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ASPECTOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR* Ministro do Superior Tribunal de Justiça Aula inaugural do Curso de Direito da Faculdade de Direito da UFRGS, proferida em 26 de março de 1991, em Porto Alegre. SUMÁRIO Introdução. 1ª Parte - Principais inovações. 1.1. Responsabilidade civil. 1.2. Responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço. 1.3. Responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço. 1.4. A presunção de veracidade. 1.5. Os serviços públicos. 1.6. A desconsideração da pessoa jurídica. 1.7. O Serviço de Proteção ao Crédito. 1.8. A publicidade. Parte - Proteção contratual. 2.1. Princípios. 2.2. Acesso à Justiça. 2.3. A boa-fé objetiva. 2.4. A lesão enorme. 2.5. Principais regras sobre o contrato. 2.6. Ações de que dispõe o consumidor. 2.7. Prescrição e decadência. Conclusão. INTRODUÇÃO O Direito Civil legislado brasileiro está centrado num Código elaborado no início do Século XX, esplêndida elaboração jurídica, que reproduziu, como não poderia deixar de ser, as idéias vigentes no seu tempo de formação, isto é, as do final do século passado. Assim, recém- * Aposentado do cargo de Ministro do STJ, a partir de 12/8/2003. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aspectos do Código de Defesa do Consumidor. Ajuris, v. 13, n. 52, p. 167-187, jul. 1991.

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ASPECTOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR* Ministro do Superior Tribunal de Justiça

Aula inaugural do Curso de Direito da Faculdade de Direito da

UFRGS, proferida em 26 de março de 1991, em Porto Alegre.

SUMÁRIO

Introdução. 1ª Parte - Principais inovações.

1.1. Responsabilidade civil. 1.2.

Responsabilidade pelo fato do produto ou

do serviço. 1.3. Responsabilidade pelo vício

do produto ou do serviço. 1.4. A presunção

de veracidade. 1.5. Os serviços públicos.

1.6. A desconsideração da pessoa jurídica.

1.7. O Serviço de Proteção ao Crédito. 1.8.

A publicidade. 2ª Parte - Proteção

contratual. 2.1. Princípios. 2.2. Acesso à

Justiça. 2.3. A boa-fé objetiva. 2.4. A lesão

enorme. 2.5. Principais regras sobre o

contrato. 2.6. Ações de que dispõe o

consumidor. 2.7. Prescrição e decadência.

Conclusão.

INTRODUÇÃO

O Direito Civil legislado brasileiro está centrado num Código

elaborado no início do Século XX, esplêndida elaboração jurídica, que

reproduziu, como não poderia deixar de ser, as idéias vigentes no seu

tempo de formação, isto é, as do final do século passado. Assim, recém-

* Aposentado do cargo de Ministro do STJ, a partir de 12/8/2003. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aspectos do Código de Defesa do Consumidor. Ajuris, v. 13, n. 52, p. 167-187, jul. 1991.

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saído do regime do trabalho escravo, regulou, lado a lado, a locação dos

serviços prestados pelo homem e a locação de coisas. Naquele tempo, a

economia estava fundada na produção primária, o mercado era incipiente

e o liberalismo dominava os espíritos, fruto da vitória da Revolução

Francesa e da Independência Americana. Isso, de sua vez, explica muitas

das idéias que permeiam o Código: os princípios da autonomia da

vontade, da obrigatoriedade dos pactos livremente aceitos, da igualdade

entre as partes, da excelência do jogo livre da oferta e da procura. Nesse

quadro, o consumo aparece como o instrumento através do qual se

satisfaz o interesse do indivíduo, que é o centro e o fim de toda a

organização social, posto o consumo, senão acima, ao menos ao lado do

fenômeno da produção.

2

Na realidade da economia moderna, onde se multiplicam as

operações, diversificam-se as necessidades, se despersonalizam as

relações, o consumo se massificou e aparece como um meio a serviço da

produção (1), pois essa produção em massa na sociedade industrializada,

que cada vez mais se aperfeiçoa e desenvolve, sempre exige maior

consumo e, por isso, submete o consumidor a constante pressão. O

consumo deixa de ser, portanto - e talvez nunca tenha sido - o vetor da

atividade econômica, um fim em si mesmo, para ser visto a serviço da

produção. Colocado nessa posição, o adquirente do bem está em nítida

inferioridade (2): individualmente é, de regra, o que tem menos força

econômica; é o que dispõe de menos informações sobre o negócio e sobre

o próprio produto, pois não faz disso profissão; menos informado, tem

menor conhecimento para poder fazer uma escolha correta; recebe o

produto depois de uma série infinda de participações, intervenções e

transferência que vão desde a ponta da produção até o consumo final,

havendo o risco de ficar impossibilitada a identificação desses múltiplos

(1) Thierry BOURGOINGNIE. Le contrôle de clauses abusives dans l’intérêt du consommateur dans les pays de la C.E.E. Introduction; Rev. Int. de Droit Comparé, 34º ano, n. 3, julho/setembro, 1982, p. 509. (2) Bernhard ECCHER, Sula legge austríaca per la tutela dei consumatori. Riv. De Diritto Civile, parte 1, 1980, p. 275/291.

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participantes, com diluição da responsabilidade; é normalmente colocado

frente à oportunidade do negócio sem alternativas de interferir nas

cláusulas e no conteúdo do contrato (é levar ou deixar), sabendo-se que

muitas vezes o bem procurado é indispensável à sua subsistência e,

portanto, vital; de outra parte, aquele que dispõe do poder de estipular

certamente nada escreverá espontaneamente a seu desfavor, isto é, o

comprador está submetido a condições gerais do negócio que lhe são

impostas, quando se trata de contrato de adesão, fórmula cada vez mais

usada. Além disso, o consumidor age isoladamente e é litigante eventual (3), enquanto que o fornecedor integra entidade classista que lhe dá

efetivo amparo e freqüente mais seguidamente os Tribunais, estando

superiormente preparado para o litígio, que enfrenta com melhores

recursos e através de departamentos especializados.

Nesse conjunto de circunstâncias de nossa vida diária, o velho

CC já há muito deixara de ser instrumento suficiente para compor

juridicamente as relações que se sucediam na cena social. Não atendia à

natural desigualdade entre as partes; o esquema clássico do contrato

fundamentado na vontade não se ajustava às inúmeras relações - válidas

e eficazes - onde ela não era formalmente manifestada, ou o era por

pessoa incapaz; não se importava com a falta de informação dos

contratantes; não conseguia fugir do rigor do princípio pacta sunt

servarida, ainda quando inexistente a boa-fé, e ainda quando fatos

supervenientes viessem modificar substancialmente as condições do

negócio.

Surpreendentemente, não só o Código permanecia preso aos

seus postulados: a doutrina e a jurisprudência nacionais não se

despregaram dos seus modelos antigos, agora já inaptos para a adequada

regulação do tráfico social.

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(3) Mauro CAPPELLETTI; Bryant GARTH. Acesso à Justiça. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Ed., trad. Ellen Gracie Northfleet, p. 25.

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Poucas foram as manifestações doutrinárias que atentaram

para a necessidade de introdução de novos conceitos jurídicos, para a

reformulação de alguns institutos, para o arejamento enfim do Direito das

Obrigações, assim como o fizeram Orlando Gomes, Neto Lobo e Fabio

Comparato. Nesse ponto, sobressai a obra do ilustre Prof. Clóvis do Couto

e Silva, que honra com o seu magistério esta Casa, o primeiro a versar no

Brasil, com proficiência exemplar, sobre o tema da boa-fé objetiva,

princípio supremo do ordenamento civil, que a tudo preside e serve de

auxílio valioso à justa regulação dos negócios; o primeiro a introduzir a

idéia do adimplemento substancial como fator impeditivo do exercício do

direito de resolução do contrato; o primeiro a tratar da classificação da

categoria dos atos existenciais e a defender a admissibilidade da alteração

da base objetiva do negócio como causa de revisão ou extinção do

contrato (4). Na jurisprudência, em oportunidades ainda mais escassas,

registra-se o posicionamento muitas vezes pioneiro do Tribunal de Justiça

do Rio Grande do Sul, balizador de precedentes, onde pontificaram Eloy

José da Rocha, Pedro Soares Muíloz, Paulo Boeckel Velloso, Athos Gusmão

Carneiro e hoje conta, entre outros, com o também ilustre Professor desta

Faculdade, Des. Adroaldo Furtado Fabrício, especialmente nos temas da

interpretação dos contratos.

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Apesar disso - dessas tentativas de mudança - ou bem por

isso - porque isoladas - a idéia geral dominante no país manteve-se fiel ao

contratualismo clássico, enquanto que em outros países há mais de 80

anos se atuava fortemente no encontro de soluções mais afeiçoadas à

sociedade industrializada e massificada. Os países nórdicos, no início do

século, já tratavam da reformulação de sua legislação; em 1939, a Corte

Suprema da Dinamarca (5) estabeleceu o princípio da responsabilidade

objetiva para o fornecedor do produto; a partir de 1960, os países do

(4) Clóvis Veríssimo do COUTO E SILVA. A obrigação como processo. São Paulo, José Buschatsky Ed., 1976. O princípio da boa-fé no Direito brasileiro, in Estudos de Direito Civil brasileiro e português. São Paulo, Rev. dos Tribs., 1980. (5) Bernhard GOMARD. Le contrôle de clauses abusives. Rev. Int. de Droit Comparé, 34º ano, n. 3, julho/setembro, 1982, p. 591/671-604.

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continente europeu e os anglo-americanos trataram de criar diplomas

legislativos específicos, regulamentando o fenômeno do consumo,

traçando normas sobre os diversos tipos de contrato, especialmente sobre

os de adesão.

Ao rememorar esses fatos, quero dizer que a Lei nº 8.078, de

11.09.90, ao tentar colocar o consumo numa posição jurídica equiparada

à da produção, e ao dar proteção ao consumidor, veio quebrar um sistema

jurídico que se mantinha, quase sem solução de continuidade e sem

nenhum avanço significativo - tirante aquelas posições precursoras a que

me referi, e algumas outras que a elas se juntaram - conceitual e

praticamente idêntico ao consagrado no CC.

Com essa breve introdução, que serviu para mostrar como

visualizo o surgimento do novo diploma do panorama do nosso Direito

Obrigacional, passo a tratar do tema objeto desta aula, que apresentarei

em duas partes: na primeira, a relação sucinta das inovações que mais

chamam a atenção; na segunda, a proteção contratual do consumidor,

nos momentos da formação, execução e extinção do contrato, ao final do

que pretendo estabelecer seis resumidas conclusões.

1ª. PARTE - PRINCIPAIS INOVAÇÕES

1.1. Responsabilidade civil.

Ponho em destaque as regras sobre a responsabilidade civil, e

assim faço porque vinculo o imobilismo do regime contratual a que acabo

de me referir ao princípio da irresponsabilidade civil. Como sabemos,

aqueles a quem Pontes de Miranda, com base nos textos antigos,

chamava de ‘tenedores’ e de ‘forçadores’, para denominar os que

possuíam os bens e exerciam a força, estes eram em princípio

irresponsáveis. O rei era irresponsável; o senhor feudal, nos limites do

seu território, exercia a jurisdição e não respondia; o temível Livro V das

Ordenações Filipinas, ao tratar dos crimes e das penas, aplicava-se aos

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plebeus, não aos nobres, que eram irresponsáveis. Foi preciso muito

caminhar pela experiência política para chegar-se à conclusão de que

todos os homens, porque vivem em sociedade, devem responder pelos

atos danosos que praticarem durante essa convivência. Mas, o estado

liberal que se implantou entre nós e fez largo uso do pressuposto de que

todos os contratantes eram juridicamente iguais e dispunham do mesmo

âmbito de liberdade para contratar, não foi igualmente diligente, não

mostrou a mesma eficiência e habilidade em garantir a possibilidade da

efetiva reparação do dano sofrido pela vítima do comportamento malicioso

da contraparte; ao mesmo tempo em que assegurava o interesse do

credor (vendedor) com a possibilidade da execução através de vários

procedimentos - inclusive pela prisão civil do inadimplente, como temos

na lei que trata da alienação fiduciária (Decreto-Lei nº 911. de 1º.10.69,

art. 4º) - nada disse sobre a publicidade enganosa, a culpa in

contrahendo, as cláusulas abusivas dos contratos de adesão, as cláusulas

de exclusão de responsabilidade, a determinação da responsabilidade

solidária dos diversos participantes do processo econômico, que vai da

produção ao consumo, etc. Isto é, a responsabilidade civil do vendedor

(fornecedor) era diminuta do ponto de vista da legislação e quase

nenhuma, do ponto de vista prático.

Para fazer prevalecer um sistema de Direito Obrigacional com

menor perda de justiça, seria indispensável a alteração profunda do

regime jurídico da responsabilidade civil, o que foi tentado em diversas

disposições da nova lei.

1.2. Responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço.

Há uma seção (Cap. IV, Seção II) sobre a responsabilidade do

fornecedor pelo ‘fato’ do produto e do serviço que apresentem defeitos,

pondo em risco a segurança que deles legitimamente se esperava. Nesse

caso, é instituída uma espécie de responsabilidade objetiva do fornecedor,

que somente se exonera (como já ocorria no nosso Direito Administrativo,

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para estabelecer a responsabilidade civil do Estado) provando não ter

colocado o produto no mercado, ou que o defeito inexiste, ou que a culpa

é exclusivamente do consumidor ou de terceiro. Isto é, instituiu-se um

sistema de responsabilidade decorrente do risco da atividade exercida

pelo fornecedor, no qual basta ao lesado a simples prova do fato

(indeniza-se pelo fato do produto); não chegou, porém, ao extremo do

risco integral, porquanto admite a prova da negativa da autoria, da

inexistência do fato e da culpa exclusiva do lesado ou de terceiro.

Registre-se, diferentemente do que se dá na teoria do risco

administrativo, que aqui a exoneração somente ocorre quando a culpa for

exclusiva do outro; sendo concorrente, isto é, se o consumidor ou terceiro

também forem parcialmente culpados, persiste a responsabilidade integral

do fornecedor. Explicação para isso: o consumidor que lida com produto

perigoso não tem condições de avaliar a cautela exigida, daí por que o seu

descuido não beneficia o fornecedor. Ficou ressalvado que a

responsabilidade pessoal dos profissionais liberais, pela prestação de

serviços que ponham em risco a segurança das pessoas, somente será

apurada mediante a comprovação da culpa, conforme é da teoria

tradicional.

Duas regras importantes: a) em princípio, o responsável é o

produtor fornecedor; o comerciante o será subsidiariamente, quando

aquele não for identificado, ou quando conservar mal produto perecível. A

norma não facilitará a defesa do consumidor em juízo, ainda que possa

promover a ação em seu domicílio, se o produtor identificado tiver sua

sede em lugar distante. b) Evitando disputa sobre a legitimação dos

sujeitos passivos, é feita equiparação legal entre o consumidor e todas as

vítimas do fato do produto.

1.3. Responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço.

Sobre a responsabilidade por ‘vício’ do produto e do serviço

dispõe a Seção III do Capítulo IV. No caso anterior, tratava-se de produto

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defeituoso porque contrário às regras de segurança. Aqui se cuida de

produto ou serviço com vício de qualidade ou de quantidade.

Já não há regra de responsabilidade pelo fato, não se diz que

o fornecedor responderá independentemente de culpa, mas se impõe a

responsabilidade pelo fornecimento de produtos ou serviços viciados, o

que vem a dar no mesmo. O fornecedor responde pelo vício, ainda que

oculto ou desconhecido dele, à semelhança da regra sobre o vício

redibitório.

Quanto ao sujeito passivo, todos os fornecedores respondem

solidariamente pelo vício, mas o fornecedor imediato (o varejista) será o

único responsável perante o consumidor no fornecimento de produtos in

natura ou quando fizer a pesagem ou medição por instrumento não

aferido.

1.4. A presunção de veracidade.

Não basta impor preceitos de Direito Material sobre a

responsabilidade civil, se esquecida a questão probatória.

É da experiência do foro que, não sendo viável a negação de

um princípio ou de um postulado de Direito Material, como no caso da

responsabilidade do vendedor por defeito ou vício do produto, a

alternativa de quem com ele não concorda e não pretende vê-lo realmente

aplicado, é a de usar, entre outros subterfúgios, de uma regra de prova,

impondo restrições à sua apuração, criando critérios de valoração,

exigindo formalidades, ou condicionando a aceitação do fato a uma carga

mais forte de prova por parte do autor, etc., o que, em última análise, é

modo de obstar a real aplicação do princípio substantivo irrecusável.

Nesse ponto, a lei veio cortar cerce o expediente, que sempre serviu para

desfavorecer o consumidor, permitindo ao Juiz estabelecer a seu favor a

presunção de veracidade.

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A regra tem uma extensão inusitada: a inversão dar-se-á em

duas hipóteses: quando for verossímil a alegação do consumidor, a

critério do Juiz, ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras

ordinárias da experiência. A interpretação literal permitiria concluir que

são situações diversas. Porém, tanto para avaliar o que é verossímil como

para definir a hipossuficiência segundo as regras da experiência, se

dependerá sempre do critério do Juiz. A verossimilhança é um juízo que se

estabelece a posteriori, de acordo com o conhecimento de fatos análogos

que ocorreram no passado, os quais permitem a idéia de que o fato em

causa também ocorreu do mesmo modo; logo, o juízo sobre a

verossimilhança há de ser feito pelo Juiz, sempre de acordo com as regras

ordinárias da experiência, porquanto essa experiência é que permite o

juízo presuntivo. A hipótese da hipossuficiência não corresponde apenas à

idéia de pobreza e ocorrerá quando o consumidor não tiver condições

pessoais de fazer a prova desejada, como: a) na alegação de defeito de

maquinismos de alta especialização ou da prestação de serviços de

refinada sofisticação, assim nos programas de informática ou com

produtos eletrônicos, frente aos quais o adquirente ou usuário está em

nítida situação de inferioridade; isto é, ainda que seja pessoa abonada, na

situação daquela relação de consumo, ele poderá ser considerado

hipossuficiente; b) também o será quem não dispuser de recursos

mínimos, ainda que se cuide de provar fatos corriqueiros.

De qualquer forma, o segundo caso previsto na lei

(hipossuficiência) igualmente deve estar submetido à exigência de

verossimilhança, pois não pode ser jogado de lado o princípio da livre

convicção do julgador, que servirá para afastar do benefício da inversão

do ônus da prova o autor malicioso ou que fez afirmação descabelada, ao

qual não se pode dar ganho de causa apenas porque o réu não conseguiu

produzir boa prova ou se manteve silente.

1.5. Os serviços públicos.

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Três disposições fazem expressa menção aos servidores

públicos, a serem racionalizados e melhorados (art. 4º, inc. VIl),

fornecidos de forma adequada, eficiente, segura e, quanto aos essenciais,

contínua (art. 6º, inc. X, e art. 22), ensejando ação cominatória ou

indenizatória, no caso de descumpriomento.

A referência é ampla e abrangente não apenas dos serviços

públicos stricto sensu, que são os essenciais e prestados diretamente pela

administração pública (Polícia, Justiça, etc.), bem como dos serviços de

utilidade pública prestados pelo Estado diretamente ou por terceiros

(serviços concedidos, permitidos, etc.).

O art. 4º é meramente programático, norma jurídica

imperfeita, sem previsão de sanção para seu descumprimento; é

expressão de um ideal que fica cada vez mais distante num país onde se

passa diária e massivamente a idéia de que o Estado é um mal, os

serviços públicos são perniciosos, o dinheiro que se gasta com eles, um

desperdício. A real e sistemática desmontagem do Estado, afetando

seriamente a prestação das funções essenciais e indelegáveis, não condiz

com o propósito legal de racionalização e melhoria dos serviços públicos.

A norma do art. 22, no entanto, aponta diretamente para a via

judicial como meio para compelir o Estado infrator a observar seus

deveres quanto à boa qualidade dos serviços que presta e para condená-

lo a reparar os danos provocados por sua má execução. Quem paga os

impostos e, com mais razão, a taxa (contraprestação ligada diretamente a

determinado serviço), tem o direito de exigir judicialmente a prestação do

serviço em quantidade, qualidade e grau de segurança adequados à sua

natureza. O deferimento do pedido cominatório, porém, não pode

significar a substituição da decisão política reservada aos órgãos da

administração estatal ou ao legislador. Mas, uma vez tomada essa decisão

e oferecido o serviço ao público, ele deve atender àqueles requisitos de

qualidade, quantidade e segurança, prestado de modo a atingir o fim

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Aspectos do Código de Defesa do Consumidor

próprio a que está afeto e, com isso, satisfazer a razoável expectativa do

público consumidor.

Quando o incumprimento ocasionar dado efetivo ao usuário do

serviço, a entidade pública deve indenizar (assim, o serviço médico que

não atende a urgência por ausência do plantonista; o estabelecimento

penitenciário que não fornece as mínimas condições de habitabilidade; a

audiência judicial transferida por mau funcionamento do serviço, com

prejuízo às partes e testemunhas, etc.).

1.6. A desconsideração da pessoa jurídica.

A desconsideração da pessoa jurídica é modo de atingir aquele

que, agindo ilicitamente, se esconde atrás do rótulo de uma pessoa

jurídica para reduzir ou eliminar o direito da contraparte, dificultando a

sua defesa ou impedindo a execução do seu direito (6).

A lei prevê duas situações em que o Juiz pode aplicar a

distegard doctrine: como ‘sanção’ pela prática de atos ilícitos,

genericamente considerados, porque praticados com infração à lei, aos

estatutos, ou porque abusivos, etc. (art. 28, caput), ou como ‘garantia’ do

consumidor, quando indispensável para garantia do ressarcimento a que

tiver direito (art. 28, § 5º). Isso ocorre muito seguidamente com aqueles

contratos que, apesar de válidos, são firmados em nome de sociedade

comercial ou civil inidônea, para benefício dos seus sócios.

1.7. O Serviço de Proteção ao Crédito.

As disposições sobre os bancos de dados (leia-se: Serviço de

Proteção ao Crédito) contêm quatro enunciados que são de real

importância: o primeiro ordena o cancelamento dos registros negativos

correspondentes a período superior a 5 anos. Discute-se: qual o termo a

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(6) J. Lamartine CORREA DE OLIVEIRA. A dupla crise da personalidade da pessoa jurídica. São Paulo, Saraiva, 1979.

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quo? (7). Conforme o texto, as informações não devem ser referentes a

período superior ao qüinqüênio, o que significa dizer: os fatos informados,

e referidos, não podem datar de mais de 5 anos, pelo que o lapso de

tempo deverá ser contado desde o momento do fato objeto do registro;

como este fato é o inadimplemento, é desde o vencimento da dívida que

será contado o período de 5 anos (art. 43, § 1º), porque inadimplementos

existentes há mais de 5 anos não podem mais residir nesses cadastros.

Esse período de 5 anos é maior do que o previsto na Súmula

nº 11 do Tribunal de Justiça, que já há muito ordenava o cancelamento

dos registros negativos de mais de 3 anos, cujos devedores não tivessem

sido acionados. Em razão da superveniência da lei, a Turma de Direito

Privado do Tribunal de Justiça, em sessão de 22.03.91, adaptou a Súmula

à nova lei, para mencionar o período de 5 anos, aprovando o seguinte

enunciado, que passou a constituir a Súmula nº 13: ‘A inscrição do nome

do devedor no SPC deve ser cancelada após o decurso do prazo de 5 anos

se, antes disso, não ocorreu a prescrição da ação de cobrança (art. 43, §§

1º e 5º, da Lei nº 8.078/90)’.

A segunda inovação, nessa matéria, foi a previsão da proibição

de fornecimento de informações que dificultem o acesso ao crédito, uma

vez ‘prescrita a ação’ de cobrança do débito. Nos títulos cambiários e nos

cambiariformes, com prazo prescricional de 6 meses para o cheque, ou de

3 anos para outros títulos de crédito, a prescrição da ação dá-se antes do

período de 5 anos, daí prevalecer o entendimento de que o cancelamento

deve ser feito antes do decurso do prazo de 5 anos, se antes ocorrer a

prescrição da ação. Esse o sentido da Súmula referida.

A terceira novidade, também já incluída na jurisprudência do

nosso Tribunal de Justiça, consiste na obrigação de comunicação prévia e

escrita ao consumidor para abertura de ficha ou cadastro. Não resguarda

12

(7) Tupinambá Miguel CASTRO DO NASCIMENTO. Comentários ao Código do Consumidor. Rio, Aide, 1991, p. 52.

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aspectos do Código de Defesa do Consumidor. Ajuris, v. 13, n. 52, p. 167-187, jul. 1991.

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Aspectos do Código de Defesa do Consumidor

o princípio da privacidade o uso de informações pessoais de alguém, para

compor cadastro destinado a informar o público, sem que o inscrito tenha

conhecimento antecipado dessa prática e possa adotar as providências

cabíveis para impedi-la ou alterá-la.

Os cadastros não devem ser apenas para proteção do

fornecedor ou credor, mas também postos a serviço dos consumidores.

Para isso, foi criado um cadastro das reclamações fundamentadas contra

os fornecedores, a serem mantidos e divulgados pelos órgãos públicos

incumbidos da defesa do consumidor. Penso que o Judiciário deverá

divulgar, através dos Juizados Especiais, a relação anual das causas

propostas por consumidores, quando julgadas procedentes, e o

cumprimento espontâneo da sentença ou do acordo pelo fornecedor.

1.8. A publicidade

É proibida a publicidade enganosa ou abusiva. Considera-se

‘enganosa’ a capaz de induzir em erro o consumidor a respeito do produto

ou do serviço; ‘abusiva’ a que induz o consumidor a comportamento

ilícito, desrespeita os valores ambientais, faz alguma espécie de

discriminação, incita à violência, se aproveita da fraqueza da criança, ou

leva o consumidor a se comportar de modo prejudicial ou perigoso à sua

saúde ou segurança. A responsabilidade é do patrocinador, quando

deveria ter sido estendida ao publicitário e ainda ao titular do veículo

utilizado para a divulgação.

Além disso, e principalmente, a publicidade deve ser feita de

modo a ser fácil e imediatamente identificada como tal. Proibida, assim, a

propaganda subliminar, capaz de ser captada pelo cérebro mas fora do

plano da consciência: num filme, a mesma imagem reproduz-se 24 vezes

por segundo e assim é percebida pelo sujeito, que a conhece e valora,

aceita ou rejeita a mensagem; porém, se na seqüência dessas 24

imagens, uma delas for usada para inserir a propaganda de um certo

13

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produto, a mensagem é captada, mas o sujeito não toma consciência de

sua existência e, portanto, não pode exercer sobre ela um juízo crítico. E

o pior é que essa modalidade de propaganda é, como não poderia deixar

de ser, altamente eficaz.

Também não serão mais permitidos fatos que estamos

acostumados a ver nas páginas de jornais e revistas: as entrevistas e

reportagens radiofônicas, ocupando horário nobre, que não são outra

coisa que não forma de publicidade dissimulada, apresentada como

simples notícia e, portanto, como sendo a mais pura expressão da

verdade. Toda a vez que se destinar a induzir a venda de algum produto,

será propaganda. A sanção administrativa para o violador será a

contrapropaganda, feita às expensas do infrator. É pouco.

2ª PARTE — PROTEÇÃO CONTRATUAL.

2.1. Princípios.

A lei estende-se por diversos artigos, regulando a relação

contratual, em suas diversas fases, tanto que se pode considerar que o

principal instrumento usado para a proteção do consumidor foi a

intervenção no contrato, de forma impositiva, inserindo nele

obrigatoriamente certas cláusulas, excluindo outras.

Toda essa preocupação está expressa em três pontos:

necessidade de restabelecer a desejável situação de equilíbrio entre as

partes, nas suas prestações e contraprestações, isto é, na manutenção do

princípio da equivalência; obediência ao princípio da boa-fé objetiva; e,

por último, inserção da lesão enorme como causa de nulidade.

2.2. Acesso à Justiça.

Em decorrência dessa orientação legislativa, centrada na

intervenção contratual, ganha especial importância a via judicial como

14

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principal meio para efetivar a prometida proteção (8), isto é, a defesa do

consumidor será exercida principalmente em juízo.

Aliás, na origem do movimento de adaptação do regime

jurídico ao regime econômico da sociedade moderna estão duas idéias: de

um lado, a proteção e a defesa do consumidor; de outro, o acesso à

Justiça (9). Esta segunda é indispensável à realização da primeira, por ser

o modelo capaz de quebrar a desigualdade inerente à relação de

consumo. O fácil acesso à Justiça permitirá vencer barreiras econômicas,

psicológicas e educacionais, desde que ofereça ao interessado assistência

técnica e jurídica, suprindo sua deficiência de conhecimentos, e garanta-

lhe a possibilidade de provar suficientemente a sua alegação, para o que é

importante a regra sobre a inversão do ônus da prova.

2.3. A boa-fé objetiva.

Realço a previsão legislativa do princípio da boa-fé objetiva (10), duas vezes referida na lei: a harmonização dos interesses dos que

participam da relação de consumo será feita com base na boa-fé; não

prevalecerão quaisquer obrigações incompatíveis com a boa-fé (arts. 49,

III, e 51, IV).

Estas duas passagens consagram, no plano legislativo, o

princípio antes apenas extraído de forma implícita de nosso ordenamento

jurídico, ao qual se chegava partindo-se do pressuposto de que todas as

relações jurídicas estavam estabelecidas com base na recíproca lealdade a

que se deviam as partes. O princípio da boa-fé, como é sabido, serve para

a determinação de deveres secundários de conduta, a serem satisfeitos

ainda que não estipulados expressamente pelos contratantes; serve

15

(8) Isabelle di LAMBERTERIE; Alfred RIEG; Denis TALLON. Rapport général - Le contrôle des clauses abusives dans l’intérêt du consommateur dans les pays de la C.E.E. Rev. Int. de Droit Comparé, 34º ano, n. 3, julho/setembro, 1982, p. 1079. (9) Thierry BOURGOIGNIE, op. cit., p. 509. (10) Franz WIEACKER. El principio general de la buona fé. 2ª ed., Madrid, Civitas, 1986.

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também para amordaçar pretensões que, embora contratualmente

convencionadas e formalmente conformadas à lei, violam o dever de

lealdade e caracterizam o uso abusivo do Direito. A conseqüência da

ofensa é a invalidade da cláusula ou do próprio negócio.

2.4. A lesão enorme.

De igual monta a referência feita pela lei à nulidade das

obrigações que colocam o consumidor em desvantagem exagerada. O

princípio da lesão enorme, que outro mestre desta Casa, o insigne Prof.

Ruy Cirne Lima, sempre considerou incorporado ao Direito brasileiro,

sobrevivia, no plano legislado, apenas na hipótese da usura real, assim

como definida no art. 49, b, da Lei nº 1.521/51: ‘Obter, ou estipular, em

qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou

leviandade da outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor

corrente ou justo da prestação feita ou prometida’. Com a regra atual, a

conceituação de lesão enorme retorna aos termos amplos da nossa

tradição, assim como já constava da consolidação de Teixeira de Freitas,

sendo identificável sempre que ‘coloquem o consumidor em desvantagem

exagerada’ (art. 51, IV). A sanção é a mesma de antes: a cláusula é nula

de pleno direito, reconhecível pelo Juiz de ofício. Vale lembrar que

doutrina e jurisprudência davam as costas ao princípio da lesão enorme,

presas do voluntarismo exagerado.

2.5. Principais regras sobre o contrato.

2.5.1. Passo a enumerar, de forma breve e sucinta, as regras

de natureza contratual que me pareceram de maior relevo, quanto à

‘formação’ do contrato:

a) ainda antes da formalização do acordo, o fornecedor já

assume obrigações com a divulgação da ‘oferta’, cujo conteúdo obriga e

passa a integrar o contrato que vier a ser celebrado. Até ontem, a

jurisprudência inclinava-se em sentido contrário, do que é exemplo

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recente a decisão do nosso Tribunal, dando pela improcedência da ação de

indenização proposta por adquirente de apartamento que não apresentava

as características de construção constantes do anúncio de venda, o que foi

decidido sob o fundamento de que tais elementos não foram inseridos no

contrato de compra e venda;

b) é dever do fornecedor alcançar todas as ‘informações’

relativas ao produto e ao serviço, de modo a permitir ao consumidor uma

opção fundada em pleno conhecimento de causa;

c) o ‘pré-contrato’ vincula e enseja execução específica, desde

que por escrito, mas independente de registro, o que já se encontrava no

art. 639 do CPC, que admite a execução compulsória do contrato de

promessa;

d) na elaboração do contrato, é ‘vedado’ o uso de diversas

cláusulas: a que impõe a ‘venda casada’; a que consagra vantagem

excessiva; a que deixa de estipular prazo para cumprimento da obrigação

do fornecedor; a que restringe ou elimina a responsabilidade do

fornecedor; a que impede o direito ao reembolso, à restituição ou à

indenização por benfeitorias; a que estabelece a inversão do ônus da

prova a favor do fornecedor; a que torna obrigatória a arbitragem; a que

transfere a responsabilidade a terceiros; a que autoriza a concluir outro

negócio em nome do consumidor, como ocorria nas autorizações para

emissão de letras de câmbio pelos mutuários; todas as que concedem a

decisão sobre a continuidade ou extinção do contrato exclusivamente ao

fornecedor, autorizando-o a extinguir o contrato, alterar o preço, cancelar

o contrato, etc.;

e) em se tratando de venda financiada, cabe ao fornecedor do

produto informar previamente ao consumidor das condições do negócio do

financiamento, seus custos, prazos, prestações, preço total, etc. Nessa

parte, foi tímida a lei, quando já muito adiante estão outros países, como

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a França, que conta há mais de 10 anos com lei específica para o

consumidor que utiliza do crédito em favor de quem foram editadas

normas mais eficazes de proteção, fixando limites de prazos e de custos,

além de permitir expressamente o arrependimento (11);

f) quanto aos contratos de adesão (12), limitou-se a lei a

conceituá-los num artigo, onde dispôs sobre a forma de sua apresentação

e admitiu a inserção de cláusula resolutória, à escolha do consumidor.

Evidentemente isso é muito pouco para regulamentar o instrumento mais

utilizado nos dias de hoje e através do qual são cometidos, com

persistência, os mais elementares abusos em desfavor do aderente. Não

basta dizer que as cláusulas limitativas do direito do consumidor deverão

ser redigidas com destaque, pois elas continuarão não lidas.

Para os contratos de adesão, insuficiente o controle a

posteriori. A experiência que nos vem de outros países recomenda a

intervenção prévia da administração pública, muito seguidamente com a

participação de associações dos consumidores, para a prévia elaboração

ou aprovação dos contratos de adesão das atividades mais constantes no

mercado. A lei deveria ter imposto expressamente essa intervenção de

índole administrativa;

g) as cláusulas contratuais podem ser: aa) obrigatórias -

porque devem ser estipuladas pelas partes, como o prazo para o

cumprimento da obrigação pelo fornecedor (no art. 39, inc. X), ou porque

inseridas por força de lei no contexto da avença, ainda que não inscritas

no seu texto, como a informação ou publicidade suficientemente precisas,

que passam a integrar o contrato que vier a ser celebrado (art. 30); bb)

18

(11) Didier MARTIN. La défense du consommateur à crédit. Rev. Trim. De Droit Comercial, XXX/619-649, 1977, II. (12) Dieter SCHAWAB. Validade e controle das condições gerais do negócio. Direito e Justiça. Revista da Fac. Dir. da PUC/RS, 10/106-118, ano VIII, 1986. Liberdade contratual e formação de contratos ex vi legis. Rev. AJURIS n. 39, ano 1987, p. 16/36. Axel EDLING. Cláusulas contratuais abusivas. Rev. dos Tribs. n. 629, ano 1988, p. 7. Decreto-Lei n. 446/85, Portugal, dispõe sobre cláusulas contratuais gerais.

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proibidas que são nulas de pleno direito e por isso reconhecíveis de ofício

pelo Juiz, podendo acarretar a invalidade do contrato, se impossível o seu

aproveitamento. São exemplos: a regra que impossibilite, exonere ou

atenue a obrigação de indenizar (art. 25); a cláusula que serve para exigir

do consumidor vantagem manifestamente excessiva (art. 39, V); todas as

do art. 51; cc) dispensáveis - as que produzem ou especificam direito

legalmente assegurado, como a de garantia de adequação do produto ou

serviço (art. 24).

2.5.2. Para a fase da execução do contrato, está prevista a

importantíssima regra sobre a possibilidade de modificação de cláusula,

sempre que fato superveniente tornar a avença excessivamente onerosa,

estabelecendo o desequilíbrio entre as partes e a quebra da equivalência

entre prestação e contra-prestação (art. 6º, inc. V). Não está aí incluído o

requisito da imprevisão, como insistentemente se tem exigido até hoje no

Brasil, nem que o prejuízo atinja a ambas as partes, como consta do

projeto do CC. Consagrou-se, isto sim, a teoria da base do negócio, que

autoriza a modificação, uma vez alteradas as condições objetivamente

postas ao tempo da celebração (13). Como a regra da equivalência é uma

norma de sobre direito, ela se aplica para ambos os lados e funciona a

favor de qualquer das partes.

2.6. Ações de que dispõe o consumidor.

No esquema desenhado pela lei, e guardando fidelidade à sua

nomenclatura, as ações que podem ser propostas pelo consumidor, na

defesa da sua posição contratual, são as seguintes:

a) ‘Ação de modificação do contrato’: fundada no desequilíbrio

entre as prestações, já existente ao tempo da celebração (lesão enorme

definida no art. 51, IV, e seu § 1º). Esta ação será proposta com o

objetivo de eliminar a cláusula ou alterar o seu conteúdo, mas sempre

19

(13) Karl LARENZ. Base del negocio jurídico y cumplimiento de los contratos. Revista de Derecho Privado, Madrid, 1956.

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mantendo o contrato (art. 6º, inc. V, primeira parte; art. 51, § 2º,

primeira parte; art. 51, § 4º).

b) ‘Ação de revisão do contrato’: baseada na superveniência

de fato ocorrido em momento posterior ao da celebração, tornando

excessivamente onerosa a prestação (alteração da base objetiva do

negócio), através da qual se pretenderá alcançar a eliminação da cláusula

ou a sua alteração, mas com a manutenção do contrato (art. 6º, inc. V,

segunda parte).

Ambas estas ações tão-somente alteram o contrato e

correspondem à já conhecida ação ordinária de revisão judicial do

contrato.

c) ‘Ação de adimplemento’: cabível quando o fornecedor está

cumprindo mal o contrato e o consumidor tem interesse na sua execução,

vindo este a juízo pedir a substituição do produto ou do serviço viciado

(art. 18, § 1º, I; art. 20; I), ou o abatimento proporcional do preço (art.

18, § 1º, III; art. 20, III), sem prejuízo da indenização por perdas e

danos (art. 18, § 4º). A mesma ação de adimplemento cabe ao

promissário comprador adquirente de produtos ou de serviços, para exigir

o cumprimento forçado da obrigação, nos termos do orçamento (art. 40, §

2º), da oferta, apresentação ou publicidade, ou pedir o equivalente (art.

35, I e II). Nestes casos, o comprador quer manter o contrato e deve

estar disposto a cumprir com a sua prestação, ainda que com abatimento.

d) ‘Ação de resolução do contrato’: com o propósito de

extinguir o contrato, em face de fato superveniente à celebração, que

pode ser tanto o incumprimento definitivo do fornecedor, que

impossibilitou a prestação ou a fez inútil ao consumidor, como o

surgimento de fato novo que tornou a manutenção do contrato

excessivamente onerosa a qualquer das partes. A hipótese da resolução

por incumprimento do fornecedor está prevista no art. 18, § 1º, inc. II

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(vício de produto), e no art. 19, inc. III (vício de serviço), onde se dispõe

sobre a restituição da quantia paga (restituição do preço), que é um efeito

da resolução do contrato. Isto é, regulando o efeito, a lei parte do

pressuposto de que houve a resolução por causa do inadimplemento ali

descrito. Há regra sobre a resolução do contrato para o caso de o

fornecedor recusar cumprimento à oferta (art. 35, III), e outra para o

fornecimento de produto ou serviços sujeitos ao regime de controle ou de

tabelamento (art. 41).

Já o caso de resolução por onerosidade excessiva não obteve

referência especifica do novo diploma, mas a situação continua regida

pelo princípio geral da extinção do contrato por alteração substancial da

base do negócio, cuja existência no nosso ordenamento já antes se

admitia e está agora amparada pela regra que autoriza a revisão do

contrato em tais casos.

Sendo possível a alteração ou a supressão da cláusula, para

restabelecer o equilíbrio contratual, deve ser igualmente permitida a

extinção do próprio contrato, quando a simples revisão da cláusula não for

bastante para tal fim.

Quando a obrigação é duradoura, a sua extinção para o futuro

será obtida através da ação de resilição (arrendamento, fornecimento

duradouro de mercadorias, etc.).

e) ‘Ação de rescisão do contrato’, por causa da lesão enorme.

A existência de cláusula contratual incompatível com as exigências da

eqüidade, da boa-fé, da justiça comutativa, abolindo ‘o justo equilíbrio

entre direitos e obrigações das partes’, redundará na invalidade do próprio

contrato (quando não for possível a alteração de seu conteúdo), o que

será obtido através da ação de rescisão. Esta é a denominação que

corresponde à nossa tradição jurídica, apesar de hoje estar amplamente

divulgado o vocábulo ‘rescisão’ para os casos de resolução do contrato,

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isto é, para os casos de extinção do contrato por incumprimento do

devedor. Através da ação de rescisão, propriamente dita, o consumidor

buscará a declaração de nulidade do contrato por lesão enorme (art. 51,

§§ 2º e 4º; art. 39, IV).

f) ‘Ação de indenização’, para reparação dos danos causados

aos consumidores por produto ou serviço defeituoso (arts. 12 e 14).

Ainda, o pedido de reparação de danos pode vir cumulado com os de

resolução, rescisão, modificação, revisão ou adimplemento do contrato.

g) ‘Ação de arrependimento’, para fazer valer o direito

atribuído pelo art. 49 ao consumidor que tenha contratado fora do

estabelecimento comercial.

Além destas, ainda cabe ao consumidor a ação consignatória,

para a liquidação antecipada do débito (art. 52, § 2º); a ação cominatória

(art. 84), para obter do fornecedor a prática de um fazer ou não fazer

imposto pela lei (art. 43, § 3º; art. 50, parágrafo único; art. 55, § 4º; art.

102); ação de cancelamento de registros no SPC (art. 43, §§ 1º e 5º),

etc. O § 5º do art. 84 autoriza a adoção das medidas cautelares

necessárias para garantir a eficácia da sentença cominatória. Por analogia,

estas mesmas providências poderão ser usadas em todas as ações

reguladas na lei.

A iniciativa pode ser através de ação individual ou coletiva, na

forma dos arts. 81 e segs., e do disposto na Lei nº 7.347, de 24.07.85.

2.7. Prescrição e decadência.

A diferença entre uma e outra dessas figuras (arts. 26 e 27),

para o que nos interessa, deve ser feita a partir da distinção entre Direito

subjetivo propriamente dito (Direito formado, fundamental ou bastante

em si), que contém poderes sobre bens da vida, permite ao seu titular

dispor sobre eles, de acordo com a sua vontade e nos limites da lei, e está

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armado de pretensão dirigida contra quem se encontra no pólo passivo da

relação (devedor), para que efetue a prestação a que está obrigado (ex.:

direito de propriedade, direito de crédito), e direito formativo (dito de

configuração ou potestativo), que atribui ao seu titular, por ato unilateral,

formar relação jurídica concreta, a cuja atividade a outra parte

simplesmente se sujeita. Esse direito formativo é desarmado de

pretensão, pois o seu titular não exige da contraparte que venha efetuar

alguma prestação decorrente exclusivamente do direito formativo; apenas

exerce diante dela o seu direito de configurar uma relação. O efeito do

tempo sobre os direitos armados de pretensão atinge a pretensão,

encobrindo-a, e a isso se chama de prescrição. Os direitos formativos,

porque não têm pretensão, são afetados diretamente pelo tempo e

extinguem-se: é a decadência.

A lei trata dessas duas situações. O direito à indenização, do

qual é titular o consumidor lesado por defeito do produto ou do serviço

com ofensa à sua segurança (arts. 12 e 14), é um direito subjetivo de

crédito que pode ser exercido no prazo de 5 anos, mediante a propositura

de ação através da qual o consumidor (credor) deduz sua pretensão

dirigida contra o fornecedor para que efetue a sua prestação (pagamento

da indenização). Portanto, se já ocorreu a ofensa à segurança do

consumidor, com incidência dos referidos arts. 12 e 14, houve o dano e

cabe a ação indenizatória. É uma ação de condenação deferida a quem

tem direito e pretensão de exigir a prestação pelo devedor. O efeito do

tempo faz encobrir essa pretensão. É caso, portanto, de prescrição, assim

como regulado no art. 27: ‘Prescreve em 5 anos a pretensão à reparação

pelos danos causados por fato do produto ou do serviço (...)’.

Se o produto ou serviço apresenta vício quanto à quantidade

ou qualidade (arts. 18 e 20), sendo de algum modo impróprio ao uso e ao

consumo (arts. 18, § 6º, e 20, § 2º), a lei concede ao consumidor o

direito formativo de escolher entre as alternativas de substituição do

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produto, abatimento proporcional do preço, a reexecução do serviço, ou a

resolução do contrato, com a restituição do preço (art. 18, § 2º, e incisos

do art. 20). A lei cuida dessas situações como sendo um direito formativo

do consumidor, a ser exercido dentro de prazo curto de 30 ou 90 dias,

conforme se trata de bens não duráveis ou duráveis, respectivamente

(art. 26, incs. I e II). O caso é de extinção do direito formativo e o prazo é

de decadência.

Porém, é preciso atentar, nessas hipóteses de vício do produto

ou do serviço (arts. 18 e 20), para a circunstância de que o fornecedor

tem prazo legal de até 30 dias para sanar o vício (art. 18, § 1º: ‘Não

sendo o vício sanado em 30 dias ...’). Isto significa que, antes de exercido

o direito formativo do consumidor, é possível ao fornecedor remediar o

mal e manter o contrato. Tal oportunidade dada ao fornecedor pressupõe

uma reclamação do consumidor, com certo objetivo e a ser exercida

também em certo prazo, mas a lei não trata disso. Para suprir a lacuna,

deve-se aplicar analogicamente a regra do art. 26, concluindo-se daí que

o consumidor tem os mesmos 30 ou 90 dias, conforme a natureza do

bem, para pedir extrajudicialmente ao fornecedor que sane o vício.

Desatendendo o fornecedor à reclamação extrajudicial do consumidor,

deixando escoar em branco o prazo de 30 dias, ou recusando atendimento

à solicitação feita, cabe ao consumidor interessado exercer o seu direito

formativo de resolver ou de manter o contrato, já agora modificado

quanto ao objeto (que deverá ser substituído) ou quanto ao preço (com

proporcional abatimento), de acordo com o disposto nos arts. 18, § 1º, e

20. Esta ação é que tem o seu prazo decadencial fixado no art. 26. A

condenação aí em perdas e danos é uma conseqüência da relação de

liquidação, que se estabelece depois de exercido o direito formativo.

Quanto ao início do prazo decadencial, convém explicar que a

regra do § 19 do art. 26 deve ser interpretada em harmonia com o

enunciado no art. 18, § 19, que concede ao fornecedor o prazo para sanar

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o vício. Existindo aquele procedimento inicial (extrajudicial), do qual

participam necessariamente o consumidor, reclamando pelo vício, e o

fornecedor, aceitando ou se recusando a saná-lo, o prazo para agir em

juízo somente se conta depois de chegar ao consumidor, de forma

inequívoca, a negativa do fornecedor, e não da entrega efetiva do produto

ou do término da execução dos serviços (art. 26, § 2º, inc. I). A partir da

entrega do produto ou do término da execução dos serviços conta-se o

tempo mas para a reclamação extrajudicial; se esta vier a ser feita

tempestivamente, o prazo para a propositura da ação corre apenas desde

o recebimento da resposta correspondente, e é contado a partir daí por

inteiro, de 30 ou 90 dias, independentemente do que tenha decorrido

antes da reclamação extrajudicial, pois o exercício desta caracterizou que

até ali o prazo correra para esse procedimento, a se completar com a

resposta do fornecedor; após isso é que se abrirá o prazo para a

propositura da ação. Logo, até então ainda não se iniciara a fluência do

período decadencial da ação. Os fatos obstativos da decadência, portanto,

enumerados no § 2º do art. 26, não interrompem nem suspendem o

prazo para a ação, que é de preclusão.

Porém, se o consumidor não oferecer a reclamação

extrajudicial, não há outro termo a quo a considerar, nem há por que

esperar por uma resposta do fornecedor, razão pela qual o prazo que

correu desde a entrega era também para o exercício do direito formativo.

Logo, se ele, nesse mesmo prazo, contado da entrega efetiva do produto

ou do término da execução dos serviços (art. 26, § 19), ou do momento

em que ficou evidenciado o defeito oculto (art. 26, § 3º), não fizer a

reclamação nem ingressar em juízo, terá seu direito extinto pela

decadência.

De outra banda, não está ele obrigado a esperar

indefinidamente pela resposta do fornecedor; demorando esta além dos

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AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aspectos do Código de Defesa do Consumidor. Ajuris, v. 13, n. 52, p. 167-187, jul. 1991.

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30 dias, a ação pode ser intentada, mas o prazo decadencial contra o

consumidor só fluirá a partir do seu conhecimento da resposta.

O procedimento extrajudicial não é condição para a ação. O

direito formativo do consumidor nasceu com o não-cumprimento do

contrato pelo fornecedor, que entregou bem ou prestou serviços viciados.

O que a lei concede ao descumpridor é a possibilidade de sanar o mal,

ainda antes do ajuizamento da ação. Se ocorrer a hipótese do § 3º do art.

18, a opção é só do consumidor por uma das alternativas dos incisos do §

1º; se não for o caso do § 3º, e mesmo assim o consumidor tiver

interposto de logo a ação, tem o fornecedor o direito de optar em juízo

pela sanação do vício, mantendo o contrato nos termos em que foi

celebrado, mas a ação do consumidor de qualquer forma é procedente,

porquanto teve por fundamento o cumprimento imperfeito por parte do

réu.

A interpelação para que o fornecedor sane o vício (art. 18, §

1º) pode ser feita também em juízo, como medida preparatória.

Conclusão.

1. A nova lei significa abrupta passagem do sistema

obrigacional implantado pelo CC (acompanhado do trabalho científico que

na mesma linha se orientou, sempre fundado nos princípios da igualdade

e da supremacia da vontade) para um sistema que parte do pressuposto

da desigualdade e considera que o mais fraco tem menor liberdade, sem

que tivéssemos passado, como aconteceu em outros países, pela fase

intermediária de evolução e adaptação, durante a qual os pontos mais

agudos de insuficiência do regime legal foram abrandados ou contornados

pela aplicação judicial, com o emprego de cláusulas gerais, como a de

abuso de direito, ordem pública, lesão enorme, boa-fé objetiva, etc.

2. Foi omissa ao deixar de incorporar alguns preceitos

valiosos, encontradiços no Direito Comparado: não regulou as vendas com

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financiamento, onde é especialmente aguçada a disposição ao consumo

inconseqüente, mediante a assunção de obrigações que depois se revelam

insuportáveis pelo consumidor; deixou de traçar mais completa regulação

do contrato de adesão, a respeito do qual alguns ordenamentos já

editaram lei específica; não elaborou regra geral sobre o direito de

desistir, que ficou limitado ao caso da venda fora do estabelecimento do

fornecedor; nada disse sobre os contratos de viagem.

3. A lei terá sempre uma abrangência muito restrita,

considerando a população nacional, pois se dirige apenas aos que

participam regularmente das operações de mercado e que dispõem de um

mínimo de conhecimentos para se inteirarem de seus direitos e possuem

condições para a sua defesa.

4. Sua efetiva aplicação dependerá de dois fatores: da

educação dos consumidores, para que se conscientizem de seus direitos e

possam fazer opções corretas; do efetivo acesso aos órgãos da

administração e do Judiciário, para garantir eficácia às suas reclamações.

Se tanto não existir, a tendência será em pouco tempo cair a lei no olvido,

ficando seus preceitos sistematicamente descumpridos, não exigidos e

não fiscalizados. Como as perspectivas de aumento da educação de nosso

povo não são das mais alentadoras (tanto que dois salários mínimos para

a remuneração dos professores é meta inatingível), e como a máquina

burocrática, inclusive a judicial, não dá mostras de reforma profunda (os

Juizados Especiais ainda não saíram do papel), conclui-se que a força de

influência desta lei na vida diária dos cidadãos será apenas razoável, bem

aquém do esperado e do possível.

5. Seus preceitos devem ser interpretados de acordo com o

fim para o qual foram editados: restabelecer ou garantir o equilíbrio entre

as partes. Feito isso, atingiu seu objetivo e o mais deve ser decidido com

base nos princípios da Justiça comutativa e da boa-fé, pois que todos os

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AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aspectos do Código de Defesa do Consumidor. Ajuris, v. 13, n. 52, p. 167-187, jul. 1991.

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interesses dos envolvidos na relação de consumo são igualmente

relevantes para o Estado, desde o produtor primário até o consumidor.

6. De qualquer forma, a lei significa considerável avanço da

nossa legislação no rumo da modernidade, isto é, procura dar adequada

resposta jurídica à realidade da nossa vida econômica. É especialmente

elogiável porque introduziu conceitos novos, que servirão de parâmetro

para outros institutos jurídicos do Direito das Obrigações e mesmo do

Direito público. Caracteriza, enfim, uma tentativa de aperfeiçoamento que

deve ser aplaudida.

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