as vidas que deixamos de viver

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As vidas que deixamos de viver | Contardo Calligaris Quase sempre, quando encontramos alguém que nos encanta, começamos por lhe con nossa vida e expor nossos projetos -pois é possível que, para um casal, compar seja mais importante do que cada um conhecer e entender o passado do outro. m gente se apresenta ao outro como numa entrevista de emprego, di!endo o que "i! esperamos. A"inal, somos uma mistura da vida vivida com o "uturo sonhado, n#o ler o &ltimo livro de Adam 'hillips, psicanalista ingl(s que é um dos autores estimulam a pensar) *+issing out) n 'raise o" the nlived i"e*, /0arrar, 1t /perder) elogio da vida n#o vivida -*missing out* é perder no sentido em que v atrasado na "esta e pergunta) perdi alguma coisa$3. 4ustamente, 5 hist6ria pas sonhos 'hillips acrescenta mais um ingrediente que nos de"ine) o conjunto das deixamos de viver -porque n#o "oi possível, porque alguém nos impediu, porque medo, porque escolhemos outro caminho, porque a sorte n#o quis. Algumas vidas s#o alternativas descartadas pela inércia da nossa hist6ria ou porque o desejo dividido, e escolher implica perder o que n#o escolhemos. 7utras s#o acasos qu aconteceram /é possível passar pela vida sem encontrar ninguém ou encontrando todos na hora errada3. 8am%ém, mais dolorosamente, as vidas n#o vividas s#o ca quais n#o ousamos nos enveredar /na inscriç#o para o vesti%ular, na decis#o de lugar onde teríamos começado outra vida, nos con"ormismos de cada dia3. ssas vividas podem nos enriquecer ou nos empo%recer. las nos enriquecem quando int nossa hist6ria como tramas alternativas de um romance, incluídas no rodapé da +elhor ainda, como tramas alternativas 5s quais o autor renunciou, mas que ele de apagar inteiramente) o her6i n#o vai mais para 9"rica no capítulo dois, mas capítulo sete, aparece um a"ricano que ele conheceu antes, mas que n#o se ente vem, a n#o ser que a gente leia aquela parte do dois que "oi a%andonada. Aqui, &til "requentar as vidas n#o vividas de nossos parceiros /para evitar surpresa como a chegada de personagens que n#o "a!em parte nem do passado nem dos sonho outro, mas das vidas 5s quais ele achava ter renunciado3. Agora, as vidas n#o so%retudo nos empo%recer, levando-nos a viver num eterno lamento por algo que dado, que perdemos ou do qual desistimos. sse, ali:s, é o "uturo que estamos para nossas crianças. ma das ra!;es pelas quais as vidas n#o vividas condena crianças de hoje 5 sensaç#o de desperdício é a popularidade do mito do potenci est: se tornando tudo o que esper:vamos$ Que pena, com o potencial que ele tin vem a ideia de que nossas crianças seriam dotadas de disposiç;es milagrosas e risco seria o de elas desperdiçarem o que j: é seu patrim=nio$ 7 potencial das modernas tem duas propriedades) ele é genérico /ou seja, n#o é "undado em nenh o%servaç#o especí"ica, é uma espécie de a priori) criança tem grande potencial deve dar seus "rutos espontaneamente, sem es"orço algum da parte da criança. > re%entos s#o dotadíssimos para esporte, desenho, criaç#o, m&sica, ci(ncia, est estrangeiras etc. , se os resultados escolares "orem péssimos, as crianças nu preguiçosas, elas s6 est#o desperdiçando seu *incrível potencial*. ?: uma cump todos ao redor dessa ideia. 7s pais querem que as crianças sejam tudo o que el conseguiram ser na vida. 'ior, eles querem que as crianças cumpram essa miss#o es"orços, por milagre /o milagre do *potencial*3. 7s pro"essores acham no pote maneira maravilhosa de assinalar que "ulano é medíocre sem atrapalhar o sonho criança, os quais podem seguir pensando que seu "ilho leva notas in"ernais, ma insistir /e pagar a escola mais cara3 porque ele tem um potencial extraordin:r "ilhos, acreditar em seu pr6prio *potencial* é uma maneira %arata para se sent apesar de resultados pí"ios. 'ro%lema) na hora, inevit:vel, do "racasso, quem potencial conhece a sensaç#o especialmente dolorosa de ter traído a si mesmo / seu *potencial*3. 0onte) http)@@ B."olha.uol.com.%r@"sp@ilustrada@B BDEB-as-vidas-que-deixamo

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As vidas que deixamos de viver | Contardo Calligaris

As vidas que deixamos de viver | Contardo Calligaris

Quase sempre, quando encontramos algum que nos encanta, comeamos por lhe contar nossa vida e expor nossos projetos -pois possvel que, para um casal, compartilhar planos seja mais importante do que cada um conhecer e entender o passado do outro. Em suma, a gente se apresenta ao outro como numa entrevista de emprego, dizendo o que fizemos e o que esperamos. Afinal, somos uma mistura da vida vivida com o futuro sonhado, no ? Acabo de ler o ltimo livro de Adam Phillips, psicanalista ingls que um dos autores que mais me estimulam a pensar: "Missing out: In Praise of the Unlived Life", (Farrar, Straus and Giroux) (perder: elogio da vida no vivida -"missing out" perder no sentido em que voc chega atrasado na festa e pergunta: perdi alguma coisa?). Justamente, histria passada e aos sonhos Phillips acrescenta mais um ingrediente que nos define: o conjunto das vidas que deixamos de viver -porque no foi possvel, porque algum nos impediu, porque ficamos com medo, porque escolhemos outro caminho, porque a sorte no quis. Algumas vidas no vividas so alternativas descartadas pela inrcia da nossa histria ou porque o desejo da gente dividido, e escolher implica perder o que no escolhemos. Outras so acasos que no aconteceram ( possvel passar pela vida sem encontrar ningum ou encontrando muitos, mas todos na hora errada). Tambm, mais dolorosamente, as vidas no vividas so caminhos pelos quais no ousamos nos enveredar (na inscrio para o vestibular, na deciso de voltar de um lugar onde teramos comeado outra vida, nos conformismos de cada dia). Essas vidas no vividas podem nos enriquecer ou nos empobrecer. Elas nos enriquecem quando integram nossa histria como tramas alternativas de um romance, includas no rodap da edio crtica. Melhor ainda, como tramas alternativas s quais o autor renunciou, mas que ele se esqueceu de apagar inteiramente: o heri no vai mais para frica no captulo dois, mas eis que, no captulo sete, aparece um africano que ele conheceu antes, mas que no se entende de onde vem, a no ser que a gente leia aquela parte do dois que foi abandonada. Aqui, um conselho: til frequentar as vidas no vividas de nossos parceiros (para evitar surpresas desnecessrias, como a chegada de personagens que no fazem parte nem do passado nem dos sonhos do outro, mas das vidas s quais ele achava ter renunciado). Agora, as vidas no vividas podem sobretudo nos empobrecer, levando-nos a viver num eterno lamento por algo que no nos foi dado, que perdemos ou do qual desistimos. Esse, alis, o futuro que estamos preparando para nossas crianas. Uma das razes pelas quais as vidas no vividas condenaro as crianas de hoje sensao de desperdcio a popularidade do mito do potencial. Algum no est se tornando tudo o que espervamos? Que pena, com o potencial que ele tinha... De onde vem a ideia de que nossas crianas seriam dotadas de disposies milagrosas e que o maior risco seria o de elas desperdiarem o que j seu patrimnio? O potencial das crianas modernas tem duas propriedades: ele genrico (ou seja, no fundado em nenhuma observao especfica, uma espcie de a priori: criana tem grande potencial, em tudo) e ele deve dar seus frutos espontaneamente, sem esforo algum da parte da criana. Nossos rebentos so dotadssimos para esporte, desenho, criao, msica, cincia, estudo, lnguas estrangeiras etc. E, se os resultados escolares forem pssimos, as crianas nunca so preguiosas, elas s esto desperdiando seu "incrvel potencial". H uma cumplicidade de todos ao redor dessa ideia. Os pais querem que as crianas sejam tudo o que eles no conseguiram ser na vida. Pior, eles querem que as crianas cumpram essa misso sem esforos, por milagre (o milagre do "potencial"). Os professores acham no potencial uma maneira maravilhosa de assinalar que fulano medocre sem atrapalhar o sonho dos pais da criana, os quais podem seguir pensando que seu filho leva notas infernais, mas vale a pena insistir (e pagar a escola mais cara) porque ele tem um potencial extraordinrio. Quanto aos filhos, acreditar em seu prprio "potencial" uma maneira barata para se sentir especial, apesar de resultados pfios. Problema: na hora, inevitvel, do fracasso, quem aposta no seu potencial conhece a sensao especialmente dolorosa de ter trado a si mesmo (ou seja, ao seu "potencial").

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/101961-as-vidas-que-deixamos-de-viver.shtml