aspectos da cosmogonia e da cosmografia escandinavas

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Brathair 6 (2), 2006: 32-48. ISSN 1519-9053 http://www.brathair.com 32 Aspectos da Cosmogonia e da Cosmografia Escandinavas Prof. Titular Ciro Flamarion Cardoso Departamento de História CEIA, UFF [email protected] Resumo Este artigo discute algumas tendências recentes na interpretação da religião e da mitologia escandinavas originadas em tempos pré-cristãos, em análise que privilegia os poemas édicos de preferência à Snorra Edda. Após debates gerais de método e enfoque, dois temas são abordados mais em detalhe: a idéia de que aspectos do universo como era em seus primórdios continuam a existir em zonas remotas mas não de todo inacessíveis do mundo empírico; e a concepção nórdica de um universo imperfeito em sua natureza primeira e também corrompido por ações, contrárias à ética pré-cristã, cometidas por seres sobrenaturais que deveriam, pelo contrário, preservar a ordem universal. Palavras-chave: Religião escandinava, mitologia, cosmologia Abstract This text discusses some recent trends concerning the interpretation of Scandinavian religion and mythology as originated in pre-Christian times. Our analysis is based on Eddic poems rather than on Snorra Edda. After general discussions of method and conflicting theoretical standpoints, two subjects are treated in some detail: the notion that elements of a more primitive world still existed in far-away parts of the earth that could nevertheless be reached by travelers, even if this were a rare event; and the strong Scandinavian view of the universe as doomed due to the imperfection of its own first nature, and above all to corruption brought about by deeds contrary to pre-Christian ethics as perpetrated by supernatural beings who were supposed, on the contrary, to preserve universal order. Keywords: Scandinavian religion, mythology, cosmology

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  • Brathair 6 (2), 2006: 32-48. ISSN 1519-9053

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    Aspectos da Cosmogonia e da Cosmografia Escandinavas

    Prof. Titular Ciro Flamarion Cardoso

    Departamento de Histria

    CEIA, UFF [email protected]

    Resumo Este artigo discute algumas tendncias recentes na interpretao da religio e da mitologia

    escandinavas originadas em tempos pr-cristos, em anlise que privilegia os poemas dicos de preferncia Snorra Edda. Aps debates gerais de mtodo e enfoque, dois temas so abordados mais em detalhe: a idia de que aspectos do universo como era em seus primrdios continuam a existir em zonas remotas mas no de todo inacessveis do mundo emprico; e a concepo nrdica de um universo imperfeito em sua natureza primeira e tambm corrompido por aes, contrrias tica pr-crist, cometidas por seres sobrenaturais que deveriam, pelo contrrio, preservar a ordem universal.

    Palavras-chave: Religio escandinava, mitologia, cosmologia Abstract

    This text discusses some recent trends concerning the interpretation of Scandinavian religion and mythology as originated in pre-Christian times. Our analysis is based on Eddic poems rather than on Snorra Edda. After general discussions of method and conflicting theoretical standpoints, two subjects are treated in some detail: the notion that elements of a more primitive world still existed in far-away parts of the earth that could nevertheless be reached by travelers, even if this were a rare event; and the strong Scandinavian view of the universe as doomed due to the imperfection of its own first nature, and above all to corruption brought about by deeds contrary to pre-Christian ethics as perpetrated by supernatural beings who were supposed, on the contrary, to preserve universal order.

    Keywords: Scandinavian religion, mythology, cosmology

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    Aspectos textuais e terico-metodolgicos: controvrsias de enfoque no relativo mitologia escandinava

    Neste artigo estaremos lidando com fontes escritas que apresentem contedos mticos pertinentes ao nosso tema, por sua vez vinculado cosmogonia e cosmografia escandinavas pags, originadas em tempos pr-cristos. A delimitao de um corpus principal no interior daquele bem maior dos textos disponveis que, de uma ou outra maneira, vm sendo tratados como fontes primrias desde que tiveram incio os estudos cientficos acerca da mitologia nrdica, bem como o modo de trabalhar com os textos do corpus central, precisam ser esclarecidos de sada.

    Nossa escolha, no relativo ao corpus principal de fontes, recaiu na assim chamada Edda potica, em detrimento da Edda em prosa (ou Edda de Snorri) por mais que esta ltima no seja deixada de lado na anlise. A razo de tal escolha prende-se ao carter do texto de Snorri Sturluson (1179-1241). Em sua primeira parte em especial, Gylfaginning,1 temos um hbil compndio da mitologia escandinava pr-crist, com altas doses de racionalizao introduzidas pelo compilador. sem dvida notvel que, aps o prlogo de sua obra prlogo que talvez se deva a outro autor , o escritor islands do sculo XIII tenha, no conjunto, resistido tentao de alterar suas fontes com a finalidade de racionaliz-las de acordo com a moral crist (Davidson 1996: 24). Isto no significa ter escapado necessariamente ao impacto do cristianismo, mesmo porque, nas formas em que a elas teve acesso, suas fontes haviam sido redigidas majoritariamente por poetas que escreviam aps a cristianizao, embora o fizessem com base em tradies mais antigas (o que confirmado por paralelos textuais escldicos prvios datveis e por material iconogrfico obtido em pedras rnicas cronologicamente anteriores, por exemplo). Alm do mais, embora seja um dos poucos produtores de textos, na Islndia do sculo XIII (a obra datada de aproximadamente 1220), exteriores estrutura eclesistica, Snorri teve uma formao intelectual crist. O que mais nos preocupa, entretanto, o acentuado vis racionalista e evemerista presente em Snorri Sturluson: no temos dvidas de que tenha efetuado considerveis ordenamento e reinterpretao dos materiais expostos em seu compndio, com base em suas opinies, preferncias e concepes. Falando de outro modo, embora sejamos forados por dfaut a usar o livro de Snorri como fonte primria, sua estrutura a de uma fonte secundria (um texto altamente elaborado sobre a mitologia nrdica, baseado em fontes primrias, muitas das quais perdidas para ns). A regra metodolgica derivada destas constataes ser, na prtica, que nossa confiana nas asseveraes do Gylfaginning aumentar muito quando existir a possibilidade que no se d em todos os casos de confront-las com dados independentes; basear-se-, portanto, na intertextualidade.

    Como j foi dito, nosso corpus central de fontes ser o conjunto conhecido como Edda potica, datvel em sua parte principal, como a temos, de aproximadamente 1270 (Codex regius no 2365 da Biblioteca Real da Dinamarca), resultante da cpia de manuscrito no muito anterior; apresenta, porm, marcas evidentes de vrios estratos de formas mais antigas das tradies veiculadas. Como todas as fontes escritas que nos transmitem a velha mitologia escandinava, os poemas da Edda em nenhum caso podem ser anteriores nas formas disponveis ou aparentadas a elas , por razes lingsticas, a aproximadamente 700 ou mesmo 800, por estarem redigidos na modalidade ocidental do idioma escandinavo. Uma experincia foi tentada: substituir, nos textos poticos da Edda, a forma ocidental posterior, em que esto escritos, pelo nrdico mais antigo; verificou-se que, ao faz-lo, destrua-se a estrutura mtrica das estrofes (Hollander 1994: XVIII). Para o tema que desenvolvemos, os poemas mais importantes so os

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    quatro primeiros dentre os includos no Codex regius (Vlusp, Hvaml, Vafthrthnisml e Grmnisml). O texto denominado por Snorri Vlusp (Profecia da vidente) para nosso objetivo neste artigo, o mais relevante de todos parece emanar de um autor pago que viveu no final da Era Vking (Hollander 1994: 1) portanto, no perodo em que o cristianismo ia sendo oficialmente adotado em diversas regies do mundo escandinavo, com a significativa exceo, por bastante tempo, do que hoje a Sucia. assunto de controvrsia estabelecer se a Vlusp manifesta influncias crists e clssicas, e em que medida isto acontece; veremos que agora se acredita ter-se exagerado muito, no passado, o influxo cristo e se considera ser sua incidncia acompanhada de uma reinterpretao nrdica dos elementos importados. O poema toma a forma de uma exposio extremamente condensada das origens, desenvolvimento, extino e regenerao do universo atual, tal como aparecia configurado na cosmogonia e cosmografia escandinavas, poderosa em sua lacnica economia de meios, atribuda a uma vidente da linhagem dos gigantes que vivia desde o incio das coisas e foi convocada por thinn para comunicar aos deuses e aos homens os seus conhecimentos do passado e do futuro. O Hvaml, texto teoricamente enunciado por thinn, mescla caractersticas mticas (em especial em seu episdio final, correspondente s estrofes 138 a 165) e gnmicas. O Vafthrthnisml, claramente didtico, toma a forma de um dilogo entre thinn e o sbio gigante Vafthrthnir, tendo sido fonte das mais importantes para a Edda em prosa de Snorri Sturluson. Por fim, no Grmnisml thinn quem toma a palavra, sob o nome de Grmnir (mascarado, embuado), pronunciando um discurso didtico, mitolgico, em especial cosmogrfico, dirigido ao menino Agnar, filho do rei Geirroethr (Harris 1985; Nordal 1970-1971).2 Apesar da centralidade maior destes quatro poemas dicos, outros sero tambm utilizados, como se ver, alm de alguns poemas escldicos. Secundariamente, considerar-se-o a Gesta Danorum de Saxo Grammaticus e algumas das sagas lendrias.

    A mitologia escandinava pr-crist desenvolveu-se no contexto da oralidade. A escrita rnica no era usada para uma redao detalhada de mitos. Acredita-se que a primeira fixao por escrito da Vlusp, principal poema cosmolgico gerado na tradio daquela mitologia de que disponhamos, tenha ocorrido por volta do ano 1000, mesmo se, como a possumos, provenha de cpia do sculo XIII tardio. Ora, a Vlusp manifesta ntidas caractersticas de um relato mtico proveniente da tradio oral. Na medida em que a audincia conhecia os mitos, no era necessrio narr-los em detalhe. O poema procede por aluses, traando as pocas sucessivas do cosmo mediante uma srie escolhida de cenas vvidas e impressionantes com que, claramente, no se pretende contar em todas as mincias aquilo que narrado; episdios inteiros so s vezes omitidos. Outrossim, os textos disponveis da Edda potica (bem como os fragmentos mticos contidos na poesia escldica) permitem entrever a presena de variantes mticas, coisa que de se esperar num tipo de sociedade descentralizada social e politicamente como a que existia na Escandinvia pr-crist ou dos primrdios da cristianizao. Um dos especialistas da nova escola escandinava de interpretao da mitologia salienta que, na tradio oral, os elementos regulares dos mitos, tanto personagens quanto objetos, podiam ser combinados criativamente para expressar as idias e modalidades de pensamento que davam forma viso de mundo nrdica. Os poetas pareciam mais interessados nas idias e modalidades de pensamento mencionadas do que nos prprios mitos: aquelas que se repetem com variaes na poesia da Era Vking, na medida em que os poetas e outros intrpretes se esforavam para traduzir os mitos em conceitos que fizessem sentido para a vida e seus problemas (Sorensen 1997: 208). Snorri Sturluson, pelo contrrio, procurou expor, em prosa, uma forma acabada e coerente dos mitos, mesmo escolhendo, como fez, seguir em linhas gerais o ordenamento bsico da

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    Vlusp para a apresentao sistemtica da mitologia nrdica. Trata-se, ento, de obra bastante mais distante da tradio original, oral, da narrao mtica entre os escandinavos, escrita por um erudito cristo medieval; sem dvida, cheio de apaixonado interesse pela mitologia pr-crist (sobre o texto de Snorri, cf. Boulhosa 2004).

    Passando agora s opes de mtodo, um princpio que parece bvio quando se trata da anlise de textos escritos como os que aqui nos interessam, mas muitas vezes ignorado pelos especialistas, consiste na distino necessria entre: os contedos veiculados pelos escritos; e as formas estruturadas consideradas texto a texto em que nos chegaram. Na prtica, isto significa, metodologicamente, que, em paralelo importncia inegvel da intertextualidade para o entendimento textual, no menos essencial respeitar as caractersticas prprias de cada uma de nossas fontes primrias. Ora, com demasiada freqncia as exposies da mitologia escandinava, tal como aparecem em escritos dos sculos XIX e XX, do a impresso de mosaicos ou colchas de retalhos que se constroem mediante uma justaposio ou arranjo de elementos ou passagens retirados de numerosas fontes diferentes, sem prvia anlise atenta s especificidades semiticas de cada texto definindo-se texto como um enunciado auto-suficiente, fechado, dotado de significao e funo integrais no passveis de diviso: dotado, portanto, de clausura ou autonomia semntica, bem como de coerncia; caractersticas estas que remetem s estruturas intrnsecas ao texto (Cardoso 2005: 108). Em outras palavras, certas precaues so necessrias antes de juntar fragmentos textuais numa sntese minimamente legtima. Ao se assumir tal postura metodolgica, verificar-se- ter sido uma atividade equivocada a tentativa tradicional de construir uma mitologia escandinava unificada e inequvoca, baseada na premissa errnea de que uma mitologia fixa houvesse existido alguma vez, que, sendo lgica e bem arrumada em todos os detalhes, permanecesse assim por um longo perodo (Davidson 1993: 71).

    Em artigo publicado nesta revista (Cardoso 2004) optamos por um enfoque terico-metodolgico, no campo da histria das religies, que consiste em consider-las, num contexto derivado de Antonio Gramsci, como ideologias historicamente orgnicas (Gramsci 1966: 62-3). Neste texto adotamos igualmente tal ponto de vista. Que significa ele no caso de um estudo da mitologia escandinava? Um bom ponto de partida pode ser o da viso contrastante entre paganismo e cristianismo.

    A posio tradicional a respeito ser exemplificada com Else Roesdahl, segundo a qual os conceitos subjacentes religio pr-crist da Escandinvia, tal como os lemos nas fontes disponveis, parecem freqentemente obscuros e, de certo modo, primitivos. Ao referir-se s possveis razes que favoreceram a adoo do cristianismo, menciona esta: Pode ter parecido atraente ter um deus nico em lugar dos muitos deuses que com freqncia se mostravam inteis. A autora estabelece, como se pode notar, uma hierarquia, considerando ser o cristianismo religio superior ao paganismo escandinavo juzo de valor acerca de uma religio a partir das caractersticas de outra que, em histria, carece totalmente de sentido. Tal postura, alis, leva Roesdahl a cair em contradio, pois, como mostra, a converso da Escandinvia ao cristianismo, marcada por rivalidades entre missionrios anglo-saxes e das regies germnicas continentais, apoiados de perto pelos governos de seus lugares de origem, ocorreu em longo processo cheio de resistncias e apostasias, sendo que s em 1103 ou 1104 surgiu o primeiro arcebispado escandinavo, o de Lund (na poca, parte da Dinamarca), concluindo um perodo prolongado em que as igrejas locais dependeram do arcebispado de Hamburgo-Bremen. Estes dados so incompatveis com a noo de uma superioridade intrnseca do cristianismo sobre o paganismo escandinavo. Se fosse assim, por que um processo de converso to difcil e longo (ainda mais se recordarmos

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    os muitos sculos de contatos dos escandinavos com reinos cristos da Europa Ocidental e com Bizncio), em lugar de um paganismo que, diante da superioridade crist, se esboroa como castelo de cartas tocado pelo vento? E por que, mesmo aps a converso, houve na Islndia um interesse to persistente pela religio pr-crist que, durante o sculo XVII, ainda motivava a exposio de mitos pagos em manuscritos (nestes casos muito tardios, redigidos em papel)? (Roesdahl 1991: 148-67; Boyer 2002: 164-6, 227-8; Sawyer e Sawyer 1997: 100-8; Richards 2005: 24-8.)

    A tendncia predominante nos estudos mais recentes do paganismo escandinavo por historiadores das religies consiste em encarar tal paganismo como uma religio altamente complexa, satisfatria para os que a praticavam. Tratava-se, sem dvida, de um conjunto de crenas e prticas baseadas em atitudes muito diferentes das que estruturavam o cristianismo. Assim, no tocante s divindades, o culto s mesmas no tinha como corolrio a aceitao das caractersticas e aes divinas como algo indiscutvel: a religio era s um aspecto da vida entre outros e as aes cultuais, tais como eram exigidas pelo panteo nrdico, no consistiam em adorao, nem mesmo em aprovao acrtica (Richards 2005: 20). Em um poema dico, Lokasenna, o semideus Loki (filho de um gigante e de uma deusa) cobre as diversas divindades de crticas sarcsticas um tipo de texto que seria absolutamente impensvel no corpus de escritos sagrados de uma religio revelada. Hollander, que caracteriza adequadamente tal escrito como uma chronique scandaleuse do Olimpo nrdico, no tem razo, porm, ao afirmar ser impossvel acreditar que a Lokasenna tenha sido composta dentro de qualquer esprito de propaganda sria, ou mesmo de f nos deuses, como alguns eminentes intelectuais opinam (Hollander 1994: 90 e nota 1). Pelo contrrio, num contexto pago, o que um cristo veria como imperfeies incompatveis com o divino traria as divindades para mais perto dos homens, mostrando-as como seres poderosos mas no excessivamente remotos ou diferentes dos humanos. As imperfeies talvez facilitassem o acesso, as relaes de troca, o do ut des implcito nas religies centradas num culto sacrificial. O paganismo escandinavo como outros paganismos era compatvel com uma hierarquia das divindades, at mesmo com a noo de existirem deuses vencidos (Fricker 1999: 139-40) como os Vanir; pelo menos, assimilados a ponto de terem sua mitologia prpria majoritariamente apagada. A religio pr-crist apresentava estruturas intrnsecas bem adequadas a uma sociedade descentralizada, dotada de reis mas no de monarquia, em que tanto os reis quanto os chefes locais cumpriam importantes funes de liderana religiosa. Esta adequao entendida, no como projeo direta do social e do poltico sobre o religioso, mas sim, como uma compatibilidade estrutural bsica entre o social, o poltico e o religioso naquela sociedade , precisamente, o que se quer expressar quando se fala de uma religio como ideologia historicamente orgnica. Enquanto foi assim, os elementos cristos porventura importados passavam por uma interpretatio nrdica, ressignificando-se ao ingressarem nas estruturas pags. Careceria, ento, de grande sentido o rastreamento sistemtico de influncias crists nas fontes mais antigas de que dispomos, atividade desempenhada no passado com grande denodo e, alis, exagerando muito tais influncias e os elementos da mitologia nrdica tardia (a nica que possamos estudar com textos) que se afirmava serem de origem crist ou provenientes da Antiguidade clssica. Do ponto de vista do enfoque gramsciano da religio como ideologia historicamente orgnica, a converso ao cristianismo como afirmamos, longa e difcil foi processo decorrente em primeiro lugar dos interesses dos reis e da parte das elites ligada realeza em promover e depois intensificar a centralizao e a hierarquizao das sociedades e dos poderes; um empreendimento que as caractersticas do cristianismo medieval certamente favoreciam (Sorensen 1997: 221-4).

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    Usamos com grande proveito diversas obras do grande especialista francs em assuntos escandinavos inclusive os religiosos que Rgis Boyer. Concordamos com muitas de suas opinies. No entanto, separamo-nos de suas perspectivas em alguns aspectos de peso considervel. Em primeiro lugar, sua tendncia bem marcada e auto-confessada a corrigir o que, s vezes de maneira excessivamente absoluta, encara como erros cometidos por certos autores (Boyer 2002: 118 neste ponto, trata-se de uma srie de imagens e lugares-comuns acerca dos vkings que seria necessrio, em todos os casos, tomar um depois do outro e desmantelar) 3, numa perspectiva do tipo ou isto ou aquilo que aplica mesmo a assuntos, como as religies no-reveladas que contm considervel variao tanto no tempo quanto, em cada fase, no espao , para os quais com freqncia prefervel a perspectiva do tipo isto e aquilo tambm. Ou seja, nem sempre preciso que quem escreve atualmente sobre o tema escolha entre verses mticas ou procure alguma delas que seja mais autntica, ou mais antiga. Ao se tratar de religies no-reveladas, o princpio do terceiro excludo, tpico da lgica aristotlica, no necessariamente aplicvel; o que ns encaramos como uma contradio a solucionar no incomodava de modo algum a ouvintes ou leitores.

    Vamos exemplificar com as nornas, personagens da mitologia escandinava que se vinculam tanto organizao da temporalidade (relao entre passado, presente e futuro) quanto ao destino do mundo em geral ou das pessoas em particular. Para Boyer, teramos uma evoluo, uma mudana: de incio haveria inmeras nornas, posto que tais personagens femininas teriam a ver com o destino pessoal dos indivduos; mais tardiamente, devido talvez a uma influncia das concepes gregas antigas sobre as parcas se bem que o autor no descarte de todo a possibilidade de uma imagem primordial indo-europia (mas, neste caso, deixaria de fazer sentido a noo de uma evoluo no tempo) , as nornas passaram a ser trs irms que, como as parcas gregas, fiavam o destino dos mortais (Boyer 1998: 243-4). Ora, como egiptlogo, sei que a deusa Hthor do antigo Egito na imensa maioria dos textos era uma s; mas, ao se tratar do estabelecimento do destino dos recm-nascidos, falava-se das sete Hthors. Analogamente, no contexto do tribunal de Osris, por contaminao mtica pelo par feminino sis-Nftis, a deusa Maat, habitualmente nica, passava a ser as duas Maats. E no h necessidade de se invocar qualquer evoluo ou mudana: trata-se de contextos diferentes, concomitantes, em que uma divindade habitualmente nica pode duplicar-se, ou septuplicar-se. Isto, ao se tratar de uma religio no-revelada, extremamente comum e no h porque o considerar problemtico. Em outras palavras, acho que as nornas podiam ser muito numerosas em certos contextos e s trs em outros, sem que tal constatao constitua um problema para cuja explicao o estudioso precise postular uma evoluo no tempo. Acho tambm que, se examinarmos a posio delas no texto da Vlusp (estrofes 19-20), num contexto em que se exps previamente o advento da temporalidade no universo antes atemporal (estrofes 4-6), o fato de terem nomes que remetem s noes de passado, presente e futuro faz todo o sentido (estrutural) do mundo, no se tratando necessariamente de um decalque das parcas gregas (Boyer 1998: 244).

    Outro exemplo a firme convico de Boyer de ser errneo atribuir um carter mgico s runas; afirmar o contrrio decorreria da viso equivocada, externa, daqueles que no as pudessem ler. Significativamente, em funo disto, o seu entrevistador, Jean-Nol Robert, pensou que a atribuio de um carter mgico s runas fosse dado recente, ao que Boyer respondeu, corretamente, que no, tratando-se de algo que remonta Idade Mdia. O seu argumento baseia-se no duplo sentido do termo rna em noruegus antigo: significava runa, sem dvida; mas tambm, mistrio sagrado. Assim, por exemplo, no Sigrdrfuml da Edda potica, a valquria Sigrdrfa ensina ao heri

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    Sigurthr os grandes segredos mgicos (rnor) cujo conhecimento seria necessrio para triunfar de perigos variados (Boyer 2002: 193-7). Se examinarmos o poema em questo, no entanto, veremos que no se trata somente disto. O processo tem a ver tambm com uma fora mgica intrinsecamente associada no texto: runa inicial do nome do deus Tr, a ser inscrita em armas; a exemplos de magia simptica envolvendo a inscrio de runas; ou ao fato de grafar tais runas em diferentes objetos e depois rasp-las e dissolv-las numa bebida para, deste modo, absorver a fora mgica contida nos signos (Sigrdrfuml, por exemplo estrofes 7, 12, 20). A mesma ambigidade que atribui a magia tanto aos contedos das frmulas mgicas quanto sua expresso escrita em runas aparece tambm na parte final do Hvaml: ver por exemplo as estrofes 139 e 142-3 (runas gravadas por thinn, a serem lidas pelo peso intrnseco de sua magia prpria). Nestas condies, mesmo sendo verdade que, por muitos sculos, as runas foram empregadas em textos epigrficos desprovidos de intenes mgicas Boyer e outros que pensam como ele (Page 2000: 11-2) tm razo em criticar a teoria de germanistas de outra gerao que afirmavam terem sido as runas inventadas com a inteno precpua de um uso mgico delas , falso pretender que o seu carter no-mgico continuasse a ser evidente em textos escritos majoritariamente islandeses e sem dvida tardios (mas, de longe, os mais importantes de que dispomos para estudar o paganismo escandinavo), pois, para os autores que os compilaram, as runas claramente tinham, em si e por si, um poder mgico, importando pouco, afinal de contas, se o pensavam por j no serem capazes de ler as inscries rnicas. Nestas condies, o que justificaria a afirmao de Boyer de que fatos assim no permitiriam concluir ser mgica a natureza desta escrita (Boyer 2002: 107)? Por acaso a fidelidade a alguma phsis intrnseca das runas mais importante para o historiador atual do que configuraes textuais a respeito delas efetivamente constatveis nos documentos pertinentes?

    Esta espcie de fundamentalismo presente em alguns pontos dos textos de Rgis Boyer poderia decorrer em parte de ter sido, em certa poca, discpulo de Georges Dumzil, que no entanto critica por suas construes abstratas e atemporais (sincrnicas mais do que diacrnicas), que funcionam mal para a mitologia ou as estruturas sociais da Escandinvia medieval (Boyer 2002: 85-90, 176-8). Dumzil, inovador em certos aspectos, continuava no entanto como creio ser tambm o caso de Boyer excessivamente voltado para o problema das origens, que foi uma preferncia terica e temtica pouco produtiva das Religionswissenschaften em seus incios, no sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX (Hinnells 1995: 197: verbete Origem da religio). A forma que assumia entre os escandinavos a criao mtica, marcada pela maleabilidade dos mitos no processo de gerao de mensagens conceituais significativas para a vida e seus problemas, implica que nem sempre faz sentido procurar a verso mais antiga ou original de um dado mito (Sorensen 1997: 208). No caso de Boyer, a preocupao com as origens se nota, por exemplo, em seu estudo que tem muitos aspectos brilhantes sobre a morte entre os antigos escandinavos. Ele acredita existirem semelhanas ntidas entre os mortos (...) e as categorias de seres mais ou menos subterrneos que so os gigantes, os anes, os trolls e os landvaettir (Boyer 1994: 41). Pouco adiante, afirma tambm, apoiando-se nos captulos 5-6 e 8-9 da primeira parte da Edda em prosa, que do gigante primordial Ymir seriam provenientes as espcies dos gigantes e dos deuses, e o conjunto do mundo criado, de tal modo que sua figura colossal domina toda a cosmogonia nrdica antiga (Boyer 1994: 43). Esta ltima afirmao parcialmente inexata. O av paterno de thinn, Bri, tem uma origem paralela de Ymir de quem, portanto, no descende na Snorra Edda e no considerado um gigante. Assim, o pai dos Aesir provm de gigantes

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    oriundos de Ymir somente pelo lado materno. A origem dos deuses Vanir, objeto de total silncio na Vlusp, , em Snorri, obscurecida por sua forte tendncia evemerista neste ponto, ao tratar os Aesir e os Vanir como governantes (humanos) em luta que depois trocam refns o que fica mais claro na parte inicial do Heimskringla (Ynglinga saga, captulo 4). Nada se pode afirmar, ento, sobre serem ou no os Vanir descendentes de gigantes: simplesmente no o sabemos. Boyer sublinha que uma das bases da religio escandinava seria o culto das grandes foras naturais, o sol, a gua, a rocha, o vento, o fogo, o ar, todos encarnados em gigantes que, sem falta, geram os deuses; a outra, talvez mais importante, residiria no culto dos antepassados, dos mortos, que desempenhou um papel muito considervel naquelas mentalidades (Boyer 2002: 84).

    Independentemente de serem ligados em sua origem os mortos, gigantes, anes e deuses, elementos que me parecem muito mais relevantes so, por exemplo, num texto como a Vlusp e tambm na Snorra Edda: gigantes e deuses esto em mtua oposio estrutural (naturalmente, Boyer no ignora algo to evidente: Boyer 1994: 42); os anes e os gigantes so funcionalmente bem distintos entre si e os primeiros tm um perfil muito mais positivo do que os ltimos; na cosmografia, mortos, gigantes, homens vivos, anes e deuses ocupam espaos especficos que configuram a forma do universo; no Ragnark (fim do universo atual), o assalto aos deuses ocorre de parte dos gigantes (incluindo a Serpente do Mundo e lobos a eles associados), por um lado, dos mortos, por outro: mas no concertadamente, pois no se trata de tropas unificadas. Menos ainda teramos um combate entre mortos e homens vivos, confundindo-se estruturalmente homens e deuses (Boyer 1994: 214), interpretao que no autoriza nem o texto da Vlusp, nem o do Gylfaginning que integra a Snorra Edda. Sendo assim, a nosso ver bem menos importante para a estrutura dos mitos, mesmo se for verdadeiro, que, nas origens da religio escandinava, da noo de uma vida pstuma dos mortos tambm derivasse aquela da existncia de gigantes e anes; ou que os deuses apresentassem, como sem dvida apresentavam, diversas vinculaes comprovveis com os gigantes. Queiramos ou no, em textos tardios que se apia, principalmente, o conhecimento da mitologia escandinava; e, neles, so mais decisivas oposies como as que foram indicadas. Estas oposies no eram simples, permitiam mltiplas mediaes e partiam do princpio portador de ambigidade em certos casos de que tudo o que existe necessrio. A mitologia escandinava no operava com dualidades absolutas do tipo cristo o Bem e o Mal, por exemplo. Assim, para exemplificar: os gigantes so opostos aos deuses como seus inimigos mas, tambm, sbios bem informados sobre as origens em sua qualidade de seres primordiais; a Serpente do Mundo tem aspectos caticos e ameaadores mas, ao mesmo tempo, ancora horizontalmente o mundo organizado com seu corpo descomunal; o casamento entre o deus Freyr e a gigante Gerthr, segundo sabemos por dados arqueolgicos, assumia a funo mitolgica de um tpico matrimnio sagrado que unia opostos csmicos e fundamentava linhagens rgias.

    A sintaxe narrativa da Vlusp

    A Vlusp um texto narrativo. Sendo assim, possvel aplicar-lhe a metodologia semitica desenvolvida pela narratologia para anlise dos relatos. Em se tratando da estrutura sinttica do texto, h diversos modos de especificar formalmente a sintaxe narrativa, entre os quais o de Tzvetan Todorov, que utiliza a noo de seqncia narrativa. Para Todorov, uma seqncia narrativa comporta cinco partes: 1. situao

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    inicial; 2. perturbao da situao inicial; 3. desequilbrio ou crise; 4. interveno na crise; 5. novo equilbrio. Trata-se, ento, de uma lgica que alterna situaes e estados mais estticos (situao inicial, desequilbrio ou crise e novo equilbrio final) com processos dinmicos que modificam os dados precedentes (perturbao da situao inicial e interveno na crise) (Cardoso 2005: 43-4).

    Na aplicao nossa fonte do mtodo de Todorov, como s desejamos estabelecer uma estrutura geral do poema Vlusp em seu conjunto tomando-o como base ou moldura de quaisquer consideraes acerca da cosmogonia, cosmografia e escatologia nrdicas pr-crists , consideraremos a presena, no texto em questo, de uma nica superseqncia narrativa, que poderia facilmente ser destrinchada em seqncias menores, caso se desejasse. O entendimento cabal de tal estruturao exige, em vrios pontos, esclarecimentos adicionais provenientes de outras fontes, dado o carter alusivo da Vlusp e as suas omisses de dados.

    1. Situao inicial: do caos que precede a criao, alguns seres emergiram espontaneamente, sem a interveno de entes criadores personificados: o gigante Ymir e o av de thinn (sendo este ltimo o pai dos Aesir), Bri. A Vlusp omite tanto Ymir quanto um terceiro ser primordial, a vaca Authumla; e Bri nela aparece s implicitamente, pela meno dos trs primeiros deuses como filhos de Bur (sendo Bur por sua vez filho de Bri, como sabemos por outras fontes). Dos seres primordiais derivam os gigantes e os deuses Aesir. Os trs primeiros Aesir comeam a configurar o universo em sua forma atual mediante o sacrifcio do gigante Ymir, cujo corpo foi a matria-prima do cosmo como o percebemos. Na gerao dos seres pensantes, os anes constituem uma transio, pois surgiram espontaneamente como vermes no corpo morto de Ymir como nos informa Snorri mas, posteriormente, receberam dos deuses forma humanide e inteligncia. Neste cosmo inicial no existia a temporalidade. (Estrofes 1 a 5 e 9 a 16) 2. Perturbao da situao inicial: os deuses criaram o tempo mediante o estabelecimento de trajetrias ordenadas para os astros e a instalao das trs nornas como ordenadoras do destino (ou seja, de coisas que acontecem no tempo) , a cultura e os homens; proporcionaram tambm ao mundo uma cosmografia estruturada, subjacente quilo que os humanos pudessem perceber pelos sentidos, dotada de um eixo horizontal (a distino entre a Terra Mdia, o oceano onde a gigantesca Serpente do Mundo ancora a separao e as terras caticas perifricas) e de um eixo vertical (o imenso freixo csmico Yggdrasill e os espaos configurados por suas razes). No universo imperfeito assim organizado, a dinmica criadora vincula-se quase sempre a sucessivos conflitos e infraes ordem que, supostamente, os deuses deveriam proteger contra o assdio permanente das foras do caos, o que termina por conduzir a uma ameaa criao, cosmografia estruturada. Medidas paliativas so tomadas pelos deuses, que estabilizam a situao e adiam a crise, sem que se solucionem de fato os problemas. (Estrofes 6 a 8 e 17 a 34) 3. Desequilbrio ou crise: em funo sobretudo de infraes morais perpetradas pelas divindades contra a ordem e o equilbrio do cosmo, acaba por sobrevir um perodo de crise marcado por desordens e desgraas diversas, bem como por prenncios de que mudanas drsticas iriam ocorrer na estruturao do universo. (Estrofes 35-46) 4. Interveno na crise: as foras caticas das origens (gigantes antropomorfos e em forma de lobos; a Serpente do Mundo) e da morte atacam o Sol, a Lua e o ncleo organizado da Terra, defendido pelos deuses; a vitria das primeiras que, no entanto, so tambm destrudas culmina na conflagrao e desaparecimento do universo at ento existente. (Estrofes 47-57)

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    5. Novo equilbrio: sem que se saiba como, emerge um novo universo, mais harmonioso do que o anterior mas no de todo desprovido de elementos de instabilidade, portanto, dinmico ele tambm. (Estrofes 58-65)

    Dissemos que a Vlusp se organiza como um relato. O prprio fato de ser possvel estabelecer a sintaxe narrativa do texto mostra que ele se ordena, em termos gerais, segundo um eixo temporal: caos inicial/gerao dos seres e do mundo/ameaas ao equilbrio universal instvel/destruio do universo atual/surgimento de um novo universo. Parece bvio, portanto, que o texto se organize segundo o eixo temporal passado/presente/futuro. Entretanto, no detalhe, no se pode afirmar sempre que um episdio que precede outro na estrutura textual seja, por tal razo, temporalmente anterior. Dentro de cada grande diviso da temporalidade, o texto se estrutura sintaticamente segundo ordens de idias, configurando aspectos expostos (alusivamente) cada um em sua lgica; cada episdio assim narrado pode ser concomitante com assuntos j descritos. Por tal razo, no procede, por exemplo, a observao de R. I. Page quando, em um captulo acerca dos aspectos cosmolgicos da mitologia escandinava, ao se referir, com base em diversas fontes (mas no contexto da estruturao geral provida pela Vlusp e por Snorri Sturluson, cujo Gylfaginning parte inicial da Snorra Edda segue a ordem daquela em linhas gerais, como j se viu), criao do universo, descrevendo como os filhos de Bur (thinn, Vili e V) configuraram o mundo com partes do cadver do gigante primordial, Ymir, que mataram, comenta o detalhe de que tais deuses colocaram quatro anes Norte, Sul, Leste e Oeste , cada um sob um dos pontos cardeais, para sustent-lo, observando ironicamente acerca de tais anes: De onde vieram eles, pergunto eu? (Page 1993: 58). A ironia decorre de que, na ordem textual da Vlusp, a criao do mundo pelos filhos de Bur (ou Borr) est na estrofe 4, enquanto a origem dos anes objeto da estrofe 9. Entretanto, como os anes procedem de vermes surgidos espontaneamente no corpo morto de Ymir nomeado na estrofe 9 da Vlusp mediante duas hipstases suas, Brimir e Blinn (Renaud 1996: 35) , sendo dotados a seguir de forma humanide e inteligncia pelos deuses (Gylfaginning, captulo 14), v-se que a sua origem foi, para comear, uma das conseqncias imediatas da morte do gigante primordial, mesmo se, na Vlusp, mencionada bem depois da primeira configurao do universo pelos mais antigos deuses Aesir. Afinal, impossvel relatar tudo ao mesmo tempo: a economia narrativa exige, para garantir alguma clareza, contar em separado episdios que, no entanto, podem ser simultneos.

    Elementos remanescentes do estdio primitivo do mundo na realidade contempornea: o exemplo das Plancies de Glasir

    Como j se viu, o universo criado pelos deuses a partir dos despojos do gigante primordial Ymir e por eles reordenado aps a criao do tempo apresentava dois eixos no visveis para os humanos: a Serpente do Mundo, que, mordendo sua prpria cauda, ancorava, no oceano, a tripartio horizontal em Terra Mdia (Mithgarth), oceano e rea perifrica considerada domnio de gigantes das montanhas e do gelo (Jtunheimr, a morada dos gigantes), aspecto que aqui nos vai interessar; e o freixo Yggdrasill, eixo vertical.

    A geografia mtica podia eventualmente ser interpretada em termos da geografia emprica. Assim, em relatos islandeses tardios, viajantes podiam chegar, ou navegando

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    ou por via terrestre, a paragens descritas pelos mitos e no habitualmente acessveis no dia-a-dia. Um conto ou saga lendria, a Saga de Sanso, afirma (apud Plsson e Edwards 1987: 9):

    As Plancies de Glasir esto situadas a leste da Terra dos Gigantes, que fica para o leste e o norte do Bltico e se estende numa direo nordeste. A seguir existe a terra conhecida como Jtunheimr, habitada por gigantes e monstros; e, entre Jtunheimr e a Groenlndia, estende-se uma terra chamada Svalbard [Spitzbergen].

    Se o espao mtico pode ser eventualmente localizado no espao emprico, tambm factvel interpretar eventos da histria humana luz de mitos. o que acontece quando o encontro mtico carregado de conseqncias entre um deus e uma gigante se transporta para escritos histricos medievais na forma da conjuno de um rei com uma mulher misteriosa, dotada de poderes especiais, proveniente de alguma regio remota: um exemplo o casamento do rei noruegus Eirkr Machado Sangrento com Gunnhildr, vinda de um norte distante cujos habitantes, acreditava-se, eram hbeis mgicos (Heimskringla: Harald saga Hrfagra, captulo 43; Sorensen 1997: 216).

    nossa hiptese ter sido a transferncia da localizao da residncia dos deuses principais da terra para o cu o fator que deu origem ao mito persistente das Plancies de Glasir como remanescentes de um espao primordial cheio de perfeies, situado em algum lugar do mundo eventualmente acessvel aos humanos; j no habitado por deuses, no entanto. Com efeito, na Vlusp fica claro ser em uma regio da Terra Mdia, situada no centro do universo conformado a partir dos restos de Ymir, onde se situava o domnio divino: em Ithavllr, a Plancie Brilhante (ou, segundo outros, a Plancie Sempre Verdejante), foram construdas moradas divinas, forjas e ferramentas pelos deuses Aesir primordiais, ricos em ouro; tambm na Terra Mdia, em zona costeira, foram achados os dois primeiros humanos, cujos nomes indicam uma origem vegetal o que confirmado por outras fontes , dotados ento pelos deuses neste ponto chamados thinn, Hoenir e Lthur (talvez identificveis ao trio thinn, Vili e V) de alento e percepo (Vlusp, estrofes 7-8, 17-18). No h dvida de que ambos os episdios o do incio da cultura e o da conformao dos humanos , protagonizados pelos primeiros Aesir, tenham ocorrido na Terra Mdia. Outras fontes acrescentam detalhes a tais episdios, sem contradizerem a verso deles na Vlusp (Grmnisml, estrofe 41, para a criao da Terra Mdia, estrofes 5-16 para as moradas divinas; captulo 9 de Gylfaginning para a criao dos humanos e tambm para uma regio terrestre dos deuses, sgarthr). No Grmnisml aparece j claramente, porm, a noo de que os deuses residam no cu, posto que, na estrofe 29, menciona-se a ponte dos deuses ou arco-ris flamejante, bem como, na mesma e na estrofe 30 talvez interpolada , fica claro que tal ponte percorrida diariamente pelas divindades ao descerem, montando seus corcis, do cu para o centro da Terra, onde se renem junto ao freixo Yggdrasill (com a notvel exceo do mais mundano Thrr, que prefere dirigir-se ao ponto de encontro dos deuses a que com freqncia chega atrasado por via terrestre, atravessando rios a vau). Quanto ao Gylfaginning de Snorri, nele o sgarthr divino ora terrestre (captulo 9), ora celeste (captulos 15-6; ver tambm Renaud 1996: 31). Parece certo, entretanto, ter-se tornado predominante, com o tempo, a noo de residirem os deuses no cu.

    O antigo domnio terrestre dos Aesir sobreviveu na tradio escandinava como uma regio maravilhosa, misteriosa e remota, eventualmente visitada por viajantes que a descrevem: so as Plancies de Glasir, ou Plancies Resplandecentes Glasisvellir, Glaesisvellir , que parecem corresponder Ithavllr dica dos deuses, designao de

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    significado bem prximo. Note-se que no este o nico exemplo de uma regio primordial do mundo ainda existente na realidade posterior. Na Vlusp, quando se narram os sinais precursores dos fins dos tempos, torna-se possvel verificar a persistncia de elementos e reas venenosos, presentes desde o caos inicial que antecedeu a criao, se bem que as vises a respeito paream confusas e talvez textualmente corrompidas (estrofes 35-39).

    As tradies relativas s Plancies de Glasir e seu rei Guthmundr foram preservadas em textos relativamente tardios. Saxo Grammaticus, cuja obra Gesta Danorum data de aproximadamente 1200, as conhecia (livros II e VIII). Em alguns contos ou sagas lendrias da Islndia do sculo XIV, tais tradies se mesclam de maneira inextricvel com elementos celtas, cristos e provenientes da literatura europia continental; mesmo assim, no conto de Helgi Thrisson (Cardoso 2005: 67-83) mantm-se forte ambigidade em torno de Glasisvellir e seu soberano Guthmundr. Embora este ltimo aparea como feiticeiro malfico, antagonista do rei cristo da Noruega, dele tambm diz Helgi, o protagonista: Quanto ao estilo de vida e ao esplendor do rei Guthmundr, no tenho palavras para descrev-los. Um dos aspectos deste esplendor a incrvel riqueza em ouro, uma constante em todas as verses disponveis acerca deste rei e de seus domnios. Em outro dos contos tardios o rei no passa de um malfeitor truculento e incompetente. Entretanto, algo da tradio pag acerca de seu reino mirfico preserva-se em escrito de aproximadamente 1250, Hervarar saga ok Heithreks konungs (apud Boyer 1998: 232):

    Os pagos acreditam que no reino de Guthmundr das Plancies de Glasir se achava dinsakr e que qualquer pessoa que fosse para l viraria as costas para a doena e a velhice, no morreria.

    Sendo dinsakr, literalmente, o campo da no-morte, pode-se supor ser o rei de Glasisvellir, Guthmundr, um soberano imortal. Esta noo foi racionalizada, em Thorstein thttr baejarmagns (sculo XIV), mediante a transformao do nome numa espcie de ttulo que passava de pai para filho: todos os reis de Glasisvellir chamavam-se Guthmundr. Neste conto, ao contrrio do que diz Rgis Boyer sobre o soberano mtico de Glasir (Boyer 1998: 234), Guthmundr um ser humano de qualidades e caractersticas superlativas, e no um gigante afirma, inclusive, no apreciar ser tributrio de gigantes ; e seu reino no o mesmo pas do maligno gigante Geirroethr (Boyer 1998: 233, onde se diz reinarem os antagonistas Guthmundr e Geirroethr sobre a mesma regio), mas sim, uma regio prxima e tributria, que termina por se rebelar contra o domnio do soberano gigante e seus aliados igualmente malficos e traioeiros, como o conde Agdi (Plsson e Edwards 1987: 263-75). Em outras palavras, Glasisvellir fica no extremo limite da Terra Mdia.

    Um universo imperfeito, instvel e dinmico

    A dinmica talvez o que mais chame a ateno na viso de mundo escandinava pag. O prprio caos primordial no era imvel e esttico como em outros mitos das origens, mas sim, marcado por uma instabilidade com efeitos cumulativos. Infelizmente, este um ponto em que dependemos sobretudo de Snorri, que prov uma exposio muito retocada e racionalizada da relao entre o abismo vazio catico central, Ginnungagap, e as zonas que com ele confinam, ao norte uma rea tenebrosa, gelada e venenosa, Niflheimr, e ao sul uma regio flamejante marcada pelo fogo

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    destruidor, Muspellheimr (Gylfaginning, captulos 4 a 6). Entretanto, a tradio dica potica confirma um ponto importante: o carter venenoso dos eflvios que deram origem, sem a interveno de entidades criadoras personalizadas, aos seres primordiais o gigante Ymir, o antepassado dos Aesir, Bri, e a vaca Authumla , com clareza incontrovertvel, considerado elemento explicativo dos aspectos negativos, violentos, perceptveis na natureza dos gigantes descendentes de Ymir, sendo este ltimo s vezes chamado por outros nomes (Vafthrthnisml, estrofe 31). Por conseguinte, na medida em que os deuses Aesir descendem dos gigantes pelo lado materno e, pelo paterno, de Bri, cuja origem foi paralela e portanto similar de Ymir, e em que o corpo deste gigante das origens foi a matria-prima do universo sem excluir a cobertura vegetal da Terra, sada dos seus cabelos, da qual procederam os primeiros humanos (Grmnisml, estrofe 41; Vlusp, estrofe 17; Gylfaginning, captulo 9) , no possvel duvidar de que a imperfeio, j presente no caos inicial, tenha passado para os seres e as etapas posteriores do universo, neles se reproduzindo. Um elemento que o confirma o freixo csmico Yggdrasill, evocado j no incio da Vlusp (estrofe 2) como ente ainda virtual uma semente no germinada , efetivado na etapa da criao da temporalidade, em associao com as nornas (estrofes 19-20). A rvore que constitui o eixo vertical do mundo descrita, tambm sem ambigidade, como estando constantemente ameaada por elementos de destruio, apresentando j o seu tronco um incio de apodrecimento (Grmnisml, estrofes 25-26, 29-36). As medidas adotadas pelas nornas para sua preservao so claramente paliativas e, ao aproximar-se o fim dos tempos e o desencadear das foras caticas, Yggdrasill, que ser destrudo como o resto do universo, treme enquanto geme a sua folhagem (Vlusp, estrofe 46). Vimos em outro lugar que o arranjo horizontal da Terra, ancorado pela Serpente do Mundo, analogamente precrio, provisrio, perturbado mesmo antes do fim do mundo por estremecimentos do monstro, causadores de ressacas e maremotos. O universo fsico, imperfeito, dinmico: sua prpria instabilidade o torna mutvel, origina desenvolvimentos que tm lugar no tempo e, no fim das contas, o conduzir sua destruio. O mundo que os humanos contemplam e em que vivem , portanto, provisrio, histrico, inserido numa temporalidade marcada por uma origem, um desenvolvimento e um final que fechar um ciclo.

    As incidncias de atentados pontuais estabilidade csmica, precria ou provisria, no partem sempre dos gigantes, seres vistos tradicionalmente como figuras negativas do caos mas dotados, igualmente, de funes imprescindveis para a preservao da ordem csmica: podem provir tambm da desmesura divina. Assim, por exemplo, no episdio da tentativa do deus Thrr de pescar a Serpente do Mundo para destru-la, o ato do gigante Hymir, ao cortar a linha e assim preservar a serpente, possivelmente salvou a ordem csmica (Sorensen 1997: 213), j que o monstro, embora ameaador e potencialmente catico, tinha igualmente a funo essencial de ancorar horizontalmente, no oceano, a organizao tripartite da superfcie terrestre em carter provisrio, sem dvida, mas que deveria durar at o fim do universo atual, adiando at ento o embate entre tal monstro e Thrr, conducente destruio de ambos. (O episdio mtico da pesca da Serpente do Mundo por Thrr tem diversas verses principais conservadas, razoavelmente divergentes: Gilfaginning, captulo 14; o poema dico Hymiskvitha; e poemas escldicos, dentre os quais sobressaem Ragnarsdrpa, de Bragi, estrofes 14-20; e Hsdrpa, de lfr Uggason, estrofes 3-6.)

    Na etapa imediatamente posterior ao surgimento da temporalidade, fase em que emergem a cultura e os humanos, bem como poca da conformao de uma Terra ordenada horizontal e verticalmente, o impulso dinmico por trs dos atos divinos criadores aparece associado em forma muito imperfeitamente inteligvel para ns no

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    relato da Vlusp, em trs ocasies, a um impacto, ao mesmo tempo de ruptura e indutor de aes criadoras, exercido sobre os deuses por elementos femininos (Linke 1992): trs mulheres gigantes (estrofe 8); as trs nornas (estrofes 20-21); e uma feiticeira com caractersticas semelhantes em parte s da Pandora grega, enviada aos deuses Aesir pelos Vanir, com que travavam a guerra mais antiga do mundo, e que os primeiros tentaram em vo destruir pelo fogo (estrofes 21-24). Certos autores identificam as trs gigantes da estrofe 8 da Vlusp com as trs nornas das estrofes 20-21 (Hollander 1994: 3 nota 10); entretanto, parece-nos que, se examinarmos com ateno o texto, tem razo Page ao sublinhar serem personagens diferentes, com associaes distintas: as mulheres gigantes procedem do pas dos gigantes; as nornas, de sob a rvore Yggdrasill (Page 1995: 205-6).

    Com a instalao das nornas frente do destino universal e individual, reforando a dimenso temporal de que o mundo estava agora dotado, aparece outro elemento na dinmica do universo. Como os homens, cada deus tem um fado que faz com que aja de certos modos e no de outros, mesmo quando os efeitos possveis derivados de suas aes sejam, a seus prprios olhos, catastrficos. A noo de destino, entre os escandinavos, no significava passividade diante do que tem de acontecer, mas sim, a aceitao de agir segundo sua prpria natureza e suas prprias tendncias: cada indivduo tem de aceitar o destino derivado, para ele, de suas aes mais caracersticas, pelo qual, trata-se antes de tudo de encarar e incorporar ativamente o que Rgis Boyer chama de capacidade de destino (Boyer 2002: 215). Embora, ao tratar das nornas, a Vlusp enfatize seu papel legislador e no estabelecimento do destino somente em relao aos humanos (estrofe 20), tambm os deuses estavam submetidos s mesmas regras e aos riscos implicados nas aes. Do dilogo entre thinn disfarado e o gigante Vafthrthnir se infere que o deus estava plenamente consciente de que, fizesse o que fizesse, no final ele mesmo e o mundo, tal como fora configurado por ele e por outros deuses, seriam destrudos (Vafthrthnisml, estrofes 17-18, 46-53); e isto ocorreria em funo de aes suas e de outras divindades, bem como das conseqncias morais acarretadas por tais aes. Esta constatao no o impedia, entretanto, de continuar a agir, ou mesmo de adotar medidas paliativas na tentativa de preservar o universo. As medidas tomadas seriam inelutavelmente frustradas no final; mas permitiam adiar o final em questo. Como os humanos, thinn jura solenemente pelo anel afixado ao altar; e, como os humanos, ocasionalmente rompe os pactos assim estabelecidos (Hvaml, estrofe 110: recorde-se que, teoricamente, quem fala neste poema o prprio thinn). Assim, por exemplo, no trato com um gigante construtor de fortificaes, os deuses no somente romperam o acordado, que no lhes convinha, como, violando as obrigaes sagradas para com um hspede (Hvaml, estrofes 2-4), permitiram que fosse trucidado por Thrr (Vlusp, estrofes 25-26). Ora, o direito, a lei, so o valor-chave da sociedade escandinava tradicional, em conjunto com a alta valorao dada a conceitos como honra e reputao (Boyer 2002: 161, 173), de modo que, ao serem violados tais valores pelos deuses encarregados de os garantir, todo o universo sofre as conseqncias dessa falta. Uma falta, veja-se bem, tica estabelecida em tempos pr-cristos: no se trata de um pecado maneira crist, mas de um desrespeito a regras de conduta socialmente reconhecidas em forma unnime. De tal maneira, quando partiam das divindades, as infraes tinham um papel dinmico dos mais importantes no tocante ao drama csmico e, ao se acumularem, iam encaminhando o universo para uma destruio inelutvel.

    A mais dramtica das infraes, pelo menos a que mais impressionou os antigos escandinavos, parece ter sido a ao traioeira de Loki no sentido, primeiro, de provocar a morte do mais perfeito e puro dos deuses, Baldr, e, a seguir, de impedir o seu retorno

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    do mundo dos mortos (Vlusp, estrofes 31-33; Gylfaginning, captulo 22: Snorri prov um relato altamente retocado e elaborado do mito da morte de Baldr; Saxo Grammaticus, Gesta Danorum, livro VI, expe uma verso diferente do episdio a partir de uma perspectiva evemerista). Loki, considerado por Snorri como um dos Aesir, na verdade era algo bem diferente (Sorensen 1997: 208-9):

    Os deuses no puderam impedir que Baldr fosse morto porque seu prprio crculo havia incorporado um elemento de engodo e destruio, personificado por Loki, um pregador de peas e um mediador, cujo pai era um gigante e cuja me era uma deusa. Loki resume a dualidade da mitologia nrdica: ele o irmo jurado de thinn mas toma partido pelos poderes do caos em Ragnark; ele cria problemas e os soluciona. E ele que, mediante um hbil estratagema, causa a morte de Baldr.

    A estrofe 9 de Lokasenna narra o episdio da fraternidade jurada entre thinn e Loki. Tal fato menos surpreendente do que pareceria primeira vista, j que os dois personagens tinham muito em comum: ambos eram trapaceiros, amantes da magia, das metamorfoses e dos disfarces (Renaud 1996: 96-7).

    Um episdio dos mitos de Loki caracteriza mais uma ambigidade sua, a sexual. Assumindo em certa ocasio a forma de uma gua, esta foi fecundada pelo garanho Svathilfaeri, pertencente ao gigante construtor de fortificaes para os deuses e posteriormente enganado pelos mesmos, dando luz, ento, Sleipnir, o cavalo cinzento de oito patas que se tornou o corcel de thinn (Hyndluljth, estrofe 40; Gylfaginning, captulo 42). Foi em funo do castigo em expiao pela morte de Baldr, imposto pelos deuses a Loki, que este ltimo descambou definitivamente para o campo das foras caticas (Vlusp, estrofe 34: o castigo em questo ao mesmo tempo um mito etiolgico que explica os terremotos; Lokasenna, estrofes 49-50) engrenagem adicional na dinmica conducente ao fim do mundo.

    Concluso

    Neste curto artigo, nossa finalidade limitada consistiu em apresentar uma seleo de temas e problemticas que ilustrasse o carter elaborado que se reconhece hoje em dia religio e mitologia escandinavas originadas em tempos pr-cristos. Trata-se de um esforo no sentido de desenvolver entre ns o estudo das temticas religiosas mais antigas da Escandinvia, como tem sido feito nesta revista (para um tema prximo, cf. LANGER 2005). Nos termos tericos que escolhemos, a religio em questo constitua uma ideologia historicamente orgnica altamente complexa, estruturada e satisfatria para os que a viviam socialmente, contendo em seu interior a variedade tpica das construes originadas na oralidade; uma ideologia bem caracterstica, em suma, de uma sociedade com baixos nveis de centralizao, cujos valores reproduzia, reforava e provavelmente (as fontes so insuficientes para que o afirmemos em forma cabal) ajudava a modificar quando isto se tornasse necessrio. Quisemos tambm ilustrar as novas maneiras de interpretar, em tal contexto, os mitos nrdicos, sem ceder falcia metodolgica de uma comparao implcita ou explcita deles com o cristianismo, dmarche ilegtima que costumava desembocar em juzos de valor absurdos, numa avaliao condescendente das crenas e prticas escandinavas como sendo primitivas e inferiores s dos cristos medievais. Evitamos cair, igualmente, em falsas expectativas de que a velha mitologia escandinava tivesse os contornos de um arcabouo acabado e definitivo como o que transparece na Snorra Edda todo o contrrio do que lcito

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    esperar de elaboraes mticas nascidas da criao oral, por sua prpria natureza constantemente mutvel e, portanto, sempre provisria, alm de ser, em qualquer momento, geradora de mltiplas variantes (poucas das quais nos chegaram).

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    NOTAS 1 Neste texto utilizaremos uma transcrio dos termos e nomes prprios escandinavos que segue, quanto aos acentos, as normas utilizadas por Lee M. Hollander. Os dois grafemas que expressam os sons correspondentes ao th interdental ingls (tanto sonoro, como em that, quanto surdo, como em thick) so transcritos como th. 2 As edies de fontes primrias, bem como os comentrios imprescindveis de Hugo Gering aos poemas da Edda, so indicados, no interior da lista bibliogrfica, por um asterisco que precede cada entrada. Note-se que, embora o livro de R. I. Page, Chronicles of the Vikings, seja uma compilao de fontes primrias traduzidas, no vem precedido de asterisco na lista de referncias, o que se deve a o utilizarmos exclusivamente para recolher opinies do prprio Page nele contidas. 3 Estar sempre correta, entretanto, a posio que Boyer ope s que critica? Suas afirmaes, s vezes taxativas em demasia, podem levar, pelo menos em parte, a contradies textuais. Assim, por exemplo, em livro recente, a imagem do vking guerreiro declarada falsa em favor daquela do vking comerciante, para depois elaborar-se uma srie de etapas em que o carter dos vkings vai mudando em diferentes contextos como de fato ocorre historicamente , para desembocar, afinal, na noo de ser o vking metade comerciante, metade guerreiro, o que no deixa de contradizer as suas primeiras afirmaes, peremptrias em excesso (Boyer 2002: 118, 121,130-2, 143, 148-9, 151-7). No exageramos ao perceber na disposio freqente a corrigir o que considera serem erros vigentes uma caracterstica marcante do autor. J no primeiro pargrafo de seu estudo sobre as sagas lendrias, Boyer se dispe a destruir de passagem as idias falsas que eram correntes sobre o assunto na Frana (Boyer 1998: 9).