assessoria x assistência 2

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Extensão no cárcere: assessoria ou assistência jurídica? Limites e possibilidades da assessoria jurídica popular no sistema carcerário brasileiro e a expêriencia das atividades do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular de Ribeirão Preto (NAJURP) ' 1

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Extenso no crcere: assessoria ou assistncia jurdica

Extenso no crcere: assessoria ou assistncia jurdica?

Limites e possibilidades da assessoria jurdica popular no sistema carcerrio brasileiro e a expriencia das atividades do Ncleo de Assessoria Jurdica Popular de Ribeiro Preto (NAJURP)

Natlia Gis

1) A importncia de diferenciar ASSESSORIA de ASSISTNCIA O surgimento das AJPs no Brasil deu-se a partir dos anos 60, por um lado como reao s medidas de um sistema poltico autoritrio, e por outro, como decorrncia de um ensino jurdico legalista-positivista, que limita a percepo integral do direito como estratgia de superao de uma realidade social eminentemente injusta, desigual e segregadora, fazendo do formalismo legal um obstculo emergncia de novos direitos[footnoteRef:1]. [1: http://www.ccj.ufsc.br/capturacriptica/documents/n2v1/parciais/20.pdf]

Dessa maneira, a assessoria jurdica popular formada enquanto contraposio pratica jurdica tradicional diferencia-se em seus objetivos, fundamentos tericos e metodologia. A assistncia jurdica prioriza prestao da tutela jurisdicional a casos individuais, isso refora a concepo moderna de sociedade liberal, individualizante, onde se busca, essencialmente, resolver aquilo identificado pelos olhos do direito positivo como lide. A pratica da assessoria jurdica direciona seu foco quase que absolutamente ao lido com interesses coletivos-comunitrios. Esta abordagem que se da demanda jurdica nunca , portanto, estritamente jurdica. Ao se propor trabalhar com demandas coletivas, trabalha-se, de fato, com o coletivo e coletivamente. A metodologia utilizada nas atividades das AJUPS necessariamente estabelece uma relao coordenada entre os assessores e a comunidade, o que leva a uma atuao efetiva de ambas as partes, havendo um processo de dilogo e troca de experincias entre os atores, valorizando-se os saberes compartilhados. Os objetivos da assessoria jurdica e da assistncia jurdica diferenciam-se a medida em que na assistncia, estabelece-se uma tpica relao de consumo, prestao de servios em que o advogado/a o vetor de conhecimento e informao e a ao direciona-se ao sujeito que mantem-se passivo. A assessoria jurdica, por sua vez, objetiva que por meio da relao estabelecida entre os assessores e a comunidade, ambas as partes passem pelo processo de empoderamento e de auto reconhecimento enquanto sujeito de direitos, visando em ltima instncia emancipao e autonomia da comunidade, por meio da educao para a cidadania. Ha ainda um importante fator de diferenciao da assistncia da assessoria, seus fundamentos ideolgicos. Na primeira h um reforo da tica individualista, resultando numa prtica jurdica assistencialista, em que se tem a condolncia de profissionais orientados por esprito humanista e caritativo. A comiserao de quem presta os servios legais, de um lado, vem complementada pela desarticulao dos sujeitos de direito atomizados, de outro [footnoteRef:2]. Em relao AJUP, considerando a premissa da emancipao como objetivo, seu fundamento ideolgico no pode ser outro que no uma tica solidria, na qual a prpria identificao das necessidades (faltas ou ausncias de) j se processa coletivamente. [2: CAMPILONGO, Celso Fernando. Assistencia juridica e realidade social: apontamento para uma tipologia de servios legais. ]

2) Alguns passos a caminho da extenso: experincias do NAJURP

A temtica do encarceramento ao mesmo tempo em que estreita o dilogo entre o contedo ministrado dentro das salas de aula de um curso de direito, demonstra o afastamento que esse espao, privilegiado, acadmico e dogmtico tem da realidade sobre a qual especula. Ao longo do desenvolvimento das atividades de extenso uma srie de barreiras institucionais e sociais nos alertaram sobre a necessidade de se traar uma estratgia de trabalho que lide no somente com o aspecto jurdico formal do projeto, mas tambm com a analise (e superao) de foras institucionais que dificultam e nos afastam do nosso objetivo. Inicialmente, os esforos do grupo se direcionaram ao contato com a populao carcerria, que seria num primeiro momento o principal foco de atuao de acordo com as expectativas de realizarmos um trabalho de da educao popular com na temtica do processo penal. Entretanto, o afastamento social (e intencional) daqueles e daquelas cuja liberdade foi restrita em nome da segurana coletiva tamanho que, at mesmo a interao com fins pedaggicos extremamente dificultada. A partir dessa percepo, o primeiro passo no sentido de criar uma estratgia que nos levasse ao dilogo direto com os presos e as presas em s, foi a de estabelecer contato com as instituies e organizaes que j realizavam esse trabalho. Dessa maneira, a Defensoria Pblica foi detectada como um aliado importante, pois, ao mesmo tempo em que uma entidade vinculada ao estado, e consequentemente, dispe da legitimidade dos rgos pblicos, ela atua em situaes de deteco e denuncia de violao de direitos humanos nas cadeias, muitas vezes provocadas pelo prprio estado. Essa atuao da Defensoria e o contato com os processos a respeito de torturas ocorridas dentro da priso, violao de direitos na revista dos visitantes, falhas estruturais graves que colocam em risco a vida dos presos e etc, nos colocou a par das medidas jurdicas a serem tomadas nesses casos.Em um segundo momento, buscamos grupos de outros cursos e universidades que se dedicassem ao estudo do encarceramento no Brasil. Entramos em contato com o grupo de estudos multidisciplinar sobre encarceramento, na UNESP, campus de Franca. Nesse momento, tivemos a experincia de debater questes estruturais do sistema prisional atual entre pessoas que cursam direito, historia e servio social. Alm de Franca, ns visitamos algumas reunies do grupo de ps graduao em cincias sociais na UFSCAR, So Carlos, onde o debate cientfico tambm girava em torno do estudos de criminologia. Em uma terceira etapa, buscamos fora do mbito estatal, entidades que realizassem esse trabalho. Entramos em contato com a Pastoral Carcerria , atualmente a nica organizao da sociedade civil que atua sistematicamente em todo o Brasil com aconselhamento religioso dentro das prises, e esse contato nos possibilitou visitar algumas cadeias da regio ( Cajuru, Serra Azul e Ribeiro Preto), e nos aproximou da metodologia de trabalho utilizada pelos membros da pastoral carcerria nas cadeias. Muito embora tenhamos evoludo no processo de reconhecimento do problema social e refletido acerca da capacidade de um grupo extensionista de propor alguma forma de mudana dessa situao, os entraves ao contato com essa populao e o distanciamento institucional intencional dos presos e presas sociedade civil tornou essa caminhada muito mais longa e tortuosa. A efetiva presena do grupo de extenso dentro do crcere foi pontual, ainda que capaz de materializar discusses e questionamentos que se mantinham no campo da especulao. Mesmo assim, a inacessibilidade a esse espao deve ser identificada como uma caracterstica desse tipo de trabalho, pois demonstra o modo como o sistema prisional hoje isola o indivduo da sociedade, obstaculizando o conhecimento da sociedade em geral acerca da situao a qual esto submetidos os presos e presas. Detectamos a grande dificuldade de acesso informao, e o desconhecimento a respeito da prtica jurdica no mbito processual penal por parte dos presos, presas e famlias, sendo isso uma dificuldade causadora de angustia e insegurana. No entanto, avaliamos que apreende-las no cessa o absoluto descaso com que o Estado trata esses homens e mulheres e isso deve ser compreendido pelos estudantes para que realizemos nosso trabalho com a auto crtica necessria.

3) Assessoria jurdica popular no crcere: limites e possibilidades

A viso da prtica jurdica proposta pelos trabalhos de assessoria leva os assessores a observarem suas aes e objetiva-las para alem da reproduo tcnica do saber jurdico. O intuito da assessoria no restringe-se a resoluo da demanda estritamente jurdica, mas visa, principalmente, que o entendimento deste trabalho supere a compreenso segmentada do caso, e permita uma viso global da situao no momento da resoluo de conflitos, tanto por parte dos assessores como dos assessorados. Dessa forma, o empoderamento e a auto determinao dos indivduos enquanto cidados capazes organizarem-se a fim de lutar para garantir seus direitos, tambm objetivos da assessoria jurdica popular, no podem concretizar-se sem o cuidado com a questo essencialmente humana, com os dilemas psicolgicos travados pelos sujeitos e com o processo de aprendizado coletivo pelo qual passam os envolvidos.O trabalho de assessoria jurdica dentro do sistema prisional diferencia-se dos outros trabalhos de assessoria realizados juntamente aos movimentos sociais a medida que uma vez inserido no sistema carcerrio, o sujeito de certa forma tolhido de uma dimenso de sua cidadania, dificultando o seu protagonismo na luta por garantia de direitos. Ainda que notadamente ocorra a criminalizao dos movimentos sociais e isso os mantenha sob o risco de atitudes arbitrarias e truculentas por parte do estado, a pessoa que se encontra encarcerada tambm aprisionada pelo discurso ideolgico demonizador que a identifica como incomparavelmente pior e menos digno de direitos do que qualquer outro cidado. O direito penal brasileiro encara a pena como um mal justo contraposto ao mal injusto, a resposta justa do Estado ao comportamento injusto do indivduo (DOTTI, 2001, p. 150 a 160). Apesar disso, a pena privativa de liberdade enquanto o " mal justo " fundamenta-se positivamente como meio possvel de ' restaurao ' do indivduo, como forma capaz de ressocializ-lo e torn-lo novamente apto a conviver em sociedade de forma a no ameaar a coletividade. O sistema prisional enquanto instituio capaz de ressocializar alguem que infrinja as regras de convivncia em sociedade demonstra-se falido tanto pelo pressuposto equivocado acerca da funo da pena como pelas condies materiais a que esto submetidos os presos.A pena de priso, antes de servir como capaz de "restaurar" o indivduo apenas mecanismo de controle social e isso demonstra-se pelo quase imutvel perfil dos indivduos que se encontram hoje encarcerados. O sistema penal moderno exerce seu poder de maneira seletiva, isto , escolhe quais sero aqueles atingidos pela norma geral e abstrata. Em sua quase totalidade, representando 73,83% da populao carcerria brasileira, esto presos jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa escolaridade[footnoteRef:3]. [3: http://atualidadesdodireito.com.br/neemiasprudente/2013/03/06/sistema-prisional-brasileiro-desafios-e-solucoes/]

O estigma de ter passado pela priso acompanha o sujeito por toda a vida, maculando a sua idoneidade, descaracterizando-o como cidado que tenha direito s garantias fundamentais de todo cidado do estado democrtico de direito. Essa estigmatizao do indivduo que infringe a lei penal faz dessa pessoa um bode expiatrio sobre quem se deposita a culpa, sobre esses indivduos recai o reconhecimento individualizado de uma culpabilizao que no quer ser coletivizada:" A identificao do criminoso em indivduos isolados e facilmente reconhecveis produz uma sensao de alivio. O criminoso o outro. Quem no processado ou condenado vive uma consequente sensao de inocncia. A imposio da pena a um apontado responsvel pela pratica de um crime funciona como a absolvio de todos os no selecionados pelo sistema penal, que, assim, podem comodamente se autointitular " cidados de bem", diferentes e contrapostos ao " criminoso", ao "delinquente", ao mau." (KARAM, Maria Lcia, p. 89).

A forca do estado recai apenas sobre aqueles que estavam na hora e no lugar onde pudessem ser apreendidos pelo sistema gerando a situao de punio exemplar dos indivduos. No trata-se de impunidade, mas sim de que a real eficcia do sistema penal reside exatamente na excepcionalidade de sua atuao.

A imposio da pena no passa de pura manifestao de poder, destinada a manter e reproduzir os valores e interesses dominantes de uma dada sociedade. Para isso, no necessrio nem funcional acabar com a criminalidade de qualqer natureza, e muito menos, fazer recair a punio sobre todos os autores de crimes, sendo, ao contrario, imperativa a individualizao de apenas alguns deles, para que, exemplarmente identificados como criminosos emprestem sua imagem personalizao da figura do mau, do inimigo, do perigoso, assim possibilitando a simultnea e conveniente ocultao dos perigos e dos males que sustentam a estrutura de dominao e poder. M.L. Karam, a esquerda punitiva, pg. 82

Ao mesmo tempo em que a atuao ostensiva do estado gera na sociedade uma sensao de satisfao e alvio pela punio, e a consequente identificao do inimigo, ela desvia as atenes afastando a busca de outras solues mais eficazes, dispensando a investigao das razes ensejadoras daquelas situaes negativas, e provoca a superficial sensao de que com a punio pontual o problema j estar satisfatoriamente resolvido. A atuao policial do estado direciona-se s camadas subalternizadas da populao, e respaldada pela sociedade, que persuadida pelo discurso ideolgico da criminalizao da pobreza faz com que a sociedade civil reaja ao encarcerado simultaneamente com dio e indiferena. Ha, ainda que veladamente, uma negligencia consentida em relao a situao degradante a qual essas pessoas esto submetidas nas prises. Dessa forma, o trabalho de assessoria dentro do crcere, no sentido de atuar conjuntamente com os presos e presas de modo que eles assumam o protagonismo na luta por direitos, enfrenta algumas barreiras.A situao dentro das prises desumana. Comprova, como vrios outros documentos, o relatrio da ONGHuman Rights Watch(sobre violaes dos direitos humanos no mundo) que afirma que as prises brasileiras so locais de tortura (fsica e psicolgica), violncia e superlotao. Vive-se uma situao de pr-civilizao no sistema carcerrio, em que os homens e mulheres esto submetidos a uma srie de violncias aplicadas pelas instituies do prprio estado. O que existe dentro do crcere uma situao de sobrevida, e diante disso sempre urgente e necessria a atuao de coletivos polticos e rgos estatais que exponham as condies que os muros e grades escondem. Essa invisibilidade dos presos enquanto cidados e a consequente impossibilidade de reivindicarem a garantia dos direitos mais bsicos para uma vida digna resulta do processo de personificao do mau na figura do detento, que inserido no sistema prisional perde automaticamente a credibilidade de exigir condies melhores de existncia. Dessa forma, a atuao conjunta entre assessores jurdicos populares e os detentos e detentas, no que se refere a garantia de direitos, pode acontecer no momento de estudos coletivos e formao poltica, no entanto, a ao frente a instituio do crcere, ou ao estado, deve ser feita por outros agentes uma vez que os prprios presos agindo dessa forma estariam sob risco de eventuais represlias.A luta por melhores condies de vida dentro das prises urgente e imprescindvel para qualquer pessoa que acredite que seres humanos devam ser tratados como seres humanos. No entanto, a situao em que se encontram os presos e os presdios no causa, mas sim consequncia de um estado policialesco, calcado no encarceramento em massa das classes subalternizadas.Sendo a consequncia de um fato, certamente, a atuao que vise a real e permante alterao da situao geradora de injustia no deve focar-se na pratica paliativa de conteno de danos. Ao se reconhecer a origem do que causa o exclusivo, cruel e injusto aprisionamento de pessoas jovens, negras e pobres, ela deve ser combatida, pois, somente dessa forma ser alcanada a emancipao do sistema, em que essas classes tornem-se sujeitos ativos nas lutas por direitos, a que se pretende a assessoria popular.De todo modo, o fato persiste, e ignora-lo tambm desconsiderar a situao desumana a que esto submetidos seres humanos. Desconsiderar como parte necessria do combate ao encarceramento em massa de um estado policialesco a atuao dentro dos presdios ou o acompanhamento jurdico que se contrape a um sistema penal que oprime assusta e exclui, justificando a concentrao de esforos em um objetivo maior e verdadeiramente emancipatrio, a luta da abolio deste sistema penal, tambm desumanizar-se .A atuao interna ao sistema carcerrio, na luta por dignidade essas pessoas, a um processo penal transparente, a estratgia da advocacia popular que combate decises fundamentadas em preconceitos de classe e raa e denuncia os abusos e negligencias do estado em relao aos seus cidados presos so formas de resistncia vlidas e necessrias que no podem furtar-se de coexistir com uma anlise da origem dessas situaes de injustias, correndo o risco de adquirir um carter voluntarista e caritativo, pouco preocupado com a permanente resoluo das desigualdades de nossa sociedade.

BIBLIOGRAFIA: http://www.ccj.ufsc.br/capturacriptica/documents/n2v1/parciais/20.pdf http://atualidadesdodireito.com.br/neemiasprudente/2013/03/06/sistema-prisional-brasileiro-desafios-e-solucoes/ http://www.culturaacademica.com.br/_img/arquivos/Sistema_penal_e_genero.pdf KARAM, Maria Lcia: A esquerda punitiva GUNTHER : Crtica da pena KARAM, Maria Lcia: Pela abolio do sistema penal. DOTTI, Ren Ariel, 2001

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