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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO
ASPECTOS DESTACADOS DA LEI Nº 11.340/06
RUBIA FERNANDA FERREIRA
Itajaí (SC), 10 de junho 2010
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO
ASPECTOS DESTACADOS DA LEI Nº 11.340/06
RUBIA FERNANDA FERREIRA
Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como
requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.
Orientadora: Professora Msc. Adriana Maria Gomes de Souza Spengler
Itajaí (SC), 10 de junho 2010
ii
AGRADECIMENTO
A Deus, por iluminar o meu caminho e ser
presença constante em minha vida.
A minha mãe Lair Alaíde Pereira Ferreira pelo
amor e dedicação incondicional.
Ao meu pai, Antônio dos Santos Ferreira (in
memorian), por ter me ensinado os valores morais que
representam hoje os meus ideais.
Aos meus irmãos Roberta Pâmela Ferreira e
Juliano dos Santos Ferreira, pelo carinho e apoio.
Ao meu amigo Raphael Degenhardt por me
ajudar e acreditar em mim, por estar sempre ao meu
lado me incentivando e auxiliando nesta jornada.
Aos meus amigos da graduação que sempre
incentivaram meus sonhos e estiveram ao meu lado,
especialmente aos amigos, Rafaela Bueno Peres,
Tatiana Antunes de Castro, Giacomo Vicente
Perciavalle e Jerusa Ternes, que durante o curso
sempre me deram incentivo e me fizeram ver o
verdadeiro sentido da palavra amizade.
A todos os docentes desta Universidade, e em
especial a minha orientadora, Adriana Maria Gomes de
Souza Spengler, que empenharam seu tempo em favor
do aprendizado daqueles que serão os futuros
operadores do Direito.
A todos aqueles que deram a sua valiosa
contribuição de maneira direta ou indireta para a
realização desta pesquisa, sem medir esforços para
que esta se findasse.
iii
iv
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho as mulheres vítimas de
violência doméstica no qual prestei atendimento
durante meu estágio.
À Maria da Penha Maia Fernandes, que
transformou seu drama em uma bandeira de luta,
na esperança de conquistar um mundo melhor.
E a todos os meus familiares que sempre
acreditaram e torceram por mim.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí (SC), 10 de junho de 2010
Rubia Fernanda Ferreira Graduanda
v
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale
do Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Rubia Fernanda Ferreira, sob o
título Aspectos destacados da Lei nº 11.340/06, foi submetida em 10 de Junho de
2010 à banca examinadora composta pelos seguintes professores: Adriana Maria
Gomes de Souza Spengler (Orientadora e Presidente da Banca), Maria Fernanda
do Amaral Pereira Gugelmin Girardi (Examinadora) e aprovada com a nota [ ]
([ ]).
Itajaí (SC), 10 de junho de 2010
Adriana Maria Gomes de Souza Spengler Orientadora e Presidente da Banca
Msc. Antônio Augusto Lapa Coordenação da Monografia
vi
ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CC/1916 Código Civil Brasileiro de 1916 CC/2002 Código Civil Brasileiro de 2002 CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CP Código Penal Art. Artigo Arts. Artigos CAPUT Cabeça do artigo de lei Nº. Número
vii
ROL DE CATEGORIAS
Rol de categorias1 que a autora considera estratégicas à
compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais2.
Violência de gênero:
Conceito que abrange todas as formas de violência praticadas contra a mulher.
Violência física:
Conduta qualquer que ofenda sua integridade ou saúde corporal.
Violência psicológica:
Qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que
lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou
controlar as ações da mulher, bem como seus comportamentos, crenças e
decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
Violência sexual:
Conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de
relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da
força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua
sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus
direitos sexuais e reprodutivos;
1“Categoria é a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia” In:
PASSOLD, Cesar Luiz. Prática de pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úties para o pesquisador do direito. P. 40.
2“Conceito Operacional [=cop] é uma definição para uma palavra e/ou expressão, com o esejp que
tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos” In: PASSOLD, Cesar Luiz. Prática de pesquisa jurídica: (...), p. 56.
viii
Violência patrimonial:
Conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total dos objetos
da mulher, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e
direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades;
Violência moral:
Qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
ix
SUMÁRIO
RESUMO.. ............................................................................................. XI
INTRODUÇÃO......................................................................................2 CAPÍTULO1........................................................................................05 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRATAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA LEGISLAÇÃO PENAL PÁTRIA.................................... 05 1.1 HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ......................................... 05 1.2 PERÍODO COLONIAL ........................................................................................ 06 1.2.1 O rigor das punições em geral ...................................................................... 06 1.2.2 O tratamento legal da violência doméstica nas Ordenações Filipinas ..... 11 1.3 PERÍODO IMPERIAL ......................................................................................... 14 1.3.1 O Código Criminal do Império ...................................................................... 14 1.3.2 O tratamento legal da violência doméstica no Código Criminal do Império ..................................................................................................................... 15 1.4 PERÍODO REPUBLICANO ................................................................................ 16 1.4.1 O Código Penal de 1890 ................................................................................ 16 1.4.1.1 O tratamento da violência doméstica no Código Penal de 1890............. 17 1.4.2 A Consolidação das Leis Penais .................................................................. 18 1.4.3 O Código Penal de 1940 ................................................................................ 18 1.4.3.1 O tratamento legal da violência doméstica no Código de 1940 .............. 20 1.4.3.2 A reforma da Parte Geral do Código Penal de 1940 ................................. 21 1.5 O JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL ................................................................... 25 1.6 A LEI 10.455/02 .................................................................................................. 29 1.7 A LEI 10.778/03 .................................................................................................. 30 1.8 A LEI 10.886/04 .................................................................................................. 31 1.9 A LEI 11.106/05 .................................................................................................. 33
CAPÍTULO 2 ............................................................................................ 35 AS FORMAS DE VIOLÊNCIA AMPARADAS PELA LEI Nº 11.340/06 ..... 35 2.1 O CASO MARIA DA PENHA .............................................................................. 35 2.2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER ............................................................................................................... 37 2.2.1 Definição de violência de gênero ................................................................. 38 2.2.2 Definição de violência contra a mulher ........................................................ 40 2.2.3 Definição de violência doméstica e familiar ................................................ 42 2.3 SUJEITOS PASSIVOS E ATIVOS NA LEI 11.340/06 ........................................ 44 2.3.1 Sujeitos passivos ........................................................................................... 44 2.3.2 Sujeitos ativos ................................................................................................ 46 2.4 FORMAS DE VIOLÊNCIA .................................................................................. 47 2.4.1 Violência física ............................................................................................... 49 2.4.2 Violência psicológica ..................................................................................... 50
2.4.3 Violência sexual ............................................................................................. 51 2.4.4 Violência patrimonial e as causas de isenção do art. 181 do Código Penal ........................................................................................................................ 53 2.4.5 Violência moral ............................................................................................... 55
CAPÍTULO 3 ............................................................................................ 56
ASPECTOS PROCESSUAIS DESTACADOS DA LEI Nº11.340/06 ......... 56 3.1 BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO INQUÉRITO POLICIAL APLICADO À LEI Nº 11.340/06 ............................................................................... 56 3.1.1 Considerações acerca das ações penais ..................................................... 60 3.2 RENÚNCIA E RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO .................................... 65 3.2.1 Renúncia ......................................................................................................... 65 3.2.2 Retratação da representação ........................................................................ 66 3.3. CONSIDERAÇÕES SOBRE O ART. 16 DA LEI Nº 11.340/06 ......................... 67 3.4 A REPRESENTAÇÃO NO CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE .................. 70 3.5 A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS ................................................. 71 3.6 A APLICAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA ....................................................... 74
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 78 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................... 80
RESUMO
O presente trabalho tem como objeto de estudo, aspectos
materiais e processuais da Lei nº 11.340/06. O seu objetivo é a comprovação de
que a partir da Lei nº 11.340/06 existem garantias processuais que asseguram a
proteção da mulher contra um tipo de violência específica, a doméstica. Iniciou-se
com o estudo e a descrição da violência contra a mulher no Brasil, registrando o
processo de afirmação histórica deste tema, para que, finalmente, fossem
estabelecidas garantias para a proteção da mulher. Posteriormente foi dado
enfoque para as formas de violência contra mulher no ordenamento jurídico
pátrio, reforçando a importância de sua discussão no atual contexto social. Em
seguida apresentou-se os aspectos processuais especialmente aplicados nos
casos de violência contra a mulher. Por fim, analisou-se a questão da aplicação
da prisão preventiva e a sua relação com as medidas protetivas preconizadas
pela Lei nº 11.340/06.
2
INTRODUÇÃO
A presente Monografia tem como objeto discorrer sobre
aspectos destacados da Lei nº 11.340/06.
O seu objetivo é abordar os principais tópicos acerca da Lei
11.340/06, tendo como base de estudo o disposto no art. 5º e incisos da referida
lei, com exceção do resultado morte.
O objetivo institucional desta monografia é a obtenção de
título de Bacharel em Direito, pela Universidade do Vale do Itajaí -UNIVALI.
O objetivo geral á analisar o campo de atuação da Lei nº
11.340/06, tendo como base de estudo o disposto no art. 5º e incisos da referida
lei, com exceção do resultado morte. Seus objetivos específicos são: a) descrever
a evolução histórica da violência contra a mulher no Brasil; b) analisar e pesquisar
acerca das formas de violência contra mulher no ordenamento jurídico pátrio; c)
Destacar e discorrer sobre os aspectos processuais especialmente aplicados nos
casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando da
evolução histórica da violência contra a mulher no ordenamento jurídico – penal
brasileiro, desde o período colonial até os dias atuais no Brasil.
No Capítulo 2, tratar-se-à das formas de violência que a Lei
nº 11.340/06 abrange no contexto jurídico pátrio, bem como das interpretações a
serem destacadas com as inovações contidas de direito material no referido
diploma.
No Capítulo 3, tratar-se-á dos aspectos processuais
destacados na Lei nº 11.340/06, preceituando desde a fase administrativa e suas
atribuições, até os aspectos processuais penais relevantes para a aplicação da
referida lei no tocante à violência doméstica e familiar contra a mulher.
3
O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as
Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos
destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões
acerca da aplicação e das conseqüências materiais e processuais da Lei nº
11.340/06.
Para a presente monografia foram levantadas as seguintes
hipóteses:
A violência contra a mulher é demonstrada na história,
possuindo conseqüências na evolução de regras que preceituam a proteção da
mulher contra qualquer violência.
As formas de violência dependem de uma interpretação
sistemática da Lei 11.340/06, não devendo ser interpretado sozinho o art. 7º do
referido diploma.
Modernamente, a evolução legislativa no âmbito processual
da violência contra a mulher toma novo rumo, eis que procedimento próprio foi
preconizado.
Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase
de Investigação3 foi utilizado o Método Indutivo4, na Fase de Tratamento de
Dados o Método Cartesiano5, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente
Monografia é composto na base lógica Indutiva.
3 “[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente estabelecido[...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 101.
4 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 104.
5 Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE, Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 22-26.
4
Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as
Técnicas do Referente6, da Categoria7, do Conceito Operacional8 e da Pesquisa
Bibliográfica9.
6 “[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 62.
7 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 31.
8 “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 45.
9 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 239.
CAPÍTULO 1
A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRATAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA LEGISLAÇÃO PENAL PÁTRIA
1.1 HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
O avanço da violência doméstica contra a mulher não é fato
da sociedade moderna. Nesse sentido, SALIBA10 considera que “A violência
contra a mulher não é um ponto isolado na história, mas sim fruto de um processo
cultural da sociedade moderna”.
Conforme relata SCHRAIBER11, a violência afeta mulheres
de todas as idades, raças e classes sociais e tem graves repercussões sociais.
Agravos à saúde física e mental, dificuldades no emprego, na aprendizagem,
riscos de prostituição, uso de drogas e outros comportamentos de risco. Nas
populações de várias partes do mundo, e em diferentes culturas, um grande
número de mulheres relata que já foi agredida física, psicológica ou sexualmente,
pelo menos uma vez na vida.
PARODI12 constata que o problema da violência familiar
apresenta-se como um dos pontos cruciais da desestruturação familiar,
comprometendo o futuro da mulher, do marido e dos filhos do casal. Isso sem
considerar os reflexos negativos sobre a sociedade em geral e o Estado como
ente estatal que deveria ser formado apenas por famílias bem estruturadas.
10
SALIBA, Maurício Gonçalves; SALIBA, Marcelo Gonçalves. Violência doméstica e familiar – Crime e castigo: lei nº. 11.340/06./06. Revista Magister do Direito Penal e Processual Penal, n.12, p. 50-52, Porto Alegre, jun./jul.2006.
11 SCHRAIBER, Lilia Blimer; D’ Oliveira, Ana Flávia Lucas Pires. Violência conta mulheres:
interface com a saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação. V3, n.5, 1999. Disponível em: <http://www.interface.org.br/revista5/ensaio1.pdf> Acesso em 21 de novembro de 2009.
12 PARODI, Ana Cecília; GAMA, Ricardo Rodrigues. LEI MARIA DA PENHA – Comentários a Lei
nº. 11.340/2006. ed. Russell, Campinas.2009, 274 p. p. 14-15.
6
O convívio familiar reclama a criação de inúmeras regras
comportamentais, visando sempre facilitar o exercício de direitos e o cumprimento
de obrigações entre os membros da família.
Segundo PARODI13 a composição da família apresenta-se
como determinante na elaboração de tais regras, uma vez que elas são dirigidas
para os membros da família. Primeiramente, destaquem-se as regras vigorantes
entre o marido e a mulher, depois a regulamentação da vida dos filhos, netos,
sogros, genros, noras etc.
Nesse sentido, apesar da complexidade da vida familiar, as
ditas regras não são geradas pelo poder legislativo familiar, mas pelos pais,
teoricamente em conjunto. É comum o pai encarregar-se de ditar as regras,
funcionando como ente legislativo da família, isso sem deixar de lado a mulher
com a construção e imposição de tantas regras específicas.14
1.2 PERÍODO COLONIAL 1.2.1 O rigor nas punições em geral
Como herança de uma colonização religiosa somada aos
costumes da corte portuguesa, o oitocentismo ou modelo patriarcal, estabeleceu-
se desde o Brasil Colônia, no apogeu de um país agrícola e sem contato com a
cultura de seu tempo.15
Caracterizava-se pelo grande agrupamento de membros de
uma mesma célula, envolvendo, inclusive, os empregados, servos e escravos.
Resquício da Roma Antiga, o casamento era uma relação essencialmente
negocial – a despeito do afeto entre nos nubentes, era arranjado pelos
13
PARODI, Ana Cecília; GAMA, Ricardo Rodrigues. LEI MARIA DA PENHA – Comentários a Lei nº. 11.340/2006. p.16.
14 SCHRAIBER, Lilia Blimer; D’ Oliveira, Ana Flávia Lucas Pires. Violência conta mulheres:
interface com a saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação. V3, n.5, 1999. Disponível em: <http://www.interface.org.br/revista5/ensaio1.pdf> Acesso em 21 de novembro de 2009.
15 PARODI, Ana Cecília; GAMA, Ricardo Rodrigues. LEI MARIA DA PENHA – Comentários a Lei
nº. 11.340/2006. p.16.
7
progenitores, em nome de interesses comerciais e de continuísmos
tradicionalistas; as noivas carregavam consigo seus dotes e passavam a
professar a religião do marido, a qual via de regra era a mesma de sua própria
família, relevados os aspectos de afinidade cultural, conforme aborda PARODI16:
Ainda na esteira da herança histórica, o pater familiae – ou pai de
família –, no “legítimo” exercício do poder patriarcal, detinha
direitos literalmente sobre vida e morte de seus subordinados,
podendo determinar todas as escolhas dos integrantes de sua
casa, em sentido amplo. Vivia-se a era da família – Instituição,
estritamente patrimonializada, cujo regramento jurídico fazia
prevalecer a sua preservação a todo e qualquer custo, a exemplo
do tratamento conferidos as empresas.
À época do descobrimento, estavam vigentes em Portugal
as Ordenações Afonsinas, que foram consideradas pelos seus contemporâneos
como um marco fundamental do direito português. Contudo, verifica-se que as
Ordenações Afonsinas não tiveram nenhuma aplicação no Brasil, pois ainda não
havia aqui nenhum núcleo colonizado.17
No ano de 1521, entraram em vigor as ordenações
manuelinas, que tiveram aplicação pouco significativa, tendo em vista que
somente no ano de 1532 foi fundada a primeira cidade – São Vicente. Entre 1534
e 1536, houve a divisão do território em capitanias hereditárias. Confirma
PIERANGELLI18:
As legislações Afonsinas não chegaram a influir no Brasil,
ressalvadas as disposições que foram enxertadas nas
Ordenações Manuelinas. Estas sim, embora fossem escassos os
agrupamentos, todos localizados na faixa litorânea, chegaram a
ter alguma aplicação no período das capitanias hereditárias, [...]
16
PARODI, Ana Cecília; GAMA, Ricardo Rodrigues. LEI MARIA DA PENHA – Comentários a Lei nº. 11.340/2006. p. 63.
17 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral. 4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 201.
18 PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi,
1980, p.7
8
ZAFFARONI19 relata que, em 1603, ano em que foram
promulgadas as Ordenações Filipinas, já havia povoados organizados na colônia,
mas somente em 1609 foi organizada a administração da justiça no território
brasileiro, com a criação da Relação da Bahia. Por essas razões, afirma o autor
que o Direito Penal que efetivamente vigorou no Brasil Colônia foi o Livro V das
Ordenações Filipinas.
Neste sentido, PIERANGELLI20 narra a seqüência das
codificações portuguesas que disciplinaram a matéria penal no Brasil:
As normas penais que vigoraram no Brasil a partir do
Descobrimento estão contidas no Livro V das ordenações do
Reino. Nessa época, estavam vigentes em Portugal as
ordenações Afonsinas, cujo texto foi composto por ordem de Dom
João I, tendo os trabalhos sido concluídos no ano de 1446. A
partir de 1521, passam a viger em Portugal e,
consequentemente, no Brasil, as ordenações Manuelinas, fruto
de um trabalho de revisão que durou 26 anos, por ordem de Dom
Manuel, “o Venturoso”. Em 1603, já sob o reinado de Felipe II,
foram publicadas em Portugal as Ordenações Filipinas, fruto de
uma nova estruturação dos códigos anteriores, a qual iniciará por
ordem de Felipe I. Com a restauração da monarquia Portuguesa,
houve a revalidação destas normas no ano de 1643, por Dom
João VI, as quais permaneceram vigentes até o ano de 1830,
com a promulgação do Código Criminal.
Nesse sentido, MARQUES21 comenta acerca das
conseqüências jurídicas das ordenações Afonsinas e Manuelinas novamente
introduzidas em Portugal, possuindo aplicação direta no Brasil, asseverando:
Foram elas o grande código do Brasil colonial, e persistiram em
parte como lei do Brasil independente em longevidade
impressionante e singular. Se, após a restauração da
independência portuguesa, as Ordenações foram confirmadas
por lei de 29 de janeiro de 1643, de El-Rei D. João VI, no Brasil,
19
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 201.
20 PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi,
1980, p.7
21 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. v.I. Campinas: Millennium, 2002, p. 90.
9
determinava D. Pedro I, em lei de 20 de outubro de 1823, que as
ditas ordenações ficassem “em inteiro vigor na parte em que não
tivessem sido revogadas, para por elas se regularem os negócios
do interior do império”.
Ressalta-se, que os referidos autores, que tratam sobre a
legislação penal no livro V das Ordenações Filipinas referem-se de maneira única
às crueldades, barbáries que eram legitimadas pelo referido diploma à época
aplicado. Nesse sentido, ZAFFARONI22 comenta:
[...] era um misto de despotismo e de beatice, uma legislação
híbrida e feroz, inspirada em falsas idéias religiosas e políticas,
que, [...] confundia o crime com o pecado, e absorvia o individuo
no Estado fazendo dele um instrumento. Ma previsão de conter
os maus pelo terror, a lei não media a pena pela gravidade da
culpa; [...] Assim, a pena capital era aplicada com mão larga;
abundavam as penas infamantes, como o açoite, a marca de
fogo, as galés, e com a mesma severidade com que se punia a
heresia, a blasfêmia, a apostasia e a feitiçaria, eram castigados
os que, sem licença de EL-Rei e dos Prelados, benziam cães e
bichos, e os que penetravam nos mosteiros para tirar freiras e
pernoitar com elas. [...] A este acervo de monstruosidade outras
se cumulavam: a aberrância da pena, o confisco dos bens, a
transmissibilidade da infâmia do crime.
Mas as descrições acerca da rigidez das punições e dos
abusos cometidos ultrapassam os limites legais e da condição da dignidade
humana, relatando MARQUES23:
[...] de todos é sabido o rigor e iniqüidade do livro V das
Ordenações. O legislador ali só teve em vista conter os homens
por meio de terror, [...]. Penas crudelíssimas eram cominadas a
infrações muitas vezes sem maior importância. E o catálogo de
delitos era tão extenso que um rei africano estranhou, ao lhe
serem lidas as Ordenações, que nelas não contivesse pena para
quem andasse descalço.
22
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 201.
23 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. p. 90.
10
Outro aspecto relevante a ser ressaltado é a desigualdade
no tratamento de pessoas perante a lei, na qual configuravam-se privilégios ou
punições conforme a posição social do agente ou da vítima. Nesse sentido, é o
que registra FALCONI24:
[...] o fato criminoso era considerado mais em razão do agente,
ativo e passivo, do que como circunstância de desequilíbrio
social. Assim, quanto mais importante fosse a vitima, maior seria
o risco da pena contra o criminoso. Doutra parte, quanto mais
importante fosse o criminoso, maiores as chances da
impunidade. Havia, até mesmo, condutas que eram “crimes” para
alguns, não sendo para outros.
Nesse viés, DOTTI25 considera acerca das penas desiguais,
de maneira a prevalecer preponderantemente a arbitrariedade na aplicação da
pena, sem mesmo esclarecer qual o fundamento aplicado a determinado caso,
que, por ventura, viesse a embasar o motivo da sanção e do cumprimento da
pena imposta, asseverando:
As Ordenações Filipinas [...] desvendaram durante dois séculos a
face negra do Direito penal. Contra os hereges, apóstatas,
feiticeiros, blasfemos, benzedores de cães e demais bichos, sem
autorização do rei, e muitos outros tipos pitorescos de autores,
eram impostas as mais variadas formas de suplícios com a
execução das penas de morte, de mutilação e da perda da
liberdade, além das mediadas infamantes. Mas, em contraste
com uma tipologia de agentes marcada por ferro em brasa,
existiam as categorias privilegiadas de sujeitos que gozavam de
imunidade ou especial tratamento punitivo: fidalgos, cavalheiros,
desembargadores, escudeiros, etc.
Conforme exposto, observa-se que não era utilizado o
principio da legalidade (nullum crimen nulla poena sine lege) pelos legisladores,
existindo apenas a aplicação da lei para alguns delitos sendo estes chamados de
“pena crime arbitrária”, que era aplicada pelo julgador conforme lhe parecesse
24
FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. São Paulo: Ícone, 2002. p.56.
25 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 2.ed. Rio de Janeiro. Forense, 2005.
p. 182.
11
razoável.26 Assim, era esse o contexto jurídico da época, devendo-se passar para
a verificação da dispensa do tratamento pela lei aos atos violentos praticados
contra a mulher durante o período.
1.2.2 O tratamento legal da violência doméstica nas Ordenações Filipinas.
Encontram-se no livro V das Ordenações Filipinas exemplos
veementes do poder que o homem tinha sobre a mulher, poder este que se
caracterizava pela posse ampla de seu corpo e pela sujeição da mulher ao arbítrio
do pai, do irmão, do marido etc. Desta forma, o homem tinha o direito legitimo
garantido pela lei, de castigar a sua mulher, desde que, para isso, não utilizasse
arma, conforme o Título XXXVI do referido diploma:
Das penas dos que matão, ferem ou tirão ara de corte. [sic]
[...] E estas penas não haverão lugar no que tirar arma, ou ferir
em defensão de seu corpo e vida, nem nos escravos captivos
que, com páo, ou pedra ferirem, nem na pessoa, que for de
menos idade de quinze annos, que sem qualquer arma ferir, ou
matar, ora seja captivo, ora fôrro [...], nem em quem castigar
criado, ou discípulo, ou sua mulher, ou seu filho, ou seu scravo
[...].
Porém, se em castigando ferirem com arma, não serão relevados
das ditas penas. (grifo nosso).
O cometimento de adultério pela mulher dava ao marido o
direito de matá-la, assim como ao adúltero, conforme o título XXXVIII.
Do que matou sua mulher, pola achar em adultério, licitamente
poderá matar assim a ella, como o adultero, salvo se o marido for
peão e o adutero Fidalgo, ou nosso Dezembargador, ou pessoa
de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das
sobreditas pessoas, achando-a como sua mulher em adultério,
não morrerá por isso, mas será degradado para África [...].
E não somente poderá o marido matar a sua mulher e o adultero,
que achar com ella em adultério, mas ainda os póde licitamente
26
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 199.
12
matar, sendo certo que lhe cometerão adultério, per prova licita e
bastante conforme a direito, será livre sem pena alguma [...].
O artigo citado é corolário da desigualdade de tratamento
entre as pessoas, pois conferia flagrante diferença entre peões e fidalgos. E ainda
deixava claro que o marido não precisava constatar a flagrância do “crime”: se
estava autorizado a matar a adultera e o adultero, salvo se este possuísse
qualidade social superior a do marido traído (“Fidalgo, nosso desembargador ou
pessoa de maior qualidade”).
Para PIERANGELLI27 a lei era abrangente ao ponto de
obrigar o homem a matar sua mulher, pelo ato de infidelidade, tendo em vista que
não era permitido ao marido perdoar sua esposa nestas condições, conforme o
titulo XXV, §9:
Do que dorme com mulher casada:
[...] e sendo provado, que algum homem consentio a sua mulher,
que lhe fizesse adultério, serão elle e ella açoutados com senhas
capellas de cornos, e degradados para o Brazil, e o adultero será
degradado para África, sem embargo de o marido lhe querer
perdoar.
O mesmo livro ainda estabelecia diferença exorbitante em
relação ao adultério cometido pelo homem: este seria punido apenas se
possuísse uma amante, não fazendo a lei nenhuma referência em casos de
infidelidade esporádica. E ai além: nestes casos, o homem sofria apenas o
degredo e penas pecuniárias, enquanto à “barregã” eram infligidas penas de
“açoute pela Villa com baraço e pregão”, degrado e penas pecuniárias, conforme
o título XXVIII: Dos barregueiros casados e de suas barregãas.
Em relação à violência sexual, não havia distinção se o
homem “dormisse per força” com a mulher se ela fosse familiar, ou estranha, ou
escrava, ou criada, conforme o Titulo XVIII.
27
PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980, p.42.
13
Ainda, segundo o Titulo XVII [sic], se o homem “dormisse
com parentes ou affins”, ambos seriam condenados à fogueira e “feitos per fogo
em pó”. As penas para esses crimes variavam, conforme grau de parentesco,
desde a fogueira, a “morte natural”, o degredo para África ou Brazil, cada um para
“differentes capitanias” e para Castro Marim, até o “baraço e pregão”, além do
perdimento de bens para a Coroa. A única ressalva para vítima de violência
sexual doméstica era no caso de ela ser menor de treze anos ou se viesse “logo
queixar e descobrir às Justiças”. Nestes casos, seria ela “relevada de todas as
penas, que pelo dito crime poderia merecer”.
Em um contexto social em que a mulher vivia atrelada à
autoridade do pai, do irmão, do marido ou daquele que lhe provesse o sustento,
questiona-se a possibilidade real de a vítima reagir ou negar-se diante do
comportamento do agressor.
Assim, observa-se que a mulher que sofresse abusos
sexuais dentro do ambiente doméstico, além de não ser considerada como vítima,
era elevada a categoria de agente do delito, sofrendo as mesmas penas que o
seu agressor, a menos que, contrariando o poder patriarcal, se expusesse ao
arbítrio da (in) justiça, numa época em que a mulher era “demonizada”, vista
como culpada pelo desejo lascivo do homem, verdadeira encarnação da tentação,
à qual tinha o homem que resistir a qualquer custo.
Acerca da situação social da mulher na Idade média,
Porto28 observa:
Nesta era, a mulher foi muito vitimizada, não apenas pelo homem
– marido, pai e irmãos – como ainda pelas religiões, pois, sobre
sua natureza feminina, tida como o portal dos pecados, muitas
vezes pesaram acusações de bruxaria e hermetismos heréticos
que as levaram a tortura e a fogueira.
O mesmo autor salienta que não obstante a igualdade
pregada por Paulo de Tarso na Epistola aos Gálatas, onde declamava que diante
28
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência domestica e familiar contra a mulher. lei 11.340/06 – analise critica e sistêmica. São Paulo: Livraria do Advogado, 2007. p.14.
14
da comum filiação divina “já não há nem judeu nem grego, nem escravo nem livre,
nem homem nem mulher”, a mensagem cristã não conseguiu combater a
desigualdade, tendo em vista que na sociedade medieval valia o argumento de
que esta igualdade entre homens ocorria no plano sobrenatural, verificando-se
após a morte.
Não foi encontrada, na pesquisa sobre a legislação penal do
período colonial, nenhuma referência aos conceitos “violência de gênero”,
“violência doméstica” e “violência contra a mulher”, em tampouco qualquer
disposição legal que conferisse proteção à mulher em face de qualquer tipo de ato
violento no ambiente doméstico ou em razão de convivência familiar ou afim.
1.3 PERÍODO IMPERIAL 1.3.1 O Código Criminal do Império
O Brasil se tornou independente de Portugal no ano de
1822. Contudo, conforme informa FALCONI, a antiga legislação penal do Império
não foi revogada imediatamente: O artigo 179, §18, da Constituição de 1824,
impôs a organização de “um Código Criminal, fundado nas sólidas bases da
justiça e da equidade”. Conforme se citou anteriormente esta mudança somente
veio a ocorrer em 1830, na data de 16 de dezembro, com a promulgação do
Código Criminal do Império.
Para FALCONI29, o novo diploma penal foi “calcado quase
que exclusivamente nos padrões da Revolução Francesa, que era a grande
coqueluche da época”.
PIERANGELLI30 ainda assinala que o Diploma teve fortes
influências das idéias iluministas e foi considerado uma grande inovação
legislativa, exercendo influência sobre as posteriores codificações penais de
vários países da América Latina.
29
FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. São Paulo: Ícone, 2002. p.56.
30 PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi,
1980, p.7
15
MARQUES31 registra que o estatuto criminal de 1830 “foi,
na América Latina, o primeiro Código Penal independente e autônomo,
efetivamente nacional e próprio; a sua influência sobre a legislação espanhola e,
através desta, sobre a dos países latino-americanos, foi forte e acentuada”.
1.3.2 O tratamento legal da violência doméstica no Código Criminal do Império
Neste diploma, desapareceu a nefasta previsão legal que
permitia ao homem castigar fisicamente a mulher. Com relação ao crime de
adultério, também desapareceu a permissão que era dada ao marido traído de
matar a adúltera e o adúltero. Contudo, continuou a diferenciação: o artigo 250 do
referido Código estabelecia que, para que a mulher sofresse as penas do crime
adultério, bastava que cometesse um episódio de infidelidade isolado, enquanto
ao homem eram aplicadas as penas somente se tivesse “concubina, teúda e
manteúda”. Surgiu, no artigo 16, §6º, uma “circunstância agravante” que podia dar
ensejo à majoração da pena no caso da violência perpetrada contra pessoa que
estivesse sem condições de reagir à altura da agressão: “§6º. Haver no
delinqüente [sic] superioridade em sexo, forças ou armas de maneira que o
offendido não pudesse defender-se com probabilidade de repelir a ofensa”.
No que tange a violência sexual, no caso do crime de
estupro, previsto no artigo 219, a pena era dobrada se aquele que cometesse o
estupro tivesse e seu poder ou guarda a “deflorada”, conforme artigo 220 do
mesmo diploma. Desse modo, verificou nenhuma referência com relação aos
termos “violência de gênero, violência doméstica ou violência contra a mulher”. Os
crimes relacionados a lesão corporal (ferimentos) tinha tratamento genérico.
31
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. p. 96.
16
1.4 PERÍODO REPUBLICANO 1.4.1 O Código Penal de 1890
Com a abolição da escravatura, no ano de 1888, a
legislação penal pátria sofreu diversas alterações, as quais geraram a
necessidade de revisão das normas penais vigentes.
Por ocasião da Proclamação da República, em 1889, foram
interrompidos os trabalhos de revisão já iniciados, sendo retomados por ordem de
Campos Sales, à época Ministro da Justiça do governo provisório; a 11 de
outubro de 1890, foi promulgado o Código Penal Brasileiro, chamado “Código
Penal de 1890”, com vacatio legis de seis meses, comentando MARQUES32 que a
obra recebeu fortes críticas de diversos juristas, tendo sido apresentado à câmara
de Deputados um projeto de reforma já no ano de 1893 (apenas três anos após a
sua promulgação).
Neste sentido, é o que registra FALCONI33:
Foi o pior de tantos outros quantos tenhamos tido, somente tendo
sido aprovado por razões políticas do momento. È que, com o
advento da Proclamação da República, havia necessidade
premente de cambiar o sistema normativo, evitando, assim, que o
movimento republicano se transformasse em um “golpe de
Estado”, que é muito diferente de uma verdadeira revolução, No
primeiro caso, trocam-se os governantes; no segundo, trovam-se
as leis [...] De tão fraco que era, já em 1893 havia em
desenvolvimento o Projeto “Vieira Araújo”.
PIERANGELLI34 lembra que o Diploma, apesar da profunda
desaprovação e das idéias reformistas dos juristas da época, recebeu, aos
poucos, na tentativa de sanarem-se os seus defeitos e lacunas, alterações e
adiantamentos através de leis esparsas , que passaram por uma compilação.
32
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. p .126.
33 FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. São Paulo: Ícone, 2002. p.61.
34 PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. p. 10.
17
Esse corpo de dispositivos passou, já no governo de Getúlio Vargas, a se chamar
Consolidação das Leis Penais.
1.4.1.1 O tratamento da violência doméstica no Código Penal de 1890
No código Penal de 1890, verificou-se que o adultério
continuava a ter o mesmo tratamento dado pela legislação anterior (artigos 279,
280 e 281). Foi mantida, como circunstância agravante, a “superioridade em sexo,
força ou armas”, conforme artigo 39, §5º.
O parágrafo 9º do mesmo artigo trouxe uma inovação, ao
estabelecer como agravante a circunstância de a vítima ser o “ascendente,
descendente, cônjuge, mestre, discípulo, tutelado, amo, doméstico, ou de
qualquer maneira legítimo superior ou inferior do agente”35, indicando,
implicitamente, circunstâncias de relação de convivência doméstica entre vítima e
o agressor. Os crimes de violência carnal (artigos 266, 267 e 268 – atentado
violento ao pudor e estupro) e rapto (artigo 270), tinha suas penas aumentadas se
houvesse entre o agente e a vítima relações familiares ou domésticas.36
Assim, das inovações demonstradas historicamente na
legislação penal em análise, não encontrou-se no corpo de seus dispositivos
nenhuma menção aos vocábulos “violência do gênero”, “violência doméstica” ou,
ainda, “violência contra a mulher”, entretanto, percebe-se claramente a evolução
legislativa desde os primórdios até o tratamento penal da matéria no Código
Penal de 1890, pois o mens legis37 à época objetivava justamente construir uma
proteção jurídica, para a família, incluindo-se nesse contexto a mulher, ainda que
não fosse expresso no texto legal.38
35
PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. p. 273.
36 PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. p. 299 -300.
37 Intenção do legislador.
38 PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. p. 299 -300.
18
1.4.2 A Consolidação das Leis Penais
Entre 1932 e 1940, passou a Vigorar a Consolidação das
Leis penais, que segundo FALCONI39, tratou-se de uma mera união legislativa,
sendo assim, não criando nenhuma inovação para o mundo jurídico da época.
Nesse sentido, salienta o autor:
[...] essa miscelânea que foi a Consolidação da Lei Penal [sic],
que não tinha estrutura de lei, pois era apenas uma obra feita
para pesquisadores, a nível de direito comparado, [...], e não para
aplicação como se lei fosse.
Desse modo, devido à aplicabilidade do referido diploma, e
diante da necessidade de criar mecanismos penais de maior eficácia, criou-se um
Código Penal propriamente dito, vigendo a Consolidação das Leis por apenas oito
anos, sendo, em seguida, substituída pelo Código Penal de 1940.
1.4.3 O Código Penal de 1940
A partir da instauração do Estado Novo, em 1937, começam
os trabalhos de elaboração de um anteprojeto de código penal, o qual foi
sancionado em 1940, tendo entrado em vigor em 1942. O código está em vigor
até hoje. Conforme informa Marques: “as qualidades, no vigente estatuto penal,
superam seus defeitos. [...] é obra que honra nossa cultura jurídica e que já tem
merecido boas referencias e lisonjeiros qualitativos da critica estrangeira”. Nesse
sentido, salienta PIERANGELLI40:
O Código de 1940 possui defeitos, como não poderia deixar de
ocorrer, os quais foram demonstrados durante os seus trinta e
sete anos de aplicação. Verdade, porém, é que constitui obra que
enaltece a cultura jurídica de nosso país e tem merecido
elogiosas referências da crítica estrangeira.
39
FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. São Paulo: Ícone, 2002. p.64.
40 PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. p. 10.
19
Digna de evidencia é a nova estruturação trazida pelo
referido diploma. Segundo Bittencourt41, os códigos anteriores revelavam a
“proeminência do Estado sobre a pessoa”, tendo em vista que na ordem de
disposição dos tipos penais, os crimes contra o Estado ocupavam o início da
Parte Especial. Somente com a promulgação do código de 1940, os crimes
contra a pessoa passavam a ocupar o início do livro, recebendo, assim, a vida, a
merecida proeminência como bem jurídico. Enfim, notadamente, o legislador
passou a considerar o ser humano “como o epicentro do ordenamento jurídico,
atribuindo a pessoa humana posição destacada na tutela que o Direito penal
pretende exercer”.
Acerca da ordem ocupada pelos tipos penais, MIRABETE42
observa que a Parte Especial do atual Código Penal “está sistematizada de
acordo com a natureza do objeto jurídico tutelado pelos tipos penais”. Assim,
passou o bem jurídico vida a ser reconhecido pelo legislador penal como o bem
mais importante a ser tutelado pelo Estado.
No ano de 1969, durante o governo de Jânio Quadros, foi
convertido em lei um novo projeto de código penal, que entraria em vigor em
1970. Contudo, sua vigência foi sendo prorrogada, até ser expressamente
revogada em 1978 pelo governo Geisel.
FALCONI43 comenta os possíveis motivos da não vigência
do estatuto de 1969:
Não chegou a entrar em vigor, pois sofreu o maior “vacatio legis”
de que se tem conhecimento sendo revogado, antes mesmo de
entrar em vigor, em 1977. Tendo sido encomendado em 1963, no
governo Jango, como poderia entrar em vigor nos governos
seguintes.
41
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2003. p.31.
42 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal:parte especial. São Paulo: Atlas, 2005. p.
41.
43 FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. p. 65.
20
O autor faz menção ao fato de que os governos militares
que tomaram o país em 1964 jamais dariam vigência a um diploma penal talhado
segundo uma ideologia política diametralmente oposta aquela que se impôs
durante os anos da ditadura.
Deste modo, a violência contra a mulher foi sofrendo
diferentes tratamentos legais até a promulgação do Código Penal de 1940, o que
será tratado a seguir.
1.4.3.1 O tratamento legal da violência doméstica no Código de 1940
O código trouxe algumas inovações no tratamento aos
crimes que envolvam a mulher, conforme se extrai do item 77 da Exposição de
Motivos do Projeto de Código penal:
O exclusivismo da recíproca posso sexual dos cônjuges é
condição de disciplina, harmonia e continuidade do núcleo
familiar. [...] uma notável inovação contem o projeto: para que se
configure adultério do marido, não é necessário que tenha e
mantenha concubina, bastando, tal como no adultério da mulher,
a simples infidelidade conjugal.
Observa-se, pela primeira vez, o termo relações
domésticas, inserido na Parte Geral, no artigo 44, entre as circunstâncias
agravantes:
Art. 44 – São circunstâncias que sempre agravam a pena,
quando não constituem ou qualificam o crime:
II – ter agente cometido o crime:
g) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade;
O artigo 48 trouxe como circunstâncias atenuantes o
motivo de relevante valor social ou moral e a influência de violenta emoção,
provocada por ato injusto da vítima. E, no crime de homicídio (artigo 121),
21
encontra-se como casos de diminuição de pena expressões semelhantes às
atenuantes acima descritas44:
Art. 121 – Matar alguém: Pena – reclusão, de seis e vinte anos.
Caso de diminuição de pena: §1º - se o agente comete o crime
impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob
domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta
provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a
um terço.
Novamente, no artigo 129 § 4º (crime de lesão corporal),
encontram-se descritas, como causas de diminuição de pena, as circunstâncias
previstas no artigo supracitado.
É corriqueira a aceitação, ainda hoje, em nosso meio
jurídico, da utilização equivocada destas circunstâncias pelos homens (maridos,
namorados, companheiros) como justificava para o cometimento de crimes
(homicídios, lesões corporais etc.) contra suas mulheres, sob as mais diversas
alegações, entre elas a infidelidade.
1.4.3.2 A reforma da Parte Geral do Código Penal de 1940
No ano de 1984, uma substancial modificação foi operada
com a reforma da Parte Geral do Código Penal de 1940, através da Lei nº. 7.209,
de 11 de julho de 1984, a qual subsiste até hoje. Contudo, não foi observada
nenhuma modificação que contemplasse inserção dos termos “violência de
gênero”, “violência doméstica” ou “violência contra a mulher” na descrição de um
tipo penal que viesse a dar proteção específica à mulher vítima de violência
doméstica.
Isso apesar de, desde a década de 70, conforme observa
SABADELL45, os movimentos feministas buscarem a conscientização dos
44
MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal:parte especial. São Paulo: Atlas, 2005. p. 32.
45 SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos
fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2005.
22
diversos setores da sociedade, a fim de erradicar a violência doméstica contra a
mulher. Esses movimentos consideravam que a violência doméstica, apesar de
ocorrer no âmbito privado, é um problema social; por isso, passaram a reivindicar
o seu tratamento político, exigindo uma atuação efetiva do poder público:
As feministas indicaram que a violência doméstica, apesar se
ocorrer no âmbito privado, é um problema social geral, e
reivindicaram sua politização, considerando-a como problema
público (o privado é político), revelando, desde modo, “a violência
da privacidade”, que reproduz a subordinação das mulheres, e
observando que a “retórica da privacidade permite mascarar a
desigualdade e a subordinação”.
A referida autora informa que o debate sobre o tema
enfrentou resistência até por parte de alguns grupos feministas, que preferiam
tratar de todas as formas de violência decorrentes do patriarcado, numa analise
mais abrangente sobre os “sutis e difusos mecanismos de dominação masculina”,
sob a alegação de que “a violência física, salvo o caso de estupro, não constituía
um problema central para as mulheres”. Contudo, como observa, que “não
obstante o desinteresse inicial e uma certa resistência ao tema, a problemática da
violência domestica adquiriu visibilidade particular por meio da pratica política dos
movimentos de mulheres que eclodiram neste período”.46
Desses debates resultou um conceito de violência
doméstica tendente a ser ampliado, que passou a considerar, além da violência
física, a violência emocional e psíquica. A autora observa que:
No fim da década de 80, ampliou-se a discussão sobre violência
doméstica, com a introdução do tema na esfera do direito interno
e do direito internacional. [...] Por detrás da [...] eleição do termo
ampliar, oculta-se um árduo debate sobre a construção do
conceito de violência doméstica.
As diversas conceituações propostas muitas vezes
estenderam demasiadamente o conceito, dando margem a interpretações
46
SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2005.
23
errôneas e tendentes à manutenção da impunidade, pois dificultam ao legislador
definir as condutas a serem criminalizadas. Segundo SABADELL47:
[...] a tendência à ampliação do conceito levou à inclusão de
todas as formas de violência que pode ocorrer no âmbito das
relações familiares, encontrando-se, nos anos de 1990, autores
que propunham abarcar ao conceito as agressões entre vizinhos
e amigos.
Em 1985 surgiu no Estado de São Paulo a primeira
delegacia da Mulher a passarem a funcionar as primeiras casas de abrigo para
vítimas de violência doméstica. A seguir, com a promulgação da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, o ordenamento jurídico brasileiro passou
a considerar a violência doméstica como um problema a ser tutelado pelo Estado,
conforme previsto no artigo 226, § 8º48 da Carta Magna. Apesar deste avanço, a
legislação penal não foi modificada de maneira imediata, continuando a demanda
a ser ignorada pelo legislador, conforme observa SABADELL49:
A análise feminista desvendou que os princípios constitucionais
que estruturaram e legitimam o discurso jurídico carecem de
eficácia social, visto que, em todos os níveis da atividade jurídica
(legislação, dogmática, aplicação do direito), podem ser
identificados elementos que reproduzem a discriminação da
mulher, o que contraria as promessas de liberdade e igualdade.
47
SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2005.
48 Art.226. A família, base da sociedade tem especial proteção do
Estado.
§ 8º - O Estado assegurará a assistência á família na pessoa de
cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações.
49 SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos
fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2005.
24
CONTI50, ao propor a adoção de uma lei específica para a
violência doméstica, confirma o descaso em relação ao mandamento
constitucional:
Estas normas não estão sendo efetivamente cumpridas. A
legislação brasileira vigente não prevê tratamento específico para
os casos de violência doméstica. Estas causas vão para a “vala
comum” dos crimes em geral, recebendo o mesmo tratamento
dispensado para os demais ilícitos penais.
Em 1994, o Brasil assinou a convenção de Belém do Pará,
tendo feito o depósito de ratificação em novembro de 1995. O instrumento
reconheceu em seu preâmbulo que a violência contra a mulher constitui violação
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das mulheres. E estabeleceu
aos Estados signatários deveres constantes no art. 7º e seguintes do referido
diploma, assumindo os mesmos responsabilidades na criação de medidas
próprias que venham a proteger a mulher de qualquer tipo de violência.
Destaca-se também no texto da Convenção, a previsão de
pessoa ou entidade não governamental apresentar denúncia ou queixa acerca de
violação cometida por um Estado Parte:
Artigo 12. Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou qualquer
entidade não-governamental juridicamente reconhecida em um
ou mais Estados membros da Organização, poderá apresentar à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos petições
referentes a denúncias ou queixas de violação no artigo 7 desta
Convenção por um Estado Parte, devendo a comissão considerar
tais petições de acordo com as normas e procedimentos
estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos
e no Estatuto e Regulamento da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, para a apresentação e consideração de
petições.
Apesar de o Brasil ter se comprometido internacionalmente
através deste instrumento, não se articulou uma resposta adequada ao problema
da violência doméstica e familiar contra a mulher. A Lei 9.099/95, que instituiu os
50
CONTI, José Mauricio. Violência domestica. Proposta para elaboração de lei própria e criação de varas especializadas. Jus Navigandi. Teresina, ano 6, n 56, mar. 2002. Disponível em: <http:// jus2.uol.com,Br/doutrina/texto.asp?id=2785>. Acesso em 21 de nov. de 2009.
25
Juizados Especiais Civis e Criminais, poderia ter sido um instrumento jurídico
eficaz, mas não logrou êxito na prática, como se verá adiante.
1.5 O JUÍZADO ESPECIAL CRIMINAL
Após a entrada em vigor Lei Federal 9.099/95, ficou
estabelecido a competência da União a aos Estados criarem por lei, os Juizados
especiais Cíveis e Criminais no Distrito Federal, Territórios e Estados. Isso ocorre
do art. 98, I, da Constituição Federal, e também dos arts. 1º, 93 e 95 da Lei
9.099/95.
Daí, portanto se conclui pela obrigatoriedade da edição da
Lei Estadual para sua criação. Nesse sentido, MIRABETE51 enfatiza que:
Cabe aos Estados a criação dos Juizados Especiais Criminais
com competência para processar e julgar as infrações penais de
menor potencial ofensivo. De acordo com o art. 24, XI, da
Constituição Federal, pode a lei Estadual dispor,
concorrentemente com a União, sobre procedimentos em matéria
processual, ou seja, desdobrar os princípios ou diretrizes inscritas
na Lei 9.099/95. Assim, por exemplo, poderá criar medidas
judiciais expeditas, estabelecer formas de realização de
intimações (art. 67), prever os requisitos do termo
circunstanciado, estabelecer número máximo de testemunhas a
serem ouvidas e tempo para alegações na audiência de instrução
e julgamento.
No ano de 1995 (mais de um ano após a assinatura da
Convenção de Belém do Pará), entrou em vigor a Lei 9.099/05. O diploma
inaugurou o conceito de delito de menor potencial ofensivo, assim considerando
os crimes sancionados com pena privativa de liberdade não superior a dois anos.
Desta forma, os crimes de lesão corporal leve em geral passaram a ser tratados
como delitos de menor potencial ofensivo, dando ensejo a aplicação de normas
51
MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2005. p. 57.
26
processuais penais, procedimentais e relativas à execução da pena diferenciadas.
Um dos objetivos da Lei 9.099/05, segundo SABADELL52, é:
[...] oferecer melhores soluções aos conflitos sociais causados
pela pratica delitiva, prevendo o emprego de procedimentos mais
ágeis para os crimes definidos como de menor potencial ofensivo.
Dentre estes procedimentos, destaca-se a possibilidade de
conciliação entre vítima e agressor (transação penal) e,
finalmente, a suspensão condicional do processo, desvinculando-
se, assim, da aplicação da pena privativa de liberdade.
A criação de juízos especiais conforme relata DIAS53 para
julgamento de delitos menores foi determinada pela Constituição Federal. A Lei
dos Juizados Especiais veio dar efetividade ao comando constitucional e
significou verdadeira revolução no sistema processual penal brasileiro. A criação
de medidas despenalizadoras, a adoção de um rito sumaríssimo, a possibilidade
de aplicação da pena mesmo antes do oferecimento da acusação e sem
discussão da culpabilidade , agilizaram o julgamento dos crimes considerados de
pequeno potencial ofensivo. Com isso a justiça desafogou-se, ganhou celeridade
e diminuiu a ocorrência de prescrição, emprestando maior credibilidade ao Poder
Judiciário.
Tendo em vista que o requisito para o enquadramento do
delito na Lei 9.099/95 é a pena privativa de liberdade cominada ao delito não ser
superior a dois anos, os crimes de lesão corporal em geral passarem a ser
processados e julgados nos juizados especiais criminais, inclusive aqueles
praticados com violência contra a mulher no ambiente doméstico. Por absoluta
falta de previsão legal especificada para esses casos, as normas
52
SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2005.
53 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. 2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 160 p. p. 16.
27
“despenalizadoras” previstas pelo diploma passarem a reger a maior parte destes
conflitos, ainda que inadequadamente, conforme aduz SABADELL54:
No que se refere à problemática das mulheres, uma parte
significativa dos casos atendidos pelas delegacias da mulher
referem-se aos crimes de lesão corporal leve e ameaça,
castigados com penas inferiores a dois anos, o que leva
aplicação da Lei 9.099/95.
CAMPOS55 constata a absoluta incompatibilidade entre a
Lei 9.099/95 e a referida Convenção no tocante a violência contra a mulher:
[...] a Lei 9.099/95 está em completa dissonância com os
instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos
das mulheres, em especial com a Convenção de Belém do Pará,
notadamente pela ausência de medidas que garantam sua
integridade física e emocional. [...] não compreendeu a natureza
diferenciada da violência doméstica. Essa (in)compreensão
jurídica tem como conseqüência a banalidade da violência de
gênero.
SABADELL56 observa que a Lei 9.099/95 sofreu críticas
desde o início de sua vigência e que as pesquisas acerca da efetividade da norma
revelavam contradições dignas de nota:
[...] primeiro, a falta de eficácia das normas penais em caso de
violência doméstica com a interrupção do processo ainda em sua
fase preliminar [...], algo que é considerado, por muitas
feministas, como indicativo da banalização do conflito. Segundo,
o aumento expressivo de denúncias de violência doméstica nas
delegacias da mulher a partir da entrada dessa norma em vigor.
54
SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2005.
55 CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Violência domestica e juizados especiais
criminais: análise desde o feminismo e o garantismo. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, n. 19, p.53 a 65, jul/set. 2005.
56 SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos
fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2005.
28
CONTI57 ressalta as mesmas contradições, ao afirmar que a
Lei 9.099/95 acabou gerando efeitos positivos e também negativos. Entre os
efeitos positivos, destaca-se:
[...] a possibilidade de realização de acordos que evitaram a
punição do agressor, o que permite sua recuperação sem se
sujeitar as penas severas, como a privação da liberdade, que
muitas vezes acabava por prejudicar a própria família do
agressor, aumentava a litigiosidade entre as partes e dificultava
uma desejável reconciliação e recuperação no infrator”.
E em seguida, observa a falta de efetividade da referida lei
nos casos em que havia a necessidade de ma atuação mais rígida do Estado:
[...] este diploma legal, na tentativa de dar maior agilidade e
eficiência a Justiça, [...], ao mesmo tempo que produziu os
resultados esperados em várias situações, gerou efeitos
colaterais perversos. O agressor passou a se beneficiar de uma
legislação mais tolerante e, com isto, viu-se aumentar a
dificuldade para puni-lo com severidade e afastá-lo do convívio
familiar, em casos nos quais esta seria a solução adequada.
SOUZA58, por sua vez, comenta a acerca da falta de
efetividade da referida lei, observando:
A Lei 9.099/95, [...], imbuída das melhores intenções do legislador
naquele momento, teve o sentido de agilizar a atuação judicial,
reduzir conflitos judicializados, estimular as composições
amigáveis e aliviar o sistema penitenciário, mas acabou por se
revelar um instrumento de impunidade nos caos de violência
doméstica [...].
CAMPOS59, também critica a aplicação da Lei 9.099/95 aos
casos de violência contra a mulher:
57
CONTI, José Mauricio. Violência domestica. Proposta para elaboração de lei própria e criação de varas especializadas. Jus Navigandi. Teresina, ano 6, n 56, mar. 2002. Disponível em: <http:// jus2.uol.com,Br/doutrina/texto.asp?id=2785>. Acesso em 21 de nov. de 2009.
58 SOUZA, Sergio Ricardo de. Comentários à Lei de Combate à Violência Contra a Mulher: lei
Maria da Penha 11.340/2006. Curitiba: Juruá, 2007. p. 14.
59 CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Violência domestica e juizados especiais
criminais: analise desde o feminismo e o garantismo. Revista de Estudos Criminais.
29
A lei como de menor potencial ofensivo os crimes cuja pena
máxima não ultrapasse dois anos. Assim, potencialidade da
ofensa é medida pela quantidade de pena cominada. O critério
adotado pela lei desrespeita a valoração normativa do bem
jurídico tutelado e, se aplicada indistintamente aos casos de
violência conjugal, implica a negação da tutela jurídica os direitos
fundamentais das mulheres.
Em seguida, observa que a categoria “não incorpora o
comprometimento emocional e psicológico e os danos morais advindos de relação
marcada pela habitualidade de violência” e conclui como “pejorativa” a adjetivação
da violência doméstica como crime de menor potencial ofensivo:
[...] ao não ser utilizado o critério do bem jurídico [...], para definir
quais seriam os crimes de menor potencial ofensivo, [...] foram
criadas situações absolutamente paradoxais, como é o caso de
adjetivar a maioria doa casos de violência doméstica como
“crimes menores”.
Verifica-se que a Lei dos Juizados Especiais foi duramente
criticada pelos aplicadores do Direito em relação à sua limitação em resolver a
violência doméstica, pois abordou de forma indistinta situações totalmente
específicas. A Lei 10.455/02 trouxe uma tentativa de dar um tratamento
processual mais adequado aos casos que envolviam violência doméstica, como
se trata a lume a seguir.
1.6 A LEI 10.455/02
Em maio 2002, foi sancionado pelo Presidente da República
o Projeto de Lei nº. 76, de 2001, convertido na Lei 10.455/02, foi acrescentado ao
parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.099/95 a previsão de uma medida cautelar
da natureza penal que previa o afastamento do agressor do lar conjugal na
hipótese de violência doméstica:
Artigo 1º. O parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.099, de 26 de
setembro de 1995, passa a vigorar com a seguinte redação:
Artigo 69 ...............................................................................
30
Parágrafo único. “Ao autor do fato, após a lavratura do termo, for
imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o
compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em
flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica,
o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu
afastamento do lar, domicilio ou local de convivência com a
vítima”.
SABADELL60 identifica a Lei 10.455/02 como sinal de que o
legislador foi “paulatinamente ocupando-se com a questão da violência
doméstica”. Todavia, a autora questiona a utilidade do texto legal, ao afirmar:
“Ora, a lei não definiu o que se entendia por violência doméstica, dificultando a
aplicação do referido artigo”.
1.7 A LEI 10.778/03
Somente em 2003, a partir da entrada em vigor da Lei
10.778, há no ordenamento jurídico brasileiro a primeira referência ao conceito de
violência contra a mulher, derivado da Convenção Interamericana para prevenir,
punir e erradicar a violência contra a mulher, ratificada pelo Brasil em 1995,
conforme exposto anteriormente. Além da conceituação, o diploma trouxe em seu
bojo a obrigatoriedade da notificação compulsória dos casos de violência
doméstica atendidos na rede de serviços de saúde, prevendo, dentre outros
preceitos previstos nos parágrafos 1º a 3º do art. 1º, que a Constituição de “objeto
de notificação compulsória, em todo o território nacional, a violência contra a
mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados”.
Apesar do grande avanço no tocante à conceituação, o
diploma comporta deficiência, como alerta Sabadell61 abordando que “ é
necessário destacar falta de concretude dessa definição, pois ela não esclarece o
termo (gênero)”.A autora observa, ainda, que “a norma adota um conceito muito
amplo ao referir-se a violência contra a mulher causada em razão do gênero”,
esclarecendo:
60
SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2005. 61
SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2005.
31
Ocorre que o legislador nacional recebeu influência da legislação
internacional e acabou iniciando nos mesmos erros do legislador
internacional.[...]
Examinando a definição dada pela Convenção interamericana
para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher de
1994, [...]m verificamos que a referida definição do legislador
pátrio [...] é praticamente idêntica aquela usada pela Convenção
[...]
A imitação do legislador internacional chega ao ponto de a
Lei 10.455/02 se referir a “violação”, apesar da inexistência de tal crime na
legislação brasileira.
A autora observa, ainda, que se trata de um “empréstimo
jurídico”, pois houve assimilação voluntária de normas de direito internacional,
costume que, na sua visão, acarreta imperfeições no texto legal, pois não se
atende a “necessidade de adaptação ao contexto nacional”. Assim, a referida Lei
“não estabeleceu o conceito de violência doméstica, de forma a suprir a lacuna
criada pela Lei 10.455/02”.
1.8 A LEI 10.886/04
Em 2004, com a edição da Lei 10.886, houve uma
modificação no artigo 129 do Código Penal, que passou a prever uma pena
mínima aumentada de 3 para 6 meses, no caso de lesão corporal leve decorrente
de violência doméstica. Além disso, o legislador apresentou um novo tipo penal,
denominado expressamente “violência doméstica”, in verbis:
Artigo 1º. O artigo 129 do Decreto Lei nº. 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 – Código Penal passa a vigorar acrescido dos
seguintes parágrafos 9º e 10º:
Artigo 129 – Violência Doméstica:
§ 9º. Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente,
irmão cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha
convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção,
de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.
32
§ 10º. Nos casos previstos nos parágrafos 1º a 3º deste artigo, se
as circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo, aumenta-
se a pena em 1/3 (um terço). (NR)
JESUS62 aduz que, apesar de ter o legislador aumentado a
pena mínima cominada para 6 (seis) meses de detenção, em nada alterou a
situação a violência doméstica, tendo em vista que o insignificante aumento de
pena em nada modificou de fato o destino dos agressores:
[...] uma vez que o fato, por exemplo, de o marido agredir a
esposa, ferindo-a, continua a ser tratado da mesma maneira. Em
face disto, ficou integralmente frustrado o objetivo da lei [...],
desejava tornar mais séria a prática de violência contra a mulher.
[...] Não houve, pois, mudança de relevo [...] a modificação
legislativa foi praticamente inócua, tornando-se urgente a
atualização da Lei 10.886/2004. [...] Enquanto isto, nossas
mulheres continuam apanhando impunemente de seus maridos.
Assim, na mesma esteira das legislações antecedentes, a
Lei 10.886/2004 vem eivada de imperfeições, tendo em vista que o texto não mais
prevê a violência doméstica sofrida exclusivamente pela mulher, conforme explica
SABADELL63:
[...] aceitando-se que se trate de uma definição, devemos dizer
que se refere às pessoas que, por manter um vinculo especial
com a vítima, ao praticarem violência física incidem no referido
tipo pena. Entretanto, esse vínculo não se limita a situação de
(atual ou anterior) matrimônio, união estável, ou namoro entre a
vítima e o agressor. As expressões empregadas no § 9º
permitem concluir que, para o legislador brasileiro, o marido que
agride a mulher comete exatamente o mesmo delito que a mulher
que, por exemplo, após uma discussão agride a esposa do primo
de seu marido que esta hospedada em sua casa, já que nesse
caso existe uma relação de hospitalidade.
62
JESUS, Damásio de. Violência contra a mulher. Revista IOB Direito Penal e Processual Penal, São Paulo, n. 37,, p. 35-36, abr/maio 2006.
63 SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos
fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2009.
33
Assevera a autora que “apesar de seus defeitos a Lei
10.778/2003 mantinha referência a questão de gênero, vínculo este que foi
rompido com a Lei 10.886/2004”, abrindo margem para questionamentos no
tocante à definição de violência apresentada nesta ultima Lei e a Convenção de
OEA de 1994, ratificada pelo Brasil.64
Acerca dessa incompatibilidade, ALVES65 observa que a Lei
10.886/04, ao manter os crimes de lesão corporal leve praticados com violência
doméstica entre os crimes de menor potencial ofensivo previsto na Lei 9.099/95,
“formalizou, na verdade uma contradição legislativa perante os compromissos
internacionais assumidos [...]”, pois [...] não de poderia admitir um crime de menor
potencial ofensivo que fosse também uma violação dos direitos humanos
internacionalmente protegidos”.
1.9 A LEI 11.106/05
Com a promulgação da Lei 11.106/05, diversas alterações
foram operadas no Código Penal, todas elas envolvendo a questão de gênero.
Destacando-se:
A inclusão da companheira como sujeito passivo do crime
de seqüestro e cárcere privado qualificado. Com a alteração trazida pela Lei
11.106/05, foi acrescentado o substantivo companheiro ao lado de cônjuge.
Segundo Volpe Filho, essa alteração veio a se alinhar com a matéria introduzida
pela Constituição da República de 1988 e pelo Legislador Ordinário, quando da
promulgação do novo Código Civil, que já previam a situação da união estável
como análoga ao casamento; antes da vigência dessa lei, não se podia qualificar
a conduta do crime de seqüestro e cárcere privado se a vítima era apenas
companheira do agressor.
64
SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas de violência domestica: efetiva tutela de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 840, p. 429-456, out. 2009.
65 ALVES, Fabrício Mota. Lei Maria da Penha: das discussões à provação de uma proposta
concreta de combate à violência e familiar contra a mulher. Jus Navigandi. Teresina, ano 10, n. 1133, 8 de agosto de 2006 em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8764. Acesso em: 22 nov 2009.
34
A revogação total do artigo 216 no qual previa o crime de
atentado violento ao pudor mediante fraude e o artigo 240, onde era previsto o
crime de adultério, esse crime estava em desuso no meio jurídico. Assim, a
situação jurídica do adultério passou a ser regulada somente pelo Direito Civil.
Extrai-se, como destaque dessa fase que se iniciou com a
promulgação da CRFB e terminou com edição da Lei 11.106/05, que o legislador
foi se preocupando paulatinamente em atender o clamor social, inserindo em
nosso ordenamento jurídico modificações que atingissem eficazmente o mal da
violência doméstica. Assim, foram, aos poucos, sendo introduzidos no meio
jurídico os conceitos de violência contra a mulher, violência doméstica, violência
de gênero e passaram a ser observada as questões relativas a igualdade dos
sexos, traduzindo-se esta postura em adoção de ações afirmativas, os quais,
permitindo uma discriminação positiva, que objetivam remediar as desvantagens
históricas, conseqüências de um passado marcado pela discriminação.66
Apesar das inovações trazidas, não houve uma resposta
eficaz ao problema da mulher que sofria, no âmbito das relações familiares e de
afeto, a violência praticada por aqueles que deveriam protegê-las. A Lei nº
11.340/06 (Lei Maria da Penha), promulgada em 07 de agosto de 2006, veio
suprir essa lacuna, disciplinando material e processualmente a questão, a qual
será tratada no próximo capítulo.
66
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. 2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 160 p. p. 16.
35
CAPÍTULO 2
AS FORMAS DE VIOLÊNCIA AMPARADAS PELA LEI 11.340/06
A Lei 11.340/06 foi denominada “Lei Maria da Penha” em
homenagem a uma vítima de violência doméstica, a qual não se intimidou diante
das agressões sofridas e resolveu buscar justiça. Este capítulo se destina à
análise desta Lei: sua origem, conceitos relacionados e discussões doutrinárias
acerca dos sujeitos passivos e ativos, do âmbito espacial de abrangência, das
relações entre vítima e agressores e das formas de violência coibidas.
2.1 O CASO MARIA DA PENHA O motivo que levou a lei a ser “batizada” com esse nome, pelo
qual, irreversivelmente, passou a ser conhecida, remota ao ano de 1983. No dia
29 de maio deste ano, na cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará, a
farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, enquanto dormia, foi atingida por
tiro de espingarda desferido por seu então marido. Em razão deste tiro, que
atingiu a vítima em sua coluna, destruindo a terceira e a quarta vértebras,
suportou lesões que deixaram-na paraplégica.67
Apesar do fato trágico, as agressões não se limitaram ao dia
29 de maio de 1983. Passada pouco mais de uma semana, quando já retornara
para sua casa, a vítima sofreu novo ataque do marido. Desta feita, quando se
banhava, recebeu uma descarga elétrica.68
Embora negasse a autoria do primeiro ataque, pretendendo
simular a ocorrência de um assalto à casa onde moravam, as provas obtidas no
67
CUNHA, Rogério Sanches. PITNO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 272 pgs. p. 21-23.
68 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. p. 13.
36
inquérito policial o incriminavam e se revelavam suficientes para embasar a
denúncia, ofertada pelo Ministério Público, no dia 28 de setembro de 1984,
perante a 1ª Vara Criminal de Fortaleza.69
O réu foi então pronunciado em 31 de outubro de 1986, sendo
levado a júri em 4 de maio de 1991, quando foi condenado. Contra essa decisão
apelou a defesa, suscitando nulidade decorrente de falha na elaboração dos
quesitos. Acolhido o recurso, foi o réu submetido a novo julgamento, no dia 15 de
março de 1996, quando restou condenado a pena de dez anos e seis meses de
prisão. Seguiu-se novo apelo deste último julgamento, bem como recursos
dirigidos aos tribunais superiores; certo que, apenas em setembro de 2002,
passados, portanto 19 anos da pratica do crime, foi seu autor finalmente preso.70
Segundos dados obtidos em reportagem, publicada pela
internet que trata do progresso das mulheres no Brasil. Esta reportagem relata o
caso “Maria da Penha” expondo sobre a condenação de seu marido, autor da
tentativa de homicídio contra Maria da Penha Maia Fernandes. Dispõe sobre a
condenação do réu a pena de 10 anos, na qual não cumpriu 1/3 em regime
fechado. Preso em setembro de 2002, foi posto em regime aberto, retornando
para o Estado do Rio Grande do Norte.71
É de se lembrar que a época em que foi perpetrado o crime,
no ano de 1983, ainda não entrada em vigor a Lei 8.930/94 (etiquetando o
homicídio qualificado como hediondo), o que permitiu a progressão de regime ao
condenado.
Mais adiante, aborda Dias acerca da repercussão
internacional da Lei 11.340/06:
69
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 13.
70 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. p. 13.
71 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. p. 13.
37
Essa é a história de Maria da Penha. A repercussão foi de tal
ordem que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL
e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos
Direitos da Mulher-CLADEM formalizaram denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos. Apesar de, por quatro vezes, a Comissão
ter solicitado informações ao governo brasileiro, nunca recebeu
nenhuma resposta. O Brasil foi condenado internacionalmente
em 2001. O relatório da OEA, além de impor o pagamento de
indenização no valor de 20 mil dólares em favor de Maria da
Penha, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e
omissão em relação a violência doméstica, recomendando a
adoção de várias medidas, entre elas “simplificar os
procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o
tempo processual”.
Por fim, a autora72 aborda que devido à forte pressão exercida
por parte da OEA (Organização dos Estados Americanos), o Brasil cumpriu as
convenções e tratados internacionais do qual é signatário, motivo pelo qual
referenciou-se na ementa da Lei Maria da Penha à Convenção a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e à Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher.73
2.2 VIOLÊNCIA DE GENÊRO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Os conceitos de violência de gênero, violência doméstica e
violência contra a mulher estão vinculadas entre si, mas se diferenciam em razão
de seu âmbito, explicando Souza74 que a violência de gênero é um conceito que
abrange na totalidade as formas de violência praticadas contra a mulher,” não só
no âmbito familiar, mais também no social e trabalhista. Assim, a violência
doméstica e violência contra a mulher seriam espécies de violência do gênero”.
72
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 14.
73 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. p. 14.
74 SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate à Violência Contra a Mulher.
P.35.
38
2.2.1 Definição de violência de gênero
Para que se possa elucidar o conceito de violência de gênero,
é necessário que se conceitue o termo gênero, nesse sentido SILVA JÚNIOR75
observa que o conceito é extrajurídico devendo ser buscado fora do direito penal.
Heilborn, citado por Silva Júnior, define gênero como “um conceito das ciências
sociais que se refere a construção social do sexo, distinguindo a dimensão
biológica da social. Ou seja, o individuo nasce macho ou fêmea, mas assume o
papel de homem ou mulher em razão da cultura. Assim, o autor conclui que “[...]
conduta baseada no gênero é aquela que decorre das relações entre mulheres e
homens em um sistema simbolicamente concateado”.
Nesse mesmo sentido, aborda SILVA76 que a categoria
gênero tem sido utilizada tradicionalmente como sinônimo de sexo, remetendo ao
fator biológico de ser macho ou fêmea. Todavia, verifica-se que atualmente “a
utilização do termo visa a referência às diferenças socialmente impostas aos
homens e mulheres, que os fazem assumir funções e papéis nas relações sociais
ditas masculinas e femininas”.Mais adiante, o referido autor conclui que Gênero é
um conceito em que se analisa “a relação entre a subordinação das mulheres e a
mudança social e política”, possuindo, o referido termo, um significado social e
político historicamente atribuído ao seu sexo, sendo que “o processo de fazer
homens e mulheres é tão historicamente e culturalmente variável;
consequentemente, pode ser potencialmente modificado através da luta política e
das políticas públicas”. Diante disso, SOUZA77 define a violência baseada no
gênero como:
[...] forma mais extensa e se generalizou como uma expressão
utilizada para fazer referência aos diversos atos praticados contra
as mulheres como forma de submetê-las a sofrimento físico,
sexual e psicológico, ai incluídas as diversas formas de ameaças,
não só no âmbito intrafamiliar, mas também abrangendo a sua
75 SILVA JÚNIOR, Edison Miguel da. Lei 11.340/06: Violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi. Data de acesso: 24/04/2010.
76 SILVA, Marlise Vinagre. Violência contra a mulher. p 20. 77
SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate à Violência Contra a Mulher. p. 27.
39
participação social em geral, com ênfase para as suas relações
de trabalho, caracterizando-se principalmente pela imposição ou
pretensão de imposição de uma subordinação e controle do
gênero masculino sobre o feminino, criada e alimentada a partir
da instituição de esteriótipos aplicáveis a cada gênero, em um
modelo típico de subordinação do gênero feminino ao masculino.
Entende-se, assim, que a violência de gênero, nada mais é
que o resultado das relações sociais que justificam a dominação do homem sobre
a mulher. A conscientização política e social são fundamentais pra trazer
modificações a esse quadro de desigualdade. No mesmo sentido, define SILVA
JÚNIOR78 que a “violência baseada no gênero é aquela praticada pelo homem
contra a mulher”, revelando concepção dominação social pelo homem, propiciada
por relações sexualmente desiguais, “nas quais o masculino define sua identidade
social como superior à feminina, estabelecendo uma relação de poder e
submissão que chega mesmo ao domínio do corpo da mulher”.
Diante da amplitude do referido conceito, convém ressaltar o
Art. 5o, da Lei 11.340/0679, prelecionando que “configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial [...]”.
Nesse sentido, DIAS80 conclui que a Lei ter por objetivo
definir, em seu art 5º, o que vem a ser a violência de gênero, ou seja, qualquer
ação ou omissão em si baseado, tendo as posteriores conseqüências previstas no
próprio dispositivo, estabelecendo, a seguir, em seus incisos seu “campo de
abrangência”. Entretanto, para que se configure tal previsão é necessário haver
78
SILVA JÚNIOR, Edison Miguel da. Lei 11.340/06: Violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi. Data de acesso: 24/04/2010.
79 BRASIL. Congresso Nacional. Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006 - Diário Oficial da União de Novembro de 2002. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8
o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. 80
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 40.
40
“ação ou omissão na unidade doméstica ou familiar ou em razão de qualquer
relação íntima de afeto do agressor convívio com a vitima, independentemente de
coabitação”.
2.2.2 Definição de violência contra a mulher A violência contra a mulher traduz-se por todas as
formas de violência que tem como sujeito passivo a mulher, não só no âmbito das
relações familiares, mas também na sociedade em geral.81
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência Doméstica, de 1994 – Convenção de Belém do Pará – em
seu artigo 1º, define violência contra a mulher como: [...] qualquer ato ou conduta
baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.82
Nesse viés, DIAS83 comenta acerca da interpretação
conjunta do art. 5º e do art. 7º da Lei nº 11.340/06, preceituando:
De qualquer modo, para se chegar ao conceito de violência
doméstica é necessária a conjugação dos art. 5º e 7º da Lei
Maria da Penha. Deter-se somente no art. 5º é insuficiente, pois
são vagas as expressões: “qualquer ação ou omissão baseada
no gênero, âmbito de unidade domestica”, “âmbito de família” e
“relação intima de afeto”. De outro lado, apenas o art. 7º também
não se retira o conceito legal de violência contra a mulher. A
solução é interpretar os art.s 5º e 7º conjuntamente e então
extrair o conceito de violência domestica e familiar contra a
mulher.
81
SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate a Violência Contra a Mulher. ed. Juruá, p 29, Curitiba. 2009
82 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos
Humanos. Convenção Interamericana pra Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a mulher: Convenção de Belém do Pará. 83
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 40.
41
Corroborando com Dias, e ampliando a definição do que
venha a ser a violência contra a mulher, e abordando seu tipo penal e função
legal, de acordo a interpretação dos artigos supra referidos, considera Hermann84:
[...] As definições não possuem escopo criminalizador, ou seja,
não pretendem definir tipos penais. Sua função, no contexto
misto da lei, é delinear situações que implicam em violência
domestica e familiar contra a mulher, para todos os fins da Lei
Maria da Penha, inclusive para agilização de ações protetivas e
preventivas.
Assim, diante do aspecto de não definir tipos penais,
PACHECO85 considera:
Essa definição “aberta” de “violência doméstica e familiar contra a
mulher” demandará interpretação restritiva pela jurisprudência e
doutrina, conforme instituto jurídico específico (competência,
determinada medida protetiva etc.) ou o caso concreto, a fim de
que os institutos da Lei 11.340/06 não violem princípios
constitucionais [...]
No intuito de definir a violência contra a mulher, PARODI86
define que a violência contra a mulher esta relacionada à desigualdade entre
homens e mulheres que foram construídas com o passar de longos anos,
visualizando-se ma construção sócio-cultural sem qualquer base compreensível,
tais diferenças encontraram campo fértil para serem transformadas em atos de
discriminação e violência. Corroborando com os posicionamentos retro, considera
que o legislador resolveu definir a violência que pretendia regulamentar,
aproveitando-se da força da norma positivada como forma de vencer a crença
social de favorecimento do homem diante da mulher. Assim, salienta que por
84
HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com nome de mulher: considerações à Lei nº 11.340/2006: contra a violência domestica e familiar, incluindo comentários artigo por artigo. Campinas, SP: Servanda Editora, 2008. 264 p. p. 108.
85 PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal: critica e práxis. 5. ed. ver. e atual.
Com Emenda Constitucional da “Reforma do Judiciário”. Niterói, RJ: Impetus, 2008. 1024 p. p. 534.
86 PARODI, Ana Cecília; GAMA, Ricardo Rodrigues. LEI MARIA DA PENHA – Comentários a Lei nº. 11.340/2006. ed. Russell, Campinas. 2009.. p. 56.
42
disposição expressa do caput do artigo 5º, da Lei 11.340/2006, a violência contra
a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial”.
Desse modo, a violência contra a mulher pode ser definida
como a que ocorre dentro do ambiente familiar, ou seja, inserido em um convívio
interpessoal, independente de vinculo familiar, de maneira sofrer vários tipos de
violência, a ser caracterizada de acordo com o caso, sendo a mesma tratada em
momento oportuno nesta monografia.
2.2.3 Definição de violência doméstica e familiar
Como é sabido, a Lei Maria da Penha, na tentativa de
garantir preceitos na ordem de garantir a proteção da pessoa da mulher em
quaisquer circunstancias, diante de determinada violência, acabou criando
“mecanismos para coibir a violência domestica e familiar contra a mulher”87. No
intuito de aproveitar a interpretação sistemática dos arts. 5º e 7º da referida lei, é
crucial sua aplicação de maneira mais específica no tocante à violência inserida
na unidade doméstica, e também inserido em contexto familiar de que trata o art.
5º, incisos I e II.
Nesse sentido, com o objetivo de compreender a real
definição de “unidade doméstica”, preleciona Dias88 “a expressão unidade
doméstica deve ser entendida no sentido de que a conduta foi praticada em razão
dessa unidade da qual a vitima faz parte”.
Conseqüentemente, SOUZA89 compara os preceitos de
“violência domestica” e “violência familiar”, comentando que seus conceitos se
apresentam como sinônimos, abrangendo que seus conceitos vão além de uma
87
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 39-40.
88 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. p. 42.
89 SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate a Violência Contra a Mulher. p
29.
43
“referencia subjetiva”, podendo ser inserido no âmbito de qualquer integrante de
uma entidade familiar, abordando:
O termo “violência doméstica” se apresenta com o mesmo
significado de “violência familiar” ou ainda de “violência
intrafamiliar”, circunscrevendo-se os atos atos de maltrato
desenvolvidos no âmbito familiar, enfatizando prioritariamente,
portanto, o aspecto espacial no qual se desenvolve a violência,
não deixando expressa uma referencia subjetiva, ou seja, o
conceito que não se ocupa do sujeito submetido à violência,
entrando no seu âmbito não só a mulher, mas também qualquer
outra pessoa integrante do núcleo familiar (principalmente
mulheres, crianças, idosos, deficientes físicos ou deficientes
mentais) que venha a sofrer agressões físicas ou psíquicas
praticadas por outro membro do mesmo grupo. Trata-se de
acepção que não prioriza o fenômeno da discriminação a que a
mulher é submetida, dispensando a ela tratamento igualitário em
relação aos demais membros do grupo familiar privado.
Nesse sentido, é oportuno observar que, conforme institui a
Lei Maria da Penha, a acepção de violência domestica e familiar contra a mulher
deverá ser interpretado restritivamente, entretanto, aplicando-se de maneira
cumulativa os preceitos de violência de gênero, intrafamiliar e contra a mulher.
Corroborando com tal fundamentação, CUNHA90 assevera:
[...] definimos violência doméstica como sendo a agressão contra
a mulher, num determinado ambiente (domestico, familiar ou de
intimidade), com finalidade especifica de objetá-la, isto é, dela
retirar direitos, aproveitando-se de sua hipossuficiência.
Nesse viés, SABADELL91 preceitua que a violência é uma
espécie de “violência física e/ou psíquica”, sendo exercida no âmbito de qualquer
relação de afetividade, exercida pelos homens, sendo “o traço distintivo deste tipo
de violência é o fato de ocorrer nas (e decorrer das) relações privadas.”
90
CUNHA, Rogério Sanches. PITNO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). p. 28.
91 SABADELL, Ana Lucia. Perspectivas jussociológicas da violência domestica: efetiva tutela
de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo. 840 p. p. 137.
44
Conforme já abordado, percebe-se amplitude dos conceitos
operacionais relacionados ao tema, e diante disso verifica-se que a violência
doméstica “alcança situações diversificadas e que o legislador procurou conceder
à mulher maior proteção à lei”92, nos casos em que a privacidade do lar tornam-se
invisíveis ao sentimento de humilhação e de sofrimento em que a mulher muitas
vezes é submetida.
Portanto, verifica-se que em se tratando de violência, os
sujeitos ativo e passivo são imprescindíveis para a caracterização de violência e
aplicação da Lei Maria da Penha, sendo estes, por conseguinte, os enfoques do
próximo tópico.
2.3 SUJEITOS PASSIVO E ATIVO NA LEI 11.340/06 2.3.1 Sujeito passivo
O intuito de diminuir a violência domésitca e familiar contra
a mulher, a criação dos juizados especiais protegendo a mulher de todos os tipos
de violência, em quaisquer circunstâncias, conforme apresentado no preâmbulo
da Lei Maria da Penha, é constatado superficialmente na medida em que a lei
comporta apenas a mulher como sujeito passivo, ainda que existam
interpretações doutrinárias divergentes.
SOUZA93 ressalta, ao mencionar o sujeito passivo, a Lei
traz à baila a expressão “ofendida”, o que pode se presumir que somente a
mulher pode ser a ofendida. Nesse sentido, no intuito de também afirmar a mulher
como sujeito passivo, assevera PARODI94:
A vitima será sempre a pessoa do sexo feminino, a mulher.
Assim, a violência domestica e familiar deve ser tomada somente
como violência contra a mulher, pois sua razão de ser foi gerada
92
FURTADO, Sara. Aspectos Normativos e Processuais da Lei 11.340/06 “Lei Maria da Penha”. UNIVALI, 2007.
93 SOUZA, Luiz Antonio de; KÜMPEL, Vitor Frederico. Violência domestica e familiar contra a
mulher. Lei nº 11.340/06. São Paulo: Método, 2007. p.73.
94 PARODI, Ana Cecília; GAMA, Ricardo Rodrigues. LEI MARIA DA PENHA – Comentários a Lei
nº. 11.340/2006. ed. Russell, Campinas. 2009.. p. 55.
45
a partir do sofrimento e agressões dirigidos especificamente às
mulheres pelo fato de serem mulheres por agressores
conhecidos.
Nesse mesmo viés, DIAS95 comenta que para
caracterização do sujeito passivo existe uma “exigência de uma qualidade
especial: ser mulher”, asseverando que encontram-se nesse conceito todas as
pessoas que tenham a necessária identidade com o sexo feminino,
independentemente de orientação sexual. Aborda, também, acerca da atividade
dentro do ambiente familiar, considerando:
Não só as esposas, companheiras ou amantes estão no âmbito
de abrangência de violência domestica como sujeitos passivos.
Também as filhas e netas do agressor como sua mãe, sogra, avó
ou qualquer outra parente que mantém vínculo familiar com ele
podem integrar o pólo passivo da ação delituosa.
Entretanto, não se consagra na Lei Maria da Penha, outra
sujeito passivo além da mulher, todavia, diante da consideração retro, é oportuno
comentar a situação a ser verificada nos 9º e 11 do art. 129 do Código Penal, com
a nova redação dada pelo art. 44 da Lei 11.340/06, in verbis:
Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de
1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes
alterações:
“Art. 129. ..................................................
..................................................................
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente,
irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha
convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
..................................................................
§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada
de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de
deficiência.” (NR)
95
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 41.
46
Diante do dispositivo legal retro, existem posições
doutrinárias que também contrapõem a idéia exclusiva do sujeito passivo como
sendo do sexo feminino. Nesse sentido CUNHA96 entende que o homem também
pode ser vítima de violência doméstica, comentando acerca da aplicação do art.
129, § 9º do Código Penal:
Não se ignora, é verdade a intenção da lei. É a mulher o seu
principal foco. Foi a mulher tida por hiposuficiente que pretendeu
o legislador conferir especial proteção. Mas isso não autoriza a
conclusão de que apenas sendo a ofendida do sexo feminino é
que terá incidência a agravante.
No tocante ao deficiente físico DIAS97 comenta que a
pessoa que tenha a referida qualidade, em se tratando de “alvo de lesão corporal,
a pena de seu agressor é dilatada”. Após critica que tal hipótese deveria estar
configurada no art. 61 do Código Penal tratando do crime dessa natureza como
agravante genérico, e não somente tratar da hipótese de lesão corporal
doméstica.
Desse modo é relevante considerar que apesar do foco da
Lei Maria da Penha abordar exclusivamente a vítima do sexo feminino, é preciso
ressalvar que apesar na referida lei ter incluído dispositivos no Código Penal
incluindo como vítima pessoa do sexo masculino tal aplicação dar-se-á através do
Código Penal.
2.3.2 Sujeito Ativo
Inicialmente percebe-se que o art. 5º da Lei Maria Da Penha
(Lei 11340/06) define que a conduta seja baseada no gênero, entretanto apesar
de estar implícita a idéia de apenas homem figurar como sujeito ativo, a doutrina
afirma, quase que de maneira unânime, que qualquer pessoa pode ser inserida
96
CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). p. 117.
97 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
47
como sujeito ativo, conforme exposto a seguir. Nesse sentido GOMES98
considera:
Sujeito ativo da violência pode ser qualquer pessoa vinculada
com a vítima [...]: do sexo masculino, feminino ou que tenha
qualquer orientação sexual. [...] basta estar coligada a uma
mulher por vinculo afetivo, familiar ou doméstico: todas se
sujeitam a nova lei.
Do mesmo modo, SOUZA99 entende que apesar da lei se
preocupar em proteger especialmente a mulher sua aplicação destina-se a
questão do gênero de maneira direta apenas no aspecto passivo, fato que não
impede que as mulheres estejam em condições iguais aos dos homens, vindo a
“praticar atos de violência doméstica e familiar contra outras mulheres”.
Portanto, não se pode concluir que o sujeito ativo seja
necessariamente o homem, podendo ser o agressor qualquer pessoa que figure
em qualquer tipo de relação no âmbito familiar, independentemente de opção
sexual. Ao contrario do foco feminista do sujeito passivo, o pólo ativo na Lei
11.340/06 é caracterizado como agressor(a) contra a mulher simplesmente, não
se podendo levar em conta a questão do gênero, apesar da denotação da referida
lei.
2.4 FORMAS DE VIOLÊNCIA
Basicamente, a lei 11.340/06 não procurou apenas definir a
violência doméstica e familiar, como também elencou formas de violência dessa
natureza, sendo estas consubstanciadas no art. 7º da referida lei. Entretanto DIAS
ressalta que o rol constante do referido dispositivo não é taxativo em razão da
utilização da expressão “entre outras”, conforme se observa:
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a
mulher, entre outras:
98
GOMES, Luiz Flávio. BIANCHI, Alice. Aspecto criminais da lei de violência contra mulher. Jus Navigandi. Teresina, ano 10, n.1169, 13 set. 2006. Disponível em: <http: // jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8916>. Acesso em: 20 abril. 2010.
99 SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate à Violência Contra a Mulher.
P.35.
48
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que
ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que
lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que
lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise
degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e
decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e
limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação
sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou
uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de
qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar
qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à
gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta
que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de
seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais,
bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os
destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que
configure calúnia, difamação ou injúria.
Acerca do dispositivo retro, SOUZA100 e GUIMARÃES101
asseveram que não existe tipificação penal própria no caso da Lei 11.340/06,
visto que altera penas, acrescentando circunstâncias qualificadoras ou agravantes
aos tipos penais comuns anteriormente existente no Ordenamento Jurídico.
Nesse sentido não há outra opção, a não ser aplicar de maneira subsidiária a Lei
Maria da Penha, nos casos de violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher,
às tipificações constante no Código Penal e Lei de Contravenções Penais (art.
147 e art. 213 à 216 do Código Penal e art. 21 da Lei de Contravenções Penais).
100
SOUZA, Sergio Ricardo de. Comentários à Lei de Combate à Violência contra a mulher. p.53.
101 GUIMARÃES, Isaac Sabbá. MOREIRA, MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Lei Maria da
Penha. Aspectos Criminológicos, de Política Criminal e do Procedimento Penal. Salvador: JusPODIVM, 2009. p. 83 -84.
49
Assim, é preciso sempre considerar a ligação entre os arts.
5º e 7º da Lei Maria da Penha, nos casos de violência contra a mulher. A seguir,
serão analisadas individualmente as cinco formas de violência descritas na
referida lei.
2.4.1 Violência física
Conforme anteriormente exposto no art. 7º inciso I da Lei
11.340/06, a violência física é caracterizada por condutas que agridam a
integridade física ou saúde corporal da mulher. Com escopo de definir, violência
física comenta CUNHA102:
Violência física é o uso da força, mediante socos, tapas,
pontapés, empurrões, arremesso de objetos, queimaduras etc.,
visando, desse modo, ofender a integridade ou a saúde corporal
da vítima, deixando ou não marcas aparentes, naquilo que se
denomina, tradicionalmente, vis corporalis.
Corroborando com o referido autor, DIAS103 complementa
que a saúde corporal e a integridade física, já anteriormente protegidas no
ordenamento, ganharam destaque com o acréscimo do § 9º ao art. 129 do Código
Penal, expondo a alteração da pena nos moldes do referido dispositivo, nos casos
de violência contra membros dentro da entidade familiar. De maneira a
complementar tal pensamento, a autora complementa que não só a lesão dolosa,
também a lesão culposa constitui violência física, pois nenhuma distinção é feita
pela lei sobre a intenção do agressor.
102
CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). p. 37.
103 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. p. 47.
50
2.4.2 Violência psicológica
No tocante à violência psicologia, pelo fato não haver
previsão na legislação penal, sendo adotada como norte a Convenção de Belém
do Pará, que foi incorporada à Lei 11.340/06.
Assim, NUCCI104 entende que o legislador excedeu-se ao
considerar as hipóteses que consideram a vitima de violência psicológica quem
sofre de absolutamente qualquer tipo de dano emocional ou humilhação, pois em
tese “ todo crime é capaz de gerar dano emocional à vitima, seja ele mulher, seja
homem”, devendo ser reservada sua aplicação para os casos em que sejam
realmente relevantes “no contexto da discriminação contra a mulher, no âmbito
doméstico ou familiar ou familiar”.
HERMANN105, por sua vez, considera:
A violência psicológica, enfocada no inciso II do art. 7º, consiste
basicamente em condutas – omissivas ou comissivas – que
provoquem danos ao equilíbrio psico-emocional da mulher vitima,
privando-se de auto-estima e autodeterminação. É nitidamente
ofensiva ao direito fundamental à liberdade, solapada através de
ameaças, insultos, ironias, chantagens [...] Implica em lenta e
contínua destruição da identidade e capacidade de reação e
resistência da vitima, sendo comum que progrida para prejuízo
importante à saúde mental e física.
CUNHA106 igualmente considera que a violência psicológica
advém de agressão emocional, cujo comportamento típico se dá quando o agente
“ameaça”, rejeita ou aproveita qualquer forma de discriminação para com a vitima,
104
NUCCI, Leis penais e processuais comentadas. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 867.
105 HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com nome de mulher: considerações à Lei nº
11.340/2006: contra a violência domestica e familiar, incluindo comentários artigo por artigo. p. 109.
106 CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da
Penha (Lei 11.340/2006). p. 61.
51
demonstrando claramente quando vê o outro sentir medo diante de uma ação
compulsiva do agressor.
Desse modo, existem vários delitos que podem ocorrer
mediante violência psicológica (constrangimento ilegal e ameaça por exemplo)
inseridos no Código Penal, entretanto DIAS107 considera que a violência
psicológica é uma expressão ampla, no sentido de poder ser aplicada em
qualquer crime contra a mulher, aplicando-se, por conseguinte, tratamento
diferenciado “apenas pelo fato de a vitima ser mulher”, configurando
“discriminação injustificada de gêneros”, fato este criticado pela doutrina,
criticando que “quem assim pensa olvida-se que a violência contra a mulher tem
raízes culturais e históricas merecendo ser tratada de forma diferenciada”, mesmo
porque tal realidade está atrelada ao princípio da igualdade.
2.4.3 Violência sexual
Constante no rol dos crimes contra os costumes no Código
Penal, a violência sexual já se encontrava inserida entre os arts. 213 a 234 do
referido diploma legal.
Entretanto, o art. 7, inciso III da Lei 11.340/06, disciplinou tal
modalidade de violência de maneira a incidir sobre mulheres vitimas desses
delitos, passando-se a exigir, por conseguinte, tutela jurídica especializada.
Assim, a violência no âmbito sexual é caracterizada pelo “constrangimento com o
propósito de limitar a autodeterminação sexual da vitima, tanto pode ocorrer
mediante violência física como através da grave ameaça”.108
Nesse viés, assevera CUNHA109:
107
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 47.
108 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência Doméstica contra a mulher: Lei 11.340/06:
análise critica e sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. 120 p. 25 p.
109 CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da
Penha (Lei 11.340/2006). p. 61.
52
O inciso III, de forma ampla, entende por violência sexual
qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter
ou participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força, que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade,
que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a
force ao matrimonio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, ou que
limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos. Agressões como essas provocam nas vitimas, não
raras vezes, culpa, vergonha e medo, o que as faz decidir, quase
sempre, por ocultar o evento.
Dessa maneira, corrobora DIAS110, dentre outras
providências à favor da mulher, acerca das conseqüências para a saúde da
mulher, bem como acerca do acesso à medidas de urgência no tocante à sua
saúde, abordando:
A segunda parte do inciso III do art. 7º da Lei Maria da Penha
enfoca a sexualidade sob o aspecto do exercício dos direitos
sexuais e reprodutivos. Trata-se da violência que traz diversas
conseqüências à saúde da mulher. A própria Lei assegura à
vitima acesso aos serviços de contracepção de emergência, a
profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da
Síndrome da Imunodependência Adquirida (AIDS) e outros
procedimentos necessários e cabíveis (art. 9º, §3º).
Desse modo, finaliza HERMANN111 que da mesma maneira
pode ser considerado, como violência sexual, desde o induzimento, através de
qualquer vicio de vontade, até “ao sexo comercial ou a práticas que contrariem a
livre expressão de seus autênticos desejos sexuais, assim entendidas aquelas
que não lhe tragam prazer sexual”, devendo ser respeitado ao máximo “o livre
arbítrio sobre o uso e função e capacidade reprodutivas”, asseverando inclusive
que “é também considerado conduta violenta o aborto coagido por intervenção de
110
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 51.
111 HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com nome de mulher: considerações à Lei nº
11.340/2006: contra a violência domestica e familiar, incluindo comentários artigo por artigo. p. 111.
53
terceiro, assim como constrangimento, por qualquer meio, ao casamento ou à
prostituição”.
2.4.4 Violência patrimonial e as causas de isenção do art. 181 do Código Penal
A violência patrimonial, de acordo com o art. 7º, inciso IV,
da Lei nº 11.340/06, pode ser consubstanciada através de toda qualquer conduta
que seja praticada “retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus
objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos
ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”,
tendo como vitima a mulher.
No intuito de explicar o referido dispositivo, assevera
HERMANN112:
A violência patrimonial é forma de manipulação para subtração
da liberdade à mulher vitimada. Consiste na negação peremptória
do agressor em entregar à vítima seus bens, valores, pertences e
documentos, especialmente quando esta toma a iniciativa de
romper a relação violenta, como forma de vingança ou até como
subterfúgio para obrigá-la a permanecer no relacionamento da
qual pretende se retirar.
Nesse viés, PORTO113 assevera que o referido conceito de
violência patrimonial traduz-se em um conceito muito amplo que desafia
sobremaneira a semântica tradicional, ficando clara a intenção do legislador em
alcançar, mediante conceito de violência patrimonial, os crimes patrimoniais não-
violentos.
Mais adiante, aduz o autor que, interpretando a lei de
maneira literal, o art 181 do Código Penal poderia em tese, sofrer revogação
parcial (derrogação), o que implicaria na existência de dúvida com relação à
aplicabilidade da isenção para a mulher “que pratica delito patrimonial contra
112
HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com nome de mulher: considerações à Lei nº 11.340/2006: contra a violência domestica e familiar, incluindo comentários artigo por artigo. p. 111.
113 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência domestica e familiar contra a mulher. p. 25.
54
cônjuge varão”. Afirma, inclusive que tal fato geraria desapropriação devido ao
tratamento legal desigual entre homem e mulher, não havendo justificativa do
legislador em exercer tal raciocínio, uma vez que os tratamentos legais, por
ventura diferenciados, devem visar sempre a igualdade material, pois na pratica
dos referidos delitos, “nenhuma qualidade especifica do homem melhor o habilita
em significativo prejuízo da mulher”. Assim o autor discorda com a exclusão da
imunidade do art. 181 do Código Penal, somente para agente do sexo masculino:
[...] a Lei Maria da Penha foi aprovada sob a bandeirada violência
física contra a mulher, demonstrada por levantamentos e
estatísticas, mas trouxe de carona outras formas próprias e
impróprias de violência [...] algumas delas que a experiência nem
revelou assim tão freqüente ou tão exclusiva do homem contra a
mulher.
Nesse sentido, de maneira a complementar o raciocínio
acerca da aludida “revogação parcial”, considera CUNHA114 que “somente uma
declaração expressa contida na lei teria o condão de revogar os dispositivos do
Código Penal. E tal revogação não é vista, quer parcial quer totalmente”,
conforme o aludido estatuto.
Por outro lado DIAS ressalta, que dentre outras obrigações
que envolvem o patrimônio, deve também ser observado o eventual não
pagamento de alimentos, de maneira a descuidar o alimentante de suas
obrigações, principalmente quando dentro de boa situação econômica, deixa
configurar o crime de abandono material. A referida autora preleciona inclusive
que:
Não é necessário que o encargo alimentar esteja fixado
judicialmente. Mesmo durante a vida em comum, sonegando o
varão os meios de assegurar a subsistência de esposa ou da
companheira, que não tem meios de prover a própria
subsistência, além da violência doméstica pratica o varão o crime
de abandono material.
114
CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). p. 65.
55
Nesse sentido, é importante notar que o conceito de
violência patrimonial pode sofrer variações, como no caso da prestação de
alimentos, que possui ligação direta com o patrimônio pessoal da eventual vítima
mulher em vista sua fragilidade diante da situação fática, incorrendo em equivoco
o questionamento do art. 5º, inciso IV da Lei 11.340/06.115
2.4.5 Violência moral
A violência moral também é uma das formas que já
encontrava-se embasada no Código Penal, porém sob a tipificação dos arts. 138,
139 e 140 do Código Penal, ou seja, calúnia, difamação e injúria,
respectivamente. Os delitos contra a honra, quando, cometidos contra mulher, de
acordo com o art. 5º da Lei nº 11.340/06, configuram violência moral, devendo ser
reconhecidos como violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo a
medida que se impõe, de acordo, com o art. 61, inciso II, alínea f do Código
Penal, o agravamento da pena.116
Desse modo, complementam CUNHA117 e DIAS118 que tais
crimes normalmente ocorrem ao mesmo tempo, ou em decorrência da violência
psicológica.
Assim, diante das questões referentes aos tipos de violência
e suas vaiadas formas, sujeitos e aplicação do referido diploma legal, verifica-se
que os entendimentos doutrinários são diversificados. Por conseguinte, diante da
inovação processual que trouxe a Lei nº 11.340/06, as questões inerentes ao
inquérito policial, medidas de urgência e processo judicial e sua forma de
aplicação de acordo com a referida lei, serão os enfoques do próximo capítulo.
115
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 53.
116 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. p. 54.
117 CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da
Penha (Lei 11.340/2006). p. 65.
118 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. p. 54.
56
CAPÍTULO 3
ASPECTOS PROCESSUAIS DESTACADOS DA LEI Nº 11.340/06
3.1 BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA AUTORIDADE POLICIAL E A LEI Nº 11.340/06
Após a prática de um ato criminoso, neste caso, uma
agressão contra a mulher no âmbito da Lei nº 11.340/06, surge para o Estado a
obrigação ou, pelo menos, o direito de punir o agente que praticou a infração
criminal, sendo que para puni-lo são necessários mecanismos probatórios para
que se possa, em momento oportuno, instaurar o procedimento judicial.
Entretanto, em linhas gerais, atrelado ao direito de punir, o
Estado realiza essa ingente tarefa através do Ministério Público, que se incumbe
de ajuizar a ação penal e acompanhar o seu desenrolar até o final, sendo definida
também de persecutio criminis in judicio. Mas para o parquet conseguir levar ao
conhecimento do juiz a notícia sobre um fato que vai de encontro à norma penal,
este terá que contar com elementos comprobatórios do fato somado aos indícios
de autoria do ato delituoso, e para que se consiga tal prova, o Estado criou outro
órgão incumbido de maneira exclusiva tal missão, que é a Polícia Judiciária
elencada no art. 144, §4º119 da Constituição da República Federativa do Brasil,
que regulamenta a possibilidade da instauração da ação penal pelo órgão
ministerial através das provas coletadas pela Polícia Judiciária.120
MIRABETE121 considera também que a Polícia Judiciária é
um instrumento da Administração Pública que se destina a manter a ordem e a
segurança da sociedade, e na medida dos recursos que dispõe, possuindo dupla
119
Nos Estados a regra é a responsabilização da Polícia Civil na apuração de infrações penais que não forem apuradas pela Polícia Federal, ou seja, é competente a Justiça Estadual para processar e julgar crimes de violência contra a mulher, possuindo um rito especifico na Lei.11.340/06.
120 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 21 ed. rev e atual. São Paulo:
Saraiva, 2005p. 193.
121 MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. p. 56.
57
função. A administrativa (de segurança propriamente dita) e a judiciária. Neste
ponto o referido autor122 as define da seguinte maneira:
Com a primeira, de caráter preventivo, ela garante a ordem
pública e impede a prática de fatos que possam lesar ou pôr em
perigo os bens individuais ou coletivos; com a segunda, de caráter
repressivo, após a prática de infração penal recolhe elementos
que o elucidem para que possa ser instaurada a competente ação
penal contra os autores do fato.
A essa atividade do Estado, portanto, denomina-se
persecutio criminis, que apresenta dois momentos distintos segundo TOURINHO
FILHO123 em consonância com MARQUES124, que pressupõem que o ato é
dividido em duas etapas: a fase de investigação e a fase de ação penal. Trazendo
uma definição jurídica específica, preconiza DEMERICAN125:
O inquérito policial é um procedimento administrativo que não se
sujeita às mesmas fórmulas do processo judicial. É realizado pela
Polícia Judiciária e tem como e escopo reunir elementos de
convicção que habilitem o órgão da acusação à propositura da
ação penal (pública ou privada).
Por sua vez, define MIRABETE126, de maneira mais restrita
o Inquérito Policial:
Inquérito Policial é todo procedimento destinado a reunir
elementos necessários à punição da prática de uma infração
penal e de sua autoria. Trata-se de uma instrução provisória,
preparatória, informativa, em que se colhem elementos por vezes
difíceis de se obter na instrução judiciária, como o auto de
flagrante, exames periciais etc.
Salienta ainda, o referido autor que seu destinatário imediato
é o Ministério Público, nos casos em que o crime se tratar de ação pública, ou o 122
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. p. 56.
123 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. p. 193.
124 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. In: TOURINHO FILHO,
Fernando da Costa. Processo Penal. p. 193.
125 DEMERICAN, Pedro Henrique. MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. São Paulo:
Atlas, 1999. p. 61. 572 p.
126 MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. p. 60.
58
ofendido que se tratar de ação penal privada, que com ele formam sua opinião
sobre o delito para que se possa promover a denúncia ou queixa, sendo que o
destinatário direto é Juiz, ressaltando ainda que deverá ser observado o requisito
do art. 12 do Código de Processo Penal, caso que o inquérito acompanhará a
denúncia ou queixa, sempre que servir de base uma ou outra.127
Este procedimento (conjunto de atos administrativos)
realizado pelo Estado, por intermédio da polícia civil, constitui-se em atividade a
fim de propiciar aos titulares da ação penal indeclinável robustez probatória
servível à propositura e exercício da ação penal. Sua finalidade do está disposta
nos artigos 4º, 12 e 41 do Código de Processo Penal, que dizem respeito ao
inquérito, conclui-se que ele visa a apuração da existência de infração penal e a
respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos
que o autorizem a promovê-la. Quanto a apurar a autoria, a Autoridade Policial irá
desenvolver intensa atividade para conhecer o verdadeiro autor do fato infringente
porque, sem saber quem o cometeu, não poderá ser promovida a ação penal.128
Nesse sentido, é preciso ressaltar a existência de duas
finalidades acessórias existentes no inquérito policial. A primeira delas, embasar o
julgador na decisão sobre a concessão de eventuais medidas cautelares, ainda
na fase pré-processual: prisões (temporária e preventiva), busca e apreensão,
interceptação telefônica e seqüestro de bens. Quanto à segunda das finalidades
acessórias, fala-se naquela de embasar o juízo de admissibilidade da ação penal,
demonstrando o que se convencionou chamar de justa causa para a propositura
da ação penal, ou seja, a existência de prova da materialidade do fato e de
indícios razoáveis de autoria pesando sobre o acusado ou, procurando
demonstrar que o exercício da ação não se revestiu de arbitrariedade, não
havendo reparo a ser feito.129
127
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. p. 60.
128 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. p. 198.
129 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. p. 198.
59
Aludindo-se ao art. 12 da Lei nº 11.340/06, assevera
PORTO130 sobre as providências a serem tomadas no inquérito policial:
Os incisos II, IV, V e VI do art. 12 da Lei Maria da Penha referente
tão somente a providências comuns, já previstas no CPP, relativas
à elaboração do inquérito policial, tais como a ouvida de envolvidos
e testemunhas, requisição de exame de corpo de delito (embora,
ao menos provisoriamente, o prontuário hospitalar possa supri-lo,
conforme art. 12, §3º da LMP), juntada de antecedentes policiais e
colhida de todas as provas necessárias ao esclarecimento do delito
e da sua autoria.
Por outro lado, é prudente o comentário de MIRABETE131
com relação ao caso de “imunidade” do art. 181 do Código Penal, comentando
sua casuística no processo penal:
[...] existindo um caso de imunidade absoluta, não pode ser
instaurado inquérito policial e muito menos ação penal por falta
de interesse de agir. Não se admite a instauração de um
procedimento (ação penal condenatória) quando não se pode
impor sanção penal. Tratando-se de imunidade relativa, a
inexistência de representação impede também o inquérito e a
ação penal por falta de condição de procedibilidade. [...] possui
objetivo de preservar a paz, a honra da família, considerando-se
ainda que, se houver punição, os prejuízos serão maiores do que
os benefícios à ordem pública.
Considerando que a preservação da família, sendo o seu
enfoque a mulher, possui a autoridade policial a responsabilidade de tomar
medidas de proteção, de maneira a comunicar de imediato o Ministério Público e
o Poder Judiciário, encaminhando a vitima de violência ao recinto em que possa
ser feito todas as medidas onde o enfoque seja sua saúde física e corporal
(hospital ou posto de saúde mais próximo), fornecendo o transporte para levar a
vitima a local seguro, se necessário retirando seus bens do local da agressão e
informando seus direitos conferidos pela Lei nº 11.340/06, tomando a autoridade
130
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher: Lei 11.340/06: analise critica e sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. 120 p. p. 78.
131 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. II p. 367.
60
policial as providencias cabíveis, nos moldes do arts. 10 e 11 da referido
diploma.132
Nesse sentido, critica CUNHA133 que a proteção policial nos
casos de violência contra a mulher não é nada fácil, pois o condão excessivo de
proteção à mulher, acaba por entrar em contradição, muitas vezes, com o próprio
aparato policial oferecido pelo Estado, pois em algumas situações “a polícia não
garante proteção em si mesma”, ressaltando inclusive que “o legislador revelou-se
um tanto otimista ou pretensioso, divorciando mesmo da realidade fática do
cotidiano”. Assevera, ainda, que a autoridade policial tem o poder dever de
acompanhar a retirada da ofendida do local onde mora, e de seus bens, se assim
for necessário, estando autorizada a policia de proceder a prisão preventiva do
agressor, nos moldes do art. 11, inciso IV e art. 20 da Lei nº 11.340/06, devendo,
ao final, tudo constar no relatório da fase do inquérito policial.
3.1.1 Considerações acerca das ações penais
Para que seja instaurada a ação penal é preciso que exista a
notitia criminis134 (mesma peça que pode embasar a persecução penal). Desse
modo, é a noticia crime peça fundamental para instauração do inquérito135, que
132
CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). p. 87-89.
133 CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da
Penha (Lei 11.340/2006). p. 89.
134 “Notitia criminis (noticia crime é o conhecimento espontâneo, ou provocado, pela autoridade
policial, de um fato aparentemente criminoso. É espontânea aquela em que o conhecimento da infração penal pelo desitinatário da notitia criminis ocorre direta e imediatamente, quando se encontra a autoridade pública no exercício de sua atividade funcional. Provocada é a notícia do crime a esta transmitida pelas diversas formas previstas na legislação processual penal, consubstanciando-se, portanto, num ato jurídico. Na primeira hipótese, pode ocorrer por conhecimento direto ou comunicação não formal (cognitio imediata), como nos casos de encontro de corpo de delito, comunicação de um funcionário subalterno, informação pelos meios de comunicação, etc. Na segunda, por comunicação formal da vítima ou de qualquer do povo, por representação, por requisição judicial ou do Ministério Público etc (cognição mediata). Pode também a notícia do crime estar revestida de forma coercitiva, hipótese de prisão em flagrante delito por funcionário público no exercício de suas funções ou por particular.In: MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. p. 64-65.
135 “A peça que inicia o inquérito policial, como regra geral, é a “portaria”, que poderá estar
presente em todas as forams de início daquele. Em determinados casos, porém, a autoridade policial aproveita a própria notícia que informou o crime, como a requisição da autoridade judiciária ou do membro do Ministério Público, o requerimento de vítima e, por fim, o auto de prisão em flagrante.” In: CAPEZ, Fernando. COLHAGO, Rodrigo. Prática forense penal. p.5.
61
serve de base para as ações públicas incondicionada e condicionada e nos casos
de ação penal privada.
Sobre a ação penal pública incondicionada, MIRABETE136
preleciona:
Quanto à ação penal pública incondicionada, nos termos do
Código de Processo Penal, o inquérito policial pode ser instaurado
de ofício (art. 5º, I). Trata-se de uma regra geral que só cede
diante de disposição expressa em lei. Tomando conhecimento da
ocorrência do crime (cognição imediata) a autoridade policial deve
instaurar o procedimento respectivo.
Assim, MIRABETE137 e CAPEZ138 preconizam que para
qualquer pessoa do povo (delatio criminis) que saiba que determinada infração
penal existe, identificando-se ou não (notitia criminis inqualificada), será cabível
pela ação pública incondicionada. Tal pessoa poderá, verbalmente ou por escrito,
comunicar à Autoridade Policial acerca da procedência do fato tido como
criminoso, bem como dos indícios de autoria e materialidade, bem como
quaisquer outras informações que possam embasar a instauração do inquérito,
que poderá ser feito, inclusive, por requisição da autoridade judiciária ou do
Ministério Público nos moldes do art. 40 do Código de Processo Penal.
Sobre a ação penal pública condicionada, esta terá duas
espécies: a) mediante representação do ofendido de acordo (art. 24 do Código de
Processo Penal); b) mediante requisição do Ministro da Justiça.
Sobre a representação do ofendido, comenta TOURINHO
FILHO139:
A representação poderá ser feita à Autoridade Policial, ao Juiz ou
ao órgão do Ministério Público. Quando feita ao Juiz, observado o
que dispõe o §1º do art. 39, será ela remetida à Autoridade
Judiciária, acompanhada de ofício requisitório (art. 39 § 4º). Se
136
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. p. 66.
137 MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. p. 66- 67.
138 CAPEZ, Fernando. COLHAGO, Rodrigo. Prática forense penal. p.6-8.
139 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. p. 233.
62
feita perante o membro do Ministério Público e se com ela forem
fornecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal,
não haverá necessidade de ser remetida à Autoridade Policial.
Nesse caso, caber-lhe-á oferecer denúncia, tal como se vê pelo §
5ª, do art. 39. Do contrário, restar-lhe-á encaminhá-la com ofício
requisitório à Autoridade Policial.
De maneira a corroborar com tal preceito, comenta
CAPEZ140:
É a manifestação do princípio da oportunidade, que informa a
ação penal pública condicionada até o momento do oferecimento
da denúncia (CPP, art. 25). A autoridade judiciária e o Ministério
Público só poderão requisitar a instauração do inquérito se fizerem
encaminhar, junto com o ofício requisitório, a representação. [...] O
ofendido só pode oferecer a representação se maior de 18 anos,
se menor, tal prerrogativa caberá a seu representante legal. Com
a edição do Novo Código Civil, a partir dos 18 anos a pessoa
adquire plena capacidade civil, cessando, a contar dessa data, a
figura do representante legal. Assim não cabe mais falar em
representante legal para o ofendido maior de 18 anos e menor de
21 anos.
Assevera ainda, que a representação, naturalmente, será
apresentada à autoridade judicial, ou ao Ministério Público, ou até mesmo à
autoridade judiciária, sendo que “após o oferecimento da denúncia, a
representação se torna irretratável.”141
Quanto à ação penal condicionada à requisição do Ministro
da Justiça, preceitua DEMERICAN142 que “não se confundem com a requisição do
Ministério Público ou do Juiz de Direito (art. 13, inciso II, CPP, ato de exigir
legalmente). Trata-se de uma condição específica da ação penal.” Salienta ainda
que “não há prazo para a requisição”, sendo que o Ministro da Justiça “não
decairá desse direito”, podendo, contudo, haver a figura da prescrição. Nesse
sentido, quando ao prazo decadencial preconiza:
140
CAPEZ, Fernando. COLHAGO, Rodrigo. Prática forense penal. p.9.
141 CAPEZ, Fernando. COLHAGO, Rodrigo. Prática forense penal. p.9-10.
142 DEMERICAN, Pedro Henrique. MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. p. 130-131.
63
Como não há previsão de prazo decadencial para a apresentação
da requisição do Ministério da Justiça, também não se pode falar
em retratação da requisição ofertada, pois aquela autoridade tem
tempo suficiente para decidir a conveniência da autorização para
a persecutio criminis. Cumpre notar, ademais, que a alei também
não prevê retratação da requisição.
Assim, no caso de crime cometido por pessoa estrangeira
contra cidadão brasileiro, fora do território brasileiro, no caso de crimes contra a
honra, não importando se cometidos publicamente ou não, contra chefe de
governo estrangeiro, dentre outros, a requisição será encaminhada ao chefe do
Ministério Público, o qual poderá, desde logo, instaurar a denúncia ou fazer a
requisição de diligências à autoridade policial.143
No caso de ação penal privada, preceitua MARQUES144 que
a ação penal privada145 “é aquela em que o direito de acusar pertence exclusiva
ou subsidiariamente, ao ofendido ou a quem tenha quantidade para representá-
lo.” Assevera ainda, que “ ela se denomina ação privada, porque seu titular é um
particular, em contraposição à ação penal pública, em que o titular do jus actionis
é um órgão estatal: O Ministério Público.”
Corroborando com tal idéia, complementa CAPEZ146:
Conforme disposto no art. 5º, §5º, do Código de Processo Penal,
tratando-se de crime de iniciativa privada, a instauração do
inquérito policial pela autoridade pública depende de requerimento
escrito ou verbal, reduzindo a termo neste último caso, do
ofendido ou de seu representante legal, isto é, da pessoa que
detenha a titularidade da respectiva ação penal (CPP, arts. 30 e
31). Nem sequer o Ministério Público ou a autoridade judiciária
poderão requisitar a instauração da investigação.
Nesse mesmo sentido, comenta TOURINHO FILHO147:
143
CAPEZ, Fernando. COLHAGO, Rodrigo. Prática forense penal. p.10.
144 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. p.391.
145 O art. 100 §2º do Código Penal diz que “A ação penal privada é promovida mediante queixa
pelo ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo”, sendo a mesma regra contido no artigo 30 do Código de Processo Penal, que preconiza: “Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada”.
146 CAPEZ, Fernando. COLHAGO, Rodrigo. Prática forense penal. p.10-11.
64
A distinção que se faz entre ação penal pública e ação penal privada descansa, única e exclusivamente, na legitimidade para agir. Se é o órgão do Ministério Público que deve promovê-la, a ação se diz pública. Privada, se a iniciativa couber ao ofendido ou a quem legalmente o representante.
CAPEZ148 comenta ainda que o requerimento é
caracterizado por ser um pedido diferente quando comparado à representação,
eis que detalha todos os fatos ocorridos “narrando a autoria, os fatos, horário,
local, inclusive indicando testemunhas, se possível, demonstrando para a
autoridade policial que ocorreu um fato criminoso ou sujeito à investigação”.
Existe uma ressalva no caso de ação penal privada, posto
que o ofendido pode dispor da ação penal149, enquanto que nos casos de ação
pública, uma vez instaurada a denúncia pelo Ministério Público, este órgão não
poderá desistir. Assim, nos casos em que a lei prevê expressamente que
determinado crime se apura mediante queixa, a ação penal é privada. Nestes
casos, o art. 5º, § 3º, do CPP, diz que a Autoridade Policial somente deverá
proceder ao Inquérito Policial a requerimento de quem tenha a capacidade para
intentá-la. O flagrante, igualmente, somente poderá ser lavrado a pedido da vítima
(formalizado), já que se trata de peça vestibular do inquérito policial. O
requerimento, portanto, não exige formalidades, basta que sejam oferecidos os
elementos indispensáveis à instauração do inquérito policial. 150
Nesse sentido, nos crimes cometidos, sob a égide da Lei nº
11.340/06, a lei remete aos tipos penais comuns, acrescendo-lhes elementos
especiais. Para os efeitos do referido diploma, os crimes de gênero necessitam de
conduta baseada no gênero e relação de afetividade entre os sujeitos. Desse
modo, o fato de não haver tipos penais novos, para caracterizar o tipo da ação
147
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. p. 417.
148 CAPEZ, Fernando. COLHAGO, Rodrigo. Prática forense penal. p.10-11.
149 “O ofendido pode dispor da ação penal: a) deixando de propô-la, pura e simplesmente, dentro
de seis meses contados da data em que teve conhecimento do crime, caso em que ocorrerá a decadência do jus acusationis; b) renunciando ao direito de queixa, tácita ou expressamente; c) perdoando o querelado, depois de instaurado o processo criminal; d) deixando ocorrer a perempção da instância.” In: MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. p.397.
150 CAPEZ, Fernando. COLHAGO, Rodrigo. Prática forense penal. p.10-11.
65
penal cabível deverá ser analisado qual o crime em si e a hipótese de incidência
penal previsto para o mesmo.151
3.2 CONCEITOS DE RENÚNCIA E RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO
3.2.1 Renúncia
O instituto da renúncia é previsto no Código Penal, como
causa extintiva de punibilidade, nos crimes de ação penal privada:
Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:
[...]
V – pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos
crimes de ação privada;
[...]
Desse modo, JESUS152 define renúncia como sendo a
“abdicação do ofendido ou de seu representante legal do direito de exercer a ação
penal privada”, sendo apenas possível antes da ação penal privada, podendo ser
recebida pelo disposto no art. 104, caput do Código Penal, pois impede o
oferecimento da queixa, sendo oportuna, portanto, que a renúncia seja feita
dentro do prazo de seis meses previstos para o ajuizamento da ação penal
privada.
Nessa mesma linha, NUCCI153 afirma que a renúncia é a
desistência da propositura de ação penal privada, ocorrendo antes do
ajuizamento da ação. Assim, complementa SOUZA154 que a renúncia consiste em
abdicar direito de queixa, ou seja, implica em desistir do direito de agir na esfera
penal em face de pessoa que figure como acusado.
151
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 53.
152 JESUS, Damásio E. de. Direito penal. vol.1. parte geral. 28. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2005.
p. 697.
153 NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 6.ed. ver. e atual. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2006. p. 493.
154 SOUZA, Sergio Ricardo de. Comentários à Lei de Combate à Violência contra a mulher. p.
95.
66
3.2.2 Retratação da representação
Inicialmente, cumpre salientar acerca da representação e
sua relação com o processo penal, comentando DIAS155 que a desistência só é
cabível nos casos de delitos sujeitos à representação, não havendo essa
possibilidade nos casos de ação penal pública incondicionada. Entretanto,
procura definir o contexto da retratação como sendo ato posterior, de maneira a
“desistir da representação já manifestada”, em suma a “Retratação é uma ato pelo
qual alguém retira sua concordância para realização de determinado ato, que
depende de sua autorização”.
Nesse viés, explica a autora156 acerca dos crimes que
exigem representação criminal, bem como do eventual silêncio da vitima,
considerando:
Exigem representação os crimes de ação penal: os crimes de
ação pública condicionada assim identificados no Código Penal e
as lesões corporais leves e lesões culposas, por expressa
disposição do art. 88 da Lei 9.099/95. Os crimes de ação privada
dependem de queixa-crime. A representação condicionada à
instauração da ação penal, tanto que o inquérito não pode ser
instaurado antes da manifestação da vitima (CPP, art. 5º, §4º). O
silêncio da vitima significa que ela “renunciou” ao direito de
representar contra o ofensor, abriu mão do direito de vê-lo
responder pelo ato que praticou. Portanto, “renúncia à
representação” quer dizer não exercer o direito de representar,
manter-se inerte.
Desse modo, TOURINHO FILHO157 conclui que após feita a
representação, quem a fizer poderá retratar-se, porém, a denúncia ainda não
poderá ter sido oferecida, asseverando o autor que mesmo que o Juiz de Direito
não a tenha recebido, não mais caberá a retratação.
155
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 111.
156 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de
combate à violência e familiar contra a mulher. p. 111.
157 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v.1. 597.
67
3.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ART 16 LEI 11.340/06
Inicialmente destaca-se a questão da "renúncia" à
representação, de que trata o art. 16 da referida lei, in verbis:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à
representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida
a renúncia à representação perante o juiz, em audiência
especialmente designada com tal finalidade, antes do
recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.158
Nesse sentido, relacionando os conceitos de renúncia e
representação, aplicando-se ao contexto da Lei nº 11.340/06, é imperioso fazer a
diferenciação entre renúncia e retratação, na qual SOUZA159 discorre que “a
formalidade inserida no art. 16 da Lei nº 11.340/06, aplica-se apenas aos crimes
sujeitos a ação penal condicionada à representação, sendo que o termo
”renúncia" ali consignada tem sentido de "retratação" “. De fato, com a simples
leitura do dispositivo, nota-se que o legislador conferiu à agredida o direito de
retratar-se da representação, anteriormente oferecida, até a data do recebimento
da denúncia.160
Nesse sentido, pronunciou-se o Tribunal de Justiça de
Santa Catarina161:
Destarte, a segurança familiar e a liberdade individual da mulher
deve se sobrepor ao sistema penal, pois o Poder Judiciário não
tem o poder de agir contrariamente à família, sendo, pelo
contrário, obrigatoriamente responsável pelo zelo de tão
importante e insubstituível forma de relação social, uma vez que
158
BRASIL. Lei nº 11.340/06. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8
o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
159SOUZA, Sergio Ricardo de. Comentários à Lei de Combate à Violência contra a Mulher: Lei
Maria da Penha 11.340/06. p. 96-97.
160 SOUZA, Sergio Ricardo de. Comentários à Lei de Combate à Violência contra a Mulher: Lei
Maria da Penha 11.340/06. p. 96-97.
161 Reclamação n. 2008.042543-3, de Lages, rela. Desa. Salete Silva Sommariva, j. 13/10/2008.
68
as questões do Direito de Família são muito mais importantes
que a imposição de uma pena a um agressor perdoado pela
vítima. Não se pretende deixar a ofendida livre para renunciar ao
seu direito no momento em que bem entender, mas sim, fazer
criar a consciência de necessidade da realização da audiência
preconizada pelo art. 16 da Lei Maria da Penha, pois é nela que o
juiz poderá avaliar a situação entre o casal e explicar,
minuciosamente, fatos que poderiam restar omitidos na seara
policial
Desse modo, a norma atribuiu formalidade à retratação,
pretendendo conferir maior eficácia aos objetivos da lei, porquanto estabeleceu a
imprescindibilidade de o ato ser realizado em audiência solene, para que a mulher
esteja livre de pressões externas e ameaças quando demonstrar a sua vontade,
estipulando o dispositivo, inclusive, a necessidade da presença do Ministério
Público. Nesse norte, mostra-se indispensável ao magistrado aplicar os objetivos
para os quais se editou a lei, realizando-se a interpretação da vontade legislativa
e compreendendo o espírito da norma por meio dos princípios e motivos que a
legitimaram, de acordo com o art. 4° da Lei 11.340/06.162
Na interpretação desta lei, deverão observados os fins
sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das
mulheres em situação de violência doméstica e familiar, obrigando o aplicador,
assim, à análise da ratio legis.163
Sobre o tema, disserta PORTO164:
Ademais, sem sombra de dúvidas, se a exigência de
representação é de fato uma medida despenalizadora, não
menos certo é que deixar esta decisão no poder da vítima, que
pode então utilizá-la como instrumento de barganha para uma
162
Anotações preliminares à Lei nº 11.340/06 e suas repercussões em face dos Juizados Especiais Criminais. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=8917, acesso em 02/02/2010.
163 CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da
Penha (Lei 11.340/2006). p. 61.
164 Anotações preliminares à Lei nº 11.340/06 e suas repercussões em face dos Juizados
Especiais Criminais. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=8917, acesso em 02/02/2010.
69
justa reparação de danos civis, atende a dois objetivos: punir o
sujeito ativo e beneficiar direta e imediatamente a própria vítima.
Nesse viés, oportuno salientar a questão da retratação nos
moldes do art. 16 da Lei n º11.340/06, uma vez existente a dependência
processual do recebimento da denúncia do órgão ministerial pelo juiz, desde que
a vítima concorde em promover a ação penal, após sua inquirição em audiência
preliminar. Nesse sentido, considera PACHECO165:
A admissão judicial, em audiência especial, da renúncia à
representação é condição resolutiva para efeito de extinção de
punibilidade, ou seja, é condição sem a qual a renúncia à
representação não gera sua eficácia extintiva. No contexto da Lei
nº 11.340/06, parece-nos que a mera “retratação da
representação”, sem a referida admissão judicial em audiência
especial, não impede a investigação criminal, o oferecimento da
denúncia, o processo penal ou as demais providências de
urgência pela Polícia, membro do Ministério Publico ou juiz.
Nessa linha, a “retratação da representação” teria efeito diverso
do que ocorre fora do âmbito da Lei nº 11.340/06.
Assim sendo, para se condenar alguém pelo referido fato
criminoso deve o Ministério Público propor ação penal pública condicionada à
representação, sendo que no caso desta infração ter sido cometida no âmbito
doméstico e familiar, deve haver uma audiência preliminar na qual o sujeito
passivo poderá manifestar renúncia à representação perante o Contudo, o art, 41
da Lei n" 11.340/06 da aludida norma informa que os crimes praticados com
violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena
prevista, não se aplica a Lei n" 9.099/95. Referido dispositivo legal, à primeira
vista, parece contradizer o art. 16 da Lei Maria da Penha. Entretanto, este
aparente conflito resolve-se por questões de hermenêutica.166
Dessa maneira, deve-se interpretar o art. 41 da Lei n"
11.340/06 de forma sistemática ao art, 16 da mesma norma, sob pena de este
dispositivo legal tornar-se inócuo relativamente ao crime de lesão corporal leve
165
PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal: critica e práxis. p. 538.
166 PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal: critica e práxis. p. 538.
70
ocorrido no âmbito doméstico e familiar, caso aquele dispositivo normativo seja
interpretado isoladamente.167
Desse modo, deve ser o art. 16 a "renúncia", interpretada
como "retratação" da representação, a partir do recebimento da denúncia e não o
seu oferecimento, como tradicionalmente estabelecido no art. 25 do Código de
Processo Penal, que continua aplicável às demais situações.168
3.4 A REPRESENTAÇÃO NO CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE
A lesão corporal “leve” descrita no caput do art. 129 do
Código Penal, com pena de detenção, de três meses a um ano, não se confunde
com a figura de lesão corporal com violência doméstica, do § 9º do art. 129 do
Código Penal, com pena de detenção, de três meses a três anos, ressaltando-se
que, na hipótese da lesão corporal com violência doméstica, a adequação típica
se dá na última figura, e não na de lesão leve do caput.169
Nesse sentido, abordo PACHECO170:
[...] com essa pena máxima de três anos, sequer é infração penal
de menor potencial ofensivo e não esta sujeita aos juizados
especiais criminais. Mas isso, como já o dissemos, não impede a
suspensão condicional do processo, tendo em vista os
argumentos expendidos e o fato de uma pena mínima não ser
superior a um ano.
Desse modo, o crime de lesão corporal leve apresentou-se
como de ação penal publica incondicionada, até a promulgação da Lei nº
9.099/95, a qual estabelece em seu art. 88, que “além das hipóteses do Código
Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa
167
NUCCI, Leis penais e processuais comentadas. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 p. 1060-1062.
168 GOMES, Luiz Flávio, e BIANCHINI, Alice. Lei da Violência Contra a Mulher – Renúncia e
Representação da Vítima. Disponível na Internet, www.lfg.com.br, acessado em 17/11/09.
169 PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal: critica e práxis. p. 540.
170 PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal: critica e práxis. p. 540.
71
aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”. Portanto, o referido
delito passou de ação penal condicionada à representação, recebendo uma
característica peculiar, ou seja, foi considerada como de menor potencial
ofensivo, isto por força do disposto no art. 61 da Lei nº 9.099/95.171
Dessa feita, por lógica, verifica-se que no caso de prática da
infração de lesão corporal leve praticada no âmbito doméstico e familiar contra a
mulher, referida conduta deve ser apurada por meio da ação pública condicionada
à representação da ofendida. Devendo, assim, haver uma audiência antes do
recebimento da exordial acusatória para que nela a vítima possa exercer o seu
direito de renúncia à representação, por força do que dispõe o art. 16 da Lei nº
11.340/06.172
3.5 A APLICAÇÃO DE MEDIDAS PROTETIVAS
A Lei nº 11.340/2006, inseriu no ordenamento jurídico
brasileiro um rol de medidas visando resgatar a cidadania feminina e assegurar à
mulher o direito a uma vida sem violência. A partir de agora as agressões sofridas
pelas mulheres sejam de caráter físico, psicológico, sexual, patrimonial e inclusive
moral, passam a ter tratamento diferenciado pelo Estado. Dedica a referida lei,
nos seus artigos 18 a 24, um capítulo às medidas protetivas de urgência,
existindo em um dos artigos a seguinte previsão:
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de
imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as
seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das
testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes
e o agressor; [...]
171
SOUZA, Sergio Ricardo de. Comentários à Lei de Combate à Violência Contra a Mulher. p. 104.
172 PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal: critica e práxis. p. 541.
72
Nesse sentido, DIAS173 assevera que além da medida
protetiva de afastamento do agressor do lar, também merece ser adotado o
procedimento de manter-se o agressor distante da vítima:
Outra forma de impedir contato entre agressor e ofendida, seus
familiares e testemunhas é fixar limite mínimo de distância de
aproximação (art. 22, III, “a”). Para isso o juiz tem a faculdade de
fixar, em metros, a distância a ser mantida pelo agressor da casa,
do trabalho da vítima, do colégio dos filhos.[...] Dita vedação não
configura constrangimento ilegal e em nada infringe o direito de ir
e vir consagrado em sede constitucional (CF, art. 5º, XV). A
liberdade de locomoção encontra limite no direito do outro
depreservação da vida e da integridade física. Assim, na
ponderação entre vida e liberdade há que se limitar esta para
assegurar aquela.
Assim, no caso das medidas protetivas previstas na Lei
11.340/06 não há a presença do “fumus boni iuris” uma vez existente a prática de
um ato ilícito. Não há que se falar em fumaça de bom direito quando o que se
vislumbra é uma prática criminosa. Na verdade, o requisito presente que se
constata é o fumus commissi delicti174.
Procurando diferenciar os tipos de medidas cautelares
aplicáveis ao processo penal, neste caso no âmbito da Lei nº 11.340/06, assevera
PACHECO175 que existem diferenças a serem observadas nas medidas do art. 12
e do art. 22 da referida lei, comparando:
O art. 12 da Lei 11.340/06 se refere a outros procedimentos do
CPP, o art. 13 se refere ao processo, ao julgamento e à
excecução das causas cíveis e criminais, bem como a aplicação
do CPP, do CPC e da legislação específica relativa à criança, ao
adolescente e ao idoso no que não conflitar com essa lei, o art.
20 diz respeito à prisão preventiva, o art. 22 manda aplicar, no
que couber, o art. 461, §§5º e 6º, do CPC, e ainda pode haver
“outras medidas”.
173
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 85.
174 GOMES, Luiz Flávio, e BIANCHINI, Alice. Lei da Violência Contra a Mulher – Renúncia e Representação da Vítima. Disponível na Internet, www.lfg.com.br, acessado em 17/11/09.
175 PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal: critica e práxis. p. 541.
73
[...]
Já as medidas do inciso IV do art. 22 da LVM parecem ter caráter
cível, seguindo um procedimento civil. Uma coisa é a proibição de
contato como medida cautelar penal, sujeita ao fumus delicti, ao
periculum libertatis, aos fins e ao término da persecução criminal,
o que, indiretamente afeta a eventual visita, e outra diversa é a
restrição ou suspensão de visita, como medida cautelar civil,
sujeita ao fumus boni iuris e ao periculum in mora, relativa ao
direito de família.
Desse modo, é importante ressaltar que as medidas
protetivas de urgência deferidas no curso do inquérito policial ou do processo
penal, embora não constituam providências acautelatórias do provimento final do
processo penal – a aplicação de uma pena dentro dos limites tolerados pela
Constituição -, pela sua própria natureza, são transitórias e, em tese, somente
cabíveis naquelas situações nas quais a prevenção eventualmente não tiver
nenhuma eficácia.176
Nesse sentido, observa DELMANTO JÚNIOR que “não se
pode afirmar que o delito cometido é uma "fumaça do bom direito", quando na
verdade o que se espera é a probabilidade da ocorrência de um delito, ou seja, o
fumus delicti, ou o fumus commissi delicti. Desta forma é a provável ocorrência de
um delito e os indícios da autoria que se fundem no pressuposto fumus delicti, e
não a existência de um sinal, fumaça de um bom direito que deverá ser tutelado
pelo Estado, o fumus boni iuris.”177
Tal situação pode ser analisada da mesma forma quando
analisamos o outro requisito para a medida cautelar de natureza cível, ou seja, o
periculum in mora. Vê claramente que tal requisito não está presente como
essencial para o deferimento das medidas protetivas da Lei 11.340/06. O que se
tem é uma situação de risco para a vítima, que precisa de proteção do Estado,
176
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei .11.340/2006 de combate à violência e familiar contra a mulher. p. 97.
177 DELMANTO JUNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de
duração. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 976 p. p. 95.
74
uma vez que presente o requisito da medida cautelar criminal “periculum
libertatis”.
3.6 APLICAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA
A prisão preventiva, possui essência cautelar, pois objetiva
resguardar a eficácia das medidas protetivas de urgência, que não estão
vocacionadas a assegurar o resultado final do processo penal, ou seja, a
aplicação da pena dentro dos limites máximos de contenção do poder punitivo,
mas se confundem com o próprio fim da intervenção estatal, por meio do
processo penal: a realização, na medida de suas possibilidades, dos direitos
fundamentais do acusado e, agora, após longo período de exclusão, também da
vítima.
Nesse sentido, ressalta-se que a prisão preventiva
referenciada na Lei "Maria da Penha" continua cabendo apenas diante de crimes
dolosos, porque o inciso IV do art. 313 do Código de Processo Penal subordina-
se ao seu caput, onde, na parte final, se estabelece que a medida excepcional só
cabe em crimes dolosos, estando, por conseguinte, excluídas de sua incidência
as contravenções e os crimes culposos.178 Neste sentido, a prisão preventiva do
inciso IV será ainda mais excepcional e, necessariamente, subsidiária às outras
medidas cautelares, definidas como protetivas de urgência, estabelecidas nos
arts. 22, 23 e 24 da Lei "Maria da Penha".179
Nessa linha, trouxe o art. 42 da Lei nº 11.340/06, nova
hipótese de cabimento de prisão preventiva, adicionando o inciso IV do art. 313
do Código de Processo Penal, possibilitando ao juiz decretar a prisão provisória
178
BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei "Maria da Penha". Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9006>. Acesso em: 27 abril. 2010.
179 BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei "Maria da Penha". Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9006>. Acesso em: 27 abril. 2010.
75
em desfavor do agressor, “para garantir a execução das medidas protetivas de
urgência”.180
Desse modo, apenas caberá a prisão preventiva, nas
hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher aventadas
exclusivamente no inciso IV do art. 313 para assegurar a eficácia daquelas
medidas protetivas de urgência, se as mesmas, por si só, se revelarem ineficazes
para a tutela da mulher.181
Tal restrição, no entanto, não se torna tão importante na
hipótese do caso se enquadrar nas demais situações estabelecidas nos arts. 313,
I, II e III do Código de Processo Penal, os pressupostos clássicos da prisão
preventiva, ou seja, crime doloso punido com reclusão, punido com detenção
quando o réu é vadio ou há dúvidas sobre sua identificação, ou, independente da
pena cominada, se o réu já foi condenado por outro crime doloso. Presentes
algum dos outros três pressupostos da prisão preventiva, ainda que o crime seja
resultado de violência doméstica e familiar contra a mulher, não se precisará
recorrer ao inciso IV, cabendo a prisão preventiva, independente da eficácia ou
não das outras medidas protetivas de urgência, pelas simples hipóteses
estabelecidas nos incisos I, II e III.182
Assevera CABETTE, que o dispositivo é providencial,
constituindo-se em um instrumento muito útil, tornando efetivas as medidas
preconizadas pela Lei nº 11.340/06. Em não havendo tal modificação, a maioria
dos casos de violência doméstica contra a mulher ficaria privada do instrumento
coercivo da prisão preventiva por ausência de sustentação nos motivos elencados
180
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência domestica e familiar contra a mulher. lei 11.340/06 – analise critica e sistêmica. p. 25.
181 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência domestica e familiar contra a mulher. lei
11.340/06 – analise critica e sistêmica. p.26.
182 BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei "Maria da Penha".
Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9006>. Acesso em: 27 abril. 2010.
76
do art. 312 do Código de Processo Penal, tradicionalmente e nos casos de
cabimento descritos no art. 313 do Código de Processo Penal.183
Nesse mesmo viés, considera PACHECO184:
Todavia, o afastamento do lar, domicilio ou local de convivência
com a ofendida pode servir aos fins da persecução criminal,
como medida cautelar processual penal, quando, então, deve
satisfazer aos pressupostos do fumus comissi delicti e do
periculum in mora, tendo como parâmetro o art. 312 do CPP,
segundo a duração razoável do processo penal, ela poderá ser
decretada, por exemplo, nos próprios autos do inquérito policial
ou do processo penal condenatório.
É preciso, portanto, principalmente nos crimes de menor
potencial ofensivo, em virtude da pequena quantidade de pena privativa de
liberdade cominada, que o Juiz seja prudente em decidir pela prisão do agressor,
não podendo-se exceder, em tempo de duração, à projeção de aplicação da pena
privativa de liberdade cominada, em caso de condenação, fato que poderia gerar
a “perda do cautelaridade que se deve exigir da prisão preventiva”.185
Imprescindível considerar, também, que é aplicável ao tema
o art. 314 do Código de Processo Penal186, de sorte que não se poderá cogitar da
prisão preventiva, mesmo em casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, se dos autos se delinearem situações de excludente da antijuridicidade ou
da culpabilidade , faltaria fumus boni juris.
Por outro lado, tendo em vista que a proteção à mulher
vítima da violência doméstica e familiar deve ser efetivada por meio de uma
política pública, constituída de um conjunto de medidas integradas, que vão da
183
CABETE, Eduardo Luiz Santos. Anotações e criticas sobre a lei de violência contra familiar a domestica contra a mulher. Disponível em www.jusnavigand.com.br acessado em 06/11/2009.
184 PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal: critica e práxis. p. 541.
185 BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei "Maria da Penha".
Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9006>. Acesso em: 27 abril. 2010.
186 BRASIL, Código de Processo Penal, art. 314: "A prisão preventiva em nenhum caso será
decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições do art. 19, I, II ou III, do Código Penal".
77
prevenção à proteção, se as medidas protetivas de urgência determinadas no
curso do processo penal forem insuficientes para afastar o perigo de lesão aos
direitos fundamentais da mulher, deverão ser substituídas por outras medidas
mais duradouras, as quais poderão ser executadas mesmo após o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória, mas, nessa hipótese, a prisão preventiva
não mais poderá ser decretada para a sua eficácia, exceto se a conduta violadora
constituir novo crime e ensejar a instauração de novo processo penal.187
Portanto, a prisão preventiva prevista na Lei 11.340/06,
diferentemente das demais hipóteses legais, tem por fundamento a existência de
uma necessidade de proteção necessidade proteção específica, principalmente
no âmbito processual, dos direitos fundamentais da mulher, vítima da violência
doméstica e familiar, constituindo, a priori, uma “restrição” legítima no sistema
processual penal e constitucional e brasileiro.
187
PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa do. A ponderação de interesses em matéria de prova no processo penal. São Paulo: IBCCRIM, 2006.
78
Considerações Finais
O presente trabalho teve como objetivo investigar a Lei n°
11.340 de 07 de agosto de 2006, à luz dos preceitos jurídicos nacionais, que
possibilitou a instauração de procedimento criminal específico no tocante á
violência contra a mulher, definindo preceitos específicos de aplicação no âmbito
material e processual penal. O interesse pelo tema abordado deu-se em razão de
sua atualidade e pela diversidade que o tema vem sendo abordado no contexto
nacional, desde a promulgação do referido diploma.
Neste diapasão, é perceptível o interesse do legislador
evitar e proteger a mulher contra a violência doméstica, na qual sempre se
sujeitou às “medidas comuns”, não havendo até o ano de 2006, regras e
procedimentos específicos que poderiam garantir sua proteção efetiva. Um
importante fundamento para a questão se encontra no fato de ser necessária uma
prestação jurisdicional que responda aos anseios, cada dia mais crescentes, da
sociedade, em busca da satisfação das suas pretensões, neste caso a aplicação
de medidas específicas de proteção à mulher vítima de violência nos termos da
Lei nº 11.340/06.
No primeiro capítulo, ressaltou-se na historia que, o papel
social do homem foi moldado para dominar a mulher e o da mulher para ser
submissa. Diante de tal relação desigual, surge na sociedade um modelo também
desigual, na qual exalta a “competição masculina”, sendo o intuito da lei mudar tal
mentalidade social, colaborando para a construção de uma convivência
equilibrada, pacífica e democrática entre os sexos.
No segundo capítulo sob o ponto de vista do Direito atual,
ressaltou-se o fato de que a figura do Estado representa importante papel na
promoção e garantia de direitos à mulher, apesar da promoção da ação penal
depender de aceitação da vítima em promover a referida medida, mediante
comparecimento em audiência preliminar nos moldes do art. 16 da referida lei,
muito embora possam existir aplicação de medidas protetivas pela autoridade
policial, conforme exposto.
79
Desse modo, a Lei 11.340/06 constituiu, sem dúvida, um
avanço para a consolidação do processo penal como efetivo instrumento de
garantia aos direitos sociais da mulher. Entretanto, isso somente será alcançado
se uma efetiva política de bem-estar social for implementada pelo Poder Público,
sob pena de transformar-se a referida lei em mais um capítulo do fracasso do tão
sonhado, Estado Democrático de Direito.
No terceiro capítulo enfatizou-se o fato de não haver
tipificação legal na referida lei e o excesso de divergência doutrinária acerca do
tema, observa-se que na tentativa de definição das condutas previstas como
crime, a Lei nº 11.340/06 remete aos tipos penais comuns, acrescentando-lhes
elementos especiais, definindo tecnicamente a doutrina de crime remetido, não
havendo, portanto, criação de tipos penais novos, fato este que exige a
interpretação sistemática dos arts. 5º e 7º da referida lei. Existe, entretanto, a
novidade de que a lei prioriza e prevenção especial em relação ao sujeito passivo,
ou seja, a vítima concreta do crime.
Neste sentido, todas as hipóteses abordadas no inicio da
presente monografia foram confirmadas. Portanto, ao contrário do que se pode
presumir, mesmo diante da eventual omissão do legislador em alguma matéria,
ou da não tipificação de crimes, não foi deixada de lado a preferência pela
proteção à mulher, principalmente nos casos de violência doméstica. Desse
modo, é pacífico o entendimento de que a Lei nº 11.340/06 é um avanço
legislativo, pois resgata o intuito da prevenção da lei penal do ordenamento
jurídico pátrio, acentuando-se a luta contra os crimes de violência contra a mulher
com atenção especial para a mesma, reprimindo-se, quando necessário o
agressor (acusado), pois objetiva, acima de tudo, resgatar a paz e o equilíbrio
social.
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