a cosmogonia de inauguração do templo de jerusalem

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Osvaldo Luiz Ribeiro A Cosmogonia de Inauguração do Templo de Jerusalém – o Sitz im Leben de Gn 1,1-3 como prólogo de Gn 1,1-2,4a Tese de Doutorado Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia Bíblica Orientador Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo Rio de Janeiro Julho de 2008

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  • Osvaldo Luiz Ribeiro

    A Cosmogonia de Inaugurao do Templo de

    Jerusalm

    o Sitz im Leben de Gn 1,1-3 como prlogo de Gn 1,1-2,4a

    Tese de Doutorado

    Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Doutor em Teologia Bblica

    Orientador

    Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo

    Rio de Janeiro Julho de 2008

  • 2

    Osvalo Luiz Ribeiro

    A Cosmogonia de Inaugurao do Templo de Jerusalm o Sitz im Leben de Gn 1,1-3 como prlogo de Gn 1,1-2,4a

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Informtica da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.

    Prof. Isidoro Mazzarolo

    Orientador Departamento de Teologia PUC-Rio

    Prof. Ludovico Garmus

    Departamento de Teologia PUC-Rio

    Prof. Leonardo Agostini Fernandes Departamento de Teologia PUC-Rio

    Prof. Haroldo Reimer

    Universidade Catlica de Gois

    Prof. Carlos Frederico Schlaepfer Instituto Paulo VI

    Prof. Paulo Fernando Carneirode Andrade Coordenador Setorialde Ps-Graduao e Pesquisa do

    Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio

    Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2008

  • 3

    Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem autorizao da universidade, da autora e do

    orientador.

    Osvaldo Luiz Ribeiro

    Graduou-se em Teologia (Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil/STBSB Faculdade Batista do Rio de Janeiro/FABAT) em 1992, e cursou o Mestrado em Teologia (STBSB/FABAT) em 2002. professor de Epistemologia, Hermenutica e Exegese do Antigo Testamento na FABAT. Foi Coordenador do Curso de Ps-Graduao em Teologia do STBSB/FABAT. Pesquisa os textos da Bblia Hebraica relacionados aos sculos VI e V.

    Ficha Catalogrfica

    CDD:200

    Ribeiro, Osvaldo Luiz A cosmogonia de inaugurao do templo de Jerusalm o Sitz im Leben de Gn 1,1-3 como prlogo de Gn 1,1-2,4a / Osvaldo Luiz Ribeiro; orientador: Isidoro Mazzarolo. 2008. 346 f. : il. ; 30 cm Tese (Doutorado em Teologia) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Teologia Teses. 2. Cosmogonia. 3. Criao. 4. Templo. 5. Jud. 6. Jerusalm. 7. Gn 1,1-3. 8. Gn 1,1-2,4a. 9. Fenomenologia da religio. I. Mazzarolo, Isidoro. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Ttulo.

  • 4

    Para Izabel Cristina Castro Veloso Ribeiro Bel amantssimo amor da minha vida

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Muito, muito obrigado de corao:

    ao Prof. Dr. Emanuel Bouzon, pela sua confiana, pela bondade, pela

    liberalidade, pela ateno;

    ao Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo, pela disposio em orientar um trabalho j

    encaminhado, pela compreenso, pela confiana

    ao Prof. Dr. Haroldo Reimer, pelos aprofundamentos na caminhada com a

    Bblia Hebraica, pela comunho, pela amizade

    ao Prof. Ms. lcio Santana, pelo encaminhamento em direo Bblia Hebraica

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, pela acolhida, pelo

    respeito, pela igualdade de tratamento, pela oportunidade mpar

    ao Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil Faculdade Teolgica Batista,

    pela acolhida, pelo respeito, pela reciprocidade

    ao CNPq, pelo apoio seguro e estvel

    famlia, Bel, Israel e Jordo,

    pela compreenso dos momentos furtados,

    porque, nosso lar nossa pequena cosmogonia

  • 6

    Resumo

    Osvaldo Luiz RIBEIRO, A Cosmogonia de Inaugurao do Templo de Jerusalm o Sitz im Leben de Gn 1,1-3 como prlogo de Gn 1,1-2,4a. Rio de Janeiro, 2008, 346 p. Tese de Doutorado, Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    Gn 1,1-3, na condio de prlogo de Gn 1,1-2,4a, consiste numa

    cosmogonia tpica da cultura semita e prximo-oriental, com modelos

    abundantes nas tradies cosmognicas mesopotmicas, ugarticas e

    egpcias. Enquanto cosmogonia, consiste na (trans)significao mtica,

    fenomenolgico-religiosa, da construo do Templo de Jerusalm como

    criao do mundo, e marco da reorganizao poltico-social de Jud,

    sob o domnio persa, em 515 a.C. Criao dos cus e da terra, na

    cosmogonia prximo-oriental, significa, para todos os efeitos, a

    emergncia programtica da oivkoume,nh territrio particular de um

    grupamento humano geopoliticamente organizado e instalado, legitimado

    mtico-simpaticamente e poltico-religiosamente pela repetio ritual do

    gesto cosmognico da divindade in illo tempore.

    Palavras-chave

    Cosmogonia; criao; cus; terra; templo; Jud; Jerusalm; Gn 1,1-

    3; Gn 1,1-2,4a; Fenomenologia da Religio.

  • 7

    Abstract

    Osvaldo Luiz RIBEIRO, The Cosmogony of Inauguration of the Temple of Jerusalem the Sitz im Leben of Gn 1,1-3 as prologue of Gn 1,1-2,4a. Rio de Janeiro, 2008, 346 p. Doctoral Thesis, Department of Theology, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    Gn 1,1-3, on condition of prologue of Gn 1,1-2,4a, is a typical

    cosmogony of the Semitic and Near-east culture, with abundant models in

    Mesopotamic, Ugaritic and Egyptian cosmogonic traditions. While

    cosmogony, it consist in mythical and phenomenological-religious

    (trans)signification to construction of the Temple of Jerusalem as

    creation of the of heaven and earth, under Persian domination, at 515

    BC. Creation of heaven and earth, in Near-east cosmogony, means, for

    all purposes, the programmatic emergence of oivkoume,nh territory of a

    particular human group, geopolitically organized and installed, and

    mythical-sympathetically and political-religiously legitimate by ritual

    repetition of the cosmogonic divinitys gesture in illo tempore.

    Keywords

    Cosmogony; creation; heaven; earth; temple; Judah; Jerusalem; Gn

    1,1-3; Gn 1,1-2,4a; Fenomenology of Religion.

  • 8

    Sumrio

    1 Introduo 14

    1.1 Histrico 14

    1.2 Status Quaestionis 21

    1.3 Metodologia 28

    2 Fenomenologia da Religio e o Sitz im Leben da Cosmogonia Prximo-oriental

    33

    2.1 Cosmogonia e Construo em Mircea Eliade 35

    2.2 Gwendolyn Leick e Eridu um estudo de caso 48

    2.3 Cosmogonia Semita e Criao no Antigo Oriente Prximo

    58

    2.4 Enuma eli ascenso da Babilnia ao poder na Mesopotmia

    63

    2.5 Cosmogonia e construo de templo na Mesopotmia 69

    2.6 Cosmogonia e o Ciclo de Baal 75

    2.7 Cosmogonia egpcia 90

    2.8 Cosmogonia prximo-oriental e clusula temporal discursivo-narrativa

    94

    2.9 Concluso 97

    3 Anlise crtico-literria de Gn 1,1-3 99

    3.1 Anlise crtico-textual de Gn 1,1-3 99

    3.2 Anlise da estrutura de Gn 1,1-3 101

    3.3 Do escopo literrio assumido Gn 1,1-3 106

    3.4 Anlise lxico-morfolgica dos termos hebraicos de Gn 1,1-3

    110

    3.5 Anlise sinttica de Gn 1,1-3 112

    3.5.1 Anlise sinttica da estrutura de Gn 1,1-3 112

    3.5.2 Anlise sinttica dos termos de Gn 1,1-3 116

    3.5.3 Anlise sinttica de Brt na Bblia Hebraica 118

    3.5.3.1 Brt em Jeremias: construto e clusula temporal 119

    3.5.3.2 Brt em Gn 1,1: construto e clusula temporal 121

  • 9

    3.5.4 Aspectos propriamente sintticos de Br em Gn 1,1 123

    3.5.5 Concluso 127

    3.6 Da autoria de Gn 1,1-3 130

    3.7 Da datao de Gn 1,1-3 135

    3.8 Anlise retrico-literria de Gn 1,1-3 137

    3.9 Concluso 143

    4 Anlise semntico-fenomenolgica de termos de Gn 1,1-3

    145

    4.1 Aspectos propriamente semnticos de Br na Bblia Hebraica

    146

    4.1.1 O piel de Br cortar [como] destruir [para] construir

    147

    4.1.2 Br como criar construir 155

    4.1.3 Is 48,7 fronteira entre duas criaes 183

    4.1.4 Concluso sobre Br na Bblia Hebraica 192

    4.2 th wbh na Bblia Hebraica 194

    4.2.1 Ocorrncias apenas de Wh to (th) 194

    4.2.1.1 Ocorrncias de th como regio desrtica e desabitada

    195

    4.2.1.2 Ocorrncias de th como (o) vazio 198

    4.2.2 Ocorrncias conjuntas de th e bh 200

    4.2.2.1 Articulao sinttico-semntica entre th e bh 200

    4.2.2.2 Hendade constituda pelos termos th e bh 201

    4.3 Hek na Bblia Hebraica 203

    4.4 thm na Bblia Hebraica 221

    4.5 rH na Bblia Hebraica 239

    4.5.1 lhm como superlativo em rH lhm 242

    4.5.2 mraHepet na Bblia Hebraica 243

    4.6 myim na Bblia Hebraica 246

    4.7 r na Bblia Hebraica 257

    4.8 Concluso 268

    5 Gn 1,1-3 como prlogo da Cosmogonia de Inaugurao do Templo de Jerusalm

    270

    5.1 A retrica discursivo-narrativa de Gn 1,1-3 270

  • 10

    5.2 Mito como projeo hermenutica da realidade 274

    5.3 Gn 1,1-3 como projeo poltico-hermenutica da realidade

    281

    5.4 A Criao como hipstase da reconstruo do Templo de Jerusalm

    284

    5.5 O orculo de Jr 4,5-31 286

    5.6 Crtica proftica e contra-crtica da golah 292

    6 Concluso 304

    Referncias Bibliogrficas 309

  • 11

    SIGLAS

    ARC BBLIA SAGRADA contendo o Velho e o Novo Testamentos. Traduzido em portugus por Joo Ferreira de Almeida. Edio Revista e Corrigida. Edio 1995. So Paulo: Sociedade Bblica do Brasil, 1999.

    BHS BIBLIA SACRA. Utriusque Testamenti Editio Hebraica et Graeca. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994. [Biblia Hebraica Stuttgartensia. Editio funditus renovata, editio quarta emendata. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1990. 1.574 p. Novum Testamentum Graece. Editione vicesima septima revista. Deutsche Bibelgesellschaft, 1993. 810 p.

    BJ A BBLIA DE JERUSALM. Nova edio, revista. So Paulo: Paulinas, 1989.

    HALOT KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament HALOT. Revisado por Walter Baumgartner e Johann Jakob Stamm, com a assistncia de Benedikt Hartmann, Ze'ev Ben-Hayyim, Eduard Yechezkel Kutscher e Philippe Reymond. Traduzido e editado sob a superviso de M. E. J. Richardson. Leiden: Brill, 2000 (1953-19581).

    PASTORAL Ivo STORNIOLO, Euclides Martins BALANCIN e Jos Luiz Gonzaga DO PRADO. Biblia Sagrada Edio Pastoral. 5 impresso, revista. So Paulo: Paulinas, 1992.

    TEB BBLIA TRADUO ECUMNICA (TEB). Trad. de Traduction Oecumnique de la Bible (TOB 3 ed). 2 ed. So Paulo : Loyola, 1995.

    VOZES Ludovico GARMUS (coord). Bblia Sagrada. 12 ed. Petrpolis: Vozes, 1991.

  • 12

    FIGURAS

    Figura 1 Interior trevoso do templo de Edfu, Egito. V-se, ao fundo, a pequena capela de Hrus (cf. Ragnhild Bjerre FINNESTAD, Temples of the Ptolemaic and Roman Periods: Ancient Traditions in new context, in: Byron E. SHAFER [ed], Temples of Ancient Egypt. London/New York: I. B. Tauris, 1997, p. 208). p. 32

    Figura 2 Conceito bblico de cosmos, de acordo com Alexandra Schober, reproduzido de T. Schwegler, Probleme der biblischen Urgeschichte, Munique, 1960, quadro 1, apud J. Edward WRIGHT, The Early History of Heaven. New York/Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 91. p. 202

    Figura 3 Concepo bblica do cosmos de acordo com Nahum Sarna, Understanding Genesis: The Heritage of Biblical Israel. New York: Schoken Books, 1966, p. 5, apud J. Edward WRIGHT, The Early History of Heaven. New York/Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 90. p. 218

    Figura 4 Concepo bblica do cosmos de cordo com Othmar Keel, em Othmar KEEL e Christoph UEHLINGER, Altorientalische Miniaturkunst. Mainz am Rhein: Verlag Philipp von Zabern, 1990, p. 15, figura 6, apud J. Edward WRIGHT, The Early History of Heaven. New York/Oxford: Oxford University Press, 2000, 93. p. 224

  • 13

    Pois desde outrora existia um cu e

    uma terra emergindo da gua e que no meio da gua estava firme.

    2 Pd 3,5*

    O prprio Estado no conhece lei no escrita mais poderosa do que o

    fundamento mtico. Nietzsche, A Origem da Tragdia

    (...). A construo de um santurio ou altar de sacrifcios repete a

    cosmogonia. Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno

    Gn 2 , ento, uma cosmogonia poltico-religiosa que pretende englobar uma certa rea como

    criada por Yahweh e conseqentemente governada por

    ele. Magnus Ottossom, Eden and the Land of Promise

    13E tu, Yahweh, (...) 4Tu (mesmo) te levantars, ters compaixo de

    Sio. Porque tempo de ter piedade dela. Sim, chegou a hora. 15Porque amam os teus servos as

    pedras dela, e do p dela (eles) tm piedade. 16Ento temero as

    naes o nome de Yahweh, e todos os reinos da terra a tua

    glria. 17Porque construiu Yahweh Sio revelou-se na sua glria. (...)

    19Isto ser escrito para a gerao futura, e o povo criado louvar Yah.

    Salmo 102,13-19

  • 14

    1

    Introduo

    1.1 Histrico

    A presente proposta de pesquisa foi apresentada PUC-Rio em uma

    formulao bastante mais ambiciosa. Fora sua pretenso situar histrico-

    socialmente o que ento considerava os dois complexos criaodilvio da Bblia

    Hebraica. Deveria, ento, primeiro, situar o complexo sacerdotal, e, depois, o

    complexo ps-sacerdotal, j que defenderia a anterioridade de P em relao s

    narrativas do complexo criaodilvio, tradicionalmente classificadas como

    javistas (mesmo depois da superao da hiptese documental do Pentateuco), e

    que se classificavam, ento, como ps-sacerdotais. Estava-se interessado em

    demonstrar a seqncia PJ, pressuposta, bem como em situar ambos os

    complexos em seus respectivos contextos instrumentais e funcionais.

    Aprovado o Projeto, depois de uma srie de discusses entre o ento

    orientador, Prof. Dr. Emanuel Bouzon e o pesquisador, chegou-se concluso de

    que seria mais conveniente delimitar o tema. Chegou-se, portanto, formulao

    intermediria da Tese: uma tentativa de instalao da pea narrativa Gn 1,1-2,4a

    em seu contexto histrico-social (enquanto cosmogonia, o que de fato era Gn 1,1-

    2,4a?) e funcional-instrumental (enquanto cosmogonia, para que servia Gn 1,1-

    2,4a?).

    O falecimento do Prof. Dr. Emanuel Bouzon implicou na substituio do

    orientador. Assumiu a orientao o Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo. Uma nova rodada

    de discusses e negociaes teve curso, e culminou numa segunda delimitao. A

    Tese manteria seus objetivos previamente estabelecidos desde o Projeto aprovado,

    mas reduziria o escopo literrio da pesquisa a Gn 1,1-3. luz e nos termos dessa

    negociao que a presente Tese se conclui.

  • 15

    Ao pesquisador, os motivos de escolha do tema da instalao histrico-

    social dos complexos criaodilvio da Bblia Hebraica em seus respectivos

    contextos instrumentais e funcionais apresentaram-se depois de uma srie de

    aproximaes s quatro narrativas.

    Inicialmente, o pesquisador foi dirigido ao tema aps uma srie de leituras

    em Fenomenologia da Religio, nos captulos destinados discusso sobre o

    papel funcional e instrumental das cosmogonias prximo-orientais. O resumo das

    leituras dava a saber que, nas sociedades tradicionais, as cosmogonias

    consistiriam em discursos culturais (trans)significantes, atravs dos quais se

    descreveria, em registro mtico-potico, e sob ideologia poltico-religiosa, a

    construo de cidades, templos, casas, e isso, sempre, em contexto de organizao

    poltica. No que cabia Fenomenologia da Religio, dizer cosmogonia era, ali e

    ento, dizer construo e instrumento de poder poltico. Perguntou-se, ento,

    se essa compreenso fenomenolgico-religiosa poderia ser aplicada cosmogonia

    clssica da Bblia Hebraica Gn 1,1-2,4a1. Sim, podia. Identificou-se literatura

    que perpassava o tema, algumas, at, que tocavam especificamente nele. Mas,

    inesperadamente, paravam porta de Gn 1,1-2,4a. Antes de entrarem nessa

    narrativa, recuperavam o j clssico acesso teolgico-ontolgico ao tema da

    criao na Bblia Hebraica, e reproduziam as leituras mais propriamente

    teolgico-traditivas disponveis. O pesquisador, contudo, tinha uma percepo

    diferente: a narrativa de Gn 1,1-2,4a podia ser lida em seu ambiente funcional e

    instrumental, justamente porque, semelhana das demais cosmogonias prximo-

    orientais, devia sua expresso ao seu prprio Sitz im Leben.

    Tal percepo redundou na preparao e apresentao de uma srie de

    Colquios no Curso (livre) de Doutorado em Teologia, no Seminrio Teolgico

    Batista do Sul do Brasil (trancado para e desde a matrcula na PUC-Rio).

    Entreviam-se dois complexos criaodilvio na Bblia Hebraica: o primeiro,

    sacerdotal, elaborado durante os trabalhos de reconstruo de Jerusalm; e o

    segundo, posterior, ps-sacerdotal, em algum momento do sculo V a.C. O

    primeiro, sacerdotal, atenderia necessidade cultural e poltico-teolgica de

    1 Tanto a abordagem quanto a hiptese fenomenolgico-religiosas j haviam sido integralmente aplicadas por Magnus Ottossom (Gn 2,4b-3,24 cf. M. OTTOSSOM, Eden and the Land of Promise, in: J. A. EMERTON [ed], Congress Volume: Jerusalem, 1986, p. 177-188) e John Sailhamer (parcialmente ensaiada para Gn 1,2 cf. J. SAILHAMER, Old Testament History, 1998).

  • 16

    legitimar a reconstruo das instalaes poltico-materiais de Jerusalm, de modo

    que o aspecto mais propriamente organizacional do empreendimento se deixaria

    capturar no respectivo complexo criaodilvio. O abrupto e dramtico

    desenvolvimento poltico-scio-religioso de Jud altera significativamente o

    contexto histrico-social, de forma que uma nova cosmogonia precisa ser

    elaborada para dar conta da nova criao ainda atendendo ao Sitz im Leben

    das cosmogonias, o complexo ps-sacerdotal acentua, contudo, muito mais os

    aspectos mais propriamente poltico-teolgicos, com nfase significativa sobre a

    individualizao da culpa. A idia era apresentar os complexos criaodilvio

    prximo-orientais como grades instrumentais, de carter poltico-teolgico,

    operadas e manipuladas desde o centro do poder poltico para legitimar o Estado2.

    Enquanto grade, as histrias constavam, sempre, dos mesmos elementos mas

    enquanto instrumentos polticos, as amarraes e os detalhes sintticos das

    narrativas eram organizados de modo a reproduzir a ideologia sob demanda3.

    Depois desses dois primeiros momentos metodolgicos, publicou-se, entre

    2002 e 2004, uma srie de artigos em revistas especializadas, srie interrompida a

    pedido do Prof. Dr. Emanuel Bouzon, por conta da apresentao do Projeto de

    Tese PUC-Rio. Delineava-se, j, ali, a hiptese central do presente relatrio de

    investigao: Gn 1,1-2,4a consiste na Cosmogonia de Inaugurao do Templo de

    Jerusalm. Assumida pela presente Tese, tal hiptese central respondia a pergunta

    feita quanto ao problema da funo instrumental de Gn 1,1-2,4a em seu contexto

    cultural e histrico-social: qual a funo cultural-instrumental de Gn 1,1-2,4a

    respectivamente Gn 1,1-3, seu prlogo em seu contexto funcional-instrumental

    de origem? Os primeiros esforos de investigao faziam ver que a histria da

    recepo de Gn 1,1-2,4a exercia efeitos ressignificantes na compreenso da

    narrativa, de modo que releituras mais propriamente vlidas para momentos da

    histria dessa recepo retroagiam sobre a forma por meio da qual a pea era

    interpretada como que tendo sido assim desde a sua origem. O quadro que se

    apresentava permitia suspeitar-se da perda do Sitz im Leben que caracterizaria

    originalmente Gn 1,1-2,4a, respectivamente, Gn 1,1-3, o que resultava tanto na

    substituio do contexto funcional original pelos contextos homilticos prprios

    2 Cf. nota 714 e contexto da seo 5.2 da presente Tese. 3 O modelo terico foi posteriormente identificado na leitura que Marcel Detienne faz de A Repblica, de Plato (cf. M. DETIENNE, A Inveno da Mitologia, 1998, especialmente o captulo A Cidade Defendida por seus Mitlogos, p. 151-184).

  • 17

    da histria da recepo da narrativa, quanto na retroprojeo desse novo contexto

    funcional para o momento da redao da pea cosmognica4. Era necessrio,

    portanto, reavaliar o modelo de recepo de Gn 1,1-2,4a, o que deveria ser feito

    tanto internamente (a narrativa), quanto externamente (a cultura).

    Em funo do problema central da pesquisa, uma srie de perguntas

    secundrias se deixava desdobrar: 1) Qual a compreenso que se podia extrair de

    cada um dos termos fundamentais de Gn 1,1-3, considerando-se o conjunto das

    ocorrncias da Bblia Hebraica? 2) De que forma, quando em contexto direta ou

    indiretamente cosmognico, a Bblia Hebraica se servia da relao discursivo-

    narrativa terraguas? 3) Quais outras passagens da Bblia Hebraica poderiam

    justificar a hiptese de que Gn 1,1-2,4a consistiria numa pea de carter poltico-

    cultural redigida para a inaugurao do Templo de Jerusalm? As respectivas

    hipteses apresentavam-se historicamente plausveis e metodologicamente

    sustentveis. Ao problema central da pesquisa, respondia-se com a hiptese

    central de que Gn 1,1-3 consistia no prlogo da pea litrgica para leitura durante

    as celebraes de inaugurao do Templo de Jerusalm. Aqui se somariam as

    informaes fornecidas pela Fenomenologia da Religio (que sustenta a mesma

    hiptese para as cosmogonias prximo-orientais persas, mesopotmicas,

    ugarticas, egpcias etc.) e pelas anlises exegticas aplicadas, de um lado,

    prpria narrativa, e, de outro, a uma srie de termos e narrativas afins da Bblia

    Hebraica.

    Analisando-se cada um dos termos fundamentais de Gn 1,1-3, podia-se

    chegar mesma concluso. Os termos terra (erec), cus (mayim), guas

    (myim), desolao e deserto (th wbh), treva (Hek), abismo (thm) e

    vento (rH) podiam ser identificados em uma srie de narrativas da Bblia

    4 Em suas anotaes crticas sobre a Tese, o Prof. Dr. Ludovico Garmus pergunta: depois das descobertas e concluses sobre o sentido originrio da cosmogonia de Gn 1,1-2,4a de sua tese, como voc exlicaria em homilias/pregaes dirigidas ao povo em geral este texto, considerado uma narrativa da criao do mundo? Precisando a pergunta: na pregao devemos levar em considerao como foi recebida esta narrativa pela tradio posterior, bblica e subseqente?. Responderia afirmando que cada momnento deveria estar claro para o povo em geral tanto o sentido original da passagem, quanto a histria da sua recepo (dos seus efeitos), o que proporcionaria ao povo em geral o a meu ver necessrio esprito crtico para apreender as questes implicadas na pregao. A rigor, trata-se de uma questes de Teoria Literria, o que se resolve, quanto ao valor de cada um desses momentos, pela deciso terico-metodolgica quanto ao lcus prioritrio: intentio auctoris? (sentido original), intentio lectoris? (sentidos construdos ideologicamente elos leitores). A rigor, a deciso cabe a cada um ao pregador, caberia a tarefa de prover o povo em geral da necessria informao.

  • 18

    Hebraica que, no seu conjunto, apontavam para a funcionalidade

    (trans)significante dos termos cosmognicos, no sentido de que serviam para a

    descrio da emergncia histrica de centros civilizatrios poltico-socialmente

    organizados cidades habitadas sob respectivos governos centrais e espaos

    poltico-teologicamente significativos templos. O que a Fenomenologia da

    Religio afirmava para as narrativas cosmognicas prximo-orientais, e o que a

    Tese entrevia para a funcionalidade instrumental de Gn 1,1-2,4a, igualmente se

    podia dizer para toda uma considervel srie de termos fundamentais de Gn 1,1-3

    na Bblia Hebraica, cosmogonia consiste em criao de epaos e equipamentos

    poltico-sociais organizados a oivkoume,nh particular de cada grupo social,

    manejador e mantenedor de uma tambm por isso particular cosmogonia. Apenas

    o distanciamento funcional e instrumental das peas cosmognicas originais,

    recebidas em contexto teolgico tardio, sob releituras diversas, levava-as a

    interpretaes de carter literrio e cada vez mais metafsico-ontolgicas, as quais,

    sobredeterminando sua funcionalidade original, promoviam o cada vez maior

    desenraizamento instrumental da cosmogonia judaica, em geral, e de Gn 1,1-2,4a,

    em particular e especial.

    Verificava-se, alm disso, que, na Bblia Hebraica, as descries de invases

    militares de cidades eram elaboradas por meio de um duplo registro discursivo-

    narrativo. De um lado, o registro histrico-descritivo, em que o cerco e a invaso

    so detalhados na sua forma mais literal. De outro, um registro mtico-descritivo,

    em que a mesma catstrofe blico-militar descrita (transignificada) na forma de

    inundao, dilvio, imerso, ou qualquer outra forma que descreva que a terra

    acabava de ser engolida pelas guas. Podia-se afirmar que a Bblia Hebraica

    conhecia um trato cultural mtico-potico para a descrio de cercos e invases

    militares: aplicar cena a descrio (trans)significante do tema cosmognico e

    isso podia ser explicado pelo correlato inverso da hiptese central da Tese: se

    criao construo (criao da terra [re]construo da cidade), desconstruo

    descriao (destruio da cidade descriao da terra). Essa pista investigativa

    permitia assumir que o estado de desolao e deserto (th wbh) da terra de

    Gn 1,2 hipostasiava mitoplasticamente a cidade de Jerusalm, ento e enquanto

    destruda pela Babilnia, e que a criao narrada em Gn 1,1-3 corresponde

    reconstruo de Jerusalm.

  • 19

    O objetivo geral da Tese, portanto, consiste em demonstrar a seguinte

    hiptese de trabalho: a narrativa sacerdotal da criao doravante, Cosmogonia

    de Inaugurao do Templo de Jerusalm pode ser melhor compreendida

    quando lida luz da hiptese da funcionalidade instrumental da cosmogonia

    prximo-oriental como descrio (trans)significante de construo de espaos

    humanos poltico-socialmente organizados. Os cus e a terra em Gn 1,1 no

    significam j o que cus e terra chegariam a significar nas cosmologias de

    inclinao helnico-filosficas, muito menos o que significam na moderna

    astrofsica. Os cus e a terra, ali e nas cosmogonias prximo-orientais, significam

    os espaos humanos organizados politicamente, habitados scio-culturalmente,

    controlados ideologicamente a oivkoume,nh5 , e sempre sob a perspectiva

    narrativo-discursiva no de um povo hipostasiado, mas de um Estado soberano,

    responsvel, a um tempo, pela reconstruo, pelo repovoamento e pelo controle

    poltico-teolgico da terra. Em termos especficos, significa dizer que: a) Gn

    1,1-3 consiste no prlogo de uma narrativa imediatamente ps-exlica, b)

    formulada, sob a autoridade persa, pelo ento governo monrquico de Jud, c)

    com o objetivo de legitimar, pela via mitoplstica traditivo-cultural e discursivo-

    narrativa, a emergncia do poder central organizado, d) que reconstri a terra

    Jud, Jerusalm, o Templo de Jerusalm , e) depois de sua destruio militar, f)

    para o que, agora, apresenta-se um modelo poltico-teolgico sobre e a partir do

    qual se deve (re)construir a nao.

    A Tese oferece contribuies para a pesquisa em diversas instncias.

    Primeiro, propondo uma leitura de Gn 1,1-2,4a que, malgrado preservar a sua

    especificidade judaica, a toma a partir do conjunto cultural prximo-oriental. Em

    lugar de apenas repisar a abordagem Chaoskampf com que se tem tentado explicar

    Gn 1,1-2,4a na condio de narrativa exlica6, oferece uma possibilidade de

    atualizar a abordagem, mas, agora, em ambiente imediatamente ps-exlico. No

    5 particularmente difcil, se possvel, encontrar uma palavra equivalente em Lngua Portuguesa para a expresso grega oivkoume,nh tal qual ela se atualiza no ambiente pertinente cosmogonia. Trata-se do conjunto do espao civilizatrio de um determinado povo, organizado em cidade(s) e respectivas vilas circunvizinhas, sob o governo de um rei, para alm de cujas fronteiras terminam seus limites, e abre-se o deserto o caos cosmognico. Na presente Tese, optou-se por no traduzir o termo, a despeito de que a formulao de um termo no vernculo surtiria melhor efeito comunicativo. 6 Como, por exemplo, H. GUNKEL, Creation and Chaos in the primeval er and the escaton, 1895 (cf. Idem, Genesis, 1901), e K. LNING e E. ZENGER, To Begin With, God Created...: Biblical Theologies of Creation, 2000 (19971).

  • 20

    se trataria, portanto, de um conflito golah x Babilnia, mas de um recurso cultural

    para a legitimao de espaos organizados em torno do e pelo poder, nos quais os

    temas da destruio fsica da cidade e sua reconstruo so encenados mtico-

    traditivamente. No se trata de conflito de dentro (Jud) para fora (Babilnia),

    mas de presso poltico-ideolgica de dentro (Jud) para ainda mais dentro (as

    populaes remanescentes).

    Em lugar de contornar a suspeita das guas pr-existentes, ou de tentar uma

    explicao ainda ontolgica para a questo, prope-se explicar o tema da criao a

    partir das guas como trato propriamente cultural do uso mtico-descritivo das

    guas como descrio de invases militares de resto, provavelmente ele mesmo

    derivado da transferncia metafrica do resultado das vases sazonais dos grandes

    rios, somente a altssimo custo controladas, ou, de resto, dos regimes plvio-

    fluviais prximo-orientais e orientais. Somados os dois pressupostos terico-

    metodolgicos, de um lado a (trans)significao cosmognica, e, de outro, a

    descrio mtico-traditiva de cercos militares, a presena teologicamente

    constrangedora das guas pr-criacionais pode ser mais simplesmente explicada

    como caso de descrio tambm (trans)significativa da construo de uma cidade

    depois de sua destruio. Essa contribuio ajudaria a resolver o problema da

    tentativa de impor s cosmogonias originais judaicas, por exemplo, o tema da

    criao ex nihilo, pelo fato de concluir-se que tais cosmogonias no falam da

    criao do Universo (como ns hoje o concebemos), mas apenas descrevem

    mtico-traditivamente a criao de espaos humanos organizados poltico-

    socialmente: e tais espaos no nascem do nada, antes, so sempre intervenes

    humanas contra as foras de desolao e de desabitao que imperam nos espaos

    geogrficos sobre os quais a comunidade humana, sob o poder central, se erguer

    na condio de rei, cidade e povo.

    Poderia, ainda, contribuir para a compreenso interna da prpria narrativa.

    Uma vez que se deveria ler Gn 1,1-3 como pea poltico-social de

    responsabilidade do governo central de Jud, os elementos discursivos internos da

    narrativa sofreriam sobredeterminao semntica com base nessa instncia

    poltica. O programa previsto e proposto pela cosmogonia no consistiria nas

    prerrogativas de Israel, na qualidade de hipstase harmnica de um povo, mas,

    antes, no programa poltico-teolgico do governo conforme pretendido

    monrquico de Jud. Temas como a criao de dm como imagem e forma de

  • 21

    lhm, a caracterizao sexual macho e fmea e a idia de dominao

    sobre toda a terra poderiam ser melhor compreendidos contextualmente sob a

    hiptese de que quem organiza o discurso o poder monrquico da golah. O

    programa poltico-ideolgico de Gn 1,1-3 no consiste no programa de Jud, mas

    no programa que a golah o poder central, monrquico, autorizado pela Prsia

    elabora para Jud.

    O tema ultrapassa Gn 1,1-3. Ler a percope sozinha justifica-se apenas num

    exerccio acadmico especfico. A rigor, impe-se a sua leitura paralelamente

    narrativa sacerdotal do dilvio. Nesse caso, o dilvio sacerdotal representaria,

    sob a leitura poltico-social do governo central emergente de Jud, o seu juzo

    teolgico concernente catstrofe da destruio de Jerusalm, com repercusses

    evidentes No a golah, preservada na arca, que a Babilnia. O povo

    remanescente na terra, esse, sim, foi castigado pelas guas do dilvio. Agora,

    tendo lhm tomado as providncias, impem-se a necessidade de cortar a

    aliana. Justamente essa aliana entre lhm e No (a golah) expe mais

    nitidamente o carter poltico do pronunciamento. Mais uma vez, como

    acontecera com a narrativa sacerdotal da criao, a narrativa sacerdotal do

    dilvio ganhou leituras mais relacionadas histria da sua recepo, a tal ponto

    que praticamente perdeu-se a sua compreenso mais histrico-social, que, na

    hiptese de estar correta a intuio em defesa nesta Tese, ter-se-ia recuperado.

    1.2

    Status quaestionis

    O sculo XIX viu nascer as duas foras que marcam o que de importante se

    deve acentuar a respeito da pesquisa relacionada ao tema da criao na Bblia

    Hebraica, particularmente aquela diretamente aplicada a Gn 1,1-3. Deve-se ter em

  • 22

    mente, por exemplo, que to cedo quanto 18447, F. H. W. Gesenius tratava a raiz

    Br sob uma nica rubrica, dando a ela o sentido de cortar e, da desdobrados, os

    de criar e engordar. O verbete arb Br no Lexicon de Gesenius no reserva

    qualquer sentido teolgico privilegiado para a raiz, explicando o sentido de

    criar rigorosamente da mesma maneira como a presente Tese o faz criar tem

    o sentido plstico de esculpir, isto , criar, cortando, desbastando. Logo,

    sentido derivado. No sculo XX, contudo, os dicionrios, lxicos e gramticas

    tornaram lugar comum a classificao de Br sob trs entradas, cada uma ligada a

    uma raiz homloga s demais Br I criar (que passa a ser o sentido

    primrio), Br II cortar, e Br III engordar8.

    Derivado de uma tal transformao no trato lxico-semntico de Br, as

    aproximaes exegtico-teolgicas a Gn 1,1-3 dispuseram de um argumento ali

    se descrevia uma ao absolutamente diferente de todas as outras, uma vez que o

    verbo que ali se articula constitui exclusividade subjetiva de Deus. Bem, no

    sculo XX, sim, mas no XIX, no.

    O que teria acontecido entre meados do sculo XIX e o sculo XX, para que

    a informao lxico-morfolgica disponvel sofresse uma radical transformao?

    Ora, esse o perodo do conflito entre o mais acentuado processo de secularizao

    e liberalizao europia e a tradio teolgico-eclesistica da(s) Igreja(s)

    Crist(s). o sculo de ningum mais do que Schopenhauer, Feuerbach,

    Nietzsche o sculo da supresso romntica dos fundamentos metafsicos. E

    a(s) Igreja(s) Crist(s) reagiram. No front catlico, com o Vaticano I e o dogma da

    infalibilidade papal. No protestantismo reformado europeu, com Karl Barth. No

    front protestante-evanglico estadonidense, com o movimento The Fundamentals.

    O que h de comum aos trs movimentos seu carter reacionrio frente s

    presses emancipadoras da sociedade civil.

    No campo bblico-teolgico, com sua tese de disjuno entre, de um lado, a

    f crist dom metafsico e a religio humana prtica e costume social , a

    influncia de Karl Barth foi decisiva. H, a, um ntido programa de separao

    entre teologia e cultura, uma atualizao do neoplatonismo latente na histria

    7 Cf. F. H. W. GESENIUS, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament: Including the Biblical Chaldee. 8 Assim, por exemplo, HALOT; Alonso-Schkel, Dicionrio Hebraico-Portugus; M. Chvez, Diccionario de Hebreo Bblico.

  • 23

    do(s) Cristianismo(s). Barth acabaria por assentar, na prtica, um conflito entre a

    vontade de Deus e a vontade da Natureza9. O conflito barthiano encontrou

    desdobramentos poltico-sociais (por exemplo, Dietrich Bonhoeffer e o

    Cristianismo sem Religio) e exegtico-teolgicos (por exemplo, Rudolf

    Bultmann e sua averso teologia natural), bem como estabeleceu um

    paradigma no-expltico de distino entre f e religio nas aproximaes

    acadmicas Bblia Hebraica, pressuposto que estava, a, a procedncia da f

    israelita/judaica em face da religio dos povos vizinhos. Israel/Jud eram

    excees, porque constituam o prlogo para a excepcionalidade da f crist em

    relao s demais expresses religiosas do planeta. No recorte mais

    especificamente exegtico-teolgico, finalmente, Gerhard von Rad ratifica o

    postulado barthiano, quando afirma que, em Israel, criao constitua um

    elemento secundrio no conjunto das tradies10.

    Aqui, do outro lado do Atlntico, ao norte, o movimento The Fundamentals

    teve gerou repercusses igualmente disjuntivas, diretas e indiretas, entre f e

    cultura, e sobredeterminou pesquisas no campo da arqueologia bblica, cuja

    9 Cf. W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, p. 178. 10 Cf. G. VON RAD, The Theological Problem of the Old Testament Doctrine of Creation, in: G. VON RAD, The Problem of the Hexateuch and Other Essays, p. 131-142 e G. VON RAD, The Form-Critical Problem of the Hexateuch, in: G. VON RAD, The Problem of the Hexateuch and Other Essays, p. 1-78 (cf. T. STORDALEN, Echoes of Eden: Genesis 2-3 and Symbolism of the Eden Garden in Biblical Hebrew Literature, p. 23-24). Assim explicou Norbert Lohfink os pressupostos teolgico-metodolgicos de von Rad: Since its origin in the year 1935, when Gerhard von Rad proposed this theme for the first time at a meeting in Gttingen, it has been far too closely connected with the narrowing of the question necessitated by the conflict of the Confessing Church with the tendencies of the churches to accommodate themselves to the ideology of the Third Reich, an accommodation that sought legitimation in a theology of creation, even though this is scarcely evident in the subsequent literature (cf. N. LOHFINK, God the Creator and the Stability of Heaven and Earth: The Old Testament on the Connection Between Creation and Salvation, in: N. LOHFINK, Theology of the Pentateuch: Themes of the Priestly Narrative and Deuteronomy, p. 118. Interessante estratgia fugir da instrumentalizao poltica do tema da criao relegando-o aos pores da teologia. Pergunte-se se essa tentativa vertical de enfrentar processos de instrumentalizao poltica de temas bblicos no responderia, mais recentemente, pela tese de Frank Crsemann do caminho da Torah para o Sinai (cf. F. Crsemann, A Tor. Teologia e histria social da lei do Antigo Testamento). A tese da Torah rumo ao Sinai parece muitssimo pertinente, porque, afinal, o templo hierocrtico jerosolimitado assumiu a Lei. O que, contudo, parece revelar a influncia de Crsemann do tipo de estratgia inconsciente? adotada por von Rad a sua afirmao de que, assim, subindo o Sinai, a Torah estava livre de toda injuno humana, assumida que estava, ento, por Yahweh, porque, afinal o Sinai um lugar utpico, temporal e espacialmente fora do poder estatal (...). Na medida em que o culto e o direito so situados no lugar de onde sempre saiu a libertao atravs deste Deus, a prpria Tor torna-se uma forma decisiva de liberdade. A sobrevivncia real de Israel, apesar da subjugao atravs de grandes imprios, tem a ver com um lugar fictcio de um passado fictcio, o qual est fora de todo espao de domnio de qualquer poder e por isso tambm est pr-ordenado a todo tipo de poder (cf. F. CRSEMANN, op. cit., p. 92).

  • 24

    inteno de fundo e fluxo de investimentos convergiam para a prova da verdade

    escriturstica e a demonstrao da absoluta insolubilidade da f israelita e judaica

    em face de seu contexto geocultural. Como resultado de um paradigma de

    insolubilidade da f israelita/judata na cultura circundante onde ela se instalara,

    dado que o entorno cananeu, politesta, naturalista, elaborara narrativas de

    profunda vinculao teolgico-religiosa entre os deuses e a natureza,

    especificamente no campo da fertilidade agrria, G. Ernest Wright estabeleceu

    pressupostos de um programa de articulao entre Bblia Hebraica e Histria de

    Israel, no sentido de evidenciar que Israel no estava interessado na natureza, e

    que a relao de seu prprio lhm era de majestosa distncia. Israel e Jud no

    eram Cana eram diferentes. Estavam ali, mas eram de outro lugar11.

    O trabalho de Gerhard von Rad e G. Ernest Wright, retomado,

    desenvolvido e ecoado por numerosos pesquisadores, articulava um radical ou

    isso, ou aquilo entre histria versus natureza, monotesmo versus politesmo e

    tica versus categorias clticas12, e, num cenrio de fundo to nitidamente

    poltico-teolgico, programtico, resulta compreensvel como, contra a posio de

    Gesenius, a raiz Br, de espectro semntico marcadamente tradicional e cultural

    cortar, desbastar, criar, engordar tenha sido fragmentada para dar lugar

    a uma disjuno teolgica entre o sentido, nesse caso, propriamente

    veterotestamentrio f judata/israelita e os demais sentidos, ento,

    propriamente prximo-orientais. De uma raiz alicerada inclusive nas prticas

    agrcolas arroteamento , Br se transforma num terminus tecnicus cujo nico

    agente operador a divindade da Bblia Hebraica.

    Toda essa fase da abordagem revela-se na condio de um autntico

    paradigma13, que contudo, d sinais de encontrar-se em processo de

    reformulao. Um dos primeiros vestgios de que o paradigma estava sendo

    reformulado teria surgido em 1971. Claus Westermann, que estivera intimamente

    ligado a von Rad em Heidelberg, prossegue seu programa, mas, segundo Walter

    11 Cf. G. E. WRIGHT, The Challenge of Israel's Faith, 1944; G. E. WRIGHT, The Old Testament Against Its Environment, 1950; e G. E. WRIGHT, God Who Acts: Biblical Theology as Recital, 1952. 12 Cf. W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, p. 179. 13 Para a noo de paradigma em pesquisa, cf. T. S. KUHN, A Estrutura das Revolues Cientficas.

  • 25

    Brueggemann14, avana para dizer que, sim, a criao exerce um papel

    perifrico nas tradies de Israel, mas, a, onde articulada, ela recebe

    significativa importncia, porque Israel no poderia desenvolver uma teologia

    da histria do povo de Deus sem lig-la ao tema da criao15. Com efeito, von Rad

    j havia dito que: por mais pretensioso que parea, devemos afirmar que a

    criao pertence etiologia de Israel16. Para Claus Westermann, agora, mais do

    que isso porque, em Israel, a criao estaria, ab ovo, ligada idia de

    bno17 a ao de Deus no se esgotaria na histria, mas, igualmente, na

    criao (= natureza), de modo que no se pode desenvolver uma Teologia do

    Antigo Testamento que privilegie uma em detrimento da outra18. Consciente que

    era, portanto, do acesso s bnos do alto por meio da natureza (=

    criao), Israel/Jud no podia mais ser encarado como uma excentricidade em

    meio a uma cultura circundante to enfronhada na teologia da fertilidade (=

    beno simptico-divina)19.

    Os vestgios do novo paradigma que se desenha(va) podiam ser

    observados tambm no centro de influncia de G. Ernest Wright. Em 1973, Frank

    M. Croos publica Canaanite Myth and Hebrew Epic: Essays in the History of the

    Religion of Israel, onde questiona gravemente o paradigma de disjuno entre

    mito e histria nas abordagens da pesquisa veterotestamentria. Em todo o

    regime prximo-oriental incluindo-se, a, Israel e Jud a distino moderna

    entre mito e histria revela-se improcedente, sem que se possa reduzir um ao

    outro. Histria e mito cosmogonia! esto inextricavelmente entrelaados.

    Nesse sentido, convm observar a emergncia de um recorte muito

    especfico na pesquisa veterotestamentrio. Trata-se das publicaes de Hans

    Heinrich Schmid, inicialmente numa obra que chama a ateno para a relao

    entre o conceito egpcio de maat e o conceito de criao como construo de 14 Cf. W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, p. 180. 15 Cf. C. WESTERMANN, Creation and History in the Old Testament, in: V. VAJTA, The Gospel and Human Destiny, p. 11-38. 16 G. VON RAD, Teologia do Antigo Testamento teologia das tradies histricas de Israel, v. 1, p. 146. 17 Cf. C. WESTERMANN, Creation and History in the Old Testament, in: V. VAJTA, The Gospel and Human Destiny, p. 24 e 34; W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, p. 180. 18 Cf. C.WESTERMANN, Creation and History in the Old Testament, in: V. VAJTA, The Gospel and Human Destiny, p. 32. 19 Cf. W. BRUEGGEMANN, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology, Theology Today, p. 180.

  • 26

    ordem 20, e, em seguida, numa outra que relaciona os conceitos de cdq (direito)

    e ordem (= criao)21. Finalmente, o tema criao revela-se em toda a sua

    pujana em seu trabalho de 1973, Schpfung, Gerechtigkeit, and Heil22 a

    teologia da criao constituiria o amplo horizonte da teologia bblica.

    O novo paradigma que eclodira com Westermann traz consigo o velho

    capito von Rad que publica, tambm ele, um trabalho em que relaciona,

    como H. H. Schmid, sabedoria e criao23, concluso essa a que Walter

    Zimmerli j havia chegado em 196424. A, von Rad no mais descreve de forma

    pejorativa a religio canaanita, e, referindo-se s prticas rituais de fertilidade que

    a caracterizariam, fala, agora, de auto-revelao da criao25.

    O novo paradigma consolida-se. Em 1988, Jon D. Levenson publica

    Creation and the Persistence of Evil obra fundamental da nova abordagem.

    Levenson no apenas assume categoricamente a funo superestruturante e infra-

    estruturante da criao na teologia veterotestamentria e no apenas nos

    ambientes sapienciais , quanto leva a srio o fato de que o elemento residual

    politesta presente na Bblia Hebraica deixa transparecer que o Deus de Israel

    exerce domnio somente por meio do consenso dos outros deuses, de modo que a

    ordem da criao ainda um empreendimento frgil e precrio. Formado na

    tradio de Frank Moore Cross, e admitindo, por conseguinte, o entrosamento

    cultural de Israel/Jud com a cultura circundante, Levenson afirma que

    impossvel dissociar a teologia da criao judata/israelita do contexto prximo-

    oriental. A criao a e em Israel constitui uma contnua e ininterrupta luta

    contra as foras contra-criativas do caos.

    No se pode deixar de perceber que, nesse sentido, as abordagens

    20 Trata-se de H. H. SCHMID, Wesen und Geschichte der Weisheit: Eine Untersuchung zur altorientalischen und israelitischen Weisheitsliteratur, Berlin: A. Tpelmann, 1966. Cf. J. ROGERSON, Genesis 1-11, p. 61-63. 21 Trata-se de H. H. SCHMID, Gerechtigkeit als Weltordnung: Hintergrund and Geschichte des alttestamentlichen Gerechtigkeitsbegriffes, Tbingen: J. C. B. Mohr [Paul Siebeck], 1968. 22 Cf. H. H. SCHMID, Creation, Righteousness, and Salvation: Creation Theology as the Broad Horizon of Biblical Theology, in: Bernhard W. ANDERSON, Creation in the Old Testament, p. 102-117. Importante assinalar que Bernhard W. Anderson foi aluno de Frank Moore Cross. Evidencia-se, aqui, o entrelace entre o novo paradigma europeu com o novo paradigma estadonidense, assim como, anteriormente, o antigo paradigma disjuntivo/dissociativo trabalhara articulando as abodagens do Velho e do Novo Continentes. 23 Cf. G VON RAD, Wisdom in Israel, 1972. 24 Cf. W. ZIMMERLI, The Place and Limit of the Wisdom Framework of the Old Testament Theology, p. 148. 25 Cf. G. VON RAD, Wisdom in Israel, p. 144.

  • 27

    contemporneas a uma teologia da ecologia respondem perfeitamente a essa

    virada de jogo nas abordagens veterotestamentrias. Contra a tendncia

    barthiana de uma teologia do e no exlio no estamos em casa! , a tendncia

    contempornea a de a teologia pensar a criao como oi=koj ns estamos em

    nossa casa, e o mundo nossa oivkoume,nh!

    Ao modo de um captulo especial do drama paradigmtico, a pesquisa de Gn

    1,1-3 teve seus lances marcantes. O lance inaugural, porque mais marcante,

    representado pelo trabalho de Hermann Gunkel e sua preocupao para alm do

    literalismo exegtico, concentrando-se na questo fundamental do Sitz im Leben

    das narrativas incluindo-se, a, as cosmogonias. Isso fez com que Gunkel

    posicionasse-se na contra-mo da teologia europia e alem da poca,

    afirmando que Gn 1,1-3 dependia diretamente da tradio babilnica26.

    Cem anos depois, agora, em 2005, David Tsumura responde-lhe

    expressamente27, porque incomodado justamente com a declarao categrica de

    que, por exemplo, thm derivaria de Tiamat o drago aquoso mesopotmico do

    Enuma eli. David Tsumura rev o sentido e o contexto de termos-chave de Gn

    1,1-3 th wbh, thm, erec, rH , concluindo pela improcedncia de sua

    dependncia da tradio babilnica, asseverando como ltima afirmao do

    livro que as histrias do Gnesis so nicas28.

    De Gunkel a Tsumura, Gn 1,1-2,4a passou por severas investigaes mas,

    conluiu-se, o trabalho ainda no logrou chegar a um porto seguro. De Gunkel, a

    maior conquista da pesquisa sua insistncia em dever-se a aproximao

    metodolgica a Gn 1,1-3 submeter-se ao contexto vital de sua redao e

    instrumentalizao mas Gunkel estava excitado demais com as repercusses dos

    achados arqueolgicos mesopotmicos, e compreensvel que sua ateno tenha

    sido dirigida para a possibilidade, legtima de ser aventada, de uma dependncia

    direta de Jud em relao Babilnia. De Tsumura, a maior conquista sua

    insistncia em analisar cada termo da cosmogonia de Jud luz do conjunto das

    expresses da prpria Bblia Hebraica antes de submet-las ao vovabulrio

    26 Cf. H. GUNKEL, Creation and Chaos in the primeval er and the escaton a religio-historical study of Genesis 1 and revelation, 1895, e H. GUNKEL, Genesis, 1901. 27 Cf. D. TSUMURA, Creation and Destruction a reappraisal of the Chaoskampf Theory in the Old Testament, 2005. 28 Nesse caso, especificamente, pela no referncia a deusas envoldidas na criao (cf. David TSUMURA, Creation and Destruction a reappraisal of the Chaoskampf Theory in the Old Testament, p. 197.

  • 28

    semntico-semitico prximo oriental. Sua maior fraqueza, contudo e agravada

    por seu mais tranqilo contexto acadmico e histrico-social relativamente a

    Gunkel desconsiderar completamente as intenes de fundo da mo que redige

    e opera a cosmogonia de Jud justamente o ponto forte de Gunkel.

    Nesse sentido, a Tese acredita contribuir positivamente para o debate,

    porque ela atende s duas reivindicaes a j secular, de Hermann Gunkel,

    quando tenta, metodologicamente, descobrir o Sitz im Leben de Gn 1,1-3, e a de

    hoje, a de David Tsumura, que postula uma anlise semntico-fenomenolgica

    dos termos-chave de Gn 1,1-3 na Bblia Hebraica como meio de se investigar a

    agenda por meio da qual o seu sentido deve ser, a, esclarecido. No que diz

    respeito investigao pelo Sitz im Leben de Gn 1,1-3, a Tese deve a deciso a

    Hermann Gunkel. Quanto ao levantamento semntico-fenomenolgico dos termos

    de Gn 1,1-3 na Bblia Hebraica, levado a termo por David Tsumura, o pesquisador

    chegou a ele por meios de reflexo pessoal, e ter sido publicado o livro de

    Tsumura em 2005, quando a Tese j se encontrava assentada, apenas, a seu ver,

    ratifica a procedncia da metodologia.

    Assim, a aplicao conjunta das duas orientaes metodolgicas Gunkel e

    Tsumura permitiu Tese concluir que Gn 1,1-3 constitui o prlogo da

    Cosmogonia de Inaugurao do Templo de Jerusalm Gn 1,1-2,4a, tendo sido

    esta composta por volta de 515 a.C. com a inteno traditivo-cultural de, sob o

    regime cosmognico, hipostasiar mtico-simpaticamente o templo de Jerusalm

    como fundamento da criao cf. Sl 102,17.19, Is 65,18 e Is 44,27-28.

    1.3

    Fundamentos metodolgicos

    A metodologia utilizada na investigao poderia ser descrita da seguinte

    forma: uma aproximao histrico-social, com ferramental histrico-crtico, e

    quadro terico-metodolgico duplamente fenomenolgico. Caso a caso, a

    metodologia desdobra-se nos seguintes passos.

  • 29

    Trata-se, sobretudo, de uma investigao histrico-social: proponho, pois,

    uma leitura scio-histrica, a ser exercitada com insistncia junto aos textos29. O

    que se tem em mira a funo histrico-social de Gn 1,1-3 ler a cosmogonia em

    seu Sitz im Leben. O que se quer saber em que tipo de instrumento consistia essa

    cosmogonia: para que ela teria sido redigida. A agenda de investigao dever ser

    elaborada, conseqentemente, tambm por meio da investigao acerca da funo

    instrumental das cosmogonias no entorno cultural de Jud. H de se recusar,

    metodologicamente, qualquer agenda de interpretao que caracterize presso

    decorrente de releitura sob efeito de mudana de perfil funcional sofrida pela

    narrativa em sua histria de recepo. Deve-se compreender que o

    desenraizamento da passagem de seu contexto original permitir que outros

    pontos de sobredeterminao semntica cheguem a dirigir as releituras que a

    histria da recepo de Gn 1,1-2,4a conhece bem. Cada uma dessas releituras

    seguir sua prpria agenda: a agenda mais propriamente ontolgica, helnica, a

    agenda mais propriamente teolgica, crist, e, recentemente, a agenda ecolgica.

    Tais agendas so particularmente teis para a descrio da histria da recepo ou

    histria dos efeitos de Gn 1,1-2,4a, mas tornam-se empecilho importante para a

    sua compreenso desde seu ambiente contextual de origem.

    Vale dizer, ainda no campo da abordagem histrico-social, que no se

    considerar Gn 1,1-3 como pea narrativa de responsabilidade de um Israel

    ideal, hiposttico e harmnico, uma nao refletindo sobre o poder criador de

    seu Deus. Em termos histrico-sociais, difcil demonstrar a existncia de um Israel

    desses, seno sob a condio de idealizar um espao histrico-social livre de

    conflitos, e distante das relaes conflituosas do poder. Um Israel? Na Bblia

    Hebraica? Justo nela, to preocupada em demonstrar uma interminvel srie de

    conflitos poltico-teolgicos? No. A Cosmogonia de Inaugurao do Templo de

    Jerusalm no equivale a uma narrativa judaica de criao equivale

    expresso mitoplstica de um grupo social em Jud o poder monrquico em vias

    de assim cuidava assumir o trono do vice-reinado. Sob o estilo cltico-

    litrgico, reflete a ideologia da realeza. Sob a teologia do Estado, reflete seu

    projeto de poder: dominar sobre toda a terra (bem entendido, de Jud).

    Uma investigao histrico-social impossvel sem um ferramental

    29 Cf. M. SCHWANTES, Teologia do Antigo Testamento, p. 49.

  • 30

    histrico-crtico. o ferramental da crtica literria e da crtica histrica que

    permite com que a pesquisa salte do nvel literrio para o histrico-social, sem

    embargo, naturalmente, das abordagens sociolgicas30, que lhe devem fazer par.

    Contudo, sem o cho firme da abordagem histrico-crtica, sequer uma

    abordagem histrico-social pode soerguer-se, porque, caso contrrio, sob qual

    cho ela postula construir-se?

    A aproximao metodolgica histrico-social pretende ir alm da narrativa.

    Pretende saltar dela, para seu ambiente gentico. Dela, para seus formuladores.

    Dela, para sua funo instrumental. Isso consciente de todos os riscos, bem como

    da crise de verificao que acompanha o resultado do esforo propriamente

    exegtico. Sob risco de reduzir-se a um esforo apenas literrio, quando o

    acento principal deve ser a preocupao histrica, o uso do ferramental histrico-

    crtico, no contexto de uma proposta de trabalho histrico-social, no pode

    prescindir do levantamento das questes culturais relacionadas ao tema sob

    investigao, e que esto disponveis em trabalhos de carter mais

    fenomenolgico-religioso. E, aqui, ento, impe-se introduzir uma bifurcao.

    No campo externo, a Fenomenologia da Religio j iniciada com Hermann

    Gunkel contribui de modo significativo para o esclarecimento de cosmoviso e

    cultura, prticas e costumes, smbolos e rituais prprios dos povos de um

    determinado contexto geopoltico. No que diz respeito cosmogonia, a

    Fenomenologia da Religio particularmente relevante, porque d conta do

    resultado de pesquisas especficas no campo antropocultural. O que, no entorno

    cultural judaico, mostra-se melhor disponvel a um recorte propriamente antropo-

    cultural, pode vir a esclarecer o que, a um recorte apenas literrio, encontra-se

    estampado nas narrativas veterotestamentrias. A Fenomenologia da Religio,

    portanto, no constitui um outro mtodo, seno que se alia aos objetivos de

    fundo das abordagens histrico-sociais, logo, histrico-crticas, na tarefa de,

    entrando no mundo do passado por meio dos vestgios literrios sobrevividos,

    situar tais vestgios, enquanto narrativas, em seu preciso, funcional e instrumental

    Sitz im Leben31.

    Da mesma forma, mas no campo interno, o conjunto das narrativas da Bblia

    30 Para o que valeria apontar para A. J. DA SILVA, Leitura scio-antropolgica, in: C. M. D. DA SILVA, Metodologia de Exegese Bblica, p. 355-450. 31 Para o que aponta-se para o ensaio de Carlo GINZBURG, Razes de um Paradigma Indicirio, in: Carlo GINZBURG, Mitos, Emblemas, Sinais Morfologia e Histria, p. 143-180.

  • 31

    Hebraica compe uma atualizao lxico-semitica incontornvel para a

    determinao da agenda antropo-cultural dos termos que a compem. Nesse

    sentido, um levantamento semntico-fenomenolgico em toda a Bblia Hebraica

    dos termos fundamentais de uma determinada passagem pode lanar luz sobre a

    compreenso dessa passagem. No se trata de uma unificao dos sentidos de

    cada termo, como se fosse correto dizer que o sentido de uma palavra em um texto

    deve ser a soma do sentido dessa palavra em todas as suas ocorrncias na Bblia

    Hebraica. No se trata disso! Trata-se da determinao de uma agenda lxico-

    fenomenolgica veterotestamentria, na qual, uma determinada palavra pode

    aparecer frente de mais de um sentido possvel, cabendo-se, agora, depois de

    discernido o lxico semntico-fenomenolgico potencial da palavra, determinar-se

    aquele preciso sentido com que, desde a, ela intencionalmente empregada.

    A raiz Br est no centro desse empreendimento metodolgico histrico-

    social e lxico-fenomenolgico. Depois de o sculo XIX ter discernido a agenda

    antropo-cultural sob cujo regime a raiz se atualizava na Bblia Hebraica32, graas a

    questes de ordem poltico-teolgica, alheias, decerto, ao esprito da heurstica

    indiciria acadmica, perdeu-se recalcou-se tal agenda, articulando-se a raiz

    desde fora de seu lxico-fenomenolgico. A inteno determinada de recuperar

    no apenas a agenda antropo-cultural veterotestamentria de Br tambm isso ,

    mas, sobretudo, o seu sentido em Gn 1,1, guiou toda a pesquisa.

    O presente relatrio apresenta-se organizado em quatro sees. Em cada

    uma, pretende-se, sempre, assentar a hiptese de trabalho defendida pela Tese

    Gn 1,1-3 constitui o prlogo da Cosmogonia de Inaugurao do Templo de

    Jerusalm. No primeiro captulo, investiga-se a funo instrumental das

    cosmogonias prximo-orientais. A isso se prende o objetivo de situar

    contextualmente o Sitz im Leben das cosmogonias do Crescente Frtil para, por

    meio de analogia, considerar-se a possibilidade de que Gn 1,1-3 tenha sido

    redigido luz dessa funcionalidade comum ao entorno de Jud.

    No segundo captulo, aproxima-se histrico-criticamente do texto de Gn

    1,1-3. Discutem-se sua delimitao, sintaxe e traduo. Justifica-se, a, uma

    ateno especial sintaxe, uma vez que as interpretaes consignadas na literatura

    da rea caminham paralelamente ao modo com que os estquios e versos de Gn

    32 Cf. nota 385.

  • 32

    1,1-3 so sintaticamnete definidos. A traduo e a sintaxe assumidas pelo relatrio

    convergem para afirmar o carter prximo-oriental do prlogo de Gn 1,1-2,4a o

    que significa dizer que a aboragem fenomenolgico-religiosa e a anlise histrico-

    crtica de Gn 1,1-3 coincidem na corroborao da Tese.

    O terceiro captulo dedica-se a verificar se o comportamento dos termos-

    chave de Gn 1,1-3 no conjunto da Bblia Hebraica ratificam o sentido com que so

    assumidos pela Tese. O resultado dificilmente contestvel. No apenas conclui-

    se, com folga, que o conjunto dos termos-chave de Gn 1,1-3 deixam-se apreender

    na Bblia Hebraica carregados de todos os sentidos e relaes prprios dos

    constituintes semnticos das cosmogonias prximo-orientais (o que, por si s,

    justifica a investigao fenomenolgico-religiosa levada a termo no captulo um),

    quanto testemunham inequivocamente que, no conjunto da Bblia Hebraica, pode-

    se, para o tema da cosmogonia, relacionar explicita e diretamente os motivos

    criao e construo por exemplo, Sl 102,17-19: a (re)construo de

    Jerusalm equivale criao (Br) do povo.

    Finalmente, no quarto captulo, ensaia-se uma explicao de carter

    histrico-sociolgico para o argumento presente em Gn 1,1-3, uma vez que a Tese

    concluir pela responsabilidade redacional da golah, a elite judata retornante do

    cativeiro babilnico, e que, agora, sob a autoridade persa, (re)assume o poder

    em Jud. Gn 1,1-3 o prlogo. Gn 1,1-2,4a, a cosmogonia. Jerusalm/Jud, a

    criao.

    Em face da observao do orientador quanto a no ser necessria a

    apresentao dos textos da Bblia Hebraica tanto em hebraico quanto nos

    caracteres de transliterao ocidentais, devendo-se optar por um dos dois

    sistemas, optou-se pela transliterao, que segue o padro estabelecido pelo

    software BibleWorks33. Dada a sua maior facilidade de leitura, palavras em

    lngua grega, pouco usadas na Tese, foram mantidas na lngua original.

    33 BibleWorks for Windows. BibleWorks, LLC, 2003, verso 6.0.05y, com licena adquirida pelo pesquisador.

  • 33

    2

    Fenomenologia da Religio e o Sitz im Leben da

    Cosmogonia Prximo-oriental A cosmogonia uma das duas foras que

    moldam a sensibilidade cultural e intelectual do Ocidente. A cosmogonia provm de Jerusalm, enquanto que a segunda tradio logos deriva de Atenas34.

    O objetivo do presente captulo situar a relao entre cosmogonia e templo

    em seu imediato contexto (imagtico, simblico, instrumental e poltico) prximo-

    oriental, para, de posse das informaes reunidas, investigar a pertinncia de ler-

    se Gn 1,1-3 sob a luz da tese de sua dependncia mtico-noolgica, antropo-scio-

    cultural e poltico-religiosa do motivo cosmognico que (e em que se) expressa. O

    primeiro passo constitui-se do acesso fenomenolgico-religioso ao motivo

    cosmognico das sociedades tradicionais, com base no roteiro estabelecido por

    Mircea Eliade (1.1). O que a se conclui, aplica-se, na forma de estudo de caso,

    relao entre o Templo de Eridu e a cosmogonia mesopotmica, conforme o

    script elaborado pela antroploga Gwendolyn Leick (1.2). O passo seguinte

    ampliar o foco para as sociedades do Crescente Frtil, observando-as em suas

    articulaes poltico-religiosas e noolgico-simblicas do mito cosmognico

    (1.3), quando se justifica uma anlise mais pausada do, porque mais difundido,

    Enuma eli (1.4). A essa altura, a relao entre cosmogonia e templo estar

    suficientemente assentada para justificar uma aproximao mais direta ao tema

    em ambiente mesopotmico (1.5), ugartico (1.6) e egpcio (1.7), finalizando o

    percurso com uma antecipao indiciria em face do marcado conjunto das

    clusulas subordinadas adverbiais temporais na abertura de um (suficiente para

    mostrar-se tpico) grande nmero de cosmogonias do Antigo Oriente Prximo.

    A cada passo, em cada parada no se duvide est-se procurando evidncias de

    que a cosmogonia de Jud a cosmogonia do Templo da Jerusalm ps-exlica,

    34 Cf. D. M. GABBAY e J. WOODS, A Practical Logic of Cognitive Systems, v. 2, p. 95.

  • 34

    Gn 1,1-2,4a no apenas est relacionada ao Templo, mas dele que fala o tempo

    inteiro.

    f1

    Interior do Templo de Edfu. No fundo trevoso, centrado na perspectiva das colunatas, que como

    que sustentam o cosmos que saiu dela e que ela sustenta, a capela de Hrus. A capela templo no templo que cosmos no cosmos.

    (cf. nota 242)

  • 35

    2.1

    Cosmogonia e Construo em Mircea Eliade

    Se nos limitssemos (...) a uma recusa preconcebida de ordem ideolgica em relao s pesquisas que explicam longussimas continuidades em termos (...) arquetpicos (Eliade), estaramos cometendo um grave erro35

    Como introduo anlise do Sitz im Leben das cosmogonias prximo-

    orientais, necessrio preparar o terreno sobre o qual os argumentos apresentados

    sero organizados. Para tanto, a Tese recorre ao fenomenlogo36 e historiador das

    religies, Mircea Eliade, a partir de cujas pressuposies metodolgicas37

    constri-se a plataforma de aproximao cientfico-humanstica ao tema da

    35 Cf. C. GINZBURG, Mitologia Germnica e Nazismo sobre um velho livro de Georges Dumzil, in: Mitos, Emblemas, Sinais Morfologia e Histria, p. 206. 36 Em termos antropolgico-etnolgicos, vale dizer: preciso tambm comear situando o fenmeno religioso em si mesmo (cf. P. LABURTHE-TOLRA e J.-P. WARNIER, Etnologia-Antropologia, p. 196). A Tese pretende acompanhar o significado que o tema cosmognico tinha para os povos envolvidos com as rotinas mitoplsticas e templrio-ritualistas envolvidas: aqui, especificamente, a conscincia israelita/judaica, conforme registrada em Gn 1,1-3 e em outras passagens direta ou indiretamente relacionadas aos contedos e motivos especficos da cosmogonia. Sob a perspectiva de um doutor em teologia, eminente representante da Fenomenologia da Religio, cf. G. VAN DER LEEUW, Religion in Essence and Manifestation study in phenomenology, 1938. No se trata de afirmar que a Fenomenologia da Religio constitua ou pretenda constituir forma privilegiada de acesso unilateral e auto-suficiente ao fenmeno religioso. Trata-se, apenas, de utilizar-se da abordagem fenomenolgico-religiosa para, por meio dela, clarear, atravs dos conceitos que ela maneja, o quadro histrico-social depreensvel das narrativas cosmognicas e quase-cosmognicas da Bblia Hebraica. Para isso, a fenomenologia da religio particularmente til. Para uma aproximao aos mtodos de aproximao ao tema do sagrado, cf. T. A. IDINOPULUS e E. A. YONAN, The Sacred and Its Scholars: Comparative Methodologies for the Study of Primary Religious Data, 1996. Para uma aproximao fenomenolgica a Gn 1 e 2, cf. F. K. FLINN, The Phenomenology of Symbol Genesis I and II, in: W. S. HAMRICK (ed), Phenomenology in Practice and Theory, p. 223-250. 37 Para o recurso Fenomenologia da Religio como instrumento heurstico-metodologico, cf. o programa de Religiones Comparadas sugerido por Raimon Panikkar (cf. R. PANIKKAR, Religiones Comparadas, Boletn de la Sociedad Espaola de Ciencias de las Religiones, n. 2, 1994), segundo o qual a Fenomenologia da Religio constitui uma das vertentes metodolgicas de acesso ao fenmeno religioso historicamente investigado. Recomenda-se firmemente, ainda, a leitura do captulo O Pensamento Duplo: Mito Logos, em E. MORIN, O Mtodo 3. O conhecimento do conhecimento, p. 168-194.

  • 36

    cosmogonia como construo de sociedades histrico-socialmente instaladas38.

    O Espao Sagrado e a Sacralizao do Mundo, primeiro captulo de O

    Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade, constitui-se em base para os argumentos

    do presente captulo, posto que lana significativa luz sobre grande parte da

    dinmica de articulao dos termos cosmognicos prprios de Gn 1,1-3, e, de

    resto, da Bblia Hebraica.

    Em que pese a aproximao crtica cosmogonia judaica de Gn 1,1-3 que a

    Tese opera, procedimento heurstico conscientemente distante da experincia

    scio-antropolgica que pressupe a funcionalidade poltico-religiosa dessa e das

    cosmogonias poca institucionalmente instrumentalizadas, reconhece-se, com

    Mircea Eliade39, que, por trs da instrumentalizao poltica das cosmogonias,

    transparece a experincia religiosa profunda dos homens e das mulheres da

    sociedade prximo-oriental40, fator segundo o qual , inclusive, a razo do sucesso

    poltico da manipulao estatal-oficial do discurso mtico-cosmognico.

    Mircea Eliade assume como pressuposto terico-metodolgico da pesquisa

    38 Parece haver um conceito que subjaz maioria das narrativas cosmognicas. a noo de que h uma tenso dinmica entre caos e ordem. Caos informe, inominado, inerte. Ainda assim, ele encontra-se carregado da possibilidade de dar luz um sistema sucessivamente mais diferenciado que finalmente constitui civilizao (cf. G. LEICK, A Dictionary of Ancient Near Eastern Mythology, p. 26). Gwendolyn Leick acrescenta definio o conceito de temporalidade cclica da cultura prximo-oriental, o que empretaria noo de cosmogonia a sua recursiva necessidade de renovao ritual. Cf., ainda, W. P. BROWN, The Ethos of the Cosmos: The Genesis of Moral Imagination in the Bible, p. 39, segundo o qual, por isso, o tema cosmognico conforme manejado na cultura israelita e judaica deve ser investigado sob a luz da articulao do mesmo tema nas culturas circundantes Mesopotmia, Canna, Egito. 39 Cf. M. ELIADE, Aspectos do Mito, p. 39-50. 40 Para o dizer pela boca de um historiador: a lgica mtica da Criao assim perceptvel no mundo dos fenmenos visveis, tornando todo ato imbudo de movimento criador, ou seja, todo movimento vital, uma experincia religiosa essencial. O plano fundamental ritualstico da criao do cosmos est presente em todo ato transformador (...) (cf. E. LEITE, Cosmogonias Vdica e Judaica, p. 101). Edgar Leite afirma que a aproximao ao tema [das cosmogonias] , portanto, declaradamente difcil, abstrata e imprecisa (op. cit., p. 100). Difcil sim, e a Tese reconhece os limites de plausibilidade em que opera. Abstrata no, porque as cosmogonias prximo-orientais, bem como as suas tributrias ainda mais orientais, so, todas elas, absolutamente concretas em sua expresso histrico-cultural: a emergncia concreta de sistemas/equipamentos civilizatrios (somente aps o perodo helnico que se passa a testemunhar a abstrao espiritualizao do tema cosmognico, mas nem por isso os indcios da dimenso concreta original esto perdidos, antes, podem ser recuperados inclusive exegeticamente. Para uma abordagem do tema criao e Torah pressuposto a, j, todo o processo de abstrao do tema cosmognico israelita/judaico, cf. B. A. HOLDREGE, Veda and Torah: Transcending the Textuality of Scripture, p. 131-213). Imprecisa no necessariamente, porque, o que a Tese pretende demonstrar, os discursos/textos e os ritos/as liturgias preservados desses povos e culturas permitem, feitas as perguntas pertinentes, revelar os traos precisos da semntica cosmognica segundo a qual operavam e nos termos da qual os textos direta ou indiretamente cosmognicos foram compostos. Para o acesso metodolgico, cf. a seo 1.4 Metodologia e 1.5 Procedimentos metodolgicos adotados em S. GALLAZZI, a Teocracia Sadocita. Sua Histria e Ideologia, p. 8-10.

  • 37

    fenomenolgico-religiosa algo como uma experincia do sagrado, segundo e

    por meio da qual revela-se a heterogeneidade do espao: para o homem

    religioso, o espao no homogneo41. Dito de outro modo:

    Toda a cratofania e toda a hierofania, sem distino alguma, transfiguram o lugar que lhes serviu de teatro: de espao profano que ele era at ento, tal lugar ascende categoria de espao sagrado (...) Dir-se-ia mais exatamente que, devido s cratofanias e s hierofanias, a natureza sofre uma transfigurao de que sai carregada de mito42.

    Em termos hermenuticos e psicolgicos, a experincia antropolgico-

    religiosa da heterogeneidade do espao corresponde fundao do mundo,

    porque ela , doravante, explicada internamente por meio dos mecanismos

    culturais, e mediante a articulao dos elementos pragmticos da cultura.

    Emergiria da experincia do sagrado a percepo intuitiva, culturalmente

    desdobrvel, da fragilidade do espao da vida a terra sob a qual se pisa, na

    qual se vive, e sob a qual se tomba, quando a vida acaba. Essa fragilidade

    intuitivamente dissolvida, quando da experincia religiosa da heterogenizao do

    espao. que, segundo Mircea Eliade, a experincia do sagrado promoveria a

    contaminao do espao no qual a experincia se d, marcando-o profundamente,

    em oposio quela regio, fora desse espao, onde o fluxo da vida permanece

    contnuo e natural. Esse espao sagrado, revelado na e pela experincia do

    sagrado, empresta da prpria experincia o seu carter absoluto. Nas palavras de

    Mircea Eliade, a manifestao do sagrado funda ontologicamente o mundo43.

    Por conta desse contgio do lugar pelo sagrado tomado como manifesto na

    experincia hierofnica, esse preciso lugar revela-se como ponto fixo, absoluto

    41 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 35. Cf. M. ELIADE, The World, The City, The House, in: S. B. TWISS e W. H. CONSER Jr., Experience of the Sacred: Readings in the Phenomenology of Religion, p. 188-199, S. BERGMANN, Theology in its Spatial Turn: Space, Place and Built Environments Challenging and Changing the Images of God, Religion Compass, v. 1, p. 353379 (com aprofundamentos em S. BERGMANN [ed], Architecture, Aesth/Ethics and Religion, 2005), e J. K. HOFFMEIER, Sacred in the Vocabulary of Ancient Egypt: The Term DSR with special Reference to Dynasties I-XX, p. 173-174. Para o tema, aplicado, agora, religio de Israel, cf. R. E. TAPPY, Recent Interpretations of Ancient Israelite Religion, p. 159-168. 42 M. ELIADE, Tratado de Histria das Religies, p. 435. Para um abordagem ao mito, com anlise das teses/definies de Ernst Cassier, Bronislaw Malinowski, Mircea Eliade, Claude Lvi-Strauss e James Frazer, cf. Cf. R. M. SHIPP, Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21, p. 1-32. 43 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 36. Para um resumo das aproximaes metodolgicas ao tema da manifestao do sagrado, cf. J. S. Croatto, As Linguagens da Experincia Religiosa, p. 50-72.

  • 38

    um centro44.

    Hermenutica e psicolgica ao mesmo tempo, uma tal experincia recobrir-

    se-ia, ainda, de um valor existencial significativo, uma vez que aquele centro

    tanto marcaria a vida, quanto seria marcado por ela, contagiando-a com a

    emergncia do absoluto, e sendo contagiado pela traduo cultural incontornvel

    que se lhe impe. O centro aparece, assim, como centro absoluto de

    orientao existencial, e isso para todos os fins, j que ele constitui, ao mesmo

    tempo, eixo fundamental da cultura que se passa a articular em torno dele e ponto

    de acesso ao sagrado. Doravante, sagrado e cultura estaro alinhados em torno

    do centro45.

    Formulado de maneira muito pertinente, Mircea Eliade expressa o conceito

    fundamental da cosmogonia:

    Para viver no mundo, preciso fund-lo e nenhum mundo pode nascer no caos da homogeneidade e da relatividade do espao profano. A descoberta ou a projeo de um ponto fixo o Centro equivale criao do Mundo46.

    Para Mircea Eliade, trata-se de um fenmeno antropolgico to

    fundamental, que mesmo o homem no-religioso, segundo ele, no consegue

    44 Cf. o captulo Symbolism of the Center em M. ELIADE, Images and Symbols: Studies in Religious Symbolism, p. 27-56. Tambm, A. GREEN, Sabbath as Temple: Some Thoughts on Space and Time in Judaism, in: Jacob NEUSNER (ed), Judaism Transcends Catastrophe: God, Torah, and Israel Beyond the Holocaust, p. 163-164. 45 Segundo Mircea Eliade, no se trata de uma especulao terica (a experincia de heterogeneidade do espao), mas de uma experincia religiosa primria, que precede toda a reflexo sobre o mundo. a rotura no espao que permite a constituio do mundo, porque ela que descobre o ponto fixo, o eixo central de toda a orientao futura (M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 35-36). O homem no s produz um mundo como tambm se produz a si mesmo. Mais precisamente ele se produz a si mesmo num mundo (P. BERGER, O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociolgica da religio, p. 19). Para a expresso religiosa situada de israelita e judatas, cf. E. ERSTENBERGER, Teologias no Antigo Testamento pluralidade e sincretismo da f em Deus no Antigo Testamento, p. 196-248. Para a defesa da hiptese de constituir-se a noo de criao como base do conceito matriz da religiosidade judaico/israelita, cf. J. D. LEVENSON, Creation and the Persistence of Evil: The Jewish Drama of Divine Omnipotence, p. 3-13 (sua ratificao [p. 3-4] da tese de Yehezkel Kaufamann [Y. KAUFMANN, A Religio de Israel do incio ao exlio babilnico, 1989] da radical diferena entre as noes de criao israelita/judaica, de um lado, e prximo-oriental de outro, diferena esta justificada pela teologia do Deus Supremo daqueles, poderia eventualmente ser considerada apenas para o perodo ps-exlico mais recente. Mas no, absolutamente, para o perodo pr e imediatamente ps-exlico). 46 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 36. A Segunda Narrativa da Criao, constante do Enuma eli (IV.135-V.122) conclui com a construo/instalao de Babilnia, por Marduk, no centro do cosmos (cf. B. JANOWSKI, Der Himmel auf Erden zur kosmologischen Bedeutung des Tempels in der Unwel Israels, in: B. JANOWSKI, B. EGO e A. KRGER, Das biblische Weltbild und seine altorientalischen Kontexte. p. 240.

  • 39

    alcanar uma forma de vivncia no mundo que seja absolutamente livre de

    pressupostos, em ltima anlise, religiosos. Tal situao seria decorrente, a seu

    ver, do fato de que o espao profano homogneo, e destitudo de qualquer

    possibilidade de orientao existencial. Sendo, como assume, a experincia

    religiosa primria a experincia de heterogeneidade do espao cindindo-o em

    profano e sagrado, e propiciando, assim, um eixo fixo de orientao existencial, a

    que corresponderia a fundao de um mundo , faltaria ao homem que assume

    unicamente uma existncia profana, purificada de toda pressuposio

    religiosa, a possibilidade de movimentao segura47.

    A necessidade primria de um ponto fixo, decorrente da experincia

    religiosa do sagrado, seria to concreta, que, havendo necessidade de

    deslocamento territorial, e, conseqentemente, da imerso do grupo em territrio

    profano48, no ocorrendo espontaneamente a manifestao do centro no qual e a

    partir do qual o grupo deve, agora, instalar-se, o homem provoca-o, por meio de

    evocatio. Passa-se a observar as circunstncias e os lugares em busca de sinais

    para pr fim tenso provocada pela relatividade e ansiedade alimentada pela

    desorientao, em suma, para encontrar um ponto de apoio absoluto49. De facto,

    o lugar nunca escolhido pelo homem; ele , simplesmente, descoberto por

    ele, ou por outras palavras, o espao sagrado revela-se-lhe50.

    O indispensvel a revelao de um espao sagrado, seja espontaneamente,

    em circunstncias tomadas como irrupes hierofnicas, seja tecnicamente,

    ritualisticamente, mtico-religiosamente, mgico-simpaticamente, depois de

    assumida a incontornabilidade da exigncia do centro, e desenvolvidas as

    47 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 36-37. Talvez deva-se a isso o fato de que sistemas filosficos e polticos tenham a tendncia de assumir uma estrutura ideolgico-discursiva que rivaliza com a religio, confundindo-se, muitas vezes, com ela, ou assumindo seu lugar. Mircea Eliade fala, a, de comportamento cripto-religioso do homem profano (p. 38). Para uma aproximao ao tema da constituinte tambm mtica do pensamento moderno, cf. E. MORIN, O Mtodo 5 a humanidade da humanidade: a identidade humana, p. 129-141, por exemplo: o sentimento do sagrado, transe que transborda alm da esfera religiosa, um elemento da estrutura da conscincia (p. 136). Cf., ainda, P. BERGER, O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociolgica da religio. 48 Para uma aproximao cientfico-religiosa ao conceito de territrio, cf. S. GILL, Territory, in: M. C. TAYLOR (ed), Critical Terms for Religious Studies, p. 298-313. 49 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 41. Em registro antropolgico-etnolgico: os homens no podem apreender a totalidade do real; algo lhes escapa, talvez at o essencial. O verdadeiro sentido est em outro lugar. O sagrado ser assim oposto ao profano (P. LABURTHE-TOLRA e J.-P. WARNIER, Etnologia-Antropologia, p. 196). 50 M. ELIADE, Tratado de Histria das Religies, p. 438. A religio o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado (P. BERGER, O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociolgica da religio, p. 38).

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    tecnologias de discernimento para a sua determinao e fundao. Toma-se como

    fundamental e imprescindvel que o espao de vida do homem religioso seja

    contaminado pelo sagrado, porque o sagrado o real por excelncia e saber

    mover-se no real constituiria, assim, o trunfo da cultura, que, logrando xito em

    dominar as tcnicas de determinao dos espaos sagrados do real pode

    estabelecer-se com segurana e orientao verdadeiras. por essa razo que se

    elaboram tcnicas de orientao, que so, propriamente falando, tcnicas de

    construo do espao sagrado51.

    O modo como Mircea Eliade o diz fundamental para a presente Tese:

    tcnicas de construo do espao sagrado. Prepara-se o terreno para a relao

    entre cosmogonia e construo:

    Mas guardemo-nos de crer que se trata de um trabalho humano, que graas ao seu esforo que o homem consegue consagrar um espao. Na realidade, o ritual pelo qual o homem constri um espao sagrado eficiente na medida em que ele reproduz a obra dos Deuses52.

    A construo do espao sagrado torna-se, assim, duplamente significativa.

    Primeiro, consistiria na irrupo do absoluto real na relatividade profana da

    vida, abrindo uma clareira de referncia e orientao em meio homogeneidade

    inerte da vida comum. Segundo, constituiria a reproduo eficiente e simptica

    dos atos criativos da(s) divindade(s), evocados como encantamento mtico da obra

    humana, sem o que ela no logra transignificar a relatividade cotidiana em

    absoluto sagrado.

    Mircea Eliade est pronto para apresentar, ento, uma srie de afirmaes

    heuristicamente relevantes para esta Tese. Inicialmente, trata de dizer, na seo

    Caos e Cosmos do captulo sob anlise, que

    o que caracteriza as sociedades tradicionais a oposio que elas subentendem entre o seu territrio habitado e o espao desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro o mundo (mais precisamente: o nosso mundo), o Cosmos; o resto j no um Cosmos53.

    51 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 42. Cf. V. CROSBY, New Approaches to Sacred Space, p. 463-472. 52 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 43. 53 Idem, p. 43. Essa oposio entre o cosmos e o caos freqentemente expressa por vrios mitos cosmognicos (P. BERGER, O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociolgica da religio, p. 38).

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    O prprio Mircea Eliade extrai as implicaes de uma tal afirmao. No se

    pode considerar que a distino entre cosmo e caos para usar seus termos

    seja tributria do fato prosaico de que, afinal, o cosmo habitado, e o caos, no.

    Essa seria apenas uma constatao de superfcie, mas deixaria de captar o

    fundamental, que, segundo Mircea Eliade, significa dizer que

    se todo o territrio habitado um Cosmos, justamente porque foi consagrado previamente, porque, de um modo ou de outro, tal territrio obra dos Deuses ou est em comunicao com o mundo dos Deuses54.

    A consagrao do territrio mais do que uma evocao das divindades.

    Trata-se da ereo de equipamentos litrgicos, os quais tm a funo de marcar o

    ponto em que o territrio ocupado confunde-se com o mundo real e absoluto das

    divindades55. Mircea Eliade ilustra o fato com a cerimnia de elevao de um

    altar do fogo na tradio vdica. Diz-se ser erigindo um altar que se pode instalar

    em um territrio como espao de habitao. O espao do altar torna-se num

    espao sagrado, e no simplesmente porque esse altar simbolize ou represente o

    sagrado, mas, muito mais profundamente do que uma simples analogia abstrata:

    a ereco de um altar a Agni outra coisa no seno a reproduo a escala microscpica da Criao. A gua onde se amassa a argila assimilada gua primordial; a argila que serve de base ao altar, simboliza a Terra; as paredes laterais representam a atmosfera etc. E a construo acompanhada de estrofes explcitas que proclamam qual a regio csmica que acaba de ser criada56.

    54 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 43. Espaos sagrados podem ser encontrados na natureza ou podem ser construdos (N. S. SLADE. An Investigation of Sacred Space The Grove, p. 2). Um lugar sagrado um lugar que representa simbolicamente o mundo; em ltima anlise, ele reflecte a ordem e a integridade, e como um rede mstica do cosmos: a sua prpria configurao inclui um mundo, e, para o homem, torna-se, em um nvel profundamente sensual, o cosmos (R. P. B. SINGH, Introduction: The Layout of Sacred Places, p. 162). Cf., ainda, L. GUENTHER, Towards a Phenomenology of Dwelling, p. 38-46. 55 Desde o ponto central da cidade, os quatro horizontes so projetados para fora dos limites do espao nas quatro direes, assim delimitando e orientando a ambiente circundante, assimilando-a como territrio sagrado dentro do continuum do espao profano, submetendo-o ordem csmica, sacralizando-a, tornando-a apta para habitao e cultura humanas (cf. A. SNODGRASS, The Symbolism of the Stupa, p. 69). Cf. S. GILL, Territory, in: M. C. TAYLOR (ed), Critical Terms for Religious Studies, p. 298-313; J. Z. SMITH, To Take Place: Toward Theory in Ritual, p. 1-23; H. W. TURNER, From Temple to Meeting House: The Phenomenology and Theology of Places of Worship, p. 2-12; e A. VAN GENNEP, The Rites of Passage, p. 15-25. 56 M. ELIADE, O Sagrado e o Profano, p. 44. Cf. M. Eliade, Tratado de Histria das Religies, p. 441. Para Agni, o altar vdico do fogo, cf. F. STALL, Agni: The Vedic Ritual of the Fire Alter, v. 2, 1983. Para a relao entre altar, cosmogonia e cremao ritual, cf. T. OESTIGAARD, Cremation and Cosmogony Karma and Soteriology, p. 164-175. Mas no apenas o lugar sagrado est a simpaticamente reconstrudo: tambm, e com ele, o tempo sagrado, conforme

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    como se os territrios desocupados, desconhecidos, estrangeiros (isto

    quer dizer muitas vezes: desocupado pelos nossos) participassem ainda das

    condies existenciais das terras profanas. No constituiriam, por isso, um

    mundo o mundo do grupo, nosso mundo. Seria por isso, ento, que,

    ocupando-