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Asfixia

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Asfixia

   

Filipe Albuquerque Russo

Asfixia

1ª edição

São Paulo Edição do autor

2014

   

Copyright © 2014, Filipe Albuquerque Russo Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida em qualquer forma por quaisquer meios eletrônicos ou mecânicos (incluindo fotocópia, gravação ou obtenção e armazenamento de informação) sem permissão por escrito do editor-autor. Data de publicação: Novembro de 2014. Créditos da capa, contracapa e orelhas: · Desenhos por Thiago Bentancour · Texturas e foto por Filipe Russo · Tipografia Cristoforo, Thomas Phinney’s revival of Hermann Ihlenburg’s 1892 typeface Columbus. Direitos desta edição reservados a Filipe Albuquerque Russo. [email protected] Printed in Brazil/Impresso no Brasil Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Russo, Filipe Albuquerque Asfixia / Filipe Albuquerque Russo. --

1. ed. -- São Paulo : Ed. do Autor, 2014.

ISBN 978-85-914670-1-3

1. Ficção brasileira I. Título.

14-11995 CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

a Cristiano Santos,

por todas as gentilezas; até mesmo as que eu não mereci,

inclusive as não direcionadas a mim.

   

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– Onde eu estou?

O ambiente inteiro parecia dolorido e a atmosfera era den-sa como que abafando gritos em si mesma. O piso estava todo sujo e embriagado, azulejos de sangue e ódio coagulado. Es-trondo metálico! Um cano deveria ter se rompido dentro da pa-rede e logo em seguida ouvi algo se descolar. Virei-me, incli-nei minha cabeça para cima e vi uma criatura arruinada e mo-fada, pandêmica e anêmica; debatendo-se em seu próprio dis-túrbio. O ser despencou do teto, trincando minha sanidade a qual ficou pairando no ar pacientemente enlouquecida junto com a poeira. Vinha; se contorcendo na minha direção, se con-traindo como que em convulsão. Seu corpo emitia estalos, os quais induziam receios e me preenchiam com temor. Queria me apavorar aos tropeços, mas minhas feições foram assimi-lando aquele horror e paralisei; estancada até a alma num ter-ror tão perturbador que me arrastaria pelas tripas até o infer-no. Não consegui determinar se tudo rodopiava ao meu redor ou se eu girava em torno de mim mesma; a minha cabeça pul-sava e pulsava, num desfiladeiro de pressão psicossomática mantido unido somente por meio de trapos moles, galhos po-dres e entranhas carcomidas. Mente, cérebro e crânio empa-relharam-se desordenadamente como que oscilando entre di-ferentes alucinações. Minha visão embaçou. O movimento contínuo do meu corpo rompeu-se ao chão: eu me vomitara pa-ra fora daquele pesadelo. Mesmo com a atenção desfocada eu estava segura, eu estava em casa.

– Quem sou eu? Aos frangalhos minhas células inchavam prestes a estou-

rarem e quase, quase espatifei-me novamente no assoalho de

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madeira sem força para erguer as costas porém decidida de-mais a não ceder de vez. Assim capenga esgueirei-me do clo-set ao banheiro e larguei o tronco sobre a pia, desenrosquei a maçaneta enquanto a água gelada mas logo morna escorria da nuca à boca elaborando teias pelas mechas descabeladas, me naufragando até uma escuridão uterina de tão materna? Inci-nerante! De sobressalto levantei o rosto esbarrando a testa na torneira fumegante. Quase anestesiada pelo vapor condensa-do olhei-me ao espelho embaçado, um pouco mais embaçado pelo meu ofegar, procurando algum tanto pela abrasão acima das sobrancelhas.

Mas tudo o que vi borra a borda do bordado e cada piscar de olhos espoca outro, sempre outro glóbulo d'água.

Um olhar cabisbaixo me encarava do outro lado da parede como se os azulejos brancos se desdobrassem para dentro de uma cavidade a unir ambos os compartimentos em um recinto ainda maior, delicadamente atravessei o canal com o braço a-jeitando o cabelo para trás da orelha e ao tentar retirar a mão do portal trincas enraizaram-se em sua superfície puxando-me para dentro e ali chorei, chorei até ter dó de mim. Num só ímpeto de fúria, indignação e nem que deslocasse o ombro li-vrei-me da pulsão atirando meu corpo contra a parede oposta. Desmoronei sobre a tampa do assento sanitário soluçando, lá-grimas ferviam sobre as bochechas e empapuçavam meus lá-bios e queixo com coriza escorrida.

Repousei o pescoço entre os ombros vergando-o para trás e fechei os olhos; antes de resolver limpar-me daquela másca-ra grudenta, assoando as narinas e secando as pálpebras nas mangas e barra da blusa. Cansada observei um líquido escuro porém avermelhado brotar das rachaduras, a princípio ape-nas do espelho mas cada outra junta ao entrar em contato com tal fluido dissolvia-se também e assim o tampo da pia, o vidro do box, o chuveiro, o sanitário e inclusive o piso vieram a bai-xo levando-me junto. De pé vi os azulejos deslizarem pelas

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paredes até o chão, onde flutuavam feito painéis de isopor pa-ra logo em seguida afundarem rumo ao desconhecido. Tam-bém notei o seguinte: o negrume já passara de meus tornoze-los e não sentia mais meus sapatos. Com força tentei escanca-rar a porta e a maçaneta resistia a girar, pus o olho sobre a fe-chadura tentando espiar pela presença de sabe milagres quem, talvez a diarista passando o aspirador ou o torso nu de um amante: meu desespero me imbuíra de criatividade ou pu-ro delírio! No que pensar? De encontro a minha pupila uma chave vinha; desviei-me com o corpo todo pregando-o aos ar-mários e gavetas, uma delas aliás veio ao chão num mergulho espalhafatoso com direito a pomada, gaze e acetona voando pelos ares e já engolidas num gole guloso daquela secreção. Pus o pé na parede ao lado da fechadura, agarrei a maçaneta com ambas as mãos e da porta arranquei os gemidos mais so-fredores junto com toda parafernália metálica porém nenhuma abertura de volta ao quarto se revelara.

Antes do fluido encharcar-me ainda mais adentrei o canal, onde uma vez se enquadrara meu espelho, do outro lado não notei nada além de uma luz vermelha borbulhando pelas fres-tas e atirei-me de súbito contra a porta gêmea escancarando-a sem cautela: caí de mãos ao chão, olhei sobre o ombro e nada; nada as minhas costas além de breu. A própria treva viva me atravessara. Sob os dedos agarrei a terra fechando-os com força, com a vontade de esmurrar uma face anônima, o rosti-nho desgraçado que se responsabilizaria por toda essa tre-menda palhaçada.

– O que encontrarei logo mais adiante? Uma atmosfera tão densa que até os gritos demoravam a se

propagar, a se resignar; uma atmosfera tão tensa que qual-quer mínimo estremecimento já a rasgaria ao meio ou pior: em múltiplas fraturas, cada qual regurgitando sua respectiva en-xurrada de gritos. Minha imaginação; um homem se afogando, te estrangulando no seu próprio pânico simula a realidade an-

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tes que eu possa conceber meus próprios pensamentos e às vezes, recentemente ainda mais aliás, se recusa a ceder às leis do plausível. Mais indignada do que qualquer outra coisa me levantei consternada. Na distância se avistava o contorno tortuoso de árvores pitorescas sobre um fundo anil quase preto, mas logo uma sombra encostava na outra mesclando-as em sinuosidades indistingüíveis, cheias de sedução e misté-rio, o qual eu, em minha ingenuidade quase estupidificante a-liás, resolvi investigar. Numa observação mais minuciosa pu-de averiguar o marrom quase cinza dos troncos, os galhos se espalhavam feito raízes espalmando as nuvens ou névoa.

Logo mais adiante distingüi um traço humano em meio à fo-lhagem dos arbustos e fui me aproximando cautelosa em sua direção, porém a proximidade parecia esfumaçá-lo em uma di-fusão nebulosa e espessa com desassossego. Passei a língua sobre os lábios umedecendo-os, pois a secura da ansiedade os ressecara quase crestados. Odiei atravessar descalça o terreno com os dedos imundos de terra negra e úmida, prova-velmente repleta de vermes e micoses e frio, o gélido do chão me incomodava profundamente. Uma brisa cortante embaçou minha visão esfriando meus ossos e agoniada minha carne gemeu de dor, me barriquei atrás de uma árvore para reco-brar o foco e algum tanto do ânimo também. Um pouco ofegan-te eu sentia meu fôlego esvanecer, talvez eu me encontrasse numa clareira entre as montanhas. Retomei meu rumo ao a-lém afagando a cada passo um punhado de folhas com a ponta dos dedos mais para me acariciar mesmo, eu desejava apenas o morno de um abraço amigo e então poderia me resignar com o que fosse, pouco a nada importaria, apenas uma compania não inimiga bastava. Mas não, as mecânicas que operam aqui não dispõem de compaixão alguma e isso eu adivinhei sem grandes esforços, apenas uma efervescência no estômago a borbulhar um amargo que envenenava os sentidos. Assim quase completamente apática, porém com fios de esperança a

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me puxar pro futuro desci com cuidado pela encosta abando-nando o platô, algo me aguardava ao pé da colina.

– Quem aparecerá para apresentar o parecer que for? Certa indisposição já recobria minhas juntas dificultando

os movimentos que não dispunham de grandes razões de ser, vagar sem direção desorientada por um bosque não me moti-vava com pressa ou recompensa e então ouvi, um tanto quan-to ao longe mas em processo de aproximação o urro inumano. Tentei me conscientizar em vão de que minha imaginação pre-gava uma peça em meus ouvidos, com a confiança abalada ba-lancei meu corpo e num embalo só apressei o passo ligeira quase correndo, desviando de arbustos como quem salta por cima de minas. Folhas secas grudavam na sola de meu pé e na junta entre os dedos também, causando uma coceira para qual eu não disponha de tempo e segurança com os quais dispen-der em sua homenagem. Algo ou alguém me observava à dis-tância num misto de admiração e apreensão eu viria a supor mais tarde quando já bem informada quanto à natureza pre-sente. Franzi o cenho um tanto horrorizada com tamanha per-versão, queria gritar por socorro mas temia apressar minha tragédia ao invés de previní-la. Assim meio descabelada com os olhos esbugalhados de medo ameacei alguma movimenta-ção, ganhei terreno e confiança no esticar das pernas, ampli-ando minha zona de conforto. O vôo rasante de corvos, mor-cegos ou mariposas balançava os galhos a cima de mim e eu adivinhava uma mão descendo os dedos sobre minha nuca, fe-lizmente nada tão tolo quanto meus pensamentos se manifes-tou por hora.

Um brilho singelo luzia ao longe prometendo algum sosse-go maior do que minha nostalgia e guiada por essa onda lumi-nosa, quase amarrada a ela caminhei pelo corredor até um so-pro pela janela vir apagar a vela ao centro da mesa na sala de jantar? Escuridão.

Desembolsei mais alguns passos e apostei no interruptor,

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as lâmpadas desfiaram as sombras e sobras relevando minha cozinha com direito ao almoço que por desleixo eu não guar-dara na geladeira.

– Quão cética eu ainda permaneceria? Com a boca entreaberta prestes a vomitar um riso debo-

chado ofeguei um pouco com os pulmões murchos, encolhidos com medo. Encarei o meio frango assado rodeado por batatas na embalagem de isopor, fechei-lhe o invólucro e pausei por alguns instantes temendo abrí-lo e ver um crânio humano. Sosseguei meu facho e encarei o frango assado novamente, a-gora sorri com fome, lavei a louça, a pus no escorredor, pois a preguiça me inibia de enxugá-la para uso imediato, peguei mais um jogo na gaveta abaixo do tampo da pia e parti pro ata-que, mesmo à temperatura ambiente a carne rejubilou delicio-sa entre meus dentes e enfim alguma satisfação circulou em mim quase me adormecendo de volta ao pesadelo? Recobrei os sentidos muito decidida a não dormir por hora, não seria de todo seguro. Assim sonolenta apreciei o resto da refeição, sa-boreando as batatas oleosas pela gordura do azeite de oliva extra virgem. Passei o guardanapo aos lábios removendo o máximo da oleosidade possível, gosto da minha pele opaca e serena. Livrei-me do lixo e abri a geladeira em busca de uma sobremesa: iogurte grego ou uvas Thompson? Me resignei com três delas nele.

Lembrei das ilustrações nas quais estive trabalhando nas últimas noites para uma revista de design e segui para o es-critório, liguei o computador, enquanto ele se iniciava troquei de roupa sem investigar o banheiro, minha sanidade ainda não permitia e pelo sujo lamacento das vestimentas foi melhor as-sim mesmo. Vesti apenas um casaco cinza de um ex-namora-do sobre um sutiã limpo e um short curto de um verde sincero. Sentei-me à frente do monitor e a tela chiou e chuviscou a es-tática de uma estação perdida ou inexistente. Franzi as so-brancelhas, desliguei os eletrônicos da tomada e enchi um co-

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po de água no filtro da cozinha, vários goles depois minha mente ainda latejava. Eu queria dormir como quem precisa morrer. Deitei-me sobre o sofá da sala com a cabeça encosta-da em seu braço, torci um pouco o pescoço para admirar pela vidraça da sala a cidade anoitecida. As estrelas pareciam des-lizar pelo céu rumo à terra, mas provavelmente apenas neva-va. Peguei o edredom lilás e o abracei lembrando dos cães com os quais rolei pelos quintais quando criança.

– Até quando continuarei ingênua e até mesmo inocente? No sono inacabável dos mortos eu me vi à deriva desvaira-

da por aí, pouco a nada sensato de minha parte aliás, ficar a-busando da sorte e apostando em mistérios muito a todo inso-lúveis e indigestos e abrasivos. Meu bom julgamento quanto à periculosidade de minhas aventuras nunca ofereceu grande auxílio, até mesmo porque nunca tive escolha, minha necessi-dade me arrasta pro vão da porta me esmagar e assim pobre coitada de mim, com ou sem razão, experimento o pior do mundo, tributo de sangue que enfim destranca a caixa de pan-dora, desdobra a fechadura num origami multidimensional. Sonhei com o moço gentil e, quando sorrindo bonito inclusive, da padaria duas esquinas daqui. Seus lábios brilhavam pra mim enquanto atendia o demais da freguesia composta por meus colegas de faculdade, os quais eu não via a uns 10 anos. Seu riso me tragaria num beijo nosso que eu não poderia e não gostaria de resistir, mas a familiaridade dos presentes me imobilizava, braços e pernas entrelaçados aos meus e então eu disse alguma coisa que não ouvi, mas rompeu a própria claridade do ambiente.

Na meia luz os corpos jaziam em pé paralisados e engoli-dos pelo terço pela escuridão, minhas pupilas dilataram ten-tando com uma abertura focal maior captar o que fosse: uma névoa pairava no ar abraçando os objetos no seu mover-se vagaroso; quase penoso. Quando já embalada pelo véu vapo-roso a mobília dissolvia-se no infinito e temi pelo bom rapaz,

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avancei alguns azulejos a passos cambaleantes com o mala-barismo necessário à evasão àquela perversão. Seus dentes ainda reluziam ao fundo quase cravados à parede num baixo ou alto-relevo? Enquanto eu ia até ele lembrei-me das aulas de escultura, onde se propunha desenterrar a forma prometi-da, encontrar no maciço e inerte torpor da matéria bruta o ros-to com o qual se sonha. Abobalhada pelo morno do meu erotis-mo escorreguei no piso oleoso torcendo o corpo em 180 graus, fechei os olhos quando minha nuca encontrou o chão e ao abrí-los novamente: breu. Mas logo uma parca claridade perpendi-cular iluminou o teto e reconheci na maré de tons cinzentos um lustre, girei o pescoço e meu nariz encostou no sofá.

– Qual eloquente achado eu hei de achar não mais então chateada?

Me desembolei do edredom preguiçosa, toda trabalhada na manha e ri um pouco de mim, não se levar tão a sério acres-centa algum tanto de saúde ao dia-a-dia. Falando nisso, logo mais ou menos logo aliás, amanheceria; e eu ainda dispunha de algum tempo nas mãos como um objeto difícil de integrar ao conjunto domiciliar, a paisagem doméstica não apresentava um vão correspondente para o mesmo. Engraçado: até a au-sência faz falta e um pouco mais do que se quer já causa indi-gestão ou no mínimo alguma acidez estomacal, a qual o médi-co da família já acusa de refluxo, mesmo tratando-se apenas de seu princípio ou nem isso. Mastiguei dois torrões de açú-car para sustentar o bom humor por sabe-se lá quantos mo-mentos a mais, esfreguei a arenosidade açucarada com a lín-gua contra o céu da boca e deixei o resto dissolver-se sozinho entre os dentes e gengiva, sem engolir saliva em fim precipita-do. Talvez eu devesse preparar um chá para efeito terapêutico calmante, gengibre com mel? Pois sim, procurei pela raíz en-tre vasilhas e potes, esbarrei no do mel mas nada da danada aparecer. Encontrei alguns dentes de alho que já separei para mais tarde antes de perdê-los de vista, atrás da mandioca no

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balcão apanhei sorridente o gengibre, o qual torci para sepa-rar a parte necessária do todo e esta pus-me a descascar com uma colher metálica, o delicioso aroma invadiu o recinto e a-calentou meus temores já não tão opressores quanto outrora.

Enquanto a água ainda não fervia contra o inóx sobre o fo-gão elétrico retirei-me para o escritório com o intuito de sepa-rar alguns templates, mock-ups, layouts e demais protótipos, pois poucos dias mais adiante eu apresentaria uma proposta comercial para qual minha vida prévia parecia convergir. Já havia adiantado um bom material, mas ainda faltava refinar al-gumas ilustrações e averiguar a consistência conceitual ao longo de todo o conteúdo. Cabisbaixa e exultante não sabia bem o que sentir, subitamente o sopro da chaleira sublimou meu transe e contente transitei de volta à cozinha. Insegura quanto a sentimentos e inversamente com o pulso bem firme depositei o líquido no bule, separei uma xícara, um pires e mi-nha toalha de mesa favorita, toda trabalhada na renda. Pus a mesa qual quem se prepara para visitas, as quais não viriam por falta de convites ou devido ao horário? O sol tímido ainda não se via ao horizonte, mas o efeito de sua presença já se fa-zia sentir tanto em calor quanto em luminosidade. Corri para cobrir as janelas com cortinas drapeadas e translúcidas, vá-rios véus de volume variado em vinho, marrom e creme; pois a claridade não só me ofusca como tumultua tudo, prensando os pensamentos contra a testa e com a mente entalada quem consegue se mover?

– O que farei de mim? Hoje cairia bem fazer um belo ensopado; pegaria o metrô

até a feira livre, compraria frutas e verduras frescas, começa-ria com uma salada e então prosseguiria para a sopa de legu-mes. Mas uma moleza meio mórbida me amoleceu e sem gran-de consistência minha força de vontade não me levaria a lugar algum, sentei-me no sofá e decidi especular quanto aos proce-dimentos necessários para um bom aproveitamento do dia: la-

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var o rosto, tomar café na padaria e trazer alguns pães fran-ceses integrais para finalizar o café da manhã com um sanduí-che de peito de peru light e queijo gouda, tomar um banho quente com ducha forte para acordar a carne e limpar os por-os, etc.

Desci as escadas do metrô, na volta subiria pelas escadas rolantes, chequei o crédito do cartão na máquina próxima a um pilar e passei pelas catracas, alguns vagões passaram mas le-vavam para outros destinos, para os quais se não fosse tão escrava de ciclos viciosos aliás eu deveria tomar coragem e ir, peguei o certo ao invés do duvidoso: o trem estava vazio me permitindo escolher um de meus assentos favoritos. Já sentada e acomodada, com a bolsa no colo fechei os olhos e uma moleza meio mórbida me amoleceu e sem grande consis-tência minha força de vontade não me manteve na rota. Ao a-brí-los as portas à frente se fecharam, porém antes de o fazê-lo consegui vislumbrar corpos caídos no chão. Não estáva-mos mais em movimento e resolvi procurar os demais passa-geiros para que juntos tomássemos as medidas cabíveis. Ob-viamente a realidade não colaborou.

Tentei abrir as portas e nada, puxei o gatilho de emergência e uma delas desencaixou-se numa queda para fora rumo à es-curidão. Aparentemente nos túneis desci com medo dos trilhos me eletrocutarem, segui reto até amassar o nariz contra a pa-rede? Mesmo assim surpresa já o esperava enfim aliviada, ta-teei-a com as mãos buscando certeza e então perambulando-a com a ponta dos dedos tentei reproduzir o trajeto de volta ao saguão onde observara os corpos caídos. Numa passada não mais promissora ou agitada que as anteriores perdi o contato com a parede e uma solidão aguda, perfurante e envenenada com pavor me invadiu, quase me encolhi no chão em resposta, mas pelo contrário retrocedi três passos e arrisquei um giro amplo do braço na horizontal e nada esbarrou nele. Furiosa pisei forte contra o chão e não senti um piso propriamente dito,

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me agachei e agarrei um punhado com a mão, consegui sentir pela textura pedregulhos similares a carvão do tamanho de corações humanos e também pedrinhas menores, talvez sei-xo.

– Quanto tempo ficarei dessa vez? Eu preferia não continuar, tanta tolice! Saí correndo a torto

e a direito sempre lançando a bolsa à frente em chicotadas contra o vazio para evitar eu mesma esbarrar com força con-tra o que fosse. Avistei ao longe luzes de emergência e sorri um sorriso todo cariado com tristeza enquanto me movia para lá, já bem próxima de uma porta li o dizer da placa: apenas pessoal autorizado. Obviamente sem nem precisar cogitar, a situação mais do que já me imbuíra com a autoridade necessá-ria e assim a abri, um corredor parcamente iluminado com vá-rias tubulações em suas laterais unia um breu ao outro, sem muita distinção. Ouvi mais abafado do que o normal o correr dos trens e suas demais vibrações me arrepiaram toda, ainda na estação ou próxima a alguma eu me alimentava com uma esperança que meu nervosismo não conseguia envenenar, da qual eu arranquei passos e mais passos ao som de líquidos murmurejando pelo encanamento. Cheguei a um cubículo que se conectava a duas portas e escadas, as quais desciam para sabe mistérios quais horrores, arrisquei a da esquerda e ou-tro corredor me aguardava, ao fim deste fechei a porta as mi-nhas costas.

A claridade externa me ofuscou inclemente e quando enfim consegui ver: pessoas caminhando apressadas para seus compromissos a entrar e sair de vagões e vozes gravadas ressoando de alto-falantes. Agradeci à transigência e segui meu rumo sem olhar para trás, a distância conferiria algum conforto, bastava eu ampliá-la ligeiramente. Não a muito mal punha um pé à frente do outro e aqui, agora eu quase corria não bem por pressa, pois não se tratava de horário. Deixei as escadas rolantes me erguerem para mais outra claridade o-

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fuscante, em pleno céu aberto o que quer que houvesse na tre-va não ousaria atravessar meu caminho.

– Por onde ando tão perdida? Numa ida à feira tão qualquer quanto dezenas prévias eu já

não reconhecia as esquinas; o contorno dos prédios ondulava entre o verminoso e o ofídio, as sombras das árvores se des-locavam obtusas quase me empurrando para o corredor de ô-nibus. Mas até os carros e demais automóveis pareciam blo-cos de cor pouco a nada descritivos e seus volumes translúci-dos arrastavam estilhaços da paisagem junto consigo. Se eu tentasse me apoiar, digamos que, num poste ou em último caso num botijão de lixo, quem me garantiria não ser abocanhada pela aquela presença perversa que pairava entre eu e a reali-dade última dos objetos?

O tiquetaquear dos meus sapatos contra os paralelepípe-dos pretos e brancos demarcavam o meu compasso e algum equilíbrio no tempo também, enquanto em movimento eu não penderia abissalmente para lado algum, evitando assim qual-quer queda desnecessária. Entornei os lábios para dentro da boca, os umedeci com a língua, aprumei o corpo, erguei ligei-ramente o queixo, já o olhar levemente cabisbaixo para checar o piso porém ainda capaz de enxergar o porvir ao horizonte. Assim desviei dos corpos anônimos ao longo do fluxo sem empacar nem atropelar ninguém, quase em ritmo ensaiado. A cacofonia polifônica já se fazia ouvir mesmo ao longe, em meio à multidão eu me sentiria mais segura? Ou ainda mais sozinha nessa terra de vazios e esquecimento. Vovó conhecia todos os feirantes por nome e sobrenome, catalogando de cabeça suas árvores genealógicas, sempre bem disposta a perguntar quanto à saúde dos imaturos e dos idosos. Já a minha sagaci-dade social não beirava tais calcanhares e acanhada eu não furava nem a fila dos inquéritos sobre os preços, aliás não ha-via muita coesão, apenas alguma empatia e outro tanto de bom senso a governar a ordem dos atendidos. Pechinchar então

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nem se fale, nunca serei boa de negócios, o comercial não me seduz, algo primordial ou mais sofisticado sempre me detém a atenção primeiro e retida observo imagens emergirem e se a-fogarem na pele nublada das uvas índigos.

– Avoada virei-me pelo avesso? As tripas da toranja jaziam na palma dum senhor logo à

frente, ao invés de cal açúcar as embalsamava. Fruí o azedo amargo do fruto proibido para não fazer desfeita, oferecer a-mostras grátis de frutas frescas não constituía apenas tática de mercado mas também uma comunhão entre cidadãos, o re-partir do próprio pão. Me lembrei das últimas festividades, pa-ra as quais eu comprara queijo e vinho importados no merca-do municipal, as especiarias mais misteriosas e inclusive al-gumas indecifráveis me espreitavam de suas sacas e frascos. Afundei a mão numa de feijão e senti as sementes ao longo do braço todo, sempre reconfortante agarro grãos e cereais com mãos gulosas, famintas e infelizmente, para si mesmas, inca-pazes de deglutição. De uma ponta a outra da feira eu fazia compras e escolhas, já a aquisição das mesmas apenas no ca-minho reverso de onde eu vinha recolhendo legumes, verdu-ras e demais vegetais, com ousadia, a mais saudável, até mes-mo alguns temperos.

Pois terminei de saciar-me com um copão de caldo de cana com suco de abacaxi, um pastel especial de carne e um litro de água de coco para viagem. Caminhei até o ponto de ônibus e lá sentei-me esperando o certo chegar, após os primeiros 15 mi-nutos iniciais qualquer próximo segundo já vinha carregado de apreensão, inúmeras vezes deslizei os dedos para o celu-lar, onde eu checava os trajetos, horários e quase, quase a-bria o aplicativo para chamar taxi. As mais diversas pessoas vieram e foram para vários destinos, mas o meu não chegava.

O fardo das sacolas me vulnerabilizava e também conferia peso a minha matéria insólita, me ancorando ao aqui e agora, pois de qualquer outra forma eu vagaria no limbo. Meus hu-

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mores desbotam velozes. Apertei meu pingente na palma da mão e antes de começar não a rezar, porém a naufragar ainda mais em sensação, o freio do ônibus me puxou para fora do transe e direto pro instante, justamente quando um momento a mais de especulação poderia ter me arrastado para o abismo. Descabelada e sorridente, mas ainda meio anestesiada aden-trei o automóvel toda desconsertada com passos incertos e movimentos desajeitados, quase travessos se previamente arquitetados. Paguei a passagem com o bilhete único e o bipe soou um pouco distante, prossegui para a única fileira livre onde num assento depositei as sacolas plásticas e no outro sentei-me enfim algum tanto apaziguada e se não em paz com o mundo, ao menos com as circunstâncias mais imediatas.

– Torci o tornozelo entornando-me para fora do entorno, perdendo o contato com qual contorno?

Quieta eu então percebi uma dor na junta entre o pé e a per-na, talvez me peguei num contrapé ao subir as escadas afoba-da, pouco a nada importava as origens, mas as pontadas me inquietavam de tempos em tempos esfaqueando qualquer ra-ciocínio ao meio, quando não ao terço. Logo logo eu me deita-ria um pouco antes de começar os preparativos pro almoço, um baita cansaço se impregnou em mim e eu não dispunha do instrumental necessário a recusá-lo, então o deixei decantar e amoleci. Molenga quase capenga só faltei me arrastar para fo-ra quando chegamos ao ponto, reivindicar a carne que eu ab-dicara em abandono custou um sacrifício, o qual eu pagaria deliberadamente com um tributo de sangue em troca de algu-ma disposição, caso meus humores aprovassem tal oferenda.

O porteiro novo, prestativo num primeiro momento, me au-xiliou a levar as compras até o apartamento, as depositamos no tampo de granito da pia, ofereci uma gorjeta, a qual ele prontamente recusou, ofereci novamente cheia de autoridade dessa vez e encabulado ele aceitou sorrindo e às pressas, quase tropeçando fuga ao meio. Quase ri, mas a exaustão gru-

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dou-se à alegria, não a deixando ir mais adiante, pele a fora; porém não mórbida o suficiente para impedir uma nostalgia meiga e morna, serena e solene de emergir por entre minhas entranhas, aflorando até à flor da pele. Eu me senti tão delica-da, tão mais frágil se envolta pelo contorno alheio a adivinhar e decifrar cegamente nossos volumes vagos, vaga-lumes lu-zindo pela névoa na floresta rente à terra negra e macia, acos-tumada à perversidade tanto animal quanto humana e da pri-mordial então nem se fale: a vida e a matéria e o próprio abis-mo conspiram não contra ou favor, mas sim apesar de todo nosso esforço pessoal.