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MAPAS E MATAS:
AS REPRESENTAÇÕES CARTOGRÁFICAS NA CONFECÇÃO
EDITORIAL DO “ATLAS FLORESTAL DO BRASIL”
Filipe Oliveira da Silva*
“O atlas, é um objeto amadurecido e pensado, unificado no marco
de um projeto intelectual tal como editorial. A transição entre a coleção
e o atlas ocorre quando o editor que coleta a coleção de cartas se compromete
a padronizá-los, retocá-los, dar-lhes uma coerência formal.”
(JACOB, 1992, p.101).
Para que um Atlas venha a se configurar, não basta colecionar cartas por meio de
viagens. Ele demanda, antes de tudo, um ato editorial, isto é, um repertório de ações que
promova uma mediação, ordenação, classificação e padronização. Cada uma das exigências
atribuídas ao editor dotam este conjunto de mapas em uma obra coerente e orientada para
atingir a determinadas finalidades. Dessa maneira, um atlas é um artefato cultural que molda
um modo de narrar próprio.
O propósito deste texto é examinar a confecção editorial do Atlas Florestal do Brasil.
Tal obra foi publicada em 1966 durante o contexto de reestruturação administrativa da esfera
estatal após a implantação do regime militar. Diante disso, o Atlas atuou como um meio de
comunicação, vinculado à intenção do Conselho Florestal Federal (CFF) de conceder
visibilidade às suas atribuições. Além disso, consistiu em um mecanismo diplomático de
proposição de um modelo para América Latina de conservação dos recursos naturais e uma
cartilha cívico-pedagógica a ser divulgada nas escolas do Brasil com intenção de construir
uma mentalidade reflorestadora.
Certos de que os atlas consistem em “instrumento de amplificação” (TUCCI, 1984,
p.149) das concepções geográficas, organizamos esta narrativa em torno de três momentos
específicos. O primeiro deles consiste em situar a publicação do Atlas na historicidade dos
mapas fitogeográficos do país. Com esta trajetória, permite-se, esclarecer as especificidades
do contexto político-institucional em que ele se insere. É, assim, um breve esforço de
* Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
bolsista financiado pela Capes. Contato: [email protected]
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compreender as condições de produção em que a obra é dada a ler (CHARTIER, 1988). Em
segundo, investigamos os paratextos editoriais presentes no Atlas Florestal. (GENETTE,
2009). Lemos, portanto, a sua textualidade como resultado das discussões no interior do CFF.
Finalmente, em terceiro momento, atentamo-nos aos intelectuais mediadores e produtores da
obra, dando conta da recepção por meio de sua “comunidade de leitores” (CHARTIER, 1994).
Cartografia, território e natureza
A confecção do Atlas Florestal do Brasil inscreve-se em uma longa trajetória de
composição dos mapas fitogeográficos do país. Recorrer às origens dos primeiros esboços
cartográficos que remetem à descrição de matas nativas é uma tentativa, senão falha, ao
menos trivial aos intentos que comportam este trabalho. Por essa razão, mencionamos apenas
que os mapas da expansão colonialista portuguesa do século XVI já tingia com pigmentos
verdes a costa brasileira para indicar a presença de matas no território.
As áreas com esta coloração ou as representações pictóricas de árvores em diversas
cartas evidenciavam às autoridades reais os espaços de possibilidades para a exploração
florestal. Sob esse prisma, o mapa não traduzia isenção ou neutralidade, mas consistiam em
um instrumento que favorecia ao projeto moderno colonial de poderio ibérico. (HARLEY,
2005). Apesar da lógica do crescente capitalismo comercial que convertia a natureza em
recursos, como bem lembra Sérgio Buarque de Holanda (2010), o imaginário que mobilizava
os cartógrafos do renascimento ainda estava envolto pelas representações, fábulas, mitos e
crenças provenientes do cristianismo medieval.
Uma das mitologias evocadas nos mapas era a da Ilha Brasil. Este mito acreditava que
os rios Amazonas e do Prata confluíam-se em uma mesma nascente no interior do território da
América Portuguesa. Tal proposição tornava a porção banhada pelo Atlântico em uma grande
ilha territorial. Com a ocupação dos bandeirantes paulistas e as missões jesuíticas sobre os
“sertões”, o mito poderia ser refutado, visto que, o território cercado por rios não condizia a
uma representação real do espaço geográfico. No entanto, conforme Almeida, os mapas
coloniais organizados pelos religiosos da Companhia de Jesus no século XVIII, sob o
financiamento do Estado português, reforçaram o mito cartográfico. (ALMEIDA, 2001) O
emprego do mapa enquanto suposta representação verídica e neutra do real, portanto, atendia,
ainda que sob fortes distorções, a interesses geoestratégicos lusitanos de atribuição de “limites
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naturais” frente às intenções espanholas.
Se, por um lado, os mapas coloniais esquadrinhavam os recursos disponíveis, por
outro, a Coroa não compôs um volume significativo de mapeamentos sistemáticos, objetivos e
que rastreassem as áreas devastadas devido o uso econômico. Dada a imprecisão territorial
das ordenações e do regimento do Pau-Brasil quanto à conservação das florestas da América
Portuguesa, o procedimento de crítica à exploração florestal cartográfica parece não ter obtido
espaço considerável nos séculos XVII e início do XVIII, em que pese o crescimento das
ciências naturais. Não obstante, mesmo que limitados espacialmente, os danos tornavam-se
visíveis nas paisagens ocupadas para a produção canavieira, destinadas à pecuária, ao
extrativismo do pau-brasil ou à mineração. (CABRAL, 2014)
A configuração de um Império tropical, já apresentava condições relativamente mais
favoráveis ao desenvolvimento da cartografia no país. Um marco deste período pode ser
considerado é a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1838 com
uma missão de legitimar a ordem do Estado imperial. Sob interesse deste projeto institucional,
foi publicada em 1846 a primeira Carta Geral do Brasil coordenada pelo coronel Conrado
Jacob Niemeyer. Tal projeto, situado em um contexto de revoltas regenciais de cunho
separatista, produziram uma carta corográfica de unidade territorial do Estado Brasileiro. As
demarcações atribuídas ao país são, principalmente, refletidas como “limites naturais”, tais
como rios, serras e outros componentes do mundo biofísico (PEIXOTO, 2011). Emergia-se o
mapa enquanto um logotipo do Estado-Nação que seria empregada no ensino cívico, nos
eventos diplomáticos e na imaginação espacial (ANDERSON, 2008, p.242).
Com base nesta carta e em anotações de trabalhos de campo realizados pelo interior
do território, o viajante e naturalista Carl Friedrich Von Martius propôs na década de 1850 a
primeira experiência cartográfica contendo uma classificação da vegetação brasileira (IBGE,
2012). Situada em contexto de expansão da história natural e da percepção dos mapas como
instrumentos construtores da nacionalidade, a obra de Von Martius remetia à existência de
cinco grandes regiões florísticas no país. São elas: Nayades (flora amazônica), Hamadryades
(flora nordestina, assemelhando-se à caatinga), Oreades (flora do Centro-oeste, cuja base
corresponde ao cerrado), Dryades (Flora da costa Atlântica) e Napeias (flora subtropical, que
compreende a atual Mata das araucárias e os pampas).
Na segunda metade do século XIX, especialmente,o interesse pela cartografia
avolumou, em virtude da autonomização do campo científico geográfico, além da organização
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de comissões geográficas e geológicas nos estados de São Paulo e Minas Gerais.
(FIGUERÔA, 1997; GOMES, 2015; NUNES, 2010) Estas instituições científicas tiveram
papel significativo no estabelecimento dos limites interestaduais das unidades federativas,
reconhecimento físico-geográfico do espaço, bem como levantamento das “riquezas naturais”
existentes no território. Signatários de teorias científicas que permeavam o cenário intelectual
– entre elas, o positivismo, determinismo e evolucionismo -, estes homens de ciência
realizaram expedições no interior no Brasil na ânsia de representar em papel o espaço
geográfico.
É deste momento, portanto, que emergem os primeiros livros compilando os mapas do
país, sendo o pioneiro, o Atlas do Império do Brazil organizado por Cândido Mendes de
Almeida em 1868. Esse documento cartográfico, publicado sob condições adversas quanto à
editoração, visava, principalmente, incutir a noção de unidade territorial nos futuros
administradores do Estado. Sua leitura era feita, especialmente, pelas elites políticas formadas
no Colégio Pedro II. O projeto editorial do professor Almeida era tributário aos primeiros do
gênero existentes ainda durante o século XVI (dentre os quais o de Ortelius em 1574),
produzidos sob contexto de alargamento do mundo diante das grandes navegações e
desenvolvimento da imprensa (BORGES, 2006).
Em relação ao meio natural, o privilégio que concedia era aos “acidentes físicos” da
paisagem, ou seja, o relevo e as bacias hidrográficas. Os elementos minerais e vegetais eram
percebidos como recursos inesgotáveis a serem apropriados no território. Por consequência,
realizava uma exaltação e idealização da natureza, característica do ideário romântico. Apesar
do seu significado, um outro Atlas do país somente seria publicado em 1882 com os trabalhos
de Cláudio Lomelino de Carvalho e auxiliado pelo Barão Homem de Mello.
Nesta virada do século XIX para o XX pode-se observar uma “febre cartográfica”
orientadas por missões civilizatórias da República. Diversas agências institucionais foram
criadas para confeccionar mapas que estruturassem políticas territoriais. Entre as mais
expressivas constam-se a Comissão da Carta Geral do Brasil, iniciada em 1903 que tinha a
finalidade de construir um mapa que sintetizasse o projeto republicano militar de civilizar,
integrar e proteger o território nacional (BERNARDINO, 2013)
Em meio a este projeto republicano de ampliar o conhecimento cartográfico do país
emergiu em 1912 o “Mappa Florestal do Brazil”. Esta obra foi redigida pelo engenheiro
formado na Escola de Minas de Ouro Preto, Luiz Felipe Gonzaga de Campos. Este intelectual
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que integrava o corpo de funcionários do Serviço Geográfico e Geológico do país, além de
diagnosticar os espaços florestais, oferecia ao leitor especializado uma base dos locais onde
deveriam ser implantadas áreas protegidas no país.
Desde o final do século XIX, ideias de intelectuais, como André Rebouças, inspiradas
no modelo norte-americano do Parque Nacional de Yellowstone em 1872, ressoavam nos
círculos sociais (PÁDUA, 2002). Entre as demandas sociais do grupo do período constavam a
emergência de instituições especializadas no tocantes às florestas, tais como os serviços
florestais e uma participação mais efetiva do Estado no que consideravam ser o patrimônio
natural brasileiro. Esbarravam, porém, nas fronteiras dos direitos de propriedade estabelecidos
pela constituição de 1891 (ANTUNES, 2015).
O próprio Gonzaga de Campos colaborou com as discussões do projeto de organização
do Serviço Florestal do Brasil, estabelecido no decreto 4.421 de 1921. Responsabilizou-se,
primordialmente, na inserção do primeiro parágrafo, que integrava ao quinto inciso alocado
no terceiro artigo do decreto. De acordo com o texto jurídico, constituía uma incumbência
daquele organismo embrionário “representar em mapas a distribuição e características das
florestas existentes, indicando-lhes a aplicação e a modificação que vem sofrendo” (BRASIL,
1921). Seu falecimento em 1925, contudo, inviabilizou o prosseguimento de trabalhos
cartográficos referentes às matas. Com a reedição em homenagem póstuma, tornou-se uma
referência aos estudiosos que se ocupavam no diagnóstico geográfico do “problema florestal
do Brasil” (CAMPOS, 1926).
Em sua classificação, basicamente, fisionômico-estrutural (e não florística como a de
Martius) constavam as seguintes porções: as florestas (da zona equatorial, da encosta
Atlântica, as matas pluviais do interior, as matas ciliares, as capoeiras e os pastos), os campos
(subdivididos em campinas, campos do sul, campos cerrados e campos alpinos), caatingas,
vegetação costeira e o pantanal. Observe que o engenheiro de minas considerava as capoeiras,
que se referem a uma etapa da sucessão ecológica subsequente à exploração, como uma
vegetação. A inserção desses conjuntos espaciais devastados pela ação antrópica representava
um ato simbólico na introdução da geograficidade da destruição florestal na cartografia do
país.
Simultaneamente à composição de Gonzaga de Campos que decorria dos relatórios
técnicos produzidos para a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, realizava, entre
1907 e 1915 no “Brasil Central”, a Comissão Rondon (LIMA, 1999). Estas expedições
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lideradas pelo marechal Cândido Rondon aglutinavam um número significativo de cientistas,
dentre os quais estavam Júlio César Diogo e Alberto José de Sampaio. Integrantes do Museu
Nacional desde 1912, estes botânicos avolumaram trabalhos na tentativa de atualização da
representação cartográfica das florestas brasileiras realizada por Gonzaga de Campos. Este
projeto geográfico seria apenas concluído nos anos de 1930. (DRUMMOND; FRANCO,
2009)
O mapa fitogeográfico de Alberto José de Sampaio, um dos fundadores do Conselho
Florestal Federal em 1934, retomou a florística como vetor principal da classificação. Para ele
existiriam, fundamentalmente, dois tipos de vegetação: a Amazônica e a Extra-Amazônica
(SAMPAIO, 1938). Ao primeiro, as subdivisões eram pautadas em Alto ou Baixo Curso do
Rio Amazonas. Enquanto isso, a segunda caracterizaria pela subdivisão em zonas: dos cocais,
das caatingas, das matas costeiras, dos campos, dos pinhais e marítima. Mais do que descrever
as regiões florísticas, o trabalho de Sampaio interiorizava uma necessidade de refletir a
natureza devido ao seu interesse de construção da nação.
A partir dos anos 1940 e 1950, pode-se verificar o surgimento das proposições
fitogeográficas dos geógrafos Lindalvo Bezerra dos Santos, Aroldo de Azevedo, Edgar
Kuhmann. Três características importantes em ambos trabalhos. Em primeiro lugar que é que,
em maior ou menor grau, tais estudos surgem associados ao Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, criado pela esfera varguista em 1938, e ao sistema universitário, recém-
institucionalizado no país. Em segundo, serviam-se de tecnologias para o período, em especial
a aerofotogrametria e recenseamentos que se expandiria, sobretudo, no pós-guerra no Brasil.
Em terceiro lugar, os mapas revelam-se como elementos técnicos voltados ao planejamento
econômico e territorial do país.
Até mesmo o vocabulário empregado torna-se mais especializado, tomando, sobretudo
o termo formação (DIEHL, 1999). Utilizando-se deste conceito, os naturalistas imbricavam-se
com o discurso sócio-histórico do período, visto que este conceito tornou-se amplamente
empregado em textos sociológicos como sinônimo de processo histórico ou “bildung”.
Enquanto os cientistas sociais ocupavam-se a formação cultural do país, os fitogeógrafos –
ainda que também estivessem construindo um artefato cultural – diziam estar classificando,
objetivamente, as formações vegetais.
Entre os artífices que divulgaram a proposta de compor formações vegetais no Brasil
estavam o geógrafo Pierre Dansereau. De passagem no Brasil entre 1945 e 1946, o estudioso
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do campo da ecologia, estabeleceu relações próximas com o naturalista do Instituto Oswaldo
Cruz Henrique Pimenta Veloso (SÁ; SÁ, 2015). Este tinha realizado diversas viagens de
reconhecimento territorial e de estudos botânicos em áreas como o sul da Bahia, Mato Grosso,
Alto Rio Doce, Minas Gerais, Goiás, Nordeste, Centro-Oeste, Sul do país.1 A partir deste
material coletado durante duas décadas que Veloso, dois anos após o seu ingresso no
Conselho Florestal Federal, sugeriu na sessão de 13 de janeiro de 1964 ao presidente da
instituição, o engenheiro agrônomo Victor Abdennur Farah, que fosse publicado um mapa
florestal. Submetido à votação, a proposta foi aprovada pelos demais conselheiros e, logo, foi
dado início à sua confecção.
A aprovação de um projeto editorial de tal monta pode ser justificada, principalmente,
por quatro motivos. Em primeiro lugar, era uma maneira de comemorar o trigésimo
aniversário da instituição que tinha sido criada em 1934, evocando a sua memória
institucional. Em segundo, devido a necessidade de expor um material consolidado no maior
evento latino-americano de florestas que o Brasil – a Escola Nacional de Florestas em
Curitiba, mais especificamente – sediaria pela segunda vez, a Reunião Latino-americana de
Florestas e Produtos Florestais (DIAS, 2007). Em terceiro, o coordenador do projeto, o
naturalista Pimenta Veloso, já possuía um bom número de anotações, trabalhos, relatórios
técnicos que ofereciam condições de publicação. E, por último, para fornecer visibilidade à
instituição que passava por uma crise institucional.
Se a política nacional efervescia com o programa de reformas de base do governo João
Goulart e tensões sociais crescentes com a mobilização de sindicalistas e movimentos
agrários, além das contingências quanto às articulações civis e militares de golpes políticos, o
Conselho também vivenciava momentos de instabilidade (GOMES; FERREIRA, 2007). Além
do desafio para obter recursos orçamentários, o organismo estatal passou a conviver com uma
ameaça de redução de suas atribuições, caso o projeto de revisão do código florestal do
empresário udenista Herbert Levy fosse aprovado na Câmara dos Deputados. Apesar dos
primeiros esboços aparecerem em 1964 com a apresentando-o na IX Reunião de Florestas, a
publicação somente seria viabilizada dois anos depois, com recursos do Fundo Federal
Agropecuário.
1 A classificação adotada para a definição dos espaços é de acordo com as nomenclaturas que Veloso adota em
seus relatórios técnicos publicados nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Observa-se que ele já opera
com as categorias da primeira divisão regional do IBGE.
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Sob essa configuração conturbada da política que o Atlas Florestal do Brasil foi
levado à cabo. Pode, assim, ser interpretado como um herdeiro da tradição cartográfica do
país. Ao mesmo tempo em que absorve a noção típica dos tempos coloniais de inventariar o
mundo natural para fins da apropriação econômica, encampa a percepção de Gonzaga de
Campos de esquadrinhar as áreas sob devastação. Quanto aos traços metodológicos, incorpora
as concepções de que a realização de mapas fitogeográficos demandam trabalhos de campo,
tais como os do naturalistas Von Martius. Em se relação à função social que exerce, o Atlas
apresenta uma continuidade com as obras de Cândido Mendes e Alberto José de Sampaio ao
entendê-lo como um veículo diplomático, científico e cívico-pedagógico vinculado ao Estado
Nacional. Por último, o Atlas Florestal, em sua terminologia, lança mão da ideia de formação
vegetal, tal como outros projetos de mapeamentos florestais do período.
Projeto intelectual e paratextos editoriais
Traçado o contexto em que o projeto editorial se desenvolveu, cabe, neste momento,
compreendermos os paratextos que estão presentes em seu interior. Conforme Genette, os
paratexto “é aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal aos seus
leitores” (2009, p.19). Corresponde a uma “zona indecisa” entre o dentro (peritexto) e o fora
do texto (epitexto). Aqui, selecionamos, predominantemente os peritextos, ou seja, a
mensagem que é materializada na própria obra. Ou seja, são partes constituintes da mesma,
tais como a capa, o prefácio, o nome do autor, as ilustrações, entre outras.
Cientes de que a capa é o o peritexto mais exterior das obras, cabe, então iniciarmos
por ela. No caso do Atlas, cujo esboço é lançado ainda em 1964 para a IX Reunião de
Florestas ocorrido em Curitiba, os redatores do Jornal do Brasil destacam ter sido um suporte
ilustrado com pinheiros, pois representariam “a força econômica das madeiras do país”
(Jornal do Brasil, 6.11.1964, p.13). A capa da edição posta em publicação em 1966, porém,
destaca-se pela sobriedade. Há a presença do nome do autor, o símbolo das armas nacionais, o
título e a editora responsável (o Serviço de Informações Agrícolas do Ministério da
Agricultura). O selo das armas nacionais confere à obra um grau de oficialidade por parte do
Estado, e demarcava um prestígio social do texto em um regime militar.
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A página de rosto que diz respeito a uma verdadeira descrição do Atlas assinala o
título da obra em fontes garrafais e em maiúsculo. Sucede-se à isto, a expressão de quem foi o
seu organizador (Henrique Pimenta Veloso), apontando inclusive sua filiação ao Instituto
Oswaldo Cruz e ao Conselho Florestal Federal. Abaixo, constam ainda: o logotipo do Serviço
de Informação Agrícola, a pasta ministerial a qual se vinculava (a da agricultura), o local de
produção da obra (Rio de Janeiro, estado da Guanabara), além do país (Brasil) e ano de
publicação (1966). A página de rosto, assim, localiza a obra em um lugar institucional de fala.
Logo adiante, busca-se conceder um destaque para os coautores do projeto editorial, a
saber: Joel Sampaio Antunes e Walter Alves da Silva (ambos auxiliares da cartografia da obra
e pertenciam ao Instituto Oswaldo Cruz), Nuno R. Vieira (responsável pelas artes gráficas do
Atlas, que à época era chefe da Seção de Publicações do Serviço de Informação Agrícola). E
também os meios que custearam a edição (o Fundo Federal Agropecuário que tinha sido
criado durante o governo João Goulart em 1962) e a instituição que detinha seus diretos
autorais (o Serviço de Informação Agrícola).
Após esses paratextos, o Atlas passa a ser escrito em duas colunas. À esquerda,
enunciam-se os textos em português, enquanto à direita proferem-se as palavras em inglês.
Esta tentativa de tornar a edição bilíngue demonstra o esforço do livro ser exportado para o
público internacional. Tal marca evidencia as intenções da obra considerada “monumental”
tornar-se uma instância de representação da política florestal brasileira ou um cartão de visitas
das florestas nacionais no exterior. Apesar de oficial não era gratuita, custando o preço
elevado de 10 mil cruzeiros.2
O primeiro paratexto a possuir esta duplicidade das línguas é denominado como
“índice”. Tal peritexto, estrutura a obra sob os títulos que seriam observados ao longo do
Atlas. Ele era composto, basicamente de instâncias pré-textuais (agradecimentos), textuais
(introdução, organização, as formações, condições atuais, a vegetação brasileira) e pós-
textuais (bibliografia). Observe-se que, apesar de ser um Atlas, o eixo adotado para configurar
a narrativa consiste, basicamente, na textualidade verbal, contemplando apenas quatro mapas
principais e dez mapas correlatos à esquemas de representação. Assim, a prioridade é dada ao
texto verbal face ao não-verbal, sendo minuciosamente descritas os terminologias empregadas
nas legendas das ilustrações.
2 Para fins comparativos, saiba que à época 280 gramas de pão francês era comprado a um preço de 25
centavos de cruzeiro na cidade do Rio de Janeiro.
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A “instância prefacial” que antecede os agradecimentos não é descrita pela o índice,
nem ao menos recebe titulação. Entretanto, é este peritexto que atribui valor à obra, ao seu
assunto e ao autor que dela coordenou. Foi redigida pelo presidente do Conselho Florestal
Federal, o engenheiro agrônomo Victor Abdennur Farah. Esse prefácio retoma uma retórica
antiga no mundo dos livros, a captatio benevolentiae, ou seja, a capacidade de valorizar o
texto sem indispor com o leitor pela falta de modéstia. Farah justifica a obra pela lacuna nas
“estantes de consultas” do Conselho, bem como pela voz autorizada do seu autor para tratar
aquele tema. Além disso, inscreve a obra como aquela que veio a complementar o mapa
fitogeográfico de Von Martius, inscrevendo-a, portanto, na historicidade das práticas de
mapeamento das florestas brasileiras.
Sucede ao prefácio composto pelo presidente do CFF, os agradecimentos de Henrique
Pimenta Veloso. Neste caso, pode-se verificar que este paratexto emerge a obra dentro da
sociabilidade das práticas letradas de seu período. Abrange as instituições que lhes
concederam apoio para a sua elaboração (Instituto Oswaldo Cruz, Museu Nacional, Fundação
Rockefeller, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e ao Conselho Nacional de
Pesquisas), bem como os personagens que mereciam ser destacados pela sua contribuição em
discussões. O destaque é concedido tanto ao Conselho Florestal na figura de seu presidente
Farah quanto ao diretor Henrique Aragão do Instituto Oswaldo Cruz. Os agradecimentos,
portanto, permitem perceber que a produção editorial desta obra foi composta por meio de um
entrecruzamentos de itinerários intelectuais (quer sejam institucionais ou individuais) de seu
coordenador.
Na introdução Pimenta Veloso atesta que o Atlas é produto de seus levantamentos
fitossociológicos realizados em diversas regiões do país, desde a região serrana do Rio de
Janeiro passando pelo Sul da Bahia, Centro Oeste, Nordeste e Sul do país. É com base nestas
distintas viagens que buscava reunir a totalidade do mundo – ou a síntese do do saber
geográfico, em uma perspectiva próxima da geografia lablachiana - através de suas partes.
Oferecia uma matriz simbólica do espaço, um ponto de vista a inserção de seu país ou região
no mundo (JACOB, 1992, p.98). Demonstra-se aqui que os mapas ordenados no Atlas
inserem-se em uma ampla rede intertextual. Envolve, nesse sentido, não apenas aquele texto
específico – o Atlas -, mas uma série de textualidades organizadas para levar à sua produção,
dentre os quais, podem-se mencionar as anotações de campo, narrativas de viagem, relatórios
técnicos e publicações no universo da imprensa.
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Para desenvolver a obra constam fundamentalmente, de três seções “Organização”,
“Condições atuais” e a “Vegetação brasileira”. Em cada uma destas partes constituintes dela,
mobilizam-se uma fala de autoridade da ciência, supostamente neutra, isenta e marcada pela
impessoalidade da linguagem em terceira pessoa. Subsiste o interesse de apropriação de uma
rede de conhecimentos técnicos que visam apresentar os mapas realizados.
Em “Organização”, Veloso evidencia os quatro mapas centrais que correspondem a
análise: a saber: classe de formação, aproveitamento dos recursos naturais, situação florestal
atual e reservas naturais.3 No mapa das classes de formação – expressão que toma de Pierre
Dansereau – classifica como tipos de vegetação: as florestas (subdivididas em pluvial tropical,
pluvial estacional, caducifólia e pluvial subtropical), caatinga, cerrado, campo e tipos edáficos
(pantanal e mangues). Chama atenção a quantidade sub-classificações presentes neste mapa, o
que faz com que o tamanho da legenda ocupe boa porção da parte inferior da página. Além
disso, os elementos presentes em todos mapas são, principalmente, os cursos hídricos.
O segundo mapa incluso demonstra a finalidade do projeto editorial, a identificação
dos espaços extrativos das florestas ou “principais produtos de origem vegetal”. A legenda é
seccionada de acordo com as partes das árvores e os produtos que delas se extraem. Por
exemplo, das folhas podem se extrair o mate e a carnaúba. A carta indicava, portanto, os
espaços em que se extraíam o mate (prioritariamente no sul do país) e a carnaúba
(especialmente, na divisa entre Maranhão e Piauí, às margens do rio Parnaíba). Outros
produtos também inclusos eram a borracha, poaia, angico, cacau, babaçu, pinho, peroba,
canela etc. Isso atribuía a espacialidade destes elementos naturais que converteram-se na
linguagem do mapa em produtos ou recursos.
Justapõem-se neste mesmo mapa as localizações de devastações das matas, cujas
razões apontam-se nas legendas a saber: atividades agropastoris (sobretudo em florestas),
fogo para pastagens e lenha/carvão (no cerrado), para atividades agropastoris e produção de
lenha ou carvão (na caatinga), bem como fogo e pastagens em áreas de campos. Esta
contribuição é notável ao planejamento estatal para fins de monitoramento das áreas que eram
acometidas pela destruição das matas.
O terceiro mapa diz respeito à situação florestal do Brasil, em que amplia essa análise
acerca da destruição. Divide a legenda em áreas florestais alteradas e as não alteradas
3 Em função do limite de dimensões que cobrem este texto, não poderão ser ilustrados os mapas neste texto.
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(nativas). Enquanto as nativas representam as formações já mencionadas, nos espaços
submetidos à alteração, Veloso mapeia os perímetros desflorestados (tanto pela agricultura
quanto pelas pastagens) quanto aquelas que vivenciavam processos de reflorestamento (seja
com reconstituições naturais ou com plantio de espécies exóticas – sobretudo o eucalipto).
Nota-se que as áreas mais alteradas eram da Florestal pluvial estacional tropical, bem como as
áreas privilegiadas para as atividades de reflorestamento.
O quarto mapa enumera e localiza as diferentes unidades de proteção à natureza à
época, a saber: florestas protetoras (duas, sendo ela em Rondônia e na Serra do Mar), reservas
nacionais (três, a saber: Caxuaná no Pará e das Chapadas do Araripe e do Apodi), reservas
florestais (nove, concentrando-se no norte do país, à exceção do rio Gurupi no Maranhão),
parques nacionais (dezessete ao total), parques estaduais (contabilizando dezesseis
distribuídos no país) e refúgios biológicos (sendo apenas três, o Sooretama no Espírito Santo,
Jacarepaguá na Guanabara e o Alto da Serra em São Paulo). A legenda com a nomenclatura de
cada uma das áreas protegidas não é apontada no próprio mapa, mas sim na página seguinte.
Estima, portanto, 50 reservas naturais nacionais ou, empregando-se de uma qualificação
retrospectiva do tempo, unidades de conservação.
O número de mapas que deveriam integrar ao Atlas não foi consensual nas sessões do
Conselho. O esboço defendido por Victor Abdennur Farah possuía um mapa a mais.
Constituía-se, portanto, de cinco mapas, a saber: a) os tipos de vegetação; b) a situação
florestal atual; c) exploração florestal; d) o mapeamento das reservas, parques e florestas
existentes no Brasil; e) as sugestões para a formação de parques e reservas florestais (ATA, 8
de junho de 1964, p.3139.). Não foi, no entanto, publicado o mapa com indicações para a
introdução de novas áreas protegidas, em que pesem o avançado processo de introdução de
parques e reservas.
Seria essa retirada da edição um indicativo de um influxo na política de delimitação de
áreas protegidas dado o regime militar? É muito provável, visto que os anos posteriores ao
golpe de 1964 (este defendido pelo Conselho em sessões) representou um recuo na
implantação de parques nacionais. Debatiam-se, inclusive, o interesse de excluir tal status à
Paulo Afonso na Bahia, a fim de que o espaço fosse ocupado para a construção de usinas
hidrelétricas. Este fato, vale ressaltar, ocorreria em 1968, dois anos após a publicação do
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Atlas.4
Em “Condições atuais” critica a agência de “desbravadores” que devastavam as matas
brasileiras. E mais: Veloso, ao recorrer a uma dita natureza primitiva, ressalta:
(…) já é impraticável a preservação de tudo o que ainda resta da primitiva vegetação
brasileira, porquanto o desbravador surge justamente onde não existe ninguém que
possa impedir o seu trabalho, urge procurar uma solução prática que concilie a
ocupação humana com a necessidade, não só de natureza cultural mas também
econômica, da existência de condições para o estudo da vegetação em suas
condições primitivas (VELOSO, 1966, p.23).
É interesse observar como se evoca a representação da fronteira e do imaginário de
vazios demográficos no interior da floresta (OLIVEIRA, 1998). Apesar de perceber que a
ocupação humana era um fenômeno que se expandia, o autor apropria-se da ideia de que não
existia “ninguém” na floresta até a presença do desbravador. Nessa passagem, o naturalista
acaba por minimizar a presença das interações de comunidades ribeirinhas ou indígenas com
os espaços naturais. Estas, aliás, são profundamente silenciadas no Atlas, não dando de conta
da diversidade das racionalidades florestais existentes.
Apesar disso, o conselheiro do CFF buscava assinalar o modo de proteção que estava
em voga nas distintas formações vegetais por ele definidas. Apontava, assim, as condições
precárias nos parques nacionais de Ubajara e Paulo Afonso ou, então, sugeria aumento das
porções territoriais de parques como o de São Joaquim. Formulava-se, aqui, portanto, uma
cartilha destinada ao poder público das áreas que deveriam ser privilegiadas na política
florestal.
Em “A vegetação brasileira”, o autor inicia com um dos dois únicos mapas-múndi
presente no Atlas que visavam representar os classificações climáticas das florestas do mundo
e a distribuição da flora do período permo-carbonífero. Neste paratexto, Veloso associa os
grupos florísticos brasileiros as transformações ocorridas na geomorfologia do planeta à
transição das eras do terciário para o quaternário. Uma característica importante é que os
mapas deixam de ser coloridos e passam a ser preto e branco.
As “conclusões” que encerram a textualidade da obra reforçam a noção de que os
solos brasileiros degradam-se rapidamente se deles forem retiradas as matas que lhes
4 O Parque Nacional de Paulo Afonso criado pelo decreto 25.865 de 24 de novembro de 1948. Ocupava uma
área de pouco mais de 17 mil hectares e situava-se nos estados da Bahia, Pernambuco e Alagoas às margens
do rio São Francisco. (BARROS, 1952, p.75).
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revestem. Logo, argumenta-se, finalmente, que o que considerava ser o futuro do país estava
nas “mãos dos atuais dirigentes da Nação. Ou eles suplantam a ignorância, que procura
sobrevier a cada dia que passa, ou serão responsabilizados pelos desertos que permitiram
criar”. Sendo assim, acopla-se à antiga linguagem da teoria do dessecamento como
justificativa para a proteção da natureza.
O último paratexto é a “bibliografia” que é uma marca indelével dos trabalhos
científicos. Por meio dela, conhece-se o repertório de autores da qual Veloso parte para
estabelecer sua obra. Constam-se nela 328 referências. São publicações de geógrafos,
botânicos e também estudos clássicos de naturalistas – sobretudo Saint-Hilaire e Von Martius
- que visitaram o país no século XIX. O autor que consta com maior número de publicações é
o geógrafo Aziz Ab'Saber.
Portanto, os paratextos editoriais presentes neste projeto intelectual permitem destacar
que a obra se colocava como uma complementação dos mapas fitogeográficos anteriores. Tal,
destinava-se não somente ao público brasileiro, mas também ao exterior, dada a a duplicidade
idiomática. Inscrevia-se no campo científico da geografia botânica do país e pode articular
diversas instituições e intelectuais para a sua confecção. Orientava-se para a apropriação
econômica da natureza, embora situasse o quadro de degradação das florestas. Além disso,
reduzia a participação das comunidades indígenas e ribeirinhas na construção dos espaços
florestais. Colocava-se, portanto, como um saber produzido para atender às finalidades do
regime militar, quer sejam elas econômicas ou de instrumentalização das políticas florestais.
Intelectuais mediadores e comunidade de leitores
Como se viu, a rede de sociabilidade intelectual tecida para a confecção do Atlas
Florestal do Brasil foi numerosa e contemplou diversos agentes. Cabe, pois, desalinhar os fios
que a tecem o conjunto de produtores, mediadores e a comunidade de leitores que encontram-
se vestígios de posse daquela obra. Revestindo-se de significado pelo fato de ser
“monumental” ou “patriótica”, o Atlas perfilou-se em estantes de diversas bibliotecas públicas
e particulares do Brasil e do exterior. Entre elas, estiveram aquelas do Museu Nacional ou
IBGE.
Apesar de seu formato gráfico de grandes proporções, os produtores acreditavam que
deveria ser lido em escolas de nível médio. Além deste, o ensino superior deveria empregá-lo
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usualmente, visto que havia uma pretensão de incluir a disciplina “proteção à natureza” ou
“silvicultura” nos diversos cursos de formação. Deveria, ademais, ser um meio de
comunicação do Brasil às demais regiões latino-americanas como modelo a ser seguido
(Jornal do Brasil, 1 de outubro de 1964, p.15). Esta proposta visava identificar e reconhecer o
patrimônio florestal de cada uma das partes americanas.
Esse pensamento era divulgado, principalmente, por Victor Abdennur Farah,
presidente do Conselho Florestal Federal, bem como pelo comitê responsável por executar o
Atlas. Apesar de ter à sua frente Henrique Pimenta Veloso, único lembrado no interior da obra
dada o seu protagonismo, o comitê tinha também Alceo Magnanini, Bertha Lutz, Renato
Domingues e Wanderbilt Duarte de Barros. Compartilhavam entre si o fato de integrarem a
instituição enquanto conselheiros e pautarem suas finalidades voltadas ao desenvolvimento
dos estudos científicos das florestas. Magnanini, Farah, Domingues e Barros eram oriundos
da engenharia agronômica, enquanto Lutz e Veloso eram naturalistas.
Os mediadores que estiveram responsáveis pela execução dos mapas (Joel Antunes e
Walter da Silva) já tinham experiência na publicação de representações cartográficas, pois
trabalhavam no Instituto Oswaldo Cruz no auxílio de croquis e esquemas gráficos aos
cientistas. A escolha deles, indubitavelmente, estava vinculada à solicitação de Henrique
Pimenta Veloso. A edição da obra ficou ao cargo de Nuno Vieira do Serviço de Informação
Agrícola do Ministério da Agricultura. O próprio diretor da instituição Rufino de Almeida
Guerra e os ex-ministros da agricultura Hugo de Almeida Leme e Ney Braga auxiliaram nessa
empreitada (Jornal do Brasil, 1 de setembro de 1966, p.10).
A projeção dos criadores da obra, apesar de não ter atingido a abrangência interna que
pretendiam, não pode ser considerada um fracasso editorial. Uma das estratégias dos
produtores que foram bem implementadas correspondeu as doações que se faziam à
personagens significativas da intelectualidade. A visão dos produtores era, com isso, angariar
novos adeptos à discussão de proteção às florestas e permuta de materiais com outras
instituições. Entre aqueles que obtiveram o Atlas estava Roberto Marinho, diretor do
periódico O Globo, que recebeu das mãos de Victor Farah. (O Globo, 23 de novembro de
1966, p.7.). Além da estreito vínculo amistoso entre eles, o presidente do Conselho entregou-
lhe aquela dádiva com o objetivo de obter como retribuição uma ressonância no mundo da
imprensa das atividades do Conselho e apoio na expansão das políticas conservação à
natureza no Brasil.
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Da mesma forma, esteve o presidente Humberto Castelo Branco que recebeu a obra
em cerimônia de lançamento em novembro de 1966. A adesão do então presidente da
República era interessante ao projeto da instituição de se manter fortalecida na estrutura
governamental. Outros nomes significativos que tiveram acesso à leitura estavam Severo
Gomes da Sociedade Geográfica Brasileira, o papa Paulo VI que retribuiu com benção
apostólica, bem como Clodomiro Buch, industrial do ramo de fósforos.
Assim, os produtores e mediadores da obra, ao mobilizar uma rede de leitores do Atlas
Florestal do Brasil visava conferir uma expansão do número de adeptos da proteção à
natureza, disseminar no exterior as florestas brasileiras, formular-se enquanto um modelo a
seguido na América Latina, bem como irradiava as “realizações” do Conselho Florestal
Federal. Além disso, era pensado como uma dádiva, visto que, ao ser concedida a alguém,
esperava-se que a pessoa ou instituição que recebesse o Atlas fornecesse alguma retribuição,
podendo ser periódicos, apoio na difusão de campanhas florestais ou, até mesmo, a
sensibilidade de auxiliar na permanência da instituição na esfera estatal.
Considerações finais
Ao final deste trabalho, pode-se constatar que o Atlas Florestal do Brasil consistiu em
projeto coletivo coordenado pelo cientista Henrique Pimenta Veloso. As discussões de sua
elaboração estiveram vinculadas ao Conselho Florestal Federal. Apesar de ser esboçado para a
delegação brasileira apresentar na IX Reunião Latino-americana de Florestas e Produto
Florestais sediado em Curitiba em 1964, a obra somente foi editada conclusivamente em
novembro de 1966. Ou seja, foi dada a ler durante um momento de reestruturação
administrativa e de crise institucional do Conselho Florestal.
Em que pese sua conjuntura peculiar, colocava-se como herdeiro de uma tradição
cartográfica de viajantes naturalistas. Seus paratextos revelam a intenção da publicação em ser
aplicada tanto em salas de aula de nível médio e superior, quanto como parâmetro de
mapeamentos à América Latina. Demonstram também que o objetivo não estava no
admiração ufanista ou preservacionista da natureza. Definia como esgotável a natureza, mas
também não se podia mantê-la fora do uso humano. As finalidades econômicas que norteiam
as matas, assim, não se encontram como excludentes à proteção. Houve um trabalho de
investigar e rastrear as condições das instalações do que considerava “reservas naturais
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nacionais”.
Diante desta obra “monumental” ou “patriótica”, diversos foram os personagens que
tiveram acesso à sua leitura. Os próprios mediadores doavam-na a uma série de agentes para
que a obra se tornasse difundida. Em troca, porém, almejavam o apoio pela questão florestal,
visibilidade à atuação do Conselho Florestal Federal. Ou seja, longe de ser uma obra de um
indivíduo em seu itinerário particular que colecionamento de mapas, o projeto editorial foi
construído coletivamente e dotado de uma estrutura coerente. Ao mesmo tempo que exprimia
interesses econômicos e científicos com as florestas, aspirava a proteção das mesmas e
buscava materializar as políticas florestais adotadas por uma instituição que tinha sido criada
sob o varguismo, na ânsia de fazê-la sobreviver às mudanças político-administrativas.
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Brasil, Rio de Janeiro, 1 de outubro de 1964, 1º Caderno, p.15.
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