia Carbonífera Barro Branco, de Lauro Müller-SC (CNMCBB), a partir de 1953. Contratadas pelo Serviço Social da Indústria (SESI), elas permaneceram até o ano de 1973, totalizando 20 anos. Nas consultas às fontes orais e documentos textuais e iconográficos, identificamos as diversas atividades desenvolvidas pela congregação, que atingiram todos os segmentos da família mineira, desde o operário até seus/as filhos/as. As esposas dos mineiros constituíram o alvo principal dessas ações, uma vez que caberia a elas a “reeducação” de suas famílias, a fim de instituir novos hábitos e valores nas práticas cotidianas da vila operária. Esta meta é almejada tendo como fundamento a desigualdade de gênero, legitimada pela Igreja Católica, com o apoio da CNMCBB e do Serviço Social da Indústria (SESI). Palavras-chave: Mulheres. Gênero. Congregações religiosas femininas. Assistência Social.
Introdução
A região sul de Santa Catarina caracteriza-se pelas marcas profundas das atividades
carboníferas, tanto no campo social, político, cultural e econômico quanto ambiental. Desde o início
do século XIX até o final do século XX a extração do carvão mineral dinamizou a vida econômica
da região.
A instalação de empreendimentos que passaram a constituir o complexo carbonífero da
região sul expandiu-se rapidamente e, ao mesmo tempo, a oferta de emprego aumentou
vertiginosamente. Famílias migraram de cidades vizinhas em grande número, juntando-se aos
colonos (descendentes de imigrantes europeus) já estabelecidos na região, dedicando-se
principalmente à agricultura. Tal contingente populacional compunha-se, em grande medida, de
famílias que sobreviviam da pesca e da agricultura e que vinham para a região em busca de
1professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESC e professora do Curso de Pedagogia. Líder do Grupo de Pesquisa História e Memória da Educação - GRUPEHME.
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melhores condições de vida, diante das possibilidades de um emprego fixo e uma renda mensal para
o sustento familiar.
Além de seduzir e fixar mão-de-obra, pode-se afirmar que outro objetivo almejado com
a instalação de vilas operárias era a redução do custo da reprodução da força de trabalho, mas não
só, pois se tratava também de uma operação eficaz, produzida pelos donos das empresas, para
disciplinar e controlar os corpos dos operários para o alcance de maior produtividade e lucratividade
possível. Portanto, a concessão das casas aos operários se traduzia na tentativa dos donos das
empresas de estender o controle operado na esfera da produção para a esfera da reprodução
operária. Esse tipo de controle implicou a organização de um conjunto de regras de comportamento
imposto ao operariado e as suas famílias, sendo que algumas dessas regras foram incorporadas,
outras burladas ou até negadas.
A vida do operário, em especial, no cotidiano das vilas operárias, se tornou foco de
atenção de proprietários e diretores das empresas do complexo carbonífero, se aproximando do que
ocorreu em outras vilas operárias no país.
Os graves problemas sociais decorrentes da inexistência de condições dignas de
trabalho e moradia, comprometendo o nível de produtividade e crescimento do setor carbonífero,
suscitaram a proliferação de discursos e ações que afirmavam o intuito de amenizá-los. Uma das
instituições que agiu intensamente foi a Igreja, por meio do trabalho de congregações religiosas
femininas.
A vinda das freiras para o desenvolvimento do trabalho de cunho social, religioso e
educativo junto às famílias de operários ligados às atividades do complexo carbonífero se deu
durante a década de 1950, permanecendo em ações mais pontuais até 1981. Cinco foram as
congregações identificadas que atuaram de forma sistemática nas vilas operárias: Instituto Coração
de Jesus, Irmãs Beneditinas da Divina Providência, Pequenas Irmãs da Divina Providência,
Pequenas Irmãs Missionárias da Caridade e as Filhas do Divino Zelo.
Entre as famílias que foram foco deste trabalho estavam as dos operários da Companhia
Carbonífera Barro Branco, de Lauro Müller-SC (CNMCBB). Nesta vila houve a atuação das
religiosas do Instituto Coração de Jesus que assumiram o trabalho sócio-educativo e religioso.
Assim como nas outras vilas operárias que contaram com a atuação de religiosas, o trabalho com as
mulheres e filhas dos operários foi central.
No intuito de promover uma aproximação de algumas práticas protagonizadas pelas religiosas
do Instituto Coração de Jesus na Vila Operária de Guatá, este artigo se propõe a fazer algumas
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problematizações sobre o trabalho assistencial realizado pela congregação, especialmente aquele
realizado junto às esposas e filhas de operários mineiros, à luz do conceito de gênero, ou seja, a
partir do entendimento de que gênero é uma “construção social, que uma dada cultura estabelece em
relação a homens e mulheres” (SCOTT, 1995, p. 89). Neste caso, a ênfase dada pelo conceito de
gênero à construção social das diferenças sexuais não se propõe a desprezar as diferenças biológicas
existentes entre homens e mulheres, mas considera que, com base nelas, outras são construídas.
Companhia Nacional de Carvão do Barro Branco S.A. – CNCBB /Lauro Müller (SC) e as
vilas operárias mineiras
Sobre as vilas operárias de Lauro Müller, em 1926, o distrito de Lauro Müller é narrado
no Jornal O Direito, de Orleans, de 21/10/1926, num tom entusiasta:
[...] Lauro Muller, onde a operosa firma Lage & Irmãos transformou aquele distrito outrora despovoado numa magnífica vila operária. Oficinas bem notáveis lá se encontram, como sejam: serraria, ferraria, uma grande xarqueada, estabelecimentos munidos dos mais aperfeiçoados aparelhos para a lavagem do carvão, uma ideal fábrica de telhas e tijolos refratários, sendo tudo isso movido por uma colossal usina elétrica. O seu território, numa extensa parte, é todo cortado pela Estrada de Ferro Dona Teresa Cristina (apud BELLOLI; QUADROS; GUIDI, 2002, p. 274).
Ondina Pereira Bossle (1981) menciona, a partir das anotações do engenheiro que
dirigiu as minas da CNMCBB entre 1917 e 1941, Walter Vétterli, que ao sentirem a falta de mão-
de-obra especializada e de administradores para impulsionar a produção de carvão Henrique Lage
construiu uma vila operária com “casa para administradores, olarias, uma ferraria, uma oficina
mecânica e forno de cal. Em Orleans instalou-se uma usina hidrelétrica de 350 HP, fornecendo luz e
água à mesma vila, como também às minas de Lauro Müller” (BOSSLE, 1981, p. 33). Esta vila
localizava-se no centro de Lauro Müller
Após a morte de Henrique Lage, em 1941, Walter Vertelli assumiu a administração
geral das empresas no Rio de Janeiro e em seu lugar veio o engenheiro Waldir Coimbra de
Bittencourt Cotrim2. Em sua gestão houve investimentos na construção das casas para operários e
2 Ocupou o cargo de Gerente da CNMCBB.
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funcionários, do clube recreativo, do cinema e, além disso, a empresa auxiliou financeiramente a
construção da igreja matriz.
Para seus empregados engenheiros, a Companhia construiu casas de alvenaria. Construiu e manteve escolas, admitindo professoras para o ensino primário, como suas funcionárias. [...] Lauro Müller possuiu o 1º Estádio para prática de futebol com iluminação noturna. Havia piscina com trampolim na sede, e cinema, em Lauro Müller, Guatá e Barro Branco. A firma construiu e ajudou a construir clubes recreativos, sendo os mais importantes, o Clube Recreativo Cruz de Malta, o Clube 1º. De Maio, e União Mineira do Barro Branco. Haviam outros mais. Da companhia também eram as quadras de vôlei e basquete, com iluminação noturna. (DALL’ALBA, 1986, p. 360-361).
Figura 1: Vila Operária localizada no centro de Lauro Muller/SC (década de 1940)
Fonte: Arquivo pessoal de DieterDihlmann
Em 1948, “a empresa tinha 2.500 operários, em oito frentes de trabalho, extraindo mais
de duzentas mil toneladas anuais de carvão” (DALL’ALBA, 1986, p. 363). A Vila Operária Barro
Branco, um dos primeiros núcleos de operários mantidos pela CNMCBB, tem sua história
vinculada à primeira mina aberta pela carbonífera, em 1916, quando Henrique Lage reabriu a
empresa. Já a Vila Operária de Guatá, até 1937, era apenas uma pousada de tropeiros. Nesse ano foi
construído um trecho de ferrovia ligando a localidade ao centro de Lauro Müller. A partir de então,
teve início a exploração de carvão (DALL’ALBA, 1986, p. 381). O local ficou conhecido como
Primeiro Guatá e algumas casas permanecem até os dias de hoje.
O Segundo Guatá começa a ser construído posteriormente, constituindo-se na vila
propriamente dita. As casas, o comércio, escola, água encanada, igreja, cinema foram obras
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instaladas pela CNMCBB, algumas com a ajuda da população local. A primeira igreja foi um
exemplo disso, a empresa doou o terreno e a madeira e as famílias assumiram a construção e seus
custos. Guatá tornou-se o centro administrativo da empresa, sendo que ali foi construído o escritório
local, além da serraria, oficina e caixa coletora de carvão.
Os tipos de casa diferenciavam-se no tamanho, conforme o cargo ocupado pelo
trabalhador na empresa.
Outras carboníferas foram instaladas em Guatá, de pequeno porte, na condição de
empresas contratadas, administradas pelos empreiteiros que vendiam toda a produção para a
CMNCBB. Cada empreiteiro era proprietário de uma casa de comércio onde seus empregados
deveriam comprar gêneros de primeira necessidade.
Nos anos de 1940 a 1970, foram criados três clubes sociais: o Clube 1º de Maio,
freqüentado pelos funcionários do escritório da Companhia, pelos comerciantes, empreiteiros,
feitores, delegado de polícia e o agente de correio, sendo proibida a entrada de negros; o Clube
União Mineira, popularmente chamado de 7, que também não permitia a participação de pessoas
negras, sem tanto rigor em algumas atividades; e o Clube Ouro Preto, sociedade dos operários
negros. (DAMAZIO, 2000, p. 36)
Em 1967, quando a CNMCBB foi adquirida por Sebastião Neto Campos e seu sócio
Álvaro Catão, o escritório da empresa, localizado em Guatá, foi fechado e transferido para o centro
de Lauro Müller. Nesta mesma época, o armazém do SESI sofreu a mesma mudança.
Figura 2: Vila Operária de Guatá – Lauro Muller/SC (1942) Fonte: Arquivo Pessoal de DieterDihlmann
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Figura 3: Vila Operária de Guatá – Lauro Muller/SC (1947) Fonte: Damazio, 2000, p. 44
Desde o momento em que se tornou um núcleo de famílias operárias Guatá já contava
com seu primeiro estabelecimento de ensino: a Escola Isolada Maria Lúcia Miranda. No entanto, as
crianças menores só tiveram acesso à educação a partir de 1966, com a criação de um Jardim de
Infância para filhos e filhas de mineiros, resultante de uma mobilização organizada pelo Pe.
Wendelino (DALL’ALBA, 1986, p. 382).
Por volta de 1951 e 1952 foram abertas as primeiras minas de carvão em Itanema, sendo
ali construída uma vila operária para fixar os operários e suas famílias. As minas atraíram pessoas
da região. Famílias de Tubarão, Laguna, Pedras Grandes fixaram residência no local.
Quanto às condições das vilas operárias de Lauro Müller, Ir. Anna3, religiosa do
Instituto Coração de Jesus que durante alguns anos atuou nas vilas operárias da cidade, relata que a
falta d’água era o problema mais grave da região e apesar dos mineiros pertencerem a uma
categoria mais bem remunerada não tinham nenhuma infra-estrutura em suas moradias. Em
suas casas eles “não tinham banheiro, não tinham fogão a gás, era tudo precário. Então era água
esquentada trazida de longe por um caminhão. [...] E a comida também era muito precária”. Para
ela, o núcleo de famílias operárias que apresentava maiores problemas sociais era o de Guatá. Em
suas palavras, “o pior de todos foi o Guatá, onde era maior a necessidade. A mortalidade infantil era
maior em função da pirita que continha o enxofre”. Ela ainda conta que “em dias de chuva era
aquela lama de pirita que comia a sola do sapato, que não se podia sair de casa. As crianças não
tinham lugar para brincar, só dentro da pirita, da sujeira”.
3 Ir. Anna Loch. Entrevista concedida a Giani Rabelo, em 16/03/2005, em Braço do Norte/SC.
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Instituto Coração de Jesus fazendo assistindo as famílias operárias: a legitimação da desigualdade de gênero
A congregação que inaugurou a ação assistencial nas vilas operárias da região sul de
Santa Catarina foi o Instituto Coração de Jesus, que, em fevereiro de 1953, a pedido do Monsenhor
Bernardo Peters4, autorizou algumas de suas religiosas a se transferirem para Lauro Müller. Foram
incumbidas de trabalhar junto às famílias dos mineiros da Companhia Nacional de Carvão do Barro
Branco S.A. – CNCBB, e lá permaneceram até o ano de 1973.
Para o início dos trabalhos, algumas religiosas se alojaram na vila operária localizada no
centro de Lauro Müller - nas proximidades do Lavador de Carvão, estendendo o trabalho
posteriormente para Itanema, Barro Branco e Guatá. Inicialmente, havia um convênio com o SESI,
que as remunerava e supervisionava na realização dos cursos de corte e costura, arte culinária,
decoração do lar e outros. Posteriormente, o trabalho delas esteve vinculado à SATC e voltou-se
para o trabalho de puericultura.
4 Este padre foi o primeiro vigário da paróquia de Lauro Müller. Nas palavras do padre Claudino Biff (1997, p. 148), o monsenhor ficou muito famoso em Lauro Müller, pois “foi conselheiro, confessor e benzedor. Foi considerado pelos seus paroquianos como um homem de Deus. Quando de sua convocação para ser vigário geral da Diocese de Tubarão, o povo chorou. Os paroquianos o chamavam de ‘Bom Senhor”.
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Figura 4: Ir. Zélia oferecendo curso de corte e costura numa residência em uma das vilas operárias de Lauro Muller (década de 1950) Fonte: Álbum de fotografias Instituto Coração de Jesus
Sobre os cursos de arte culinária oferecidos, principalmente às mulheres casadas, Ir.
Anna, afirmou que os mineiros tinham uma `boa opinião’ a respeito, pois elogiavam muito o fato de
suas esposas, a partir deste curso, terem passado a esperá-los com pratos mais gostosos, ao invés do
“pirão d’àgua, com arroz, às vezes frio, acompanhado de ovo e salame”5.
Figura 5:Religiosa orientando esposas dos mineiros sobre nutrição (década de 1960) Fonte: Álbum de fotografias Instituto Coração de Jesus
Nos primeiros anos do trabalho ali realizado, essas irmãs moraram no salão paroquial
que ficava atrás da Rádio Cruz de Malta, de Lauro Müller. Como não era um lugar adequado,
conseguiram, por meio de uma doação da CEPCAN, um terreno afastado do centro, que mais tarde
foi trocado por uma casa no centro da cidade de dois pavimentos, que abrigou, em baixo, uma
garagem para o Jeep, que também conseguiram por meio de doação, além de três salas de aula onde
funcionavam os cursos organizados pela congregação em convênio com o SESI. Anos depois, a
casa foi vendida para a Prefeitura e demolida, sendo aí construído o atual prédio da prefeitura.
O trabalho da congregação no primeiro ano desenvolveu-se com duas irmãs: Maria
Góes e Dorotéia (Cristina, nome de batismo). Ir. Maria Góes começou com as aulas de Corte e
5 Ir. Ir. Anna Loch. Entrevista citada.
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Costura e a Ir Dorotéia foi responsável pelas visitas domiciliares e aulas de catequese. Além destas
religiosas atuaram nas vilas operárias de Lauro Müller aproximadamente mais doze irmãs.
Outra religiosa coordenou os trabalhos do Instituto durante muito tempo, em Lauro
Müller, permanecendo até 1962, e era conhecida como Ir. Gabriela. Para realizar seu trabalho,
deslocava-se com uma motocicleta. Segundo as irmãs Johana e Anna, ela marcou a vida dos
moradores da cidade, pois o povo gostava muito dela. “Eu acho até que uma das ruas tem o nome
da Irmã Gabriela”, comenta Ir. Johana6.
Ir. Claudete, que fez um estágio antes de se tornar freira em Lauro Müller, durante
alguns meses do ano de 1963 acompanhou diretamente o trabalho da Ir. Gabriela e a este respeito
relata que a religiosa era “muito prática nas questões sociais” e que “ela era muito dos pobres”7.
Lembra também que as famílias, talvez pelo fato de ser a maioria católica, recebiam bem a Ir.
Gabriela. Os depoimentos das irmãs Johana, Anna e Claudete dão indícios da tentativa das freiras
em produzirem discurso que legitimasse a própria ação realizada junto aos moradores das vilas
operárias. Elas reconstroem suas experiências, afirmando, em geral, a aceitação pelas famílias
operárias e a dedicação à causa dos pobres.
Além de visitar as famílias mais pobres, Ir. Gabriela formava grupos de leigos para
ajudarem nesse tipo de trabalho. Ir. Claudete conta que eram realizadas as visitas duas vezes por
semana e procediam deixando as famílias falarem sobre seus problemas primeiro e, depois,
intervinham com as orientações. Nas visitas ainda elas costumavam observar se havia problemas
com as crianças, se estavam freqüentando a escola e a catequese. Com estes procedimentos é bem
provável que elas buscavam validar suas ações junto aos trabalhadores e suas famílias. No entanto,
havia certas resistências porque a própria Ir. Claudete relata que, apesar de todo o trabalho, um
número bastante significativo de casais não eram casados na Igreja. Ela define estes casais como
“católicos relaxados”8.
Ao sair de Lauro Müller, Ir. Gabriela foi substituída por Ir. Anna Loch, em outubro de
1962. Segundo a própria religiosa, depois de ter permanecido dois anos na Alemanha veio para
assumir a coordenação dos trabalhos, passando a realizar as visitas domiciliares, coordenar os
cursos populares e prestar serviços de enfermagem nos lares e no posto de saúde. Este último 6 Ir. JohanaNiemann (Instituto Coração de Jesus). Entrevista concedida a Giani Rabelo, em 22/12/2004 em Braço do
Norte/SC. 7 Ir. Claudete. Entrevista concedida a Giani Rabelo, em 22/12/2004 em Braço do Norte/SC.
8 Ir. Claudete. Entrevista citada.
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trabalho se chamava “pequena enfermagem do SESI” e, por vezes, ela andava até 9 km a pé, para ir
fazer injeções, curativos nas pessoas que não podiam se locomover até o posto9.
Figura 6: Religiosa aplicando injeção em esposa de mineiro moradora de uma das vilasoperárias de Lauro Muller (década de 1950 Fonte: Álbum de fotografias Instituto Coração de Jesus
Durante a semana, as religiosas, nas comunidades, ministravam aulas de bordado,
artesanato, arte culinária, corte e costura; orientavam as famílias quanto à higiene e saúde,
coordenavam o coral misto de meninos e meninas, organizavam tardes recreativas às crianças e
passeios. Elas costumavam se locomover do centro de Lauro Müller, onde residiam, para as vilas
operárias mais distantes, apanhando carona com os caminhões que carregavam os mineiros para as
minas de carvão.
As religiosas contaram com as parcerias do SESI, da CEPCAN e da própria CNMCBB,
assim como com o apoio de instituições da Alemanha, como a Armênia e Miserior, e mais tarde, da
Legião Brasileira de Assistência – LBA.
A amplitude da ação religiosa da congregação feminina Instituto Coração de Jesus nas
vilas operárias de Lauro Müller e adjacências têm um de seus indícios na expressividade do
trabalho de Ir. Anna. A freira assumiu a coordenação do núcleo do SESI, após a saída do senhor
9 Ir. Anna. Entrevista citada.
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Benjamim Bittencourt que havia sido eleito prefeito da cidade em outubro de 1962. Durante o
primeiro ano de mandato o prefeito acumulou as duas funções, mas posteriormente convidou
Ir.Anna para assumir o núcleo. O SESI administrava uma central de abastecimento para a
população, oferecia assistência médica, possuia uma farmácia e consultório odontológico. Em
função do acúmulo de trabalho, a irmã ficou nesta coordenação somente por dois anos. A Ir. Anna
trabalhou em Lauro Müller de 1962 até 1970, quando retirou-se para atuar no Asilo São Vicente de
Paula, em Criciúma, mas a congregação permaneceu até 1973.
Os trabalhos em Lauro Müller foram encerrados pela Ir. JohanaNiemann10, que na época
ocupava o cargo, interinamente, de Provincial do Instituto Coração de Jesus – Setor Sul. Para a
religiosa, se fosse pelo povo da cidade elas não teriam saído de Lauro Müller. O motivo maior
foram alguns desentendimentos com o pároco da cidade, Padre Hercílio Cappeller11 que, segundo
ela, fazia algumas exigências que as religiosas não concordavam.
Considerações Finais
Além das visitas domiciliares e das ações assistenciais junto às esposas dos operários
mineiros, uma das estratégias fartamente utilizada pelas religiosas foi a oferta sistemática de cursos
populares, patrocinados pelo SESI. Através destes propunham a formação de mulheres mais
cuidadosas com o lar e, por extensão, com a própria família. Cozinhar sem desperdícios, cuidar da
higiene e da saúde dos filhos e filhas, confeccionar roupas para a família, limpar e enfeitar a casa,
crer em Deus e a ele ser grata tornaram-se quesitos necessários ao modelo de mulher que sustentava
o ideário da época, reafirmado pelas freiras e autoridades ligadas às empresas do complexo
carbonífero.
A reunião de várias famílias, de diferentes procedências e diferentes culturas no mesmo
lugar, trouxe uma série de inconvenientes, na perspectiva dos mineradores e demais autoridades
locais. Sugeriu-se ensiná-las uma nova forma de vida, reeducá-las. Incutir novos hábitos e valores
no cotidiano das vilas operárias exigiu, por parte das religiosas, a combinação de estratégias
seculares da igreja com dispositivos utilizados pelo Estado moderno, servindo de sustentáculo para
as pedagogias missionárias.
10
Ir. JohanaNiemann (Instituto Coração de Jesus). Entrevista citada. 11
“Pe. Hercílio Cappeller, aos 11/09/55, torna-se o segundo vigário de Lauro Müller. Ele era coadjutor de Mons.
Bernardo Peters (BIFF, 1997, p.149).
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Os indícios encontrados apontam para uma multiplicidade de ações, articuladas às
práticas católicas, com insidiosa presença nos diferentes âmbitos da vida social e familiar dos
operários mineiros. Nas atividades organizadas houve uma atenção constante à instrução, com
vistas à educação. Podemos inferir que, a partir do envolvimento das esposas e filhas, por extensão
atingiram os operários, regrando e redefinindo práticas, de modo a torná-los mais industriosos e
ordeiros. Nesse processo a desigualdade de gênero foi legitimada, reforçando os atributos tidos
como femininos.
Referências
BOSSLE, Ondina Pereira. Henrique Lage e o desenvolvimento sul catarinense. Florianópolis (SC): Ed. da UFSC, 1981. DALL’ALBA, João Leonir. Colonos e mineiros no grande Orleans. Orleans (SC): Edição do Autor, 1986. DAMAZIO, Ademir. O desenvolvimento de conceitos matemáticos no contexto do processo extrativo do carvão. 2000. 196f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.1, n. 1, p. 71-99, 1995. WATCHING THE FAMILY WORKERS MINING COMPLEX CARBONIFEROUS SOUTH OF SANTA CATARINA: THE CATHOLIC CHURCH LEGITIMIZING GENDER INEQUALITY Abstract: This paper presents part of a study that searched identify and analyze, from a historical perspective, the care practices led by five female religious congregations in the complex coal workers' villages in the south of Santa Catarina, between the years 1950-1980. In order to understand such practices with families in one of the workers' villages, this study chose the role of religious Institute Heart of Jesus, in the Village of Workers Guatá, the Company Carboniferous Barro Branco Lauro Müller-SC (CNMCBB), the from 1953. Contracted Social Service of Industry (SESI), they remained until the year 1973, totaling 20 years. In its consultations with oral sources and iconographic and textual documents, identify the various activities of the congregation, which reached all segments of the mining family, since the operator up their children. The wives of the miners were the main target of these actions, since it would be up to them to "reeducation" of their families, in order to establish new habits and values in everyday practices of working village. This meta is wanted on the grounds of gender inequality, legitimized by the Catholic Church, with the support of CNMCBB and Social Service of Industry (SESI). Keywords: Women. Genre. Female religious congregations.Social Assistance.