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AS QUATRO ESTAÇÕESDE UMA VIDA ITALIANA

TraduçãoTalita Rodrigues

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PARA WILLIE

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SumárioAgradecimentosIntrodução – A estrada brancaParte 1 – Do inverno à primavera

Buongiorno, LucaAndiamo a casaUma casa voadoraBramasoleA Vespa brancaDepoisTragam-me o girassol enlouquecido de luz

Parte 2 – Do verão ao outonoOrto e fornoVinhedoGite al MareCírculos no meu mapa – Úmbria e mais alémOs ossos de SignorelliAmiciA trilha de SignorelliCittà di CastelloAgosto começaMangia, Willie, mangiaDesde os etruscosUma liberdade maiorCem jarras de sol de verãoRezando pela rainha de copasPermissão para o novoPosfácio – Fox Song

NotasBibliografiaGlossárioCréditosA Autora

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Agradecimentos

Pelo enorme prazer ao longo do caminho, meu amor e muito obrigada aEd, Ashley e Willie. As aventuras e a diversão de Ed na cozinha estãopor trás de muitas das receitas, e nossa paixão pela Itália é tãoentrelaçada que estas páginas são tão dele quanto minhas. A leitura

aguçada e sensível de Ashley e o gusto di vivere de Willie contribuíram para aalegria de escrever estas páginas.

Due baci a: Alberto, Tony, Carlos e toda a família Alfonso, Melva e JimPante, Sheryl e Rob Turping, Catherine e Jim McLaughlin, todos nativos deCortona a esta altura. Meus amigos italianos estão retratados nestas páginas,mas nenhuma palavra é capaz de captar sua graça e cordialidade. Um carinhoespecial para as famílias Di Rosas, Cardinali, Baracchi e Calicchia. Gilda DiVizio, Albano Fabrizi, Giorgio Zappini, Domenica Castelli e Ivan Italiani – muitoobrigada. O arquiteto Walter Petrucci e o empreiteiro Rosanno Checcarelli memostraram como um projeto de construção pode ser fácil e aumentaram omeu conhecimento sobre a arquitetura vernacular toscana.

Ao longo de todo esse tempo em que redigi sete livros, tive a sorte detrabalhar com Peter Ginsberg, da Curtis Brown Ltd. Ele é um paradigma emsua profissão e um bom amigo. E conosco sempre esteve Charlie Conrad, daBroadway Books, extraordinário editor e italófilo. Obrigada, Rachel Rokicki,minha assessora de imprensa na Broadway, e toda a equipe, especialmenteJenna Ciongoli e Julie Sills. Minha gratidão a Dave Barbor, meu agente dedireitos autorais no exterior; a Nathan Bransford e Grace Wherry, da CurtisBrown; a Fiona Inglis, da Curtis Brown Austrália, e a Nikki Christer, daTransworld, também na Austrália. Mille grazie, Albert (Secondo) Hurley. Poracaso, eu estava por perto quando ele subiu no campanário e tirou afotografia da capa que combinou tão bem com o final do meu livro. Meuobrigada a Becky Cabaza e à designer do livro, Lauren Dong. O fotógrafo

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Steven Rothfeld e eu trabalhamos juntos em muitos projetos com uma sinergiamaravilhosa. Grazie, Stefano. Também um muito obrigada a Linda Pastonchi eElizabeth Shestak pela ajuda com o manuscrito.

Tive a honra de receber o Premio Internazionale Casato Prime Donne. Soumuito grata ao júri e a Donatella Cinelli Colombini por este prêmio e porcolocar frases deste livro na aleia de um vinhedo.

Nossa cozinha se beneficiou com o conhecimento de muitos chefs. Euagradeço em especial a Silvia Regi, Marco Bistarelli, Nicola Borbui, Eva Seferie Andrea Quagliarella por compartilharem seus talentos e receitas. Tambémgostaria de brindar com uma taça de Brunello a Marco Molesini, JunasMoncada Cancogni, Silvio Ariani, Giuseppe Frangieh, Mario Ponticelli e LapoSalvadori.

Meu agradecimento especial aos editores de publicações e produtores depalestras onde fiz minhas primeiras experiências para uma boa parte domaterial deste livro:

El Pais (Madri), Town and Country Travel , Waterstone (Inglaterra),Signature, Inside Borders, Real Simple, Taiwan Vogue, Powell’s Q & A, CasaClaudia (São Paulo), Elle Brazil, O Estado de S. Paulo, Financial Times,Metro, Toronto Star , Gainesville Magazine, Inspire (Cingapura), The SunTimes (Cingapura), The Straits Times (Cingapura), Silver Kris (Cingapura),The Durham News and Observer, Journal News e Points North Magazine.

The Smithsonian Program, Detroit Institute of Art, Nashville Antiques andGarden Show, Dallas Museum of Art, New York University em La Pietra,Florença, Cortona Wine Consortium, Tuscan Sun Festival, Florida SouthernCollege, Hillsborough Literary Society, a Junior League of San Diego, ChapelHill Historical Society, Impact Programs for Excellence – El Paso, University ofNebraska – Omaha, Salt Lake City Public Library, Campbell Foods, LanePublic Library, Fayetteville Public Library, Denver Post Pen and Podium,Northeastern University, Society for the Performing Arts – Houston, SuffolkUniversity, Vero Beach Museum of Art, Palace Theatre – Waterbury, AtlantaGirls School, St. John’s University, Indiana University, Los Angeles Times Book

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Festival, Sacramento Bee Book Club, Denver Press Club e Seeds (SouthEastern Efforts Developing Sustainable Spaces). Por programarem muitosdesses eventos, onde conheci tantas pessoas extraordinárias, eu agradeço atodos da Steven Barclay Agency – Catherine, Eliza, Sara e meu amigo demuitos anos, Steven Barclay.

Prezo profundamente minhas novas amizades literárias em casa, na Carolinado Norte, e envio especiais saluti a Lee Smith, Michael Malone, MaureenQuilligan, Oscar Hijuelos, Lori Carlson, Alan Gurganus e, mais ao sul, noAlabama, à pintora Rena Williams, amiga de longa data.

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INTRODUÇÃO

“Estou para comprar uma casa num país estrangeiro”, escrevi ao iniciar omeu livro de recordações, Sob o sol da Toscana. Uma simples frasedeclarativa – mas, para mim, um momento crítico. De palavras tãosimples, o destino se ramifica e transforma. Bramasole, uma residência

de campo abandonada sob os muros etruscos da cidade de Cortona, tornou-se um lar. E mais do que lar – olho de boi, bússola do coração, centro do meuuniverso particular.

No momento em que girei a pesada chave de ferro na porta e entrei naminha vida italiana, não podia ter me imaginado aqui duas décadas depois,não podia ter previsto o prazer, a complexidade, os inconvenientes, afrustração, a alegria ou o meu intenso amor por Bramasole, um lugar-no-tempo que tomou conta da minha vida.

No romance de Juan Rulfo, Pedro Páramo, o seu personagem viajando deônibus num dia de muito calor carrega a fotografia da mãe no bolso interno dopaletó. “Eu podia senti-la começando a suar”, Pedro pensa. Bramasole pareceassim para mim. Eu posso sentir a sua vida dentro da minha, separada eintegral.

A casa passou a ser o meu ícone. A luminosa fachada rosa-pêssego, asjanelas de persianas abertas para o sol meridional, gerânios em profusão,clematites, limões e alfazemas desabrochando no jardim – toda estaexuberante beleza simboliza não a vida que me foi dada, mas a vida que eu fizcom minhas próprias mãos. Ao abrir a janela do meu escritório e me debruçarpara a atmosfera translúcida, posso ver o jardim lá embaixo, até cumprimentarcada rosa pelo seu nome. Eu espero atenta o jasmim cobrir de flores o arcode ferro. Ouço as quatro notas musicais da água cascateando na antiga

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cisterna. Vejo todas as superposições ao longo dos anos, desde quando osmuros tombaram e as amoras sufocaram a terra, até agora, quando o jardimrima rosas, lilases, dálias e lírios com lugares secretos para leitura entre asoliveiras. Os únicos traços do jardim original simétrico ainda reinam: cincoárvores sérias podadas no estilo de topiaria erguendo-se de uma sebe debuxo.

Atravessando o terraço superior, centenas de girassóis gigantes fazem acorte em julho, minha pequena banda de rostos gloriosos em marcha. Emagosto, eles se curvam, como muitas duchas de banho enferrujadas. Nessemomento, chegam os faisões. Como eles sabem? As sementes são umbanquete e seus gritos mal-humorados e gulosos soam mais como o barulhode uma oficina de consertos de automóveis do que a orgia de aves regiamenteemplumadas.

DENTRO DE CASA, tenho meus livros, minhas coleções de arte folclóricareligiosa, pratos de cerâmica, roupas de cama e mesa antigas e, no momento,caixas de manuscritos com inúmeros rascunhos riscados, sublinhados erabiscados. Meus quartos são marcas digitais. O escritório em desordem domeu marido, onde um quadro de Dante olha com desprezo para a mesacaótica semeada de poemas; nosso quarto de dormir com a romântica camade ferro coberta com lençóis brancos; a cozinha onde todas as minhas peçasde cerâmica pendem das paredes brancas; o banheiro original da casa com atina para banho de assento; a sala de jantar onde taças de vinho estãosempre pela metade e cadeiras arranharam o piso de tijolos em tantosbanquetes sob o afresco azul e pêssego desbotado que descobrimos faztempo – a casa tem uma intensa vida própria e eu me sinto intensamente vivadentro das suas grossas paredes de pedra.

NUM SONHO, recebi um ultimato. Eu tinha uma opção. Vender Bramasole ou

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perder um braço. Quem me colocava diante desse dilema tinha o rosto dareitora que me disse, no segundo ano, que eu podia me dedicar e fazer oscursos exigidos – economia, ela insistia, fisiologia – ou deixar a faculdade.Nada de teatro romano, nada de etimologia grega.

Agora ela estava na frente da minha casa amada, dourada, cor de pêssego,de clarete, acenando com uma serra de arco. Casa ou braço. Escolhe. Euacordei agarrando o meu punho direito (a mão com que escrevo!).

Eu havia experimentado plenamente o fato de que, para mim, a escolha eraimpossível. Tão apaixonada estou por esse conjunto simétrico de aposentossimples que dão para um vale delicado, onde estrelas besuntam o céu noturnoe a alvorada copia o que artistas do Renascimento pintaram ao recriarem comardor essas cenas por trás de seus anjos da Anunciação ou mártires crivadosde flechas. Sou apegada às grandes clematites cor de púrpura agarrando-seà balaustrada enferrujada do pátio no andar de cima, arremessando-se pelosvasos de petúnias, e às trepadeiras de madressilvas cheirando a verão queplantei para me lembrar das estradas rurais da Geórgia. Sou fiel aos gerâniospendentes e a um longo talude de hortênsias brancas. Admiro a grade deferro que nosso amigo serralheiro, Egisto, fez no ano passado. Agora, sempreque meu neto sai correndo porta afora não preciso ir atrás, com medo de queele tropece no muro rasteiro de pedra e caia morro abaixo.

Ed passou meio ano supervisionando a reconstrução de três longos murosde pedra do pátio, derrubados por deslizamentos de terra durante um invernode chuvas memoráveis. Caminhamos às vezes antes do jantar no meu jardimde ervas restaurado e admiramos o trabalho em pedra, embora aindaamaldiçoando a lama e o dinheiro gasto. Esses muros custaram a Ed pelomenos dois livros de poemas. Estão amarrados por cabos de aço no leito derocha firme, mas parecem exatamente como quando foram construídos poragricultores séculos atrás. Perdi o meu jardim de ervas no deslizamento deterra que gerou o projeto, mas o novo jardim é mais bonito do que o original. Asantolina, o alecrim, a nepeta, a borragem e a arruda ao longo da bordaconfundem-se num borrão de flores, abelhas e aroma quente. Meu reino de

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rosas expandiu-se e agora as suntuosas Gloire de Dijon, Reine des Violettes,Rita Levi-Montalcini e Pierre de Ronsard rendem-se à minha tesoura todos osdias no verão. Amo o excitante coro de pássaros cantando no alvorecerprimaveril, o mar de névoa como creme chantili que preenche o vale nasmanhãs de inverno, e as pessoas que gritam um olá lá da estrada quandoestou regando meus vasos de morangos.

NÃO FAZ MUITOS ANOS, enquanto colhia amoras doces no Monte Sant’Egidio,avistei uma ruína numa encosta irregular. Ed, nossa amiga Chiara e euescalamos com dificuldade no meio do mato e deparamos com um chalé detelhado de pedra parcialmente em ruínas, cercado de castanheiros ecarvalhos. Foi uma atração fatal. Que beleza solitária.

Originalmente, nós nos dissemos, a compra era um investimento.Deveríamos ter previsto? Durante a restauração, tanto Ed como eucomeçamos a amar a casa distante. Ela parecia ter características de contode fadas: Os três ursinhos, Chapeuzinho Vermelho. Nenhum projetopaisagístico era necessário; os construtores instintivamente colocaram a casade frente para o sol nascente e de costas para o talude como proteção contrao vento tramontana do inverno. À tarde, as pedras são aquecidas por raios dooeste em ângulo que vão crescendo, crescendo, finalmente riscando o pátiocomo um ancinho de dentes dourados. Olhando pela janela ao alvorecer, soupresenteada com a luz nacarada e milhares de tons de verde multiplicando-sepelas encostas. E o investimento foi mais do que suficiente. A restauração meocupou – saturou, obcecou e atormentou – totalmente. Ed talvez ainda mais.O lugar não tem preço. Eu não poderia vendê-lo, como também não seriacapaz de colocar o meu primogênito dentro de um cesto nos juncos.

Casas são muito misteriosas para mim, especialmente belezasarquitetônicas com tamanha identidade própria. Como alguma coisa poderiadar errado lá dentro? Tipos vernaculares clássicos me intrigam – bangalôs,chalés dog-trot, casas rurais – até tijolos com garagem aberta dos anos

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cinquenta, casas de fazenda de dois andares, dos anos setenta, e as casasgenéricas dos megaempreendimentos imobiliários da época do boomeconômico. Pequenas casas de fazenda me lembram visitas a amigos deinfância. Dois quartos de dormir, um banheiro, sala de estar, um canto para amesa de jantar e cozinha – tudo em ordem e novo. Como eu admirava asfamílias unidas e os lustrosos pisos de madeira clara, a janela panorâmicadando para casas idênticas, também para famílias unidas, tão diferentes dosmeus pais, sempre prontos para uma discussão ao redor da lareira, no queminha mãe chamava de “chalé de lua de mel”. Até casas vazias transpiram umcampo de força, a carga potencial de tudo que pode acontecer do lado dedentro das paredes.

Quando vi a casa na montanha, senti uma energia em ponto de fusão. Euesperava que ela viesse dos humildes frades franciscanos que vagavam poresta montanha no século XIII, felizes em silenciosa celebração. Alguns ficavampor ali e moravam em cavernas ou construíam cabanas de junco e pedra. Ofeng shui não é conhecido na Toscana, mas os princípios devem seruniversais. Nosso pequeno chalé de pedra pega energia das estridentesdiscussões no escuro entre cinco tipos de corujas, da melodia úmida da chuvatorrencial de inverno, do ataque de manadas de porcos selvagens, da antigafloresta de carvalhos, dos gritos de faisões, das nascentes espontâneas e dasestradas romanas galgando a montanha.

Eu vivi momentos de extrema satisfação e outros momentos infernaisdurante o processo de restituir a si mesmo algo tão antigo e tive a sorte de terfeito amizade com toscanos do interior. Agora passamos parte do ano noMonte Sant’Egidio, um dos locais sagrados de São Francisco. Alguns dosseus seguidores eremitas, que viviam em cavernas ao longo dos contrafortesda montanha, ficaram civilizados e construíram casas de pedra tão sólidas queainda resistem oito séculos depois. Minha Fonte delle Foglie (Fonte dasFolhas) é uma delas. Como São Francisco passou um inverno em Le Celle, ummosteiro abaixo de onde estamos, as colinas erguendo-se por trás de Cortonapermanecem um local sagrado. Ou, pelo menos, um local fresco de descanso,

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especialmente para aqueles finais de semana de verão sufocante, quando asruas de pedra de Cortona ficam em brasa. As pessoas do local fazempiqueniques nos bosques, muitas vezes ficando ali o dia inteiro.

Um ritual pagão do ano é a Noite de São Lourenço, a das estrelas cadentes(10 de agosto). Como muitos cortonesi, saímos de casa com mantas e umamelancia e nos deitamos no chão, maravilhados com a chuva de meteoritos.

Se eu estivesse sozinha, talvez me deixasse dominar pela experiênciaprimitiva das minhas costas contra a terra e todas as luzes ferozes cruzandorapidamente o céu. Uma noite tão magnífica, o orvalho umedecendo a minhablusa, o assoalho de diamantes da Via Láctea, todas as constelações tãobrilhantes que uma voz vinda do céu poderia começar a falar de mitos gregossobre ursos e sete irmãs e intrépidos caçadores. Talvez imaginasse a escuralona celestial picada com milhões de orifícios, revelando uma poderosa luzdivina por trás da escuridão da nossa atmosfera. Talvez deixasse a minhamente sair girando para acompanhar a órbita do menor asteroide. Quem sabeeu imaginaria que a minha espinha dorsal poderia lançar raízes, buscando aterra como gavinhas de uma videira esparramando-se.

Mas amigos trocam binóculos entre si e gritam desejos a cada risco no céu.Basta de guerras!, Que eles encontrem água por aqui antes de furar até oinferno e Que Ed vá lá dentro buscar outra garrafa de vinho. Como todos ostoscanos sabem, nesta noite os desejos são concedidos. E assim eu memantenho firme no momento. Tão próximas estão as estrelas que eu poderiaestender a mão e tocar o centro incandescente de Vênus com o dedoindicador.

NUMA GLORIOSA NOITE de verão em Bramasole, algo inesperado intrometeu-seneste paraíso. O que aconteceu e, principalmente, o que isso significou quaserasgou as minhas velas sedosas infladas por ventos serenos. Este terceirolivro de memórias da minha vida italiana volta a visitar aquela época demudanças – internas e externas – e me permite explorar o que aprendi sobre

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mim mesma e sobre este lugar verde onde construí o meu lar.Prima le radici, poi le ali, hoje um amigo italiano me escreve. Primeiro

raízes, depois asas. Será que às vezes eu busquei asas primeiro?

O ANO DE 2010 marca o vigésimo aniversário do que eu ainda considero comoa minha nova vida na Itália. Ed e eu planejamos a comemoração para o dia 5de julho.

Quando fui de carro até Bramasole pela primeira vez com o corretor deimóveis, disse brincando: “Achei.”

Achei. Eu não tinha consciência das extraordinárias mudanças em que ia memeter quando aquele portão enferrujado se abriu, e eu vi os tons do solnascendo na fachada da casa, cores que me dão um arrepio de encantamentocada vez que as vejo desde então. Eu fui à Itália por causa das alamedas deciprestes, da vibração das piazzas, das igrejas em puro estilo romanesco nasáreas rurais, da cozinha, da história. Fiquei por causa da interminável festa docotidiano entre as pessoas mais hospitaleiras do mundo. Eu construí um laraqui, sem realmente estar pretendendo isto – o lugar se apoderou de mim eme fez à sua imagem.

Como deixei isso acontecer? Há muitas marcas cruciais na vida de umapessoa, pequenas e grandes. Tomar uma decisão, meu amigo Fulvio diz,proporciona um uso do termo de forma mais precisa do que o simples verbodecidir. Tomar uma decisão também toma conta de você. Mesmo que, aodescer do carro, eu não soubesse o quanto a minha vida iria mudar, senti algonaquele momento. Eu queria uma abertura, uma oportunidade para me fundircom algo sem limites. Eu, na plenitude da minha ignorância, estava disposta.

E a Itália tem provado ser inesgotável. Aceitar de presente um país novo emuito antigo – toda uma outra esfera de língua, literatura, história, arquitetura,arte: isso tudo cai sobre mim como uma chuva de ouro. É paradoxal, masverdadeiro que algo que o tira de você mesmo também o restitui a você comuma liberdade maior. Um interesse apaixonado também tem uma agulha

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apontando para o norte verdadeiro que mantém você focalizado. Oentusiasmo da exploração me arremessou de uma vida que eu sabia comoviver para um espaço desafiador, onde fui obrigada – muito feliz com isso – ainventar cada dia.

A chegada do vigésimo aniversário propicia um tempo para refletir e meditarsobre as possibilidades para os anos que se aproximam rapidamente de mim.Tenho idade suficiente para dizer que possuo uma certa sabedoria: acreditoplenamente na frase concisa de Basho, transmitida desde o século XVII: Ajornada em si é o alvo.

Os próximos vinte anos. A transição é suave. Estou equilibrada entre mundose posso vagar para frente e para trás ao longo dessa strada bianca, essaestrada branca da jornada mais íntima. Momentos de mudança. Uma chancede dizer sim ou, possivelmente, não. Um dia como nenhum outro. Uma semanasaída de um horóscopo. Alguém de pé do outro lado de um abismo,estendendo a mão. Um novo plano de vida. Quarenta árvores para plantar.Uma viagem de volta. Um bilhete enviado. Uma fonte para construir. Nadarcom golfinhos. Um presente para dar. Um espelho refletindo uma outra era.Um coração de vidro azul debaixo do meu travesseiro.

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Do invernoà primavera

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Buongiorno, Luca

Na luz azulada do frio invernal, os sinos de Cortona soam mais alto. Obadalo de ferro frio batendo no sino congelado produz gongos claros,chocados, duros, que reverberam nas nossas cabeças congeladas napiazza, ressoando em nossos crânios e descendo até os nossos

calcanhares, golpeando as pedras do pavimento. No verão de folhagemexuberante, quando o ar suavizado dispersa os sinos, o toque de clarimacompanha, mas não insiste; os sinos lembram, pontuam, inspiram. Como seestivessem abençoando o dia, as reverberações pousam sobre aqueles quetomam tranquilamente um cappuccino na piazza, depois esmaecem, enviandoas últimas vibrações para as andorinhas voando em círculos. Mas, no inverno,os sons solitários parecem mais pessoais, como se repicassem especialmentepara você. Posso até sentir as ondas sonoras nos meus dentes ao sorrir nasminhas inúmeras saudações da manhã.

Retornando no início de março, fico emocionada em ver meus amigos napiazza. Nós nos cumprimentamos como se eu tivesse me ausentado por umano, em vez de quatro meses. Adoro o primeiro passeio até a cidade depoisde uma ausência. Caminho por todas as ruas, avaliando se está tudo emordem. O que mudou, quem viajou para o Brasil, o que está exposto nomercado de vegetais, quem casou, quem morreu, quem se mudou para ocampo? O que está em exibição no museu? Metade de uma vaca enormepende de um gancho no açougue, um quadrado de toalha de papel no chãopara pegar os últimos três respingos de sangue. Sob a lâmpada de néon, acarne vermelha nas vitrinas reflete uma luz lavanda nos rostos de duasveneráveis signoras, debruçadas para inspecionar as ancas de vitela e osassados de porco. Lírios cor de laranja contra o vidro concentram vapor navitrine do florista com seu hálito de estufa, e lá está Mário, uma manchaenevoada entre elas, arrumando uma fileira de prímulas.

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O inverno traz Cortona de volta à sua identidade original. Os comerciantesna rua principal queixam-se de que, durante todo o inverno, a cidade parecemorta. Non c’è nessuno. Não tem ninguém. Eles se perguntam se os turistasvão voltar este ano. “O dólar está fraco, o euro parece um balão de arquente”, Fabrizio, com um gesto, assopra o balão imaginário para o céu,fazendo em seguida uma espiral com as mãos. Eu visualizo um balão listradodirigindo-se para Marte. Em italiano, uma parte de todas as conversas se dásem palavras. Uma mulher falando ao celular na piazza anda de um lado parao outro, gesticula, para, joga a cabeça para trás, anda de novo. Ela diz graziequinze vezes, ri. Está num palco, protagonizando um monólogo. Quandodesliga, fecha de estalo o celular, joga-o na enorme borsa e sai apressadapara as suas compras.

Eu paro para olhar sapatos, depois suéteres. “Essa guerra de vocês. Omundo inteiro está pagando”, Daria comenta em tom de repreensão, como seeu tivesse bombardeado pessoalmente o Iraque. Ela está varrendo a soleirada porta que já está limpa. Eles se esquecem de que, quando a lira foiconvertida em euro, quase todos aumentaram de repente os seus preços;alguns começaram simplesmente a cobrar em euros a mesma quantidade emliras de antes, dobrando, na verdade, o custo da sua pizza, camiseta, café,álbuns e macarrão. Visto que os salários na Itália mal saíram do lugar, amaioria das pessoas hoje está se sentindo mais do que lesada. “Não sepreocupe”, nosso amigo Arturo diz. “Existem duas Itálias. Uma economia àvista e outra economia inteira que ninguém vê. Todos têm o seu próprio jeito,jamais revelado aos estatísticos. Você recebe em dinheiro – ninguém ficasabendo.” Isto, eu penso, se aplica mais ao trabalho independente e menosaos donos de lojas, que têm de dar recibos. Se eu sair do bar sem o recibodo meu panino, a Guardia di Finanzia pode multar o proprietário e eu. Quandoeu compro uma galinha, fico pasma – 14,65 euros – 23 dólares no câmbioatual. Eu penso nos preços de reconstrução no Sul depois da Guerra CivilAmericana. O que está acontecendo com o nosso país? Nosso dólar édebole, fraco, espantosamente fraco.

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Com o vento que deve vir dos Alpes cobertos de neve, dois graus parecemzero. “Che bello, vocês voltaram antes das andorinhas”, diz Lina. Como é oDia Internacional da Mulher, três pessoas me dão ramos de mimosas, que euadoro pelo seu amarelo brilhante na atmosfera cinza cor de pedra. Massimome oferece café e, mais tarde, Claudio faz o mesmo. Roberto, na frutta everdura, me dá um saco extragrande de odori, os vegetais e ervas usadoscomo tempero. Eu vejo que Marco fechou sua galeria de arte e expandiu suaenoteca no espaço anexo. Há duas mesas para degustação de vinhos e asnovas vitrinas são bonitas. Mas é triste perder a galeria, onde muitosfrequentadores assíduos exibiam semanalmente, pendurando as suas própriasobras e sentando-se na piazza com amigos, ou fazendo amizade, enquanto aspessoas entravam e saíam. Mas aí eu vejo Marco na agência de correio e elediz que está abrindo uma nova galeria na rua ao lado. O museu será ampliadopara acomodar descobertas arqueológicas recentes em sítios etruscos e navilla romana que nossos amigos Maurizio e Helena escavaram. Uma nova lojade chocolates surgiu na minha ausência. Parece aterrissada direto da Bélgica.O chocolate quente tem um sabor cremoso e escorregadio. Um sucessoimediato. Os dois restaurantes que abriram no último outono estão indo bem.Um deles já tem fama de fazer um dos melhores cafés da cidade. Foi ali,quando eu parei para sorver o meu macchiato, que ouvi dois turistasconversando. Um dizia: “Vi o marido da Frances Mayes, Ed, dirigindo um Fiat.Um Fiat – e daqueles pequenininhos. Não acha que eles poderiam ter coisamelhor do que isso?” Eu virei as costas para eles não me reconhecerem efiquei mortificada. Eu adoro o meu Panda amarelo.

Tudo a seu tempo, e esta é a estação para refazer o reboco, consertar asdobradiças, rever cardápios, limpar pátios e escadarias. Da mesa de canto noBar Signorelli, eu observo esta atividade animada na rua. Todos se preparampara a primavera e o verão, e esperam que eles tragam de volta aquelesinocentes apaixonados por sapatos, livros de couro, restaurantes, cerâmicas,pêssegos, Super Toscanos, e todas as coisas boas em oferta nesta animadacidade na montanha.

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ENQUANTO MEXO o meu cappuccino, cumprimento o autorretrato em carvão dopintor renascentista Luca Signorelli sobre a geladeira de refrigerantes. Estounuma busca por Signorelli. Ele nasceu aqui e passou a vida inteira pintandopor toda a Toscana, em Marche e em Roma. Famoso, sim, mas, na minhaopinião, internacionalmente subestimado. Ele sempre preside as minhaslibações no café da manhã. No escritório do superintendente de construçãolocal, assinei documentos sob uma outra cópia do autorretrato de Signorelli,que mostra que o meu homem era louro como um anjo, com olhos azuisdiretos e um queixo marcante. Uma piazza principal tem o nome de Signorelli.O museu local exibe suas obras. Todos acreditam que a queda dos andaimesna capela do Palazzo Passerini causou a sua morte.

Sem dúvida, ele passou partes fascinantes da sua vida centradas na piazza,onde é bem provável ter encontrado um amigo numa manhã chuvosa eescutado a notícia de que Da Vinci, que sujeito imaginativo, havia tido a ideiade uma máquina voadora. Alguém lhe diz que Michelangelo obteve uma grandepeça de mármore (destinada a se tornar o Davi) e talvez até que o longínquoalemão de nome Gutenberg acabara de inventar uma máquina para imprimirlivros. É fácil ver Signorelli vestido de veludo verde debruado de dourado, o sollustrando os seus cabelos claros, atento às palavras do vizinho que mencionaque o papa excomungou Veneza e que, ele ouviu falar, tinham encontrado umaantiga estátua chamada o Laocoonte numa escavação em Roma. Na suatúnica de pintor manchada de tinta, ele ergue um copo no seu ateliê escuro eescuta o primo, recém-chegado de Roma, descrever a privada com águacorrente que acabaram de inventar. Voltando para casa de noite, ele esbarraem Giovanni, o frade do convento dominicano, cujos modos delicados maistarde o fizeram merecedor do nome Fra Beato Angelico. A sua época foiexcitante. Sei que, como magistrado local, as pessoas o paravam a toda horapara pedir favores, exatamente como acontece com Andrea, nosso prefeito,esta manhã. Signorelli, como um importante artista e também como umapresença de genius loci, continua a se revelar através das camadas de

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tempo. Ele já é um velho amigo.

A PIAZZA, PARA UM ROMANO , para Signorelli, para mim, para aquele bebê nocarrinho vermelho, existe como uma grande e antiga caixa econômica dememórias. É um corpo; é um livro para ler, se você está atento à sualinguagem. Eu poderia oferecer a Luca um caffè se ele simplesmente abrissea porta e, sacudindo os cabelos louros, entrasse. Ele está aqui; nunca foiembora.

Campanilismo, uma condição de ser: quando você vive dentro do som docampanile, sino da igreja, você pertence ao lugar. Central de comando,parque de diversões, centro de conferências, sala de estar, fórum – a piazzatambém é divertida. Jamais monótona. Hoje o barista traz o meu cappuccinopara a mesa com um floreio. Ele fez um coração de chocolate na espuma.Grita para mim: “Americanos não bebem café, bebem água suja.”

“Sporca miseria!”, respondo, tentando um trocadilho com um leve palavrão,porca miseria, que significa eloquentemente “miséria porca”. Meu jogo depalavras significa “miséria suja”. Sou gratificada com risadas dos dois bariste.

Lorenzo acabou de voltar da Flórida. Ele paga o meu café e eu perguntosobre a sua viagem. “Muito agradável.” E, em seguida, olhando a piazza láfora, ele acrescenta: “Meglio qui a Cortona.” Melhor aqui em Cortona. “AAmérica”, ele suspira, “ou é vazia e não tem nada, ou tem coisa demais.”

Em casa, nos Estados Unidos, eu ponho para tocar um CD dos sinos deCortona quando fico com saudades. Fotos antigas pela cidade mostram osAliados entrando com tanques barulhentos e libertando Cortona. Esta imagemé tão familiar que eu quase penso que estava ali. As recordações maisantigas, do fórum romano que jaz sob camadas de pedras roladas, e até ruasetruscas anteriores, mais profundas, continuam a informar o espírito do lugar.As lembranças escapam como vapor através da crosta assada. Os maisvelhos ainda chamam a Piazza Garibaldi de carbonaia, recordando o lugaronde os homens levavam os seus carvões para vender. A Via Nazionale, para

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alguns, ainda é a irregular e rústica Rugapiana, rua plana.

OS RITMOS DA PIAZZA são uma antiga dança folclórica. No verão, as portas daprefeitura se abrem e a noiva com o noivo descem os degraus até a piazza,onde todos se reúnem, até para os casamentos de estrangeiros dos PaísesBaixos ou da Inglaterra. É onde a nova vida começa. O recém-nascido élevado de carrinho de um lado para o outro. Meninos aprendem a jogarfutebol, chutando a bola contra o Museu Etrusco. Estive na piazza às trêshoras da manhã em fevereiro. Alguém com um telefone celular enfiado entre oombro e a orelha encosta-se no leão Ghibelline caindo aos pedaços egesticula com as duas mãos. Um rapaz atravessa na diagonal, assobiando, ouduas pessoas conversam, o hálito coroando suas cabeças. A piazza nuncafica vazia. E, se ficasse, ainda não estaria vazia. Luca estaria ali.

A piazza fala italiano puro – fala de quem vive aqui e por quê. Alberto, meuamigo arquiteto, e eu certa vez tentamos quantificar o significado da piazzaem termos puramente práticos. Nós medimos e analisamos piazzas por toda aToscana, observando o número de entradas, os tipos de prédios e lojas quecontribuem para sua animação, aquelas que são espaços mortos, os padrõesde entradas e saídas, e ainda havia algo misterioso.

ESTA MANHÃ UMA TURISTA SOLITÁRIA SURGE , guia na mão, entra correndo. Na luzgélida, ela parece uma ave recém-saída do ovo, de boca aberta, olhandofixamente para o relógio da prefeitura e os prédios ao redor. Ela tira o chapéude tricô e seus cabelos finos, úmidos, colados na cabeça é como se aindativessem um pouco de albume grudado neles. Olha para antiguidades numavitrina que acabaram de limpar. Dois comerciantes param na entrada das suaslojas, observando os movimentos dela; os gaviões e o frangote.

Estou satisfeita. Buongiorno, Luca. Vejo você amanhã. Meu trajeto:comidinhas, livraria, correio, muitas paradas para dar um oi, floricultura para

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comprar algumas rosas amarelas que sirvam de enfeite para a minha mesa.Não deveria ter me preocupado com isso. No caminho de casa, outro Claudiome dá um vaso de amores-perfeitos; Gilda passa por Bramasole e deixaalgumas camélias, mimosas e jacintos cor-de-rosa; e Fabio coloca sobre osdegraus belas orquídeas aveludadas. Vittoria traz um buquê de viburnos parao nosso santuário. Nunca tinha ouvido falar do Dia da Mulher, feriado nacionalna Itália, que presta homenagem às vidas perdidas num incêndio em umafábrica de Nova York em 1911, mas fico estupefata por receber tantas flores.No final do meu primeiro dia de volta, há flores iluminando cada cômodo dacasa, dando a impressão de aconchego aos ambientes de pedra queabsorveram o impacto do inverno.

A NOITE TERMINA no Corys, na mesma rua, no cruzamento Torreone. Renato eGiuseppe, coadministradores do hotel-restaurante, estão ocupados servindouma mesa de vinte adolescentes que volta e meia começam a cantar. Ah, não,“Volare” – oh, oh, oh. Papai-urso Giuseppe me envolve e a Ed num grandeabraço. De origem libanesa, ele foi criado em Roma e trouxe para Cortona uminfalível bom gosto em comidas e vinho. Sempre nos diz exatamente o quevamos comer e beber. Ele traz um vinho tinto cor de hematita que nuncavimos, que veio bem dali, do outro lado da curva, perto do Lago Trasimeno.Renato nos atualiza com as novidades. Está construindo uma “bela fazenda”na antiga casa paroquial de pedra anexa à igreja que fica do outro lado darua. É um homem magro com cabelos negros ondulados e olhos intensos, umperfeito cínico italiano com um humor selvagem. Ele fala com o corpo inteiro.Descargas elétricas correm pelas suas veias. Eu adoro ficar olhando para ele,especialmente quando está furioso com os caçadores que estacionam nassuas vagas. Ele quase levita de raiva. Fico esperando que arranque oscabelos a qualquer momento ou desapareça no ar numa baforada de fumaça.Pouco depois, a raiva se dissolve e ele está brincando de novo.

“Um spa e uma igreja juntos? O corpo e o espírito?”, Ed pergunta.

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“Sim, finalmente, e o cemitério está ali também, assim pode-se cuidar detudo.”

Parece surreal, mas eu posso nos ver indo até lá para massagens,manicure, sauna a vapor. “Estamos convidados?”

“Certo, cara” – certamente, querida. “Eu estou construindo para você.”Depois de uma mesa com cinquenta opções de antepastos, uma grande

travessa de ravioles recheados de pecorino e presunto levemente defumado egalinha assada no tijolo, Giuseppe traz cinco caixas de chocolates Amedeipara provarmos. Os grãos vêm de Madagascar, Trinidad, Jamaica e todos oslugares que fazem parte do mapa dos chocolates. Em seguida, com umsorriso diabólico, ele serve uma travessa de gorgonzola cremosa tão deliciosaque fico querendo lamber a concha. Quando estávamos para dar porterminado, ele serve um digestivo que nunca experimentamos, um BaroloChinato, Barolo envelhecido com o que finalmente descobrimos ser quinino. Écomplexo e meditativo, diferente de muitos digestivi que me fazem lembraraqueles xaropes para tosse que tomei à força quando criança, minha mãeenfiando a colher entre os meus dentes cerrados. Ficamos meio bêbados ecommossi, emocionados, com a generosidade de nossos amigos. Quandosaímos, a filhinha de Giuseppe, Leda, me trouxe um ramo de mimosas.

A GENEROSIDADE, a diversão e a espontaneidade do cotidiano aqui me chocame devolvem imediatamente a um pródigo modo de ser que aos poucos começaa parecer normal. Eu comecei a notar, aqui em Bramasole, que a minha pelese ajusta perfeitamente ao meu corpo, assim como esta casa se acomoda tãoserena e naturalmente nesta encosta.

Afinal, para a cama. Parece que se passaram dias desde que vi da janelado avião as nuvens brancas de bordas prateadas lá embaixo. Pense em todosos séculos durante os quais esta visão foi impossível. O ponto de vista deSignorelli, como o da maioria dos artistas renascentistas, era simplesmentefrontal. Eu quase o vejo no seu casaco verde, fugindo de Florença e sobre os

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Alpes brancos. É curioso como somos imunes à beleza das nuvens vistas doalto. A cama tem lençóis cor de pêssego, edredom branco leve como o ar etravesseiros macios. Escorregando para baixo das cobertas, sinto como seestivesse mergulhando no céu paradisíaco que atravessei durante o voo –quando? – ainda ontem à noite. Por um instante, volto a viver a experiência dedescer por entre nuvens que parecem flocos de algodão, quando todas asdireções parecem se perder, em seguida às meadas de véus em farrapos,depois a súbita descoberta, quando os campos verdes, as imortais casasrurais romanas e os aglomerados de ovelhas aparecem. Adormecendo, Eddiz: “Este foi um dia renascentista...”

RAVIOLI RIPIENI DI PATATE CON ZUCCHINE E SPECK AL PECORINORaviólis de batata com abobrinha, bacon e queijo pecorino

4 porções

No Corys, o hotel-restaurante na estrada que passa por Bramasole, estesfantásticos raviólis estão sempre no cardápio. A chef do Corys, Eva, revela asua receita secreta.

O prosciutto defumado (presunto defumado) pode ser usado de todas asformas como o prosciutto costuma ser utilizado. Você pode substituir peloparmigiano, se não encontrar pecorino envelhecido.

Ingredientes:PARA A MASSA

2 xícaras de farinha de trigo½ colher de chá de sal2 ovos e mais uma gema batida para pincelar1 colher de sopa de azeite de oliva extravirgem

PARA O RECHEIO

250 gramas de batatas yakon descascadas1 xícara de leite

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1 xícara de água1 colher de sopa de parmigiano1 gema½ colher de chá de salUma pitada de noz-moscada

PARA O MOLHO

2 colheres de sopa de azeite de oliva2 fatias de presunto ou bacon defumado cortados em cubinhos1 abobrinha cortada em pedacinhos2 tomates cortados em pedacinhos1 chalota bem picada1 colher de sopa de manteiga½ colher de chá de pimenta

Queijo pecorino ralado à vontade

Modo de preparar o recheio de batatas:Cozinhe no leite e na água as batatas descascadas por 20 minutos, passe

pelo espremedor, acrescente o parmigiano, a gema, o sal e a noz-moscada.Deixar esfriar.

Modo de preparar os raviólis:Você pode usar lâminas de massa fresca comprada pronta ou fazer os seus

próprios raviólis. Neste caso, faça o seguinte:Coloque um montinho de farinha sobre uma superfície de madeira ou

mármore, abra uma cavidade no centro e acrescente o sal, os dois ovosinteiros e o azeite, misturando delicadamente no início com um garfo ou comas pontas dos dedos. Logo você terá formado uma massa bastante pegajosa.Trabalhe-a por 10 minutos, acrescentando mais farinha, se necessário. Façauma bola, cubra com um pano de prato e deixe descansar de 30 minutos auma hora, e, em seguida, a divida em quatro pedaços. Estique cada um delescom um rolo de macarrão até as lâminas ficarem bem finas – erga-as diantede uma janela e verifique se estão transparentes. Se você tiver uma máquina

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de macarrão, passe a massa dividida por numerações cada vez menores.Em seguida, coloque uma lâmina, de cerca de 15 cm x 30 cm, sobre a mesa

e, na metade inferior, coloque 1 colher de chá do recheio de batatas emintervalos de 2 cm. Pincele com a gema batida a metade superior da lâmina;em seguida, dobre-a longitudinalmente, cobrindo o recheio. Delicadamente,pressione para retirar o ar que pode ter ficado dentro dos raviólis e corte-osem quadrados iguais. Aperte as bordas para firmar.

Coloque uma panela com água para ferver, acrescentando 2 colheres desopa de sal quando tiver chegado ao ponto de ebulição.

Modo de preparar o molho:Numa frigideira funda, aqueça o azeite, depois acrescente os 4 ingredientes

seguintes e refogue por 5 minutos, então coloque a manteiga e a pimenta ecozinhe por 3 minutos. Adicione 100 ml de água e cozinhe por mais 4 minutos.

Cozinhe os raviólis na água fervente por 3 a 5 minutos e, em seguida,escorra-os. Arrume-os numa travessa e coloque o molho por cima. Termineespalhando raspas de queijo pecorino envelhecido ou parmigiano.

POLLO AL MATTONEFrango no tijolo

4 porções

Amassar um frango com tijolos parece algo muito antigo. Os conselheiros dosimperadores romanos não inventaram o slogan “Um frango debaixo de cadatijolo” para combinar com o lema do pão e circo?

O tijolo moldava-se tão naturalmente a partir da boa terra – acrescente águae fogo alto (ecco fatto, terracotta) e a civilização começou a construir de umaforma grandiosa.

Os tijolos romanos eram mais compridos e estreitos do que os atuais, masqualquer um serve. Se você tem alguns à mão, deve lavá-los, deixá-los secarao ar livre e envolvê-los em algumas folhas de papel-alumínio. Ou, então,

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pode usar qualquer panela pesada. Eu usei uma Le Creuset de 8 quartos,cobrindo o fundo com papel-alumínio.

Ingredientes:2 dentes de alho1 punhado de salsaCasca ralada de uma laranja4 colheres de sopa de azeite de oliva extravirgem½ colher de chá de sal½ colher de chá de pimenta1 frango de 1,3 kg a 1,8 kg

MARINADA

2 colheres de sopa de vinagre de vinho tinto½ xícara de azeite de oliva extravirgem½ xícara de vinho branco

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 200 graus.Pique o alho e a salsa e misture com a casca ralada da laranja, 2 colheres

de sopa de azeite de oliva, sal e pimenta. Reserve.Lave o frango debaixo de água corrente e seque. Com tesoura para aves,

remova as pontas das asas, o excesso de gordura e retire a espinha dorsal.Separe-os para fazer caldo. Você pode retirar as costelas e o esternotambém.

Misture os ingredientes da marinada. Coloque o frango achatado, com apele para cima. Enfie por baixo da pele a mistura de alho, coloque namarinada e, em seguida, cubra e deixe marinando por algumas horas, ou,melhor ainda, da noite para o dia. Vire umas duas ou três vezes.

Aqueça 2 colheres de azeite de oliva numa panela de ferro, grande osuficiente para caber o frango (eu uso uma frigideira funda de 30 cm dediâmetro). Coloque o frango com a pele para baixo e pressione com os doistijolos limpos envoltos em alumínio. Cozinhe em fogo médio por 5 minutos; emseguida, coloque a frigideira e os tijolos no forno por 15 a 20 minutos. Depois

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disso, remova os pesos e vire o frango, cozinhando por mais ou menos 10minutos, até ficar no ponto. Corte em porções para servir.

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Andiamo a casa

Marzo è pazzo. Sim, março é um mês totalmente maluco. O ventopoderia me pegar e me depositar num outro mundo. A chuva bate delado, vira, avança para a frente e quase cai de baixo para cima. De umamochila debaixo da cama eu desencavo um casaco velho forrado de

alpaca e umas botas pretas gastas revestidas de pele artificial. O casacopreto macio, o twin-set verde-claro e as calças de seda que eu trouxe comigovoltam para dentro da mala. Março pode ser agradável, mas, para fora, saema roupa de baixo de algodão, os grandes suéteres e as calças de veludocotelê.

Entre rajadas de chuva forte, nós saímos correndo para caminhadas no arencharcado de umidade. O pilriteiro floresce em redemoinhos brancos e unspoucos narcisos abatidos debruçam-se dos terraços. As árvores de ameixasemitem um brilho rosado, que antecede a floração, e a grama alta,exuberante, cede escorregadia sob as nossas botas. Perdemos umaameixeira para os ventos tramontana. Várias cadeiras de jardim colidiramumas com as outras e vasos de plantas se desequilibraram e racharam. Nósvagamos à toa pelos campos, nos escondendo sob as árvores quando achuva voltava, conferindo os aspargos silvestres (ainda não) e a piscina donosso vizinho Alberto, onde vimos que o vento havia levado a lona de proteçãopara dentro d’água.

“Devemos incomodá-lo?”, Ed pergunta. Alberto está a milhares dequilômetros, em Tampa. “Ou deixar que afunde tranquilamente?”

“Vamos avisar ao jardineiro. Eu o vi na piazza esta manhã.”Os sessenta ciprestes que doamos para a nossa estrada estão se

desenvolvendo. Só um está adernado. Cada árvore nova é plantada perto deoutra enorme, antiga. Ao longo desta Strada della Memoria, os ciprestesoriginais, plantados depois da Primeira Guerra Mundial, homenageavam cada

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um dos soldados de Cortona mortos em combate. Ao longo do século, muitosdos seiscentos ciprestes tinham morrido. Quando fui premiada pela Barilla(não, não por ser a maior comedora de macarrão da Itália), transferi odinheiro para a comuna para restabelecer estes memoriais. Eu vigio cada umdeles. As árvores pequenas próximas das velhas gigantes me emocionam.Elas parecem antropomorfizadas, como crianças com seus pais altos. Nósvemos que os jardineiros da comuna podaram os membros mortos dossoldados quase centenários e cuidaram deles em alguns pontos com remédioazul.

Sempre que voltamos, passamos um pente-fino na nossa terra, comofazemos com a cidade, para ver as mudanças – o quanto as sebescresceram, que piscina foi cavada no vale lá embaixo, se os Castellisterminaram de construir a sua casa e se todos os muros de pedrasobreviveram às tempestades. Embora o inverno ainda reine, já é um reivelho; em breve, todas as princesas em tons pastel da primavera retornarão.Estamos nos reconectando com nossa casa, também, do modo mais rápidoque conhecemos. Desfazer as malas, visitar os vizinhos, reabastecer acozinha, comprar bulbos de lírio para o verão, plantar raízes de rosas, lavaras taças de vinho empoeiradas, reiniciar os computadores, empilhar os livrosque pretendemos ler no alto da prateleira – pronto, estamos em casa.

A primeira pessoa que vemos é Placido, nosso vizinho mais próximo, comsua mulher, Fiorella, e a filha, Chiara, a nossa família italiana. No anopassado, no dia 23 de setembro, nos Estados Unidos, Ed atendeu ao telefonee ouviu soluços. A voz de Chiara parava, voltava, parava de novo: “Zuccheroescorregou na colina que pavimentaram em Torreone e patinou para trás. Elecaiu e jogou o Babbo no chão.”

“Não! O cavalo de Plari patinou?”“O crânio dele bateu com força”, ela continuou, devagar. “Ele entrou em

convulsão.”Sempre procurando ver o lado positivo, ela disse que, por sorte, Carlo, o

amigo que vinha a cavalo atrás dele, era um oficial da polícia altamente

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treinado, que conseguiu impedir que Placido engolisse a língua – e, ao mesmotempo, chamar um helicóptero. Em uma hora, Placido estava sendo bemcuidado no hospital em Siena. As mensagens que recebemos de Chiara aolongo da semana diziam que a situação é grave, três grandes hematomas, eestou com medo. Ele ficou um mês em coma, saindo aos poucos do estadode choque com o que lhe acontecera. Nós vivíamos com a sua imagemescorregando para trás, caindo, caindo do cavalo, como São Paulo no quadrode Caravaggio em Roma.

Nós o visitamos em outubro, quando retornamos para a colheita deazeitonas, e encontramos o nosso amigo, este homem robusto, brincalhão,cheio de vida, com a saúde profundamente comprometida, fraco, ora agitado,ora distante. Os tubos enfiados na sua garganta, que ele puxava commovimentos bruscos várias vezes, quase não o deixavam falar. Ele não queriaficar no quarto de hospital junto com três homens moribundos, um dos quaisparecia já ter passado para o outro lado. Placido não parava de repetirAndiamo a casa, vamos para casa, por que o prendiam ali, Andiamo a casa,foi só um acidente de nada.

Nós estávamos preocupados, a família estava preocupada, a cidade inteirase preocupava. Aonde quer que fôssemos as pessoas diziam: “Como Placidoestá hoje?” Bandos de amigos o visitavam, levando sopas e tortas. Elecomeçou a melhorar assim que foi liberado para o seu falcão, o seu jardim, oseu cachorro e para a fartura de amor e da mesa em casa.

Antes de chegarmos à sua casa, nós o vemos caminhando de braços dadoscom Fiorella. Ele não mudou nada! Os olhos de Ed brilham ao abraçar oamigo. Fiorella, parecendo finalmente relaxada, diz que Placido está “quasepronto”. Está mais magro, com um vinco de cada lado do seu sorriso, mas éPlacido. Ficamos extremamente orgulhosos quando ele diz que somos asúnicas visitas das quais se lembra durante o período em que esteve internadono hospital. Ele perdeu o gosto por charutos e por beber grappa, de fatoperdeu um pouco do paladar, mas espera recuperá-lo. E ainda não estámontando. Zucchero foi passar uma longa temporada com os cavalos de um

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amigo. A imagem de Placido colocando o pé no estribo de novo me embrulhao estômago.

Nos meses em que esteve de cama, enfrentamos a insuportável sensaçãode imaginar Cortona sem Placido. Nós o amamos muito e ele representa aessência da vida toscana. Todos os dias de manhã, o ano inteiro, ele tomacafé no Banchelli, e com frequência repete a dose com outro grupo deamigos. Ele está casado, no velho sentido, com sua terra e seus animais,cuidando de seu falcão, do cavalo, das galinhas, coelhos e galinhas-d’angola.Com seu amigo Lucio, ele vasculha áreas secretas para encontrar maiscogumelos porcini do que os outros. Ele faz escudos para arqueiros e sacolasde couro. No verão, trabalha sem camisa, e eu pude ver a tatuagemdesbotada do Pégaso, o cavalo alado, no seu ombro. Um dia, ele apareceu enos deu duas argolas para guardanapos esculpidas em madeira de oliveira,com os nossos nomes e a data gravados a fogo. Na varanda, tem sempre umpássaro ou coruja que ele resgatou. As gaiolas que faz para a recuperaçãodeles são verdadeiras obras de arte popular. Um merlo, melro, com a asaesmagada, viveu quinze anos numa alegre casa amarela e vermelha. Eleassobia quando Placido passa. A hospitalidade da família Cardinali é lendária.Quando compramos Bramasole, logo no começo, ouvíamos as suas festas, acantoria noite adentro, as risadas. Da janela, eu sentia o cheiro da fumaçasaindo da churrasqueira e podia contar os carros estacionados na estrada.Ficávamos imaginando se um dia dois estrangeiros seriam incluídos numadessas noitadas. Após centenas de jantares compartilhados, a famíliaCardinali ainda simboliza as razões mais profundas para adorarmos estelugar. Falando conosco sobre a queda, Placido menciona casualmente que onome do helicóptero era Pégaso.

AQUELAS PRIMEIRAS VISITAS, quando tínhamos a solidão e todo o tempo do mundopara trabalhar a nossa terra e escrever poemas, capítulos e artigos,desapareceram faz tempo. Retornar no inverno recupera parte do tempo para

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privacidade e para visitar amigos fora da gloriosa, mas movimentada, estaçãodo verão, quando a nossa cozinha se enche de vapor de macarrão e sons dafaca picando, quando camas sobressalentes com frequência ficam ocupadascom hóspedes para quem é preciso mostrar Pienza, que desenvolvembronquites, ou raspam o para-lama do carro numa parede de pedra. Alémdisso, o inverno talvez seja a melhor época para viajar. O que é uma leve brisado Ártico comparada com não ter problemas com estacionamento, reservasou multidões?

Na semana que vem, vamos pegar o trem até Florença pelo prazer deexperimentar a cidade entregue de novo a uma atmosfera de intimidade edescoberta. Nesta estação, posso entrar em todas as igrejas e galerias, felizpor me encontrar sozinha, ou quase, com a arte. O guarda de segurançacochila ao lado do seu aquecedor. Os moradores do local recuperam a suacidade, passeando no crepúsculo de pedra em seus agasalhos de lã bemcortados e echarpes flutuantes, cumprimentando-se uns aos outros. Nastrattorie, os cozinheiros grelham linguiças e pombos. O coelho frito com erva-doce, as panelas de ribollita, as massas com funghi porcini são servidos. Nachuva fria, a arquitetura de repente parece mais destacada. A minha câmeraresponde ao ar lavado e devolve o brilho ensaboado do mármore, as sombrasdelineadas de estátuas, poças como espelhos disfarçados, o reflexo da PonteVecchio no velho rio verde.

Às seis da manhã, levando um cornetto quente da recém-inaugurada padariaaté uma ponte sobre o Arno, é possível ver a Firenze de Dante na água, a luzfresca escorrendo rio abaixo. Esta é a estação do chocolate quente maisespesso em elegantes casas de doces e bares, a estação dos delicadossanduíches de trufas com o chá da tarde. Florença no inverno me faz sonharcomo a Florença no verão não consegue.

Ed me revelou o segredo para viajar no inverno: planejar com base no clima.Vista-se para ele. Como fui criada num clima quente, sempre me esqueço devestir o casaco. Mas ele nasceu e foi criado em Minnesota e me lembra:camadas. Meias. Solas impermeáveis. Luvas. Assim estamos preparados

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para pequenas excursões a lugares pouco visitados, como a bela Mantova,onde a neblina pode esconder todos os ciclistas, ou Bagno di Romagna, ondeo vento pode ser congelante, mas o ar é tão intensamente puro que vocêchegaria a pensar que eles que o inventaram.

O VINHO TINTO no inverno exerce um fascínio que não me atrai quando faz calor.Os suntuosos, profundos Vino Nobiles, Brunellos e Super Toscanos podemsufocar os pratos de verão. Embora os toscanos quase nunca peçam vinhobranco, mesmo quando faz 37 graus, os produtores locais estão derrubandoesse preconceito com alguns vinhos generosos e pungentes. Eu faço o meupróprio estoque no verão, especialmente com o Astore, do nosso amigoprodutor de vinhos, Riccardo Baracchi, e com alguns dos brancos maisrecentes da região de D’Alessandro. Mas, quando o frio baixa, e no climatípico de outono, nossas taças maiores de Brunello estão sobre a mesa todasas noites, as garrafas para decantação cheias às seis horas para o jantar àsoito. Os Baracchis, Silvia e Riccardo, as pessoas mais hospitaleiras na faceda Terra, adoram trazer as suas garrafas para uma degustação vertical doseu Ardito. Conforme passamos pelos pratos e colheitas, posso provar oconcentrado elixir do verão seco, escaldante, de 2004, a suculência suave daschuvas de primavera de 2005 e a acidez do rápido congelamento para evitaros danos da geada de abril de 2006. Gosto de escutar os vinhateiros falandode seus vinhos. Como pais, eles veem as qualidades variadas de seus filhos,que os outros em geral não percebem.

Na cidade, Marco, cuja enoteca dá de frente para a piazza, e Arnaldo, donodo Pane e Vino, patrocinam aconchegantes jantares de inverno com umprodutor de vinho. Hoje, nós conhecemos o sorridente Paolo de Marchi no seusuéter vermelho-cereja. Suas propriedades de Chianti produzem Isole eOlena, por isso ele tem muito do que sorrir. Ele é da terceira geração deprodutores de vinhos cuja família começou no norte. Recentemente, Paoloadquiriu de novo a velha propriedade da família no Piemonte, onde seu filho

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agora produz vinhos. Entre aqueles que possuem vinhedos, os laços de famíliaparecem especialmente fortes. Muitos filhos e filhas seguem a tradição e, comfrequência, dão novas direções aos negócios.

A aconchegante trattoria em arcos de tijolos não comporta mais nenhumamante de vinhos. A sala está repleta de, é o que parece, taças. Cada lugartem sete. A baixa iluminação capta o brilho do cristal, carregando o ambientede energia. Paolo nos transporta pelo seu chardonnay, chianti, seus doiscepparellos (um puro uva Sangiovese) e dois syrahs. Com o chardonnay,começamos com crostini neri, o clássico toscano feito de fígados de frango, emostarda di peperoni, um condimento de pimentões, e uma pequena saladade feijões cannellini com soppressata. Como Paolo fala de cada vinho emitaliano, e depois em inglês, para o benefício de uns poucos expatriados, ojantar se estende noite adentro. Ao contrário de muitas degustações de queparticipei nos Estados Unidos, o vinho flui. Arnaldo não nos limita a provar umapequena quantidade de cada vinho, mas continua servindo enquanto aspessoas fazem perguntas. Quando chega a hora de provar o secondo, aminha atenção já está meio embotada. Lembro-me de um amigo na Califórniacujo mantra era: “Todos me parecem bons.”

Para o chianti vigoroso, Arnaldo escolheu um saboroso gnocchi con ragùfeito com carne de boi Chianina da região. A combinação não poderia ser maisgenuina. Eu gostaria de me levantar e citar Cesare Pavese: “Um gole daminha bebida”, ele escreveu, “e meu corpo pode sentir o sabor da vida / deplantas e de rios.”

Para os quatro tintos fortes, nos servem galinha-d’angola recheada ebatatas assadas. Nós devemos adivinhar: qual é o cepparello envelhecido,qual é o syrah envelhecido? Eu erro sempre. Não importa, a maioria erra,embora Ed consiga uma boa pontuação. A torta de frutas eu dispenso, masexperimento um gole de Vin Santo Isole e Olena, 2000. Tem gosto deentardecer à beira da fogueira num Dia de Ação de Graças, um cashmerejogado sobre as minhas pernas, versos de um poema passando pela minhacabeça. Eu gostaria de fazer um bolo de nozes, só para servir com este suave

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elixir. Imaginando uma taça deste vinho santo erguida em direção às chamas egirada pelo prazer de brindar e pelas cores do topázio, sinto uma saudadeimensa da minha filha, do meu neto, Willie, dos meus vizinhos escritores, atédo bobalhão labradoodle de Willie. Não é esta a melhor reação a um vinho,que o sabor provoque uma forte emoção? E talvez associações surreais? Olabradoodle brincalhão, de pelos encaracolados e ruivos, é exatamente da cordeste elegante vin santo.

Caímos na cama depois de uma da manhã, apreensivos com o despertadorprogramado para partirmos de manhã cedo. Adormecendo, capto a imagemicônica de um filme de Fellini, um helicóptero balançando um crucifixo sobreRoma. Mas eu o vejo movendo-se em direção a Siena, levando Placidoembora. Conforme as hélices se inclinam, Placido acena pela janela.

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Uma casa voadora

A teoria de Ed se confirma: um bom vinho não causa problemas no diaseguinte. Às nove horas, conseguimos sair de marcha à ré, ambos nossentindo muito bem. Partimos para Marche. Quase sempre as nossasviagens mais memoráveis são curtos passeios de carro, com um mapa,

uma bolsa de livros e uma muda de roupa.Se eu estivesse me mudando para a Itália hoje, talvez escolhesse morar em

Marche. A região é crivada de vilarejos intactos e campos exuberantes. Talveznão exista uma piazza mais divina do que em Ascoli Piceno. Beber chá frio nocafé retrô, observando o alvoroço diário de compras e visitas, enquantoassinalo no meu mapa outras cidades escondidas para visitar, é uma ótimamaneira de passar uma manhã de verão. Eu gosto especialmente da cidadede Macerata, onde sempre acontece um festival de ópera nessa época doano. A nobre Urbino talvez seja a joia da coroa, mas simplesmente se perderpor estradas secundárias nessa região define o que é um paraíso terreno.

Estou sempre lendo que Marche é “a próxima Toscana”. Isso é poucoprovável porque, com exceção da estrada costeira, transitar por estaprovíncia é bastante difícil. Ao atravessar Marche, vindo da Toscana, pareceque você está sempre atrás de um caminhão, ziguezagueando devagar,devagar, até o seu destino. Um trecho bastante acidentado dos Apeninosdesce serrilhando a região o tempo todo, no interior, de modo que estreitasestradas secundárias atravessam as montanhas. O mapa parece umesqueleto de peixe quando você o arranca de uma só vez. Mas poucasdessas estradas se conectam umas com as outras. Isto mantém a área nointerior bastante intacta e remota. Nós aceleramos, prontos para uma visita dedois dias a Urbino e Loreto, moradas dos principais quadros de Signorelli.

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DE LONGE, URBINO COM SUAS TORRES parece uma cidade criada por uma criançade seis anos esperta, com blocos de construção comprados por avósindulgentes. Domo, torres, campanile e prédios empilhados de tijolosdourados multiplicam-se e se erguem quando você se aproxima por umaestrada que sobe rapidamente. Uma fada com sua varinha de condão poderiasair voando de um arco, convidando você para dançar. Ou meninos do famosoclã Montefeltro local podem cruzar em disparada os portões, atrás de umbriga com alguns inimigos de longa data.

Entramos demais na cidade e imediatamente nos vimos na zona só parapedestres, diante de um vigile. Todo de botões de latão cintilantes e fitas, elese debruça do alto da sua autoridade pela janela – ah, não, vão nos colocarnuma masmorra Montefeltro – e de repente ri. “Ogni dieci minuti, gli stranierisenza occhi”, ele diz. A cada dez minutos, estrangeiros sem olhos. Ele traçacírculos no ar com o dedo indicador, mostrando como descer de novo amontanha e fazer várias curvas. Nós escapulimos morro abaixo e não vimos osinal que deveríamos ter visto, mas acabamos chegando de algum modo aonosso hotel, bem em frente ao imenso tesouro, o Palazzo Ducale – casa dolcecasa, lar doce lar dos acima mencionados Montefeltros.

Em pouco tempo, estamos tomando café no centro. Universitários lotam apiazza. O que está acontecendo? Se fosse a universidade onde ensino,estaria tendo início uma grande manifestação política. Mas não, eles estãoapenas entrando no bar para um expresso e conversando, conversando comoseus pais em piazzas por toda a Itália. Muitos usam coroas de louroarrastando fitas vermelhas. Devem estar se graduando com suas láureas,embora estejamos em março. Em um dos meninos, localizo um nariz deDante. Os cabelos louros-avermelhados de uma das meninas caem emcachos de Botticelli. São tão charmosos, poetas clássicos reencarnados eandando no meio da gente. O encantador amigo de La Primavera ri derepente, a boca bem aberta, a cabeça para trás. Posso ver seus molares.Como eles falam com seus corpos! Eles se curvam, gesticulam, dão tapinhasnas costas uns dos outros. Seus rostos sensíveis estão iluminados. Que

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centelha é esta no DNA, e por que outras culturas não têm isso? Se eunascesse de novo, não há duvida de que gostaria de ser uma estudanteitaliana com esses cabelos renascentistas.

Parece haver aulas por toda a cidade, inclusive no palácio. O destino faz jusao esclarecido Federico da Montefeltro. Ele reuniu à sua volta os principaisartistas da última metade do século XV, fazendo de Urbino, na distanteMarche, uma pequena Florença. Certamente os genes de alguns deles aindaafloram por estas partes. Talvez haja um Piero della Francesca ou umRaffaello em potencial entre estes estudantes.

“Não entendo esse ‘ogni dieci minuti’.” Ed olha ao redor. “Somos os únicosestrangeiros na cidade, com ou sem olhos.”

“Eu vejo alguns guias turísticos, mas em italiano.”Os finais de semana antes e depois da Páscoa são as épocas preferidas

dos italianos para viajar. Eles vivem segundo a expressão Natale con i tuoi,Pasqua con chi vuoi – Natal com os seus, Páscoa com quem você quiser.

No almoço, um grupo de professores participando de um congresso e umcasal de Milão são as únicas outras pessoas nas mesas. Meus ex-colegasestariam de tweed, cáqui (“americanos de calças baggy”, diz um amigo chiquede Cortona) ou de suéter. Estes acadêmicos aparecem de jaquetas de couro,echarpes amarradas casualmente e jeans bem cortados. Mas, como meuscolegas, professores em todos os lugares do mundo comem mesmo. Elesestão experimentando todos os pratos e várias garrafas de vinho. Depois deum tal banquete, o palavrório da tarde que vão enfrentar me faria dormir, mas,de algum modo, os italianos conseguem administrar o estupendo pranzo e vãoem frente.

Os clientes milaneses não são menos ambiciosos. O garçom lhes traz atravessa completa de antipasto, risotto, depois bifes. Eles consultam o mapada cidade e seus guias. Esses são momentos deliciosos para o viajante – umexcelente almoço com alguém que você ama, examinando o The Blue Guide eo Gambero Rosso, um fim de semana para explorar um novo lugar e um aooutro.

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Nós comemos os nossos míseros scaloppini e salada, e um minúsculoquarto de vinho local. O restaurante – a sala dos fundos de um bar popular –parece um hotel provinciano de cinquenta anos atrás: toalhas de mesa comframboesas lavadas muitas vezes, pratos de majólica nas paredes e plantasraquíticas desesperadas em busca de luz. Suas escassas gavinhas foramincentivadas a subir ao redor das janelas. Literalmente rastejantes. O garçom,preocupado por não termos o suficiente para comer, traz um prato do queparece ser pão achatado frito. “Cresce sfogliati, experimentem.”

“Humm, parece bom. O que é?” Ed passa a travessa. “Sfogliati significa oquê? Sem folhas? Parece uma brincadeira.”

“Parece aquele pão indiano com cebolas. Nan?” Ed rasga um pedaço dodelicioso pão chato em camadas com queijo derretido no meio. Seja qual for aabstinência que estávamos praticando, ela saiu voando pelas grandes janelas.

“Ou quesadilla.” A minha tem uma camada de acelga picada. “Ou massafolhada achatada.”

Perguntamos ao garçom, e ele simplesmente sacode os ombros. “Não, nãoé uma especialidade nossa, é algo do local. Vocês encontram em todo lugar.”

Nós comemos tudo e pedimos mais. E visto já termos exagerado, pedimosainda uma torta de limão e nos demoramos tanto quanto os vorazesprofessores.

Temos o resto da tarde para esbanjar a nossa atenção com pátios abertos,dois obeliscos egípcios, pedras douradas, e com as intermináveis salas doPalazzo Ducale. Os famosos perfis do duque e da sua mulher pintados porPiero della Francesca por direito deveriam estar aqui, visto que este é o seular, mas eles pertencem, em vez disso, aos Uffizi, em Florença. Eu me lembrodeles da primeira vez em que vim à Itália. O duque com seu chapéu e roupasvermelhos olha para sempre para a sua segunda mulher, que lhe deu setefilhos e morreu aos vinte e seis anos de idade. Não se pode ver o olho perdidoà direita, embora seja visível a cunha faltando no alto do nariz, ambos osdesastres resultantes de justas. Pena que o seu surpreendente rosto nãoesteja pendurado perto do seu pequeno e curioso studiolo. Interessante como

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esta espirituosa sala-dentro-de-uma-sala ainda exista. Este era o seuesconderijo? Ninho de amor? O velho duque deve ter sido um apaixonado porintarsio, marchetaria, como era por pintura. O studiolo é revestido deprateleiras em tromp-l’oeil com instrumentos musicais e de astrologia, umrelógio, janelas de treliça realistas semiabertas. Os artistas obviamenteadoravam brincar com a perspectiva e conseguiam criar vinhetas que refletiamos valores e desejos do duque. Lá dentro, você tem a sensação de que asimagens são codificadas e pessoais. Talvez ninguém jamais analise comocada imagem se relaciona com algum aspecto da vida de Federico, mas,como um observador, você percebe que o studiolo está carregado desímbolos pessoais.

De todos os palácios que visitei, este parece o mais habitável, com suassedutoras lareiras, a variedade de tetos decorados e os extravagantesalizares que atraem você para dentro de aposentos com aquelas mágicasproporções que fazem você se sentir bem e satisfeito.

Esbarrar em dois dos quadros de Piero della Francesca da Toscana é comoencontrar um velho amigo em algum aeroporto remoto. Paramos diante dedois dos seus maiores sucessos – O flagelo de Cristo e a melancólica,arcaica Madonna de Senigallia. Embora eu tenha vindo atrás de doisSignorelli desta vez, paro um bom tempo diante da anônima La Città Ideale edepois diante de La Muta, de Raffaello, um nativo de Urbino. Ele nos legou oretrato de uma mulher mais misteriosa do que a Mona Lisa. A muda pareceter muito a dizer, e daí a tensão do rosto sensível, reservado, e das emoçõesenclausuradas por trás do seu olhar enigmático. Ela foi recortada da suamoldura e roubada, junto com os dois Della Francesca em 1975 e encontradano ano seguinte, ainda muda a respeito de toda a experiência.

Ah, meu Signor Signorelli! Encontramos sua obra exibida de forma menosperceptível do que a do seu professor, Piero. A Virgem encontra-se numa salaquadrada, ladeada pelos apóstolos. O grupo poderia estar esperando paraser atendido pelo dentista, exceto que todos os apóstolos têm chamaserguendo-se de suas cabeças e o Espírito Santo paira sobre eles. Penso que

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acabaram de receber o dom das línguas, para que possam espalhar osevangelhos. Lutando há tanto tempo com a língua italiana, gostaria de terrecebido a mesma visita. Os quadrados multicoloridos no chão ficam emprimeiro plano, como se Luca realmente gostasse demais dos desenhosabstratos do mármore. O espaço aberto do chão obriga você a ver o grupo deescolta como um quadro estático. A pintura originalmente era a lateral de umestandarte que deveria ser içado no alto durante as procissões pelas ruas. ACrucificação, pendurada ao lado, era o outro lado do estandarte. Embora oCristo crucificado reine contra um céu emudecido, toda a atenção emocionalestá centrada na sua mãe lá embaixo. Ela desmaiou de tristeza e jaz no chão,cercada por mulheres atenciosas.

A VANTAGEM DE JANTAR TARDE talvez esteja nas três horas antes no hotel. Eutrouxe o meu bagno de schiuma, banho de espuma, de chá-verde e nossoquarto tem uma banheira grande o bastante para duas pessoas seespremerem lá dentro, relaxarem e rirem.

Segundo o livro As vidas dos mais excelentes pintores, escultores earquitetos, de Vasari, Signorelli vivia bem. Como visitante na corte do duque,ele provavelmente jantava bem. Se estivesse aqui esta noite, talvez fosse,como nós, à Trattoria del Leone, um lugar animado repleto de acadêmicoslocais. Nós avistamos logo Olive all’Ascolana no cardápio. Estas azeitonasfritas são originárias de Ascoli Piceno. Servidas no país inteiro, elas costumamser pré-embaladas e, portanto, reduzidas – nada que é frito deveria viajarmais longe do que do fogão para a mesa. No seu próprio território, elasliberam os seus três sabores e camadas de textura – o exterior crocante, aazeitona polpuda, o salame picante (ou uma mistura de carnes) no interior.Perfeitas com uma taça de prosecco enquanto você avalia o cardápio. Osmarchigiani comem bem. O seu passatelli in brodo certa vez curou umaenxaqueca de Ed. Não exatamente um macarrão, o passatelli parece umespaguete curto e grosso, mas é feito de queijo, farinha de rosca, ovos e noz-

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moscada, depois cozido no caldo – alimento para a alma que também éservido às crianças com resfriado e pessoas idosas. Mais estimulante é ofamoso cozido de peixe, brodetto, feito com nada mais, nada menos do quetreze tipos de frutos do mar pescados no Adriático. Estes marchigiani sãograndes comedores de carne também. Eles gostam do castrato, que é umcordeiro prestes a se tornar carneiro, e robustos pratos de fígado de porco.Em restaurantes mais rústicos, às vezes é possível ver vários modos depreparar testículos. Eu fico por aqui. Ed gosta de quase todas as outraspartes do porco e aprecia o ciauscolo, um salame macio para espalhar nopão.

Ed oferece uma mordida da sua linguiça com caciotta derretida, queijo deleite de ovelha e vaca da região. Ele gosta do meu coelho assado também,então trocamos. No final, experimentamos um queijo di fossa local. Fossasignifica fossa mesmo, onde o queijo maturou, mas infelizmente eu sempreassocio a palavra com o meu primeiro conhecimento horrível que tive dela –quando me vi diante de fosse biologica abertas, as fossas sépticas. O queijoé bom mesmo assim – picante, complexo, de sabor prolongado. Ed pede umdigestivo local, uma bebida digestiva para tomar depois do jantar, e oproprietário traz Liquor d’Ulivi. “A própria essência da azeitona”, ele nos diz.Semente, folha, casca, fruto? Os sabores antigos, muito antigos, têm gostode história e têm uma leve sugestão da luz do sol da primavera passando porentre os galhos?

É fácil imaginar uma vida dando aulas em Urbino, tendo uma carreiraestimulante dentro dos confins da arquitetura de contos de fadas. Como emoutras incríveis cidades nas montanhas, pode-se passear por Urbino em umahora e ver o lugar, ou se estabelecer por uma década e não terminar nunca.

EMBORA O VENTO AINDA SEJA CORTANTE , pereiras, mimosas, forsítias e olaiasnorte-americanas foram convencidas a florir e as montanhas estão forradasde verde intenso. Estamos indo de carro para Loreto, sede da casa da Virgem

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Maria, transportada pelos ares por anjos em 1294 e soprada numatempestade da Croácia, onde havia feito uma pausa no caminho ao sair deNazaré. Acredite nisso e sua fé pode vencer qualquer obstáculo. Ficofascinada com a ideia de uma casa voando sobre o mar. Pesquisadores destefenômeno descobriram que uma família de marinheiros mercantes chamadaAngelli trouxe a construção de pedra da Palestina, onde corria risco dedestruição, de volta para Loreto. Outra linha de pensamento, menos atraenteporque não tem nenhuma casa sendo transportada pelos ares: os cruzadoseram às vezes chamados de “anjos” e sempre voltavam com suveniressagrados. Essa também era uma época em que relíquias sagradas eramincessantemente comercializadas e roubadas. Todas as igrejas queriam o seumemento ósseo ou fragmento de tecido, ou cacho de cabelos do santo. Osataques de surpresa, conflitos e negociações em torno destes objetossagrados compõem leituras fascinantes1 e certamente compreendem um doscapítulos mais excêntricos da história da Igreja. Loreto, com a aterrissagemda morada sagrada, tirou a sorte grande. A datação por carbono prova que osvestígios de calcário e cedro, não desta localidade, são do período em queMaria viveu.

Loreto deve com frequência ficar cheia de peregrinos, mas hojeencontramos a cidade fantasmagoricamente vazia. Ao longo de um amontoadode quiosques abertos, mulheres muito idosas esperam os pellegrini ausentesque poderiam comprar seus suvenires religiosos. O inusitado campanileredondo e a orgulhosa basílica ancoram uma larga piazza flanqueada porgalerias de um lado e simpáticos prédios religiosos do outro. Eu leio que osino do campanile pesa onze toneladas. Adoraria ouvir as suas longasbadaladas ressoando nas pedras; se ele começasse a soar, certamente osfiéis se materializariam de repente e milagres ocorreriam de novo na casa daVirgem.

“Quieto como o dia depois do Juízo Final.” Ed tira algumas fotos. “Ondeestá todo mundo?”

“Foram todos para o céu. Como é que não sabíamos que este lugar era

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tão... cheio de força? E a impressão é tão leve. Essa pedra – marfim, masquente.”

“Você acha que alguém já fez um estudo sobre campaniles? O de Città diCastello não é redondo, também?”

“Ah, com certeza! Você não acha que alguém estudou cada uma das pedrasna Itália? Esta é encantadora, como uma vela alta de altar.”

MUITOS ARTISTAS depositaram sua veneração em Loreto: Sansovino, Reni,Borromeo, Lotto, Pomarancio, meu amigo Signorelli, Sangallo e outros. Dentroda igreja, a Santa Casa de Maria, talvez seja o maior atrativo, mas oimpressionante entorno de mármore de Bramante faz com que este lugarmereça um desvio. A casa da Virgem está envolta em mármore comesculturas rebuscadas retratando cenas da sua vida. A melhor parte mostraGabriel, o anjo da Anunciação, diante da Virgem, de perfil e atenta. Sansovino,que esculpiu esta seção, conseguiu dar a ilusão de que o anjo está desafiandoo peso da pedra; ele parece ter aterrissado com um passo etéreo. Um bancode mármore cercando a casa tem sulcos duplos desgastados na pedra pelosjoelhos de peregrinos que a rodeiam como penitência.

Até uma grande descrente da história como eu tem de sentir que o interiordesta minúscula casa sagrada transcende a lenda. Talvez seja a sóbriaestátua negra da Virgem olhando lá de cima do altar. Ela substitui uma outra,supostamente esculpida pelo apóstolo Tomé, que foi destruída num incêndio.Talvez sejam as humildes paredes de tijolos empilhados ou apenas porque eusinta uma intensa claustrofobia, mas a inscrição Hic Verbum Caro Factum Estme dá calafrios. Aqui a Palavra se fez carne. Talvez alguns tijolos e tábuasforam trazidos por um monge. Se, se, se Maria nasceu aqui, recebeu o anjo,criou o Menino, então isto é o mais próximo que se pode chegar da raizprincipal do cristianismo. Um verdadeiro fiel neste local teria de desmaiar oureceber do poder do lugar o dom das línguas. Um fiel talvez ecoasse asublime crença de William Sloane Coffin. “Eu amo a imprudência da fé”, disse

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ele. “Primeiro você salta, depois cria asas.”Sou atraída. Poderosamente. Mesmo na faculdade, eu era fascinada por

relíquias. Caminhando num cemitério em Nova Orleans, encontrei umavértebra perto de um túmulo desmoronado. Eu a guardei numa pequena caixade vidro e rotulei cuidadosamente em escrita caligráfica vértebra da Virgem.Em pouco tempo, eu tinha uma prateleira na minha estante de livros dedicadaàs minhas relíquias. Dente de São Marcos, concha do fundo do MarVermelho, lasca da madeira da cruz, frasco com lágrimas da Virgem, umapedra da estrada para Damasco, pequenos veios de quartzo que eu chameide lágrimas que Jesus chorou. Elas eram falsas, mas eu achava queprovavelmente noventa e nove por cento daquelas suspensas sobre altaresem relicários de ouro foram recolhidas do mesmo modo. A minha prateleiraera um local de devoção, por mais estranho que fosse, junto com livros depoesia e teatro grego.

Mais tarde, comecei a colecionar ex-votos, as pinturas itinerantes em lata oupedaços de madeira para registrar agradecimentos. Fiquei atraída por elesdepois de ver a Imaculada Conceição, uma igreja em Real de Catorce, umacidade fantasma de mineradores no México. Eu achava, e ainda acho, oimpulso de agradecer associado ao gesto de fazer arte uma das maisprofundas expressões humanas. Em geral, um ex-voto mostra um acidente, talcomo uma carroça virada, o condutor quase esmagado, mas salvo pelasagrada intervenção de um santo ou de Maria, que aparece pairando no céu.Um dos meus achados de 1929 mostra um homem caindo de uma cadeirabamba quando atarraxava uma lâmpada. Felizmente, um santo interveio noseu destino. Muitas são cenas de crianças doentes com os pais rezando àbeira do leito. Quase sempre as iniciais P. G. R. e a data aparecem no céu.Per Grazia Ricevuta, por graça recebida. Como humanista e panteísta, nãoposso deixar de acreditar em graça recebida, embora o quê, o onde, oquando e o como da graça continuem sendo um mistério para mim e estejamirremediavelmente interligados com a graça não recebida: sofrimento. Masvenerar um minúsculo fragmento do passado, sim, essa eficácia me comove.

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Toque o objeto e sinta o tempo voltar atrás: esse pedacinho áspero do mantode São Francisco em San Francesco em Cortona, o colar de âmbar da minhamãe, o primeiro cacho dos cabelos louros e macios do meu neto, a coroa deespinhos que fiz com amoreiras silvestres, o vestido de casamento do séculoXIX pendurado no meu escritório, o cabo estragado pelo uso do batedor quebateu muitas claras em neve tantos anos atrás.

ENCONTRO A MÃO SINGULARMENTE contida de Luca numa pequena sacristiaoctogonal. A delicada marchetaria dos gabinetes representa os mantos,censores e livros de oração guardados lá dentro. Signorelli trabalhou naSacrestia di San Giovanni em 1479, cobrindo o teto com painéis dosapóstolos, todos ocupados escrevendo seus evangelhos; me agrada pensarnos apóstolos não como missionários veteranos, mas como escritores. Dacúpula, anjos musicais luminosos – suas musas? – acompanham o processo.Este é um aposento delicado, onde nada dramático acontece, exceto quandoo incrédulo São Tomé cutuca Jesus na sua chaga. Literalistas como ele sãosempre grosseiros.

Eu me pergunto o que Luca pensava da “translação” da casa da Virgempara o santuário de Loreto e se ele algum dia teve a ideia de pintar o famosovoo. O tema mais tarde capturou a imaginação de Saturnino Gatti, que pintouuma versão decorosa em 1510, e depois Tiepolo, que cobriu o teto de umaigreja em Veneza (bombardeada na Primeira Guerra Mundial) com um bandode anjos nadando pelo céu, segurando a casa no ar.2 Uma casa voando pelocéu. Chocante e magnífico! Se eu saltar, crio asas? Certa vez, tentei voar deum celeiro com asas feitas com um lençol velho e madeira balsa. Por sorte, sóperdi o fôlego.

Adoro a ideia de uma casa sendo transportada. Compro um medalhão demetal da casa em um dos quiosques de suvenires. Afinal de contas, osastronautas da Apollo, na sua improvável casa voadora, levaram um destespara a Lua.

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FICO SEMPRE ENERGIZADA PELA SINERGIA de um projeto literário. Misteriosamente, oque você precisa parece chegar até você como um beija-flor que se aproximade um hibisco. Passando os olhos pela livraria do Palazzo Ducale, pego umcartão que anuncia uma exposição de obras de Signorelli começando hoje novilarejo de Arcevia, não muito distante do nosso caminho para casa. Parachegar a Arcevia, você vai subindo em zigue-zague e chega a uma ruacomprida e estreita ladeada por fileiras de casas baixas e abrindo numapiazza. Parece uma cidade na Espanha: fechada e secreta. Fechada para osvizinhos, fechada para a sua estupenda vista, exceto por uma abertura nosfundos da piazza.

Três importantes Signorelli estão expostos na Igreja de San Medardo, equem é ele? O interior, tão diferente da maioria das igrejas italianas, temparedes pálidas como suco de limão, que lançam um brilho vitrificado de luztransparente nos quadros. Esta é a minha prova de que o melhor de Cortona,meu amico Signorelli, é escandalosamente subestimado. Estes três quadrosdominam toda a igreja, tornando a minha decepção inicial – apenas três obrasem exibição? – absurda. Dois quadros permaneceram aqui para sempre, ondedeveriam estar. A régia e magnânima Madonna in Trono con Bambino, de1508, foi trazida da Pinacoteca di Brera, em Milão, de volta para casa emArcevia. A grande Madonna, com santos, desde então perdeu seus painéis,predela e colunas laterais para a Alemanha, Inglaterra e, mamma mia, SanDiego, tão longe de casa. Não obstante, as pinturas restantes fazem parar atéum menino com grave deficiência mental, que os pais conduzem de um ladopara o outro da igreja, guiando-o na tentativa de apreciar a exposição, emboraele grite e peide, criando ecos. Ele tem dificuldade para sustentar a cabeça,mas olha encantado o rosto sublime da jovem Virgem. Um véu de paz parececair sobre ele, oriundo do olhar melancólico da Virgem.

Signorelli com frequência colocava um ponto focal dominante diante do seutema principal. Neste quadro, um chapéu vermelho de cardeal está no chão nocentro do primeiro plano. Talvez Signorelli pretendesse indicar uma associação

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subliminar com a futura crucificação do adorável menino que a celestial mãeadolescente segura com tanta delicadeza. Ou quem sabe ele apenasgostasse muito da forma e da cor e quisesse pintar um chapéu vermelho comuma das suas inúmeras Madonnas.

Do lado oposto a uma peça muito elaborada de Della Robbia, numa capelalateral, encontramos o Batismo de Cristo por João Batista, de Signorelli. Oquadro chama atenção. Não inteiramente obra do pincel do mestre, a pinturaexibe uma das preocupações de Signorelli: o corpo masculino mostrado naplenitude da sua forma – e em nenhum lugar mais do que aqui, em que Jesusestá de pé no rio, com as pernas visíveis através da água límpida que lhe bateno meio das canelas. Dois outros esplêndidos espécimes masculinos estão àvista ao fundo. Os Cristos e santos de Signorelli são físicos, masculinos ejamais sentimentalizados. Deus, numa explosão de glória, olha lá de cima,enquanto João, com as suas peles de animal características, realiza obatismo. “Os bebês desta cidade são batizados podendo fixar os olhos nisto”,diz Ed.

Sobre o altar, a própria Madonna e o Menino da igreja presidem naesplêndida moldura original, com todos os painéis de santos e cenas intactos.Lá está o misterioso Medardo, em destaque junto com os santos Sebastião(alvo humano para flechas), João, Paulo e vários outros. Um é Roque, e o queele está fazendo ali embaixo no canto inferior direito? Girando? Abrindo umtalho na perna? Nas pilastras, quatorze retratos menores emolduram o todomagnífico. Nos degraus do trono da Madonna, o políptico está assinado LucasSignorellus Pingebat. Suponho que Pingebat seja “pintor” em latim, mas nãosei por que a palavra me soa engraçada e, na tentativa de não rir, a minhaconcentração nos episódios pintados nas predellas se desfaz. Há quinhentosanos, os fiéis de Arcevia olham para este políptico quando estão a caminho doaltar para receber a comunhão. Este pensamento me faz parar ao perceberque sou uma das milhões de pessoas numa longa linha do tempo a erguer osolhos para contemplar as histórias retratadas, a dar as costas e caminhar devolta pela nave e sair para o dia azul.

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Talvez nesse momento eu estivesse conectada subliminarmente comMedardo. De volta a Bramasole, procuro por ele num guia de santos edescubro que foi retratado com frequência “rindo loucamente”, ou sendoprotegido da chuva pelas asas abertas de uma águia. Este acontecimento nainfância lhe dá o dom de proteger contra o mau tempo. Preciso me lembrar deobservar o seu dia santo, 8 de junho. Se chover, haverá quarenta diasseguidos de umidade. Ele é um santo francês – Medard, que, de algum modo,passou a ser venerado na remota Arcevia. Eu gosto dos seus atributosmísticos: seu cavalo deixava pegadas na pedra. O outro santo misterioso,Roque (em italiano, Rocco), também é francês. Ele viajou para a Itália,curando milagrosamente as vítimas da peste por onde passava, inclusive emRimini, no Adriático. A doença acabou por cobrar dele seu tributo e ele foipara os bosques morrer, mas sobreviveu porque um cachorro começou a lhetrazer pão. Suponho que, na imagem em Arcevia, ele esteja exibindo umaferida na coxa provocada pela peste, embora eu ainda não saiba o que possaser a coisinha com cara de carretel que ele segura. Ao ler que ele é o santopatrono dos cachorros, fico pasma. Quando meu neto Willie ganhou umcachorro de presente de Natal, do nada ele o chamou de Rocco. Ed acha que“roque” é uma onomatopeia para latido – roque, roque.

ESTAMOS TENDO OS NOSSOS QUARENTA DIAS de umidade agora mesmo. Ed faz asua sopa de inverno aquece-o-coração com couve, feijão-branco e linguiça. Eucoloco flutuando por cima bruschette, torradas com azeite de outubro – e esseé o jantar.

Quando tiver cem anos, amparada na piazza com uma revigorante taça degrappa, me lembrarei dos momentos mais felizes da minha vida, estas noitesdiante da lareira, com nossas bandejas de estanho equilibradas sobre osjoelhos, o aroma da sopa de inverno misturando-se com a fragrante madeirade oliveira, as velas acesas, o decantador pela metade com vinho negro, comoutro dia sobre o qual falar, o vento escapando por baixo da porta, e as

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castanhas assadas depois, Ed sacudindo-as sobre as brasas, descascandorápido e me entregando uma – estas noites para recordar são paradigmas. Eupego um livro e vou para a cama, deixando Ed diante da lareira para olhar epensar o que ele pensa, tomar notas no verso da conta de luz, talvez cochilaro suficiente para que eu acabe por chamá-lo lá de cima: “É tarde. Acorda.Vem pra cama...”

A PROCISSÃO DA SEXTA-FEIRA SANTA tem de ser cancelada por causa da chuva.Os participantes carregam uma cruz pesada e uma estátua de Maria paramuitas igrejas, parando em cada uma delas para uma bênção. Com tempobom, a jornada é dura, difícil, mas, sobre pedras escorregadias e com umvento gelado, melhor recorrer à trattoria de Paolo para um prato de macarrãocom molho de javali. O tempo continua horroroso. Devemos começar aconstruir uma arca?

Este ano, o meu aniversário cai na Páscoa e somos convidados para opranzo da família Cardinali. Não posso imaginar um lugar onde eu preferisseestar. Placido grelha um cordeiro inteiro na lareira. Somos vinte pessoas àmesa. Parte da família está faltando ao banquete. No outono, Umberto, umsobrinho, sofreu um desastre com o seu pequeno avião. Seus pais, irmãs eirmãos ainda estão tristes demais para aparecer. Meu neto e minha filha ligamdurante os antipasti e cantam “Parabéns para você”. Sem ninguém parachorar, eu acho que isto me fez ter dois acessos de choro hoje. Sentindo afalta deles e, depois, durante a oração, quando todos se levantam juntos e osobrinho Umberto está morto e todos sentem a sua impossível ausência... ePlari, com seu terrível acidente, agora sorrindo, tendo assado a carne paratodos, como de costume. E mais um ano acumulado por mim.

Lá fora, o vale é obscurecido pela chuva e pela nebbia, névoa, tão maisexpressivo do que “fog”, como se diz em inglês. Dentro de casa, o ambiente éaconchegante e familiar. O pai de Simone, que perdeu a esposa no invernopassado, fica sentado sem dizer uma palavra, mas come tudo que vê pela

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frente. As filhas de Anna, todas fumando na extremidade da mesa. A pequenaClaudia, crescendo para se tornar uma beldade, o seu riso como umacampainha de bicicleta. Fiorella trazendo os raviólis, os crepes de cogumelos,tudo delicioso. Claudio, nosso chefe dos carabinieri, bonito como um íconebizantino, nos dizendo que hoje alguém derrubou vasos de flores em Camucia.Grande cena de crime! Placido trinchando. Todas as mulheres levantando-sede tempos em tempos para retirar os pratos, reaparecendo com tigelas declementini, as pequenas tangerinas sicilianas e a torta de chocolate deAurora. Charutos toscanos acesos, cartas de baralho jogadas sobre a mesa.A grappa servida. No final, outros vizinhos, amigos, primos começam achegar, cada um trazendo um enorme ovo de chocolate com um brinde dentro.O afeto circulando ao redor da mesa parece aquele salto que faz você criarasas.

Essas mesas compridas, essas refeições intermináveis. O espeto girandona lareira e as galinhas, aves ou carnes assando enchem a sala de aromasapetitosos do velho mundo. Eu já me sentei de costas para a lareira umascem, duzentas vezes. E a sala, tão conhecida como o meu lar da infância.Fotografias escoradas por toda parte, um piano de armário. No final, umaestante de livros, com sofá branco e cadeiras, e uma mesa redonda no meiorepleta de livros. Mas é a mesa de jantar – uma mesa longa para vintepessoas, ou vinte e cinco apertadas – que domina. Isto, afirma ela, é o queimporta, uma copiosa disposição para a família e os amigos, com o fogoaceso. O sofá se torna simplesmente um lugar onde casacos se empilham, àsvezes com crianças cansadas esparramando-se por cima, sonhando, semdúvida, até serem despertadas por seus pais e saírem cambaleando paranoites frescas com céus incrustados de estrelas.

Páscoa. Ele ressuscitou? Uma casa voou? A primavera se aproxima. Nósvoltamos a pé para Bramasole de braços dados com mais uma ótimalembrança para o futuro. A nossa casa assoma no alto da estrada, lançandoluz em painéis dourados no nosso jardim deserto. Como é misteriosa umacasa sozinha. Nós entraremos nela e os aposentos serão nossos. Neste exato

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momento, Bramasole pertence a si mesma. Eu começo a cantar. You are lostand gone forever, oh my darlin’ Clementine… A chuva cai de mansinho, comose alguém sustentasse um gigantesco regador sobre nossas cabeças, nosencharcando delicadamente para germinação nos próximos dias ensolarados.

ZUPPA DI CAVOLO NERO, CANNELLINI E SALSICCESopa de couve, feijão-branco e linguiça

12 a 14 porções

A couve é conhecida por outro nome, muito mais vistoso, especialmente emitaliano. Cavolo Nero, couve escura, talvez não evoque status de super-herói,mas está perto. A couve parece invencível e é famosa por tornar quem acome mais invencível também. Ela também é chamada de couve-dinossauro(ou, ainda, lacinato), talvez porque suas folhas pareçam as costas de umlagarto. Essas folhas finas cheias de calombos rangem. Não confundir cavolo,ênfase na primeira sílaba, com cavallo, ênfase na segunda, ou você estarápedindo cavalo negro, e em certas partes do mundo é capaz de encontrar.Saudável e boa para a alma. Eu gosto de feijões-brancos deixados de molho ecozidos, mais do que dos enlatados.

Ingredientes:2 linguiças italianas, sem pele e esfareladas2 colheres de sopa de azeite de oliva2 cebolas picadas2 dentes de alho bem picados2 quartos de caldo de galinha1 xícara de vinho branco6 galhos de tomilho1 maço de couve lavada e picada4 xícaras de feijões-brancos cozidos

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Modo de preparar:Refogue a linguiça esfarelada no azeite até ficar marrom. Reserve. Refogue

as cebolas e os dentes de alho até ficarem transparentes. Acrescente aocaldo de galinha numa panela grande. Adicione o vinho e cozinhe até o álcoolevaporar, depois acrescente o tomilho e a couve. Deixe ferver, tampe ecozinhe em fogo baixo por 15 minutos. Junte a linguiça cozida e os feijões edeixe em fogo brando por mais 15 minutos.

CALDARROSTECastanhas assadas

Nós colhemos cestas de castanhas no outono e temos de nos apressar –enfrentamos a concorrência de todos os javalis da área.

Vamos em busca das castanhas, ou das Castanhas. As últimas sãomarrone, do tipo com que se fazem marrons glacés, aquela Castanha doceaçucarada. Eu poderia comer uma caixa inteira, se me deixassem.

Gostamos de assar os dois tipos na lareira, tanto pelo perfume como pelosabor. É preciso dar um corte na casca da castanha, senão ela explode. Comuma faca bem afiada, cuidadosamente faça um talho no lado chato. Empilheno assador de castanhas e coloque-o sobre carvões quentes (não em fogovivo) por cerca de 5 minutos e, em seguida, vire-o ou agite bem pararedistribuir as castanhas. Depois de mais 5 minutos, espete uma com a faca.Ela deve sair com facilidade. Despeje numa tigela, deixe esfriar apenas osuficiente para segurar e então descasque-as.

No forno: preaqueça a cerca de 220 graus e espalhe as castanhaspreparadas numa travessa refratária. Asse por 20 minutos e então comece aconferir a cada 5 minutos.

OLIVE ALL’ASCOLANA

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Azeitonas de Ascoli Piceno

Serve de 6 a 8 pessoas numa travessa para antepasto

Os cinquenta mil ascolani, o povo que vive na cidade de Ascoli Piceno, naregião de Marche, moram no entorno de uma das piazzas mais belas da Itália,a Piazza del Popolo. Nos cafés, todos beliscam estas azeitonas fritasrecheadas, uma iguaria local que é famosa em toda a Itália. A azeitonapreferida é a da região, a tenera ascolana, bem grande, verde, com umcaroço pequeno. A receita também é chamada de Ascolane all’ascolana, ouseja, azeitona ascolana à moda da cidade de Ascoli Piceno.

Se não conseguir achar a azeitona ascolana, e provavelmente é isso que vaiacontecer, use azeitonas grandes depois de retirados os caroços.

Ingredientes:Óleo de amendoim para fritar20 azeitonas grandes, sem caroços250 gramas de salame italiano, bem picadoFarinha, ovo batido e farelo de pão em três travessas separadasSal e pimenta

Modo de preparar:Recheie as azeitonas com o salame. Passe na farinha, depois no ovo e, em

seguida, no farelo de pão. Aqueça o óleo numa frigideira até mais ou menos180 graus. Frite até ficarem douradas, virando quando necessário. Escorraem toalhas de papel e tempere com sal e pimenta.

RECHEIO ALTERNATIVO : Com uma bisnaga de confeiteiro, tente rechear comuma mistura de alho, anchovas picadas e raspa de limão siciliano.

BRODETTOCozido de frutos do mar

6 porções

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Se você olhar para um mapa topográfico da Itália Central, vai ver os Apeninos(Appennini), uma cadeia de montanhas que forma a robusta e bem-articuladaespinha da Itália, dividindo o país em dois. Do lado oriental, o lado de Cortona,a cordilheira dá para amplas planícies férteis que terminam nas águas doTirreno, a parte toscana do Mar Mediterrâneo. Não existe uma paisagemassim do lado ocidental dos Apeninos, onde as montanhas e o mar têm umarelação mais íntima. Em parte, o motivo de a região de Marche não ter sidotão explorada quanto a Toscana são as montanhas, por todo lado, dificultandoo deslocamento. Naturalmente, os marchigiani vão procurar no mar o seualimento. De cima a baixo da costa adriática, você vai descobrir que todos quepossuem um caldeirão têm uma receita de brodetto.

Se Cole Porter fosse italiano, talvez tivesse escrito: “Você diz brodetto, eudigo buridda; você diz cioppino e eu digo cacciucco...” Cozido de peixechamado por qualquer outro nome soa bem melhor. Em italiano, o que vocêtira do mar para comer chama-se frutti di mare, frutos do mar. Até a palavraem italiano para peixe, pesce, é palatável e musical.

Naturalmente, várias regiões têm os seus próprios nomes para brodetto,todos feitos de modos diferentes. Tem o cioppino, que está por toda SãoFrancisco, mas que eu nunca vi na Itália, embora diga-se ser originário daLigúria, onde eles comem buridda; na costa toscana, você comeria Cacciuccoalla Livornese.

O que Ed sugere: simplesmente compre o que está fresco no dia. Se areceita pede badejo e não tem badejo e o linguado parece bom, então comprelinguado. Tradicionalmente, os cozinheiros usavam treze tipos diferentes defrutos do mar.

Ingredientes:2 chalotas picadas¼ de xícara de azeite de oliva extravirgem4 dentes de alho picados3 ou 4 pitadas de açafrãoSal e pimenta

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2 xícaras de tomates-cereja cortados ao meio2 xícaras de vinho branco250 gramas de bacalhau cortado em pedaços de 3 cm450 gramas de camarões sem casca250 gramas de vieiras pequenas250 gramas de badejo cortado em pedaços de 3 cm½ xícara de salsa, picada

Modo de preparar:Refogue as chalotas no azeite por 2 a 3 minutos e, em seguida, acrescente

o alho. Continue refogando e então junte o açafrão, o sal, a pimenta e ostomates. Depois de mais 5 minutos, adicione o vinho e deixe levantar fervura.Reduza para fogo brando e cozinhe por 5 minutos.

Aumente o fogo para médio e acrescente o bacalhau, que leva um poucomais de tempo do que os outros frutos do mar, e cozinhe por 3 minutos, emseguida acrescente os camarões, as vieiras e o badejo. Tampe e cozinhe emfogo baixo por 15 minutos. Acrescente a salsa pouco antes de servir.

Sirva numa tigela sobre um pedaço de bom pão torrado ou sobreespaguete.

CRESPELLE AI PORCINI E RICOTTA DE GIUSICrepes de ricota e cogumelos porcini de Giusi

4 porções (8 crespelle)

Para esta receita delicada, tente encontrar cogumelos porcini secos italianos.Coloque-os numa tigela, cubra-os com água fervente e deixe-os em infusão de15 a 20 minutos, até incharem. Escorra e pique. Você pode reservar o líquidopara usar em outros pratos, mas não deixe de coar antes.

Para variar a pommarola, e para um molho de macarrão por si só, tenteusar odori (cebola, cenoura, aipo e salsa picados) em vez de apenas cebola.Você também pode acrescentar ½ xícara de creme de leite ao molho. A

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pommarola pode ser fresca e rápida como esta, ou ficar fervendo por um bomtempo para se obter um molho concentrado e intenso.

Ingredientes:1/3 de xícara de farinha de trigo1 xícara de leite3 ovos batidos1 colher de chá de sal4 colheres de sopa de manteiga, cortada em pedaços pequenos1 xícara de ricota1 gema½ xícara de parmigiano ralado30 gramas de cogumelos porciniMolho de tomates (receita adiante)

Modo de preparar os crepes:Preaqueça o forno a 180 graus.Coloque a farinha numa tigela média e vá misturando o leite devagar,

formando uma pasta. Bata os ovos separadamente e adicione à mistura, juntocom metade do sal.

Derreta uma colher de sopa de manteiga numa frigideira de cerca de 20 cmde diâmetro até cobrir o fundo. Coloque ¼ de xícara de massa na frigideira ecozinhe em fogo médio. Enquanto estiver cozinhando, vá soltando as bordasdo crepe com uma faca ou espátula e, depois de 1 a 2 minutos, vire-o paracozinhar o outro lado por mais 1 ou 2 minutos. Remova para uma travessa.Acrescente mais um pouco de manteiga à frigideira e repita o processo acima.

Modo de preparar o recheio:Numa tigela média, amasse a ricota com um garfo, acrescente a gema, o

sal restante, o parmigiano e os porcini e continue misturando. Adicione 3colheres de sopa de molho de tomates e misture.

Para finalizar:Derrame 2 colheres de sopa do recheio no meio dos crepes e espalhe.

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Enrole-o como se fosse um charuto. Repita com os outros. Coloque-os numprato que possa ir ao forno e cubra com ½ xícara de molho de tomates, maisalguns pedacinhos de manteiga e algumas pitadas de parmigiano. Asse por25 minutos. Sirva imediatamente.

POMAROLLAMolho de tomates

Ingredientes:½ xícara de azeite de oliva extravirgem1 cebola pequena picada1 lata de tomates inteiros, ou de 6 a 8 tomates firmes, pelados½ xícara de folhas de manjericão picadasSal e pimenta

Modo de preparar:Aqueça o azeite e acrescente a cebola. Depois de 5 minutos em fogo

médio, acrescente os tomates e quebre-os com uma colher. Adicione omanjericão, o sal e a pimenta a gosto. Cozinhe por 10 minutos em fogo alto,destampado, para reduzir. Dá 3 xícaras.

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Bramasole

Em Bramasole, aprendi a passar roupa com as mãos. Dobre e alise,dobre e, então, alise, dobre, alise; o lençol de cima azul, tirado do varal,cheira a luz morna. Dobras na fronha cedem à minha mão espalmada;minha camisola amarela fica macia. O lençol de forro jogado sobre duas

cadeiras enfuna e sairia voando sobre o vale se eu não tivesse prendido oscantos com pregadores. Ah, conforme minha mão desliza, percebo que umferro de passar tem o formato da mão. Camiseta vermelha, calças pretas,toalhas de mão com casinha de abelha – minha mão desliza sobre as roupas,exatamente como o barco em forma de peixe se move na água, o corpo doavião como um pássaro parte o ar e um carro imita o cavalo de quatro patas –sai rangendo pneu, o motorista segurando o volante como rédeas. Eu gostodos meus panos de prato passados, então pressiono bem: eu os empilho,xadrez vermelho, listras azuis, estampa de girassóis, algodão verde-primavera, e o branco utilitário, já uma gaze de tanto uso, para secar copos.Três camisas de seda – fúcsia, branco, um estampado cor de alfazema comopapel de parede vitoriano – rodopiam na brisa, o vento insistindo para quedesistam de suas rugas. Dobrar a roupa lavada, sol nos meus cabelos, acesta cheia – o ritual de preparação das roupas parece uma oferenda aosdeuses domésticos. A roupa lavada, suspensa no alto, distribuída pelosquartos, traz um conforto especial. Tudo está certo com toalhas limpas,roupas de baixo alvas e uma cama que dá as boas-vindas ao corpo.

Em Bramasole, aprendi a procurar o alimento – calçar as botas de borracha,pegar a tesoura de podar e sair. Até mesmo esta paisagem cultivada ofereceabundante insalata di campo, verduras silvestres; ameixas amarelas como asque eu costumava encontrar ao longo das estradas ladeadas de madressilvasna Geórgia – chupe o suco e cuspa fora a semente e a pele; o valiosoamarini, cerejas do tamanho de rubis de cinco quilates, que são engarrafadas

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com álcool e retiradas no inverno para colocar, às colheradas, sobre bolo depolenta. Peras espontâneas, beldroegas, a hortelã silvestre de crescimentodemorado chamada mentuccia, pinhas, amoras, aspargos amargosespigados, flores de erva-doce, figos. Meu vizinho Placido acrescentarialumache, caracóis, à lista das minhas colheitas. Ele é o primeiro da fila naSagra della Lumaca anual, onde, numa panela de cobre do tamanho de umpneu de caminhão, uma montanha de lesmas ferve num generoso molho detomates e pancetta. Quando o cozinheiro serve, as conchas matraqueiamdentro da tigela. Sou um fracasso como um verdadeiro gourmet; eu dispensoestas criaturas que soltam muco, embora Ed saboreie com satisfação esteprato uma vez por ano e insiste dizendo que não sei o que estou perdendo. Sea nossa imensa horta tivesse o incentivo de uma vaca ou de um galinheiro,poderíamos ser quase perfeitos locavores. (Conceito atraente. Palavra sematrativo.)

A terra dá flores silvestres oito meses por ano. Como no primeiro dia emque passei na Toscana rural um vizinho apareceu com um saco de ovos e umabraçada de giestas amarelas, ervilhacas, papoulas, lírios e flores silvestressem nome amarelas e roxas, este tem sido o meu buquê preferido. (Lírios –tanto cor de laranja como brancos – crescem à vontade.) Uma colheita peloscampos, o produto mergulhado num jarro com água, e voilà.

Eu adoro dar uma volta, balançando a minha cesta, vagando pelo bosque deoliveiras e pelos terraços mais adiante. Sei o que estou procurando(amêndoas verdes ou minúsculas maçãs silvestres), mas, na verdade, estouem busca de surpresas – encontrar de repente um punhado de cogumeloschanterelle ou morangos silvestres, ou tomilho de flores azuis ou íris roxo-escuro com intenso aroma de uvas. Se volto com apenas uma dúzia demorangos, eles acrescentam um pouco de magia ao nosso habitual coquetelde verão. Um ou outro figo, partidos ao meio, dão um toque simples e naturala uma travessa de salumi. Um punhado de bolas de alho roxo pareceinesperado quando enfiado numa tigela de rosas. Um galho de erva-cidreira eudeixo cair no meu banho quente. A simplicidade, um objetivo fugaz, parece ao

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alcance quando arrumo três queijos pecorino sobre folhas de videira que corteide parreiras abandonadas, enquanto asso uma panela de peras nodosas, oucoloco três porcini para grelhar na lareira.

Encontrei muitos prazeres em Bramasole. Aqui aprendi a tirar mudas deroseiras velhas e fazer novas plantas saudáveis. Aprendi a plantar alecrim,santolinas e alfazema em longas ondas curvas, interrompidas aqui e ali porcaudas-de-leão. Aprendi a manter as facas afiadas – uma lâmina cega é maisperigosa do que o fio de uma navalha, e há muito o que fatiar e picar. Aprendia respeitar o escorpião e a cobra que vivem nas dálias. Os escorpiõesadoram a chuvarada e, eu suponho, têm as suas justificativas. A beleza delesé particular, como é a da surpreendente aranha-marrom que parece umbroche de bronze e topázio. Aprendi a cuidar dos meus limões exatamentecomo faziam no Renascimento, tirando-os do jardim de inverno no final de abrile enfileirando os grandes vasos ao longo da fachada da casa. Durante seismeses, eles produzem não apenas o seu fruto, mas também o seu aromanarcotizante, que a brisa carrega pelos aposentos do andar inferior e às vezesaté a janela do terceiro andar. No final de outubro, como se soubessem queesta é a sua última chance, eles produzem a sua safra mais abundante. Esta éa estação para preparar limoncello e servir a torta Big Mama da minha avó,torta doce de limão. Eu vejo o seu rosto branco, branco, os lábios franzidos eolhos cegos leitosos olhando por cima da minha cabeça enquanto ela esticavaa crosta com o rolo e batia as claras em neve.

Os limões amarelos rivalizam em beleza com os caquis cor de laranjabalançando em muitos pomares. Antes da primeira geada forte de novembro,os vasos voltam para o jardim de inverno. Cada vaso foi marcado de um ladoe é colocado em plataformas de modo que a marca fique de frente para o solde inverno. Janelas laterais se abrem automaticamente se o calor aumenta.Eles são regados apenas ocasionalmente. Mesmo em fevereiro, posso meenfiar entre eles e encontrar um limão de emergência.

Aprendi a consertar os meus vase. As pessoas valorizam os seus fatti amano, vasos antigos de terracota feitos a mão. Eu achava o máximo da

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sovinice quando via enormes limoeiros em vasos amarrados com arame. Atégerânios num degrau ou parede com frequência estavam presos com arame.Este hábito local surgiu muito antes da cola-tudo. Certa vez, ao voltar, umvaso decorado com festões de frutas estava em pedaços. Eu gosto muito deleporque sustenta uma roseira amarela no meu jardim de ervas. Peguei o aramee a cola-tudo. Agora, muitos anos depois, o meu vaso ainda existe. Conserteivários outros, até vasos baratos, e acabei gostando da aparência, assimcomo da filosofia.

De Albano, que constrói em Fonte, nossa fazenda nas montanhas, ficamossabendo que a cerca do orto deve ser enterrada uns 20 centímetros, senãopequenas vespas farejantes se estabelecem por debaixo. Albano não se deixaenganar por visitantes noturnos. Aprendemos que os morangos de outubrosão os mais doces e mais sumarentos, que a acelga brota sempre, os pés deaspargos duram vinte anos, que os galhos da framboesa precisam serpodados rente depois que a estação da fruta acabou. Aprendemos a fazertendas indígenas altas com bambu para os feijões e baixas para ospimentões. Protegemos as alfaces do sol com um anel de girassóis. E nãosabíamos antes que era para colher apenas as abobrinhas masculinas(nenhuma delas se desenvolve até o final) para fazer flores de abobrinhafritas. Aprendemos a amar o jardim de inverno – cavolo nero, alcachofra-brava, couve-crespa, colza e favas do início da primavera. Guardo sementesdos melhores tomates. Não descobrimos como proteger o nosso pequenopomar de cerejeiras dos pássaros gulosos, que nos deixam apenas frutassemibicadas. As árvores já estão altas demais para cortinados, e prenderCDs velhos aos galhos parece que só faz atrair mais melros para as centelhasprateadas.

Se eu fosse uma mulher medieval tecendo uma tapeçaria para a família, oconhecimento obtido com a vida aqui formaria as minhas bordas e fundos. Emvez de uma procissão de homens com falcões sobre cavalos enfeitados, ouuma dama requebrando-se num unicórnio, haveria a icônica mesa comprida,os amigos reunidos, os criados e os comensais, todos rostos queridos, e fios

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ricamente coloridos para a rosa, o limão, o feijão enroscado, o girassol, amargarida dos campos e todas as criaturas que também estão à vontadecomo nós no lugar onde vivemos. No alto da cena, eu bordaria o discodourado do sol e raios pontudos. Bramasole, de bramare, ansiar por, e sole,sol, significa algo que anseia pelo sol.

Os romanos respeitavam seus lares e penates, deuses domésticos dalareira, da despensa e da comida. A presença de antigos espíritos atrai quemescolhe uma casa como um refúgio espiritual. Bramasole sempre me pareceu,mesmo quando vazia, mais do que uma casa. Isto é assustador; uma casatem uma anima, uma alma? Quando estou longe, sinto sua falta como sintosaudades de alguém a quem eu amo. Sinto saudades das cores da casa, oque os velhos manuais de pintura chamam de polvere di mattone, pó de tijolo,rosso arancio, laranja sanguínea, terre bruciate, terra queimada, giallo caldo,amarelo quente. Sinto falta das travessas nas paredes da minha cozinha e datorta de peras e amêndoas esfriando na bancada. Sinto saudades dasmariposas, que são os melhores convidados para o jantar. Sinto saudades doterraço de girasole quando os girassóis gigantes encaram a plateia, todo ocorpo de baile contemplando com ternura a nossa admiração. Sinto saudadesda sacada quando os aromas do jasmim, do limão e das tigli, tílias, colidem eparecem emanar da lua. Sinto saudades do vale lá embaixo, que prestahomenagem a todas as folhagens, e dos ciprestes melancólicos ao longo daestrada, e dos meus ardentes gerânios cor de coral escapando de seusvasos, unindo-se às clematites e rastejando para encontrar as rosas antigas láembaixo. Sinto saudades, no inverno, do anoitecer precoce, que acontece derepente, como a cortina de um palco baixada num baque aveludado.

Não preciso de um paraíso celestial; conquistarei a minha imortalidade aqui.

HOJE É QUARTA-FEIRA. Meio-dia e quinze no meu relógio, cujo mostrador éobscurecido por estrelas em movimento e uma lua crescente. Preciso sacudiro pulso para ver os ponteiros dos minutos e da hora. O relógio bonito que Ed

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me deu sempre me lembra de dois tipos de tempo – este minuto e o supremomegatempo de passado e futuro. Talvez o projetista pretendesse tal conexão.Tempo, a grande cesta de pão que enchemos, atacamos de surpresa,enchemos, esvaziamos.

Na Toscana, aprendi a não ter pressa. Não ter pressa na hora de tomarcafé com o homem de um braço só perto da minha casa, que me conta comodirige o seu Panda de transmissão manual com seu cachorro no colo, e quequando criança comia pão molhado no vinho tinto no café da manhã. Dividir oemaranhado de bulbos de íris e replantá-los ao redor de uma oliveira levatempo. Eu descubro que tenho isso. Tempo: ler até às três, depois dormir atéàs dez, se eu quiser; compartilhar um copo de vinho ácido com um fazendeiroque veio a pé de Gênova depois que os italianos se renderam na SegundaGuerra Mundial; cozinhar com Gilda, de uma eficiência incrível, sem nunca terusado um processador ou micro-ondas. Ela veio trabalhar para nós quando acunhada, Giusi, saiu para abrir o seu agriturismo. Aprendemos com Giusi,uma grande amiga, e vamos continuar aprendendo por muito tempo comGilda. Aprendemos com Placido, que apareceu três tardes seguidas para nosajudar a assentar um caminho de pedra, que conduz o cavalo a pé para quemeu neto possa montar, que passa o dia inteiro no bosque procurandocogumelos porcini para encher uma cesta.

Tempo – é o que demanda um lento molho de tomates, fervendo até ficarreduzido a um sabor essencial de sol de verão, para atar alfazemas emmolhos e pendurá-los nas vigas para secar, para aprender o imperfeito, paraconferir as romãs ficando vermelhas todos os dias enquanto amadurecem,rasgar a casca rija para revelar a colmeia vermelha sumarenta lá dentro,salpicando a fruta sobre uma salada de verduras do campo e amêndoastorradas. Viver bem no tempo significa tomar de volta o tempo das mãosdaquilo que nos escraviza – obrigações, compromissos, a assustadora rotinade detalhes que atacam como sanguessugas num lago estagnado. Duranteintensos períodos de trabalho, projetos de restauração, crises de família,sustos com a saúde, eu quero acordar com a primeira luz da manhã, calçar as

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botas de caminhada e sair de casa por uma hora enquanto os pássaros aindaestão praticando as suas doxologias.

Horas perdidas – elas são minhas; pretendo usá-las antes que escorrampela ampulheta.

EM BRAMASOLE, sempre me lembro de quando içava a grande vela chamada “abujarrona” no barco que meu ex-marido e eu tínhamos. A bujarrona eraadequada para ventos fortes e, quando chegava ao topo do cordame, inflavagrandiosa de repente e o barco parecia levitar até o céu. A lembrança secompara aos surtos de felicidade e silenciosa inclinação para a paz que estelar me dá. Às vezes as casas personificam não apenas lembranças, mastambém toda a sensação do próprio local. Nos primeiros meses em quepassei aqui, tive a intuição de que, como a casa estava tão à vontade napaisagem, eu também me sentiria assim. Vivendo nestes quartos, eu me ligueia um campo de força – sou transportada por algo maior do que eu mesmaque é, ao mesmo tempo, muito eu mesma. Sem quebra de continuidade, numlugar assim, você cria o que por sua vez cria você.

Essas primeiras impressões sobre o lugar, mais tarde eu percebi,baseavam-se todas no tempo. Num nível metabólico, você não sente que omistério do tempo é como ele se desdobra e dobra simultaneamente? Otempo, que devora, também estica. O tempo é elástico e brutalmente rígido. Alembrança se esvai e retorna. Ela não sabe como diminuir o tamanho, tornarredundante ou apertar uma tecla delete. Novos amigos não substituem osvelhos amigos, primeiros amores ainda vivem em salas iluminadas da mente, ehá anos e quilômetros de distância o que o seu Paizão lhe disse é verdade, osangue é mais grosso do que a água.

QUE MUDANÇA INESPERADA quando estranhos começaram a procurar Bramasoletambém. De vez em quando, um livro pessoal que é lançado modestamente no

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mundo adquire vida própria e a autora só pode aguentar firme e viajar paraonde a levarem. Depois das minhas memórias, Bramasole misteriosamente setransformou da villa miserável, abandonada, comprada num caprichoinabalável, em símbolo. Embora provavelmente pareça terrível a casa dealguém virar destino de um viajante, não tem sido assim. Acho que aquelesque viajam por causa de um livro que leram não são viajantes comuns. Alémdisso, penso que escrevo como se fossem cartas para amigos, portanto areciprocidade parece natural. Depois do filme Sob o sol da Toscana , umanova onda começou. Mesmo assim – românticos, todos. A cada publicaçãoem outros países, novos visitantes chegam. Ficamos todos surpresos emencontrar estonianos, taiwaneses, tasmanianos, brasileiros etc. etc. etc. emCortona. Algumas autoridades ficam satisfeitas por seus DVDs promocionaisenviados a agentes de turismo terem sido tão eficazes trazendo hóspedesdistantes para a cidade.

Outras pessoas do local se aborrecem. Começam a brincar, lastimando queBramasole é mais querida do que as grandiosas villas dos Medici, maisvisitada do que Santa Margherita, que jaz no seu caixão de vidro no topo damontanha.

Os italianos detestam ser apanhados desprevenidos, e quem poderia terprevisto que Bramasole se tornaria um ímã mundial? “Imagine”, o proprietárioda lavanderia disse a Ed. “Precisou ser alguém de fora – e uma mulher – paracolocar este lugar em destaque.” Ele entregou as camisas. “Che vergogna!”Que vergonha!

Depois que morreu o homem que colocava um punhado de flores todos osdias no nosso santuário, outros começaram a deixar raminhos de floressilvestres, pinhas, moedas, velas, bilhetes, poemas e presentinhos, tais comoenfeites de Natal, livros, medalhas de santos, garrafas de vinho. Hoje euencontrei um urso coala de pelúcia segurando uma bandeira da Austrália. Setequadros de Bramasole enfileiram-se no topo da minha estante de livros, todosdeixados por estranhos. Eu adoro estes vínculos secretos.

As crianças nascidas na minha família depois que comprei Bramasole

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herdaram emoções semelhantes às de Ed; minha filha, Ashley, e eu sentimos.Aos dois anos, Willie dizia “Bramasole” quando lhe mostravam a imagem deuma rosa Éden, de um portão de ferro, de uma aldrava. Plantamos árvoresjunto com Willie e lhe dizemos que altura elas terão quando ele fizer dez, vinte,quarenta anos. Minha sobrinha-neta esconde bilhetes debaixo de tijolos soltos,Nancy Mclnerny esteve aqui, exatamente como os soldados de Napoleãoescreveram nas paredes de San Francesco, em Arezzo. Em certos lugares,desejamos deixar uma marca no tempo. Carlos, filho do meu editor, sobecorrendo os degraus depois de um ano longe. “Eu me lembro disto”, ele diz, eseu rosto mostra que a lembrança é boa. Eu gostaria de ter mantido um livrode hóspedes. Centenas de amigos, amigos de amigos e pessoas da famíliaficaram, almoçaram ou jantaram aqui. “Como está Bramasole?”, elesperguntam, como se a casa fosse um ente querido. Do lado incômodo, boatosconstantemente fervilham pela cidade. Eles venderam. Escutamos isso umacentena de vezes. Vai virar um restaurante. Milionários russos compraram.E, mais recentemente, Vai virar um museu! Um museu – de quê?

Esta posição icônica acontece independentemente de mim. Existem, comoos antigos pensavam, áreas de tensão onde energia em estado puro ouespíritos residem?

Os turistas que chegam com suas câmeras querem ver a casa mais do quedesejam me ver. Alguns ficam uma hora, olhando para cima. Amizadescomeçam na estrada, e um casamento resultou de duas pessoas que seencontraram ali. O que estes visitantes não sabem é como o som étransportado pela encosta de um morro. No meu estúdio lá em cima, com asjanelas abertas, ouço com frequência comentários maravilhados (“É um sonho,simplesmente um sonho”, “Ah, meu Deus, que espetáculo – olhe essasrosas”), especulações sobre a minha vida privada (“Eles se divorciaram, vocêsabe” e, é claro, o refrão mais frequente: “Ela não mora mais aqui”). Às vezeseu escuto “Não pode ser Bramasole – essa persiana está solta”, “Está emruínas” e “Minha casa é muito maior do que esta”. Guias turísticos, euaprendi, podem ser muito criativos a respeito da história da casa e de seus

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habitantes. Já tive vontade de me debruçar na janela e gritar: “Não acreditemnuma só palavra do que ele diz!”

O que espero é que seus ouvintes possam olhar para Bramasole ensolaradae sentir seus próprios desejos secretos sendo despertados.

COMO UMA COISA VIVA , uma casa evolui, muda, permanece ela mesma na suaessência.

“Nos sonhos começam as responsabilidades”, W. B. Yeats escreveu.Bramasole é meu sonho, e de Ed também. Depois de todos esses anos aqui,os sistemas na casa precisam de uma revisão responsável. O telhado quenunca substituímos deve ser consertado. Depois de mais de duzentos anos,ele merece um pouco de trabalho. Lembro que ia custar 30 mil dólares nasprimeiras estimativas, feitas há bastante tempo. Fico apavorada com a ideiade quanto isso poderá custar hoje. Regularmente, uma coruja levanta algumastelhas e se enfia no sótão, onde faz um bocado de bagunça. Acordamosachando que um homem está no telhado. Então, quando chove de novo, numcanto do meu escritório começa um plop, plop. Alguém precisa andar comcuidado pelo telhado perigoso e consertar os tijolos soltos até a próxima visitada coruja ao sótão.

Irrigar o pátio esgota a água dos nossos dois tanques e extrai ar dastubulações da casa, então, quando eu giro a torneira da cozinha, a águaexplode com força suficiente para quebrar um copo. A sala de estar tem umproblema de umidade. A casa fica de costas para a colina e, seja lá o quecostumava ser usado para drenar essa área, não drena mais. Na primavera,um filete de água escorre pelo chão da sala de estar. Nós olhamos para elehipnotizados. A parede cria desenhos rendilhados bolorentos. Muffa – gostoda palavra nebulosa e a penugem branca é bonita, mas alarmante. No verão,ela seca e eu retiro a caiação para podermos esquecer o problema por maisum ano. A porta do terraço está tão fraca que um cachorro perdido pode abri-la com um empurrão. Isso é só para começar. Já nos acostumamos com o

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tijolo solto no corredor, a máquina de lavar que dá choque quando você tira aroupa de dentro dela, a janela do lavabo que fecha com uma cavilha demadeira. Poético? Sim, mas...

Parte de mim quer que Bramasole continue bizarra, mas uma outra partequer fios elétricos enterrados que não queimem o modem a cada tempestadee, sim, o turista estava certo, persianas que desapareçam quando erguidas,não estas introduzidas nas molduras de pedra. Quando venta, elas às vezesse espatifam no chão. A lista é longa e estamos cautelosos. Um grandeprojeto de construção em Bramasole é desanimador. Estou ficando muitovelha e impaciente para projetos que possam se arrastar durante anos. Odólar está fraco, o euro, poderoso. Não temos mais empregos normais. OsEstados Unidos deslizam irrevogavelmente para a recessão. Certa vez,cozinhei sopa de abóbora dentro de uma abóbora. Quando me aproximei damesa, toda orgulhosa, o fundo da abóbora cedeu e a bela sopa inundou tudo.Meu portfólio é assim? Vou ficar segurando um maço quente de papéis comos números caindo? Se vivermos até os cem anos, estaremos reduzidos a umqueimador de gás num motel de beira de estrada?

Fonte delle Foglie, a casa na montanha, nos deu a oportunidade de trabalharcom um dos melhores restauradores da Toscana, Fulvio Di Rosa, que agoraestá totalmente ocupado com Borgo di Vagli, o vilarejo medieval que elecomprou e ressuscitou. “Faça o mínimo”, ele aconselha. “O encanto deBramasole está em como ela é.” Eu sempre me lembro desse conselho.Mesmo assim, obras precisam ser feitas. Quanto vai custar para incorporarumas poucas melhorias também?

PARA INVESTIGAR, recorremos a Walter Petrucci, um arquiteto local de reputaçãoimpecável. Mesmo escalando ao redor de uma ruína em meio a amoras, suacamisa não tem uma ruga. Seus sapatos estão intactos. Ele é esguio,ligeiramente careca e tem um olhar firme com um ar distante treinado.Provavelmente teve de proteger muitas vezes as suas verdadeiras reações

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das ideias bizarras de estrangeiros. No ano passado, trabalhamos com ele eum mestre em restaurações, Rosanno Checcarelli, num acréscimo à casa damontanha. Rapidamente, demos valor ao seu talento para soluções. E, sevocê não gostar de uma, ele encontra outra. Eu admiro a praticidade. Fazeracontecer. Como um bom cirurgião preparando o paciente, ele sabe como seenvolver e não se envolver ao mesmo tempo. Com toda esta inteligência esangue-frio, fico encantada ao saber da restauração que ele vem fazendo nasua própria villa há vinte e sete anos. Uma loucura.

Ele nos convida para ir até lá jantar com sua família e alguns amigos. UmMedici se sentiria em casa. Os jardins de influência renascentista comalamedas, trilhas e piscinas geométricas são formais e perfeitos. Lá dentro, oartista local Eugenio Lucani decorou paredes e tetos no charmoso estilo dePompeia, conhecido como “grotesque”. Walter aponta para arcos e nichos,nos conduz por suítes, uma impressionante cantina, sua biblioteca. Silvana,sua animada esposa, serve o jantar preparado numa cozinha que deve teraberto uma cratera enorme em alguma pedreira de mármore. Na sala dejantar, nossas vozes ecoam ligeiramente.

Embora a casa esteja pronta há anos, a família, na verdade, não se mudoupara lá. Eles vivem, em vez disso, numa casa simples, confortável, do pós-guerra, que não tem nada a ver com esta. “Talvez no ano que vem, quandonossa filha se formar. Não queremos interromper os seus estudos”, Walterexplica. Mas amigos nos contaram que todo ano surge um novo motivo. A villaterá se tornado o Paradigma de Walter, um livro a ser escrito e prodigamenteilustrado?

Quando partimos, Ed diz: “A casa dos sonhos de Walter parece saída deum conto de Borges. Ou das cidades invisíveis de Calvino, se ele tivesseescrito sobre casas e não sobre cidades.”

“Sim! Alguma perfeição abstrata pairando sobre a mente de Walter.”“Talvez um dia ela seja alcançada, talvez nunca.”“Essa casa é a mente dele – em 3D.”Enquanto isso, Walter termina outros projetos em tempo e tem projetado as

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plantas e supervisionado restaurações de vários amigos. A obra prosseguetranquilamente. Nós admiramos a sua engenhosidade e agora rapidamenteaprendemos a admirar o seu espírito brincalhão e sua inventividade.

Conforme damos uma volta juntos por Bramasole, ele nos revelapossibilidades que não tínhamos imaginado. Estivemos firmes no propósito demanter as coisas práticas. Novas leis nos permitem expandir o interrato, até aencosta atrás da casa. Ele esboça uma planta baixa. Poderíamos duplicar otamanho do térreo. O jardim de inverno poderia virar uma cozinha fenomenal,e a atual cozinha pequena poderia ser anexada à sala de jantar, criando umlugar para grandes banquetes. Além disso, poderíamos pedir autorização paraconsolidar os banheiros cravados na fachada posterior e colocá-los do lado defora dos quartos de dormir, transformando-os em suítes. Os hóspedes nãoteriam de transpor degraus para chegar ao banheiro. Removendo osbanheiros de trás, o terraço do andar de cima poderia atravessar toda a partedos fundos da casa.

Isto é excitante. Uma lavanderia aqui, ele aponta, e uma adega. Em seguida,ele dá o coup d’état. “Esta lei permite que vocês abram uma garagem naencosta, no alto da entrada dos carros.” Ele começa a esboçar uma extensãoda parede de pedra, com uma elegante porta de ferro e vidro dando para umasala subterrânea que vemos que estará bem iluminada por causa da fachadade vidro. Eu não vejo “garagem”, mas, sim, um luminoso escritório com asparedes revestidas de livros.

Ed me choca com uma reação de entusiasmo imediata. Eu estouperguntando ao arquiteto quanto tempo isso vai levar, se o trabalho vaidestruir o meu jardim, quanto vai custar. Ed está pensando em engradados devinhos, balcões de mármore creme e uma churrasqueira na cozinha. Absorta,examino os desenhos que Walter logo nos entrega. Sim, seria surpreendenteenvolver com o pequeno terraço superior a parte dos fundos. Poderíamos sairdali para o bosque de oliveiras e ameixeiras. Não posso acreditar queestejamos considerando algo tão drástico. Como podemos propor tudo queaprendemos sobre arquitetura vernacular toscana sem perder a individualidade

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da casa? Tenho a ideia irracional de que a casa terá uma opinião.Depois dessa reforma, ela será a mesma casa? Ed tem uma ideia radical:

“Talvez devêssemos vender, então. Depois das revelações de Walter,podemos simplesmente remendar o telhado, colocar janelas novas e seguirem frente? Ou não seria mais fácil encontrar outra casa já modernizada,reformada, ou ‘vulgarizada’?” Ele cita a expressão da escritora AnnCornelisen, que ela usava com tanto descaso.

“Espere. Fala sério. Você algum dia seria capaz de deixar Bramasole?”Ele dá de ombros, fazendo o gesto italiano das palmas para cima,

sinalizando “Quem sabe?”. Eu sorrio e balanço a cabeça.Quando conheci Ed, me separei do meu marido, Frank. Ele e eu tínhamos

uma relação de namorados de faculdade, uma filha, curso de pós-graduação,casas, mudanças de um lado para o outro do país. Até adorávamos a Itália.Senti o Mar Vermelho se abrindo quando o nosso pacto se rompeu. Mesmoagora, depois de décadas de felicidade, eu acho que, por trás dasdesavenças intervenientes, ainda sinto um vínculo intacto. O anel de ourogravado forever (para sempre) está entre meus brincos e pulseiras. Certa vez,afirmei para Frank que tinha jogado o anel pela Golden Gate, mas não joguei.Laços que unem. Não podemos inventá-los nem dissolvê-los. As circunstânciaspodem ser devastadoras, mas o amor se recusa a ceder.

Como poderíamos ser capazes de ir embora? Três verões atrás, eu estavapronta. Magoada. Indignada. Zangada. Em profunda desilusão, pensei: Seráque está na hora de mudar para uma ilha grega fascinante ou para uma casade praia no Outer Banks da Carolina do Norte? Um lugar novo no globo ondenós, com a bênção de Deus, não conhecemos ninguém. Sartre está certo,pensei: o inferno são os outros. Pior, eu tinha de enfrentar que o que euachava que sabia, na verdade, não sabia. Mesmo agora, deixo sempre paradepois a tarefa de escrever sobre esse período.

Eu não fui, obviamente.Agora, mais alguns rolos do manuscrito se desenrolam. Novas

possibilidades – Bramasole revivida.

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Fico tentada. É assustador. Não fico tentada. É um alívio.

ANTES DE IR PARA A CAMA , debruço-me na janela do meu escritório, um hábitodiário. Gosto de escutar os pássaros noturnos, mas, no momento, eles estãoem outro lugar. Descanso o meu caderno no peitoril de pedra e volto parabuscar uma caneta na mesa. Quando retorno, uma aranha negra enorme seacomodou no vinco entre as páginas. Assopro até ela se levantar sobrepernas de pau curvas e caminhar em passo de moonwalk para dentro dasdobras da cortina branca. Escrevo algumas anotações: Provar as fases dalua, tocar a ária que se desprende de uma sacada, cheirar a luz loura do solaquecendo os cabelos de uma criança e ouvir a grande abertura da fabulosarosa Éden que sobe pela parede de pedra. O que você sente que está vindona sua direção?

O CADERNO FICA ABERTO . Nada ainda de corujas, mas as vozes de doisestudantes de arte da Universidade da Geórgia levitam. “Esse saco de peidos.Ele não sabe nada de...” A voz dele é cortada por um motorino de passagem.

Encantador. Quando eles passam, escuto: “Cara, era a maldita Pompeia,não Herculano.” O motorino é um farrapo branco formando uma espiral naestrada.

Antes de deixar a Itália este ano, eu decido, vou escrever sobre otumultuado verão que me fez querer saber de Portugal, Sarasota, Mérida equalquer outro lugar, menos aqui. Registre isso. Tire isso do caminho. Éhistória. Não é tão importante, é? Então isso realmente estará terminado.

Escrevo no caderno: A Vespa branca . Ali, tinta preta úmida. No alto de umapágina em branco.

TORTA DI SUSINE CON MANDORLE

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Torta de ameixas com amêndoas

Uma sobremesa que certamente provocará elogios exagerados, tais como “Éa melhor torta que já provei”. É igualmente boa com peras. Esta foi inspiradanuma receita do livro Rogers Gray Italian Country Cook Book: The River Café,de Ruth Rogers e Rose Gray.

Ingredientes:MASSA:

200 gramas de manteiga bem fria, cortada em pedaços2 ½ xícaras de farinha de trigo, peneirada1 pitada de sal1 ¼ de xícara de açúcar refinado3 gemas grandes batidas

RECHEIO:

350 gramas de manteiga1 ½ xícara de açúcar de confeiteiro1 colher de chá de baunilha2 xícaras de amêndoas, pulverizadas no processador de alimentos3 ovos inteiros7 ameixas maduras, mas firmes, sem caroços e cortadas pela metade

Modo de preparar a massa:Primeiro prepare a massa. À mão ou no processador de alimentos, misture

a manteiga, a farinha e o sal com as mãos até formar uma massa farelenta;em seguida, acrescente o açúcar refinado, depois as gemas. Quando tudoestiver bem misturado e unido, faça uma bola e resfrie por cerca de meiahora.

Preaqueça o forno a 200 graus. Retire a massa da geladeira. Corte emfatias e pressione-as dentro de uma travessa de vidro grande para tortas oude uma forma para tortas de 30 a 35 cm de diâmetro. Resfrie por cerca de 10minutos; em seguida, fure a massa toda e asse-a em forno quente até ficarligeiramente torrada uns 10 minutos. Baixe o forno para 180 graus.

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Modo de preparar o recheio:Bata a manteiga e o açúcar até formar um creme leve e fofo, acrescente a

baunilha, misture as amêndoas moídas, depois acrescente os ovos um decada vez, batendo bem.

Arrume as ameixas sobre a casca de massa assada, derrame por cima orecheio e asse até ficar firme, por uns 30 minutos.

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A Vespa branca

Um livro de fotografias da África do Sul, um saquinho de páprica deBudapeste, um anjo de cerâmica da Polônia, enfeites de Natal daAlemanha, sementes de flores silvestres da Provença, esboços depaisagens de tudo quanto é lugar, um prendedor de gravata com folha de

bordo do Canadá, mel da Estônia, vinho, muito vinho, camiseta do Brasil, atétoalhas de mão com um B bordado para a casa: muitos presentes sãodeixados em Bramasole. E portanto não achei que tinha importância pegar opequeno volume embrulhado em jornal, caído na grama perto do portão.

Eu desci a escada primeiro. Tínhamos acabado de tirar fotografias: Ashley,Ed e eu, vestidos com nossas melhores roupas de verão – Ed no seu ternobranco, Ashley de chiffon verde-água e eu com calças de linho e camisa deseda verde e rosa-choque. Íamos a uma festa em homenagem a Ed – umagrande surpresa. Quem tirou a fotografia? Não sei; provavelmente a babá deWillie. Em seguida, de repente estou descendo a pé sozinha, tentando nãoprender os meus saltos entre as pedras e torcer o tornozelo. Talvez Ashleytenha entrado de novo em casa para dar um beijo de boa noite em Willie.Talvez Ed tenha voltado para pegar o celular. Eu comecei a descer a estrada,querendo apressar todo mundo porque certamente os convidados já estavamreunidos. Um pouco antes de chegar ao portão, um “presente” jaz sobre agrama.

Estávamos a caminho do Corys, um pouco mais adiante, para acomemoração. Como Ed deu o sangue para a reconstrução dos muros depedra derrubados de Bramasole, passando por enormes frustrações, etambém para a restauração da Fonte, eu havia planejado uma festa para ele –um banquete para vinte dos nossos melhores amigos. Ele achava que íamosencontrar quatro amigos para um jantar tranquilo. Em vez disso, Chiara e eutínhamos estado em Arezzo e comprado uma Vespa branca em estilo retrô,

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saída direto de um filme de Fellini. Nós a escondemos a semana toda nocurral dos cavalos na casa dela. No jantar, planejávamos entregar a Ed umacaixinha com a chave dentro. Chiara comprou para ele um chaveiro. Todaenfeitada com fitas, a Vespa branca seria trazida para a frente do restaurantepor Simone assim que Ed fosse levado lá para fora. Ele não fazia ideia do queia acontecer.

A narrativa neste ponto transcorrerá sempre no tempo presente.

EU PEGO O EMBRULHO, pensando se não devo esperar para abrir na volta. Masnão tem fita nem barbante. Um bilhete rodopia até o chão e eu vislumbro umacaligrafia grosseira. Desdobro o jornal colorido, a seção cor-de-rosa deesportes.

Tenho na mão uma granada.Fico olhando por um instante, até colocá-la lentamente de novo no chão

como se fosse um gatinho abandonado. Volto correndo para casa.“Ed!”, grito. “Tem uma granada no portão de entrada. Estava embrulhada...

como um presente... eu abri.”“Que diabo, do que você está falando?” Ele me agarra pelo braço e me faz

parar.“É verdade. Chama o Claudio.” Ele é o nosso amigo maresciallo, marechal

dos carabinieri.“Espera aí. Deve ser uma brincadeira idiota. Vamos começar de novo. O

que...” Esta é a primeira de muitas vezes que vou escutar a palavrabrincadeira.

“Olha, Eddie, eu sei como é uma granada. Esta não é de plástico. É deverdade!”, grito. “Se eu a tivesse deixado cair, a essa altura podia estar noalto dos pinheiros.”

“Isto é impossível.”“O que está acontecendo?”, Ashley sai da casa, com aparência fresca e

encantadora. Eu não quero dizer nada – também uma reação recorrente –,

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mas digo.“Entrem”, ela ordena.“Claudio está mandando um carro.” Ed olha para o telefone, como se

houvesse mais alguém para chamar. Ele se debruça no muro e olha láembaixo o quadrado de jornal na grama.

“Isto não pode estar acontecendo.” Quem diz isto? Todos nós dizemos.Não demora muito, os carabinieri estacionam na entrada de casa e Ed me

pergunta: “Eu só disse a Claudio que precisávamos dele. Como é granada emitaliano?”

Nenhum de nós sabe, mas conhecemos a palavra bomba. Ed grita:“Claudio, stai attento, c’è una bomba!”

Cuidado, tem uma bomba. Eles param no ato de fechar as portas do carro.“Che cosa, Edoardo?” O quê? Claudio então vê o jornal amassado e eles

param. Claudio pega o telefone. Os três homens entram e olham atentos agranada, em silêncio. Nós nos aventuramos a descer a escada. Eu explico oque aconteceu. Visões passam pelo meu cérebro – a Brigada Vermelha, aMáfia, o prefeito progressista de Nápoles morto a tiros. Meu medo resvalapara raiva.

Claudio está sério, mas diz: “Isto deve ser uma brincadeira.”A arma pesada, cinza e feia, na grama não parece uma brincadeira.“Talvez não seja de verdade”, diz o sujeito musculoso, que parece capaz de

abrir uma granada com os dentes.“É de verdade”, o terceiro afirma. “Mas talvez esteja descarregada. Será

que está descarregada?” A inflexão interrogativa desafia a sua opinião.Mesmo nesta crise, não posso deixar de notar como eles são atraentes nas

suas camisas azuis e calças pretas de verão, com revólveres grandes presosna cintura. A presença deles me conforta. Parece que a granada não vaiexplodir nos nossos rostos.

Ainda agora, escrevendo isto, meu coração começa a bater mais forte.Perco o fôlego. Continuo escrevendo “eles” quando quero dizer “nós”, aindatentando me distanciar.

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Claudio pega o bilhete. Ele mostra aos outros, depois passa para mim.Espera, espera, eu penso. Impressões digitais.“Qualcuno che è maleducato”, diz ele. “Brutta figura.” Maleducato não quer

dizer apenas “mal-educado”. Significa “rude”, o oposto de bella figura.“Al meno”, eu retruco. Pelo menos.

“Veja”, diz o grandalhão, apontando para a assinatura. “Ragazzi.” Garotos.Meu italiano não está à altura da discussão a esta hora. “No. Non sono

ragazzi”, insisto. Não são garotos. Não.Ed balança a cabeça. “Isto não é coisa escrita por uma pessoa jovem.” Ele

aponta para a caligrafia.“Veja a palavra diga riscada. Diga significa dique; garotos escrevendo a

respeito de uma piscina não confundiriam piscina com dique. Não faz sentido.”O que me parecia provável é que o bandido contratado que escreveu o bilhetenão sabia muito bem o que estava fazendo ali. Certamente não sabia soletraro nosso nome.

Isto é o que o bilhete diz:

Signori Maier e os outros vizinhosNão bloqueiem a construção do dique piscina pública

Senão 5 granadas de mão serão colocadas na sua casaCOMPREENDIDO

Jovens de Cortona e CamuciaAssinado G.B.

Meses atrás, fizemos circular uma petição entre nossos vizinhos, umprotesto contra a aprovação que a prefeitura dera para um complexo

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recreativo particular no fim da Strada della Memoria, a estrada que se avistade Bramasole. Embora fôssemos a favor de uma piscina em algum outrolugar, não fazia sentido que ela estivesse localizada na extremidade sem saídadesta estrada residencial, inacabada, onde as pessoas do local davam a suapasseggiata matinal, andavam de bicicleta e corriam. É estreita. Temíamos oaumento do volume de tráfego numa Zona del Silenzio, totalmente inadequadopara a estrada memorial plantada com ciprestes, um para cada rapaz daregião morto na Primeira Guerra Mundial. Esta é uma zona destinada às belliarti onde nada pode ser construído. Nada nem mesmo pode ser alterado semuma inspeção total da área. Pobre de você se quiser instalar uma janela noseu quarto escuro. Nos oferecemos para ajudar a levantar fundos parasubstituir as placas de cobre com o nome do soldado debaixo de cada árvore.

Quando circulamos a petição, ficamos intrigados porque só um ou outroitaliano quis assinar, ainda que concordassem com a petição e não quisessemver desenvolvido “o lado agreste” de Cortona. Eu fiquei pasma. Nos EstadosUnidos, se você não concorda, faz alguma coisa. Você levanta a voz. Vocêorganiza. Faz cartazes. Escreve para o jornal. Você se une com outraspessoas e, juntos, montam uma causa comum.

Eu aprendi novas palavras em italiano – ritorsione, punizione, castigo,rappresaglia. Todas, essencialmente, pareciam carregadas de um intensomedo de represálias. Como Fulvio me explicou quando expressei a minhasurpresa ao ver que os italianos não assinavam: “É uma história antiga, cara.Você mata um dos meus, eu mato dez dos seus.”

“Meus impostos vão subir.”“Signora, meu carro novo será danificado.”“Vão tocar fogo nos meus campos.”“Meus negócios serão investigados.”E o mais primitivo de tudo:“Signora, coloque um cadeado no seu poço”, disse Pietro, cuja mulher não

queria deixar que ele assinasse. Meu poço!? O quê!?Bizarro. Vocês devem estar exagerando, pensamos. Uma simples petição é

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apenas um modo de nos unirmos e expressarmos a nossa opinião. Queestranho – estes toscanos impetuosos, dogmáticos. Cautelosos. Medrosos!

Os estrangeiros assinaram, um ou outro italiano mais jovem assinou e doiscomerciantes também, que eu na época reconheci que tinham coragem.

Nós entregamos a petição e não demorou muito para recebermos uma boadose do que os meus vizinhos já sabiam. O editor do pequeno jornal local –ele era também a pessoa que estava à frente da criação do complexo depiscina particular – escreveu um artigo sobre a minha interferência. Ele diziaque eu não tinha direitos e que, antes de Cortona me dar os meus livros, euera apenas uma poetisa obscura. E prosseguiu nessa linha, me criticandopessoalmente. Argumento ad hominem clássico, cheio de erros e repleto desarcasmo. A conclusão era que os estrangeiros são hóspedes e deveriam sergratos por esse privilégio.

Visto que, àquela altura dos acontecimentos, eu já vivia ali havia dezesseteanos, eu não concordava com essa posição. Eu adorava o lugar e dera asminhas contribuições. Mesmo que não tivesse, acredito que quem vive numacidade tem o direito de participar, ainda que a família não esteja por ali desdeo século XV.

Escrevi de volta, explicando a minha posição, não para o jornal dele, porquepensei que poderia ser editada, mas uma carta pessoal circulou pela cidade.Eu estava na Califórnia, portanto tudo parecia muito distante na época. Eu nãoacreditava, estava ofendida e, principalmente, chocada.

Quando voltei na primavera, fiquei perplexa ao ser recebida como a filhapródiga. Embora ninguém tivesse escrito um protesto público ao artigo, nemmesmo nossos melhores amigos, eu não podia dar vinte passos na rua semalguém aparecer na porta, sussurrando para mim: “Che vergogna”, quevergonha; “Típico de alguém do sul”, numa atitude de desaprovação; “Vocêsabe que ele não é de Cortona”, até me dizendo o quanto todos me amavam.Outras histórias, sotto voce. Eu não queria ouvir. Eu realmente não estavainteressada neste mau ator desempenhando a cena mais recente da piazza.Eu queria bloquear isso, como células brancas em torno de uma infecção.

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Todos mencionavam as origens do editor. “Ele é calabrês – eles são assim.Nós não.” Ironicamente, tentando me consolar, eles reforçavam a existênciade xenofobia. Eles são assim. Nós não. O editor tinha mais em comum comos estrangeiros do que sonhava.

Estávamos tentando engolir a lição. Não só os residentes na nossa áreativeram medo de assinar, como nem nos defenderam quando fomosinjustamente atacados por uma causa na qual acreditavam. Eles não deram amínima importância. “Ninguém lê esse jornal. Ninguém acredita em nadanesse jornal.” E o mais estranho de tudo: “Isto só mostra como você éimportante.” Bem, obrigada, mas eu preferia ser menos importante se obenefício é este. Para alguns, era algo para não se fazer caso. Outrosficaram amnésicos. Mais tarde, eu compreendi. Na época, não.

Todas aquelas receosas repetições de ritorsione, punizione, castigo,rappresaglia que eu havia escutado quando distribuímos a petição –represália. Ah, sim. Agora eu estava vendo por que todos ficaram de bocacalada.

Depois que a petição perdeu a força, e a carta brutal se tornou quase umapiada, o complexo de piscinas foi adiante. A construção estava em andamentoquando a granada aterrissou no meu jardim. Portanto, eu já tinha perdido aminha causa. Por que me aterrorizar? Mais tarde, compreendemos um outroaspecto da questão. Aprendemos que esse tipo de abordagem simplesmentenão funciona. Aprendemos que uma carta em resposta ao editor eraigualmente considerada uma perda de tempo. As resoluções passam poroutros caminhos.

“Como a gente podia não saber disto?” Eu não parava de perguntar a Ed.“Porque nunca fizemos onda. Estávamos felizes e satisfeitos como ervilhas

numa vagem.”“Você está misturando metáforas. E clichês. E está absolutamente certo.”

UMA MULTIDÃO SE JUNTA na estrada. Nossos hóspedes, que saíram antes de nós,

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e vários amigos caminharam do Corys até Bramasole para ver por queestávamos atrasados. Eles tinham chegado com meia hora de antecedênciapara estar prontos para a entrada de Ed. Os carros param para ver o queestá acontecendo. É desconcertante. Todos de roupas de festa, solenementede pé na estrada. Estou pensando a mesma coisa, quando Ashley diz: “Nãopodemos rebobinar a fita? Tocar de novo?” Desta vez os italianos perderam afala. Ou estão avaliando pelo lado da brincadeira – mas ninguém toca nagravidade da granada.

Ashley, com um filho pequeno na casa, insiste para que os carabinierivasculhem o terreno. Como psicóloga forense, com muita experiência emmentes criminosas, ela examinou o bilhete e disse logo: “Esta é uma ameaçarevoltante. E ser de um amador não a torna menos grave.” Nós levamos obebê e a babá para a casa dos Cardinalis. Pensando bem, fico surpresa como fato de a babá não ter dito: “Estou fora. Buona notte.”

A granada, intocada, aguarda na grama. Claudio chama o esquadrão debombas em Florença. Ele promete que os homens passarão a noite naentrada da casa e o tempo que quisermos. Doug, um de nossos convidados,outro especialista forense, liga para uma amiga do FBI e descreve o queaconteceu e o bilhete. A agente pergunta sobre sentimentos antiamericanosna área. Ela fala sobre investigar a caligrafia e reitera que muitos atosterroristas são cometidos por ignorantes manipulados.

Telefonamos para o cônsul em Florença, com quem compartilhamos algunsjantares em castelos e jardins de villas. Ele diz que nunca ouviu falar de umaocorrência desse tipo e pergunta se queremos intervenção. Nós dizemos quevamos deixar a cargo da polícia local por enquanto, e que o esquadrão debombas chega amanhã para determinar se a granada está carregada.Resolvemos mandar Ashley e Willie com nossos hóspedes para dormirem nacasa da montanha, se alguém conseguir. Ed e eu estamos decididos a ficar nanossa casa. Com medo, sim, mas alguém na idílica Cortona ficaria muitosatisfeito se fôssemos expulsos esta noite.

Parece não haver mais nada a fazer, por mais surreal que pareça. Pegamos

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nossas bolsas e câmera e vamos para a festa.No caminho, eu penso: Nunca vou superar isto. Penso: Isto aqui acabou

para mim? Luto contra o impulso de ir embora, simplesmente ir embora.Naquela hora mesmo. Trem noturno até Roma, voo de manhã cedo para osEstados Unidos.

Mas logo estamos puxando as nossas cadeiras diante da longa mesadebaixo do toldo numa brilhante noite de verão. Nossos amigos nos aplaudem,nos abraçam, especulam sobre o criminoso. Giuseppe serve prosecco comgenerosidade. Lembro-me de Lina num vestido de cetim cor de bronze dealças finas. Chiara com os cabelos presos e Renato falando de fascistas e deidiotas. Eu me lembro da palavra brincadeira pulando de cadeira em cadeira.Começo a compreender que nossos amigos estão apenas tentando nosproteger. Mas mesmo assim incomoda, como dizer “Você vai ficar bom logo”para um paciente de rosto pálido cujos grãos de areia escorrem em quedalivre pela ampulheta.

ASHLEY LEMBRA que o jantar foi esplêndido. Eu, que me recordo de refeiçõesdivinas desde os tempos de criança, não me lembro de nada. Sei que todosestavam muito emocionados, muitos brindes foram erguidos e Ed realmentenão sabia para que era a chave na caixinha. Chiara e eu o levamos para a ruaonde a Vespa estava estacionada. Ela tinha laços brancos, vermelhos everdes amarrados no guidom, as cores da bandeira italiana. A pintura embranco metálico brilhava incandescente sob a luz do lampião, como se umalâmpada queimasse dentro da forma bem desenhada. Todos aplaudiram. Edpulou em cima, ligou o motor e saiu em disparada, os cabelos brancosespetados, o terno branco e a Vespa branca conspirando para parecer umanúncio na GQ italiana. Ele parecia tão despreocupado como se sentiraquatro horas antes. Eu senti uma súbita vontade de chorar. Ele é a melhorpessoa do mundo; ele não merece isto. E aí, senti uma raiva enorme.

A Vespa – a Itália de Fellini. Romance e liberdade. Se existe reencarnação,

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que eu tenha dezesseis anos, os cabelos voando atrás de mim, quando euparto da piazza. Eu adorei dar uma de presente para Ed.

Ele fez um U na bifurcação e voltou, atravessando uma fronteira invisívelentre o antes e o depois.

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Depois

Eu fiquei imaginando o que os dois carabinieri sonhavam. Às seis damanhã, da janela do meu escritório, eu os via no carro lá embaixo, aindadormindo. A noite passada realmente aconteceu? O céu amanhecendo,rajado de luz lilás e nuvens rosa-dourado, proclamava a sua inocência

diária. Eu vi Ed num terraço superior podando algo que provavelmente nãoprecisava podar. Ele acordou quando ainda estava escuro, tendo jogado longeo lençol e várias vezes executado uma espécie de mudança de posição queparecia acrobática – levitar e dar um piparote no ar. Eu provavelmentetambém me debati, vendo em flashes milhares de vezes as outras temíveisbombas mencionadas no bilhete.

Quando os carabinieri se afastaram da entrada – sem dúvida atrás de umexpresso ou de um banheiro –, eu senti uma convicção irracional: eles foramembora; acabou; apaga; deleta. Examinei as cores do céu, agora clareandopara um azul como as veias dentro do pulso da minha avó. Violeta. Violência.Dobrei os dedos num punho, ainda sentindo o peso da granada. Algumascoisas são mais pesadas do que o seu tamanho sugere. Eu me imagineilançando a granada, mas sobre o quê? Violência gera violência. Você mataum dos meus, eu mato dez dos seus.

Às dez horas, a parada começou em Bramasole. Todos que passavamcasualmente por lá paravam para conversar com os carabinieri postados láembaixo. O chefe chegou com Claudio e outro espécime bonito, temível, cujoqueixo quadrado contrastava com lábios fazendo beicinho. Desta vez, elestrocaram o uniforme informal de verão por outro debruado de vermelho,comunicando a formalidade da visita. O chefe descreveu como a análise dasdigitais e da caligrafia seria enviada para Roma. “Quanto tempo demora paratermos os resultados?”, Ed perguntou.

“Talvez uns dois meses”, o chefe admitiu. Nós concordamos com um

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movimento de cabeça, mudos. Não dissemos: “Meu Deus, dois meses! Porque não dois dias?”

“Enquanto isso?”“Vamos investigar e fazer algumas entrevistas.”“Tem algum jeito de mantermos isso fora dos jornais, fora dos noticiários?

Com todas as pessoas parando na estrada, duvido. Mas minha esposadetestaria a publicidade...” Ed parou atrás da minha cadeira, as mãos nosmeus ombros.

“Faremos o possível.”“Vocês têm alguma ideia de quem fez isto?” Eu já sabia que ele não ia dizer,

se soubesse, mas eu queria ver seu rosto ao responder.“Humm. Não.” Ele sustentou o olhar. A testa franzida fundia as sobrancelhas.

Ele nem girava o chapéu que tinha no colo. Eles se levantaram, mais uma vezexpressando seu pesar. Cortona tem poucos crimes e com certeza nada, nemde longe, parecido com isto, nunca. Eu sabia que estavam mortificados elamentava ser a incômoda estrangeira a provocar tal acidente.

Em seguida, veio o jovem prefeito, Andrea, fumando furiosamente, e seuassistente, também Andrea. De alguma forma, nós sempre rimos juntos. Elegesticula muito, anda de um lado para o outro, representa o que estiverdizendo e, quando vai embora, nunca tenho muita certeza do que realmenteaconteceu. O prefeito estava preocupado com a publicidade negativa para acidade, e com razão. Todos nós podíamos imaginar os artigos: “Escritoraamericana e família evacuadas pela CIA.” Que desastre para os hotéis,restaurantes, comerciantes. “Terrorista imbecil lança granada emamericanos.” Ônibus de turismo disparando da Piazza Garibaldi. Equipes defilmagem surgindo aos montes. Ele esperava que o incidente fosse umabrincadeira, embora, ao ver o bilhete, tenha mudado de ideia. Nenhumragazzo, rapaz, nas excelentes escolas de Cortona, escrevia mal assim.Impossível. Mas. Não. Precisava. Se preocupar. Tudo estava sob controle.

Depois que alguns amigos vieram nos visitar com melões e feijões, depoisque as cigarras forneceram a sua estridente música de fundo, depois que

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todos caminharam ao redor da granada na grama e pararam no alto daentrada para admirar a Vespa branca, depois de um telefonema para Ashleyinsistindo para que passassem o dia fora, depois que amigos expatriadosperguntaram se um dos cinco mil muçulmanos na província estaria envolvidoem gestos antiamericanos, depois que me encostei numa árvore e fiqueiolhando para o vale lá embaixo, depois de uma manhã que durou umasemana, o esquadrão de Florença chegou.

Cinco homens de botas altas pretas, camisas pretas, calças justas degabardine e coldres presos no ombro desceram de um ameaçador sedãpreto. Tinham fechado a estrada no Corys e pediram que ficássemos dentrode casa. Bom. Eles estavam falando sério.

Uns quinze minutos depois, um deles chegou à porta e nos disse que agranada não estava carregada. Descemos com algumas garrafas de água atéonde eles estavam reunidos colhendo provas. Em pouco tempo, estavamcontando piadas, perguntando a respeito das oliveiras, sobre o filme do meulivro. Sob o seu porte feroz e roupas sérias, eles são como a maioria doshomens italianos – gregários, irreverentes, afetuosos. Eu gostaria queficassem na entrada de casa durante todo o verão.

O fato de a granada não estar carregada fez com que nos sentíssemos umpouco melhor. Gilda tinha as suas teorias. Giorgio também, mas não importa.Gilda fez uma sopa. Giorgio, que nos ajuda aqui, andou pelo terreno. Emgeral, nos divertíamos juntos; lamentei que ficassem preocupados. Ed pegouum trapo e limpou uma película de poeira da sua linda Vespa até ela brilharbranca e imaculada como a lua.

Eu fui à cidade uma vez naquela semana e enfrentei uma repetição dasconsequências da famosa petição. Pouquíssimas pessoas, entretanto,pareciam não saber – ou talvez preferissem fingir. As suposições sobre ocriminoso, a repetição de “fascisti”, o despertar de antigas rixas entreesquerda e direita datando de um século (a memória é persistente na Itália), odar de ombros cético, a certeza de que alguém tinha sido contratado – tudoera interessante. Secreto. Nada exposto. Ninguém falava com a gente na

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piazza sobre a granada. Alguns nos chamavam para dentro de lojinhas,falavam conosco nas portas de entrada, sorrisos nos rostos aparentementeexpressando saudações cotidianas, mas, na verdade, contando a respeito dosnegócios de um tio com uma certa pessoa desagradável, rancores datando daSegunda Guerra Mundial de quando alguém virou guerrilheiro, sonhos devingança por causa de um acordo de aluguel desrespeitado. Atordoante. “Ed,talvez seja a arquitetura da cidade – todos os vicoli (ruazinhas) íngremes,escuros, saindo da rua principal, ziguezagueando para o interior de Cortona.”

“Realmente. A cidade como uma metáfora do cérebro coletivo.” Ficamos emtranse a semana toda.

A álgebra que estávamos aprendendo: equações que equilibravam a nossamaneira de pensar americana eram todas Xs igualando-se a outros Xs aqui.Uma pequena notícia apareceu no jornal de Arezzo. Surpreendente,surpreendente. Dizia:

AMEAÇAS DE BOMBA EM UM CANTEIRO DE OBRAS

Ela não explodiu e não podia explodir: era um velha lembrança da guerra, um estojo vazioencontrado com frequência nas barracas dos mercados de pulgas. Além do mais, também nãotinha pólvora. Isso não significa que a mensagem não fosse perturbadora: uma granada de mão,“tipo abacaxi”, colocada no canteiro de obras para a construção de um novo centro de esportes doParterre, já foco de milhares de discussões. Esta disputa dividiu Cortona. A construção da piscinaparece estar ligada à descoberta no sábado. Foram os carabinieri que descobriram a granada,depositada perto de um cartaz ameaçador escrito a mão.

As investigações conduzidas pelos carabinieri apenas começaram e podem continuar: o fato éque alguém fez um gesto grave, alguém que decidiu continuar a batalha contra o centro deesportes por outros meios, que não as simples palavras, a partir de montanhas de documentosque foram preenchidos nos últimos meses, as montanhas de discursos, pró e contra, quecaracterizam desde o início do ano a controvérsia na cidade.

Era impossível deixar de rir. A nossa própria granada transferida para o localda piscina. Descoberta não por mim no meu vestido de festa de verão, maspor carabinieri. Não contra nós, mas contra eles. Oh, mamma mia!

Quem inventou isto e por quê?

O VERÃO RECOMEÇOU. Eu reivindiquei para mim o centro do meu coração.

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O que se tornou claro nos meses seguintes foi que o nosso relacionamentocom a cidade mudou. Desde o dia em que chegamos, ficamos deslumbradoscom a amizade e a hospitalidade. Sempre nos sentimos totalmente bem-vindos. Mas, embora já nos sentíssemos pertencendo ao lugar antes, ficamoscom a sensação de que as pessoas agora sabiam que nós realmentepertencemos, que estávamos aqui para ficar e que, visto termos conhecido opior, podíamos nos tornar não apenas residenti elettivi, residentes eletivos,mas familiares. “Cari, siete cortonesi.” Queridos, vocês são de Cortona. Duaspessoas me deram um corno, o enfeite de coral em forma de chifre que atéos bebezinhos usam para protegê-los do mau-olhado. Um barista disse:“Pensei que vocês só tiveram sorte.”

Antes, muitas vezes tinham me puxado de lado para contar uma históriapessoal. “Você pode escrever sobre isso”, quem contava dizia com orgulho.Havia sempre muitas notícias sobre problemas de fígado, adultério, apelidossecretos que ricocheteiam pela cidade, tumores ocultos, histórias de família,momentos de orgulho e piadas. Depois – o nível de confidências não dobrou,quadruplicou. Eu nem sabia que estava do lado de fora olhando para dentro,até que, de repente, eu estava do lado de dentro olhando para fora.

WILLIE TEVE UM ÓTIMO VERÃO. Ashley desconfiava de cada carro que passava. Eutambém. Ed relutava em nos deixar sozinhas, até para sair com Placido e ofalcão. Passávamos cada vez mais tempo na casa da montanha. Eu comeceios meus passeios pelas trilhas na floresta de castanheiros, imitando osseguidores de São Francisco. Com frequência, pensava nos versos deNeruda:

Tenho de ir bem mais longee tenho de chegar bem mais perto...

Ed se dedicou à culinária. Ele me comprou um capacete vermelho-escuro epassamos a explorar estradas secundárias, sacolejando na Vespa.

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Alguém me entregou mais um diminuto artigo de jornal. Uma pedra grandefoi lançada de noite no fundo de vinil da nova piscina, rasgando-o. Mais tarde,houve um boato falso de que uma menina havia sido estuprada ali. O dramacontinuava sem a gente. Eu achava as soluções clandestinas para a situaçãomuito incômodas. Miss Insônia era minha hóspede permanente.

MUITO DEPOIS – a piscina foi um fracasso. Pequena demais. Fria demais sob osmajestosos ciprestes. Me agradava pensar que os soldados da PrimeiraGrande Guerra homenageados amaldiçoaram todo o projeto. Principalmente,longe demais da cidade, scomodo demais, inconveniente. Ah, SherlockHolmes, que descoberta. O mesmo para o restaurante da piscina e os planospara espetáculos de teatro. O dano estava feito à sonhadora colina. Com oque todos precisam conviver: luzes horríveis como as de um aeroporto (e aeletricidade é exorbitante na Itália) e um feio talho turquesa no morro queantes parecia a paisagem por trás de uma Crucificação de Signorelli. DeBramasole, não podemos ver o canteiro, mas muitos podem.

Como o fracasso ficou mais evidente dois verões atrás, a administração emdesespero recorreu a noites de discoteca com uma forte iluminação como ados estacionamentos de carros usados nos subúrbios. Escutávamos os versosmonótonos de “I Wanna Be Your Girl”, a todo volume, às três horas damanhã. Havia camisinhas espalhadas pela Strada della Memoria nas manhãsde domingo. As discotecas italianas param por volta das seis da manhã.

O absurdo foi quando os proprietários da piscina sugeriram que quem nãoquisesse barulho devia pagar pelos prejuízos que a administração estavasofrendo. Se cada morador comparecesse com uns dois mil euros por ano,então eles desligavam o aparelho de som. Todos na encosta riram, quemsabe mais alto do que a discoteca.

Pegando carona no nosso protesto, um amigo italiano que viveu a sua vidaadulta nos Estados Unidos fez circular uma outra petição. Desta vez – semrepercussões. Talvez tenhamos iniciado a ideia de que você pode abrir a boca

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para falar. A imbecilidade da discoteca acordou todo mundo do nosso lado damontanha, e Ed e eu não precisávamos mais ser os únicos a protestar.Simplesmente falamos com algumas pessoas influentes na cidade. Emparticular. Ninguém foi colocado sob os holofotes. Veja como aprendemos! Noverão seguinte, a permissão para a discoteca foi negada pela comuna.

Na piscina, agora, crianças aprendem a nadar. Uns poucos turistasholandeses param para um mergulho. Tudo está calmo. Per ora, porenquanto...

Os carabinieri nunca encontraram a pessoa que deixou a granada. Muitasvezes eu me pergunto se ela passa de carro por ali, se se arrepende do quefez.

Todas as evidências enviadas para ser analisadas em Roma nadarevelaram.

Mas segredos escapam. O colar de ouro escondido no bico de um sapatoserá encontrado pela criancinha. O e-mail proibido tende para o clique deencaminhar, não de apagar. A confidência mais secreta aguarda para setransformar em verdade, ondulando ao vento como um estandarte cor delaranja. Existe ali alguém que protege um outro alguém e, ao mesmo tempo,anseia por abrir as mãos e oferecer esse conhecimento proibido como umamaçã madura. Já tem alguém ensaiando. Um dia, escutarei uma voz bematrás de mim enquanto olho a vitrina de uma livraria ou escolho os merenguescom creme típicos da região para o pranzo de domingo.

Signora, só queria que soubesse...

O EDITOR JAMAIS SE DESCULPOU pelo artigo difamatório. Ele saiu da administraçãoda piscina. Eu o ignoro quando passamos pela Rugapiana, o que é frequente.Um amigo italiano diz: “Mantenham distância olímpica.” Na verdade, nãoguardo raiva. Uns poucos sugeriram que devíamos nos perdoar mutuamente.Eu respondi que aceitaria flores dele no meio da piazza ao meio-dia. Nenhumarosa apareceu.

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Tragam-me ogirassol enlouquecido

de luz

Se uma história começa com descoberta, deve terminar com busca.– PENELOPE FITZGERALD

Rosas, cortar rosas e colocá-las num jarro de estanho satisfaz o meuinstinto solitário. Todas as cores se completam, até a vermelha AbeLincoln, que não é a minha favorita. Ela é a nódoa de sangue venosoentre os sedosos damascos, amarelos e tons de rosa. Pronunciar o

nome em italiano, Ah-bay Link-o-nay, transforma o severo presidente emalguém que talvez preferisse o samba em vez de tocar “Jimmy Crack Corn” nagaita.

C’era una volta, assim começam as histórias, era uma vez. Eu gosto doarcaico “upon” na expressão em inglês once upon a time, como se a históriaestivesse sentada sobre o tempo e, portanto, fora do tempo. Ataquesrecusam-se a cair no reles tempo, na simples fábula. Parece errado quemomentos felizes com frequência se misturem no tempo, desfocados numanódoa de bem-estar, enquanto acontecimentos violentos permanecemvividamente eles mesmos. Como fazer da nossa própria vida o extremooposto? Depois que os batimentos cardíacos voltaram ao normal, estapergunta me preocupava. Essa é a pergunta a que eu quero responder.

NÃO ACONTECEU NADA, NA VERDADE , eu digo para mim mesma. E vou meocupando com o meu dia. Curiosamente, penso naquela ocasião em que umhomem drogado invadiu a minha casa em São Francisco. Estávamos jantando,quando ele irrompeu pela janela, aterrissando no meio da sala de estar. Ele

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veio cambaleando na nossa direção aos gritos: “Eu quero matar”, e, quandoele se aproximou berrando, joguei o meu vinho no seu rosto e fugimos. Elegritou atrás de nós: “Me dá uma faca!” Eu corri para a esquerda, para osnossos novos vizinhos. Ed correu para o outro lado da rua, onde as luzesestavam acesas. Ele ligou para a polícia enquanto corria. Nosso visitanteseguiu atrás e tentou passar pela porta quando nosso vizinho, surpreso,ergueu um taco de golfe sobre a sua cabeça. O invasor foi preso naquelanoite. Duas semanas depois, estava de novo na rua. Na minha mente, eleinvadiu várias vezes, um sol radiante de vidro estilhaçando ao redor do seurosto apalermado, drogado.

DIAS DE SOLIDÃO; ah, esta é a minha vida. Não confunda a ferida do mundocom o mundo, um amigo sábio me disse anos atrás. Então eu folheio os livrosde arte, escrevo trinta frases que poderiam iniciar um romance, tentoencontrar a palavra exata para a luz verde aquosa que passa pela janela domeu escritório, procuro palavras no dicionário e relaciono as novas e boas nomeu caderno. Eu pergunto: o que informa, o que inspira, o que alimenta, o quediverte? Dias assim são profundamente revigorantes.

Talvez confrontos imediatos com a violência, como pequenos terremotos,liberem pressão, evitando aqueles extraordinários que pegam o Richter desurpresa e sacodem as obturações dos nossos dentes. Esses terremotos queeu vivi na Califórnia, os copos tilintando uns contra os outros, não foram nadaem comparação ao terremoto de 1989, quando eu era jogada de um lado parao outro enquanto descia as escadas e saía de casa. Pequenos toques dedespertar da vida. (Precisam ser tão numerosos?) Desenrole o papiro ecomece a gemer – ou grite Carpe diem.

E ED, ASSALTADO AO VOLTAR A PÉ da Fillmore Street, a poucos quarteirões decasa. Quando revidou, recebeu um golpe forte e foi imobilizado, ele percebeu

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de repente que podia ser morto e parou de lutar. Seu agressor saiu de cimadele e disse: “Desculpe, cara.” Quando Ed entrou em casa, nossa gata,Sister, sentiu o fedor da luta e correu por todos os cômodos chorando. Euestava na Espanha; ele ia partir no dia seguinte e havia convertido os seusdólares. Deu uma certa satisfação pensar que, quando o ladrão abriu acarteira dele, encontrou pesos e liras. Depois nós nos mudamos para umbairro mais afastado em São Francisco, com casas em estilo espanhol e ruassombreadas. St. Francis Woods tinha fama de ser a área mais segura dacidade. Foi lá que o cara drogado saltou para dentro das nossas vidas. Noano seguinte, nós nos mudamos para o norte, para Marin, um beco sem saídaisolado com um portão trancado no alto da estrada e uma vista serena dabaía.

Eu começo a perceber: é hora de aproveitar o dia, impiedosamente, comominha tia Hazel se aproveitou dos casacos de pele e das joias da minha avódurante o funeral ao qual não esteve presente porque estava “transtornadademais”. Quando voltamos, seu Lincoln estava abarrotado.

ROBERT RAUSCHENBERG escreveu sobre o seu processo de pintura:

Eu trabalhava havia tanto tempo num estilo puramente abstrato que era importante para mim verse eu trabalhava assim porque não podia fazer de outra forma, ou se eu fazia isso por escolha.

Por que não aproveitar este tempo de autoexílio solitário para desaprender,sacudir a bússola e dar uma guinada para um outro território, sacudir “aletargia do hábito”, como dizia Coleridge? Talvez então retornar com novaspercepções? No meu último momento crucial, saltei do barco, larguei o meuemprego na universidade para viajar e escrever Um ano de viagens. Comoestou revendo escolhas passadas, talvez também comece por revitalizar aminha própria vida mais privada e criativa.

LEMBRO QUANDO UMA ESTUDANTE foi assassinada num elevador da universidade

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onde eu dava aulas. Outra foi estuprada no banheiro feminino. Durante meses,não podíamos ir ao banheiro desacompanhadas. Também não podíamos abrira nossa correspondência, a não ser que tivesse sido conferida, porque haviasuspeitas de que o Unabomber estava por perto e, quem sabe, podia terescondido uma bomba nas páginas de The Gettysburg Review.

CERTAS PRÁTICAS lançam um feitiço benevolente, protetor, sobre as horas. Umhábito: escolher um livro de poemas, ou um livro sobre ciclos de afrescos, ousobre um artista qualquer, ou de meditações, e começar cada dia com umtempo dedicado à leitura e à contemplação, tornando-me aprendiz de umamente que admiro. Eu escolho os poemas da minha amiga C. D. Wright. Sintosaudade dela. Ela é sulista até a alma, e, em todos os seus poemas, há umpunhado de terra vermelha ferruginosa. Em pessoa ou nas páginas, eladesafia a linguagem, vira temas pelo avesso, e, além disso, possui umasensibilidade aguçada e rude que muitas vezes é engraçada, antissentimentale personifica a palavra feroz.

Fui procurar Pilates Encontrei o meu velho casacoLevei meu testamento ao tabelião Encontrei meus óculos bonsEnchi meu tanque Vou ao mercadoDepois acho que vou raspar meus cabelos com uma garrafa quebrada

O leitor embarca. A escritora sai para o mar aberto. A obra de Carolynoferece revelação, a mão de um verdadeiro original e o prazer da sinestesia:“a ligadura de carros”, “a pétala de um olho se fechando”, “babosas ebromélias feltradas de poeira”, “uma cortina de buganvílias”. Querida Carolyn,podemos fazer uma viagem pelas estradas do Sul juntas?

PENSO EM DOIS VIZINHOS em Pacific Heights, um sequestrado com o carro, outroroubado e espancado gravemente com um pé-de-cabra. Nossa garagem

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arrombada com uma gazua e as bicicletas roubadas. Aqueles foram os anosem que São Francisco passava por uma época de pico de consumo de drogase o nosso gentil bairro vitoriano era um alvo. Eu dormia com um botãoeletrônico de pânico ao lado da cama.

POR QUE NÃO COLOCAR XS MAIÚSCULOS naqueles quadrados brancos nocalendário? Isolar o tempo – com bastante antecedência – e satisfazer osmeus desejos? O que eu quero nesses dias mágicos em branco? Não almoçarcom Julia, não caminhar com Michaela, não ir a uma aula de ioga ou aocinema. Eu quero o equivalente mental de um lago negro sem fundo, cercadopela grama alta e um salgueiro. Ficar sentada ali. Luxos são as horaspreservadas para ler poesia, desenhar, ouvir Ravel, tudo de Ravel, e ler tudoque for possível sobre o meu fratello na teia do tempo, Luca Signorelli.Dispensando-me do cotidiano, quero praticar a arte de cuidar dos meuspróprios interesses. Meus próprios caprichos inflexíveis. Posso agorareivindicar o meu direito infantil de explorar sozinha? Curtir a exploração porela mesma, que é o modo de levar adiante minha causa. Minha causa, claro, éa sabedoria, que, para alguns, vem do berço e para outros, da contemplação.

TEMPOS ATRÁS, UM ABELHUDO LEVANTOU a cortina branca, com um cabide, numanoite de agosto, quando eu era recém-casada. Meu marido dormia.Escorreguei pela lateral da cama e fui engatinhando em silêncio até o corredore chamei a polícia. Eles o pegaram um quarteirão mais adiante. Soube depoisque era um garoto do curso de verão que eu frequentava e que tinha meligado no dia do meu casamento pedindo para que eu não me casasse. Meaculpa. Reconheço que andei flertando mesmo estando noiva.

Ah, mas, como escreveu Eduardo Galeano, Vamos deixar o pessimismopara épocas melhores. Da minha coleção de livros intactos em branco – tenhotantos que não seria capaz de enchê-los em três vidas –, abro um amarelo e

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branco-mármore e escrevo o último verso de um poema de Montale:

Tragam-me o girassol enlouquecido de luz.

Resolvo observar alguma coisa do mundo natural todos os dias, umaimagem ou parágrafo, e escrever aqui. Conheço todas as trilhas de javalis,aceiros e marcas de rodas de charrete no meu lado do Monte Sant’Egidio,onde, como os seguidores de São Francisco, eu perambulo e observo,praticando o hábito de ficar sentada imóvel, observando as libélulas eborboletas na urze silvestre. Tenho sorte em ver um falcão na posição “SpiritoSanto”. A ave encontra o equilíbrio entre o movimento da sua asa e uma brisa,de modo que, como o Espírito Santo nos quadros, fica em suspenso, pairandosobre a sua miserável presa lá embaixo até o momento de atacar. Emboravista jeans e camiseta, talvez eu seja como os eremitas medievais, vivendo omeu próprio dia idiorrítmico.

Relendo as minhas anotações mais tarde, elas irão me religar rapidamente àfresca e surpreendente natureza?

• O lagarto verde voando da borda de um vaso de gerânios para o seguinte• Ver o perfume de um punhado de morangos silvestres• Sentir a translucidez esverdeada de uma fina fatia de funcho• As folhas douradas de outubro grudadas numa estátua de mármore noparque

• Três senhoras idosas com vestidos de estampas escuras, de costas paraa vista de Santa Maria Nuova, visitando no sol de inverno. Imortais

• Campos ondulantes de final de junho com aglomerados de papoulasvermelhas em meio ao trigo castanho-amarelado. Eu noto a cruz de Maltapúrpura escura gravada dentro de apenas algumas das milhares depapoulas vermelhas oferecendo o seu serviço. Anos vendo papoulas, eagora descubro a cruz mágica escondida no centro das pétalas vermelho-sangue. Como a vida continua a se abrir e intrigar

Nos meus primeiros anos na Itália, a renovação natural que experimentei

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aconteceu em grande parte por me sentir novamente em casa na natureza,alegre como na infância. Quando começamos a arrancar as amoreirassilvestres da terra e plantar jardins – um jardim de rosas, um jardim de ervas,um jardim de vegetais, um jardim sombreado –, percebi que o trabalho árduo,as dores, o suor e os arranhões da restauração eram, como o processo deescrita, onde trabalho e brincadeira se tornavam a mesma coisa. Como umapessoa adulta, meus pés estavam acostumados ao concreto. Dormir com aporta aberta, acordar com os esplendorosos alvoreceres toscanos, escutar asabelhas explorando o néctar das tílias, deitar na grama de noite observandoas estrelas cadentes, ir a pé até a cidade, em vez de usar o carro – tudo merealinhava com o meu amor pelo mundo natural. Ritmos circadianosusurpavam o relógio.

Para o meu caderno da natureza, Thoreau era a minha inspiração porque eleolhava intimamente para o pequeno pedaço do mundo em que vivia. Há muitasabedoria nesta frase sua: “Viajei muito em Concord.”

• Três gatos malhados enrodilhados debaixo de um pé de alfazema• Gerânios cor de coral derramando-se de uma sacada barroca• Pedreiro mergulhando os pés esfolados do trabalho na água quente dafonte

• Redes para enguias em forma de cornucópia secando na rua de pedrasdouradas

• Num canal em Veneza – imensas calcinhas cor-de-rosa desfraldadas àbrisa

• Uma montanha de pêssegos maduros no mercado• Sementes de ipomeias negras macerando num vidro antes que eu façaum talho em cada uma delas para germinarem

O que você vê, você sabe. No meu caderno (papel artesanal, obrigada,Alberto, e tinta de verdade), eu arrumo estes pedaços táteis de tempo, comofaria com três peras russet sobre um guardanapo ocre para uma fotografia.

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CONFRONTOS IMEDIATOS com a violência – são microcosmos. Já estamos noséculo XXI e ainda recorremos a guerras bárbaras. É muito triste perceberque não avançamos, mas sempre pegamos o bastão.

Quando alguém pega o bastão, outra pessoa tem menos controle sobre avida. O estresse pós-traumático deve ser a doença mais subestimada sobre aTerra. Como as pessoas seguem em frente milagrosamente depois do guetode Varsóvia, as ruas de Badgá e outros horrores é um desafio para apsicologia.

Mas não se pode viver comparando experiências pessoais com extremoshistóricos. Se o seu irmão colocou você para centrifugar na secadora aos doisanos de idade, se a sua casa foi bombardeada, se a sua irmã cortou a sualonga trança enquanto você dormia, se uma bomba explodiu seus pais empedacinhos... Que medida você vai usar para avaliar isso? Avançando para ummundo civilizado, não é melhor comparar experiências com um bom paradigmaem vez de usar o pior cenário?

O PRIMEIRO EPISÓDIO na minha série pessoal dilacerada por guerras – um diacomum de maio, quando eu tinha cinco anos de idade. Um funcionário dafábrica de algodão invadiu o escritório do meu avô e atirou no meu pai deraspão. Ele tinha se colocado na frente de Daddy Jack, meu avô, e levado abala. Eu me lembro de escutar mais tarde que o homem, Willis Barnes, estava“mal-arranjado”. Pensei que isso queria dizer que a sua barriga estavaroncando muito. Willis Barnes havia matado um homem dentro da fábricaantes de atravessar a rua até o escritório. Ele matou outro homem depois deatirar no meu pai.

Eu estava em casa com minha mãe, quando nosso amigo Royce Williamsveio lhe contar o que tinha acontecido. Ela correu para o quarto, chorando, eeu fui atrás, pulando na cama com dossel. Eu comecei a saltar, agarrando odossel e puxando os babados de organdi. “Desce daí!”, gritou ela, me dandoum tapa e procurando um lenço nas gavetas. “Eles acham que ele vai

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sobreviver”, disse Royce, enquanto o colchão saía do lugar e a cama vinha aochão.

No julgamento, fiquei sentada nos fundos da sala do tribunal na seção paraos negros, com a nossa cozinheira Willie Bell. Trouxeram meu pai numa macae pediram que ele identificasse o assassino. Ele se levantou de lado paraapontar para Willis Barnes. Nunca mais ele se recuperou totalmente e morreunove anos depois. A filha de Willis Barnes estudava na minha turma na escolae cuspiu em mim várias vezes. Willis Barnes foi eletrocutado. Lembro-me deouvir as pessoas dizendo: “Ele vai fritar”, e fritou. Um grupo da nossa cidade,Fitzgerald, foi a Reidsville assistir à execução. Isto faz parte das minhaslembranças, mas não tenho certeza de que é verdade. Ainda assim, eu os vejona divisória de vidro e, que estranho, a minha memória assume o ponto devista de Barnes, não a perspectiva de uma criança no meio de adultos, mascomo ele os veria se olhasse da sua cadeira elétrica de aparência medieval.

De volta do hospital, meu pai levantou a parte de cima do pijama quando eupedi para ver onde ele tinha levado o tiro. Meus olhos franziram quando vi otalho vermelho costurado com linha grossa preta. Nas suas costas, estava oorifício enrugado por onde a bala tinha saído.

EU NÃO PISO EM FORMIGAS. Ed leva os escorpiões para fora de casa dentro deum vidro. As aranhas na banheira têm uma chance de subir pela toalha e serlevadas para o peitoril da janela. Eu vivo com um homem gentil que sempre dáa outra face, a não ser que o ataquem brutalmente numa calçada. Caminheina sua direção no aeroporto de Madri, quase sem reconhecer o seu rostoarranhado pelo cimento, as bochechas com equimoses e os lábios rachados.“Não se preocupe”, ele foi logo dizendo. “Podia ter sido pior. Muito pior. Estoumuito feliz por estar aqui.”

Podia ter sido pior. Estou muito feliz por estar aqui.É. E poderia ter sido melhor.

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VISTO QUE UM GRANDE PERCENTUAL de controle sobre o destino não existe, comoseguir adiante?

Cultive a vida interior como se fosse um santuário no jardim.Desfaça-se do que puder.Esbanje amor.

QUANDO JOVEM – na verdade, desde os quatorze anos –, eu estava sempre meapaixonando, me apaixonando profundamente. Eu amava, ainda amo, oromance. Mais velha, fui impregnada por mitos da cultura e das tradições doSul dos Estados Unidos. A leitura inflamava uma espécie de crença maníacanas chamas do êxtase. Na verdade, eu queria ser arrebatada por um homema cavalo vestindo uma capa e carregada até um castelo na Irlanda. Eu nãolevava muito a sério meus estudos na faculdade. Quando me transferi nopenúltimo ano de um rígido colégio feminino para uma grande universidade, eusaía todas as noites. Tantos garotos engraçadinhos, tão pouco tempo.

Tive uma revelação sobre o amor aos vinte e poucos anos. Uma amiga maisvelha voltou para casa depois de uma semana em Nova York. Estavaextasiada com Picasso e Miró. Tinha visto uma exposição e trouxe uma pilhade livros que estudava atentamente. O que ela disse me chocou: “É como seeu estivesse apaixonada.” A expressão no seu rosto – como se tivesseencontrado o seu príncipe encantado.

Vendo as coisas pelo lado de dentro de um casamento, na época, euadorava o meu marido, mas não havia tango à meia-noite, rosas nos lençóis,nem cartas de amor com as margens do papel queimadas. A observação daminha amiga ficou, e se passaram muitos anos até que eu, também,compreendi que todo o jogo e a energia – foco laser, na verdade – que euhavia colocado na busca do companheiro ideal podiam ser redirecionados.Paixões e interesses podiam reinventar o meu eterno desejo de me apaixonar.

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JAN MORRIS, AUTORA DE LIVROS sobre viagens, escreve sobre a sua atitude depegar ou largar com relação à arte antes de encontrar um quadro deGiorgione. Ela tinha ido ver um dos seus quadros luminosos e misteriososnuma igreja em Veneza e parece ter sido atingida por um raio. Obviamente elase apaixonou. Desde então, ela viu todos os Giorgione que ainda existem nomundo e pode dizer, com o instinto de amante, se a autoria é duvidosa.

Eu tive uma experiência semelhante com a música, em Granada, ao escutarNoites nos jardins da Espanha, de Manuel de Falla. Estávamos hospedadosnum hotel logo abaixo da Alhambra e à curta distância da porta azul da casade de Falla, onde ele compunha as suas músicas e entretinha García Lorca.Depois, escutei Angel Barrios, outro compositor do período. Eu já amavaLorca. A música, a poesia e a atordoante experiência de ver a Alhambra –bem, sim, eu estava apaixonada. E ainda estou.

• As sombras dos ciprestes riscando a estrada preto/cinza/preto/cinza• Círculos de chamas dentro do forno para pães. Um pequeno inferno• O carvalho refletido na água. Uma mão ossuda, assustadora, estendida• Moitas de grãos-de-bico secando em forquilhas de oliveiras

Como seguir em frente? Recolha os seixos que já deixou cair nos grandesbosques. Alguns caminhos para frente também são caminhos para trás? Entãorecolha os farelos.

La mia cucina, minha vida na cozinha, faz uma diferença em como o tempoadere na minha pele. A cozinha permanece serena com a música que vem dasala de estar. Mas agora eu aumento o som. Alto, mais alto, até que a casapulsa com vibrato. Sintoniza, sai de sintonia. Lang Lang, Hélène Grimaud aopiano ou Joshua Bell no violino, Jovanotti, Buddha Bar, Barry White, Giorgia.

As vozes ecoam dentro da panela aquecendo no fogão, as árias de JussiBjörling fazem rodopiar o meu avental, o jogo verbal de Bobby McFerrin comYo-Yo Ma traz de volta o júbilo pré-linguístico com o qual todos nascemos.Chopin, Villa-Lobos, Penguin Café e todos os nossos amigos que honram oFestival de Verão da Toscana. A música eleva o ar enquanto eu refogo os

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feijões acompanhando o ritmo de “The Great Pretender”, bato as claras nosrodopios de Shostakovich, deixando a música entrar, suscitando minhafelicidade e entusiasmo, lavando o chumbo do fluxo sanguíneo.

Encanto. Alegria. Excitação. Surpresa. E então, o lado inverso: sabedoria.Tolerância. Conhecimento. Visão de mundo. Occhi spalancati sul mondo –olhos escancarados para o mundo. Meus pensamentos magnetizam-se emtorno destas palavras.

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Do verãoao outono

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Orto e forno

Alho queima fácil. Mesmo que eu comece com um borrifo de azeite deoliva frio, as fatias começam a escurecer na hora em que eu as esfregona tábua de corte. Da trança pendurada ao lado da lareira, arranco umacabeça e começo de novo. Como as luas crescentes papiráceas se

encaixam bem para formar um domo perfeito de mesquita em miniatura!Quando retorno à Toscana, meus sentidos ficam hiperativos durante osprimeiros dias; até uma coisa simples parece surreal. O óleo volátil nomanjericão recém-plantado, as minúsculas flores de oliva pontilhistas, o sorrisomagnífico da minha vizinha Chiara, o perfil elegante do meu Fiat amarelo,ciprestes escuros pincelando o céu noturno – experimento tudo como se fossea primeira vez.

Meus amigos italianos sempre esmagam o dente de alho com o lado dafaca, e, em seguida, o picam rapidinho. Assim o alho derrete no que vocêestiver cozinhando. Hoje eu o corto em fatias finas, só para prolongar o dia deestreia na minha cozinha. O farro ficou de molho; eu o coloco no fogão paraferver até ficar quase no ponto. Os tomates do nosso jardim vão demorarmais um mês para amadurecer, mas Annunziatina, do frutta e verdura,recomendou uns ovais, chamados dateri, da Sicília. Eles estão maduros,firmes e, além do formato oblongo, não parecem nada com tâmaras.1

Tomates picados, salsa, cebola, aipo, cenoura – todos estes sabores etexturas ferverão dentro do farro a tarde inteira. No jantar, a salada seráirresistível.

Antes de usar um forno externo para pão pela primeira vez, você precisaaclimatá-lo todos os dias durante uma semana, acendendo uma pequenafogueira e deixando o calor temperar o interior do domo e a base. Se vocêsimplesmente acender o forno para fazer pizzas para os amigos, o calor fortepode rachar os tijolos e as pedras. Onde isso está escrito? Se Albano, que

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trabalha como nosso uomo fisso, “homem fixo”, na casa da montanha, nãotivesse me dito, eu teria estragado o forno. Quando comento isto com meusamigos italianos, eles se surpreendem por eu não estar informada desteprocedimento universalmente conhecido. Tantos anos na Toscana, e a curvade aprendizado continua subindo. Será que nunca vou perder a minhaingenuidade?

Domenica, verdadeira mulher das montanhas, me educou com paciênciaaqui em contato com a natureza. No outono, ela me mostrou quais são oscastanheiros comuns e quais são os marroni mais valorizados. “Os marronisão maiores”, ela explicou, “e eles se parecem com marroni.” Muito útil, masfinalmente começo a ver o jeito rechonchudo das deliciosas castanhas, quepodem evoluir em marrons glacés, e aquela sobremesa toscana alta, MonteBianco, um pico doce de purê de marrone com creme batido no topo.Disfarcei o meu excesso de sensibilidade quando ela demonstrou a melhormaneira de cortar em pedacinhos um coelho ou correr atrás de um pato etorcer o seu pescoço. O tempo todo ela insistia gentilmente que eu sou“bravissima” na cozinha; com toda a calma verificava se eu tinha colocadouma pitada de bicarbonato de sódio na acelga para conservá-la verde, seestava com a minha geladeira abastecida de ovos frescos para não usar osda mercearia, que já deviam estar velhos de uma semana. Ela conferia se eutinha apertado bem os tomates, liberando o ar do pote, antes de vedá-lo. Seela estivesse na minha cozinha americana, eu teria instruções tão sutis paralhe dar? Duvido.

Hoje ela vai me ajudar a fazer grandes quantidades de massa de pizza e nosensinar a graduar a temperatura do forno para pães.

Eu estou mais do que preparada. Para estrear o forno novo, andeirecolhendo ingredientes para muitas pizzas diferentes e revendo váriasreceitas de massa. Tenho meus tabletes de fermento, uma tina de molho detomate e lâminas de mozzarella. Ed quer anchovas e alcaparras. Eu gosto degorgonzola e nozes. No local, a clássica e simples margherita é a predileta,talvez porque Margherita seja a santa preferida de Cortona. Eu gosto da

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margherita com rúcula e parmigiano por cima. Nossos vizinhos, a famíliaCardinali, sempre esfarelam linguiça crua na deles. Amigos americanos quenos visitam sugeriram camarão e erva-doce. Minha pizza preferida é amargherita de massa fina com cebolas caramelizadas.

O meu forno para pães lindamente construído é o meu santuário para osdeuses domésticos. De fato, ele parece uma capela de pedra em miniatura.De cada lado da abertura tem nichos onde eu posso guardar azeite e ervas,mas estas pequenas reentrâncias poderiam muito bem sustentar íconesreligiosos. Além disso, a chaminé parece um campanário.

Quando compramos a ruína Fonte delle Foglie (Fonte das Folhas), ao ladoda porta de entrada, encontramos um forno grande, desmoronado e sufocadopor amoras e urtigas. Eu ainda podia ver uma parte da cúpula de tijolos, tãosemelhante à cúpula sobre uma igreja românica. Os frades que seguiram SãoFrancisco teriam assado aqui o seu rude pane quando construíram esta casade pedra? E será que ele o serviu para as famílias de plantadores de batatase lenhadores que viveram aqui durante séculos?

Uma casa assim tão antiga me conforta. Mesmo durante os meses derestauração, com a neve entrando dentro de casa, a posição robusta da casade pedra eterna na colina me envolvia num continuum de tempo. Eu podiavirar as costas para a lama congelada do canteiro de obras e olhar para osdois eternos vulcões no horizonte e o contraforte distante onde o antigo perfilde Cortona desce a montanha. Mesmo quando queria acertar os operáriosmanetas (a outra mão segurava um cigarro) com um balde de cimento, eupodia sentir a força da casa plantada na paisagem e as gerações decontadini, lavradores, erguendo os seus próprios baldes de água e descendoa colina a pé até a fonte cercada de pedras etruscas. Eu estava ansiosa paraentrar no ritmo dessa imponente dança.

De pé entre as pulsantes cigarras e as ervas daninhas, tentei evocar umleve cheiro de pão cinzento, de casca dura, abundantes formas empilhadasnum cesto e levadas lá para dentro – por alguém muito parecido comDomenica – para as refeições da semana.

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O engenheiro responsável pelas estruturas imediatamente decretou que ovelho forno estava desmoronado demais para ser reconstruído, mas, como jáexistia no passado, o conselho da prefeitura nos permitiu construir outro. Eununca fui padeira – meus pães só servem para escorar pneus de caminhãopara não deslizarem morro abaixo –, mas me vi logo desenrolando uma rodelade massa numa pá de metal e escorregando-a para dentro do inferno nointerior do forno. Num relâmpago, vi Ed e eu enfiando a pá por baixo da crostatorrada, removendo uma após a outra, enfileirando-as numa sequência depizzas perfeitas sobre um balcão de madeira para os convidados provarem,uma fragrância desprendendo-se da lenha de nogueira e carvalho e pairandono ar. Agora isto está para acontecer.

Do outro lado do forno novo, construímos uma grande churrasqueira, demodo que, enquanto as pizzas assam e todo mundo come, podemos acendero fogo para outro prato – espetos de cordeiro e vegetais, robustas linguiçastoscanas ou os gigantescos bifes Val di Chiana. Quando o calor do fornobaixa para uma temperatura média até podemos enfiar lá dentro um macarrãopara assar, ou galinha debaixo de um tijolo. Aprendemos com Placido agrelhar sobre fogo de lenha, que ele constrói rapidamente. Ele sai e, em dezminutos, volta com uma braçada de gravetos. Em pouco tempo, o fogo baixa eele suspende os grandes bifes para um rápido bronzeado. Ed diz que não,Placido, na verdade, só abana a carne sobre os carvões para aquecê-la. Alsangue, sangrento, é o grau perfeito de malpassado, um instante no calor, ummergulho rápido numa travessa de azeite de oliva e alecrim, em seguida parao prato.

Quatorze adultos e seis crianças chegando em duas horas.Ed arrasta todas as cadeiras do gramado que consegue encontrar. Eu

coloco uma mesa para as crianças debaixo do carvalho. Elas podem rolar nagrama, pular na piscina, jogar Frisbee e brincar de pique-esconde até o cairda tarde, enquanto os adultos se demoram na longa mesa sob a pérgula.Antes de comermos, Albano prometeu ensinar todo mundo a jogar bocce. Eujá sei que ele joga como um campeão. Ele faz tudo bem. A habilidade e o

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movimento de seu corpo compacto sempre me fazem pensar por que seráque os americanos valorizam os homens altos, grandes. Escutamos homensitalianos discutindo a respeito de turistas alemães e ingleses altos. “Brutto.Troppo alto”, feio, alto demais, eles dizem. Albano só poderia ser italiano. Seuperfil parece o de um senador romano num medalhão.

Eu me pergunto se alguém já estudou o papel dos imigrantes na manutençãodos costumes da sua nova pátria. Ouve-se falar das comidas e expressõesque permanecem dos hábitos do seu velho país, mas jamais sobre como elesadotam a nova cultura popular, mesmo que os nativos a abandonem. Lembro-me da manicure vietnamita em São Francisco me contando sobre o seu jantarde Ação de Graças – muito mais tradicional do que o meu.

Quando viemos pela primeira vez para Cortona, havia várias quadras debocce e o jogo parecia fundamental para os grupos de sujeitos que, então eagora, se reúnem e jogam cartas nos bares. Naquela época, lâmpadassimples enfileiradas no alto, a pancada abafada de bolas colidindo umas comas outras, e a diversão fácil, os gritos de “seu corno” e “porca miseria” e“porca madosca”, uma gíria amena que usa uma palavra absurda em vez dedizer o mais sério, “Madonna”, o palavrão usual. Eu implicava com Ed: “Quemsabe um dia vão convidar você para jogar.” Agora, resta apenas uma quadrana cidade, uma quadra coberta na vizinha Tavernelle. Perdemos este animadopedaço de vida local. Quando Ed perguntou a Albano se o terraço acima dopomar seria grande o suficiente para uma quadra, o rosto de Albano seiluminou e ele tirou imediatamente as medidas. Não demorou muito e ele,Fabio e Bruno, outros amigos da montanha, nivelavam o terreno e retiravamas pedras. Era comovente como o seu entusiasmo pelo projeto mostrava queeles também sentiam falta de bocce. Um amigo deles trouxe um scavatore edesalojou uma pedra do tamanho de um mamute peludo projetando-se daencosta. Ed sugeriu que a pedra grossa, chata faria uma mesa perfeita aolado da quadra. Os homens rapidamente construíram uma base de cimentorevestida de pedras e, em poucos dias, nós os vimos guiá-la enquanto ominiguindaste do amigo a colocava no lugar. O milagre da Itália – algumas

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coisas são feitas com a velocidade da luz. Por incrível que pareça, sou boaem bocce. Meu segredo é o contato visual com a bola-alvo, deixando a mãoque lança apenas acompanhar o meu olho. É mais ou menos como caminharcom uma xícara cheia de café – se você olhar para a frente, não derrama.

“SIGNORA FRANCES!” Domenica – cuja voz retumbante levanta os pássaros dasárvores – anuncia sua presença com um grito na porta da cozinha. Ela entra apassos largos e, oh, maravilha, seu filho Ivan vem junto! Eles trouxeram duascrostate de geleia de amora feitas no seu próprio forno de pães. Beijos paratodo lado. Ela nos disse que Ivan é um maestro de pizzas. Os dois movem-secomo dervixes na cozinha enquanto examinamos todas as tigelas e jarros deingredientes que enfileirei sobre o balcão. Fácil dizer que eles trabalharamjuntos milhares de vezes. A postura característica de Ivan – braços abertos,olhos bondosos sorrindo. Ele parece um dos santos nos quadros de Luca, sóque está constantemente em movimento. Domenica esfrega e secarapidamente o balcão assim que ele traz a farinha. Ela transpira confiança.Desconfio de que acha que não sabemos diferenciar sequer o básico, masnão se estressa. Ed é forte. Domenica talvez seja mais forte ainda.

“Quante pizze?”, Ivan pergunta.“Ah, umas trinta. Isso chega? Vamos ser uns vinte.” Digo “uns” porque os

italianos costumam aparecer com um ou dois convidados a mais. Eu passoaventais para eles.

Ele está remexendo os armários e o aparador, rejeitando uma tigela apósoutra. Finalmente eu arrasto para fora uma tigela gigantesca de salada e eleaprova. Farinha, fermento, água – ele começa a massa fazendo um enormemonte de farinha. Logo está com ela pelos cotovelos. Ele é ágil como a mãe ésólida. Ela observa com as mãos nos quadris. “Lui – bravo”, sim, ele é bom.Quando o fermento está pronto, ele rapidamente forma mais de trinta luasfofas sobre o balcão de travertino polvilhado de farinha, frio, e em seguida ascobre com panos de prato para descansar e crescer. Como todos os

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especialistas, ele faz o trabalho parecer muito simples.“Você é tão rápido – por que desistiu de ser chef?”, pergunto.“Frances, as horas. Agora, quando termino o meu trabalho na Co-op, limpo

a piscina em casa, cuido do jardim, vejo meus amigos e posso cozinhar paravocês!” Ed chega do jardim com cestas de verduras, que levamos para forapara enxaguar várias vezes num balde enorme, depois deixar dentro d’água napia. Eu termino a minha salada farro e uma travessa de vegetais ao forno – omais simples dos jantares: pizza, três saladas, queijos, as suas crostatetorradinhas e o meu sorvete de avelãs e limão que espero esteja endurecendono congelador agora mesmo. Ele parecia decidido a permanecer mole ecremoso esta manhã. Sempre detestei quando a gente chega à parte “congelesegundo orientações do fabricante” numa receita. Há muitos anos não vejoessas ditas orientações.

A COREOGRAFIA DA COZINHA – eu descasco, você raspa, o vinho derrama, o sacorasga, os feijões fervem, a pia regurgita, pétalas caem, a farinha se deixalevar pelo vento, a casca quebra, aromas se espalham, luzes bruxuleiam, ochocolate derrete, vidros estilhaçam, o molho engrossa, o dedo sangra, oqueijo amadurece, farelos caem, o suor escorre, a colher bate, a carne brilha,o azeite respinga, o vinho respira, o alho se despedaça, as alfaces flutuam, aprata cintila, o avental rasga, você espirra, eu canto oh, my love, my darling,e a massa cresce em suaves luas do tamanho da minha mão em conchaenquanto o planeta Terra nos inclina em direção ao jantar.

DOMENICA, CUJO NOME, DOMINGO, eu adoro, vive numa casa na montanhachamada Il Poggio del Sole, Colina do Sol, com o marido, dois filhos crescidose a sogra, Anneta, que é uma mulher de rosto radiante, do tamanho de umamenina de oito anos. Ela se senta ao lado do fogão a lenha com seu avental,um cachecol enrolado na cabeça, como tem feito durante todos os seus

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oitenta e seis anos de idade. Fala pouco, mas seus olhos são tão cordiais queeu sempre sinto como se tivéssemos tido uma conversa. Ela observaDomenica esticar a massa e começar a cortá-la em tiras. Ela se levanta paramexer a panela no fogão e escancara o forno para conferir como está a lebreque abateu com a machadinha e esfolou esta manhã. Nunca a vi na cidade edesconfio de que aqueles longos anos, quando ir até lá era difícil, adesanimam agora que é fácil. La vecchia stampa – pessoas de antigamente.Elas estão desaparecendo rápido de Cortona agora, esses antigosautossuficientes que costumavam se sentar ao redor das lareiras contandohistórias e servindo o vin santo. Quando vejo mulheres perto da cidade commaços de gravetos nas costas ou braçadas de verduras para seus coelhos,digo para mim mesma: Não vamos ver esse tipo por muito tempo.Simultaneamente, a minha própria vida está passando rápido pela mesmaampulheta. As mudanças chegando rápido agora à Itália são às vezesdolorosas. Lá nas montanhas, entretanto, o tempo não é tão implacavelmentetransformador.

Desde a restauração de Fonte delle Foglie, tive a sorte de conhecer muitosmontanheses furiosamente independentes de la vecchia stampa. Sinto maisdo que sei que Signorelli morou por aqui. O seu nome original era Lucad’Egidio di Ventura, sugerindo que a sua família era da montanha deSant’Egidio. No seu autorretrato, o rosto parece determinado. Ele parece umhomem que sabe exatamente quem é, uma expressão que já vi em muitosmoradores das montanhas. O isolamento deles promove independência.Curiosamente, descobri uma intensa cordialidade e um afeto que as pessoasdistribuem generosas quando não são bombardeadas todos os dias pordezenas de encontros sociais. Elas me revelaram um lado mais silvestre daToscana.

O primeiro vizinho que conheci foi Angelo, que saiu detrás da casa quandoela ainda era uma ruína e me olhou fixamente em silêncio, o que tomei poruma saudação. Seu cão de caça vira-lata sacudindo a cauda ficava quase olhoa olho com Angelo. Eles estavam colhendo vinco, um tipo de salgueiro.

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Parecendo um duende, Angelo carregava um bastão esculpido e vestiagrossas roupas de lã marrom que deviam caber nele quando era maisrobusto. A calça, segura por um cinto grosseiro, juntava-se em pregas nacintura. De uma tira pendurada no ombro, pendia uma garrafa coberta devinca tecida. “Estamos comprando este lugar; sei que somos malucos.”Estendi a mão que ele olhou como se fosse um pássaro morto, antes deestender a sua, dura e pequena, e estalar os meus metacarpos. Deu um goleno que havia no seu frasco característico. Empinou a cabeça e ergueu o rostode mil rugas para o sol. Percebi que era quase surdo. Ele parecia umacriatura do outro mundo para mim e, provavelmente, eu parecia ter aterrissadoneste lado selvagem da montanha vindo de uma outra galáxia.

Em pouco tempo, conheci a sua mulher, Irene, de um só dente amarelo egrande sorriso, e visitei a casa deles que parecia não ter sofrido nenhumamudança em centenas de anos, exceto pelo som alto da televisão quedominava a cozinha escura e cavernosa. Angelo acenou para que eu oseguisse até uma sala ainda mais escura onde, entre salames dependurados,fileiras de queijos e o prosciutto preso a um suporte para fatiar, vi osengenhosos e artísticos cestos que ele teceu durante todo o inverno perto dalareira. Coloquei seus cestos de ovos e vegetais no alto dos armários naminha cozinha, onde podemos admirá-los todos os dias.

Angelo perambula pelos bosques o ano inteiro, e eles também nos convidampara passear. Eu adoro pular a nossa cerca elétrica baixa e entrar na estradasulcada que leva a lugar algum, depois de passar por um chalé rústico, osrestos de três casas anexadas em ruínas e um pequeno celeiro de pedra parasecagem de castanhas arquitetonicamente puro.

Estou no território das cerejas silvestres, maçãs, campos de urzes e floresdo campo. Morangos suculentos do tamanho de uma ervilha preferem asmargens da estrada. De vez em quando, surpreendo uma fêmea de javalipastoreando seus filhotes por buracos de lama e torrentes. Quando encontroum dos maníacos caçadores de castanhas, de olhinhos brilhantes, adoto oantigo conselho sulista a respeito de cobras. Não as incomode; elas não

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incomodarão você. Nada de contato visual. Saia na direção oposta. Eu recuoe ela corre. Isto funciona até aí.

De noite escutamos os cinghiali bufando no escuro. O gosto que eles têmpelas bolotas que caem perto da casa inspirou a cerca elétrica. Elesarrancaram o sistema de irrigação e o pátio de pedra no seu entusiasmo pelasnozes crocantes. Ed ia todos os dias de manhã ver se encontrava um deles napiscina, boiando com os pés para cima. Amigos britânicos, que retornaramapós uma longa ausência, notaram imediatamente um cheiro de podre na águaque saía das suas torneiras. Um javali de 90 quilos tinha conseguido mover apedra do poço e cair lá dentro.

Desde que a nossa cerca começou a reagir com um zumbido aos seusfocinhos peludos, eles se mantêm afastados, esgarçando a encosta atrás denós e provocando avalanches frequentes sobre a estrada. Nós gostamosdeles – tão brutos e selvagens – e, quando saem correndo, rimos do galopecaricato de cavalinho de balanço, daquelas presas absurdas e as pernasafiladas presas aos cascos pontudos.

O povo da montanha os vê de outra forma. A sua estrutura corpóreasimplesmente personifica a primeira fase de cinghiale in umido, um assadoimerso no tempero por muito tempo (para eliminar o gosto de coisa rançosa)que se desfaz no garfo e lembra uma fogueira semiapagada na manhã daprimeira brina, geada. Durante a temporada de caça, nosso amigo Giorgiosempre nos trouxe sacolas de javali sangrando. Agora o outro filho deDomenica, Mirko, às vezes deixa por aqui um pedaço grande. Eu detesto omodo como são caçados. Um esquadrão de homens, que parecem vestidospara um combate na recente guerra americana, espalha-se por um flancoamplo da colina e o põe para correr. Já que foram caçados, o melhor destinopara a carne é molho de macarrão. Todas as trattorie em Cortona servempappardelle al cinghiale cozido em fogo brando durante muito tempo,marcarrão largo com molho suculento de javali.

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CAMINHAR, SEM DESTINO CERTO. A sensação me relaxa profundamente e me fazandar quilômetros pelos bosques em antigas trilhas de lenhadores e estradasromanas. Acompanhar as pedras antigas pela floresta de pinheiros ecastanheiros, colher as amoras mais doces, encontrar canteiros de ciclamenscor-de-rosa, crocos amarelos e roxos, e ver os falcões elegantes chamadospellegrini, pequenos peregrinos, espiando no alto de um galho – che gioia,que alegria. Eu canto. Alto. Alto, porque, quando tive aulas de técnicas vocaisaos quinze anos, a professora, tentando um elogio, disse que eu tinha uma“voz doce, delicada”. Os seguidores de São Francisco cantavam vagandopelas montanhas, mas não o meu “Nessun Dorma” ou “American Pie”.Gostaria que Robert Frost nunca tivesse escrito aquele poema semprepresente nas antologias sobre duas estradas divergindo num bosque amarelo,porque a cada bifurcação lembro que ele pegava “a menos usada”, umaescolha que influenciou toda a sua vida. Aqui, todas as trilhas romanasbifurcando-se são as menos usadas, e os meus suéteres rasgados e osbraços arranhados são prova disso.

Estar onde não tem ninguém. Solidão, o verdadeiro luxo. Clareiras memostram paisagens do Lago Trasimeno que parecem telas de fundo pintadas,o distante Val di Chiana, eterno cesto de frutas da Toscana, comapartamentos e lojas agora brotando furtivamente das suas margens, esempre Cortona lá embaixo, que eu vejo como uma águia lá de cima, e depoisnuma posição abrindo-se em leque, uma bela cidadezinha estendida comouma peça de seda bordada em verde e ouro sobre a colina.

A fonte etrusca ainda flui, mesmo na seca. A casinha, que, no passado,protegia a nascente borbulhante, é uma pilha de entulho, com a águaencontrando o seu caminho por entre as pedras. Ed quer reconstruí-la – mascomo ela era originalmente? Ou, quem sabe, não originalmente, mas até emépocas recentes, digamos 1600. Por mais selvagem que o nosso lado damontanha nos pareça, muitos traços indicam que nem sempre foi assim. Anossa casa e as duas vizinhas são chamadas “Cassacie”, as casas ruins, nosmapas antigos, embora uma tenha uma inscrição tipo perna de aranha

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rotulando a nossa Fonte della Foglia, Fonte da Folha. Nós trocamos paraFonte delle Foglie. Folhas no plural fazia mais sentindo. Uma parte de umaponte romana e as ruínas de um mosteiro medieval me lembram outrosviajantes, outras vidas. Durante a nossa reconstrução, descobrimos duasseções de aqueduto romano. Encontrar estas coisas me faz perguntar o quemais existe sob a superfície onde passeio.

Enfaticamente, o que não está no chão ou no ar é a Toscana doRenascimento. Aqui sentimos é a influência biótica primitiva da Toscana antesde ser Toscana. Nesta altura da minha vida, adoro as quedas-d’águabarulhentas, pedras projetando-se de níveis terciários profundos, carvalhospioneiros, alguns com troncos ocos onde você poderia acampar, correntes deágua doce que se abrem depois de chuvaradas, grandes silênciosprelapsarianos que eu nem quero interromper com uma única palavra. Foi aquique eu vim procurar conforto depois da experiência do nosso próprio incidenteterrorista particular em Bramasole. É aqui que eu venho agora pelo simplesprazer de adorar um lugar que é tão puramente ele mesmo.

Quem não se sentiria feliz, distante assim no campo? Felicidade, que elfoarisco, como reter a felicidade, como encontrá-la, como viver dentro de umagrande felicidade que nós mesmos produzimos? A sustentabilidade dafelicidade – algum filósofo deveria escrever um tratado. Talvez fosse muitolongo, ou quem sabe teria apenas algumas frases.

DOMENICA NÃO DEIXA CAIR uma pitada de farinha no chão do forno e conta ossegundos até ela tostar, como me disseram para fazer. Ela aproxima o rostoda porta aberta e o reflexo dos carvões faz a sua pele morena brilhar comocobre. “Pronto!”, ela grita, e começamos a esticar a pizza. Nossos convidadosamericanos brindam a Domenica e se reúnem em volta para observar. Ositalianos recuam, intrigados, tendo visto este processo desde que nasceram.

Forno, preciso me lembrar de perguntar a Ed, tem uma relação etimológicacom “fornicar”.

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Quase mal a pizza desliza para dentro do forno, ela sai, o fermentoempolando a massa e a crosta torrada no calor intenso. Ed rapidamente cortae nossos amigos as devoram com a mesma velocidade com que colocamosas fatias nos seus pratos. As crianças dispensam os pratos e comemcorrendo de um lado para o outro. Todos trouxeram vinho e a nova mesa depedra já mostra alguns círculos e respingos vermelhos. Não importa. Que apedra inteira absorva o que escorre destas noites mágicas de verão. Nasmontanhas, o povo realmente come. Depois de um dia fora de casa, Ed tem oapetite de um corredor de maratona. Domenica e Ivan limpam a farinha dasmãos e somem como os gênios da garrafa que são.

Cada migalha, cada grão de farro foi consumido. Franco pratica o seuinglês. Where is it that you come from? Becky pratica o italiano. Quantotempo ci vuole per andare ad Arezzo?

Ah, brava, esse ci vuole salta do livro de expressões idiomáticas para overnáculo. Quanto tempo leva para ir a Arezzo?

Escutamos “Marco” e “Polo” lá da piscina, e aí as crianças passamcorrendo, embrulhadas em toalhas, escondendo-se atrás do forno e doscarvalhos, caçando vaga-lumes. Os italianos se reúnem numa ponta da mesa,não aguentando mais os nossos convidados que não falam italiano – elesprecisam falar –, embora lhes sirvam grappa e passem para a outraextremidade, onde se fazem planos para passeios até Siena e Montalcino.Edo e Placido acendem as suas guimbas de charuto, para espanto doscalifornianos. Fiorella e Chiara me ajudam a servir o gelato e as crostate,todos elogiam Domenica, e, em seguida, algumas canções dos Beatles unemtodos nós. “Yellow Submarine”, pelo visto, é uma língua universal.

Que todos os convidados sejam bem-sucedidos em superar os obstáculosdo caminho. Buona notte. A domani... Até amanhã. O fogo se reduz aborralho. Nós enfrentamos a cozinha cheia de pratos e copos – como é queusamos todos os copos da casa? Com o polegar, esfrego a água com sabãonas marcas de batom. “Ed, que história é essa de forno e fornicar?”

“Ah, as prostitutas romanas costumavam se reunir nos fornos públicos para

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se aquecer. Elas iam depois de uma noite de trabalho e ficavam esperando opão quente.”

“Mas o que veio primeiro, forno ou fornicar?”“Ambos são velhos como tempo. Mas forno originalmente significava arco,

de modo que acho que é a abóbada do forno.” Ed e eu ligamos a máquina delavar pratos, varremos a cozinha e apagamos as luzes. Vamos lá para foraescutar os sons da noite alta com as corujas chamando-se mutuamente. Umfriozinho chegou e nos encostamos no forno ainda quente e escutamos.

Que os animais em fuga que são presas de corujas ouçam essas notaspersistentes de oboé e encontrem um refúgio. As luzes distantes de Cortonadescem a colina. Sei que a piazza ainda está saltitando. Uma fila sai dasorveteria. As trattorie estão recolocando as mesas para amanhã e um gatodorme do lado de fora da loja de antiguidades de Isa. Estamos perto e longe.Comecei a amar a floresta de carvalhos e esta casa de pedra, já antigaquando Signorelli caminhava, ou não, pela trilha até a fonte. Amanhã melevanto cedo para semear sementes de rúcula. Começa o verão.

PASTA AL FORNO CON SALSICCE E QUATTRO FORMAGGIMacarrão ao forno com linguiça e quatro queijos

6 porções

Com o forno de pão quente, podemos colocar muitos pratos diferentes nochão de tijolos – pão, é claro, galinhas assadas, três de cada vez, e tipos demacarrão ao forno. Ed adaptou esta receita para uso doméstico. Servimosisto uma centena de vezes em jantares casuais.

Ingredientes:500 gramas de rigatoni secosAzeite de oliva1 cebola picada1 cenoura picada

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2 talos de aipo picados3 dentes de alho picadosSal250 gramas de linguiça italiana doce sem a pele,

a carne cortada em pedaços pequenos250 gramas de linguiça italiana picante, sem a pele,

a carne cortada em pedaços pequenos½ xícara de vinho tinto4 ou 5 galhos de orégano, as folhas esfareladasUma lata de tomates inteiros picados1 xícara de ricota250 gramas de Fontina ou Taleggio em cubinhos250 gramas de mozzarella em cubinhos½ xícara de parmigiano ralado½ xícara de farinha de rosca

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 180 graus.Leve uma panela com água para ferver.Numa panela grande, aqueça 2 colheres de sopa de azeite. Refogue a

cebola, a cenoura, o aipo e o alho em fogo baixo por 5 minutos. Tempere comsal. Acrescente a linguiça, cozinhando até dourar, por uns 10 minutos.Adicione o vinho tinto, aumente o fogo para ferver e cozinhe até evaporarquase todo o líquido. Acrescente o orégano e os tomates junto com seussucos e continue cozinhando por, no mínimo, 10 minutos.

Quando a água ferver, salgue-a e acrescente os rigatoni. Cozinhe 1 ou 2minutos a menos do que o tempo recomendado na embalagem (porque vãocontinuar cozinhando no forno) e escorra, reservando um pouquinho da águado macarrão.

Numa tigela grande, misture a ricota com o Fontina e um borrifo da água domacarrão, em seguida adicione os rigatoni escorridos e continue misturando.Acrescente a mistura com a linguiça. Junte a mozzarella e misture bem, emseguida derrame a mistura numa forma para assar de 20 por 30 centímetros,

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untada, salpicando parmigiano ralado e farinha de rosca por cima.Asse descoberto por cerca de 20 a 25 minutos e sirva quente.

VARIAÇÃO: Os ingredientes relacionados antes de chegarmos aos queijospodem ser substituídos por 2 xícaras de ragù feito em casa.

INSALATA DI FARROSalada de farro

10 porções

O farro às vezes é tido como espelta, mas, na verdade, existe um grãocaracterístico. Os toscanos o adoram com grão-de-bico numa estimulantesopa de inverno. No verão, a salada de farro é uma escolha inspirada paraalmoços porque é fácil, abundante e saborosa. Os restos de salada de farrose conservam na geladeira por 3 ou 4 dias e vêm a calhar para wraps ou paraservir em folhas de radicchio numa travessa de antepastos.

Ingredientes:2 xícaras de farro4 tomates picados ou ½ xícara de tomates secos em cubos2 ou 3 talos de aipo picados½ xícara de azeitonas verdes cortadas ao meio se forem grandes2 cebolinhas picadas3 dentes de alho picados¼ a ½ xícara de azeite de oliva extravirgem1 xícara de folhas de manjericão cortadas1 xícara de salsinha cortadaSal e pimenta

Modo de preparar:Siga as orientações da embalagem de farro. Em geral, o grão cozinha em

menos de 2 horas. Enquanto o farro está cozinhando, misture os outros

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ingredientes. Escorra o farro e junte-o à mistura de vegetais, acerte o temperoe sirva na temperatura ambiente.

VERDURE ARROSTOLegumes ao forno

4 porções

Quando você cozinha com os produtos do seu jardim, inventar é umanecessidade. O que fazer com uma abundância de cebolas, berinjelas eperas, sem falar de uma banda de pancetta ou bacon que um amigo trouxe?Assar é rápido e fácil. Experimente juntar couves-de-bruxelas, cebolinhas, alhoe limão sem casca.

Ingredientes:1 berinjela cortada em pedaços de 2,5 cm8 dentes de alho sem cascaSal e pimenta2 cebolas, cortadas em pedaços de 2,5 cmAzeite de oliva extravirgem2 peras, sem casca, sem sementes e cortadas em cunhas6 fatias de pancetta, speck ou bacon, cortadas em pedaços de 2,5 cm

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 200 graus.Misture a berinjela, o alho, os temperos e as cebolas com uma parte do

azeite e coloque num prato refratário. Cubra com folha de papel-alumínio easse. Depois de 20 minutos, remova o papel-alumínio, acrescente as peras ea pancetta e retorne ao forno por mais 20 minutos, mexendo só uma vez.

CROSTATA DI MORE DI IVAN

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Torta de amoras do Ivan

8 porções

Certa vez ficamos imaginando por que a gente vê tantos vidros de compotasde frutas na Itália, um país que, ao contrário da Inglaterra, não tem umacultura de torradas com geleia no café da manhã. Nós descobrimos logo. Osconteúdos dos vidros – damascos, amoras, framboesas, marmelos, figos eameixas – são para a famosa e ubíqua crostata.

Ivan e a sua mãe, Domenica, fazem as crostate mais maravilhosas domundo, a sobremesa obrigatória na Toscana. Eles colhem amoras silvestresno início de setembro e Domenica faz a geleia. Nós servimos geleias de figocom queijos e de marmelo com assados. Como os vidros de tomatesenfileirados nas suas despensas, as geleias parecem conter o verão. Pegueum vidro e estenda a massa – cá está uma sobremesa de verão.

Ingredientes:1 ½ xícara de farinha de trigo3 ovos (2 gemas e um ovo inteiro)10 colheres de sopa de açúcar10 colheres de manteiga, na temperatura ambienteRaspas de 1 limão½ taça de vinho tinto¼ de colher de chá de sal2 xícaras de geleia de amoras

Modo de preparar:Faça um monte de farinha numa spianatoia – uma tábua de confeiteiro. Faça

um buraco no meio do monte de farinha e coloque os ovos no centro, juntocom o açúcar. Comece a trabalhar a mistura com os dedos ou um garfo; emseguida, acrescente os pedacinhos de manteiga amolecida, a casca de limão,o vinho e o sal, misturando bem. Faça uma bola com a massa e deixedescansar, coberta com um pano, por cerca de uma hora.

Enquanto a massa descansa, unte uma assadeira com manteiga e polvilhe

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com farinha. Preaqueça o forno a 180 graus.Estenda ¾ da massa com um rolo e forre a assadeira. Espalhe por cima a

geleia de amoras; em seguida, estenda o resto da massa, corte-a em tiras decerca de 1 cm e monte uma treliça sobre a geleia. Asse por 30 minutos. Amassa terá um aspecto torrado.

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Vinhedo

Na Piazza Signorelli, Ed para apenas o tempo suficiente para sinalizar aMarco que chegamos. Melva e eu estamos no banco de trás como boasesposas, mas, na verdade, é porque tanto Jim como Ed enjoam no carrose não estiverem no banco da frente. Marco e dois expatriados lideram a

saída da cidade para alcançarmos a estrada secundária secreta de Marco atéa área rural de Brunello.

Um dos benefícios de ser amigo e um bom cliente dos vinhos de Marco éque ele nos convida para almoços e degustações nos vinhedos junto comprodutores. Hoje, vamos a Fonterutoli, em Montalcino, com alguns americanose os Pantes, bons amigos de São Francisco que têm casa aqui e recebemmagnificamente com os melhores vinhos da Toscana. Estou sempre dizendo aMelva que ela devia escrever um livro de arte. Suas flores e porcelanas criamo clima perfeito para jantares, dando para olivais e a silhueta de Cortona.Estou tão disposta a admirar seus arranjos de hortênsias, rosas e líriosquanto a devorar qualquer jantar delicioso que ela tenha preparado.

Enquanto ziguezagueamos morro abaixo e atravessamos o vale, me lembrodo passeio para degustar vinhos de um outro amigo de Marco. Secondo, umamigo de Tampa que tem um apartamento em Cortona, estava com um grupomaior, indo para dois vinhedos num ônibus pequeno. Depois da primeiraparada, cinco vinhos e um longo bufê com muita bebida e especialidadestoscanas, os oito ou mais de pileque entraram de novo no ônibus, seguindoadiante. Um italiano sentado atrás de uma respeitável inglesa passou mal eteve um acesso de vômito em jato sobre o coque louro na sua frente. O ônibusparou, garrafas d’água foram derramadas por cima de tudo, lenços de papelapareceram de dentro das bolsas, janelas se abriram. Um americano, tambémcom respingos de vômito na camisa polo, saiu do ônibus, enfrentando otrânsito, e gemeu: “Matem-me agora.”

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Quando o ônibus partiu, o mortificado italiano pegou no sono, mas na paradaseguinte continuou a degustação, enquanto a inglesa foi para o banheiroenxaguar a blusa e os cabelos. O dono do vinhedo serviu graciosamente umalmoço sofisticado.

Secondo se contorcia de tanto rir conforme a história piorava. Retornandoao ônibus, o italiano, no seu elegante casaco esporte Armani e calças comvinco perfeito, junto com a esposa, sentou-se no fundo. Todos estavamatordoados com o calor, o almoço e a estrada sinuosa. Ainda faltava muitopara chegarem em casa, Secondo e os outros escutaram um tremendovômito, e um cheiro ácido tomou conta do ônibus. Quando Secondo viu o riode vômito no corredor, levantou os pés. Todos no ônibus gemiam,debruçando-se nas janelas, gritando “Pelo amor de Deus” ou rindo. Secondogritou: “Ainda bem que pelo menos ele não é americano!” De volta aoestacionamento, o italiano ao descer não olhou para ninguém por trás dosseus óculos escuros, embolotou o casaco Armani e o jogou numa vala.Secondo disse naquele momento que nunca mais queria outra taça de vinho navida.

E estes passeios em geral são tão tranquilos...Vamos tentar ficar tranquilos.

FONTERUTOLI PRODUZ um milhão de garrafas de vinho por ano. “Isso é gigunta”,observo, mas Ed dá de ombros. Em geral, procuramos vinhedos menores pelasensação da descoberta que dá um vellutato, aveludado, syrah Nero d’Avolada Sicília, ou até um vinho caseiro do pastor na estrada.

“É só uma garrafa por ano para um milhão de pessoas. Uma garrafa”, elediz. “Não parece muita coisa.”

Fonterutoli revela-se não apenas um vinhedo, mas um borgo de pedradesbotada, todo ele propriedade da família Mazzei e habitada porfuncionários. Encontramos Marchesi Mazzei, um homem esguio com um ternocor de mostarda que nos recepciona; em seguida, nos entrega a Silvio Ariani,

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que poderia estar montado num cavalo ou armando a besta num quadro dePiero della Francesca. Ele nos leva numa excursão pelo borgo, pelo pátio davilla (eu adoraria ver o interior), pelas antigas adegas e a biblioteca de vinhosda família, onde todas as safras estão armazenadas para suas própriascomemorações. Serpenteamos colina abaixo até as instalaçõeschocantemente modernas onde o vinho agora é feito. No caminho, Silvio nosmostra como as parreiras são plantadas próximas umas das outras. Adorocomo ele pronuncia vinhedo em inglês, “vine yard” e não vineyard. “Se estãopróximas, as plantas sentem uma à outra”, ele nos diz. “Elas vão mais fundoem vez de se espalhar na superfície. Assim é melhor – na seca, elasalcançam a água; quando chove muito, elas não ficam encharcadas.” Comometáfora e filosofia, isso me dá vertigem. Eles deixam que ervas daninhas eflores silvestres se multipliquem nas aleias, o que ajuda a forçar as parreiraspara baixo em busca de nutrientes.

Num teste de associação, em resposta à palavra paisagem, este vinhedotoscano por excelência sempre me ocorreria – colinas ondulantes, desenhoshachurados de plantações justapostas de um campo a outro, a colina distanteorlada de ciprestes e um céu limpo levemente riscado de nuvens. O dia éinsuperável, especialmente depois de semanas de chuva contínua.

Você vê um e já viu todos, ou assim eu pensava a respeito dos úmidosceleiros de pedra repletos de tonéis de carvalho. Mas esta instalaçãosupertecnológica fascina todo mundo. O que eu achei que eram luzes no vastopátio, na verdade, são aberturas para as uvas esmagadas caírem através degrandes tubos em tanques de aço inoxidável no piso subterrâneo lá embaixo.Esta transferência imediata impede que as uvas recém-esmagadas fiquem“estressadas”.

Silvio explica que as cascas são usadas para fazer grappa. “O que sobra”,ele diz, “as empresas farmacêuticas compram para fazer álcool.” Ah, então épor isso que o álcool desinfetante italiano é cor-de-rosa. Os tanques chatosem forma de cone parecem gigantescos equipamentos médicos ou, como dizMelva, “aquela coisa que deixou a Apollo quando eles caminharam na Lua”. Na

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sala do tamanho de um armazém para os tonéis pequenos, onde “colocamoso vinho para dormir”, sinto-me como se estivesse dentro de uma imensa criptaonde se praticam estranhos rituais fúnebres. O chão é banhado comfrequência com água para manter a umidade em torno de setenta por cento.Uma parede de pedra exposta goteja água constantemente. Em três anos,pequenas estalactites de cálcio se formaram levando Silvio a observar: “Veja,é melhor beber vinho do que água.”

A SALA DE DEGUSTAÇÃO refrescantemente minimalista permite que toda a nossaatenção se volte para o vinho e para o panorama das distantes colinas deChianti. É meio-dia. Silvio serve primeiro o seu Serrata, um rosé tranquilo queme catapulta para um piquenique há tempos no Sul da França. Às vezes, malo vinho umedece meus lábios, uma enxurrada de imagens se apodera daminha mente do mesmo modo como o gosto do vinho toma conta da minhaboca. Portanto, agora, enquanto me servem o vinho suave, levemente floral, etenho a ampla visão da distante Siena, simultaneamente recebo uma ásperapraia Bandol incrustada de conchas, salsichas e baguete, vento salgado e osuéter do inglês com o seu aroma de sândalo nos meus ombros. Rosé numcopo de papel. Uma lembrança mais distante do que Siena. Silvio então nosdiz que o rosé é feito nos vinhedos de Maremma, perto da costa toscana.Fluindo no vinho devem estar reflexos da luz mediterrânea, misteriosamenteatuando na memória.

O inglês louro com os lábios hipnotizantes desaparece quando provamos osuculento e indiscreto Tenuta Belguardo, o Zisola feito principalmente de Nerod’Avola na Sicília e o Castello di Fonterutoli feito com as uvas sangiovese e umtoque de cabernet. Aqui está o vino dei sassi, um vinho das montanhas daregião, muito frutado com um potente equilíbrio de minerais.

Descendo a colina, na enoteca, o chef serve uns dez antepastos – não ousual prosciutto e crostini, mas, sim, grãos-de-bico com casca de limão,radicchio picado com cubos de pecorino, bruschetta com pesto de rúcula,

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salada de arroz com vegetais picados, uma travessa de erva-doce cobertacom os salami da região e sementes de erva-doce combinando sabores.Nada de macarrão, o que causaria iminente colapso.

Enquanto é servido o vinho Siepe, travessas de galinha e coelho combatatas assadas circulam pela mesa. O vinho mais importante de Fonterutoli,Siepe, vem das suas montanhas mais baixas, um sangiovese com umacriteriosa quantidade de merlot. O melhor para o fim – mas, realmente, paramim, os outros estavam excelentes. Ou quem sabe depois de tanto sol,comida e vinho, tenhamos todos simplesmente relaxado em total entusiasmo.

FELIZMENTE, DE VOLTA para Cortona, todos nos sentíamos fantásticos. Sedados,estávamos, mas milhares de imagens e sabores rodopiam no meu cérebro otempo todo até em casa. Tínhamos combinado de nos encontrar com Silvioem Florença num restaurante que ambos admiramos. Um novo amigo, novossabores, uma lembrança de casas de pedra cor de pão torrado onde aspessoas servem vinho há quinhentos anos. Secondo devia estar conosco, enão no ônibus.

TRAVESSA DE ANTEPASTO

Para uma multidão ou para um almoço a céu aberto, confio em travessas deantepasto e, com frequência, as acompanho com macarrão e sobremesa. Aprimeira lista é do chef Nicola Borbui, que serviu esses fascinantes antepastosna nossa degustação de vinhos nos vinhedos de Fonterutoli. Depois disso,alguns dos nossos próprios acréscimos. Ao mesmo tempo informal egenerosa, a travessa inicia um jantar com uma nota festiva.

Ceci con Olio e Buccia di LimoneGrão-de-bico com azeite de oliva e casca de limão

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Raddicchio con Pecorino a CubettiRadicchio picado com cubinhos de queijo pecorino

Insalatina di Baccelli e MarzolinoSalada de favas com queijo pecorino fresco

Frittata di AsparagiOmelete de aspargos frescos fatiados

Bruschetta con Pesto di Rucola e PomodoriniBruschetta com pesto de rúcula e tomates-cereja

Sformato di Parmigiano con Crema di AsparagiPudim de parmesão com creme de aspargos frescos

Tagliata di Morellini con Mozzarella di Bufala, Olive e PinoliAlcachofra fatiada com mozzarella de búfala, azeitonas e pinoli

Insalata di Finocchi con SbriciolonaLinguiça toscana com juliana de erva-doce

Tortino di CarciofiFritada de alcachofra

Outros acréscimos favoritos à travessa:

pimentões assadosazeitonas assadas com casca de limão e ervas

corações de alcachofra ao vinagrete

fatias de erva-doce salpicadas com sementes de erva-doceespetinhos de prosciutto com cubos de melão

figos cortados ao meiofolhas de radicchio recheadas com salada de farro

pedacinhos de queijos durosgrissini (palitinhos) envoltos em prosciutto

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Gite al Mare

PORTOFINO, LIGÚRIA

A palavra mais pronunciada em Cortona nestes dias de verão é mare.Todos estão indo, ou voltando, do mar. As populares trattorie fecham noauge da temporada de turismo. Por quê? Foram nadar. E daí se osturistas estão olhando cheios de desejo para o cardápio na vitrina? A

brisa do mar nos fascina.A garotada vai para Rimini nas suas motocicletas, atraída por pacotes

baratos, discotecas funcionando a noite inteira e uma praia congestionadacom a juventude da Itália. Quem tem sorte vai para a Sardenha. Muitos dãoum pulo até Viareggio e Forte dei Marmi por alguns dias, ou até as praias aoredor de Grosseto. Visto que Cortona fica a duas horas do Adriático e duasdo Tirreno, vamos em ambas as direções. Embora sejamos seduzidos pelascidades do Adriático, especialmente Senegallia, por suas longas e amplaspraias, com frequência escolhemos passar uns dois dias em outro litoral. Elbaé muito divertida e fica a uma pequena viagem de ferry de Livorno. Umpasseio pelo convés, um gelato, os pulmões cheios de ar do mar e, derepente, você está descendo a rampa para o território de Napoleão. Orelaxamento começa de imediato – talvez seja o ar do Mediterrâneo, opasseio de carro tranquilo à beira-mar, as viçosas cidadezinhas onde nãoacontece muita coisa, o povo cordial. Alugando um barco, você pode explorara costa e descobrir praiazinhas onde é possível nadar e tomar sol sozinha.Ficamos uma semana em Elba e queremos voltar.

No continente tirreno, passamos várias temporadas em Capalbio, SanVincenzo, a protegida Riva degli Etruschi, Talamone, a dramática Cinque Terree Punta Ala – todos bons destinos à beira-mar. Mas eu não resisto à beleza, enada se compara com Portofino, para onde estamos indo viver um breve idílio.

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“Vamos velejar até a Córsega”, Fulvio disse no jantar domingo passado.“Por que vocês não aproveitam a nossa casa em Portofino por uma semana?”Então, ele e Aurora nos dão uma chave e uma lista das suas coisas preferidaspara fazer. O pai de Fulvio comprou este sonho de propriedade muitos anosatrás, e ele cresceu passando os verões ali. Ele guarda uma chalupa no porto.É difícil afastar dali sua família, Aurora e o filho, Edoardo, o verão todo. Masbarcos são uma segunda natureza para Edoardo, como são para o pai, e elesgostam de velejar até a Córsega porque os ventos do Mediterrâneo, queparecem mornos e agradáveis perto da costa, chicoteiam o barco ferozmente,proporcionando aventuras suficientes para estes dois. Aurora às vezes visita afamília durante estas excursões.

Nós aceitamos, mas só por três dias. Temos hóspedes chegando na quinta-feira. Na segunda de manhã cedo, vamos até lá de carro, estacionando-o devez na garagem da cidade. É bom se afastar do carro a pé, sabendo quevocê não vai ter de dar a partida por alguns dias.

As deliciosas cores de terra das casas – terracota, ocre, areia e ouro –contornam o porto; barcos cintilantes com suas listras azuis e bandeirolasondulantes se repetem em seus reflexos, e ondas concêntricas de luz sobre aágua brincam e mudam a todas as horas do dia. Eu digo cores e luz, mas, sobesta convidativa superfície, os arquitetos Alberto e Fulvio talvez concordem,temos de reconhecer a dádiva da geografia – a forma em U do porto, cujosbraços abertos proporcionam uma deliciosa intimidade. Quando você estápasseando ali, foi acolhido no coração do lugar.

Portofino, ao contrário das cidades reservadas, em patamares, das colinasda Toscana, dá a você tudo de uma só vez, uma formosa onda de perfeiçãomediterrânea esparramando-se.

Estou certa de que Di Rosas conhece todas as almas na cidade e todos osnomes de cornijas, pedras e casas. O apartamento deles, no terceiro andar,ocupa um pequeno canto de um prédio no porto com janelas dando para duasdireções. “Se você já viu um cartão-postal de Portofino, já viu a casa deFulvio”, Ed observa.

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“Estamos num iate. Olhe estes pisos estreitos de teca. Parecem um convés.E a cozinha – tão no estilo náutico.” A mobília é supermoderna e elegante. Dacama, escutamos o som metálico dos cordames dos veleiros e observamosos barcos tentando se aproximar para passar o dia. Um deles é imenso e tematé um helicóptero e um Smart Car a bordo.

Se um dia eu ganhar na loteria, vou adorar dar um majestoso giro peloMediterrâneo. Não nessa mansão flutuante, mas numa grande chalupa velhade madeira que pudesse atracar em portos minúsculos. No barco à vela domeu primeiro marido, o Primavera, aprendi a cozinhar numa cozinha oscilante.A Baía de São Francisco não contribuía para receitas complicadas.Estávamos sempre bordejando e sendo jogados de um lado para o outro, e àsvezes encalhávamos. Surpreendentemente, a baía não é muito profunda, emcertos lugares, e com frequência ficávamos sem o nosso sonar. Num passeiode véspera de Ano-Novo, com vários adolescentes mal-humorados,encalhamos e tivemos de esperar até a maré nos tirar da lama. Eles seimaginavam em discotecas com namorados e namoradas, não naquele lugarcom os amigos dos pais, encalhados, com a fascinante silhueta de SãoFrancisco ao longe.

No Mediterrâneo, quem não gostaria de saltar do barco de manhã cedo,colher legumes, verduras e peixes frescos num mercado e produzir jantaressimples e elegantes no convés, com velas escorrendo, toalhas brancas, umatigela de figos e libações com vinhos brancos da Ligúria?

APRENDEMOS LOGO A ENTRAR E SAIR dos ônibus. Dirigir pode ser entediante porcausa do tráfego lento serpenteando pela península de Portofino. No porto,conversamos com um capitão de barco que personifica a expressão “lobo-do-mar”: barba branca crespa, bochechas rosadas e boné de marinheiro. Suapequena lancha parece básica, mas digna do mar, portanto nós o contratamospara nos levar até Camogli, uma cidade portuária ao redor do promontório.Ele nos coloca sentados na frente e começa a falar sem parar sobre a história

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da região. Com o barulho do motor de popa e o vento contra ele, nãocompreendemos nada. De vez em quando, Ed grita “Si!” ou “Buono!”. Elediminui a velocidade numa enseada e oferece um banho de mar, mas estáventando. “Fulvio e Edoardo estariam dentro d’água no mesmo instante”, Eddiz.

Camogli! De tirar o fôlego! Chegando pela água, vemos toda a curva dacidade de cores vibrantes, ancorada por um castelo e porto cheio depequenos barcos de pesca. A cidade se curva ao longo da praia, com prédiosde cinco ou seis andares. Sem dúvida, muitas mulheres olham das janelas,esperando seus maridos chegarem com o produto da pesca. O nome talvezsignifique ca’ moglie, casa de esposas.

Nos despedimos do nosso capitão e partimos para explorar a cidade.Construída em terraços estreitos, ela dá as costas para uma montanha.Muitas escadarias íngremes conduzem de um nível a outro. Toni e Shotsy,nossos amigos da Califórnia, adoram Camogli. Por que não estão aqui, numasacada no terceiro andar, escrevendo em seus cadernos e servindo copos desuco de laranja? Ah, se eles nos vissem e acenassem, nos convidassem parasubir – mas, em vez disso, uma mulher escova um cachorrinho e fuma.

Visitamos o Museu Marítimo, examinando em detalhes todos os modelos denavios, e entramos em umas duas igrejas. Basicamente, apenas passeamos,fotografando as buganvílias, os portais e as vistas. Depois do almoço – umagrande travessa de peixes e lulas fritos –, embarcamos no trem e voltamospara Portofino, via conexão de ônibus. Uma das vantagens de viajar pela Itáliaé poder pular espontaneamente num trem. Voltamos a tempo de descansar,eu com os livros de arte de Fulvio, Ed com um poema de Pavese que estátraduzindo, e o tranquilo som de vozes e barcos lá embaixo.

No dia seguinte, pegamos o ônibus para a animada Santa Margherita,vagamos pela cidade, quase compramos um fragmento antigo de uma mão demármore para minha coleção, pensamos melhor e decidimos almoçar numpequeno restaurante. Como chegamos tarde e somos os únicos clientes, aproprietária se demora perto da mesa. Ela se anima quando dizemos onde

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moramos.“Melhor, Toscana!”, exclama, quando Ed diz que Santa Margherita é

fabulosa.“Adoramos aqui”, eu digo. “Quem sabe a gente se muda pra cá.”“Os lígures”, ela nos garante, “não têm educação. Eu sou da Toscana e lá

eles têm educação”. Uma história de vida se segue e o almoço demora maisdo que planejávamos. Você realmente não pode ter pressa na Itália.

Santa Margherita tem um glamour de filme antigo. Fachadas harmoniosascom janelas em tromp-l’oeil e caprichosos enfeites, o grande porto circundadopor palmeiras, a luz transparente – Marcello Mastroianni vai aparecer num Alfaconversível e nos oferecer uma carona de volta a Portofino?

APESAR DA DESLUMBRANTE REPUTAÇÃO DE AMBAS , tanto Portofino como Capri sãopara quem gosta de caminhar. Antigas picadas de burros circulam asencostas. Se você pegar a trilha para San Fruttuoso, como fizemos numaviagem anos atrás, será recompensado com vistas de arregalar os olhos e ummergulho numa enseada azul, muito azul.

Embora os restaurantes de Portofino não alcancem grandes pontuações nosmelhores guias turísticos, achamos os frutos do mar esplêndidos. Aurora nosdisse que algumas das melhores focaccia da Ligúria vêm da padaria dacidade. Compramos umas fatias para o café da manhã. Todos osrestaurantes servem o pungente pesto genovese com uma variação – batatasem cubos cozidas junto com o macarrão. Se existe um paraíso celestial,espero que me sirvam o camarão assado de Portofino em todas as refeições.

Jantar no porto com luzes tremeluzindo na água e barcos subindo edescendo nos seus reflexos caleidoscópicos – um momento de perfeição.Nem mesmo prejudicado pelo homem corpulento que se debruça sobre Ed ediz num inglês com forte sotaque: “Vocês, americanos, fazem guerras feias.”Seus olhos são negros como buracos no gelo para pescar. Eu olho para amulher dele, que parece uma vespa. Ela baixa o olhar. Deve saber que vive

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com um cara grosso. Embora pudéssemos mencionar uma guerra que o seupaís impôs ao mundo, embora desse vontade de empurrar a cadeira dele paradentro d’água e ver a sua cabeça redonda afundando, não falamos nada. Istodeixa o Senhor Grandão furioso e ele fala alto com a mulher em alemão.

O garçom escuta a sua voz rabugenta e, quando o robusto casal parte –oscilando um pouco –, ele traz várias taças de prosecco e se senta paradiscutir conosco alguns dos seus principais preconceitos. Quando lhe dizemosque somos amigos dos Di Rosas, ele chama o irmão e ficamos lá até nãorestar mais ninguém. Da janela lá em cima, vem o som de um piano e as notasparecem acompanhar o ritmo da água subindo e descendo.

Na nossa última manhã, subimos até o Castello Brown, um jardimestonteante e um castelo/casa onde foi filmado Um sonho de primavera. Eencantar, ele encanta. Abelhas exploram as laranjeiras e, para onde quer queeu olhe, a vista é azul, azul, azul. A posição desafia descrições: a casa é umpivô em torno do qual gira o mar. Está vazia esta manhã e, vagando pelosaposentos, eu posso facilmente reconstruir uma vida de fantasia.

NO CAMINHO DE VOLTA PARA CASA , eu quero descer por muitas estradastentadoras. A Itália é um parque de diversões imortal. Algum país chega pertoda sua mistura estonteante e ininterrupta de deleites – paisagem serena e artemagnífica e história estratificada e cozinha apetitosa e música gloriosa e povohospitaleiro? Tantos es. Tudo numa península alongada cortada ao meio pormontanhas, abarrotada de dialetos, grandes cozinheiros, o Renascimento,cidades nas montanhas, cinema evocativo, ruínas, castelos, mosaicos, villas,sinos de igreja, praias e muitas outras coisas. Quando já estamos achandoque não vamos encontrar nada para comer nesta estrada secundária, surgeuma pequena osteria.

Isto é Itália – um desses lugarzinhos inconspícuos, afastados – e a refeiçãonos deixa de olhos arregalados. A garçonete traz simplesmente o que elesestão servindo: penne com molho de tomates e manjericão, assado de vitela e

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batatas, espinafre refogado, um pão fantástico e panna cotta. Simples, muitosimples, e perfeito.

Nós nos banqueteamos, depois seguimos em frente, retornando aBramasole a tempo de fazer as compras para o final de semana. Cortona estáfervilhando de turistas. Eles são menos este ano e os comerciantes estãodesanimados, mas, mesmo assim, a piazza ressoa de conversas e risos. Ah,o Marco’s tem uma degustação de vinhos em andamento. Nós nos juntamosaos amigos e estranhos ali e conhecemos os produtores dos vinhos Gemellilocais e esplêndidos.

A noite cai de mansinho e o céu intenso esmaece num turquesa delicadorajado de nuvens diáfanas. Todos parecem maravilhosamente esmaltadoscom esta luz radiante.

“Este é o lugar onde as coisas acontecem”, Jim fala, nos entregando taçasde vinho tinto escuro.

“É, agitado.” Ed brinda com um tilintar de taças.Sim, Luca, que bom estar de volta. Vamos nos encontrar na piazza?Não é de admirar que enxames de turistas se concentrem na Itália, na

expectativa de se deslumbrar. Massas banhadas e não banhadas esperando,sim, por simples diversão, esclarecimento, relaxamento, transformação.Talvez aquele raio de força vital que impeliu a Idade Média para oRenascimento também tenha sido a centelha da ideia de que a Itália é o lugar.A labareda de glória do humanismo ainda nos atrai. Assista a esta piazzanuma noite de verão. Talvez o grande e velho sol mediterrâneo, lançando suasflechas douradas cruzando a piazza, continue a nos atrair também.

“Eu já lhe contei”, pergunto para a Valentina, “que um dia entrei num ônibusvazio e aí uma mulher entrou e, de todos os bancos vazios, ela resolveu sesentar ao meu lado?”

Ela me olhou sem entender. “Perché no, cara?” Por que não, querida?

SENIGALLIA EM MARCHE

Estávamos querendo explorar a costa do Adriático, então, quando Riccardo e

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Silvia, recém-chegados de Senigallia, recomendaram um hotel, nós oprocuramos na internet e achamos irresistível a descrição no site:

Para a natural oferta de uma paisagem ainda selvagem de autenticidade própria, o Marine TerrazzaMarconi Hotel e SPA oferece a própria habilidade para receber e satisfazer as exigências dopresente. É o encontro do precioso e atávico equilíbrio entre desejos, hábitos e recursos,embalando um ritual diário harmonioso, na medida de cada hóspede. É também um fascinantediálogo entre arquitetura e paisagem, um convite para uma pausa de bem-estar num contextogeneroso e cordial, é a fonte de uma reencontrada união entre espaço e tempo.

Reservo um quarto imediatamente. Vemos logo que Senigallia não só estána costa oposta a Portofino, mas a cidade também é o oposto. Portofino é umdos locais mais exclusivos de todo o Mediterrâneo; Senigallia, ao contrário, éum balneário relaxado, antigo na origem, e acolhe a todos na sua ampla praiaconhecida como Praia de Veludo; homens africanos vendendo echarpes; genteem busca de sol deitada em toalhas e cadeiras dobráveis assim como emformação nas concessões de guarda-sóis e cadeiras; crianças construindocastelos de areia e meninos jogando vôlei. Senigallia é uma das praiasBandeira Azul da Comunidade Europeia; a areia dourada tem atraído pessoasem busca de sol desde os antigos romanos.1

O fato de estarmos um pouco perdidos nos dá uma visão da área portuáriacolorida, saibrosa. O Rio Misa atravessa a cidade e um acesso tãoconveniente deve ter sido o que originalmente atraiu os colonizadores noséculo IV antes de Cristo. Esta foi a primeira colônia romana no Adriático.

Encontramos várias ruas bloqueadas fervilhando de gente. Durante a IdadeMédia, Senigallia mantinha uma gigantesca feira. A tradição continua, combarracas montadas para vender roupas, utensílios domésticos e brinquedospara praia em vez de suprimentos agrícolas, embora o mercado de peixes,ervas e vegetais em Foro Annonario provavelmente não se afaste muito doseu modelo mais antigo.

Viemos a Senigallia para caminhar na praia e por causa de duas meccasculinárias – Uliassi, a poucos passos do hotel, e, saindo um pouco da cidade,La Madonnina del Pescatore. Eu não saberia dizer qual delas prefiro. Sãodiferentes, mas similares. Para ambos os criativos chefs, as estrelas são os

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ingredientes locais. “Escreva o que você não sabe sobre o que você sabe”,uma colega minha costuma dizer aos seus alunos de ficção. Esse é o estiloem Senigallia. Os chefs buscam o que é novo no que é familiar, especialmentefrutos do mar. Alguns dias provando ambas as cozinhas, caminhando na praiaao alvorecer, fazendo uma sessão de massagem, lendo um livro no terraço –esta é a receita para uma sensação instantânea de liberdade.

O hotel tem bicicletas estacionadas na frente, com cestos de vime e semmarchas. Pedalar pelo passeio público, parar para almoçar num restaurantesimples de peixes na praia (onde a umidade sempre entope o saleiro) seriacomo uma antiga experiência nas praias da Flórida não fosse tão puramenteitaliano.

Um pavilhão art nouveau suspenso sobre a água incita as lembranças quetodos os italianos com mais de quarenta anos têm. Todos conhecem a letrada canção dos anos setenta Una Rotonda Sul Mare (Uma rotunda no mar).Todos os amigos estão dançando no mar, mas onde está você – esse tipo decanção. Para amigos italianos, ela é o tipo de nostalgia que “CaliforniaDreaming’” provoca em mim.

Ao me debruçar na balaustrada da rotunda, sou catapultada de volta aocassino na praia da Ilha de St. Simon, onde minha família passava as fériasquando eu era criança. Minhas irmãs mais velhas, nos seus vestidosdecotados de verão, saíam com os namorados para dançar ao som deSomewhere there’s music, how high the moon... Na memória, o cassino éredondo, com colunas, aberto para o céu noturno, o piso do terraço, liso, umajukebox cintilando em ouro, vermelho e verde. O cassino parecia mesmo umtemplo grego? Eu vejo os salva-vidas bronzeados que minhas irmãsnamoravam e a secreta expectativa de que um dia eu sairia em disparada natraseira de uma lambreta, os cabelos como uma massa de cachos úmidos, asunhas dos pés pintadas de rosa-choque e os braços rodeando a cintura dealguém semidivino.

Se fôssemos italianos, eu teria ido à rotonda sul mare? A lua alta brilha nomar com o mesmo tom de prata, dançar num pavilhão aberto à beira-mar é a

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mesma coisa, minhas irmãs não se encontram à vista. Os meninos locais doverão são morenos, de olhos negros, e, quando adolescente, eu teria adoradodançar com eles.

Fazemos vários passeios de carro pela costa, onde descobrimos umaesplêndida extensão do Adriático, o parque natural de Conero, e ascidadezinhas de Sirolo, Portonovo e Numana. Quem não adoraria morar numacasa nesta costa? Planejamos voltar a Portonovo com nosso neto no próximoverão. O hotel ali é um autêntico forte napoleônico, murado, de 1810,encarapitado sobre o mar.

Antes de fecharmos a conta, tomamos um banho turco lá embaixo.Descansamos nas cadeiras de ladrilhos e deixamos as águas mornasrodopiarem à nossa volta. A descrição do hotel estava certa. Ele surpreendecom um harmonioso ritual diário.

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Círculos no meu mapa –Úmbria e mais além

ASSIS, LAR DE SAN FRANCESCO

Na Úmbria, Assis exerce uma profunda atração que nenhum número deturistas pode dissipar. Ed e eu voltamos com frequência pelo imensoprazer de ver esta cidade de pedras claras dramaticamente posicionadacontra a sua encosta. Viemos aqui para venerar San Francesco e Santa

Chiara, imortalizados nas suas próprias igrejas, para ver a fachada românicado Duomo di San Rufino e contemplar o Tempio de Minerva, cujas colunasseveras defendem com vigor o mundo antigo. Estamos apenas a uma hora dedistância, portanto este é um presente que com frequência nos damos. “Porque não vamos até Assis?”, Ed diz num dia ocioso.

O estacionamento principal agita-se com ônibus descarregando grupos deexcursão religiosos e amantes de arte que se amontoam na igreja maisembaixo da Basilica San Francesco para ver os afrescos de Giotto. Todosfazemos fila na escada rolante externa que nos ergue (nos assume?) até acidade. Os grandes sítios de peregrinação sempre estiveram apinhados depedintes e vendedores. Ver freiras do mundo inteiro nos seus diversoshábitos, observar peregrinos comprando cruzes de madeira de SanFrancesco, escutar rapazes barbudos cantando e arranhando seusinstrumentos de corda na piazza é parte da experiência. Se você não ouveuma música religiosa desde a época dos Encontros de Jovens, este é o lugar.

Quando entramos pelo portão principal da cidade, o sol de julho parecejorrar de um grande cálice sobre nossas cabeças quentes. Hoje a quantidadede turistas se acotovelando é desanimadora. Procuro seguir o conselho domeu amigo fotógrafo, Steve: veja como se fosse através de uma lente. Olhepara cima, ou para baixo, ou em torno para a pedra esculpida e santuários

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mágicos nas ruas e pátios verdes e portas que se abrem para palácios.Um grupo de africanos com roupas coloridas senta-se na primeira piazza e

inicia um hino lúgubre.“Você acha que existe isso de alma global?” Ed pergunta do nada.Uma alma global. Preciso pensar. “Bem, acho que sim. O conteúdo mineral

do corpo humano não é na sua composição o mesmo conteúdo mineral daterra – quero dizer, nas mesmas proporções?” Ele parece satisfeito com aresposta, mas eu não sei como os africanos cantando um hino católico oprovocaram. Provavelmente foi o elemento Nações Unidas de Assis.

DURANTE UM PASSEIO NA HORA DA SESTA por esta cidade antiga, onde gatos de ruabem-alimentados se enroscam sob uma planta de lavanda, de repenteexperimento uma alegre liberdade do tempo presente. Desejo loucamentepoder fotografar todas as fantásticas aldravas ou pintar os gerânios cor decoral tombando de uma sacada. O aroma de galinha assada escapando deuma janela me faz querer bater na porta e me apresentar ao homem decamiseta e cuecas lendo jornal na janela. Ele tem o privilégio de erguer o olhosa qualquer hora do dia e ver a rosácea de San Rufino, como fazemos agora.

“Essa rosácea parece o paninho de croché que Domenica faz nas suasnoites de inverno”, observo. Esta é uma igreja que Ed aprecia particularmentepor seu sólido campanário de 1028, a parte mais antiga da igreja, e os signosdo zodíaco de pedra ao redor da porta principal. A construção demorou tantoque é possível traçar a mudança de românico para gótico conforme seu olho etempo sobem a fachada. O interior foi reformado e não fala mais a severalinguagem primitiva do exterior, mas pode-se passar o dedo pela borda da piade mármore onde Francesco e Chiara foram batizados.

PRECISO VISITAR OS ARCOBOTANTES da igreja de Santa Chiara, de pedra rajada derosa e branco, entrar e dizer ciao para o seu corpo mortal exposto, o rosto de

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um marrom ceráceo, como carne seca.“É um poema”, Ed diz, apontando para a rosácea de Chiara.“Você acha que a forma simplesmente evoluiu dos vitrais circulares mais

velhos do prédios antigos?”“Talvez, parece lógico. O que os faz tão puros? Acho que é o contraste com

a pedra dura esculpida num desenho rendilhado.”“Sim, uma pedra tão pesada e o desenho absolutamente etéreo.”“Gosto do nome tanto quanto dos vitrais. Rosáceas. Estes são tão mais

simples do que os de Notre-Dame e de Chartres.”“Um gesto totalmente diferente.”A igreja superior da basílica também tem uma rosácea importante. Não que

estes vitrais sejam as principais atrações de Assis. Vamos deixar isso para osafrescos de Giotto, e para aqueles de Cimabue, Simone Martini e Lorenzetti.Mas a vantagem das visitas repetidas é que você pode esmiuçar nuanças deum lugar, e com frequência essas o comovem pessoalmente mais do queatrações com cinco estrelas.

Vagando pelas vizinhanças de braços dados, olhamos de relance paradentro das janelas abertas. As risadas e os gritos no interior, pratosmatraqueando, gaiola com um tentilhão, cortinas de croché, rosas trepadeirase vasos de hortênsias, tudo fala claramente sobre a vida em Assis. Ed para,inspecionando um vaso de manjericão num alpendre. Eu só olho, registrandono cérebro uma porta azul desbotada.

San Francesco, no seu manto grosseiro marrom, está deitado lá dentro,dormindo longe do calor e sonhando em estender a mão para um lobo.

A ITÁLIA É INFINDÁVEL. Minhas excursões preferidas são para lugares quepermanecem extraordinariamente eles mesmos. Cidades pequenas emespecial produzem uma experiência íntima – e você encontra uma sensaçãoimediata da essência do lugar. Você também pode ter encontros maispróximos com pessoas, sempre um bônus na Itália.

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Na semana passada, a caminho de Veneza, onde encontramos amigos,saltamos do trem para uma noite em Ferrara, na Emilia Romagna. Ferraramerece um longo capítulo e não vejo a hora de voltar lá. Se fizerem listas dos“Melhores lugares para se viver na Itália”, sem dúvida alguma Ferrara ficaráno primeiro escalão. A cidade é plana e aberta, com prédios simpáticos,inúmeros palácios, campanários, calçadas em arcadas e uma população debicicleta. Bicicletas por toda parte, com aglomerados de pessoas quepararam para conversar enquanto equilibram suas bicicletas. Com apenas umrodopio por esta maravilhosa cidade, absorvi sua força e dignidade. Que outrolugar tem muralhas renascentistas tão extensas, esplêndidas piazze abertas eruas ladeadas por árvores cheias de pássaros cantando?

O imponente Palazzo dei Diamanti, Palácio dos Diamantes, recebeu o nomepor causa da fachada de pedra facetada. Lá dentro, tivemos a Escola dePintores de Ferrara só para nós. Os guardas de segurança estavam todoslendo livros. A família Este, de grande influência política e econômica, quetinha corte aqui, deixou seu selo indelével de cultura e história. Maisrecentemente, o romance de Bassani e o filme de De Sica, O jardim dosFinzi-Contini, deixam um véu de tristeza sobre o lugar por causa do destinodos judeus na era fascista, que, antes, do século XVII até meados do séculoXIX, haviam sido arrastados para um gueto. Sob a placa relacionando ehomenageando os nomes de judeus mortos, mesas de café recepcionammultidões de pessoas animadas que compartilham um aperitivo de final detarde.

Fomos dar num pequeno restaurante que eu gostaria de pensar querepresenta bem a cidade, Quel Fantastico Giovedì (Aquela fantástica quinta-feira), o nome inspirado no título traduzido do romance de Steinbeck, SweetThursday. Memorável, o budino de ervilhas com fondant de gorgonzola,vieiras com erva-doce, ravióli de espinafre recheados com codornas e depoiso divino sorvete de pêssego.

Na falta de bicicletas, andamos horas a pé em Ferrara.

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MAIS PERTO DE CASA, costumamos levar nossos hóspedes de carro até BagnoVignoni, onde uma fonte térmica com propriedades curativas corre morroabaixo por um canal travertino. Tantas vezes nossos hóspedes distenderamum músculo carregando malas ou torceram um tornozelo caminhando nas ruasde pedra com sapatos de salto alto. Nós os levamos para as águas. Demanhã cedo é a hora de ir e molhar os pés, mesmo que eles não doam. Aomeio-dia, muitos italianos já chegaram, prontos para mergulhar, naspropriedades minerais da água quente, os pés doloridos de tanto trabalhar.Eles arregaçam saias e calças, baixam os pés e se curam. Na cidade, umapiscina térmica toma o lugar da usual piazza e você pode imaginar Lorenzo IlMagnifico flutuando como um nenúfar.

EM ISOLA MAGGIORE, uma ilha no Lago Trasimeno, na Úmbria, uma caminhada àmeia-noite leva você de volta a um tempo perdido, quando o vilarejo era o larde pescadores e o castelo-mosteiro meditando no final da ilha recepcionavaSão Francisco para uma visita. Redes em forma de cornucópia ainda secamna rua principal. Por uma janela, você vê uma mulher fazendo renda à luz dolampião. Num lugar sem carros, uma proporção humana se faz valer. Vocêpode caminhar em silêncio, observando a luz ondulante das estrelas sobre aágua.

NOS ÚLTIMOS ANOS , fomos atraídos para o sul. Matera, lá embaixo emBasilicata, é uma cidade estranha onde as pessoas um dia – não faz muitotempo – viviam numa vasta colmeia de cavernas, a maioria agorafantasmagoricamente vazia, algumas restauradas para uso. O resto da cidadeparece prosperar, mas, no seu coração, reside este labirinto primitivo, umlugar para vagar e contemplar a vida como você não conhece.

Em seguida, para Alberobello, na Apúlia, com casas brancas cônicaschamadas trulli, que parecem antigas e ao mesmo tempo algo de outro

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planeta. Você quase espera que surjam astronautas aprendizes.Você ficaria muito feliz em passar um mês explorando os castelos e

cabanas de caça de Frederico II, a excepcional cidade barroca de Lecce e aencantadora cidade portuária de Gallipoli. Apesar do turismo crescente, todaesta região ainda tem muitas possibilidades para descobertas. Eu gostoespecialmente das cidades de Trani, Bitonto e Otranto com seus duomos.Vale o passeio só pelo pão, formas gigantescas que poderiam alimentar umatribo de quarenta pessoas, e pelos pratos substanciais de macarrão criadospor aqueles que davam duro na terra.

Amalfi, Capri, Vicenza, Cormons, Verona, Torino, Trieste, a Itália éinfindável.

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Os ossos de Signorelli

Vade Mecum – Vem comigo.– INSCRIÇÃO NUM TÚMULO ROMANO

Se você esta morto na Itália, não está tão morto como poderia estar.Olhando da Piazza del Duomo, vejo o cemitério murado logo abaixo dacidade no mesmo declive. Daqui, ele parece espelhar a cidade, só oscaminhos entre os túmulos é que são mais ordenados do que as ruas

sinuosas de Cortona. Não posso ver as flores que sei que estão ali – frescas,também, não apenas plástico empoeirado. A comuna construiu recentementeuma calçada que desce até o cemitério para todos aqueles que caminham atélá na tarde de sábado com suas braçadas de gladíolos ou jarros de roseirasde jardim. Vão prestar o seu cuidado semanal aos mortos. Funerais, também,seguem a pé das igrejas na cidade. Os enlutados, esteja nevando ou com sol,acompanham o carro fúnebre para a segunda parte do serviço.

Eu mesma estou descendo, embora seja segunda-feira. Vou colocar umbuquê de lavandas no túmulo do nosso amigo Alain, que morreu na semanapassada. Lavandas porque ele era francês e eu sempre associo essa flor coma Provença. Preciso dar algumas voltas porque não sei onde ele está.

Nos últimos anos, perdemos contato inúmeras vezes com Alain e eu nemsabia que ele tinha morrido até três dias depois. Nos nossos primeiros anosaqui, fizemos tangencialmente parte do círculo fechado de escritores maisvelhos que tinham sido expatriados juntos em Roma. Todos eles migraram devez para Cortona, onde vários já tinham comprado casa, durante os anos daBrigada Vermelha. Alain era o mais espirituoso do grupo e recebia comfrequência. Eles estavam, todos sem exceção, imbuídos do fatalismo, humorirreverente e cinismo que se apodera dos expatriados.

Mesmo no campo, ele mantinha a formalidade. Tenho certeza de que vestiaum alinhado paletó esporte e gravata mesmo sentado à escrivaninha do seu

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quarto de dormir. Ele falava sem parar, um homem-espetáculo, e jamaisrepetia uma piada. Gostava de falar de livros e política. Muriel Sparkcostumava frequentar a sua mesa quando jantávamos. Pelo menos uma vezpor semana durante anos, nós nos encontramos nas casas uns dos outros,com frequência para banquetes sob as oliveiras ou na Il Vallone, uma pizzeriaonde a proprietária, amante do sol, usava maquiagem para se bronzear noinverno. Com seus cachinhos também cor de bronze sobre a cabeça, elaparecia uma cantora de ópera deslocada, exceto por usar chinelos que mefaziam lembrar uma dona de casa exausta. Foi na casa de Alain e do seucompanheiro, Ben, que conhecemos Ann Cornelisen, essa estilista de prosaforte, que se tornou nossa melhor amiga na Itália. Agora, parece impossível,quase todas estas forças estão debaixo da terra.

Na entrada do cemitério, dois latões repletos de garrafas vazias derefrigerantes atestam o número de pessoas que vêm regar as plantas nostúmulos. Através da escuridão de um corredor em arco, eu emerjo para a luzdura do cemitério. Como viveram na cidade, assim eles estão – as moradasde pedra com pouco menos de um palmo entre elas. O primeiro nome quenoto – o pintor Gino Severini. Ele está numa caixa simples acima do solo, maisou menos como um sarcófago etrusco. Aqui está ele, morto como qualquerum. Mas seu epitáfio proclama outra coisa: Non omnis moriar. Nem tudo demim morrerá. Eu me pergunto se Signorelli está em algum lugar ali por perto,embora nenhum túmulo pareça ser mais antigo do que 1850.

As paredes guardam túmulos-gavetas, cada uma com uma foto do habitantede partir o coração, tirada num momento de plena vida. Tem os túmulosmotocicletas. Pelo menos a cada ano, perdemos um rapaz para o surto deadrenalina da ultrapassagem numa curva. Muitas fotos mostram os rostosnodosos das antigas gerações de contadini que agora passam rápido. Outrasproclamam Conte e Contessa, superiores até na morte. Eu passo o dedopelas letras esculpidas desgastadas: Artemisia, Laudomia, Sparteo. Lindosnomes antigos – Girolamo, Oreste, Assuntina, Felicino, Salvatore, Conforta,Oliviero, Guglielmina, Ersilia, Zeffiro, Quintilio, Italo, Candida. Será que alguém

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um dia vai escolher chamar de novo um menino de Giovanni Battista, JoãoBatista?

Tantos Umbertos do final do século XIX, quando reinava Umberto I, tantasElenas um pouco depois, homônimas de Elena de Montenegro, mãe do últimorei da Itália. Eu paro diante de Orte Baracci, cuja lápide diz apenas: FrontRusso, 1943. O seu grosso uniforme de lã provavelmente não o protegeu dascongeladas estepes russas, mas ele sorri sob o chapéu militar com umaatrevida pluma caindo sobre o ombro. E, perto dele, um homem nascido em1918, fim de outra guerra, com o forte nome de Libero, Livre.

Não encontro um monte de terra coberto de flores murchas. Talvez eleesteja fora dos muros. Percorro os corredores internos revestidos de mortosdo chão até o teto, passo por uma cripta úmida e saio para o campo aberto.Ah, melhor descansar no campo com os infiéis e pobres, em meio aorendilhado de flores brancas e a grama onde crescem ervas daninhas. Otúmulo recente coberto de rosas não é o de Alain. Uma joaninha testa umafolha de roseira e logo sai voando.

A maioria destes não tem lápides, que não deixarão escapar os ossos noDia do Juízo Final. Aqui fora, os esqueletos podem simplesmente rasgar aterra, ficar de pé e assumir de novo os seus corpos. O grande ciclo deafrescos de Signorelli no domo em Orvieto retrata almas emergindo da crostada terra. Nos quadros, como num sonho, você pode sentir um surto literal deêxtase e assombro conforme a bela carne retorna. Esta deve ser a nossamais profunda esperança: Diga que não é. Gostaria de ter um mínimo de féde que o Dia do Juízo Final vai me fazer voltar, junto com bilhões de outros.Eu estaria de novo com vinte anos num maiô amarelo, sentada na borda deuma piscina com três deslumbrantes rapazes na água aos meus pés. Se eufosse realmente religiosa, acho que a vida se apegaria menos a mim. Afinal decontas, ela é apenas um campo de prova para a eternidade, onde eucumprimentarei meus pais e nos vestiremos de algodão branco e assistiremosa uma longa missa cantada. O céu é uma ideia fantástica. Temo, entretanto,que a morte seja algo absoluto. Para mim, caminhar pelo cemitério dá vontade

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de me lançar sobre um Alfa e Ômega e chorar.Lembro-me do escritório de Alain no andar de cima, com todos os seus

livros em francês, inglês e italiano. Lembro-me dos almoços de domingo noinverno com suflê de limão feito em cima do fogão e um fogo na grelhaaquecendo as minhas costas. Lembro-me do brilho nos seus olhos antes dofinal da piada e a risada afável depois. O seu pequeno salão com sofás ealmofadas forrados de pano, vermelhos e azuis profundos, pareciaexoticamente estranho e me lembro da emoção do novo encontrando o velhomundo. Lembro-me dos seus punhos franceses e de seu cachorro grande, ojardim pisado e a pérgula de videira onde ele servia Campari e soda. Nãoencontro seu túmulo.

EM SEU LIVRO As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos,Vasari conta uma história reveladora e emocionante. Quando uma pesteassolou Cortona em 1502, o filho de Signorelli, já estudando para ser pintor,morreu. Signorelli o despiu e desenhou o seu corpo nu, “de modo que, porobra da sua própria mão, ele pudesse ter sempre diante dos olhos o que anatureza lhe dera e o destino adverso lhe roubara”. Dizem que Signorelli faziaestudos anatômicos no cemitério local. Ele mandava exumar um corpo, ouaparecia com o seu lápis afiado antes do enterro? De todos os pintoresrenascentistas, as formas de Luca são as mais vivas. Ele adorava distrair oespectador do tema principal com uma bunda masculina bem colocada, numaroupa justa, as fartas coxas de uma criada através da saia, ou o peitomusculoso de uma figura menor na lateral de um martírio em andamento.Estranho pensar que seus corpos dinâmicos tiveram origem aqui entre osmortos. Eu sempre olho seus quadros e reconheço pessoas que vejo napiazza. Reconstituo, no olhar triste da moça que serve pizza, uma Maria daAnunciação e, nos cachos crespos e pernas curtas de um antiquário, o Cristoflagelado. Ele deve ter se agachado ali, encostado na parede, com suaspenas. Eu gosto da história de Vasari sobre a sua vida dupla como artista e

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homem de família, ativo no governo como magistrado em Cortona. A suamorte aos 82 anos o lançou num novo e eterno relacionamento com o seulugar de escolha. Onde descansam os seus ossos, Luca?

A ESTA ALTURA, JÁ ASSISTIMOS a muitos funerais. Embora eu estivesse por pertoenquanto enchiam de terra os túmulos, não consigo localizar nenhum deles. Eutinha certeza de que o irmão de Lorenzo, Umberto, estava ali, mas não. EFrancesco Zappini. Pensei que ele estava na parede da direita. QuandoFrancesco morreu, nós o visitamos em casa, onde ele descansava na camade casal com o gato da família adormecido aos seus pés, como numsarcófago de mármore medieval.

O padeiro morreu, além do alfaiate, Anselmo, e do irmão de Placido, Bruno,cujo transplante de fígado acabou não dando certo. No final da temporada decolheita de azeitonas no último outono, nosso querido Primo Bianchi,restaurador de Bramasole, caiu de uma escada em seu bosque. Nas nossasausências de inverno, perdemos o artista errante que andava por toda a áreacom telas debaixo do braço e o homem corcunda que entregava as comprasdo armazém. No velório de Ernesto, ele ficou deitado sob um véu que cobria ocaixão aberto, cercado por Anna e suas filhas. Margherita não largava a suamão fria, que parecia ter se estendido por debaixo do véu. E depois, no últimoinverno em que estivemos aqui, Amalia. Num dia gelado de março, nós nossentamos em torno do caixão aberto na igreja fria junto com a família. Deonde eu estava, apenas o seu nariz cinzento era visível sobre a lateral docaixão, uma pequena embarcação a vela partindo para a outra vida.

A igreja está sempre abarrotada. O padre sempre chora, o que gera ondasde choro até o fundo da igreja. Eu acho ofensivo os voluntários passaremcestas para a coleta. Certa vez, vi que alguém tinha deixado cair uma balinhapara disfarçar o mau hálito. Quase ninguém canta os hinos, mas todosconhecem as letras da missa fúnebre. Até eu arrisquei algumas frases. Opovo faz a longa caminhada, todos juntos, até o cemitério onde a grama

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sintética não disfarça o túmulo escancarado. O caixão desce e dois coveiroscomeçam a trabalhar. Depois, jogam-se os últimos punhados de terraenquanto o padre reza. Os coveiros socam a terra numa corcova lisa, colocama lousa, arrumam-se as flores e pronto. Todos sabem com totalirrevogabilidade que a pessoa está morta.

TEM APENAS UMA outra pessoa aqui. Nas segundas-feiras, os mortos ficam porsua própria conta. Uma mulher num vestido caseiro estampado esfrega umdos mausoléus. As lousas dos membros da família revestem as paredeslaterais. Linho limpo e flores frescas enfeitam o altar. Um genuflexório decoraeste lar longe de casa. Eu espio dentro de vários outros. Alguns estãoesquecidos; a tríade de plantas, morta; o pano do altar, empoeirado.

Saindo pela porta dos fundos do cemitério, encontro lápides e cruzes deferro descartadas. As famílias morreram, não ficou ninguém para pagar oaluguel? Eu poderia levá-las para a minha casa, escorá-las entre as oliveiras.Alguém se importaria?

A parte mais comovente do cemitério é uma parede revestida com as lousasmais antigas. Estas enviam mensagens remotas. Uma delas homenageia duaspequenas sorelle, irmãs, levadas pela cruda difterite, a crua difteria, em 1874.Outra sinaliza outras irmãs, vítimas de malevoli insinuazioni. O quê?Insinuações malévolas? Estou tendo uma insolação, aqui ao meio-dia sob o solde julho? O que isso poderia significar? Outra lamenta: “La cruda difteritetolse la vita a me.” A mesma difteria “levou a minha vida”. O sol bate em ritmolento na minha cabeça. Esta é uma longa auditoria do passado. Desde osmeados do século XX, com a contagem de espermatozoides descendo numacurva em espiral, dez, vinte por cento, chegando a quarenta por cento, eudevia me preocupar com o futuro. Se eu quero me preocupar, o baixo índicede natalidade italiano deveria ser o meu foco. Do jeito como vamos, muitoantes de cinco bilhões de anos, quando o Sol evoluir para um gigantevermelho, prestes a colapsar, não haverá ninguém por aqui para se preocupar

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com isso. Este lugar terá se juntado aos jilhões de partículas no universo juntocom o suflê de limão de Alain, as suas camisas azuis engomadas, alembrança da longa caminhada de Francesco voltando da Rússia descalço, afarinha de trigo nas mãos do padeiro, os rostos atordoados das jovens filhasde Bruno, a fria vigília na igreja octogonal, o véu sobre Ernesto, o piscardivertido nos olhos azuis, muito azuis, de Primo, o padre que chorou.

Mas a paixão de 127 anos de idade de Zelinda Dragoni, por enquanto, aindaperdura. Ela deve ter tido tempo de compor o seu epitáfio em 1881. Ela sedirige a Luigi: “Meu primeiro e único amor na Terra. Sempre falarei com Deusdo grande afeto e do piedoso cuidado que você dedicou a mim e a Elerecomendarei a nossa Ida. Addio, Addio.” Ida deve ter sido uma filha, queparece aqui ser uma reflexão posterior. Outra lousa (1852) implora ao leitor:“Espalhe lágrimas e flores neste campo de morte.” Ok, tudo bem.

Meu telefone toca, desfazendo esta comunhão. “Onde você está?”, perguntaEd. “Quer que eu requente a galinha para o almoço? Já passa da uma hora.”

Eu olho a cidade lá em cima, onde vejo uma mulher como eu estava antes,encostada na parede do duomo, olhando lá embaixo a pequena cidade dosmortos. Por um breve momento, me pergunto o que ela estará pensando.

E assim eu deixo o meu maço de lavandas apoiado numa cruz de pedraanônima com desenhos de líquen.

Addio, Addio.

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Amici

“Quando é a invasão de Cuba?”, pergunta Massimo.“Teve notícias deles?”, diz Lorenzo da sua porta.“Quais são as novidades dos cubani?” Edo pega o telefone. “Vamos

ligar para eles.”“Ciao – sabe que Luca estava procurando Alberto?”, alguém que eu nem

conheço me pergunta.Como os vizinhos mais próximos e amigos do clã Alfonso, somos constantes

canais de informações sobre suas entradas e saídas papais da cidade. A suachegada anual sinaliza férias tão nitidamente como se a palavra aparecessesobre a cidade numa publicidade aérea. Eles trazem o seu charme cubanodespreocupado e o contagiante gusto di vivere. Todos se apaixonaram poresta família, dezessete pessoas, que comprou a Casa Caravita, uma casaantiga logo acima de Bramasole. Não cabem todos lá dentro, portanto unsdois apartamentos foram alugados para várias configurações dos três irmãos,suas esposas, um total de oito crianças, mais Mama Rose, tio Enrique e, àsvezes, uma tia da Espanha. Embora o pai tenha morrido há muitos anos, comfrequência sinto que ele veio para a festa prolongada e simplesmente não estávisível.

Eu não vou me esquecer da noite de verão em que conheci Alberto na mesada pérgula dos Cardinalis. Placido tinha lhe vendido um pedaço de terraadjacente à sua casa e nos convidara para conhecer “questo cubano moltosimpatico”.

Tínhamos escutado falar na piazza que um misterioso cubano-americanohavia comprado a casa acima de nós. Como as árvores a escondem, eununca tinha visto esta casa antiquíssima na encosta. O chefe da poliziamorava lá. Nós o escutávamos todos os dias chamando o cachorro. Vieni qui,ele chamava, vem cá. Nós sempre nos referíamos à casa escondida como

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Casa Vieni Qui. A restauração de Alberto tinha sido feita em tempo recorde.Milagre. Eu estava curiosa.

Estávamos um pouco atrasados, e Placido invariavelmente grita “A tavola”,para a mesa, ao soar das oito horas. Nós entramos comprimidos, ombro aombro, enquanto Fiorella trazia uma travessa de prosciutto e melão. Tive asorte de me sentar de frente para Alberto. Ele estava lá com dois colegas daempresa de arquitetura, Elizabeth e Secondo, ambos haviam compradoapartamentos em Cortona e estavam em estágios de restauração. Na outraponta da mesa, ouviam-se lamentos sobre o que estava ou não seguro e aexcitação com o andamento das obras. Ah, água quente. Janelas que abrem efecham. Os italianos gostam de discussões sobre telhados e drenagemtambém; eles estão lidando com as suas próprias casas dos sonhos queviraram pesadelos de pedra.

Em geral, o assunto me fascina, mas eu estava encantada com Alberto. Eletem uma risada divertida e parece alguém que Caravaggio teria gostado depintar: densos cabelos negros como Baco, pele tropical e uma expressão noolhar – o marrom brilhante dos castanheiros – que é rápida, direta e guardaalgo escondido. Eu vi que ele estava pronto para se deixar divertir. Mais tarde,eu saberia da sua natureza solidária, seu talento inato como pintor, seusambiciosos projetos arquitetônicos e seu conhecimento da história daarquitetura italiana.

“Então, em que você está trabalhando?” Alberto me perguntou. Expliquei queestava no meio de um livro sobre narrativas de viagens e que Ed e euestávamos viajando bastante.

“O que você quer fazer em seguida?”, ele persistiu.“Estou procurando uma casa no sul – na Carolina do Norte – e adoraria

construir uma pequena cidade ali, baseada nas coisas de que gosto nas casastoscanas.” Isto saiu espontaneamente, nada premeditado.

Ed e eu recentemente havíamos decidido deixar a Califórnia e voltar àsminhas raízes sulistas. Ele fez pós-graduação na Virgínia e sempre teve umaatração pelo sul. Na época, não tínhamos encontrado uma casa com uma

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alma intacta. Tínhamos conversado muito, entrando e saindo de casas, sobreo que nós, nesse momento, valorizamos em quatro paredes protetoras. Eumencionei uma monografia que escrevi na faculdade sobre “O lugar ideal deensino”. Desce das nuvens, meu professor havia escrito no alto com umrabisco mal-humorado. B+. Estávamos procurando uma pequena fazenda ecom esperança de encontrar um córrego, mas tínhamos achado apenas casasnovas perfeitas ou chalés apertados.

Alberto riu. “É mesmo? Uma cidade? Isso parece tão interessante.”“Interessante”, eu descobri, é uma das suas palavras, pronunciada com oprolongamento da última sílaba e usada com sinceridade, com ironia ouquerendo dizer não interessante. Desta vez, ele obviamente estava intrigadocom a ideia maluca.

Passamos a conversar sobre o nosso assunto preferido, arquitetura.Falamos de pedras, falamos de água, falamos de terra. O jantar formigava anossa volta, mas nós tínhamos encontrado obsessões em comum e é difícilparar, mesmo pela crostata de damasco de Fiorella. Eu aprendi um poucosobre o seu ofício, o aeroporto, museus e casas que ele projetou; emseguida, o reconhecimento sotto voce:

“O que eu realmente quero fazer é pintar; comprei a minha casa aqui paraficar mais perto da pintura.”

E eu confessei: “Eu queria ser arquiteta. Na época, não tive essa visão.”Temos conversado desde então: trocando e-mails, nos encontrando no seu

escritório em Tampa, em Roma, enviando livros, ligando de aeroportos, emencontros na Carolina do Norte e, o melhor de tudo, na piazza, no meuherbário ou numa trilha em Fonte.

Nossas famílias nos dão espaço. Afinal de contas, quem quer escutar horasde conversas sobre a planta da casa de fazenda de William Werther,construída em Santa Cruz em 1926? Ou discutir como uma igreja perto doaeroporto de Florença parece a capela de Corbusier em Ronchamp? Quemvai percorrer Roma a pé na chuva para verificar se Tempietto, de Bramante,tem medidas iguais às do oculus no Panteão?1

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Eu tenho sido abençoada com várias amizades assim na minha vida, obastante para saber como elas são raras. Acho que, quando encontramos umamigo de verdade, o reconhecimento acontece logo. “Lembra-se de quandonos conhecemos?”, perguntei-lhe recentemente.

Ele respondeu: “Primeiro na bottega em Firenze, no verão de 1492, logodepois da morte de Il Magnifico, quando aprendemos a triturar pigmentos.”

Sim, exatamente naquela ocasião.

UNS DOIS DIAS DEPOIS daquele jantar, Albertou ligou. “Está falando sério sobre asua cidade utópica? Porque eu gostaria de trabalhar numa coisa assim.”

NÓS CHAMAMOS A NOSSA CIDADE de Montelauro, montanha de louros. Nós a vemosperto de um rio. Corremos a Toscana inteira fotografando casas, detalhes eentradas para cidades, piazze, pontes, pérgulas e arcos. Cada um comprouuma câmera melhor. Adoramos a proporção áurea. Medimos prédiosapropriados, chegando à raiz quadrada da escala humana ideal. Ed adora aideia. Ele quer chefs italianos vindo para Montelauro em turnos. O irmão deAlberto, Carlos, um arquiteto com tino comercial, se entusiasma, como oirmão Tony, que começa a explorar terras em sites da internet. Albertocompra cadernos pretos de desenho para cada um de nós e anotamos nomesde ruas, locadores e árvores para plantar. Sinto que estou de novo dentro dasede de um clube feito de caixotes. Senha: Montelauro.

COMO ISTO ACONTECE ESTA MANHÃ , quando me perguntam tudo sobre os cubanos,eu tenho uma resposta: “Eles chegam na terça-feira. Todos eles.”

NA TERÇA DE MANHÃ, corto uma grande braçada de hortênsias azuis e Ed

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prepara um cesto com azeites de oliva, jarros de nossos tomates – osuficiente para a sua visita de um mês – e frutas, pão, queijo. Mesmo suacasa sendo tão próxima que podemos gritar uns para os outros – o som sepropaga numa encosta –, a subida é íngreme. Carregamos o Fiat econtornamos Torreone de carro, depois seguimos pela trilha de cabras. Euvejo lírios brancos silvestres na encosta e os cor de laranja salpicados deamarelo sob o muro etrusco que margeia a terra deles. Que extravagantesflores silvestres – os lírios espontâneos. Vejo isso como um presságio. NoRenascimento, alguém teria construído uma capela aqui. Uma empregadaestá arejando lençóis na corda de secar roupas.

Assim que começamos a descarregar, chega a primeira leva de Alfonsos:Tony, o irmão do meio, com sua mulher, Joy, e seus três filhos, além de tioEnrique (chamado de Nico) e Mama Rose. Primeiro item a sair da van: aguitarra de Tony. Nós vislumbramos grandes noitadas pela frente. Elesestavam loucos para ver a pérgula de rosas, a nova piscina e as lavandasplantadas no ano passado, agora acenando varetas perfumadas.

Mais tarde, escutamos Carlos e Dorothy chegando com seus três filhos,depois recebemos um telefonema de Alberto – o avião atrasou –, dirigindofeito um doido com Susan e seus dois filhos desde Roma.

Imaginamos que eles devem estar cansados e vão preparar um macarrãorápido e se recolher, mas, lá pelas dez horas, quando saímos da pizzeria, háuma comoção na piazza e sabemos que o clã Alfonso fixou residência denovo. Luca, seu arquiteto, Massimo, Edo e Maria os encontraram, e jorramCynar, Averno e grappa. As crianças entram e saem da gelateria e chutamuma bola de futebol. Há sempre risos na piazza, mas, com eles por perto, aspedras reverberam.

Estamos todos de volta na manhã seguinte. As mulheres fazem compraspara abastecer a cozinha, os homens combinam partidas de tênis e entregasde vinho, as crianças exploram a área. A nossa mesa na piazza se enche ealterna – Placido, Chiara, Simone, Claudio, Melva e Jim, Sheryl e Rob, Marco,Cecelia com seu bebê e o marido inglês, Lee, que está obviamente encantado

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com seu pequeno Tommaso. Alguns saem e voltam. Ed vai até a livrariaprocurar um dicionário de dialeto. Fulvio para só um segundo; ele está semprecom pressa. Eu não estou com pressa esta manhã. Alberto e eu ficamosporque tem muita coisa para se dizer. Davide acena da porta do seu salão decabeleireiro. Ele está pronto para a hora de Ed. Quando lhe perguntamoscomo ele consegue o corte de cabelo dedo-na-tomada de Ed, Davideresponde: “Primeiro cometo milhares de erros, depois conecto os erros.” ParaEd isso soou como uma filosofia de vida. Massimo traz outra bandeja comágua e café. Nós planejamos um passeio até Orvieto para ver os afrescos deSignorelli e almoçar num lugar a respeito do qual ele e Susan leram. Marcoanuncia um jantar no pátio do Teatro depois de uma degustação de vinhos nasua enoteca no final da tarde.

UNS CINQUENTA SE REÚNEM para o bufê. Nós nos sentamos com Dorothy e Carlose colocamos em dia as novidades. “Sharon Stone, bem-vinda!”, vários gritampara Dorothy. Existe uma semelhança, mas Dorothy é mais bonita. Marcopropõe um brinde à volta dos Alfonsos, e, em seguida, fazemos um outrobrinde ao aniversário de Marco. Sua mãe, Eta, é uma pessoa muito querida.Seu bufê generoso nos chama a todos de volta para a mesa. Ela preside,insistindo que ninguém está comendo. Eu vi fotografias suas quando era umajovem beldade de branco, segurando uma braçada de flores num desfile fazmuito tempo. Agora ela é uma matriarca, pálida e alta para uma italiana, comtrês netos. Com Marco e seu irmão Paolo, ela e o marido, o gentil Giuliano,dirigem o eficiente mercado na piazza, assim como a enoteca. Elestrabalham. A sua loja é menor do que o setor de biscoitos num supermercadoamericano e, no entanto, tudo que você precisa está bem à mão. Etaconsegue achar tempo para fazer uma pausa e conversar, ou oferecer umareceita, e para me dizer para comprar uma marca e não outra. Você pode vê-la atravessando a passos largos o parterre do parque de manhã cedo edirigindo-se para casa à uma hora, sem dúvida pronta para preparar um

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substancial pranzo.Nós provocamos Marco, dizendo que ele devia ser prefeito, mas ele prefere

melhorar ainda mais seu conhecimento de vinhos italianos. Paolo preferefutebol. Enza, a inteligente esposa de Marco, trabalha no programa de arte daUniversidade da Geórgia, enquanto a de Paolo tem uma loja de roupinhas debebê – assim toda a família se mistura e conversa na piazza o dia inteiro.Nada acontece sem que eles percebam e todos têm um animado ciao, umabraço ou uma piada para os que passam por ali. Até o menino de Marco eEnza está entrando no ritmo. Aos nove anos, ele se diverte, reabastecendo asprateleiras e entregando recados.

Marco faz várias rodadas com seus vinhos. Cada um tem a própria história.Logo acima da prefeitura, vislumbro uma lua cheia, surgindo bem a tempo deiluminar a piazza como uma lâmpada na sala de estar de alguém.

Acho que um dos motivos de Cortona gostar tanto do clã Alfonso é que eleslembram algo de que todos os italianos sentem falta – a família grande, unida.Com o índice de natalidade mais baixo da Europa, os italianos perderam umaparte integrante da sua cultura em uma geração. A norma é um filho, ounenhum. Os casais com frequência esperam para se casar até os trinta epoucos anos. Filhos adultos solteiros em geral continuam em casa. Ainda écomum os idosos viverem com seus filhos de meia-idade, mas não há maismuitos pequeninos correndo de um lado para o outro para cuidar.

Os Alfonsos irradiam família. Eles também têm muitos amigos que osvisitam e obviamente amam esses amigos, outra qualidade a que os italianosdão muito valor.

O “rebanho”, como Alberto chama o seu grupo, será convidado paracompartilhar de muitos jantares durante sua estada aqui. Persiste umestereótipo de como os expatriados vivem na Toscana. É assim: todos osdias, o rico dono de uma propriedade sai para almoçar, bebe muitas taças devinho e se recolhe para a villa até a hora de sair para jantar. Os locais sãovistos como fauna curiosa colocada estrategicamente para a diversão do ditoestrangeiro. Os expatriados não falam italiano e acham que, falando inglês

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bem alto, certamente os locais irão compreender. Os expatriados serãotolerados por causa do seu poder de consumo, mas não serão convidadospara casas particulares.

Talvez este curioso espécime exista em algum lugar, mas eu não o vejo porestas bandas. Suponho que os estrangeiros possuam cinquenta casas. Muitosdos que compraram por aqui o fizeram com dificuldade. Ou transferirameconomias de investimentos tradicionais e as colocaram num lugar que podemusufruir. Uma atitude inteligente. Uns poucos são realmente ricos, mas não deuma forma ostensiva. Os americanos que conheço estão sinceramenteenvolvidos na comunidade, têm muitos amigos e trabalham nas suas própriasterras e projetos. Fazem de tudo, desde contribuir para obras de caridade atécantar em coros. Viajam com um sentido aguçado de interesse cultural eespírito de aventura. As casas que restauraram não foram, em geral,arrebatadas de compradores italianos, mas estavam, como a nossa,abandonadas ou em ruínas. Os estrangeiros – queiram eles pensar assim ounão – resgataram partes importantes do patrimônio.

O povo local gosta da energia dos estudantes da Geórgia e dos residentesexpatriados. Uma inglesa me contou que um comerciante a chamou de “vacaestrangeira nojenta” quando ela colocou uma janelinha – com autorização – defrente para a casa dele. Eu tive o meu incidente xenofóbico também. Mas estecomportamento continua sendo raro. Existem loucos em toda parte! Maistípico é Placido, que convida pessoas totalmente estranhas que encontra nacidade para jantar, ou Lapo, que mora na mesma rua. Com frequência, elepara aqui e deixa uma rodela de pecorino. Às vezes vamos à sua casa eajudamos a fazer o queijo. Quando ele nos convida agora, eu digo que temosvisitas, meu sobrinho e a família, e que os cubanos estão vindo também.

“Traz todo mundo, tutti, nessun problema.” Ele abre os braços, que é partedo convite. E assim nós chegamos, nosso pequeno grupo de excursão. Lapo éum pastor, mas também um hábil homem de negócios. Ele e a mulher, Paola,com suas filhas, Laura e Ilaria, transformaram duas construções de fazendade pedra em casa de hóspedes. Eles construíram uma piscina e, vejam só,

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tinham um agriturismo. Ficam felizes em conhecer seus hóspedes, e os queficam ali não poderiam ter aportado num ambiente mais hospitaleiro. Lapo ePaula assam comida na grelha todas as noites e as mesas ao ar livreraramente têm cadeiras vazias.

Agora ele começa a cozinhar o leite de ovelha fresco e, em seguida,acrescenta o coalho. Depois de uns minutos para esfriar, ele arregaça asmangas e começa a erguer e mergulhar os coágulos que estão rapidamentese agregando. Quando a mistura forma uma massa primitiva, lodosa, ele nospõe para trabalhar, pressionando bolotas leitosas em moldes, escorrendo aágua, compactando a massa.

Isto parece o trabalho do mundo, algo tão fundamental que é como se jádevêssemos conhecer todo o processo. As crianças participam. Cada um denós faz o seu próprio queijo satisfatório, verdadeiramente artesanal. Paolaserve travessas de seus queijos em diversos estágios de maturação, os seuspróprios salami e vinho. Lapo coloca um LP na vitrola. A criança mais novanunca viu uma dessas relíquias antes, o que me faz lembrar a vitrola de cordano corredor dos fundos da casa da minha avó.

“Esta é a música do meu pai antes da guerra.” Lapo aumenta o volume e mepuxa para o meio da pista da queijaria. A música nos leva de volta a umaexistência ou mais, metade polca, metade canção sentimental. Ele gira comigo– oh, ele é bom; estes toscanos sempre sabem dançar. Ele é da minha altura,1,74 m, mas, na segurança do seu corpo musculoso, parece alto e ágil.

Ele dá a todos nacos do seu pecorino para levar para casa e, uma semanadepois, entrega as rodelas que fizemos, junto com um pouco da sua própriaricota, mel e azeite de oliva. Os Alfonsos tiram um álbum de fotografias e osfilhos do meu sobrinho enviam mensagens de texto para amigos em Atlanta,um mundo de distância do burro poeirento que cavalgaram de tarde.

ESTE MONTELAURO, LUGAR DE BELEZA e harmonia, um dia se erguerá da poeira daCarolina do Norte? Um dia, daremos aulas em prédios de paredes de pedra

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ou importaremos cotto para os pisos? Como muitos antes de mim disseram, aviagem, e não a chegada, é o que importa. O projeto passa a ser um aide-mémoire, e nos mantém conscientes de por que a Toscana é como ela é.Como ela funciona. Conversamos com arquitetos italianos. Alberto desenhaplantas em guardanapos no café. Nós construímos um modelo em escala donosso vilarejo. Como é divertido usar equipamentos com os quais osarquitetos já estão acostumados. Podemos apertar algumas teclas e “ver” oprédio de várias elevações e perspectivas. Alberto pinta aquarelas de nossosprédios ideais e eu planejo paisagens e escrevo descrições de campos devaras-de-ouro, ameixas silvestres e tremoços. Posso ver um caminhoribeirinho em meio à vegetação exuberante cravejada de chicória.Conversamos sobre um jardim medieval de ervas medicinais. Com palavras etintas, criamos uma cidade ideal. Eu quase posso andar pelas ruas, ver poruma janela a lareira de pedra com um foguinho de gravetos, a bênção da luzda tarde da Carolina do Norte batendo numa tigela de estanho com romãssobre a mesa.

No livro X das suas Confissões, Santo Agostinho escreveu sobre a memóriacomo sendo um “grande campo ou um palácio espaçoso, um depósito parainúmeras imagens de todos os tipos”. Montelauro é o nosso palácio damemória.

Encontros de brincadeiras para adultos – os prazeres são imensos. Mais,melhor ainda, nós rimos nos mesmos lugares.

NOS NOSSOS PRIMEIROS ANOS AQUI, costumávamos evitar outros americanos, oque era fácil porque não havia muitos. Tínhamos o nosso grupo fechado deamigos escritores, mas, não fosse isso, tínhamos vindo para ficar com ositalianos, nós nos dizíamos. Aos poucos, percebemos que estávamos com aspessoas de quem gostávamos, não importava de onde viessem. Ser amigo demoradores americanos, ingleses e franceses também aumentava o nossonúmero de amigos italianos porque conhecíamos amigos de amigos. Além

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disso, passei a sentir falta de ter amigas americanas. Agora, especialmentecom três casais, mantemos uma troca de livros constante, nos ajudamosmutuamente a transportar plantas das estufas e compartilhamos informaçõessobre construção, leis de imigração alteradas e notícias de casa. Fazemoscaminhadas e pequenas viagens, recebemos uns aos outros em longosjantares e, é claro, nos esbarramos na piazza. Esbanjando atenção a peçasde cantaria adequadas e cores autênticas, nossos amigos fizeram jardins ecasas espetaculares, uma pequena joia, uma casa de fazenda e uma villa.

Em encontros casuais na piazza e nos jantares regados a vinho edegustações de Marco e Arnaldo, ficamos conhecendo outros expatriadoscomo nós, embora eles sejam novos e nós estejamos por aqui faz tanto tempoque sentimos aquela raiz principal metafórica penetrando entre os monturosetruscos. Minha atitude anterior – estamos aqui para ficar apenas entreeuropeus – era provinciana. A nossa conexão com outros residentescomplementa a experiência primária. Ainda estou para encontrar alguém queesteja aqui por uma feliz escolha que não entenda isso.

Tem um grupo de outros americanos, na maior parte pintores e fotógrafos,que não mora aqui, mas, por amor ao lugar, volta todos os anos. Eles,também, têm seus círculos de amigos e hábitos de trabalho. Uma mulher,Anna, grande leitora, mora por uns dois meses do ano em um dos conventosonde é adorada pelas freiras. Outra, Robin, com a beleza de uma estrela decinema dos anos trinta, vem por algumas semanas, nos deslumbra com suasfotografias e, de repente, desaparece. Eu fico atenta aos artistas pintandopaisagens em aquarela nas montanhas ao redor da cidade e, solidária, habitoseus poleiros que dão para caminhos de ciprestes com colunas de luz ecúpulas como metades de melão pontuando um panorama de bosques deoliveiras.

É tarde demais para tomar aulas de pintura? Candace me ensina a pintaressa luz cor de alfazema por trás dos seus três vasos brancos. Não, nãobranco – eu vejo listras creme sutis e subtons de cinza (tão puros como aalfazema). Como? Olhando durante muito tempo as formas puras de Morandi?

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Estes artistas se sentem sob seu manto protetor, Luca?Lá em cima, na casa dos Alfonsos, todos os dias depois do almoço, Alberto,

Carlos e muitas das crianças se retiram para locais privados ao ar livre edesenham ou pintam. Carlos às vezes se levanta ao raiar do dia e saifotografando essa deliciosa luz prateada sobre as oliveiras e fragmentosarquitetônicos. Albert Joseph, filho de Alberto e Susan, aos onze anosexperimenta o estilo geométrico de Gino Severini, o pintor futurista que nasceuem Cortona. Olivia, a sua filha de quatorze anos, me traz um girassol quepintou. O rosto quase enche a folha e, sim, ele parece enlouquecido de luz.Eu o apoio na minha escrivaninha para me dar inspiração. Se eu soubesseonde Luca está enterrado, eu o deixaria sobre a sua lápide. Veja, Luca, a suaherança.

COLOCAMOS A MESA DENTRO DE CASA porque a meteorologia prevê chuva. Certavez, quando escutei o noticiário, o meteorologista se desculpou no final,dizendo que sentia muito, mas lera a previsão da semana anterior. Então,vamos ver. Nenhuma nuvem a tarde toda quando os Alfonsos aparecerampara nadar. Gilda vem nos ajudar e vai trazer vários pratos. Sei porque,quando ela acende o seu forno para pães, não para mais.

Eu poderia jantar apenas cercada por flores – hortênsias brancas dotamanho de um rosto numa tigela de cerâmica branca. Nossos jantarescostumam ser casuais, mas, esta noite, temos taças para cada vinho, cartõesmarcando os lugares, dois secondi (os italianos com frequência servem duasentradas, mas em geral sirvo uma), velas em lampiões e os guardanapos queMelva me deu. Eles têm o tamanho de xales para o pescoço e monogramascom iniciais de alguém que já se foi há muito tempo. Nós deixamos umapequena lanterna ao lado de Placido, como sempre fazemos de brincadeira,porque ele se queixa de não conseguir ver o que está comendo à luz fraca dasvelas.

Alberto leva as crianças para casa, confere se estão confortáveis para o

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resto da noite e volta com os outros adultos. Eles chegam na hora em queMelva, Jim, Placido e Fiorella surgem no portão. Que alegria ver esta falangede amigos, rostos pincelados com a luz do sol tardia, atravessando o gramadonas suas cores estivais de hibiscos cor-de-rosa, açafrão, verde-água e limão.

Nada de chuva. Gilda traz um aperitivo que inventou com suco de grapefruite Campari, tão lindo na jarra de vidro com minúsculas frutinhas vermelhas efolhas de hortelã flutuando. Servimos os crostini e lentamente nosencaminhamos para a mesa.

O MENU

Fiori di zucchini frittiFlores de abobrinha fritas

Crostini:Aglio arrosto con noceAlho assado com nozes

Tre pomodori (arrosti, secchi e freschi)Três tomates (grelhados, secos, frescos)

Gorgonzola e salviaGorgonzola e sálvia

PRIMOLasagne con tartufo e besciamellaLasanha de trufas e molho branco

SECONDOAnatra con miele e arancio

Pato com mel e laranja

Faraona arrosto con pancettaGalinha-d’angola com pancetta

CONTORNI

Patate arrosto al fornoBatatas assadas no forno

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Bietole con aglio e pignoleAcelga com alho e pinoles

Insalata del ortoSalada da horta

DOLCEPesche ripiene con mandorle e mascarpone

Pêssegos recheados com amêndoas e queijo mascarpone

Torta di susineTorta de ameixas

Depois da sobremesa, Tony pega o violão e todos cantamos“Guantanamera”, “Ivory Tower”, “Blue Moon” e várias canções dos Beatles,especialidade de Tony. Ele e Alberto harmonizam. Eu adoro quando Tonymuda para falsetto. É óbvio que já fizeram isso antes. Tio Nico conta históriasde Roma quando morou lá nos anos setenta. Placido e Carlos conversamsobre caçadas. Nós planejamos uma excursão às tumbas etruscas. Conversa,conversa, conversa. Até altas horas da noite.

No verão, todos os dias viram uma aventura. Só uma manhã na piazza já éuma aventura, mas as excursões, as maratonas culinárias e as partidas debocce nos atraem para círculos cada vez mais íntimos de amizade.

Riccardo e Silvia comemoram aniversário de casamento com uma festa nasua escola de gastronomia. Eles transformaram recentemente um anexo em IlFalconiere numa cozinha grande com uma mesa comprida para as aulas e,mais tarde, para o jantar. Como tudo o mais que fizeram na sua pousadasibarítica, a cozinha para as aulas tem uma atmosfera receptiva e um caráterparticular. Riccardo e Silvia personificam não apenas o conceito italiano de labella figura, mas também a mais sutil sprezzatura, a arte de fazer algo difícilparecer fácil. Seu senso de décor jamais cai na padronização. Silvia poderiaser uma especialista em reformas de casas, se não estivesse tão ocupadarealizando os próprios projetos. Tudo que ela toca vira Silvia, e isso é ótimo.

Riccardo encontra todo mundo sob a pérgula de glicínias. “Sempre bella”,

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ele recepciona cada uma das mulheres. Sempre bela. E: “Como é que vocêsempre volta mais bela do que antes?” Para os homens, “Grande!” e umabraço, que é abreviação de “Grande amico”, amigão, o modo afetivo comque os homens locais se cumprimentam.

Nós chegamos às seis horas, com bastante tempo para preparar um molhode pato para o macarrão, cordeiro en croute e uma esplêndida sobremesa dechocolate. Richard Titi, o chef no Il Falconiere, passa a primeira hora conoscoantes de precisar descer para a cozinha principal. Recebemos aventais, umataça de vinho e algumas dicas sobre como amassar, bater e cortar o cordeiro.Silvia mantém todo mundo ocupado, mas o nível de ruído de quinzecozinheiros começa a subir. Quando o cordeiro escorrega para dentro doforno, alguns saem para admirar a penumbra que cai sobre os vinhedos deRicardo e a vista de Cortona. Finalmente, mais alguns convidados chegam eentão migramos para a mesa oval no jardim, prontos para muitas horasbrindando ao dia, vinte e cinco anos atrás, em que este interessante par secasou.

ALBERTO E SUA FAMÍLIA PARTEM para as Dolomitas, Carlos vai pescar, Tony ecompanhia se enfiam dentro da van e vão visitar os pontos turísticos. Eudesço para trabalhar nas ideias para a minha coleção de móveis. Ed trabalhacom Giorgio, podando o bosque de oliveiras. Nós nos espalhamos e nosjuntamos e espalhamos. Mas, na noite da Copa do Mundo, estamos todosjuntos, com todas as outras almas vivas na cidade, na Piazza Signorelli, ondemontaram um telão em frente ao banco. Todos estão lá, exceto os Cardinalis,que optaram por assistir em casa. Placido sustentava que a cidade ia ficaruma loucura.

A Itália joga contra a França. Isto é algo grandioso, o final de sessenta equatro partidas. Por toda a praça, as pessoas se debruçam nas janelas,gritando a cada chute. Carlos arrumou umas cadeiras de plástico que estavamno pátio do museu e colocou a torcida bem na frente. A maioria das pessoas

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está excitada demais para se sentar. A multidão irrompe numa cantilena defutebol que todos, menos nós, parecem conhecer. Os filhos de Alfonso,vestidos com camisetas azul-celeste com os nomes dos jogadores atrás,pulam de um lado para o outro. Eles pintaram bandeiras italianas nos rostos.A cada jogada boa de Totti, Del Piero, Grosso ou Zambrotta, a criança comesse nome nas costas vibra como se tivesse sido ela.

Os locutores esportivos parecem prestes a explodir. Eles gritam“Incredibile! Incredibile!” e “Bello!”, e, a cada triunfo, os jogadores rolam unscom os outros como uma pilha de cachorrinhos. “Forza Azzurri!” “Força, Azul!”A tensão cresce. Todos se levantam agora. Nossa torcida e gemidospoderiam ser ouvidos lá em Camucia, se alguém estivesse escutando outracoisa que não a partida. Flâmulas oscilam ao ritmo de cantos espontâneos egestos teatrais no campo são copiados na piazza. Quando a bola bate nopeito ou na cabeça de um jogador, centenas de pessoas repetem a ação comos punhos.

O momento explosivo acontece quando Zidane, o astro francês, literalmentedá uma cabeçada num italiano. O seu descontrole provavelmente custa aCopa aos franceses, porque a Itália acerta o último pênalti e, quando a bolavai para a rede marcando 5 a 3 para a Itália, toda a piazza explode como setivesse terminado uma guerra mundial: numa chuva de garrafas d’água, gritos,abraços, danças. Este momento de alegria ecoa em cada piazza da Itália. Osjogadores na tela beijam o troféu. Eles se abraçam, seus rostos são a purafelicidade. Estamos num ritual de Baco, uma multidão em êxtase vibrando pelacidade. Vitória! Motocicletas aparecem com quatro ou cinco passageirosacenando precariamente através de centenas de pessoas. Muitas meninasestão embrulhadas na bandeira vermelho-branco-verde italiana. Marcoaparece com uma garrafa de três litros de Chianti Classico e copos de papel.De repente, reconhecemos o chapéu vermelho de Placido. Fiorella acena esorri. Nós acenamos da outra extremidade – quantas vezes cada um de nósfoi beijado? – e nos saudamos como se tivéssemos sobrevivido ao Titanic.Claro que eles tinham de vir à piazza para comemorar. Três meninos tentam

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chutar uma bola de futebol. A garotada em jipes e conversíveis cruza a ruafechada para o tráfego. Quem se importa esta noite? Os carabinieri e vigilidançam e gritam também. Fogos de artifício nos assustam – violência? Emseguida, rimos. Nós – nenhum de nós – jamais experimentamos uma noiteassim. Alguns ficam até o sol raiar. Forza Azzurri!

NA SUA ÚLTIMA NOITE , os Alfonsos dão uma grande festa para todos os seusamigos. Paolo, dono da Trattoria Dardano, se oferece para ajudar a tripular oforno de pizza. A casa deles é um ninho de águia com uma vista estupendapara as encostas em plataformas tão sonhadoras como uma página saída deum livro das horas medieval. Lá embaixo, estão o lago onde Aníbal derrotouos romanos em 217 a.C., o telhado de Bramasole (oh, precisa de reforma) eo doce vale salpicado de casas antigas. As pessoas chegam e não param dechegar. Joy, Susan e Dorothy, três graças, servem salumi e várias saladas.Elas colocaram buquês de girassóis em todas as mesas e no muro de pedra.

Logo Mama Rose pede música. Música cubana. Ela manda afastar ascadeiras e chama todos nós para o samba. UM, dois, três, UM, dois, três. Elanão consegue acreditar que muitos de nós tenhamos vivido tanto tempo semsaber sambar. Bem, essa noite vamos mudar isso. Esta noite é a noite. UNO,dos, tres, ela está certa. O que houve com as nossas vidas que nãoaprendemos a sambar? UM, dois, três...

Tarde, muito tarde, todos descem de carro pela alameda incrivelmenteestreita sem incidentes. Deve ser a aura protetora de lírios brancos silvestres,lugar de milagres. Quando galgamos os degraus da nossa casa, escutamosvozes e ruídos de portas e janelas se fechando acima de nós. “Isabella, trazas velas.” “Carlos, procura as malas das meninas.” “O fogo ainda está aceso.”Então, bem tênue, escutamos as cinco sílabas de “Guantanamera”, a famíliacantando enquanto limpa os restos da festa.

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QUANDO ACORDARMOS AMANHÃ, eles terão partido, ciganos escapulindo aoalvorecer, deixando um grande silêncio em Casa Caravita e a piazzaestranhamente vazia.

Eu vim para a Itália pela arte, a cozinha, as paisagens, a história, aarquitetura, o vinho e a inefável beleza. Fiquei pelas pessoas. Cortona temuma grande congregação de almas cordiais, hospitaleiras e generosas. E nemtodas são italianas.

IL FALCONIERE TORTINO SOFFICE DI CIOCCOLATOE PERE CON SALSA DI VANIGLIA

Bolo de chocolate Il Falconiere no vapor com creme de baunilha

10 porções

Quando cozinhamos com amigos na escola de Silvia Baracchi, A Culinária Sobo Sol da Toscana, com frequência preparamos esta sobremesa bem simples.Eu nunca pensei em chocolate como algo sazonal, mas, na Toscana, ele éconsiderado mais apropriado para o outono e o inverno. É raro encontrá-lonum cardápio de verão, talvez porque tenhamos uma superabundância deameixas, melões e pêssegos brancos para um dolce quando faz calor.

Com este, Silvia sugere um vinho tinto doce encorpado com álcool suficientepara “limpar a boca”. Suas escolhas são um passito de Pantelleria ou umRecioto envelhecido. Eu aprecio o passito de Arnaldo Capraia.

Ingredientes:250 gramas de manteiga e ainda mais para os ramequins¼ de xícara de farinha de trigo e também para os ramequins1 xícara de açúcar refinado4 ovos3 colheres de sopa de rum (ou licor Tia Maria)2 colheres de sopa de café forte1 colher de sopa mais uma colher de sobremesa de fermento em pó

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½ xícara de cacau moído (cacau de alta qualidade)4 peras, sem casca e cortadas em cubos (opcional)Creme de baunilha (receita a seguir)1 barra de chocolate ou grãos de café cobertos de chocolate

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 180 graus. Unte com manteiga e enfarinhe 10

ramequins. Reserve.Bata a manteiga e o açúcar até formar um creme delicado. Acrescente os

ovos, batendo um de cada vez. Adicione o rum e o café. Peneire juntos afarinha, o fermento em pó e o cacau numa tigela, em seguida incorpore àmistura de manteiga. Delicadamente misture as peras, se forem usadas.Coloque nos ramequins preparados, enchendo até a metade. Asse em banho-maria, colocando os ramequins numa forma de assar e enchendo-a até ametade com água fervendo. Asse por 10 minutos; em seguida, aumente atemperatura para 180 graus e continue assando até estar firme, por cerca de15 minutos.

Desenforme em pratos individuais ou simplesmente sirva nos ramequins.Espalhe o creme sobre os bolos com uma colher e guarneça-os com anéis dechocolate (use um descascador de legumes) ou grãos de café cobertos dechocolate.

CREME DE BAUNILHA

¼ de creme de leite bem grosso½ vagem de baunilha8 gemas4 colheres de sopa de açúcar refinado

Aqueça o creme e a vagem de baunilha até ferver; em seguida, reduza ocalor rapidamente. Numa tigela, bata bem as gemas e o açúcar. Usando umacolher de pau, misture as gemas no creme e continue cozinhando em fogobaixo, mexendo sempre, por 5 minutos, até a mistura engrossar ligeiramente ecobrir a colher.

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A trilha de Signorelli

O destino de uma pessoa nunca é um lugar,mas um novo modo de ver as coisas.

– HENRY MILLER

Os amantes da arte vasculham a Toscana em busca de chances de ver aobra de um dos maiores pintores da Itália; de Florença a Arezzo, aMonterchi, a Sansepolcro, depois a Urbino, nós viajamos pela trilha dePiero della Francesca. Ficamos mais tempo em Arezzo, onde o seu único

grande ciclo de afrescos permanece na igreja de San Francesco. Finalmentelivre dos andaimes após quinze anos de restaurações, a Lenda da verdadeiracruz não é sua única obra em Arezzo. Até alguns guias turísticos deixam denotar o quadro de Maria Madalena em vermelho numa parede discreta noDuomo. Ela é uma força a enfrentar, de pé, olhando para você, com oscabelos molhados depois de enxugar os pés lavados de Jesus.

A sua contraparte ainda mais poderosa, La Madonna del Parto, reina emseu próprio museu na vizinha Monterchi. Também um retrato em tamanhonatural, este quadro incomparável mostra a Virgem Maria de pé, com a mãoligeiramente abrindo o vestido azul que encobre a sua gravidez de novemeses. O gesto – nunca visto antes – sugere que ela está para abrir o vestidoe dar à luz diante de nossos olhos. Apesar das cores calmas e da suaexpressão pretensiosamente tranquila, ela é dinamite, o estopim aceso.

Futuras mamães a visitam suplicando um parto seguro, como têm feito háséculos. Quando ela foi removida da capela românica do cemitério para o seunovo domicílio, as mulheres da região protestaram. Eu sempre desejo, quandoestou diante deste quadro, que ela possa voltar para casa. Gente demaisrespirando em cima dela, paredes de pedra molhadas, umidade e segurançafizeram seus curadores protegerem o afresco. Mas certamente teria sidopossível tornar o ambiente original mais seguro. Para quem a conheceu na

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capela, onde Piero pretendia que se conservasse esta homenagem a suaprópria mãe, o novo museu com um único quadro parece despojado e semalma. Embora o clima e o controle de qualidade do ar protejam o afresco, vê-la fora do legítimo contexto é como ver um vestido de noiva etéreo num bazarde caridade. Por sorte, o simples poder irradiando da Madonna prestes amudar o mundo consegue triunfar sobre as tristes circunstâncias.

Sansepolcro, berço e lar de Piero, é uma importante cidade toscana. Eugosto da atmosfera de mercado provinciano, lojas pequenas, ruas planas euma trattoria com uma seleção de grelhados mistos e antepastos tão deliciosaque nós sempre partimos num estado de euforia. Tenho certeza de que outrospratos excelentes saem da cozinha, mas nós sempre pedimos a mesma coisa.Uma vez por semana mais ou menos, o ano inteiro, Ed fala do suculento stincodi vitello al forno, perna de vitelo ao forno, e seu maialino in porchetta, leitãotostado no espeto com ervas. Sair do Da Ventura, depois de um pranzosplendido, e descer a pé a rua estreita na expectativa de ver as pinturas dePiero – esta é a essência da viagem toscana. Um almoço assim deixa vocêimpregnado de bem-estar. Depois, tudo o que você tem a considerar é se ARessurreição é ou não o quadro mais fantástico do mundo.

La Pinacoteca Comunale, o Museu Cívico, cheira a apagadores de quadro-negro sujos de giz de uma antiga escola primária. A pálida luz no interior caibenignamente sobre quatro (três? Contesta-se quem foi o criador de SanLudovico) quadros de Piero. O rosto memorável de San Giuliano parecevulnerável, chocado com o que pode estar vendo. Talvez este seja o momentocapturado em que ele percebe que não conseguiu escapar a um antigoencanto. Como Édipo, ele fugiu de casa por causa de uma funesta profeciacom relação a seus pais. Ele se casou e vivia longe deles. Estava viajando,quando os pais, que não desconfiavam de nada, encontraram o seu novo lar ea hospitaleira esposa. Estavam dormindo quando ele voltou. Pensando que amulher havia levado um amante para a cama, ele assassinou os pais,cumprindo assim a profecia.

A majestosa Ressurreição domina. Cristo emerge da tumba, os olhos já al

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di là, além do além. É impossível deixar de se lembrar da mesma expressãode além-túmulo nos olhos da Madonna del Parto, quando ela toca com osdedos a abertura do seu vestido num momento igualmente definidor. O péesquerdo dele está à beira da tumba, o direito ainda lá dentro. A primaverachegou ao fundo por trás do pé que aparece, enquanto o inverno permaneceatrás do pé que está dentro do túmulo. Ele se veste com as cores rosa e lilásdo alvorecer enquanto se prepara para entrar num novo dia. Quatro guardasdormem debaixo dele, sem prestar atenção ao milagre. Diz a lenda que osegundo à esquerda é Piero – aquilo é um bócio no seu pescoço? – retratadocomo totalmente adormecido.

A Ressurreição é particularmente preciosa para Sansepolcro, que quer dizerSanto Sepulcro. Na época em que a pintura foi concebida, os observadorestambém viram um simbolismo local. A cidade de Piero estava passando porum surto de crescimento e renovação (ressurreição) depois de se libertar dasgarras de Florença. O patrimônio artístico das pequenas cidades toscanascontinua a me surpreender. E se a minha cidade natal, Fitzgerald, na Geórgia,possuísse tamanhas obras-primas?

Num tributo eterno ao ensino das artes liberais, um piloto americano daSegunda Guerra Mundial, em missão de bombardeio na área, lembrou-sevagamente de um professor falando do vilarejo de Sansepolcro como a sedede grandes pinturas renascentistas. Ele poupou a cidade.

Ver Crucificação com santos, de Luca Signorelli, em Sansepolcro me fazpensar que ele precisa de uma trilha a ser seguida. Para mim, ele é o pintorrenascentista que parece à frente do seu tempo. O seu prazer em retratar ocorpo masculino, a força vital que dá à forma e, principalmente, a sua paixãopor rostos individuais lhe conferem uma energia visceral. Ele adoravamúsculos, movimentos, tensão, sentimentos, força. Gertrude Stein falou dasua obsessão por seus personagens: “Eu queria ver o que fazia cada umparecer ser aquele em especial.” Luca concordaria. Rostos! Cada um assimrevelado. Em sua obra é óbvio que uma mulher loura recorrente o obcecava.Ele era um observador tão bom que você vê os seus personagens locais na

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piazza hoje. Outra qualidade o lança na direção da sensibilidadecontemporânea. Com frequência, ele dá ao observador a impressão de que aação continua fora das bordas do quadro. Ele interrompe o drama na bordada moldura no último minuto, em vez de manter a ação emoldurada comespaço em volta. Ele parece precoce. Em Italian Painters of the Renaissance,Bernard Berenson concorda: “A sua visão do mundo pode parecer austera,mas já é nossa. O seu senso de forma é o nosso senso de forma: suasimagens são as nossas imagens. Por conseguinte, ele foi o primeiro a ilustrara nossa própria casa da vida.”

Eu havia sentido a vivacidade conferida pela sua composição dinâmica, masnão tinha relacionado este efeito até ler e meditar a respeito das gravuras emLuca Signorelli, de Tom Henry e Laurence Kanter. A partir delas, também,descobri o que Signorelli é onde, e quais (especialmente em Città di Castello)não saíram totalmente das mãos de Luca. Os autores são rigorososhistoriadores da arte, mas também detetives de primeira classe. Elesreconstituíram vários painéis e seções da predella dos quadros que um diauniram. Eu levei um choque ao saber que dois painéis da Lamentação, deLuca, em San Niccolò de Cortona, agora vivem no meu estado natal, no HighMuseum em Atlanta. Por favor, devolvam.

Além de dissecar o que é autêntico, e o que não é (e o que poderia serambas as coisas), os autores catalogam e comentam toda a obra deSignorelli.

Eles abriram meus olhos para o uso muito engenhoso da arquitetura queSignorelli empreende em seus quadros. Que magnífico observar que a fontede luz à esquerda na Anunciação, em Volterra, veio do conceito de Signorellide usar as três janelas de verdade à esquerda do altar do oratório onde oquadro estava pendurado. Portanto, parecia que a luz natural banhava o anjo.E Signorelli também repetiu o teto abobadado do oratório do lado onde aVirgem está no quadro. Esta mescla do lugar com a pintura criou sutilmenteuma sensação de intimidade para o observador. (Desde que a Anunciação foiremovida para a Pinacoteca Cívica, estas associações se perderam.)

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Em afrescos, às vezes uma figura está realmente saindo ou se inclinandopara fora da moldura pintada. Admirável. Eu adoro os detalhes que Lucamuitas vezes coloca nos seus primeiros planos: um chapéu vermelho caído,um copo de flores silvestres, martelo e crânio, um lagarto, um livro aberto –cada um deles uma minúscula natureza-morta para saborear e contemplar.

ENQUANTO ED DIRIGE de volta para casa saindo de Sansepolcro, eu anoto umitinerário Signorelli de três dias. A trilha de Luca leva ao lado mais selvagemda Toscana, com um mergulho na Úmbria. Para alguém que não sejaapaixonado por arte, esta gita rende de qualquer maneira, pois cada cidadetem as suas legítimas piazze, um bom café e pessoas que sempre vale apena observar.

O horário de funcionamento dos museus em geral é certo, mas o das igrejasvaria. Às vezes você pode tocar a campainha e chamar o zelador, às vezes asportas laterais estão abertas e, com frequência, o posto de turismo local podeajudar. Quando eu quero ter certeza de que uma igreja está aberta, confiro ohorário das missas e entro assim que termina o serviço.

Comece na sua nativa Cortona, que é agraciada com um tesouro deSignorellis. A maioria continua em ótimas condições, visto que nunca teve deviajar. Um passeio pelos seus quadros no Museo Diocesano, San Niccolò, SanDomenico, Santa Maria del Calcinaio e Museo dell’Accademia Etrusca e dellaCittà di Cortona (MAEC, também conhecido como Academia Etrusca) quasesignifica uma excursão pela cidade.

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O melhor lugar para começar é o Museo Diocesano, diante da magníficaLamentação aos pés da cruz, de Luca. Pelo que sei, este trabalho intrincado

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classifica-se como um dos mais altos momentos do Renascimento. Eu isolocada um dos rostos, cada detalhe, e vejo uma rara perfeição, depois olhoatenta toda a emocionante composição. À esquerda está a crucificação e àdireita, a ressurreição, com Cristo triunfante dentro de uma luz douradaamendoada. A cruz, com sangue escorrendo, divide o quadro ao meio – mas,típico de Luca, a medida está ligeiramente fora de centro. Em primeiro plano,o Cristo deposto jaz com a cabeça no colo de Maria, as pernas esparramadassobre as pernas de Maria Madalena, sentada no chão. Uma mulher agachadasegura o seu braço com carinho e inclina-se para beijar a palma de sua mão.Um dos motivos de este quadro ser tão comovente é que três mulheres estãoem contato físico com o corpo magnífico recém-baixado da cruz. Outrasmulheres e homens santos sofredores observam, e cada rosto reflete umaemoção muito particular. Suas roupas suntuosas deram a Luca uma chance depintar as dobras, os drapeados e a graça dos tecidos. Uma folha dourada,verdes empoeirados, cobres embaçados, corais queimados e azuis-acinzentados do quadro inteiro apresentam uma paleta de total harmonia. Umvilarejo idealizado à beira de um lago centraliza o pano de fundo e nos lembrasutilmente que, em algum lugar, a vida segue sem ser perturbada pelaimportante cena diante de nós.

Outro grande quadro de Luca neste museu mostra Cristo dando o pão dacomunhão a seus apóstolos. Se você focalizar cada rosto, os retratosintensamente individuais mostram uma gama de emoções. Você vê a paixãode Signorelli pela graça humana – e o oposto: Judas, mais perto doobservador, escorrega furtivamente o pão eucarístico para dentro da sacola.Rosto de raposa, olhos matreiros, ele é o único descompromissado com acena.

Nem todas as obras de Luca encantam. Diante da Virgem e Menino comsantos Luís de Toulose, Bonaventure e Antônio de Pádua , eu não meemociono. As figuras são estáticas. Fico intrigada como o meu Luca rock-and-roll pintou um grupo tão apático. Os santos ao redor da Virgem parecem estarposando para uma foto.

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Também no Museo Diocesano, você verá Apresentação no Templo, quegosto de imaginar no seu oratório original (desaparecido) bem na PiazzaRepubblica, e a poética Imaculada Conceição com seis profetas. Dois anjosfazem cair uma chuva de flores sobre a Virgem enquanto Deus observa. FridaKahlo teria gostado desta cascata floral impregnante. Executado na sua maiorparte pelo sobrinho de Luca, Francesco Signorelli, a partir do desenho do tio,1

este quadro provavelmente foi feito quando Luca estava com oitenta e umanos. Cada vez mais, nos últimos anos de vida, ele deixava os assistentes noseu ateliê executarem os seus desenhos. O museu é muito farto; você vaiencontrar os seguintes quadros de Luca: Adoração dos pastores, Cenas davida de São Benedito (muito mais sobre Benedetto mais tarde na AbbadiaMonte Oliveto Maggiore), Natividade e Assunção da Virgem.

Uma eterna alegria é a Anunciação de Fra Angelico. Os cabelos do anjocintilam cor de laranja picolé; a Virgem parece muito ah, oh, eu não. A pinturadivina permanece dos treze anos de trabalho de Fra Angelico em Cortona. Eledeixou outro quadro neste museu, um políptico, Virgem com Menino e quatrosantos, e uma meia-lua obscura, quase desconhecida, sobre os portõesprincipais da Chiesa di San Domenico.

Antes de sair do museu, não se esqueça de descer as escadas até aChiesa del Buon Gesù, Igreja do Bom Jesus, estranhamente localizadadebaixo do museu. O acesso é por uma escadaria íngreme de pedra. Nopassado, você entrava por uma rua mais baixa, mas agora a igreja secreta écomo se estivesse no porão. Lá embaixo, você entra num espaço sagradomisterioso e íntimo.

EXAMINEI REPRODUÇÕES de todas as pinturas de Luca, esperando encontrar umaimagem da sua cidade natal ou paisagem local. Ela está aqui no MuseuEtrusco na Piazza Signorelli. Como o tondo de Luca, pintura redonda, aVirgem e Menino com santos Miguel, Vincent de Saragozza, Margaret deCortona e Marcos surge diretamente de Cortona, ele parece precioso para

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nós que vivemos aqui. Tem a venerada Santa Margherita local de hábito cinza,e São Marcos, nosso santo patrono, segurando um modelo da cidade aindareconhecível. O terço inferior do tondo mostra os pés de Maria descansandosobre cabeças de putti e, por baixo deles, uma misturada de serpentes,demônio e lagarto. Maria, com muita objetividade, olha para a balançasustentada por São Miguel, de onde um homem minúsculo tomba em direçãoàs criaturas demoníacas. O outro homúnculo se vira para ela. O Juízo Finalem Cortona!

Desde que pessoas sábias começaram a colecionar peças para este museuem 1727, um bom estoque se acumulou. Os artefatos etruscos devem terpermanecido no porão da antiga prisão. Tendo se beneficiado com umaimportante intervenção, a surpreendente coleção brilha nos novos estojos evitrinas. Nas galerias superiores, nosso Luca tem vários momentos. A suaAdoração dos pastores é uma pintura perturbadora. No canto esquerdosuperior, o anjo da Anunciação está na abordagem final. O Menino Jesus jáem primeiro plano por trás de algumas silhuetas de plantas escuras. Se vocêandar bastante por ali, vai encontrar painéis de madeira de putti com brasõese inscrições. Deve ter havido muitas dessas obras na cidade, quando Luca eraconvidado para cada pequena festa e todos os homens ricos precisavam seimortalizar.

EU ADORO OS TERRAÇOS SECRETOS superiores de Cortona dando para o amploVal di Chiana, os santuários vizinhos com pinturas esmaecidas, conventosparecendo fortalezas e as antigas casas unidas, de frente para um parqueabandonado. Costumo parar em San Niccolò, tendo ao fundo os ciprestes.Toco a campainha para chamar o zelador e me sinto privilegiada por entrarneste santuário misterioso e privado. Frente e centro, a Lamentação desantos Nicolau, Francisco, Domenico, Miguel e Jerônimo sobre o Cristomorto empresta um ar sombrio ao espaço encantado. Cristo, apoiado no topoda sua sepultura, tomba de lado. Um anjo, que parece sustentar seu peso, o

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levanta. Ele está mesmo morto neste momento. A ressurreição, que elestalvez acreditem que acontecerá, ainda não se deu. A sepultura de pedraprojeta-se na linha de visão do observador. Numa composição convencional,ela seria colocada na horizontal ou vertical, mas a decisão de Signorelli deinclinar a pedra dá ao quadro um choque de tensão.

Para ver a face B do estandarte de Signorelli, o zelador deve apertar obotão que inverte o quadro. Isto é feito com muita seriedade. A recompensa,uma Madonna e Menino com santos Pedro e Paulo delicadamente colorida.Ela tem um ar melancólico; o Menino é mais adorável do que os bebês usuaisde Luca.

Tem também um afresco em San Niccolò que pode ou não ser de Luca. Meulivro diz que não. O homem que abriu as portas diz que sim, e ele parece velhoo bastante para ter conhecido Signorelli. Eu voto sim, pelo menos pela autoriaparcial. Talvez sejam os mantos cor de lavanda e açafrão. Ou o Menino Jesusafastando-se de São Cristóvão e segurando o mundo na forma de umalaranja. E o forte e delicado Sebastião. Estes parecem ter a mão de Luca.

Como está na minha rota diária, San Domenino é a igreja que visito commais frequência. Acendo as minhas velas votivas num altar lateral quandoestou preocupada com alguém. O teto majestoso e o clima austero meacalmam. Visito com Luca, também, sua Virgem e Menino com SantosDomenico e Blaise, dois anjos e Giovanni Sernini. O último encomendou oquadro e, portanto, mereceu o seu lugar. Eu sempre paro para olhar bem osfragmentos não identificados de afrescos perto da entrada, que poderiam serde Fra Angelico, visto que ele viveu no mosteiro de San Domenico. Mas elestêm um ar de Della Francesca. Luca, você está aqui?

Como tinha de ser, Santa Maria del Calcinaio marca o fim da trilha deCortona. Luca ajudou a contratar Francesco di Giorgio Martini, o arquitetodesta beleza monumental que tem ancorado a vista sob os muros da cidadedesde o término da construção da igreja em 1513. Subindo o vale de carro,dando a volta, de repente surge o grande domo. Fico animada, como setivesse recebido do Renascimento um grande ciao, bella. O nome, Santa

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Maria do poço de cal, vem de uma área onde os sapateiros curtiam suaspeles com a cal da região. A história exata da construção se perdeu, masfalava de um boi que se ajoelhou diante de uma imagem da Virgem num nicho.Milagres se seguiram, e a poderosa igreja foi construída no local. A preciosaimagem está agora no altar. Aqui, Luca nos deixou a sua ImaculadaConceição com seis profetas e dois doadores. Sob a imagem de Deus e daVirgem, seis profetas seguram seus livros e manuscritos abertos, todos cominscrições em latim sobre a imaculada concepção. Fiquei feliz por estar commeus binóculos, porque a luz é fraca e a pintura não está em boas condições.Uma pena.

No livro Luca Signorelli, este trabalho está datado como sendo de 1523-1524. Visto que Luca morreu em 1523, os últimos toques foram dados por seusobrinho? Fico chocada porque não há nada identificando a pintura na igreja.Existe um pálido cartão-postal antigo à venda que a atribui à “escola deSignorelli”. O livro de Kanter e Henry afirma que este foi o último quadro deSignorelli.

Quando eu soube disso, desisti de acreditar nas lendas locais sobre a suamorte. De Vasari, todos em Cortona conhecem a história de Luca morrendoduas semanas depois de uma queda enquanto pintava no Il Palazzone, a villados Passerini no alto da colina. Minha amiga Lyndall, viúva do últimoproprietário Passerini, vive na torre. A família figura na história italiana desde oséculo XII, portanto é de supor que exista um Signorelli nesse palazzo. Elaacendeu as luzes e nós passamos por várias salas pintadas pelo aluno localde Signorelli, Tommaso Bernabei (conhecido como Il Papacello). Os seusafrescos em estilo grotesco retratam episódios da história romana, inclusive aderrota nas mãos de Aníbal no Lago Trasimeno. Isto é fascinante porque nosdá uma visão renascentista de Cortona. Em seguida, chegamos ao maliluminado altarzinho com os Signorellis, o Batismo de Cristo e a Sibila cominscrições em latim. Jamais alguém se deu o trabalho de raspar as paredeslaterais, mesmo que se diga que Fé, Esperança e Caridade aguardam sob acaiação. “Ele caiu bem aqui, derrubado do andaime”, Lyndall disse ao apontar.

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E isso foi o mais próximo que me senti de sua presença física.Mas os superdetetives datam a sua obra no Palazzone como sendo de 1522

e 1523, um ano antes da Imaculada Conceição, de Calcinaio. Ele caiu, talveztorceu o tornozelo? Não costuma haver uma gota de verdade numa lenda?Suponho que ele tenha mancado até a cidade no início da noite,provavelmente tomou uma caneca de vinho e jogou algumas partidas debriscola com vizinhos na piazza.

PARA CONTINUAR A TRILHA de Signorelli, reserve dois dias para esta volta.Atravesse o Val di Chiana até Foiano e Lucignano, cruze de novo o vale atéCastiglion Fiorentino. Prossiga para Arezzo, depois para Sansepolcro, Città diCastello, Umbertide e Perúgia.

Esta é uma terra excelente para se caminhar sem destino certo. Pegue osdesvios não pavimentados até uma torre de igreja, ou uma minúscula cidadecom um bar onde você pode ter certeza de encontrar alguém tão nativoquanto um campo de trigo no verão, ou – que sorte – talvez você encontre,como eu, uma reitoria em ruínas (talheres ainda dentro de uma gaveta) e aigreja desmoronada com vestígios de afrescos e pedras com anéis de ferroque você pode erguer para ver lá embaixo as pilhas de ossos sagradoscobertos de bolor. Os destroços podem estar à venda e você afundar ali aseconomias e anos da sua vida. Esses desvios inesperados tentam o destino.

FOIANO, uma cidade-mercado no fértil Val di Chiana, é conhecida pelabisteca, o enorme bife das realmente enormes e brancas chianina, vacas. Acidade deveria ser mais conhecida por suas piazze, os cidadãos gentis, ocarnevale mais antigo da Itália, uma abundância de Della Robbias, e, naChiesa della Collegiata, um grande Signorelli. Acho que não ficou ninguém defora da sua Incoronazione della Vergine, con i santi Giuseppe, MariaMaddalena, Martino, Leonardo, Antonio da Padova, Benedetto, Girolamo,Giovanni Evangelista e Michele, quattro angeli e un committente; Coroaçãoda Virgem com santos José, Maria Madalena, Martim, Leonardo, Antônio de

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Pádua, Benedito, Jerônimo, João Batista e Miguel, quatro anjos e um doador.Os santos, em primeiro plano e de costas para a visão celestial, ajoelham-seem oração. San Martino parece esplendoroso no manto bordado que eledividiu com um mendigo e faz um grande contraste com San Benedetto, queestá seminu diante de sua rocha de penitência. Estes são rostos memoráveis,e o menor deles, do doador, supõe-se que seja o autorretrato de Signorelliidoso. O diretor cultural de Foiano me garantiu que este é o último quadro deSignorelli. Henry e Kanter discordam, datando-o de março de 1522 a junho de1523. Eu me pergunto se, durante esse último período da sua vida, ele nãoestaria trabalhando em três quadros ao mesmo tempo. Quem sabe onde eledeu a sua última pincelada?

LUCIGNANO tem uma das plantas mais encantadoras de qualquer cidade nasmontanhas, uma forma elíptica com ruas partindo de um ponto central. Porcausa dos estreitos corredores em espiral, é fácil imaginar a vida ali séculosatrás. Gosto da fachada listrada de San Francesco, com sua porta azul-acinzentada. Lá dentro, gosto de visitar Sant’Agata, que está segurando osdois seios como bolinhos numa travessa com uma das mãos e as tenazes queos removeram com a outra. Aqui está também um quadro da morte a cavalo,a toda brida, a toda velocidade, os cabelos brancos soprados para trás, oarco retesado com a flecha mirando um casal incauto.

Na prefeitura, logo ao lado, um fabuloso quadro de Luca aguarda: SanFrancesco che riceve le stimmate, São Francisco recebendo os estigmas.Este quadro me fascina pelo seu contexto perdido. Francisco e umcompanheiro ajoelham-se enquanto um anjo – ou Cristo – desce voando numexuberante manto coral. A cor chama a minha atenção porque dizem que apintura, em forma de óculo, encimava um armadio, armário, que guardava ovenerado Albero della Vita, Árvore da vida, um surpreendente relicário de1,80 m de altura preservado na sala ao lado. Os três ramos são feitos decobre dourado, prata e ouro, e adornados com coral, medalhões de cristal derocha e miniaturas. A árvore é coroada por Cristo na cruz, e, logo acima, estáa curiosa figura de um pelicano no ninho. Um pelicano? A ave, que bica o

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próprio peito para alimentar seus filhotes, simboliza a devoção altruísta àfamília.

CASTIGLION FIORENTINO sofre pela proximidade com Cortona, que tem umaenorme fartura em tesouros de arte. Mas Castiglion Fiorentino tem sólidasvirtudes – um vilarejo medieval intacto pousado sobre o ondulante Val di Chio,onde bosques produzem um ótimo azeite de oliva. Dentro de seus muros, ruasda largura de uma charrete conduzem a um desses mirantes sacadas-do-mundo emoldurado numa impressionante loggia projetada por Vasari. Acidade pouco turística tem o gosto da “verdadeira” Toscana. Felizmente, Lucaesteve por aqui por volta de 1505, deixando na Collegiata de San Giuliano umaLamentação pelo Cristo morto.

Este corpo de Cristo poderia ter tido como modelo o seu próprio filho morto,Antonio, que a peste levou em 1502? Vasari associou o desenho que Luca fezdo seu filho à Lamentação em Cortona, mas, segundo Kanter, o quadro deCortona foi terminado alguns meses antes da morte de Antonio. Talvez Vasario tenha confundido com um trabalho posterior. Seja qual for a verdade, osCristos de Luca com frequência parecem rapazes locais. Este deve ter sidopelo menos inspirado no corpo de Antonio. É interessante, também, que aVirgem da Misericórdia aqui talvez seja o único quadro que reste pintado pelofilho infeliz, Antonio Signorelli.

AREZZO, capital da nossa província, patrocina um imenso mercado mensal deantiguidades. As barracas dos vendedores espalham-se desde a galeria deVasari até a Piazza Grande, e por muitas ruas estreitas. Quando meconcederam a cidadania honorária em Arezzo, o prefeito também me conferiuo título de “madrinha da feira”. Ele não sabia como as suas palavras eramadequadas. Estes anos todos em que estou na Itália, tenho comprado alipresentes de Natal, de aniversário, artigos para a casa. Quase toda a minhacoleção de arte e artefatos religiosos é de dois negociantes que sacam seusex-votos quando me veem. Finalmente restaurado, o ciclo da Lenda daverdadeira cruz, de Piero della Francesca, brilha em San Francesco, masagora estamos em busca de Luca.

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Vasari escreve sobre uma procissão em Cortona carregando um Signorelli,encomendado até Arezzo, nos ombros. Com a idade que Vasari diz ter sidooitenta e um anos, Luca seguiu a pé também. Ele queria supervisionar ainstalação. Vasari, na época, era uma criança aprendendo a escrever. Eleguardou uma lembrança vívida de Luca lhe dando um pedaço de jaspe parausar contra sangramentos do nariz e aconselhando o pai a deixar o jovemGiorgio desenhar. Na Pinacoteca Comunale, podemos admirar a Virgem eMenino com santos Donatus, Jerônimo, Nicolau de Bari, os profetas Davi,Ezequiel, Isaías e Niccolò Gamurrini. Uma multidão de santos, anjos tocandomúsica e profetas – e até Deus olhando tudo lá de cima. Em que música Lucaestava meditando enquanto pintava? Veja, também, A Virgem e Menino comSão Francisco, santas Clara, Margarete, Maria Madalena e quatro anjos.

Em SANSEPOLCRO, você pode ficar deslumbrado com Piero della Francesca enão fazer a caminhada de dez minutos até a pequena Igreja de Santo Antônio,onde a Crucificação com santos, do aluno de Piero, o nosso Luca Signorelli,pende sobre o altar. Como em muitos quadros renascentistas, o tempodesdobra-se na tela: ao fundo, Cristo é retirado da cruz; em primeiro plano,ele é crucificado e sua mãe desmaiou no colo da mulher cuja saia vermelha aprotege – enquanto lembra sangue ao observador. Luca pincela o céu atrásda cabeça de Cristo com uma longa nuvem escura numa linha paralela à barrada forca. Olhe bem. Numa das duas nuvens fofas, você vê a forma de umrosto. Visto não ter nada excêntrico no quadro, isto deve representar Deus. Oquadro era um estandarte de procissão, com dois lados, e os dois santos queestavam antes, do outro lado da crucificação, são exibidos também.

Em CITTÀ DI CASTELLO, na Pinacoteca Comunale, encontramos O martírio deSão Sebastião. O tema pode ter sido escolhido para acabar com a peste de1497. São Sebastião era invocado com frequência como um protetor contra aPeste Negra. Ele sobreviveu aos entusiastas do arco e flecha que fizerampeneira do seu corpo. (E, se você sobrevive, pode reivindicar o status demártir?) Sua heroica recuperação pode ter dado esperança aos atingidos pelapeste, mas foi sempre a associação da peste com a flecha que criou sua

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mística. Em todas estas horríveis pandemias, o primeiro sinal da doença eradescrito como se atingido feito por uma flecha. Eu também encontrei o íconemortal da flecha numa história da peste no Império Otomano. Tambémdeparei com uma pintura medieval anônima de um esqueleto a cavalo atirandoflechas em vítimas da peste.

O São Sebastião de Luca está no pelourinho com vários perseguidoresalinhados logo embaixo. Dois deles exibem o fascínio de Luca pelo corpomasculino – um homem de meias listradas olha para nós e outro dá as costasao observador. As suas meias douradas segunda-pele tornam as suas pernastorneadas e nádegas firmes o verdadeiro ponto focal do quadro. Se SãoSebastião tivesse um defensor armado, o traseiro do arqueiro teria sido umótimo alvo. Dois outros arqueiros têm pele escura e estão quase nus, mirandocom o arco, enquanto os meninos, bem-vestidos, apontam com bestas. Osescuros devem ter sido escravos. A rua no plano de fundo retrata casasmedievais, prédios clássicos e uma paisagem glacial baseada – quem sabe –na fantasia ou talvez nas Dolomitas. Do céu, Deus vigia de um ovoideamarelado, enquanto São Sebastião olha para cima. Embora apenas seisflechas o tenham atingido até então, seria difícil não o acertar de tão perto.

O PRIMEIRO TRABALHO de Luca Signorelli permanece aqui, um afresco sagradono museu? Ninguém sabe se esse fragmento do rosto da Virgem foi pintadopor Signorelli. É quase certo que o artista estudou com Piero. No início dacarreira, Luca trabalhou nesta região da Úmbria por uma década. Nas suaspinturas que estão na National Gallery, em Washington, D.C., Luca éidentificado como originário de Úmbria, embora seu lugar de nascimento,Cortona, esteja firme na Toscana.

Existem outros trabalhos tradicionalmente atribuídos a Luca na Città. Comoos primeiros anos de Luca são um grande mistério, gosto de pensar que a suamão pintou alguns destes.

A Virgem e o Menino com santos Francisco, Bonaventura, Louis de

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Toulouse, Antônio de Pádua, Cecília, Clara, Catarina e Elizabeth da Hungria– que time – previamente foi omitida das obras de Signorelli, mas Kanterafirma que são de sua autoria. A pintura resplandece em tecidosrenascentistas. Adoro o vestido salpicado de estrelas da Virgem e a capa comflores-de-lis sobre o traje pobre de Clara. O Menino segurando uma coroa sevira para Santa Cecília. As mãos da mulher são eloquentes; deve sempre terexistido uma linguagem gestual na Itália. Os seis painéis de santos que aacompanham Kanter atribui ao sobrinho, Francesco Signorelli. Dois deles,para mim, exalam o perfume de Signorelli.

Em UMBERTIDE, a Deposição da cruz, de Luca, permanece no altar em SantaCroce, como ele pretendia, concedendo como uma dádiva os seusharmoniosos ouros, ocres e marrons a todos que o vêm visitar. Diante dessequadro, eu sempre penso na palavra fluida italiana, ambrato, ambreado. Osdetalhes íntimos desta cena me surpreendem. Uma mulher santa estende amão para colher o sangue que pinga dos pés de Jesus. Dois homens robustosem escadas soltam seus braços da cruz quando ele cai para frente. As trêscenas da predella lembram o tratamento que Piero della Francesca dá aostemas da Santa Cruz em San Francesco de Arezzo, mas o realismo de Lucamostra o quanto ele se afastou dos preceitos do seu antigo professor.

Luca recebeu cerca de setenta florins por este excelente trabalho. Como elegastou estas moedas de ouro? Frascos de lápis-lazúli moído para o azul dovestido da Madonna, um telhado de pedra para o seu ateliê, uma parelha degalinholas para um banquete, chinelas de pele de carneiro para usar diante dalareira?

O retábulo de PERÚGIA no Museo Diocesano da cidade tem grande charme eimpacto. A Virgem lê um livro, enquanto o Menino, segurando um lírio, olha aspáginas. Debaixo dela, um anjo dedilha um alaúde. Ele está sentado numestrado com copos de flores silvestres de cada lado. Os quatro santos aoredor – João Batista tem um ar bastante selvagem – parecem recortescolados na tela. Pareceriam quase bizantinos, não fossem tão ativos eexpressivos. Tem outra Virgem e Menino de Signorelli com um grupo de

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santos na Galleria Nazionale de Perúgia. Este é raro por estar na sua molduraoriginal com as cenas de predella intactas embaixo.

Capital da Úmbria, Perúgia atrai gente do mundo inteiro para a suaUniversità per Stranieri, uma exigente escola de línguas para quem temresistência para imersões. O curso de Ed jogou seu italiano para o nívelseguinte, embora a viagem de uma hora até lá fosse uma agonia. Os museusabrigam uma abrangente coleção de arte úmbria. Perúgia tem muita vida nasruas, uma fonte maravilhosa, o Duomo onde está o anel de casamento daVirgem, lojas de doces e chocolates, e pessoas bonitas. Você pode ficar alide preguiça, passar uns dias (ou um ano) explorando a Úmbria, especialmenteAssis, Spello, Spoleto e os centros de cerâmica, Deruta e Gualdo Tadino.

A trilha contínua termina em Perúgia.

MAS, POR FAVOR, continue seguindo o rastro de Luca um pouco mais.Dedique meio dia à grande ABADIA DE MONTE OLIVETO MAGGIORE, perto de

Asciano, menos de 32 quilômetros ao sul de Siena. Os afrescos de Signorellie Sodoma, pintados em paredes de claustros cercando um pátio de limoeiros,ressaltam a vida e os milagres de San Benedetto, São Benedito. Várias cenasincluem jangadeiros e pedras caindo, e monges salvos milagrosamente damorte pelo bom Benedetto. (Um tema muito atraente para esta restauradoraem série. Ele deveria ser o patrono dos construtores.) Uma delas retrata umabrigada de baldes apagando um incêndio. O afresco mais emocionante, ComoSão Benedito reprovou os monges por comerem do lado de fora do mosteiro,me atrai não por seu propósito didático, mas pela cena doméstica de umarefeição sendo servida por duas graciosas mulheres – sem dúvida umminestrone, uma saborosa perna de cordeiro, vegetais e ameixas. Benedettodeve ter sido, bem, um santo – doce, prestativo, equilibrado –, porque seusmilagres não foram espetaculares. Eram cotidianos, até mundanos, não curasinstantâneas espalhafatosas ou dramas de água transformando-se em vinho.

A outra metade do dia, se você for de carro até PIENZA, vai se surpreender

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com esta harmoniosa cidade renascentista que cheira a pecorino. Lojas comas portas abertas me atraem para estes queijos em invólucros de folhas deaveleira ou cinzas. De vários pontos de observação, você pode ver pastandotodos os agrupamentos de ovelhas que deram à cidade a fama de queijeira.Nunca saio de lá sem um naco de pecorino semiamadurecido.

A Madonna perdeu a sua coroa durante uma restauração da Madonna dellaMisericordia com santos Sebastião e Bernadino. Esta pintura em SanFrancesco merece ser vista por conta do calmo São Sebastião, de pé ao ladoda Virgem, as feridas das flechas pontilhando o corpo pálido. Maria ergue asmãos num gesto de basta.

Luca adorava tecidos. Às vezes, folheio o livro Luca Signorelli, de Henry eKanter, só focalizando os desenhos e cores exuberantes usados por suasfiguras. Observe o tecido extravagante do seu vestido em Pienza.

Na cidade dos vinhos de MONTEPULCIANO, procure, junto com uma garrafa deVino Nobile di Montepulciano, a Chiesa di Santa Lucia e a simples e régiaVirgem e Menino.

Não pare agora, porque a sua obra mais impressionante, a sua sopratutto,acima de tudo obra-prima, está fora da Toscana, na dramática O RVIETO, umacidade magnífica suspensa sobre a área rural num precipício de tufo calcário.

Vá até o Duomo e contemple.Em seguida, vá para o seu hotel e leia um bom livro sobre o ciclo.Depois, volte de novo e contemple mais uma vez. Olhe o Anticristo! Minha

amiga Rena me escreveu, anos depois de ver o ciclo: “O Anticristo medesconcertou. Tem um grande cartaz na estrada perto de Auburn nosalertando para A Besta, mas tive uma iniciação tão boa nas nove horas quepassei com Signorelli na capela que A Besta ilustrada pelos pentecostais écomo se não fosse nada.”

Talvez, como eu, você se apaixone bem ali na Capela Brizio. Talvez vocêchore um pouco quando a grandeza da imaginação de Luca mostrar como aarte pode despertar uma transformação de vida.

Como pintar o inimaginável? O Dia do Juízo Final. Ele se solta. Existe um

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elemento excêntrico, de história em quadrinhos, neste valioso ciclo. Demôniose corpos verdes, e a tortura infernal dos condenados. As mulheres receptivas,contidas e sofredoras de Luca não são mais facilitadoras crônicas. Elas, pelovisto, pecaram tanto quanto qualquer homem, embora aquelas quealcançaram a graça divina pareçam beatificadas de novo.

Como em Paraíso perdido e Paraíso reconquistado, de Milton, a partecelestial é menos poderosa do que a orgia turbulenta de tormentos terríveis.Mas ambos os aspectos são inesgotáveis. Ed achou a parte da “ressurreiçãodos mortos” tão fascinante que usou um detalhe na capa de um dos seuslivros de poemas.

Este é o momento, a meu ver, que articula todo o cristianismo: Você nãomorre com a morte. Você será restituído ao seu corpo mais perfeito para avida eterna. Isto coloca você – você – contra uma vasta tela de fundo. Sem apromessa, você está exposto, por sua própria conta; é melhor inventar osseus próprios valores humanistas, viver a melhor vida que puder, e Buonanotte a tutti, boa-noite para todos.

Os esqueletos enterrados de Luca saem da terra, como que erguidos pelaatração biótica da luz. Eles retomam seus corpos. Alguns estão totalmente dolado de fora e com boa aparência, outros estão em processo detransformação. Nós estamos acostumados à ressurreição macrocósmica deCristo, que nos entrega a promessa, mas não à visão microcósmica dehumanos ressuscitados.

Já vi o ciclo de Luca uma dúzia de vezes e sempre encontro novas partespara venerar. John Addington Symonds devia estar em Orvieto quandoescreveu: “Numa época de ornamentos e afetações, dele é o crédito de terusado o corpo humano como linguagem para expressar tudo que é maisimportante no pensamento do homem.”

Quando vou lá, a primeira imagem que sempre procuro é o autorretrato doartista, de pé com Fra Angelico ao lado da sua própria criação. Ele contemplavocê. É um homem robusto. Os ancestrais de Signorelli devem ter sido doNorte da Itália. Ele é leve. Seus longos cabelos louros caem em cachos. Um

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chapéu de pano tomba de lado, quase sobre a sobrancelha. Portanto, eleconscientemente o enviesou. E o casaco bem-feito com colarinho aprumado emangas pregueadas – ele não é um sujeito desleixado com a moda. Temolhos azuis? O olho direito parece azul, o esquerdo, castanho. Gostaria de teruma escada para ver bem de perto. Ele se mostra sem retoques – círculossob os olhos e um ligeiro início de queixo duplo. Um homem no seu apogeu.Ele terminou sua obra-prima.

Você pode chegar tão perto daqueles a quem ama e jamais saber, jamaisser capaz de saber. Eu amei Atatürk, Yeats, Keats, Jeb Stuart e senti apresença e a distância deles simultaneamente. Quis muito ser amiga deColette, Freya Stark, Eudora Welty. Suas obras aproximam o amante daspalavras. O tempo intervém com seus duros imperativos. Luca caminhava denoite na estrada romana para ver as estrelas? Seus cabelos lourosescureceram? Ele carregava nos ombros o bambino Antonio, tinha um falcão,ou enfiava um galho de alecrim na lapela? Sua voz era suave e profunda,como um lento jorrar de azeite de oliva recém-prensado? Ele gostava dogosto azedo das cerejas silvestres em junho? Em novembro, ele colhia umauva congelada, mordia suas fibras geladas e suco generoso? Tantas coisaspodemos saber a partir de seus quadros, mas a pessoa permanece umenigma, inatingível. Ele cortava o ar ao atravessar a piazza e o ar se fechavaatrás dele.

Mais adiante, em VOLTERRA, a Anunciação reina. (Descrita na página 185.)Nesta cidade etrusca, uma das mais evocativas da Toscana, Luca tambémdeixou São Jerônimo e a Virgem e Menino com santos, agora na PinacotecaCívica.

URBINO, LORETO E ARCEVIA formam a sua própria minitrilha. Ver as páginas34-46.

E, SE VOCÊ FOR ALÉM desses locais sugeridos, verá como Luca era ambicioso, oquanto ele realizou em sua longa vida. Eu aprecio o vigor e a vontade por trás

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das suas obras. Alguns de seus quadros mais comoventes estão em Florença,na Uffizi, I Tatti, Palácio Pitti, Galleria Corsini, Galleria Torrigiani e MuseoHorne.

Roma também, sim, encontre-o. Luca, nascido numa pequena cidade rural,vive no mundo inteiro.

Como alguém com ambição para visitar todos os cinquenta estados, tenho aminha lista de quadros de Luca para visitar. Tem a metade de umaAnunciação para ver no Walters, em Baltimore, uma Virgem na Cracóvia.Avante até Dublin, Bérgamo, Toledo, Ohio, Washington, mas somente emsonho uma visita à secular Pan de Luca, segundo dizem uma obra importante,infelizmente queimada no final da Segunda Guerra Mundial em Berlim. Estãotodas relacionadas no meu caderno de anotações de Luca, atraindo-me paraviajar.

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Città di Castello

Na trilha de Signorelli, Cortona–Perúgia, Città di Castello é a escolhapreferencial para um pernoite. Eu gosto de pegar as estradassecundárias ao redor de Città. Da minha casa em Cortona, vamosmudando de direção pelas colinas e vales, ao longo de campos serenos

com plantações tão verdes e exuberantes que você quer descer do carro epastar. Você atravessa a área rural, não povoada, não visitada, que sonhaencontrar na Itália. Cada curva que chega a dar enjoo revela uma vistaverdejante, um castelo flutuando nas nuvens, uma torre em ruínas como umantigo esboço a bico de pena de si mesmo, ou uma fazenda emfuncionamento.

No caminho, fico atenta às cabanas na beira da estrada com cartazesanunciando “Porcini” e “Tartufi”, especialmente ao redor do Palazzo del Pero,central de comando para estes petiscos difíceis de encontrar. Comfrequência, os caçadores locais montam mesas de improviso na cidade eexibem suas cestas de porcini, montinhos de trufas negras frescas e,raramente, as trufas brancas, mais escassas, que devem vir do Piemonte.

Os anjos nos quadros de Luca jantam apenas estes manjares. Na hora dopranzo, eles depõem seus alaúdes e raspam as fatias sobre tagliatelle. Aopassar, posso ver no olhar de relance de Ed visões de galinha com fatias detrufas negras e ervas enfiadas sob a pele, um risotto cremoso absorvendoraspas de trufas brancas, e carnosos porcini grelhados com um grande bife àFiorentina.

A uma hora de distância apenas, Città di Castello é a preferida de todas asexcelentes cidades da Úmbria. Se eu estivesse procurando um lugar para viverna Itália agora, este seria um dos primeiros da minha lista. Ocasionalmente,numa cidade italiana, a minha intuição me diz que este talvez seja o lugar ondea gente se sente mais em casa do que em casa. Eu gosto da sua dignidade

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sem grandes pretensões, da quantidade de livrarias e especialmente doimpressionante campanário na piazza com dois relógios iguais, um para osminutos, outro para as horas. Sentar-se na calçada de um café, olhar paraesses guardiões do tempo, observar a coreografia de entradas e saídas dapiazza, eu considero momentos magníficos. Certa vez, vi dois homenscolidirem em motorini, se levantarem, desamassarem as roupas e seabraçarem. Outro dia, vi um homem com um farto bigode lendo jornal numasombra mosqueada. De onde eu estava, ele parecia estar segurando umpeixe prateado na boca.

Além da importante Pinacoteca, o Museo dell’Opera del Duomo e váriasigrejas estão na minha rotina quando visito a cidade. Às vezes, não são osgrandes quadros que arrebatam você. Na Pinacoteca, gosto de visitar aMadonna col Bambino Dormente, Madonna com o Menino adormecido, deVincenzo Chialli. Ele tem a simplicidade de um ex-voto. A Madonna se ajoelhaao lado do berço do filho, que parece ter uns quatro anos de idade. Eledorme. Ela obviamente está acordada para cuidar dele. No quarto ao fundo,vislumbramos sua cama simples.

Nunca vi este tema pintado antes, esta cena arquetípica da mãe que vela ese preocupa e ama. Eu digo para o meu neto ao apagar a luz: “Vou ficarcuidando de você.” Às vezes, ele quer saber quando. Ou diz sonolento: “Voucuidar de você também, Franny.” Em qualquer jornada, às vezes os apartestêm as verdadeiras informações para você.

Conhecer esta cidade é como iniciar um quebra-cabeça de mil peças; émelhor encontrar as beiradas retas e montar o contorno. Uma história tãocomplexa simplesmente torna irresistível o desejo de se ter uma boa culturapara visitar uma cidade. Propriedades papais, Guelfos, Guibelinos, até oduque Federico II da Montefeltro de Urbino, tudo agitou esta bela cidadezinhadurante séculos. O passado fragmentado de Città di Castello tem mais peçasdo que qualquer quebra-cabeça, mas as angulares, facilmente colocadas, sãoromanas. Originalmente Tifernum ou Tiberinum, o nome se refere ao Tibre.Colle Plinio, na vizinhança, mas não definitivamente localizada, era o sítio de

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Tuscis, onde Plínio, o Jovem, construiu uma villa e fez descrições fascinantesdo jardim com seu nome soletrado em topiaria e delicados petiscos paraconvidados flutuando em bandejas nas fontes.

Um ponto luminoso no passado ocorreu quando a dra. Maria Montessori deuas suas primeiras palestras de treinamento em 1909. Uma centena deprofessores e alguns estudantes participaram. Ela ficou hospedada na VillaMontesca, hoje um parque e centro de estudos e conferências nos arredoresda cidade. Os donos, o barão Leopoldo Franchetti e sua esposa americana,Alice Hallgarten, eram pessoas esclarecidas anos-luz à frente do seu tempo.Alice não só mantinha uma escola livre na sua villa como fundou uma oficinade tecelagem para as mulheres da região. Os funcionários da villa viviam emcondições exemplares. O interesse deles na educação das crianças do localfez com que convidassem Maria Montessori. Ela passou um verão com eles,discutindo seus métodos e escrevendo o livro que conhecemos como Ométodo Montessori, que difundiu seu nome pelo mundo inteiro.

Agora a fama da cidade gira em torno de peças antigas e de um centro têxtilde tecidos feitos a mão (obrigada, Alice), e também por ser uma Meca parareproduções. Como nós, muitos donos de hotéis e agriturismos vêm comprarmóveis para seus quartos de hóspedes.1 Eu levei meus esboços a uma loja e,duas semanas depois, retirei doze cadeiras para a sala de jantar, construídase pintadas exatamente como eu tinha imaginado. Adoro viver com móveis queeu mesma tive a chance de desenhar. A Itália dá essas oportunidades detrabalhar com artesãos. Para mim, esta é uma das grandes vantagens demorar aqui.

Città di Castello também é conhecida como o local de nascimento dabeldade Monica Bellucci e do artista Alberto Burri, que deixou a sua obra paraa cidade em dois museus, Palazzo Albizzini e Ex-Seccatoi del Tabacco, umantigo armazém para secagem de tabaco. Médico no exército italiano durantea Segunda Guerra Mundial, Burri começou a pintar usando sacos de aniagemquando foi prisioneiro de guerra em Hereford, Texas. Se você nunca ouviufalar dele, vai perguntar por que quando estiver aqui. Ele foi um precursor de

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muitas direções da arte do pós-guerra.E tem Il Postale, um restaurante instalado numa garagem reformada de

ônibus de excursão que vale a viagem. Marco e Barbara Bistarelli são jovens eaventureiros. O peito de pato com alcachofras de Marco consegue ser aomesmo tempo simples e etéreo. Comer aos seus cuidados sempre me mostraalgo novo. Quem pensaria em servir repolho com lagosta e algumas gotas deóleo de avelãs? O que Maria Montessori teria pedido? Talvez o musetto dimaiale con salsa amatriciana, sedano e pecorino a teria tentado: um focinhode porco com aipo e queijo de ovelha e um tradicional molho de tomates, alho,alguns flocos de pimenta vermelha e pancetta. Amatriciana vem de Amatrice,no Lazio, onde a receita originalmente pedia guanciale, a carne da mandíbula,em vez de pancetta. Maria, sendo ela mesma uma inovadora, provavelmenteteria dito “Turma dispensada!” diante da ideia do suflê de peras Williams comcalda de chocolate ou a musse de limão com cubos de gelatina de manga eum molho de aipo fresco do Il Postale.

ENTRE OS ENCANTOS do vale do Alto Tibre está Archeologia Arborea. O falecidoLivio dalla Ragione colecionava variedades raras de árvores frutíferas defazendas abandonadas, mosteiros, claustros de conventos e pomares. Com afilha, Isabella, que continua com o trabalho, ele deu início a um arboreto emSan Lorenzo di Lerchi, nos arredores da cidade. As árvores sobrevivem nãoapenas como elas mesmas, mas como uma recordação de um estilo de vidamais primitivo. A Figueira dos Tamancos nos lembra que a madeira da figueiracostumava ser a preferida para fazer os tamancos dos fazendeiros. Quandoeles deixaram a terra, a árvore quase desapareceu.

Você pode passear pelo pomar nos meses quentes, fazer amizade comárvores, como a Macieira do Convento, a Cerejeira do Ganso, a FigueiraGigante dos Frades Zoccolanti, a Pereira Sincela, a Pequena PessegueiraSuculenta, a Macieira Ébria, a Macieira do Focinho de Boi, a Macieira daPedra Rosa, a Pereira da Raposa e muitas outras. Os nomes parecem conter

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antigos sabores: Morango Rosado, Maçã Acastanhada, Pera Amanteigada,Maçã Verde e Pera com Canela.

Adotando uma árvore, você tem direito à colheita. A condição, entretanto, édeixar três frutos – um para o sol, um para a terra e um para a própria árvore.Parece algo que São Francisco teria escrito. Che vita, que vida, viver entreestas árvores frutíferas.

Talvez alguém tenha trazido para Luca um cesto de figos verde-escuros,enquanto ele pintava as meias listradas dos homens em O martírio de SãoSebastião.

PETTO D’ANATRA GLASSATO AL CARAMELLO SPEZIATO E CARCIOFIPeito de pato com especiarias caramelizadas e alcachofras

4 porções

Marco Bistarelli, o chef e coproprietário, com sua mulher, Barbara, do IlPostale, compartilharam conosco a receita. Marco recomenda que se use aAnatra Muta, que nós chamamos de pato-do-mato, e especifica que sejafêmea.

Ingredientes:Sal e pimenta2 peitos de pato, de 250 gramas cada, com a pele2 colheres de sopa de azeite de oliva extravirgem8 colheres de sopa de manteiga3 galhos de tomilho4 dentes de alho sem cascaCasca e suco de 1 limão separados4 alcachofras frescas inteirasUm punhado de salsa fresca picadaUm pouco de vinho branco (cerca de ¼ de xícara)1 xícara de açúcar20 bagas de junípero moídas

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20 sementes de coentro moídas20 grãos de pimenta-rosa moídos10 sementes de cominho moídas1 pitada de curry2 pimentões frescos, sem sementes e picados2 colheres de sopa de vinagre balsâmico

Modo de preparar:Salgue e apimente os peitos de pato de ambos os lados. Coloque o azeite,

a manteiga, o tomilho e o alho numa panela de ferro fundido, refogue por 1minuto, em seguida acrescente a casca de limão e o pato, com a pele parabaixo, e cozinhe até a carne atingir uma temperatura de 50 a 55 graus(medida com um termômetro de cozinha). Retire e mantenha aquecido.Reserve o alho e a mistura de manteiga restantes.

Enquanto isso, remova todas as folhas das alcachofras, retire o cardo comuma colher e corte os corações em quatro. Coloque uma panela de água paraferver e acrescente o suco de limão e os pedaços de alcachofra; cozinhe atéos corações de alcachofra estarem macios. Mergulhe as alcachofras numatigela com água gelada para interromper o cozimento.

À frigideira com a mistura de alho e manteiga, misture a salsa picada, ovinho branco, e adicione as alcachofras.

Prepare o molho de especiarias cozinhando lentamente o açúcar com asbagas de junípero, coentro, pimentas-rosa, cominho, curry, pimentões evinagre balsâmico até estarem ligeiramente caramelizados.

Reaqueça o pato numa segunda frigideira, acrescentando o molho deespeciarias caramelizadas, e deixe descansar. Corte o pato em fatias ecoloque numa travessa de servir, derramando as alcachofras e o molho porcima com uma colher.

RISOTTO CON TARTUFI BIANCHIRisoto com trufas brancas

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4 porções

Quando nosso amigo Fulvio e a mulher, Aurora, vieram nos ver nos EstadosUnidos, trouxeram uma trufa branca que parecia uma pedra preciosa,conhecida como a trufa Alba, o tipo encontrado na região do Piemonte, naItália, que imediatamente incluímos no nosso jantar daquela noite. Ele inclusivetrouxe um fatiador de trufas. Fulvio tinha feito o seu risotto Barolo para nósantes (incluído em Bringing Tuscany Home), então nós adaptamos a suareceita para um risotto de trufas.

Existem trufas e trufas – portanto, atenção. Nós comemos trufas de verão,que são lenhosas e insossas, e algumas em potes de vidro são um merofragmento da realidade.

Por causa da sua fama de serem molto caro, muito caras, as trufas, pelomenos nos restaurantes na Itália, são usadas quase sempre, quando étemporada, em raspas sobre o macarrão.

Ingredientes:6 xícaras de caldo de galinha2 chalotas grandes bem picadas2 colheres de sopa de azeite de oliva extravirgem2 xícaras de arroz carnaroli½ xícara de vinho branco½ xícara de queijo parmigiano ralado1 trufa branca

Modo de preparar:Aqueça o caldo de galinha e mantenha-o em ponto de ebulição. Numa

panela funda, refogue as chalotas no azeite por 5 minutos, em seguidaacrescente o arroz e misture bem. Depois de 3 minutos, comece aos poucos aadicionar, com uma concha, o caldo e o vinho conforme o arroz vaiabsorvendo o líquido. Continue mexendo e acrescentando mais conchas dolíquido até o arroz ficar cozido, al dente. Misture o parmigiano ralado etempere a gosto. À mesa, raspe a trufa sobre o risotto.

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Agosto começa

Salve, caro –Aqui está uma loucura. O festival termina hoje de noite e tem sido intenso,magnifico. Pizzas para vinte hoje, torneio de bocce, dardos, natação. Willieestá no paradiso. Dirigindo por toda a Toscana. Não posso contar quantoshóspedes. Minha mente virou um fungo porcino. Meu sangue virou Brunello.Estou com saudades – por que você foi? Alcanço você em breve... XXXXX F

– E-MAIL PARA ALBERTO

Agosto começa bem calmo. Caminhadas matinais até a cidade. Entrandoe saindo antes que a algazarra dos turistas tome conta da praça. Acolheita de manjerona, tomilho e sálvia, amarrando molhos combarbantes e pendurando para secar. Minha pilha de leituras de verão

diminuindo durante as tardes tranquilas. Passamos as manhãs em Bramasole,trabalhando em projetos literários, cozinhando, cuidando das rosas, depoisnoites em Fonte para nadar ao luar. Ed acende a grelha e nós estendemos amassa para pizzas ou colocamos uma pasta al forno no forno para pães. Aspreferências culinárias no final do verão são vegetais cortados bem finos,qualquer um, em camadas com lasagne, parmigiano e molho béchamel. É tãoleve e, ao mesmo tempo, saboroso. As famílias Cardinali e Callichia aparecemnas tardes de domingo para descansar, nadar e cortar uma melancia. Auroratraz uma crostata de ameixas. Eu faço biscoitos amanteigados de sálvia esirvo uma travessa de queijos, prosecco, água e um refresco de limão. Todoschegam com mochilas porque os italianos levam para a piscina ou praia váriasroupas de banho. Depois de cada mergulho, eles trocam por outra seca.Usam três ou quatro, conseguindo isso – anos de prática – embrulhados numatoalha. Observando as manobras de Claudio, penso que existem infindáveisdiferenças culturais entre nós e os italianos, grandes e pequenas. “Por que

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tantas roupas de banho?”, pergunto.“Costume molhado?” Ele faz uma careta.Os italianos também gostam de ficar apanhando sol. Meu dermatologista me

arma com protetores solares com SPF 50; tive duas pintas suspeitascauterizadas, culpa dos dias em que passei nas praias do sul. Mas aqui estãotodos estes corpos bronzati, as mulheres mais velhas muito bem nos seusbiquínis. Com minha cara pálida, fico debaixo do guarda-sol. Ed se diverte napiscina, mas eu sei que ele secretamente espalhou SPF 30 no rosto.

A tarde refresca, jogamos bocce e sou aplaudida com relutância pela minha“sorte”. Outro ponto cultural. Se eles jogam bocce desde que nasceram, nãoestá errado uma americana derrubar as bolas, por assim dizer?

ENTÃO ASHLEY E WILLIE CHEGAM ao aeroporto de Roma. Esperamos os portõesda alfândega se abrirem e passageiros atordoados encontrarem a luz do dia.Rosto após rosto em expectativa, motoristas ostentando cartazes com nomes,encontros alegres, pessoas dominadas por suas montanhosas bagagens.Finalmente localizo o suéter cor-de-rosa de Ashley, Willie puxando a sua malavermelha e amarela. Ele corre para os meus braços abertos, quase mejogando no chão. Grazie mille aos deuses das viagens, eles estão aqui. Asalvo e aqui. Eu dou o longo suspiro que contive desde que os dois saíramdos Estados Unidos.

Estamos tão excitados que Ed deixa passar a entrada “Firenze/Nord” eficamos meia hora dando voltas numa área atrasada de Roma. Tudo o quevocê quer fazer depois de desembarcar de um voo transatlântico.

O TEMPO SE ANIMA; nossos dias de bonança acabaram. Willie corre pelo jardim,visita todos os quartos, dando nomes e, portanto, reconquistando aquilo deque se lembra. Sem sorte, ele tenta caber no seu cadeirão rústico, onde, aosseis meses, teve o seu primeiro gostinho de macarrão com ragu. Ele encontra

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o seu arco e flecha, livros em italiano e várias bolas de futebol que os italianoscontinuam lhe dando. Ashley localiza as suas sandálias, o roupão de banho e omaiô. Os quartos deles se enchem com a alegre barafunda das roupas deverão espalhadas. Como sempre quando entra na minha casa, Ashley diz:“Estou com fome.” Fica alucinada quando descobre que Gilda lhe trouxe umaberinjela à parmigiana e uma galinha assada, e que eu assei uma tortacrocante de frutas vermelhas e um bolo de chocolate.

Ashley adora passar muitas horas na cidade todas as manhãs, pedindo caféem um ou dois bares, sentada na piazza, conversando e assimilando a Itália.Willie, com seis anos agora, tem um pedido permanente para a sua merenda,um panino com queijo e presunto, e limonata, limonada, no Bar Signorelli. Elegostaria mais de estar em Fonte com Albano, que o deixa ajudar com o filtroda piscina, as fechaduras, o orto. Ele curte o caminhãozinho quase debrinquedo recolhendo miniaturas de sacos de lixo, o gari levantando umanuvem de poeira de pedra e Benito abrindo as velhas portas verdes da suaAntica Drogheria. A loja fica tão bem fechada que você pensaria que osguelfos estão para invadir a cidade e roubar a pappa reale, mel artesanal,pecorino de Pienza e funghi porcini secos.

Uma festa móvel de amigos para na mesa; eles batem papo, contam o queleram no Herald Tribune – uma tradição, mesmo que notícias mais atualizadasestejam disponíveis na internet – e ficamos ali enquanto a sombra protetorarecua e o sol forte bate em cheio sobre nós.

COMO ASHLEY COMPRA todas as suas roupas durante sua visita anual, temos deir ver as lojas. Vamos de carro até algumas especiais que conhecemos emUmbertide, Chiassa Superiore, a outlet da Prada, entramos nas lojinhas emCamucia – uma tão chique quanto qualquer outra em Florença – e oassustador shopping de pontas de estoque de Val de Chiana, onde elaencontra lindas blusas. Ela tem um instinto infalível para o que lhe cai bem epassa os olhos rapidamente por tudo antes que eu acabe de ver a primeira

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prateleira.Ela quer almoçar fora para poder visitar todas as trattorie durante as suas

brevíssimas duas semanas, o tempo que conseguiu arrumar este ano. Nóscomemos ribollita, embora seja um prato de inverno, galinha-d’angola assadae potes do ragu com que ela sonha nos Estados Unidos.

De tarde, Willie corre à vontade em Fonte, brinca na piscina e faz pontariacom a sua adorada besta, uma perigosa arma medieval em versão miniatura.Ed volta atrás algumas décadas e os dois inventam aventuras fantásticasquando a flecha é lançada em direção ao alvo. Quando tentamos fazer Williedescansar, ele insiste que não precisa de uma soneca. Em geral, depois deuns dois capítulos, ele se entrega porque ficou acordado até tarde navéspera.

Inevitavelmente vamos ficar até tarde na rua de novo, e este ano ele quermuito ser incluído, não quer ficar com uma babá. Estamos inclinados a levá-loconosco. Vai ficar tão pouco tempo e eu sinto uma saudade enorme quandoele vai embora. Ele se interessa por tudo, diverte-se como ninguém e seuprazer irradia. Durante sua visita anual, passo as minhas horas insonessonhando que poderíamos todos morar aqui para sempre. De dia, sou prática.

AGOSTO VIRA UMA SUCESSÃO constante de jantares. Todos os italianos de férias –isso é quase a população inteira – decidem dar uma festa. Placido intercalapombos e galinhas no espeto. Willie come duas tigelas de macarrão deFiorella com tomates e manjericão. Somos doze na sua mesa a céu aberto.Willie e Claudia, uma beldade de onze anos que é sua amiga desde que eletinha dois anos de idade, fogem para ver o falcão e o cavalo de Placido,Zucchero, que escorregou e causou ao dono um acidente quase fatal. Na casade Melva e Jim, grelhamos bistecas e começa a chover. Agarramos tudo queestá sobre a mesa e corremos para dentro de casa, depois a chuva para ecomemos a nossa torta de pêssego lá fora. No acampamento de Claudio nasmontanhas, jantamos sob uma pérgula com os hóspedes argentinos de Edo e

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Maria. Aurora serve as torte de chocolate e um bolo de aniversário paraClaudia. Na sua casa de verão, Edo e Maria montaram um salão do lado defora – lâmpadas e tapetes, até quadros apoiados num aparador. Com Edo,espere o inesperado. Ele tripula a grelha, girando bistecas, linguiças e nacosde pancetta, crocantes e derretendo na gordura. Flui o vinho e flui a noite porum bom tempo.

Então começa o Festival de Verão da Toscana e agosto realmenteesquenta, literal e figurativamente. Este é o nosso sexto festival, portanto seique posso esperar músicas fantásticas e noites intermináveis. Os concertoscomeçam às nove horas. Como o festival acontece no Teatro Signorelli, aplateia fica limitada a 350 pessoas. O teatro, lírico, do século XIX, com cincofileiras de camarotes, oferece não apenas uma excelente acústica, mas umaíntima conexão com o músico – cada careta, piscar de olhos, cada gota desuor. O ar-condicionado barulhento tem de ser desligado durante asapresentações, depois ligado de novo durante o intervalo. Daí o suor. Todossaem em fila para o intervalo, passando pelo olhar atento de Luca na forma deum busto de gesso branco. Seja qual for o filme, a palestra ou concerto, ointervalo é uma necessidade na Itália: nenhum italiano consegue passar duashoras sem falar.

Depois, os músicos e aqueles de nós associados com o festival seguempara jantar no pátio do museu etrusco. Às vezes, tem mais música no jantar.

Estes são dias estonteantes. Joshua Bell toca As Quatro Estações commúsculo suficiente para reviver esta peça familiar. A voz de José Cura querfazer recuar as paredes do pequeno teatro. Eu observo Willie bater as mãospor cima da cabeça e gritar “Bravo!”. O Balé Bolshoi dança na piazzaabarrotada de gente. Willie se contorce, o que não faz nos concertos. Tenhode admitir, balé parece... arcaico. Apropriado, eu penso, para a minhacontínua sensação de tempo dobrando-se para trás na piazza.

Temos aulas de culinária e palestras de tarde, exposições de arte,concertos breves na piazza, uma oficina de afrescos, um almoçorenascentista – é acampamento de verão para os adultos, com uma pitada de

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glamour. Uma noite, Robert Redford lê poemas que influenciaram a sua vida.Ele está aqui porque a mulher, Sibylle Szaggars, está expondo seus quadrosmais recentes. Visto termos um amigo em comum, ele me beija duas vezes norosto quando somos apresentados e diz que queria muito me conhecer.Mamma mia – Robert Redford, oh, como ele estava divino em Entre doisamores. Ele nos convida para almoçar com vários amigos seus e eu me sentoao seu lado. Comemos tagliolini al tartufo, macarrão com trufas, e falamossobre livros, livros, livros – Steinbeck, Faulkner, Stegner e Thomas Wolfe,cujos livros ele leu quando fez um filme em Asheville, na Carolina do Norte. Elefala que estudou na Itália quando jovem e que sempre adorou este país. Fazperguntas a Ashley sobre o trabalho dela. Eu o escuto perguntar aos outrossobre eles, e, quando mais tarde comento isso com Ed, ele supõe que “Bob”,como talvez possamos chamá-lo agora, provavelmente está enjoado de ouvirsempre as mesmas reações. “Pense quantas pessoas já perguntaram qual éo seu filme preferido de todos os tempos”, ele reflete. “Imagine quantaspessoas lhe disseram onde estavam quando viram Butch Cassidy, ou comoNosso amor de ontem as faz lembrar delas mesmas.”

“Talvez ele tenha encontrado uma forma de contornar o isolamento impostopela fama. A obsessão americana com a celebridade é extremamente doentia.Ele tem de lidar com isso todos os dias da sua vida.” Eu detestaria ser tãofamosa.

“Bem, é muita generosidade dele tentar se relacionar com os outros.”Ele passa a semana toda aqui, e eu o vejo muito atencioso para com as

pessoas que encontra. Deve lutar muito para permanecer uma pessoa“normal”.

Os jantares tarde da noite são requintados. Candelabros enormes com velasondulantes formando castelos de cera derretida sobre a toalha de mesa,garçons servindo todos os vinhos de Cortona, estrelas distribuídas pelo céu dopátio, as entradas dos músicos e cantores com os convidados batendopalmas e gritando. Em seguida, nós nos servimos do farto bufê e nosacomodamos com amigos em mesas redondas, relembrando o concerto e

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ouvindo as fofocas, pois, é claro, existem casos e escândalos e dramas: Elatem um perseguidor. Ele tem a esposa na villa, a amante no hotel. Ele teveum bebê com uma antiga namorada. O fotógrafo do festival, Henry Fair,discursa sobre a devastação ambiental, salta para fotografar uma diva,permite que Willie fotografe com a sua câmera, conta piadas até altas horasda noite. Barrett, o fundador, e ele mesmo pianista, curte o momentâneotriunfo da noite, antes que os detalhes mesquinhos de amanhã possamalcançá-lo. Ed, bronzeado no seu terno de verão bege, Laura num elegantevestido romano, o simpático tenor de seda preta, tochas lançando dramáticass o m b r a s chiaroscuro sobre ombros e testas, risadas, mesassobrecarregadas – estamos nos banqueteando neste antigo cortile e nãosomos tão diferentes daqueles que fizeram a mesma coisa séculos antes denós. Luca, você esteve aqui, também, erguendo uma taça numa noiteencantada faz muito tempo?

EM FONTE, DE REPENTE somos invadidos por cinghiale bebês. Albano e Willieexploram os confins onde a cerca elétrica anteriormente mantinha afastadasas feras. Eles descobrem que as cinghiale estão fugindo por baixo do arame.As grandes mamães porcas, não querendo levar um choque no focinho,esperam do lado de fora enquanto os bambini correm de um lado para ooutro. Com a ajuda de Fabio, Albano estica o arame farpado sob a instalaçãoelétrica, mas, todos os dias de manhã, Willie se debruça na janela e anunciajubilante: “Eles voltaram! Tem um montão de coisas estragadas.” Elesarrancam a grama debaixo do carvalho na sua busca vã por bolotas. Emseguida, cavam a terra na esperança de encontrar larvas de insetos. Nósmontamos de novo os torrões de grama e Albano aplaina o gramado. Quesaqueadores. Eu tenho a ideia de colocar uma cerca elétrica sobre o lugarpreferido deles. Talvez aprendam e vão embora. Isto os deixa furiosos. Elesdestroem ainda mais. Aprendem a abrir um túnel sob o arame. Depois,descobrem as rosas e acrescentam um novo nível de destruição. Ashley os

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escuta resfolegando debaixo da janela. Albano encontra sete deles dormindodebaixo da macieira. Sinto dizer que ele golpeia um com uma pá. Com estasafra excepcional de porcos do mato, os caçadores ficarão felizes emsetembro.

Ed caça dois à meia-noite, gritando “Via, via!” e eu o observo acenando alanterna ao tropeçar no escuro. “Fora, fora!”, ele grita. O espetáculo que eledá correndo atrás dos porcos – eu nunca o vi numa cena mais ridícula. Ele ficafurioso quando eu rio. Eles reviraram trilhas de pedra. “Tem uma ideiamelhor?”, ele rosna. De manhã ele decide colocar um fio de arame farpadomais forte e outro fio elétrico também.

Voltando para casa tarde, vemos quatro destes jovens turcos parados emfrente aos faróis dianteiros. Willie fica encantado em conhecê-los. Eu sei queele está do lado destes renegados, como eu também. São enlouquecedores,mas algo em Willie aprova a selvageria, seus ataques à meia-noite paraconseguir o que querem dos verdadeiros invasores da encosta.

LASAGNE DI VERDURALasanha de vegetais

4 a 6 porções

Lâminas de massa, esticadas bem finas, fazem da lasanha um prato etéreo.Eu poderia escrever um livro sobre lasanhas. Uma velha preferência, lasanhade pesto, tem umas cem calorias a garfada. Vale cada pedacinho! A massacozida é colocada em camadas com pesto, besciamèlla e parmigiano,coberta com farinha de rosca grossa. Outra beleza – intercalar a massa combesciamèlla, parmigiano e muitas minúsculas almôndegas de vitela. Algumassedutoras combinações para lasanha de vegetais: abobrinhas e tomates;berinjela e pimentão; aspargos assados; cebolas caramelizadas e salsapicadinha; pimentões amarelos, vermelhos e verdes em camadas separadas.

Ingredientes:

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6 lâminas de massa fresca

PARA O MOLHO BESCIAMÈLLA

4 colheres de sopa de manteiga4 colheres de sopa de farinha de trigo2 xícaras de leite3 dentes de alho picados1 colher de sopa de tomilho picado½ colher de chá de sal½ colher de chá de pimenta

PARA O RECHEIO

2 colheres de azeite de oliva extravirgem ou manteiga1 cebola picada3 xícaras de vegetais frescos da estação picadosErvas que complementem os vegetais

½ xícara de parmigianoManteiga e pão torrado passado no ralo grosso para a cobertura

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 180 graus.Corte lâminas de massa que caibam numa travessa grande que vá ao forno.

(Algumas das camadas do meio podem ser divididas em mais de um pedaço.)Unte ligeiramente a travessa com azeite.

Para o molho besciamèlla: derreta a manteiga, misture com a farinha ecozinhe tudo junto sem deixar escurecer. Depois de 3 ou 4 minutos, retire dofogo e acrescente imediatamente o leite, sem parar de bater. Volte ao fogo,mexa e deixe cozinhando em fogo brando até o molho engrossar. Acrescenteo alho ao molho, junto com o tomilho, o sal e a pimenta.

Para o recheio: numa panela grande, aqueça o azeite ou a manteiga erefogue a cebola, os vegetais frescos e as ervas picadas por 5 a 10 minutos,até ficarem quase macios.

Montagem: cozinhe uma lâmina de massa até ficar quase al dente, retire daágua fervente e escorra rapidamente num pano de prato aberto sobre a

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bancada da cozinha. Coloque a massa semisseca na travessa ligeiramenteuntada e cubra-a com uma camada de besciamèlla, uma camada de vegetaise um pouco de queijo ralado. Continue cozinhando a lâmina de massaseguinte, enquanto prepara cada uma das camadas. Acrescente 1 colher ou 2de água da massa ao molho se usou demais nas primeiras camadas. Cubra atravessa com as migalhas de pão amanteigadas e mais parmigiano. Asse,destampada, por 30 minutos.

TORTA DI PESCHE DI MELVATorta de pêssegos da Melva

6 a 8 porções

Melva é sem dúvida uma das cozinheiras mais meticulosas e alegres queconheço – o que você vai encontrar na sua mesa, sem erro, é exuberância desabores. Ela serve um prato atrás do outro de sabores maravilhosos, e omarido, Jim, mantém as taças cheias de vinho da Toscana. Seus guardanaposantigos são grandes o suficiente para você se enrolar neles depois do jantar esonhar sonhos soporíficos.

Melva prefere pêssegos brancos para esta torta. Se não estiverem doces osuficiente, acerte o açúcar. Eis a receita:

Ingredientes:1 xícara de farinha de trigo½ xícara de açúcar refinado, mais uma colher de sopa¼ de colher de chá de sal½ xícara de manteiga sem sal, muito, muito (ênfase de Melva) fria

e cortada em cubos, mais uma colher de sopa de manteiga¼ de xícara de água gelada com cubos de gelo5 a 6 xícaras de pêssegos fatiados½ xícara de açúcar mascavo1 colher de chá de canela

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½ colher de chá de noz-moscada moída na hora1 colher de sopa de farinha de trigoSuco de ½ limão para impedir a descoloração das frutas

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 200 graus.Bata a farinha, o açúcar, o sal e a manteiga num processador de alimentos

até adquirirem a textura de pequenas ervilhas. Transfira para uma tigela eacrescente a água, uma colher de sopa de cada vez, misturando ligeiramentecom um garfo e acrescentando um pouco mais até que fique tudo ligado. Devecomeçar a grudar, mas não misture demais. Não se deve umedecer muitopara não endurecer e não se deve secar demais para não despedaçar, porisso gosto de usar as mãos. Faça uma bola, coloque-a num saco plástico eachate um pouco. Resfrie por, no mínimo, 2 horas. Você pode fazer um diaantes, mas não mais do que isso. Em seguida, estique (ver nota), coloquenuma forma de torta de 20 cm, cubra com filme plástico e deixe descansar por30 minutos na geladeira.

Junte os pêssegos, o açúcar mascavo, a canela, a noz-moscada, a farinha eo suco de limão, tendo o cuidado de não misturar tudo antes de estar prontapara montar a torta. Coloque a mistura na forma e cubra as bordas compapel-laminado para não escurecerem. Se sobrar massa, pode esticá-la sobreos pêssegos para que pareça uma torta rústica. Se você usar a massarestante, abra-a, coloque-a no topo, enrugue as bordas e fure. Asse por 20minutos ou até a massa começar a escurecer; em seguida, reduza atemperatura para 180 graus e asse por mais 30 minutos.

Durante os últimos 10 minutos, retire o papel-laminado das bordasenrugadas.

Deixe a torta descansar por, no mínimo, 40 minutos antes de servir.

NOTA: Melva às vezes acrescenta nozes-pecãs picadas (muito difíceis deencontrar na Itália) à massa na hora de abrir. As nozes-pecãs combinammuito bem com a torta sem cobertura.

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Mangia, Willie, mangia

No final da tarde, Willie vai para o orto. Hora de colher o jantar. Enquantoele corre morro abaixo com dois cestos, nós acompanhamos o seu shortvermelho e o sol ricocheteando nos seus cabelos louros ficandocastanhos. No portão, três facas se alojam na cerca de arame. Ele

começa a cortar a alface (excitado por usar a faca), revolve ao longo da cercapara colher framboesas, comendo-as, enfiando a mão entre as folhas parapegar os minúsculos morangos e, no canteiro adjacente, os maiores. O melhorpara ele é sempre cavar batatas. “Ali! Ali! Duas, três.”

O nosso próprio prazer com o jardim é profundo, mas as suas risadasestridentes, quando as batatas rolam da pá – estranhamente limpas – oumostram as suas cascas amarelas através da terra nos levam de volta aoprazer mais audível da descoberta. Terra doce! Arrancar uma cenouratambém proporciona um momento eureca. Agachado entre as folhagensencrespadas, ele puxa e a cenoura irrompe do solo tão de repente que elequase cai para trás. Atarracadas, esguias, lisas ou com barbinhas, talvez dotamanho de um dedo mindinho, nenhuma é regular como as da mercearia.Cenouras podem ser levadas para dois coelhos, Olho Vermelho e Olho Verde,que hesitam no fundo da gaiola, quase morrendo de medo quando o SenhorOlho Azul ergue a tampa. Albano ensinou Willie a erguer os coelhos pelasorelhas. Ele diz que isso não os machuca e os impede de arranharem. OlhoVermelho é branco, mais dócil do que o preto Olho Verde, que tem garraspoderosas. Eles não parecem apreciar as cenouras diárias, mas Willie insiste.

“Eles não sabem a sorte que têm”, eu lhe digo. “Domenica já os teriacozinhado a esta altura.” No final do verão, ela os servirá assados com funcho,se quisermos. O que não vai acontecer. Coelho é uma coisa, coelho deestimação é outra.

“Franny disse não”, Willie repete como um pequeno mantra.

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Nós fatiamos uns dois pepinos, seis tomates, vagens macias, um pouco dehortelã, manjericão e umas abobrinhas ainda pequenas para terem floresrecém-desabrochadas. Paraíso é o que temos em nossas cestas, é umparaíso comer assim. Embora Albano tenha servido o exército por apenasdois anos, tudo que ele faz é com rigorosa precisão. Quando começamos aplanejar uma horta, ele ergueu uma cerca de arame à prova de porcos-espinhos/coelhos/ouriços-cacheiros (enterrada quase 30 centímetros no solo)e trouxe sementes da própria horta. Nós compramos caixas de vegetais nomercado, tomates de um fazendeiro e limpamos sementeiras para framboesasamarelas. Eu queria ceci, grãos-de-bico; Ashley queria várias pimenteiras; Edqueria funcho e acelga; todos nós queríamos um interminável suprimento desalsa, manjericão, aipo, cebolas e cenouras. Não tivemos muita sorte commelanzane – palavra tão mais adequada para a planta do que “berinjela” – emBramasole. Em Fonte, elas prosperam. Suas delicadas flores cor de lavandaparecem transportadas de uma miniatura persa. Colhemos quatro para ImamBayildi (O Sacerdote Desmaiado). Num restaurante em Naflion, Grécia,adoramos esta mistura assada, de aroma intenso, montada na própria casca.Por que ele desmaiou? Supostamente, o prato usava tanto azeite de oliva, quea mulher dele gastou todo o seu dote de doze enormes orci, tonéis deterracota, um por dia. O mais provável, porém, é que as melanzanetranscenderam suas próprias possibilidades e o deixaram em êxtase. Nóstrouxemos a receita para casa.

A horta é um paraíso terrestre – carreiras bem arrumadas, galhos secos emforquilha enfiados entre os feijões para eles subirem, longas treliças de bambupara os tomates, uma fileira de robustas alcachofras e pequenos canteiros emmontinhos elegantes para as alfaces, que vêm e vão rapidamente. Semeamosde novo cada canteiro enquanto um se prepara para a travessa, de modo queestão sempre tenras. Você precisa ser um coelho para acompanhar o ritmodas alfaces. Se deixar passar alguns dias, uma fileira inteira vira couro flácido.Algumas das que crescem rápido demais nós deixamos, só para ver até ondeuma alface pode ser exótica.

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Conseguimos mostrar a Albano como assentar palha nos morangueiros, demodo que fiquem acima do solo e sejam mais fáceis de localizar. Essevermelho pipoca – vermelho como o vestido de tafetá que usei no Dixie Ball, aFerrari do conde estacionada na piazza, o chapéu do cardeal, uma gota desangue.

Albano nos ensinou a plantar tomates até o primeiro conjunto de folhas e,mais tarde, a retirar os brotos extras. Ele se abstém de regá-los demais, oque dilui o sabor. Ele nos mostrou como trançar alho e cebolas e como secare armazenar batatas. A horta, uma vez começada, não dá tanto trabalho comonossos canteiros anteriores em Bramasole. Como Albano e Ed removeramtodas as ervas daninhas e deixaram o solo descansar, vazio, por algunsmeses, nós o capinamos ligeiramente e não temos tido o aborrecimento dever as saladas misturadas com uma dezena de voluntários verdes.

Retiramos a primeira camada de terra no tanque externo, lavamos de novona cozinha. Willie, ah, outra faca, fatia as abobrinhas e as flores, e nós asrefogamos em azeite de oliva, salpicando folhas de hortelã cortadas por cima.Ele corta as pontas dos feijões; eles cozinham no vapor e recebem um banhode suco de limão e um pouco de tomilho. A harmoniosa salada se anima comtalvez meia xícara de ervas, azeite suficiente para fazer as folhas brilharemligeiramente, e pronto. Não é preciso descascar as batatas, a casca é fina elisa. Willie as corta em quatro com precisão, em seguida elas recebem umbreve banho de vapor, algumas sacudidelas de azeite e muita salsa. Ashleygosta de fazer as suas preferidas de quando era criança, das receitas de JuliaChild, batatas dauphinois ou gratinadas. Ed as prefere em cubos numa tigela,misturadas com alecrim e azeite de oliva, depois assadas no papel-manteigaaté ficarem torradinhas. Che patate! Existe uma ode às batatas? Suasilenciosa vida subterrânea, seus olhinhos aqui e ali, seu suco de amido, osangue dourado da terra escura – Keats, Pablo Neruda, como vocês puderamdesprezá-las?

Eu sirvo tomates e pepinos em fatias separadas. Quando os vegetais sãofrescos assim, melhor deixar que cantem solos sobre suas próprias virtudes

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reais. Embora possamos grelhar linguiças ou assar uma galinha, estesjantares de verão são todos com travessas espalhadas pela mesa, cheias doque está pronto para pegar naquele momento.

WILLIE ACHAVA que não gostava de salada até começarem as aventuras no orto.Os vegetais se tornaram algo pessoal. Ele sempre gostou de trabalhar nacozinha junto de quem estivesse cozinhando. Aos dois, três anos, nós lhedávamos tarefas reais: medir a farinha, quebrar os ovos, bater – mesmo queo fator limpeza se multiplicasse. Para Willie, a melhor hora das abobrinhas é aflor frita. Ed lhe mostrou como colher as flores macho, aquelas não unidas àsabobrinhas em desenvolvimento. Estas são boas para fritar. Mergulhe-assimplesmente numa massa fina de cerveja e farinha de trigo e frite-asrapidamente em óleo de amendoim bem quente. Nós gostamos, quase tantoquanto, de folhas de sálvia fritas. Como os sulistas americanos, os toscanosfritam tudo. Ficamos encantados com uma amostra de cascatas de glicíniascrocantes e copas fritas de sambuca, sabugueiro, na casa de um amigo.

Para Ed e para mim, uma vantagem inesperada de se ter um neto é quepodemos cozinhar para ele. Quando ele era bebê, Ed começou a passar sobo seu nariz grãos de feijão, morangos, gorgonzola e sementes de funcho.“Cheire isto. Não é gostoso?” Pensávamos ver um brilho de concordância nosseus olhos. “Veja”, Ed dizia quando Willie jogava na parede os seus cereaiscom cenoura, “isto é lula frita e você vai poder comer isso em breve.” Éramosrecompensados com um sorriso leitoso. Seu brinquedo preferido quando tinhaum ano de idade era uma velha cafeteira de expresso La Pavoni que Ed haviasubstituído. Willie adorava acionar a manivela, ver seu rosto no aço inoxidável,encher de água o reservatório e cambalear até a tomada cheio de intençõesno olhar.

Exigente com a comida desde mais ou menos esta idade, eu não queria queWillie seguisse meus gostos enjoados. Não pretendia, mas transmiti meupaladar defeituoso para minha filha. Ela não come nada que possa ter tido um

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nome, nem come nada que treme. Eu não consigo enfrentar uma ostra ou osmiolos e vísceras de nenhum animal. É um peso para nós.

Ed experimenta de tudo. Em geral, ele topa tudo quando lhe servem panelasde tripa, aves cantoras suspensas pelo bico e trituradas (ossos e tudo),ouriços-do-mar e órgãos internos que nunca deveriam ter visto a luz do dia.Sorrateiramente, passei muitos pedaços de coração de cordeiro e musse derim de coelho para o seu prato. Ele olha para mim com pena. “Não vai nemexperimentar?” A única refeição em que o vi hesitar foi na mesa dos Cardinali,quando serviram mocotó de vitelo. Eles adoram a culinária tradicional destepaís. Ed se esforçou para comer os nacos ossudos, gelatinosos, cheios decartilagem. Eu simulei um Realmente não estou com fome depois de um beloalmoço fora. No jantar seguinte, cerca de duas semanas depois, Fiorellatrouxe mais uma travessa fumegante destes mocotós, já que “Ed gostoutanto”.

COMER COM NOSSOS VIZINHOS, e na casa de outros amigos, na verdade nos deu aideia de oferecer a Willie a chance de apreciar as refeições como os italianos.Quantas vezes vi criancinhas estenderem o prato para mais uma porção defígado de vitelo, vegetais amargos, barriga de porco ou rim de cordeiro? Nacasa de Antonello, nosso eletricista que dá grandes jantares casuais, vimoscinco meninos se virarem para o fogão pedindo mais uma tigela cheia decaracóis. Depois, num excelente restaurante no Vêneto, escutei um menino,de cinco anos talvez, escolher uma variedade de queijos como sobremesa. Eumesma pedi uma extravaganza de chocolate, ainda que já estivesse ficandodifícil fechar o zíper das minhas calças brancas. O garçom apareceu com ocarrinho e o menino apontou para quatro queijos.

Nós voltávamos para os Estados Unidos e víamos o lúgubre “Cardápioinfantil”: nuggets de frango, hambúrgueres, pizza, queijo grelhado, cachorro-quente, salsichas empanadas e, é claro, batatas fritas. Fritas, fritas, fritas – aaterrorizante predominância das fritas à francesa na nossa dieta explica muita

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coisa. Com moderação, um montinho crocante, sim. Mas tudo vem combatatas fritas. Loucura!

Acho que nunca vi um cardápio infantil na Toscana. Não é uma pista culturalprofunda? As crianças comem como suas famílias e suas famílias estão sealimentando tão bem como qualquer um na face da Terra.

A ITÁLIA FACILITA os ritos de iniciação de Willie. Sentado entre adultos e criançaspequenas, ele os vê engolindo tudo que é servido. As crianças bebem água,nunca refrigerante. Mesmo nos cafés, elas pedem suco de pera ou depêssego naquelas garrafinhas; refrigerantes como Coca-Cola são paraquando a barriga está roncando e precisa se acalmar. Um suco de laranjacom cenoura e limão virou um sucesso.

À mesa, as crianças não discutem sobre o que gostam ou não gostam,porque elas gostam de tudo que Aurora, Fiorella, Lina, Ombretta, Giusi, Silviaou Donatella servem. A língua ajuda também. Coniglio e agnello não têm acarga sentimental de Pedro Coelho – o Peter Rabbit – e o cordeirinho deMary. Enquanto Ashley e eu nos arrepiamos quando Domenica discute quecoelhos ela vai matar e desossar, para Willie – ficamos pasmas – isso soanormal, ou talvez abstrato. Ele ainda está para testemunhar a sangrentatransição. As gaiolas dela estão cheias de coelhinhos. Em breve, ela estarátirando do forno uma saborosa panela perfumada com tomilho e alecrim. Eleparou várias vezes perto das gaiolas e no galinheiro de Placido a caminho dojantar. De tarde, uma galinha-d’angola é escolhida; de noite, o espeto gira.Quando eu era criança, observava Drew, nosso jardineiro, torcer o pescoçodas galinhas com um golpe firme e as infelizes criaturas ficavam dando voltasno galinheiro, batendo as asas, até caírem no chão. Por alguma razão, adistância dali até a galinha frita com purê de batatas permaneceu enorme.

WILLIE PERCEBEU LOGO que na cozinha aconteciam coisas muito divertidas. Nós

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lhe demos um batedor de ovos, pequeno, mas de verdade, colheres de pau,espátulas, um avental verde com seu nome em cor de laranja, um conjunto decolheres para medir e uma balança de cozinha. Aprender a quebrar e separaros ovos resultou em muitos no chão. Eu o ensinei, como Simca me ensinou, aquebrar o ovo na palma da mão e deixar a clara escorrer entre os dedos.

Ele girava o porta-temperos até os potinhos saírem voando. Ed bate asclaras até poder segurar a tigela de cobre invertida sobre a cabeça de Williesem que elas escorreguem. Uma farra, tanto para nós como para Willie. Quedivertido pesar o chocolate, cortar o papel-manteiga para caber na forma,regular o cronômetro – sólidas realizações com recompensas a seguir. Eureaprendi a novidade de uma peneira porque ele adora a montanha macia defarinha caindo em neve dentro da tigela amarela. Fiel ao seu treinamentoinicial, ele estende a fava de baunilha com a mão. “Cheira.” E a canela e anoz-moscada. “Eddie, vem cá. Não tem um cheiro bom?” Ele lambe osbatedores. Eu também.

Depois das panquecas, waffles, brownies, bolinhos e biscoitos, ele aprendeua fazer focaccia com Ed. Ele se divertia trabalhando a massa, depoismarcando a superfície com o polegar, salpicando-a de azeitonas e tomatessecos. E depois comendo grandes quadrados no lanche, fatiada numsanduíche de prosciutto e tomate, ou revestindo o prato com fatias fininhaspara tomar com a sopa. Ele e Ed passaram para o macarrão, que combinavaduas paixões, cozinha e máquinas. Willie adora as peças da máquina de fazermacarrão e o processo de girar a manivela, produzir as tiras ou lâminas, emseguida usar o rolo de fazer ravióli.

De hábito, quando entra na cozinha, ele diz: “Vamos cozinhar alguma coisa.”A esta altura ele é o chefe descascador de cenouras, centrifugador dealfaces, moedor de café. No ano passado, com cinco anos, ele insistiu emfazer pesto sozinho. Sua façanha mais recente é aioli. Ele sabe verter comconstância e lentamente o azeite de oliva na mostarda seca, o suco de limão,o alho torrado e o ovo girando na batedeira até ficar verde-amarelado egrosso para os seus sanduíches.

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QUANDO EU ERA CRIANÇA, tínhamos uma cozinheira, Willie Bell. Minha mãetambém era uma excelente cozinheira. Não me lembro nunca de ter sidoconvidada a ajudar. Vendo Willie, penso como eu gostaria de ter participado,como acho que muitas crianças gostariam. Lembro de me dizerem para sairda frente. Grandes manobras, em escala militar, estavam acontecendo. Oclube de bridge estava chegando, meu pai tinha convidado quarenta pessoaspara almoçar no pátio ou uma festa de noivado era iminente. Eu observava e,suponho, aprendia por osmose porque, quando me casei, aos vinte e doisanos, parecia já saber pelo menos como servir um jantar.

Na cozinha da mamãe, meu lugar era na bancada ao lado da geladeira. Nãochute a porta do armário. Willie Bell parecia estar sempre moendo carnenuma engenhoca que atarraxava firme na borda da bancada. Eu pensava:Jamais tocarei em carne crua. Ela fazia pasteizinhos de salsicha e presuntomoído para um prato que preparava com pimentões e azeitonas numa formade pão.

Minha mãe fazia salada de frutas, torta de frango com brócolis e amêndoase torta de chocolate para seus almoços. Meu pai caçava codornas e pombosno outono. Uma lembrança antiga (três anos?), nítida como uma fotografia, édele de pé na porta segurando o paletó de caça marrom aberto. Todos osminúsculos bolsos internos estavam cheios de aves mortas com as cabeçasdependuradas. Na pia, Willie Bell já trabalhava com uma pilha de pombos,depenando-os com um ligeiro baque à medida que ia arrancando as penas.Seus corpos lisos cor de malva eram jogados num monte ao meu lado. Maistarde, os pombos e codornas asfixiados em creme apareciam na mesa compedacinhos de queijo e os supremos biscoitos de Willie – crocantes por fora emacios por dentro. Eu gostava da codorna apimentada, mas nunca comiapombo por causa da horripilante cor dos corpos pelados.

Da nossa cozinha na Geórgia, saíram bolo de limão, frango caipira docapitão, suflê de milho, bolo de caramelo, vagens com estragão, croquetes decaranguejo, torta de pecã, croquetes de legumes, galinha-d’angola, presunto

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defumado, gelatina de toranja, bolo gelado de chocolate, pato assado napanela (cuidado para não morder chumbo de caça enfiado na carne), pudimde tâmaras, muffins de açúcar mascavo, picles de casca de melancia, galinhafrita, assado de Brunswick, ervilha dedo-de-moça, picles de pêssego, feijão-manteiga, caçarola de abóbora, bolo de fruta, ambrosia, canudinhos de queijo,cheesecake de limão, biscoitos gelados, barras de tâmaras, pecãs assadas esorvete de pêssego. Eu me sentava junto à batedeira e Willie Bell acionava amanivela.

Aos meus ouvidos, esta é uma litania hipnotizante, uma esplêndida herança.Se minha casa pegar fogo, corro para o armário onde guardo o caderno comas receitas da minha mãe. Essa coleção rabiscada, manchada, às vezesdesconcertante – nenhum método está incluído, nunca –, é muito maispreciosa do que o diamante que ela tirou do dedo e me deu quando parti paraa faculdade. A capa vermelha e algumas das páginas ficaram queimadas nasbordas quando eu o descansei sobre o fogão e acendi o queimador errado.Mas isto lhe dá uma sensação de fragilidade: algo roubado e preservado dofogo consumidor do passado.

Crescendo com esses alimentos frescos, feitos desde o início, como fui metornar tão enjoada para comer? Que pirralha chata devo ter sido. Eucostumava dar notas para as refeições, anunciando para minha mãe que ela eWillie Bell tinham recebido um A, B ou C. Por que elas achavam graça, em vezde me mandar para o quarto? Eu não gostava de café da manhã, e, se meserviam um ovo, eu persuadia Willie Bell a comer a clara, enquanto euencharcava a minha torrada na gema mole. Como a terceira menina, em geraleu era ignorada à mesa. Ninguém dizia “Experimente isto” ou “Raspe o prato”.Eu escondia o livro no colo e constantemente olhava para baixo para ler. Amaioria do que ainda não como, eu noto, é o que está faltando nas receitas daminha mãe. Nós éramos gente do interior. Nada de peixe. Bagre frito eraservido na região, mas eu não gostava do nome catfish (peixe-gato) e daexpressão bigoduda que o inspirou. Coisas com barbatanas num cardápioainda são um problema para mim. Sou capaz de apreciar linguado e linguado

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gigante, mas eles não me tentam. Como já visitei diversos viveiros, não comonenhum peixe de cativeiro. Eles nadam em excrementos a vida inteira. Emrestaurantes especializados em frutos do mar, o que me salva são ocaranguejo, o camarão (pescados apenas), a perca-do-mar, o linguado e alagosta. Embora vivêssemos numa área rural onde prosperavam o porco e avaca, eu nunca encontrei timos, bochechas de vitelo, fígado ou qualquer coisaenvolvendo regiões baixas, órgãos internos ou pés. Willie Bell adorava um bomjantar de moelas. Nem é preciso dizer, a palavra me desagradava. Mais tarde,como aspirante a cozinheira no curso de Simca, na França, fiquei horrorizadaao vê-la demonstrar como amputar os pés de uma galinha e os cozinhar numasopa.

Willie às vezes torce o nariz também. Ele não come a casca do pão. Diz quenão gosta de brócolis, embora coma. Quando fala “Não gosto de arroz”, nósrespondemos: “O que é não gostar, senhor?” Ele experimentou mexilhões eacho que fez força para não chorar. Quando vem à Itália, estabelecemos umPrêmio de 10 Novos Sabores e, semana após semana, relacionaentusiasmado suas novas conquistas – queijos, bruschetta com trufas,limoncello (um golinho), groselhas, farro, risotto de tinta de lula, geleias demarmelo, salume, ravioli de abóbora e figos negros. Como prêmio, eleescolhe um novo livro. Nossa recompensa é o seu interesse à mesa. Eleparticipa das conversas que vêm ocorrendo nesta encosta há séculos.

AGLIO ARROSTOAlho assado

Albano é um mestre produtor de alhos. Depois de arrancar as cabeças dealho secando, ele passa uma manhã inteira trançando e, ao meio-dia, nospresenteia com três ou quatro tranças que vão durar todo o verão e o outono.Estes não têm o gosto amargo que o alho mais velho pode ter, principalmentedos brotos no centro. Você pode retirar o broto fatiando o dente e levantando

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a parte verde.Com algumas nozes picadas, o alho assado é um crostino fácil. Ou espalhe

no pão e sirva com qualquer carne que tenha suco onde ele possa sermergulhado. E com bruschetta: jogue-a na sua tigela de sopa.

Procure cabeças de alho densas, de bom tamanho.

Ingredientes:4 (ou mais) cabeças de alho inteirasAzeite de olivaSal

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 230 graus.Delicadamente remova a casca papirácea externa do bulbo e corte o topo,

expondo os dentes. Coloque cada cabeça num quadrado de papel-alumínio,derrame por cima um pouco de azeite de oliva e feche-o bem. Coloque numapequena travessa que possa ir ao forno.

Asse por 30 a 45 minutos, conferindo com a ponta de um garfo depois dosprimeiros 30 minutos.

Deixe o alho esfriar até poder ser manuseado. As cabeças assadas sãoextremamente grudentas e há vários modos de descascá-las. Pegue a faca dedescascar legumes e escave de leve os dentes de cima. Ou pegue um pedaçode papel-manteiga, coloque a cabeça de alho dentro dele com a raiz paracima e cubra com outro pedaço do mesmo papel. Em seguida, usando a mão,os dedos, um pequeno rolo de pastel ou um batedor de carne, esprema o alhopara fora. Com uma faca retire-o do papel-manteiga para um recipiente devidro com tampa. Ou então, e isso me parece melhor, você pode separar osdentes delicadamente e o seu convidado ou você mesma espreme o alho numpedaço de pão, acrescentando sal a gosto.

IMAM BAYILDI: O PADRE DESMAIADO

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Berinjela estufada ou recheada

4 a 6 porções

Ed diz que, como ensopado, a palavra estufado é infeliz quando aplicada àcomida. Nós nos sentimos estufados depois do peru recheado do jantar deAção de Graças (vamos esperar que sem ninguém cheio de ares e outraspretensões) e nos retiramos para o sofá superestufado. Nós estufamos asacola com roupas de ginástica ao sair da academia. Observamos os gulososestufarem as bochechas com cachorros-quentes. Pegamos um resfriado enosso nariz fica estufado. Alguns de nós são de bom estofo ou outros sãoruins. Pieno e ripieno, por outro lado, apontam para a ideia de encher,enchido, cheio – você está cheio até a borda, mas isso é bom. Pelo menosnão está estufado.

Ingredientes:2 berinjelas grandes ou 4 médias4 colheres de sopa de azeite de oliva extravirgem1 cebola grande picada4 dentes de alho picados½ xícara de salsa picada5 tomates frescos, ou de lata, picados2 colheres de sopa de massa de tomate½ colher de chá de sal½ colher de chá de pimenta¼ de xícara de queijo parmigiano

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 180 graus.Corte cada berinjela em duas no sentido do comprimento. Tendo cuidado

para não rasgar a pele, escave com uma colher a parte branca e pique,reservando as cascas. Aqueça o azeite numa panela e acrescente a cebola,cozinhando até amolecer, por cerca de 4 minutos. Acrescente o alho econtinue cozinhando por mais 2 minutos. Em seguida, adicione a berinjela, a

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salsa, os tomates, a massa de tomates, o sal e a pimenta e cozinhe por 5 a 7minutos. Enquanto isso, coloque as cascas numa travessa untada com azeite.Recheie com a mistura de berinjela e polvilhe com parmigiano. Asse por cercade 20 a 25 minutos. Se as berinjelas forem grandes, você pode dividi-las aomeio.

POLLO CON CARCIOFI, POMODORI E CECIFrango com alcachofras, tomates secos e grão-de-bico

4 porções

Grãos-de-bico são uma paixão recente nossa. Bastou provar bolinhos fritos degrão-de-bico, comida siciliana de rua, e ficamos fãs. Agora nós os torramospara lanches, servimos com ervas e tomates como uma salada fria e osadoramos neste prato único de galinha para um jantar super-rápido. Deixe osgrãos-de-bico de molho da noite para o dia e cozinhe-os em fogo baixo numcaldo leve com cebola, aipo, cenoura e alho. Quando você mesma os cozinha,eles adquirem uma textura muito melhor do que aqueles em lata,excessivamente macios e viscosos. As alcachofras combinam muito bem comceci. Embora alcachofras frescas sejam uma paixão primordial, nesta receitaopto pela conveniência das enlatadas ou congeladas.

Ingredientes:5 colheres de sopa de azeite de oliva extravirgem1 galinha inteira, cortada em 8 pedaços, temperada

com sal e pimenta½ xícara de vinho tinto¼ de xícara de salsa picada¼ xícara de tomilho ou folhas de manjerona2 xícaras de grão-de-bico cozidos1 lata de alcachofras escorridas½ xícara de tomates secos

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1 cebola média, picada e refogada

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 180 graus.Aqueça o azeite numa caçarola que vá ao forno. Refogue a galinha por 3 a 5

minutos de cada lado. Faça isso em porções, se necessário. Acrescente ovinho e transfira para uma assadeira.

Misture os ingredientes restantes, jogue sobre a galinha e asse, coberta,por entre 30 e 45 minutos, dependendo do tamanho dos pedaços, virando-osuma vez.

FOCACCIA

Que lugar melhor para assar uma focaccia do que no focolàre, lareira emitaliano, que poderia muito bem ser a raiz deste pão que se encontra por todaparte. Willie e Ed o fazem com frequência. É simples de preparar, tem poucosingredientes e todo mundo gosta. Durante a vendemmia, colheita das uvas, afocaccia é assada para o café da manhã com pequenas uvas cristalizadas.

Ingredientes:2 tabletes de fermento seco2 xícaras de água quente4 a 5 xícaras de farinha de trigo1 a 2 colheres de sopa de azeite de oliva

e um pouco mais para a tigelaSal marinho grossoAlecrim picado

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 200 graus.Misture o fermento e a água numa tigela grande e deixe descansar por 10

minutos. Em seguida, acrescente 4 xícaras de farinha e misture bem. Numa

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superfície enfarinhada, trabalhe na massa por 10 a 15 minutos, acrescentandofarinha conforme necessário, até ela ficar com uma elasticidade uniforme.Unte uma tigela grande, acrescente a massa e gire-a para revestir todos oslados com azeite. Em seguida cubra com uma toalha de chá e coloque numlugar quente por 1 hora.

Soque a massa para abaixá-la – deve ter dobrado de tamanho – e, emseguida, espalhe-a com os dedos numa forma rasa forrada com papel-manteiga. Cubra com uma toalha de chá e deixe crescer de novo por uns 45minutos.

Com as pontas dos dedos, faça pequenas cavidades em toda a massa.Salpique 1 ou 2 colheres de chá de azeite e, em seguida, jogue o sal grosso eo alecrim picado.

Asse em forno quente por 20 a 25 minutos e então retire a forma colocando-a sobre uma superfície para esfriar.

Corte em fatias de 2,5 cm para lanches e de 8 cm para sanduíches.

MAIONESE ALL’AGLIOAioli – Maionese de alho

O aioli transforma um sanduíche numa ocasião especial. Uma pincelada nosaspargos, um molhinho para batatas fritas ou vegetais crus, liga paracamarões ou saladas de galinha, molho para alcachofras – tudo isso fica bemmelhor. Visto que as pessoas em geral não se preocupam em fazer a própriamaionese, é divertido levar um vidro para os anfitriões. E, por falar nisso, vocêfaz o aioli em cinco minutos no máximo.

Rende uma xícara

Ingredientes:½ xícara de chá de mostarda em pó1 ovo inteiro mais 1 gema2 colheres de sopa de suco de limão

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3 dentes de alho½ colher de chá de sal1 xícara de azeite de oliva extravirgem

Modo de preparar:Coloque a mostarda, o ovo inteiro e a gema, o suco de limão, o alho, o sal e

¼ de xícara de azeite no processador de alimentos e processe por 30segundos. Em seguida, com o processador funcionando, aos poucos derrameo resto do azeite num fio fino e constante e bata até engrossar.

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Desde os etruscos

Desde os etruscos, e talvez antes, a comida tem sido o foco diário denoventa e nove por cento da população nesta cidade na montanha.Aqueles afrescos em sepulturas mostram pessoas banqueteando-se atémesmo após a morte. Elas dançam entre as oliveiras. E assim continua

sendo. As pessoas do local fazem suas caminhadas diárias na estrada abaixode nossa casa. Com frequência, fragmentos de conversas chegam até aqui.Nós escutamos ravioli, porcini, ricotta, noce, grappa, cinghiale, ciliege.Muitas vezes seguem-se discussões: “Lapo faz o melhor pecorino.” “Não, éCarla.” “Você está falando besteira!” “As ovelhas de Carla pastam insalata dicampo.” “Ah! Tem ratos no celeiro.”

E assim por diante. Onde você come bem, onde você não come. Quem estároubando cantalupos dos campos, quem cria coelhos a pão e verduras, equem os cria à base de mangimi comprado. Ao podar rosas e aparar a sebe,ouvimos estas discussões em passeggiata constantemente. Nóscostumávamos dizer: “Eles só pensam em comida?” Agora nos aliamos aeles.

Nosso tempo aqui tem correspondido exatamente ao início daconscientização em torno da comida e do vinho dentro da Toscana. QuandoEd e eu visitamos pela primeira vez as trattorie locais em 1990, os garçonsofereciam dois vinhos – bianco ou nero. Os cardápios podiam ter sidoimpressos num escritório central, porque eram todos iguais. Para nós estavaótimo – adorávamos javali com pappardelle, robusta ribollita, linguiçasgrelhadas e a pesada bisteca com azeite e alecrim. Pouco depois,começamos a procurar as especialidades de cada trattoria: as abobrinhasmarinadas em uma, os gnocchi de espinafre em outra, o soberbo assado devitela no nosso restaurante local que também atendia ao papa. Queijo eraqueijo: parmigiano ou pecorino, e talvez um taleggio na mercearia.

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Avance até o presente e você vai encontrar um cenário gastronômicoampliado, uma enorme apreciação de vinhos e uma expansão deconhecimentos em torno de comidas artesanais de todos os tipos.Surpreendente. Durante muito tempo, a Toscana não mudou; agora asmudanças estão acontecendo rápido. Na nossa cidade de 2.500 habitantesdentro de muros antigos, é fácil encontrar numa noite não apenas umadegustação de Brunello, mas uma noite esotérica com Arnaldo combinando osvinhos de Friuli com queijos envelhecidos em cavernas ou criando jantaresinteiros em torno do lardo di Colonnata. A autêntica comida toscana aindareina, mas também vieram chefs (tudo bem, talvez apenas de 15 quilômetrosdali) que se dedicam a pegar os ingredientes locais e contribuir criativamentecom as próprias receitas. Isto é ótimo: o bebê aquecendo-se na água dobanho. Antigas tradições permanecem intactas e as novas coexistem. Amesma filosofia que possibilitaria a Luca ser capaz de encontrar sua casa emCortona hoje.

Eu trouxe Marcella Hazan e alguns outros livros da Califórnia, onde, durantemuito tempo, nos deleitamos com a revolução da culinária popular que acaboutransformando restaurantes americanos e contribuiu para essa enormemudança, o renascimento dos mercados de produtor em todo o país. Eu tinhaestudado com Simca e mais tarde fui cozinhando com os livros que elaescreveu com Julia Child. Eu adorava o Couscous and Other Good Food fromMorocco, de Paula Wolfert, e o volume de Diana Kennedy sobre a culináriaregional mexicana. Tive aulas de culinária chinesa num curso de extensão.

Na casa da minha família no sul, no almoço, já estávamos falando sobre oque teríamos para o jantar. A comida sulista, a maior tradição culinária dosEstados Unidos, de certa forma é o extremo oposto da comida mediterrânea.Os toscanos gostam de fritar também, mas os sulistas fritam qualquer coisaque não estiver em movimento. Você já comeu um picles de dill frito? Eusávamos banha de porco, gordura de toucinho, muita manteiga. As deliciosassobremesas são carregadas de açúcar. Os vegetais costumavam ser cozidosaté não poder mais com uma lâmina de porco salgado. Só de pensar na mesa

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sulista para onde arrastei a minha cadeira faz a minha taxa de colesterol subir.Mas existem outras semelhanças fortes e positivas entre a cozinha da minhamãe na Geórgia e a minha própria cocina na Itália: carne da região de boaqualidade, vegetais e ovos de granja, galinhas criadas soltas, frutas colhidasno pé, especialmente pêssegos para comer debruçada na pia porque sãosumarentos. Como meus vizinhos italianos, nós não comíamos alimentosprocessados, exceto batatas fritas, maionese quando Willie Bell não tinhatempo de preparar e a onipresente sopa-creme de cogumelos em lata, esseaglutinante ingrediente tanto da caçarola de vagens cobertas com anéis decebola fritos como da herança da família, a caçarola de abóbora e cheddar.Minha mãe não gostava das populares saladas de gelatina colorida queapareciam nos jantares ao ar livre da nossa igreja; ela preferia aspic – geleiade carne – com tomate condimentado numa forma em anel e uma delicadasalada de frango gelatinosa numa forma de charlotte. Essas eu não comia;ouvi dizer um dia que a gelatina vinha dos cascos de cavalos. Hoje, euadoraria encontrar esse delicado frango salpicado de nozes e aipo na minhageladeira.

O dogma número um da dieta mediterrânea cruza facilmente com a cozinhasulista: quando os ingredientes são bons, você não precisa torturá-los comreceitas complexas. Um, dois ou três sabores, ousados e frescos.

Escrevendo isto, fico faminta. Sinto falta da mesa posta com jogosamericanos de organdi bordado e a louça Spode azul e branca de minha mãe.O ar-condicionado se esforçava na janela da sala de jantar e, quando WillieBell escancarava a porta da cozinha trazendo sua galinha recheada com fubá,entrava uma rajada de ar quente. Depois de tudo limpo, Willie Bell sentava-seà mesa da cozinha para a sua própria refeição do meio-dia. Às vezes, eu mesentava com ela. Comia mais um biscoito ou tomava um copo do seu chá deabacaxi. Meus pais iam fazer a sesta da tarde. Minhas irmãs desapareciamem seus quartos para ouvir discos e frisar os cabelos. Na cozinha amarela daminha lembrança, faz sempre 40 graus, com um ventilador de canto agitandoum arzinho. Willie ainda tinha uns pratos para lavar. Isto foi há muito tempo,

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numa outra era, e, em muitos aspectos, errada. Mas eu a amava muito.

QUANDO COMECEI a ser recebida em casas toscanas, resolvi perguntar aosmeus vizinhos como eles faziam sopa de repolho, ou tortellini in brodo, oupappa al pomodoro, e com frequência eu pensava em Willie Bell e na minhamãe dando início aos trabalhos do dia. Gostaria que elas pudessem vircomigo visitar amigos toscanos em suas cozinhas.

Não demorou muito e guardei meus livros de cozinha. Eles já estavam meparecendo muito detalhistas. Durante esses primeiros anos, percebi quenenhum dos meus amigos italianos os usava, exceto às vezes, para assar.Assados, menos o pão, não ocupam muito o tempo de um cozinheiro toscano.Se for necessário, uma sobremesa que não seja queijo e fruta, a maioriamonta uma crostata, que eles sabem fazer de cor.

Willie Bell e minha mãe ficariam muito surpresas ao se sentar à mesa dosCardinali, para provar favas frescas com pecorino, o macarrão de Fiorella comfunghi in bianco, um molho branco com porcini e um ossobuco sedesmanchando realçado com alguns fiapos de açafrão local. Acho que elas sesentiriam em casa, como eu. Mas talvez quisessem oferecer aos seusanfitriões uma sobremesa sulista. Eu cometi esse erro. Que iguaria, pensei, atorta de coco da minha avó ou o bolo de chocolate com cobertura dechocolate da minha mãe. O consumo atual de 62 quilos de açúcar por pessoanos Estados Unidos por ano era provavelmente ainda maior no Sul quando euera criança. Foi fácil perceber, pelo que deixaram no prato, que meus amigositalianos não aguentaram provar mais do que umas poucas amostras dassobremesas impressionantemente doces. Eu me adaptei ao longo dos anos echeguei a um meio-termo com tortas de frutas feitas com a metade daquantidade usual de açúcar. Mas às vezes, quando amigos expatriados vêmjantar, nós celebramos nossa doce tradição de bolo de nozes e creme demanteiga ou profiteroles.

Aprendi muito com Giusi, Fiorella e Gilda. Comi nos melhores restaurantes

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de Nova York e São Francisco, aqueles muito badalados, com programasculinários e livros. Depois dos jantares na casa dos Di Palma e dos Cardinali,não posso tomar parte de cultos nesses templos urbanos. Estes doiscozinheiros domésticos possuem profundas informações sobre ingredientes,servem uma vasta – vasta! – variedade de pratos e têm um talento inato parasaber o que estará maduro na semana que vem, o que está maduro hoje.Anos cozinhando com eles e com muitos outros me revelaram o lado nãoimpresso, não pesquisado, da dieta mediterrânea.

Por que a comida é tão boa? Que segredos eles guardam? Importantíssimoé o azeite de oliva. Começamos a prensar o nosso azeite assim que limpamoso terreno que ficou trinta anos abandonado. Colher azeitonas conecta vocêimediatamente com o antigo ciclo das estações. O azeite esverdeado novo emfolha foi uma revelação. Mesmo comprar azeites caros nos Estados Unidos,nós percebemos, era apenas uma sombra da coisa real cintilando comoesmeraldas líquidas no garrafão.1 Nossas saladas se tornaram paradigmas.Fazíamos todas as bruschette imagináveis. Quando tentamos copiar aberinjela à parmigiana de Giusi, a sua arista, o lombo de porco, até as suassimples vagens, não conseguimos. Então, observamos bem. Enquanto nóspingávamos o azeite de oliva na panela, ela abria o bico e derramava. Elausava três vezes mais do que nós.

Conforme contei em Bringing Tuscany Home, ficamos curiosos ecomeçamos a perguntar aos amigos a quantidade de azeite que eles usavampor semana. A média para uma família pequena ou casal era cerca de um litropor semana. Nós fazíamos ao contrário. Enquanto limitávamos o azeite deoliva na nossa cozinha na Califórnia, derramávamos vinho à vontade. Depoisde um jantar para oito pessoas, carregávamos para o latão de lixo reciclável omesmo número de garrafas.

Na Itália, lá na época do festival de vinho Nero e Bianco, me lembro de, nahora do almoço, ver os carabinieri colocando água no vinho. Mesmo agora,com o vinho do produtor, ainda vejo isso de vez em quando. Entre os nossosamigos, começamos a notar que, depois de uma festa, haveria apenas duas

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ou três garrafas vazias e o mesmo número, ou mais, de garrafas de água. Ecomeçava-se a beber vinho quando a comida era servida. Apenas um ou outroamigo pensava em oferecer uma taça antes do jantar. Então é isso! Vinho épara comida, uma parte do ato equilibrado que compreende a cena italiana.

O azeite de oliva, no Mediterrâneo, não é apenas um ingrediente, é umalibação, uma substância sagrada que conecta você à terra e promove umasensação de pertencer ao tempo.

O tempo é o principal ingrediente do jantar toscano. Ritmo; o tempo seestende segundo o ritmo do jantar, que chega em quatro ou cinco pratosdistintos. Isto faz uma tremenda diferença, este equilíbrio, esta dança depratos, este desenvolvimento sinfônico – ou quem sabe é uma série de árias.Antipasto, primo, secondo, dolce. Cada um deles é saboreado.

O estilo americano: um primeiro prato leve e um enorme prato principal coma travessa cheia. Talvez uma salada depois. Em seguida, uma sobremesaestupenda. A diferença aqui na Itália é que os pratos são iguais. Moderação,supõe-se. O que mais? A quantidade de carne. Eu não sabia que um coelhoou uma galinha pudessem ser cortados em tantos pedaços. Até grandes bifesgrelhados são em geral cortados para duas ou três pessoas. Portanto, aquantidade de carne consumida é muito pequena. Os famosos jantares deseis horas, até oito, vão se estendendo com a chegada de queijos, o dolce, atigela de clementinas ou uvas, depois a grappa ou digestivo no final. Cadamovimento da sinfonia é muito bem definido e serve para pontuar o que estáacontecendo à mesa.

“Nunca se envelhece à mesa”, os toscanos dizem. A roda do tempo para naporta da sala de jantar, deixando aqueles que passam a travessa de macarrãosuspensos nos aromas do vapor que sobe. E isso parece verdade.

Ao chamado “A tavola!”, está na mesa, você cora de prazer; você estáentrando num ambiente de celebrações. Algo maravilhoso está paraacontecer. Comida é natural, deglutida com gusto. Deve prejudicar a digestãose você pensar que a primeira qualidade do macarrão é engordar. Se apalavra “pecado” estiver associada à sobremesa. Nunca ouvi ninguém se

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referir a um prato como a “sua proteína” ou “um carboidrato”, e não existeessa conversa sinistra de glútens, controle de porções, teor de gordura oucalorias. Comer na Itália me fez perceber como é torturante o relacionamentocom a comida no meu país. Depois de um longo jantar toscano, sinto nãoapenas a dádiva da companhia, da comida e do vinho excepcionais, mastambém uma sensação inexplicável de bem-estar, de renascimento. O jantarrevigora o espírito assim como nutre o corpo.

O último segredo que me foi revelado é que “sazonal” significa mais naregião rural da Toscana do que eu rejeitar morangos do Chile no inverno, umaopinião do chef no cardápio ou aparecer no mercado do produtor aossábados. O tempo para colher aspargos silvestres continua nas duassemanas da colheita das amêndoas verdes quebradiças. Em seguida,estaremos colhendo cerejas silvestres e urtigas jovens e borragem. Nossosvizinhos levantam-se de madrugada para catar lesmas nos muros de pedra.Somos todos caçadores-coletores, somos catadores de alimentos. Querconsultar o dentista? Ele está colhendo azeitonas. O carpinteiro? Foi caçar.Aqui é o extremo oposto de escolher pimentões verdes encerados, maçãsmacias com adesivos colados. Nenhuma alface pré-lavada se compara comas verduras silvestres sujas de terra. A colheita de porcini e castanhas nooutono sinaliza o início dos longos jantares de inverno ao pé do fogo. Estaprocura de alimentos não apenas recolhe as deliciosas dádivas do solo; estaprática traz com ela uma conexão profundamente enraizada na terra. Até noterreno minúsculo atrás, do lado, na frente de uma casa italiana alguém cultivatomates, manjericão, abobrinhas, alfaces e alho.

Talvez você tenha aceitado o convite para um jantar toscano, uma mesacomprida sob uma pérgula de uvas. Os pratos não necessariamentecombinam e o vinho é servido em copos de vidro. A mesa está carregada dealimentos frescos colhidos no jardim, pão assado esta manhã e vinho comgosto de sol toscano. Este jantar jamais será apenas um jantar. Comfrequência, me parece que existe um pacto entre os convidados: todosbrilharão, todos garantirão que os outros sejam acarinhados, lisonjeados, que

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eles rirão. A sociedade íntima de comensais cria este vínculo repetidas vezes.Vocês ficam amontoados porque, à mesa, cabem apenas vinte pessoas echegaram vinte e cinco. Os amigos fazem a dança das cadeiras a noite toda,assim conseguem conversar com todos. Eles cantam ou jogam cartas,levantam-se para dançar, até fumam aquelas horrorosas guimbas de charutos.O açougueiro sobe na mesa e começa a recitar Dante. Alguém dispara deuma espingarda de caça para o ar. Um cão come pedaços de comida entre aspernas. Alguém faz um pedido de casamento em voz alta.

Nunca se sabe o que vai acontecer ao longo de uma noitada sob as estrelasna Toscana. Você pode até se ver berrando “Unchained Melody” nummicrofone de caraoquê, como aconteceu comigo. Quando o banal extrapola obanal, você acompanha. Esta mesa, na casa do meu vizinho, está posta parao melhor que a vida tem a oferecer.

Assim, Willie. A longa mesa. Sem sapatos. Garfo em riste. Puxar a cadeiraextra para o estranho. Sempre, o jardim. Uma cesta ao lado da porta dosfundos. Que as borboletas, lagartos e gatos dos vizinhos tenham livre acessoà casa. Janelas se abrem, corações e mentes se abrem. Entre na roda de darmelões, feijões, vidros de tomates. Você participa de algo maior do que vocêmesmo. Salgue a água do macarrão. E espere ser surpreendido. Sempresurpreendido.

OSSOBUCO

4 a 6 porções

Mario Ponticelli é dono da Trattoria Etrusca – poucas mesas no interior epoucas mesas do lado de fora. Nós comemos o que ele serviu das duasmaneiras. Este é o seu ossobuco, e a polenta é a parceira natural.

Ingredientes:1,5 kg de ossobuco, 4 a 6 pedaços¼ xícara de azeite de oliva extravirgem

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2 cebolas picadas1 cenoura picada1 talo de aipo picado3 dentes de alho picados1 lata de 350 gramas de tomates picadosTomilhoOrégano

PARA A GREMOLATA

Salsa picadaCasca de 1 limão5 dentes de alho picados

Modo de preparar:Preaqueça o forno a 180 graus.Refogue ambos os lados do ossobuco no azeite, 2 a 3 minutos de cada

lado, dourando levemente. Reserve e, em seguida, acrescente um pouco maisde azeite e os vegetais picados. Cozinhe por 5 minutos, depois junte ostomates, o tomilho, o orégano e, após 3 minutos, o ossobuco. Tampe ecozinhe por 2 horas, até ficar macio – na verdade, soltando do osso. Sirva agremolata por cima. Os italianos apreciam o tutano tanto quanto a carne.

CHÁ GELADO DA WILLIE BELL

Serve 6 copos grandes

Chá gelado no Sul combina com qualquer refeição. Dois ou três copos mefazem o mesmo efeito que a cafeína. Faço isto na Toscana, mas devo admitirque uso chás de ervas e frutas e não adoço com açúcar. Uma bebidarefrescante mesmo assim.

Modo de preparar:Prepare um bule de chá-preto, cerca de 6 xícaras – usando talvez 6

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colheres de sopa de chá. Esfrie ligeiramente e passe para uma jarra com ½xícara de açúcar, mexendo até dissolver. Esprema dentro da jarra o suco de 2limões e jogue-os dentro. Acrescente sempre mexendo 250 ml de suco deabacaxi. Sirva com vários galhos de hortelã e gelo picado.

Outra bebida refrescante de Willie Bell: coloque um bom punhado de galhosde hortelã numa jarra e esmague com um pilão ou as costas de uma colher.Encha de limonada e sirva com gelo picado. Ela quebrava o gelo dentro deuma fronha com um martelo!

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Uma liberdade maior

Nós damos a última e melhor festa de pizza do verão. Chiara traz umapipa cor de laranja para Willie e as crianças sobem e descem correndoas colinas, acompanhado seu voo sem rumo. Placido e Teddy quebram aminha série de sucessos no bocce e se vangloriam. Eles tinham se

sentido humilhados, perdendo para uma americana desajeitada. Os doisgarotos maiores esvaziam a piscina, pulando de pé dentro d’água. Eu tentocantar a letra de “I’m Yours” e ensiná-la a Lina para a festa de Ferragosto. Oshomens jogam cartas. Chiara, estonteante num biquíni verde e branco, estica-se sob os raios de sol baixos.

Quando o sol cai por trás do bosque de castanheiros, Ashley e eu trazemosas travessas de antipasti e todos se reúnem em duas mesas juntas. Dentro doforno, as chamas rápidas parecem quase líquidas. Ed afasta os carvões, eDomenica, Ivan e eu começamos a estender a massa das pizzas. As criançasnão param. Claudia pega Willie pela mão e estão de volta à água, montadosnuma balsa como se fosse um cavalo. Eu passo a salada quando amargherita chega, seguida pela de anchovas e alcaparras, depois umasequência de outras pizzas de massa fina.

A sobremesa são os famosos merengues bola de neve (nuvens recheadasde creme) da padaria da cidade, o denso bolo de chocolate de Ivan e amelancia que resfriei na banheira. Eu tiro o limoncello do freezer e a grappa,ligo a guitarra de Ottmar Liebert ao sair. Todos riem – perdi uma piada.Tantas risadas. Eu me espanto sempre.

Quando levo Willie para a cama, ele parece exausto. “Franny”, ele diz,“quero ficar aqui para sempre.” Ele cheira a melão, grama e água de piscina.

“Eu sei, benzinho, mas você precisa voltar para o Rocco. Ele está agoramesmo pensando: ‘Onde está Willie?’ E logo vão começar as aulas – primeiroano! – e seus amigos...”

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“Mas... eu gosto de morar aqui. É diferente.”“Sim, você tem razão, meu amor.” Ele veio pela primeira vez com seis

semanas de vida. Mesmo naquela época, eu o achava extraordinariamentealerta e feliz recostado em almofadas sob as limeiras ou passeando decarrinho até a piazza, onde era saudado como “Menino Jesus” por causa doscabelos louros. (Todos os bebês são adorados na Itália.) Aos dois anos, elechorava quando tinha de ir embora. Nessa idade é possível sentir o espírito deum lugar? Este menino, eu preciso ter cuidado, está experimentando omistério da infância que vai durar a vida inteira. Conto até vinte em italiano,depois volto, coçando as costas, e antes de chegar ao zero ele estádormindo.

NINGUÉM DEVERIA VIAJAR em agosto, mas sempre esqueço. Nós quatro pegamoso trem para Florença e vagamos de um lado para o outro no calor e no meioda multidão. Ashley procura em algumas lojas, mas está quente demais parapensar no inverno. As roupas de verão parecem os restos que são.

Tomamos um táxi para La Specola, o museu de história natural que exibeuma espécie de cada animal, peixe, ave, colecionados num passado distante.Ficamos fascinados, mesmo que os pontos pretos dos taxidermistas estejamvisíveis e haja poeira nos focinhos dos tigres. Viemos ver os modelos em cerade corpos humanos feitos para alunos de medicina no início do século XIX. Ede eu já estivemos aqui antes e achamos que Willie se interessaria. Somos osúnicos aqui. Fico impressionada com os desenhos anatômicos emoldurados,dos quais não me lembrava. Os intrincados e precisos fígados e baçosparecem ter passado ligeiramente por sangue diluído. Willie está maisinteressado nas teias de aranha das veias no modelo descarnado mostrando osistema vascular. Quando aponto para a mulher aberta com gêmeos lá dentro,ele diz: “Indecente.”

Nós mesmos nos sentimos pelo avesso de calor. Voltamos para o hotel paradescansar, para o ar-condicionado e chuveiros. Antes do jantar, há um

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momento perfeito. No terraço da cobertura, pedimos drinques na hora exataem que um brilho de luz acobreada bate em todos os telhados e domos anossa volta. Nós quatro nos demoramos nesse esplendor e eu tento tornarindelével na memória os rostos das três pessoas que eu mais amo com acidade de Florença por trás.

O ponto alto da viagem é o Museu de História da Ciência. Quem não ficariade olhos arregalados ao ver as lentes de Galileu? Com elas, ele descobriu osquatro satélites de Júpiter. Com o seu telescópio novo e aprimorado, eledeterminou que a Via Láctea era feita de estrelas. Menos fascinante – opedaço de um dos seus dedos também está exposto. Examinando o desenhoartístico, as madeiras lustrosas, os metais em alto-relevo dos astrolábios, dasferramentas médicas e relógios, você percebe que ciência e arte foram um diacomplementares. Aqueles patronos Médici queriam não só globos úteis,compassos, microscópios, balanças e barômetros, mas obras de arte. Muitacriatividade foi despendida em torno da habilidade de marcar o tempo.Relógios d’água, ampulhetas e, melhor de tudo, os relógios de sol e as linhasmeridianas. “O que é isto?” “Como isto funciona?” Willie pergunta centenas devezes. A Itália é fabulosa para crianças. No ano passado, ele adorou osJardins de Boboli, as caminhadas ao longo do Arno e o Duomo de confeitaria.No ano seguinte, o Mosteiro de San Marco e uma escalada ao topo docampanário de Giotto. Igualmente milagroso – estar em Florença com umacriança. Ele olha fixamente para os artistas de rua recriando as obras-primasem giz, aponta para os ratos almiscarados à margem do Arno, adora osnomes de macarrão, desenhos nos bueiros, a variedade de motocicletas,gelato exibido com um leque de abacaxi, um coco rachado, um quarto demelancia. E assim nós nos maravilhamos também.

UMA DAS RAZÕES para Willie ficar fascinado com os relógios de sol é que eleacabou de aprender a ver as horas. Seus frequentes boletins sobre a horacerta do dia me lembram que estas férias voaram. Nos poucos dias que

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restam em Cortona, reduzimos as atividades só para passar o temponadando, conversando, colhendo os últimos girassóis e morangos edesenhando. Ele espera que as amoras amadureçam antes de partir, maselas ainda estão duras e rosadas. Nós colhemos manjericão genovês e elemesmo faz o pesto, como no ano passado. Cozinhamos batatas com alecrim.Eu o ensino a assar cabeças de alho inteiras, em seguida espalhar o alhoquente no pão, que ele devora, espremendo a polpa “como pasta de dentes”.Ele e Ed leem e saem da página para outros reinos imaginários onde sãodoninhas-fedorentas ou cavalos e existem perigos dos quais fugir. Eles nadamde noite, conferem nossos tanques de água e cisternas. Pelo menos um bicode irrigação está sempre mandando para cima um gêiser.

É quando Willie está aqui que eu mais gosto da Itália. Tudo de bom da vidaaqui se amplia. Tudo que é comum assume a aura do seu interesse. Qual foi oteólogo que disse que a religião deveria dar a sensação de uma liberdademaior? Gosto da ideia e a associo também com o amor. Ter esse menino naminha vida oferece muitas grandes dádivas, e a melhor delas é uma amplasensação de generosidade. Talvez a liberdade venha quando você pode sentirexposto o que há de melhor em você.

1 5 DE AGOSTO, ASSUNÇÃO – o dia em que a Virgem Maria foi carregada aoscéus. Nós comemoramos este feriado importantíssimo no ano, reunindo osamigos para comer bisteca. A cidade tem uma Sagra della Bistecca, com umaenorme grelha montada no parque e multidões de pessoas fazendo fila.Considerando a quantidade de gente, a comida é excelente.

Nossos amigos Ombretta e Piero, como centenas de outros, têm suaprópria sagra particular. A festa no terraço sobre o bosque de oliveirastermina com dança. Ashley faz questão de incluir todos os anos em suasférias esta noite com muitos de nossos amigos, entre eles Claudio, osimpático marechal dos carabinieri que é também um bom dançarino. Todostrazem uma bisteca e Placido preside como mestre churrasqueiro. Há

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travessas de salumi, tomates maduros, cestas de pães, vinho – só. Piero trazo equipamento de caraoquê, e Lina, que tem uma excelente voz, canta.Conforme a noite avança, vários convidados se revezam, inclusive eu. Estouansiosa pela festa deste ano porque Lina vai cantar a minha canção favoritado verão.

Às sete horas, partimos para encontrar Melva e Jim para uma taça deprosecco no Bar Torreone antes da festa. Nuvens carregadas se acumulam.Quando nos sentamos debaixo dos guarda-sóis, caem algumas gotas. Lucanos leva para dentro na hora em que as nuvens se inclinam e tudo que nãochoveu em agosto deságua como de uma gigantesca bacia de lavar louça. Arua quente vira uma torrente e começa a fumegar. Relâmpagos disparam pelocéu e o estrondo chacoalha nossas espinhas. “Está chovendo aí?”, Ed ligapara Placido.

“Não, estou acendendo o fogo.”Nós nos acalmamos e batemos um papo com os hóspedes americanos de

nossos amigos e outras pessoas no bar. Em dez minutos, Placido liga devolta. Cancelado. A tempestade atravessou rapidamente o vale e Ombrettarecolheu os pratos e talheres. Ela está encharcada, o fogo apagou, nenhumsinal de que vai parar.

Você não entra simplesmente num restaurante em Ferragosto. Eles estãoapinhados de gente. Ligamos para Riccardo e Silvia. Sabemos que IlFalconiere está lotado, mas quem sabe a sua Locanda del Mulino, recém-inaugurada nos arredores de Cortona, tenha lugar. Sim, eles podem acomodaros oito, até nos acompanhar na sobremesa. Saímos correndo no meio datempestade e logo somos recebidos na acolhedora pousada. Não vai terninguém cantando “I’m Yours”, mas o molho de pato para o macarrão ésuculento, a bisteca, excelente. Willie pode pedir batatas cozidas nas cinzas, oque o atrai. O riacho nos fundos – seco esta manhã – está agitado.

Estamos todos, eu desconfio, pensando na noitada que perdemos, Ashleyespecialmente porque adora dançar. Riccardo e Silvia aparecem depois dojantar e nós compartilhamos a excitação de abrir o prosecco como se fosse

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champanhe. Riccardo mostra a Ed como segurar a garrafa e dar um golpeseco com uma espada especial, e numa manobra em curva, cortar a rolha, ogargalo da garrafa e deixar escapar a espuma. Espetacular. Tomara que asbolhas transbordando levem possíveis pedacinhos de vidro. O espumantedeles é o primeiro a ser feito com uvas Sangiovese. É de um rosado âmbar nataça e vivaz e pungente ao paladar. É um prazer estar com os Baracchis nestainauguração, como estivemos para a primeira degustação vertical dos seusArditos.

Na Toscana, pelo visto, se algo é retirado, outra coisa é sempreacrescentada.

A festa de Ferragosto será amanhã de noite. Nada bom para nós. Partimoscedo para Roma.

Neste dia, antes do voo de Ashley e Willie de volta para casa, nós fazemoso percurso de duas horas de trem e nos hospedamos num pequeno hotel queé novo para nós. Nossos refúgios usuais estão lotados. Simples, masagradáveis, nossos quartos têm sacadas com plantas doentes e asindispensáveis vistas do telhado. O terraço do outro lado da rua estáabandonado, exceto por guirlandas de ipomeias roxas pendendo da amurada.“Ipomeias numa sacada romana”, eu pinto na minha mente. Nada mais nanatureza, nem uvas, íris, veludo veneziano ou ametistas têm um roxo tãoprofundo como estas flores com seus corações brancos estrelados. A cor étão intensa, tão saturada consigo mesma, que lágrimas me vêm aos olhos.

Eu vim para Roma em busca de cor. Adoro os prédios recém-pintados deazul-giz, amarelo tom de luz de inverno e espumante com uma colherada desuco de pêssego. Alguém descobriu que cores mais suaves precederam oscaracterísticos siena, ocre e ouro fundido de Roma.

Passamos a pé pelo destoante prédio branco do arquiteto americanoRichard Meier, feito para abrigar o imponente monumento à paz construídopor Augusto. Que terrível responsabilidade. Embora o prédio modernoclássico pudesse ser um simpático museu em Pittsburgh ou Minneapolis, asseveras arestas parecem não combinar com os suaves arredores do centro

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storico. Apesar de os materiais serem elegantes e as linhas, seguras e bemintegradas, na essência este prédio tem uma impressão genérica, datada. Jáo vi antes em muitos lugares.1

Não se metam com Roma! Muitos projetos contemporâneos estãoplanejados. Isto me deixa nervosa. Quem está à altura de encaixotar a AraPacis de Augusto? Talvez construir uma simples caixa de vidro poderia terexpressado uma opinião e ainda assim deixar Roma em paz.

A fonte na frente poderia estar na filial de um banco sofisticado, mas pelomenos proporciona algum alívio para os turistas de mochila nas costaschapinhando na água. Willie gostaria de fazer como eles. Mas ele a relacionaem terceiro lugar na sua catalogação de fontes vistas. Na hora do almoço, jácontou dez, incluindo as três da Piazza Navona.

Roma, no dia seguinte ao Ferragosto – o Apocalipse aconteceu e nósperdemos? Sei que muitos restaurantes fecham agora, sei que os romanossaem de férias, mas quem ia achar que as ruas estariam vazias de tráfego,tantas lojas fechadas, até os bares? De repente, os prédios ficam maisvisíveis, também as árvores, o rio e o céu. Há turistas aglomerados nosprincipais locais, mas, a não ser isso, entre numa rua interessante e ela é todasua. Serenos plumbagos azuis florescem nos peitoris das janelas na frentedas cortinas fechadas. Foram pescar. Ao longo do Tibre, as folhas mortas dosplátanos farfalham com uma sugestão de outono e a luz cai em barrasdouradas. Dentro do Panteão, vejo Willie olhando lá em cima a grandeabertura redonda do mundo clássico. Quando estivemos aqui em março,Alberto deitou-se no chão sob essa abertura celestial, com braços e pernasesticados como no desenho de Da Vinci. Se um de nós fizesse isso hoje, seriapisoteado. “Agrippa”, dizemos a Willie, “um construtor muito importante hámuito, muito tempo.” Quando nos aproximamos da Fontana di Trevi, Ed colocaas mãos sobre os olhos de Willie até estarmos bem em frente. A expressãono seu rosto! Singela exaltação, pura e simples. Jogam-se muitas moedas.Esta completa dezoito fontes na tarde, e depois disto não há razão paracontinuar. Caminhamos até o Campo di Fiori, que envolve a lembrança de

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Campo de Flores, e, em seguida, nos perdemos por meia hora enquantoprocuramos o Pierluigi, um dos poucos restaurantes ainda abertos no final deagosto. Deveríamos ter ligado – todas as mesas estão reservadas. Mas, noestilo italiano, trazem uma mesa para fora e nos sentamos na imponentepiazza, onde saboreamos um excelente jantar numa noite romana perfeita. Ogarçom pergunta a Ashley: “O rapazinho gostaria de macarrão com molho detomates?”

Willie pensa um pouco e responde: “Eu quero perca-do-mar grelhada, porfavor.” Ah, sim! Nosso treinamento gustativo está funcionando.

Cada um de nós escolheu algo extraído do mar e bebemos um vinho brancode verão do Alto Adige.

Voltamos de táxi, exaustos, caímos na cama e, de manhã, partimos para oaeroporto, e eles se foram, foram, foram. A caminho de Fiumicino, quandoapontei para um conjunto de ruínas, Willie fechou os olhos e disse: “Não possover mais nada. Senão vou sentir muitas saudades de Roma.” Resposta quequalquer viajante apaixonado reconhece.

SOMOS APENAS DOIS agora em Trastevere, numa tranquila manhã de domingo,as ruas de pedra brilhando com a chuva leve, um gato adormecido na capotade uma Cinquecento, frágil perfume de oleandro do lenço da vovó, íntimasigrejas nas piazze do bairro, sete camisetas coloridas penduradas num fiocom o mesmo céu azul, azul, lá em cima, que Agrippa viu quando olhou peloolho aberto do Panteão. Eu me sinto um pouco perdida, sozinha: o amor, eusei, não poupa você de nada. Os movimentos dentro de uma família sempreenvolvem um dar, um tirar, uma abundância, uma perda. E as pequenaspartidas acentuam o dia futuro quando a grande onda verde arrebata você eos que ficam se recuperam e seguem em frente.

Numa banca de livros – por que está aberta quando tudo o mais estáfechado? –, encontro um velho livro marrom gravado em ouro: Venice, deAugustus J. C. Hare. O pequeno volume me distrai com suas xilogravuras e

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citações poéticas, referências clássicas e a abordagem vitoriana às viagens –pausado, erudito, prático. Relacionados no interior, estão seus muitos livrossobre a Itália, França, Espanha. Eu amo um homem viajante. Ou mulher.Vernon Lee, por exemplo. De volta ao hotel, leio o seu livro The Spirit ofRome, publicado em 1906, que parece um diário, mas com a paixão da autorapor línguas e imagens. Eu gosto quando ela descreve ter encontrado opequeno cadáver de um martim-pescador: “peito cor azul do céu, coleiraturquesa-esverdeado e costas escuras brilhantes, exposto em câmaraardente, como aves mortas.” O que ela escreve sobre Roma me afeta comoaquarelas vívidas e vibrantes. Ela descreve as antigas oliveiras nas colinascomo “podadas, mas com densa folhagem, não cor de fumaça, mas comoprata velha”. Gosto muito de textos descritivos quando eles levam você até lá.Ela pode ser precipitada e elíptica, mas, com frequência, me deparo comparágrafos tão sábios que eu os copio no meu caderno:

Sinto muito a grandeza de Roma; não no sentido do heroico ou trágico, mas a grandeza no sentidode esplêndida retórica. A grandiosidade da maioria das coisas, as enormes pilastras e colunas dasigrejas, as imensas extensões de palácios, a profusão de água, a estatura das pessoas, suasgrandes barbas e cabeleiras, a fala arrastada – tudo isto tende ao grandioso, ao enfático. Não éuma grandeza de esforço e artificialidade como a da Espanha jesuíta, menos ainda de realizaçõese força contida como a da Toscana. É uma esplêndida retórica boquiaberta; com um significadocertamente, mas sem restrição de coisas a mero significado.

Eu endosso. Roma constantemente se supera. Gosto da escolha pelaretórica, no sentido de fala ou escrita eficiente. Como se Roma fosse um livrorevelador para se ler, o que ela é.

Esta é a primeira vez em que volto a Roma depois de ler Vernon Lee. Comfrequência, vagando pela cidade, desejo a companhia de escritores mortosque me deram uma visão intensamente pessoal do lugar. Eu a imagino comoapareceu no retrato de John Singer Sargent – óculos de aro de metal, olhosescuros como azeitonas pretas, severa e profissional, exceto pela bocaparcialmente aberta, que lhe dá um ar hesitante. Seu livro sobre Roma é todoobservador; ela não está ali, exceto como os olhos. Mas a graça é essa: nósvemos como ela viu. E, de vez em quando, uma porta se abre e você vê o que

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sempre soube, mas nunca colocou em palavras:

Descubro que o prazer que sinto nas igrejas é principalmente devido a elas serem as coisas maishabitadas do mundo: habitadas por gerações após gerações, cada uma trazendo o seu algograndioso ou insignificante como seus sentimentos, às vezes coisas roubadas de geraçõesanteriores como os próprios rituais com suas cores pagãs ou hebreias; trazendo algo, fixando-seem algo, independente da aglomeração (como a vida é sempre, independente da outra vida);túmulos, quadros, corações de prata e imagens votivas de acidentes e doenças, flores de papel,entalhes em mármore, bancos de igreja, tapeçarias. E cada geração também gastando algumacoisa, deixando os ladrilhos e discos de mármore desiguais, as colunas polidas, apagando comseus passos o egotismo das efígies, reduzindo-as a mera película, mero esboço de pés, cabeçassobre almofadas e mãos entrelaçadas...2

EM HOMENAGEM A ALBERTO, visitamos os Caravaggios no Palazzo Barberini. Eleadora o jogo de luz e sombra de Caravaggio, a sua força passandodiretamente dos pincéis para a tela. Estes dois são extraordinários. UmaJudite sutil e poderosa decepando a cabeça de Holofernes, que pareceassustado e muito real. E tem o quadro mais misterioso de Caravaggio que jávi: o sombrio Narciso olhando para dentro de um lago escuro.

QUASE TÃO REFINADO, PARA O JANTAR , uma travessa de minúsculas almôndegas devitelo com alcachofras e tomates-cereja caramelizados, servidos com duasplacas tostadas de polenta grelhada. E um garçom chamado Pasquale quetraz petiscos para provarmos e insiste em escolher o vinho. Uma noite quenteem Roma e todos que restaram na cidade deserta jantam ao ar livre. Sintocomo se tivesse vivido aqui mil anos.

ROMA NON FU FATTA IN UN GIORNO , os verbos reforçando o passado remoto.Embora não tenha sido construída em um dia, embora uma vida inteira nãochegue para conhecê-la, Roma pode ser assimilada em poucas horas:prédios, ruínas, ruas, o som dos sinos, cores gravando-se para sempre namente do feliz observador. Das grandes cidades, Roma tem o maior coração.

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Neste silêncio de final de agosto, eu o escuto bater.

PURÉE DI CANNELLINI CON GAMBERI E POMODORIPurê de feijões cannellini com camarões e tomates-cereja

6 porções

O Villa La Massa, um dos principais hotéis na Itália, está localizado nosarredores de Florença. O chef Andrea Quagliarella me dá esta receita. Ainsólita combinação me lembra o clássico camarão e grânulos de milho sulista.

Ingredientes:500 gramas de feijões cannellini20 camarões pitu, sem casca, cozidos e temperados12 camarões pequenos, sem casca, cozidos e temperados2 tomates maduros picadosAzeite de oliva extravirgem1 maço pequeno de tomilho fresco, picado grosseiramenteSal e pimenta

Modo de preparo:Deixe os feijões de molho da noite para o dia, ferva-os em abundante água

salgada, em seguida cozinhe em fogo baixo por cerca de 2 horas. Amassecom água do cozimento o suficiente para formar um creme leve e coloque empratos de sopa. Acrescente os pitus e os camarões com alguns tomatespicados já misturados com azeite e tomilho. Acrescente mais azeite de olivaextravirgem e pimenta moída na hora.

BISTECA DO PLACIDO

1 ou 2 porções

Placido, conhecido desde criança como “Plari”, é um mestre em assados na

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grelha. Sejam porcini, lâminas de pancetta, galinhas-d’angola, pombos ouaves pequenas – ele regula o tempo por instinto e cheiro e tambémpermanece totalmente à vontade. Ele manipula a grelha na festa anual deFerragosto de Ombretta e Piero, onde Lina canta enquanto ele cozinha etodos dançam no terraço. Todos chegamos para a festa com bifes na mão.

Primeiro vamos ao Claudio’s, a macelleria logo entrando por um dos portõesde Cortona, e pedimos o mesmo tipo de bisteca que Plari compra para elemesmo. Antonella, toda arrumada atrás do balcão, escolhe um pedaçopesado e bate um pouco. Nós saímos com bistecas gigantescas daquelasfamosas vacas brancas, imensas, chamadas Chianina. Os toscanos gostamda carne al sangue, sangrentas, de modo que o tempo para grelhar aqui éaproximado. Depois que a bisteca é retirada do seu banho de azeite, vocêpode mergulhar fatias de pão e grelhá-las para rápidas bruschette.

Ingredientes:1 T-bone grande e grossoAzeite de oliva extravirgemSal e pimentaAlecrim picado1 dente de alho, picado (opcional – Placido não usa)

Modo de preparar:Faça talhos na faixa de gordura na parte de fora da bisteca para não

encolher no calor. Prepare uma panela grande o suficiente para conter abisteca. Acrescente azeite, sal, pimenta, alecrim e alho.

Coloque a bisteca na grelha quente. Não a toque por, no mínimo, 2 minutos.Vire e cozinhe por mais 2 minutos. Banhe ambos os lados da bisteca noazeite, salpicando mais sal e pimenta. Sirva quente.

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Cem jarras desol de verão

“O tempo esteve seco em outros anos também – Porca miseria. Por queeles estão indisciplinados este ano – farejando as raízes úmidas sob osmeus carvalhos?”

“A estação de caça foi estendida para este outono – tem uma explosãopopulacional.”

“Um deles me olhou cara a cara enquanto eu estava na piscina. Ele sedebruçou e deu um gole.”

No terceiro domingo de cada mês, um mercado de antiguidades toma contada Piazza Signorelli. Todos comparecem para estar juntos e olhar os sinos,livros, ferramentas e cestos. Mas, nesta manhã de final de agosto, dificilmentealguém examina os suportes de lareira e os velhos cartões-postais de Capri.Eles falam de javalis.

Eu gostaria de olhar os utensílios de cozinha antigos, mas não. Até Walter,nosso elegante arquiteto, sofreu uma invasão. Sobre o seu ombro, vejo umhomem apontando com um rifle imaginário.

“Deixe do lado de fora uma saca de milho durante três noites seguidas. Naterceira noite, quando aparecer uma porção deles, você atira”, Riccardoaconselha.

“Atirar – você está maluco? É mais fácil matar uma pessoa na Itália do queum javali fora de temporada.” Paolo faz o gesto de punhos cruzados,significando cadeia.

Ed conta a nossa saga. A irrigação é ligada ao amanhecer e, logo depois,um batalhão invade.

Rob nos diz: “Eu dormi três noites seguidas numa cama de lona ao relento eeles não apareceram. Na quarta noite, peguei no sono ferrado e acordei ao

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nascer do sol. O solo a minha volta estava todo revolvido.” Eles tinham sedivertido ao redor dele, pisoteando o novo gramado, possivelmente farejandoseus pés. O chefe do esquadrão contra javalis resmunga, afastando-se: “Vaidormir com a sua mulher, em vez disso. A não ser que queira uma chifrada nabunda.”

De tarde, percorremos a cerca em Fonte, notando marcas de pegadas poronde eles passaram. Ed decide construir uma cerca de arame por trás dosarames farpados e eletrificados. Esta guerra contra os cinghiale estácomeçando a parecer uma tortura de Sísifo. Eu colho maçãs que o ventoderrubou e as suspendo nos bosques, esperando mitigar a sede deles.

OS RAMOS DA MACIEIRA curvam-se ao peso das frutas. Quando compramosFonte, a árvore estava num emaranhado de trepadeiras e cheia de galhosmortos. Beppe e Armando passaram um dia podando e limpando, e agora elaretribui com profusas safras de maçãs pequenas, no velho estilo, firmes,ácidas e doces. Os javalis adoram o gosto e eu também. Provavelmente elesdevorariam a minha torta rústica de final de verão com uma crosta disforme. Ésó abrir a massa, colocar numa forma para biscoitos, empilhar maçãsfatiadas, levemente açucaradas, e nozes picadas. Salpique com manteiga,dobre as bordas da massa ao redor das frutas. Asse no forno a 180 graus atéa massa parecer torrada. Fica deliciosa coberta com pedacinhos de umamistura de mascarpone adoçado e creme de leite batido.

Ed ficará encantado com a torta esta noite. Ele e Albano passaram o diainteiro cavando buracos em busca de um cano furado. Até agora, nada. Amancha úmida se estende por 15 metros e não parece mais molhada aqui doque ali. Ed chamou o bombeiro e ele respondeu de uma praia em Rimini. Umvazamento grande pode desmoronar uma encosta. Já sofremos muito comisso.

Nesses dias, tenho vergonha de ficar refestelada na piscina, lendo, e sintoque deveria estar trabalhando tanto quanto eles. Resolvo fazer o macarrão

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preferido de Ed para o jantar e armar a mesa ao ar livre sem dar atenção àmancha úmida ali perto. Vamos ficar de frente para os castanheiros e a vistade Cortona, em vez disso. Começo no orto com uma cesta de ciliegini,pequenos tomates-cereja, alguns rachando na trepadeira. Como enquantocolho, compreendendo, a cada explosão de puro sabor, que, sim, o tomate éuma fruta.

Gostaria que Willie estivesse aqui para ajudar a fazer pici. É o melhormacarrão para se fazer com uma criança – ou um adulto. Enquanto meço afarinha e quebro o ovo, penso em como ele adoraria enfiar os dedos namistura gosmenta.

Ed tem a ambição de experimentar todos os tipos de macarrão na Itália.Nossa pequena mercearia local tem cinquenta e tantos formatos de massaseca. A Bottega della Pasta Fresca, logo entrando pela Porta Colonia, produzargolinhas e chapéus mexicanos, travesseiros e caramujos. O número demassas diferentes em toda a Itália deve ser infinito. A cada viagem, coletamosum novo tipo de orecchiette, o macarrão com formato de orelhas tão deliciosocom flores de brócolis, ou pacotes de conchiglioni, gigantescos búzios pararechear com camarão, ou strozzapreti, o “esgana padre”, que no passado eraservido aos padres no jantar de domingo para que se empanturrassem e nãocomessem muito da carne cara servida depois da massa. Eu desenvolvi umapaixão por fregula – quase como o cuscuz israelense, só que mais delicado –na Sardenha.

Nós gostamos da linguagem figurativa fantasiosa para o macarrão. Osnomes fazem você sorrir quando coloca a embalagem no cesto. O jantar jáestá começando bem. Farfalle, borboletas, nos lembram o nosso jardim,infestado de asas brancas e cor de púrpura o verão inteiro. Os sons em fusilise enroscam como a massa cacheada. Mezze maniche, meias-mangas,parecem exatamente parte de uma manga para um bracinho gordo. A geada émuito temida por aqui porque pode destruir as flores de oliveiras nummomento crítico. Mas, na Toscana, um macarrão foi batizado de grandinine,minúsculas bolas de granizo. Occhi di pernice, os aneis usados em sopas,

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parecem olhos de uma perdiz. Lírios, estrelas, cristas de galo, radiadores,cotovelos – bons nomes do cotidiano parecem aderir ao macarrão.

Apesar do nosso fascínio por nomes e formatos, o progresso de Ed nosentido de comer todos os tipos de macarrão na Itália está visivelmenteprejudicado. Depois de examinar o cardápio de uma trattoria, ele em geral diz,como se fosse uma descoberta: “Acho que vou comer os pici.”

E eu costumo responder: “Sim, parece bom.”Os pici se qualificam como a mais robusta massa toscana. Ninguém parece

saber o significado do nome, embora o dicionário completo De Mauro diga quea palavra entrou para o léxico em 1891. Acho que, nestas colinas toscanas, ospici devem existir há éons, tão essenciais quanto as contorcidas raízes dasoliveiras e os cachos de uvas secando para o vin santo sobre esteiras.Especialmente nas províncias toscanas de Siena e Arezzo, pici aparecem emquase todos os cardápios.

Em italiano correto, se diz PI-tchi, mas o nosso dialeto local abranda ossons de “ci” em sons de “s”. Nos arredores de Cortona, você escuta PI-chi,assim como ouve cappushino, em vez de cappuccino. Pici, um plural comospaghetti, não tem picio, singular, nos dicionários, embora as pessoas porestas partes ofereçam um picio a um bebê ou colham um caído no chão.

Em geral não incluído em livros de culinária ou visto em cardápiosamericanos, pici é o macarrão mais querido dos toscanos. Só o tortelloni inbrodo simples e caseiro chega perto. Comemos tortelloni in brodo todos osNatais em que passamos na abundante mesa de nossos vizinhos. É quatrovezes maior do que os tortellini, aqueles pedacinhos de massa recheados comcarne ou queijo cuja forma foi inspirada no umbigo de Vênus. Os tortelloni deervas e frango de Fiorella flutuam no robusto molho de uma galinha velha, umprato que aquece qualquer um na mesa de final de ano. Os quadradosgorduchos são substancialmente estufados, não apenas com uma colheradacomo os raviólis.

Cubro a massa com um pano de prato para um breve descanso e levo omeu copo de chá lá para fora para observar os trabalhos. “Estou fazendo

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pici!”, grito para Ed.Ele faz um sinal com o polegar erguido. “Alimento para a alma.” No verão já

terminando, ele está bronzeado como um italiano. Lembro-me da descrição deum amigo, o poeta musculoso. Seus exercícios com bolas de ferro antigasincharam seus bíceps ainda mais. Sem camisa, suando, ele dá um sorriso evolta a empunhar a pá. Estou contente porque vamos jantar sozinhos. A toalhade mesa verde-ameixa, algumas rosas brancas, luz de vela e a lua – com amúsica de fundo de javalis resfolegando.

Eu gosto de fazer os meus cordões de pici com pelo menos 30 cm decomprimento e três vezes a grossura do spaghetti, para que dê para mastigar.Já os vi quase da espessura de um lápis, revestidos de molho de pato. Amaioria dos pici secos, que se podem encontrar em qualquer gastronomia, ébastante magricela pelos padrões locais. Embora a variedade seca funcionebem, a fresca é definitivamente melhor. Uma boa tigela de pici leva você aoamplo seio da signora que o inventou quando a despensa estava quase vazia.Pici surgiram da cucina povera, a cozinha pobre, fonte de inúmeras invençõesno repertório da culinária italiana. Certamente as primeiras pessoas a fazerpici precisavam alimentar trabalhadores do campo no final do inverno quandonão havia mais prosciutto e salumi. O formato grosso desta massa faz comque ela pareça carne. Ela estoca a energia dos colhedores de trigo eazeitonas, assim como daqueles que agora escalam ruas íngremes para verum quadro de Signorelli.

Algumas comidas, como Proust com suas madeleines sabia, são alimentosda memória. Como biscoitos para sulistas, tortillas para mexicanos, taginespara marroquinos e, quem sabe, talvez haggis para os escoceses, pici agorame leva de volta a felizes associações.

Eu não sabia como o povo local é sensível com relação aos pici até entrarna loja de massas frescas de Maria e Vitalia no Dia da Libertação, o feriadocomemorativo do fim da Segunda Guerra Mundial na Itália. Fui olhar nacozinha, onde Maria erguia os longos cordões de pasta que saíam damáquina. Uma pequena fila se formava no balcão. “Vendemos cento e oitenta

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quilos de pici esta manhã”, Vitalia nos disse. Eu pedi quinhentos gramas, maisum pouco de ravióli recheado de borage. Mais tarde, naquela mesma manhã,vimos Vitalia no seu jaleco branco atravessar a piazza, a bandeja suspensa noar, fazendo as entregas correndo para o pranzo da uma hora da tarde. Cenade um quadro de Balthus, um visitante poderia observar, mas, na região, issoé normale. À uma da tarde, ricos aromas de molhos especiais de chefsescapam pelas portas e nós entramos correndo na Trattoria Toscano deSantino Cenci, de repente mortos de fome.

Todos os dias, Santino oferece uma especialidade caseira, como perna devitelo, ensopado de carne ou polpettone, sua versão de bolo de carne queacabou para sempre com as minhas antigas associações com comida dedormitório. Ele faz pici fantásticos com o clássico molho de pato. Nunca vi issoem outros lugares, mas ele faz molho de alho-poró também. Santino sempresai para dar um oi e garantir que todos estejam comendo bem. “Osamericanos pedem pici?”, perguntei a ele.

“Sim – sempre o pato. Não fica um picio sobrando no prato.” Ah, o singularde novo, que em regra não existe. É obvio, os vinhos locais combinam muitobem com pici. As colinas de Cortona estão chamando muita atenção entre osprodutores de vinho recentemente. Claro, esta área sempre teve vinho –desde os Tio Anselmo de alguém até os prestigiados vinhedos Avigonesi ePoliziano, entre aqui e Montepulciano. Agora temos vários vinhos DOC e, portoda parte, uma nova consciência de vinhos não armazenados nos garrafõesda cantina familiar. Com meu pici no Dia da Libertação, entretanto, eu disseao filho de Santino, Massimo: “Não quero beber vinho. Só água. Tenho detrabalhar.” Ele revira os olhos e ergue as mãos gesticulando. Em poucosminutos, ele traz duas taças de vinho assim mesmo e nós bebemos.

Na vizinha Trattoria Dardano, onde nos sentimos em casa, a mãe e a avó dePaolo são a síntese de casalinga, cozinha caseira. O seu intenso molho parapici é de tomate básico contadina que passou uma tarde no queimador detrás do fogão. Durante a temporada de caça, Ed prefere o molho de lebre oujavali. Conhecemos Paolo, agora com quase trinta anos, desde que ele tinha a

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idade de Willie e já todo contente ajudando os pais a servirem os pratos. Eleestá dando os próprios toques nos negócios da família. Adora ouvir aspessoas adivinharem os ingredientes do seu digestivo especial, que chegacomo uma cortesia depois do jantar. Seguindo o modelo do limoncello, Paoloinventou um elixir concentrado, verde-malaquita, feito com folhas de louro.Potente e perfumada, uma dose dá a sensação de poder curar tudo, desdedor de cabeça até paralisia.

N a Piazza Signorelli, a Taverna Pane e Vino serve pici alle molliche,também uma receita simples: anchovas, migalhas de pão torrado e um toquede pimentões picantes. Ed é louco por isso. A Pane e Vino, de Debora eArnaldo, atrai uma clientela jovem de toda a região, que vem pela comidasimples e a carta de vinhos inspirada, a melhor da cidade. Com este pici, nóssempre bebemos uma Tenuta Sette Ponti Crognolo, do vinhedo que é centrode atração logo acima, na área norte rural de Val d’Arno, em Arezzo. Ali, Eddiz: “Por que não começamos a fazer pici?” Ele já fez as pappardelle largas,chatas, para molho de javali, e lâminas para lasagne e cannelloni. Quandosaímos, ele pega o telefone: “Vamos ligar para Silvia.”

Silvia usa ingredientes da própria horta e das fazendas vizinhas, e osinterpreta com frescura e verve. Ela é a única chef que conheço capaz defazer pici leves, com seu molho de tomates-cereja, favas e umas colheradasde pesto afinado com azeite de oliva. Silvia, uma beldade que nos deslumbracom uma noção de estilo que permeia todos os aspectos de sua vida, vem deuma família local de mulheres que sabem cozinhar naturalmente. Durantedécadas, sua mãe foi dona da Locanda del Mulino, uma pequena pousada àbeira de um regato, com um restaurante aconchegante, onde as toalhas demesa eram pedaços de tecido xadrez colocados de viés e de cores alegres.Recentemente, ela passou a pousada para Silvia e Riccardo, que logoreformaram os quartos e deram ao restaurante o seu próprio e inimitávelestilo, mantendo os cozinheiros. O terraço dos fundos, dando para um regatode águas agitadas, tornou-se um dos melhores lugares na terra para umatigela de pici numa noite de verão.

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A tia de Silvia é dona do Fontelunga, um complexo de casas de fazendapara alugar, com jantar servido na sua própria casa. Desnecessário dizer, piciestá no cardápio, às vezes com molho de pato, junto com sopa de farro,esplêndidas galinhas-d’angola no espeto, assados de vitelo e queijos de umpastor local.

“VOCÊ NOS ENSINA A FAZER PICI?”, pergunta Ed a Silvia. Antes de podermosmarcar uma data, Riccardo está na linha, também, planejando um banquetedepois da aula. “Traga os amigos”, insistia ele. “Vamos ter três tipos de pici,depois uma perna de cordeiro assada numa crosta...”

Uma cozinha serena é bom sinal de uma excelente refeição. No Il Falconiere,a cozinha é de ladrilhos azuis e brancos, piso tradicional de cotto, uma paredede panelas de cobre e balcões brilhantes, imaculados, com cestas de vegetaisfresquíssimos. Pici, aprendi logo, é fácil de fazer. Uma das assistentes deSilvia, Ulive, deu à farinha a forma de um vulcão, inseriu um ovo na cratera eacrescentou água suficiente para deixar a massa elástica e não grudenta. Elafez uma cúpula com a massa e a cobriu para que tirasse um cochilo. Esta é aparte da confecção de massas e pães que eu adoro. Ali – pronto, o pão maciosatisfatório descansando sob uma toalha branca.

Passamos ao forno. A cozinha cheia de aromas robustos de alho, pedaçosde pato cozidos com aipo, cenouras, cebola e punhados de manjericãorasgados e tomates-cereja cortados em quatro. Três molhos ao mesmotempo. Para o pici all’aglione, com alho, farinha de rosca torrada, queijoparmigiano ou pecorino e muito azeite de oliva, Silvia cozinhou em fogobrando o alho picado no leite, depois jogou o leite fora. A farinha de rosca queela misturou no alho era bem fina. “E o pecorino?”, perguntei.

“O queijo é misturado no macarrão recém-escorrido”, explicou Silvia, “antesde acrescentar o molho – isto faz o queijo grudar no macarrão, em vez dederreter no molho.”

Anotei este truc no meu caderno.

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Quando a massa acabou de descansar, Ulive cortou uma fatia erapidamente abriu-a com o rolo. Em seguida, cortou o círculo achatado emtiras com uma faca. Aí é que ficou divertido. Ela e Silvia nos mostraram comoestender cada pedaço até ficar com 90 cm de comprimento. Ulive trabalha amassa na tábua, puxando-a para ficar mais comprida enquanto a abre com orolo. Silvia preferia esticar no ar, deixando a gravidade aumentar ocomprimento. Lembranças de fazer cobras com massinha! Nós nosdivertíamos colocando as tiras numa bandeja, notando como os pici delasficavam mais uniformes do que os nossos. Inevitavelmente, alguns se partiam.O resultado é um produto distintamente caseiro, com um entusiasmo pelaverdadeira criação de algo só experimentado antes por meio de máquinas oumãos alheias. “Adoro isto!”, digo a Ed. “É divertido, como artesanato noacampamento – tricotar pegadores de panela ou colar trempes com rolhas devinho.” Nós somos grandes defensores do movimento slow food, comida feitamais devagar. Produzir pici à mão é tão agradavelmente lento. O movimento émeditativo e o resultado, estimulante para a alma.

O jantar no jardim depois da aula durou cinco horas. As pérgulas em arcosde ferro cobertas de rosas emolduravam as paisagens noturnas do vale e, daextremidade do jardim, vinha o som musical da água caindo na antiga cisterna.Jantando aqui, sinto sempre a presença do ancestral de Riccardo, o poeta doséculo XVII que criava falcões. Cada um dos três pici foi servido emseparado, com vinhos corretos para combinar. Com o mais leve, o pici comtomates-cereja, favas novíssimas e pecorino, nós bebemos um ChardonnayCapanelle. Com o pici de alho picante, tomamos um vinho tinto lá da regiãolitorânea da Toscana, de Maremma, um Morellino de Scansano feito pelaMoris Farms. Ed e eu bebemos com frequência o Avvoltore da Moris Farms eficamos felizes em experimentar o Morellino. Com o pici ao molho de pato,Riccardo serviu seu próprio vinho especial, o Rosso Smeriglio Baracchi 2001.O molho de pato estava magnifico. Depois de refogar o pato com os vegetais,acrescentam-se carnes de vitela e porco moídas, junto com molho de tomatesfrescos. O resultado cozido em fogo brando foi incomparavelmente rico e

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saboroso. Eu resolvi reservar um tempo para descascar os meus tomates apartir de então.

Conforme prometido, o jantar prosseguiu com um cordeiro de três meses deidade, aberto em dois e coberto com ervas, em seguida envolto e assado namassa de pão. Com esta peça de resistência, Riccardo nos homenageou coma inauguração do seu Baracchi Ardito 2001, de voz suave e lábios grandes.Este foi um momento emocionante. Estávamos lá na primavera em que eleplantou as parreiras, quando as uvas foram colhidas e quando o suco foi paraos barris. Agora o vinho jorra. Nós nos regozijamos por esse vinho alegre virdas colinas que espalham-se aos nossos pés, em seguida erguendo-se eformando o nobre perfil de Cortona ao longe.

O MOVIMENTO DE ROLAR os cordões no ar parece elementar, como tecer um fiode lã. Bom, fiz demais. Pensando em como é divertido e agradável comer pici,eu também penso com antecedência no almoço de amanhã. Requentados, oscordões terão absorvido melhor o molho fresco de alho e tomates. Talvez eucoloque um pouco de queijo robiola para derreter juntando-se aos sabores.Por enquanto, os laços são arrumados como colares numa forma de biscoitos.Minha torta de maçãs aguarda em cima do fogão. Mesa posta, vinhoescolhido, rosas enfiadas numa jarra de estanho: alegrias imortais.

NO FINAL DE AGOSTO , a esta altura, o jardim está no auge. Na casa deDomenica, sua cozinha ao ar livre vira uma fábrica de tomates. Nós colhemosdo nosso orto tudo que conseguimos transportar e vasculhamos os armáriosem busca de todos os vidros vazios que sobraram do ano passado. Só astampas precisam ser substituídas todos os anos. Qualquer loja de ferragensvende o equipamento para este ritual. Eu sempre quis um desses bicos de gásexternos com um recipiente de alumínio grande que dá até para se tomarbanho. Para nossos propósitos, o fogão serve.

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O processo é profundamente familiar. Minha mãe e Willie Bell dedicavam umdia inteiro, no auge da estação de pêssegos na Geórgia, para fazer as suascompotas especiais de pêssegos, esterilizando os vidros na lareira fora decasa num recipiente de ferro preto. O quintal todo cheirava a pêssegos ecravos e, quando os pêssegos apareciam junto com o peru de Ação deGraças ou travessas de codornas no Natal, a sala de jantar cheirava a umamanhã de verão.

Conservar tomates não poderia ser mais simples, mas, mesmo assim, dámuito trabalho. Depois de esterilizar os vidros numa bacia grande, você osenche com os tomates e completa com algumas folhas de manjericão. Emseguida, tampa os vidros e coloca-os num banho de água fervendo por umahora. Domenica deixa a água esfriar, depois, com pinças, leva os vidros parao balcão. As tampas devem ter sido sugadas para baixo no centro, então vocêsabe que estão hermeticamente fechados e que vão durar mais de um ano.Embora uns cem bastem para nós, as despensas de Gilda, Domenica, Giusi eFiorella, a essa altura, estão abarrotadas com trezentos ou quatrocentosvidros. Não é uma sorte as Américas terem dado o tomate aos italianos?

Para nós, não há satisfação maior na cozinha do que fileiras de vidros demolho de tomates arrumadas, prontas para ser abertos. São presentesmaravilhosos para amigos expatriados que não dedicam seus meses deagosto a esta adorável escravidão. Quando partimos, é divertido dizer aosfamiliares que estão nos visitando: “Usem todos os tomates que quiserem.”Quando um de nós está sozinho no jantar, estes vidros proporcionam umasopa ou um molho de macarrão rápidos com todo o conforto de umaverdadeira refeição sem perder tempo na cozinha. Gilda e eu guardamospedacinhos de tecido o ano inteiro para ter padrões coloridos para cortar emquadrados, colocar sobre as tampas e amarrar com ráfia ou fita. Gildatambém faz conserva de pimentões assados, linguiças e cerejas. Ivan faz demarmelo, figo e abóbora. Fiorella faz até vidros de conserva de berinjela.

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A CONSERVA DE TOMATES se compara a outra paixão sazonal. Agora nóscortamos flores de funcho silvestre, as secamos em telas por uns dois dias,em seguida as arrancamos dos talos e guardamos os flocos perfumados emvidros pequenos. As pessoas nas suas caminhadas carregam saquinhos paraflores de funcho amarelas que conseguem alcançar na margem da estrada.Quantos tornozelos se quebraram em saltos loucos sobre valas na ansiosabusca por esta flor delicada? Todos sabem que basta espalhar de leve umpouquinho para transformar assados de porco e batatas. A cor verde-douradoe o misterioso odor antigo me lembram curas medievais com ervas e poçõesde amor. Acho que existe uma atração mítica no funcho, talvez porquerecebemos o fogo pela primeira vez quando Prometeu transportou carvõesdentro de um talo de funcho. Funcho assado é soberbo. Um leve salpicarepônimo não faz mal nenhum a esse prato.

Enquanto corto as flores de funcho, arranco uma maçã da árvore. Pelasminhas mãos perfumadas, aprendo que funcho e maçã dançam de acordocom a mesma música. Maçãs estão assando em uma panela no forno e operfume do funcho acrescentado cheira bem.

Para os contadini, o Dia de São João Batista (24 de junho) é quando vocêpisoteia as hastes de alho para impedir a energia de entrar nos brotos acimada superfície da terra; o Dia de São Felisberto (22 de agosto) é quando vocêcolhe as avelãs. Talvez para se lembrar de quando as pessoas estavam maisligadas ao calendário da Igreja do que às suas agendas eletrônicas, aassociação de uma tarefa agrícola com um santo fala a um estado de espíritobem diferente. Eu gosto da imagem que surge. João no orto pisoteando o alhocom as suas botas, Felisberto estendendo a mão sobre as hortênsias paracolher as avelãs em suas cascas estriadas. O dia de hoje deveria serpatrocinado por alguém – talvez a Santa Margherita local – como o dia dacolheita de funcho.

AS JANELAS DA FRENTE de Bramasole agora ficam fechadas à noite porque o ar

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mudou da refrescante suavidade do verão para brisas geladas. Nós deixamosaberta a janelinha dos fundos no quarto de dormir quase o ano inteiro,adorando a brisa fresca e as ondas de perfume nas diferentes estações –grama molhada na primavera, flores das ameixeiras e macieiras e, hoje, asflores picantes de funcho. Quando estou em casa nos Estados Unidos, evocoestas fragrâncias sazonais, um fotograma, junto com os gritos de avesnoturnas.

O perfume mais profundo que escapa pelo quarto é o cheiro intenso dagrama depois da chuva no final do verão. Tem alguma coisa de fogo derastilho que poderia ter se espalhado, mas não se espalhou, de hálitoressequido da terra, o antigo perfume de mel velho numa colmeia, o ninho depardal que Ed trouxe para casa, não maior do que sua mão, derrubado darosa-de-cão pelo primeiro vento de outono.

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Rezando pelarainha de copas

Ed saiu cedo em sua Vespa para ajudar Riccardo na vendemmia. Elelevou uma minúscula foice que encontramos no meio do entulho quandocompramos Bramasole. Riccardo usa tesouras, mas Ed gosta do cabogasto e da velha lâmina forjada. Ele se dá muito bem com trabalhos ao ar

livre, especialmente pela camaradagem que a colheita de uvas inspira. Eles semovem rapidamente pelas fileiras e o sol, o aroma exuberante de frutasmaduras, o cheiro de cachos já caídos em decomposição e os caixotesempilhados exatamente no momento em que o teor perfeito de açúcardispersa a consciência do esforço da coluna curvada. O telefone tocou cedo.“Começamos hoje. Nos encontramos primeiro para um café”, Riccardo disse.“Vamos almoçar cedo, ao meio-dia.” Típico. Qualquer atividade é escoradapela prioridade número um: comida.

No fim do verão, o intenso rodamoinho social reduz a velocidade, tecendodoces dias de setembro com luz da cor da palha e um friozinho no final datarde que me faz ir procurar a caixa de suéteres guardada debaixo da cama.O luxo do início do outono ainda parece um prêmio que conquistamos. Quandoeu ensinava, sempre partia para a Califórnia no último minuto do verão,praticamente correndo do aeroporto para a sala de aula. Agora, podemosprolongar nossa estada nesta radiante estação. Nenhum hóspede, a piazzavazia, não é preciso reservar mesas para o jantar e o calorão se foi – umtempo de felicidade. Tenho um dia para ficar sozinha no escritório.

Com apenas uma dose da cafeína no meu café, estou numa vertigem dedelírios de grandeza. Revisto minhas quatro caixas de projetos, sonhando comvários livros que vou escrever, tudo muito fácil de planejar numa manhã desetembro. Gosto de manter em andamento o projeto de um livro de não

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ficção, um projeto de poesia ou romance, talvez um artigo sobre viagens, maisos meus textos de negócios para desenhos de móveis.

É um bom jeito de cozinhar também. Pegar três ou quatro recipientespousados sobre o fogão enquanto estendo a massa de biscoito, pico o aipo elimpo a geladeira. Não executando multitarefas, uma palavra desagradável queme lembra dirigir pela autoestrada lixando as unhas e falando ao telefone aomesmo tempo, uma coisa nada tendo a ver com a outra. Pelo contrário, gostode aproveitar as superposições de atividades que se conectam. Limpo acozinha uma vez; dois ou três pratos vão juntos para a mesa. Minhas caixasde projetos oferecem diferentes lugares para diferentes ritmos depensamento, e a sinergia entre eles produz as conexões. Às vezes, osprojetos terminam ao mesmo tempo.

Trabalhar assim parece brincadeira. Brincar é quando nos juntamos aosdeuses dando cabriolas no Olimpo. Morando na Itália e vendo como aspessoas vivem e amam, vi que brincadeira é algo que você nem semprepercebe que perdeu no dia a dia. Tanta energia colocada no meu emprego. Otempo sobrando parecia sempre uma recompensa menor: divertimento. Masnão brincadeira, o exuberante surto de diversão e prazer que é tão natural nositalianos. Em casa, muitas das atividades que eu planejava para me divertirpareciam repetições de verão. Chegar à Itália era como cair por um alçapãonum reino mais luminoso.

Aprender com outra cultura é um desses misteriosos movimentos da psique.Acho que você aprende o que precisa desaprender.

TENHO UMA TENDÊNCIA NATURAL para priorizar a arrumação. Não consigo evitar.Todas as panelas esfregadas e guardadas antes de servir o jantar. Umsemestre de preparações para a primeira aula. Os lençóis passados a ferro.Perfeccionismo no lugar errado toma tempo. Muito tempo. Agora eu quero mearriscar.

Já estive disposta ocasionalmente a correr risco motivada por algum desejo.

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O maior foi enfiar as economias da minha vida inteira nesta pequena villa emruínas na Toscana. Agora a gente escuta falar de pessoas comprando casaspor toda parte, mas, em 1990, eu estava em território virgem, só esperandoque este não fosse o próprio Donner Pass.

O que experimentei foi um grande choque elétrico nos meus hábitos. Umgrande e súbito impacto. Esse ato inspirou muitas outras mudanças. Relembromomentos cruciais e vejo como cada um deles queimou dentro de mim algumacoisa e criou as cinzas de onde emergiram outros planos. Talvez aceitar riscosseja uma forma desesperada de brincar. Você dobra a aposta e reza paraque a rainha de copas chegue a sua mão.

Como nossos amigos italianos mantêm naturalmente a jouissance com aqual nasceram? Observei que eles não falam de prioridades. Trabalham, masnão se tornam escravos. Sempre têm tempo para visitas. Aprendi logo que,em italiano, não existe uma palavra para estresse; é uma importação recente:estresse. Não havia um conceito. Agora estresse existe, mas, na Toscanarural, trabalho e brincadeira ainda estão muito alegremente equilibrados,dando a chance não apenas de curtir, mas de se divertir no dia a dia.Especialmente os rituais da mesa e da piazza. Na minha primeira viagem àItália, aos vinte e poucos anos, estava tomando um expresso com meu maridosob aquelas arcadas em Bologna. Tínhamos acabado de chegar. O caféestava um rebuliço, garçons de um lado para o outro servindo café, pessoasfazendo a dança das cadeiras para conversar com amigos, depois seguindopara outra mesa. O nível de ruído nos chocou. As risadas nos deixaramatônitos. Os gestos me fizeram praticá-los secretamente no hotel mais tarde.“Eles se divertem mais do que a gente”, eu disse. Nós estávamos nosdivertindo, também, mas não da mesma forma. Desde então, sinto-me atraídapor essa característica exclusiva dos italianos – não vi isso em mais nenhumoutro lugar – de tirar uma grande satisfação do cotidiano.

Nunca vou me livrar totalmente da incômoda sensação: eu deveria estarfazendo alguma coisa. Mas meus amigos e vizinhos em Cortona não possuemesse demônio em particular. Eles fazem o que precisam fazer existindo.

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Pessoas que possuem tanto tempo histórico devem se sentir maisconfortáveis dentro do tempo. Eu vejo: o tempo pode ser um rio para seflutuar. Nossos amigos caem dentro dele. Eles convocam e propõemexcursões espontâneas. Ficam acordados até tarde, jantando nas noites dequarta-feira. Nós, americanos, árduos trabalhadores, pelo contrário, lutamoscontra o tempo, esprememos o tempo, forçamos o tempo, estamosconstantemente consultando o relógio. Os italianos curtem o dia. Carpe diem,eles repetiram isso durante tantos séculos que não precisam mais dizer.

“Eles estão brincando, sabe?”, eu disse para Ed. “Não estão alimentandoseus dias à força.”

ENQUANTO APRENDIA O ITALIANO , o que comecei a afrouxar no meu crânio foi abobina retesada do deveria, uma palavra pela qual sempre fui profundamentealérgica, uma palavra que cobra um tremendo tributo em desperdício detempo. Quando minha mãe dizia “você deveria”, eu logo imaginava por quenão deveria. “Deveria” foi uma palavra que figurou na minha saída de casa noprimeiro casamento. Mas, inversamente, sempre a usei em muitos disfarcescomigo mesma. Você deveria escovar o cachorro, afofar os travesseiros,regar as plantas, limpar a lareira, cortar os cabelos, substituir as almofadasque os esquilos destruíram. E assim por diante. Então, a maior: você deveriafalar fluentemente.

Mas eu tinha de falar. Antes de poder falar. Soltar a língua, erros e tudo,finalmente cortar esse freio. Os italianos não se importavam se eu meatrapalhasse com o condicional. Melhor errar do que parecer hesitante.Melhor deixar o recheio da almofada servir de ninho para pássaros do queexperimentar estresse. Melhor não ter plantas dentro de casa. Talvez jamaisdominar o condicional tenha me libertado, quebrado a autoridade da bruttapalavra deveria.

Não é melhor – surpreender a própria vida? Derruba as minhas prioridadesde arrumação. Hemingway dizia que às vezes ele podia escrever melhor do

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que era capaz de escrever. Se posso extrapolar isso – os italianos vivemmelhor do que o mero viver. Mesmo aqueles com pouca vida como setivessem sido colocados aqui para florescer e louvar.

Minhas caixas de projetos floridas se tornam cápsulas do tempo. Encontrocardápios de Elba, recortes de papel com citações de Horácio, esboços quejamais seguirei, imagens destacadas de suas origens, tais como:

Seus traços imprecisos são como se o seu rosto tivesse se desgrudado deum molde de gelatina e está ligeiramente derretendo.

E:Um rosto milagroso – na certa, ela se desenvolveu não da forma normal,

mas de um bulbo enterrado fundo na terra, brotando como um lírio.Um dia ainda vou usar essas frases?

O MATERIAL COM FREQUÊNCIA não gosta de ficar na caixa apropriada e quer saltarpara outra. Enquanto vou escrevendo devagar estas recordações, termino umlivro de narrativas de viagens. Estou também caçando e colhendo para umlivro sobre a possibilidade de mudar de novo para o sul. Iniciei um artigo parauma revista. O sul, eu descubro, se intromete.

Com frequência, penso no que seria a minha vida se tivesse ficado na minhacidade natal, casada com o meu primeiro amor, que era tão belo, de olhosverdes como jaspe, cabelos negros curtos demais e um minúsculo espaçoentre os dentes da frente. Com ele, eu poderia ter enfiado as raízes no solofecundo do sul da Geórgia. Quase posso vê-lo. Uma viagem à Inglaterra paraShakespeare e Keats, as férias ditosas em Fernandina Beach, onde eupassava os verões quando menina, compilando o livro de culinária da IgrejaMetodista e restaurando a casa do meu avô semidestruída pelo fogo. Admiroprofundamente aqueles que continuam a viver sob o véu protetor da profundafamiliaridade. Viajei muito em Fitzgerald. O cenário é vividamenteimaginável/inimaginável. Lá eu já poderia ter escrito sete romances sulistas,me tornado uma excêntrica, causado um ou outro escândalo. Ainda haveria

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quem dissesse: “Você tem os lábios do seu pai. Eu a reconheceria emqualquer lugar.”

Aos dezesseis anos, eu já estava, lá nos pântanos, sonhando com avenidasno Velho Mundo com castanheiros em flor, reflexos ondulantes coloridos noCanal Grande e, principalmente, o ar seco ático da Grécia, onde até o ventoprovavelmente sopraria antigos suspiros do Oráculo.

No meu caderno do último ano no colégio, escrevi apenas uma frase daleitura obrigatória de O velho e o mar:

Vi leões na praia de noite.

As cores da areia e da luz ricocheteando na água e os animais amarelo-acastanhados dando patadas uns nos outros e cambalhotas – a imagem todasurge na minha mente, como se eu realmente tivesse visto esses leõesmedindo a passos a linha da maré na África.

Em vez de ficar no lugar ao qual eu pertencia, peguei a primeira coisasoltando fumaça na pista de saída da Geórgia. Meu avô dizia que eu podiafazer faculdade em qualquer lugar que quisesse, desde que não fosse aonorte da linha Mason-Dixon. Eu tinha um inexplicável anseio de escapar. Existeum traço genético para isso? Fui para a Virgínia.

Na faculdade, escutei um discurso de Ramsey Clark, na época procurador-geral. Ele falou sobre a vida ativa, apaixonada, e concluiu que, ao morrer,queria estar exausto. “Me joguem no monte de sucata”, ele disse. Amém,pensei, um jeito de duplicar a vida. Quando me mudar para o paraíso(suponhamos), espero ter vivido o dobro dos anos que me foram concedidosna realidade.

DEIXO ESTE INTERLÚDIO SULISTA nas minhas páginas hoje porque a força para irprovavelmente me fez aterrissar na Itália, neste escritório onde me debruço najanela bebendo luz, este lugar improvável para uma menina do sul da Geórgiaque passou a adolescência na escola lendo a respeito da Guerra entre os

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Estados.Eu poderia também estar no quarto da frente na casa de Papai Jack, a

minha mesa diante da lareira, o papel de parede floral, meus papéisespalhados no baú dos cobertores, e o buldogue de ferro de tia Hazel mefazendo companhia? Como – jamais – compreender as escolhas alheias? Umacoisa leva à outra, minha mãe diria resignada. Talvez seja simples assim. Sr.Ramsey Clark, sim, escrever e ler me sustentam, prazeres para manter pelavida inteira, como a política fez com o senhor. Quanto à exaustão, espere –ainda não estou cansada.

MEU ESCRITÓRIO PARECE uma expressão visível da mente: o jarro da Gréciaonde guardo as canetas; o armário de parede que Antonio fez, revestido develhas fotografias de italianos; uma fileira de tintas que raramente uso, maspenso que vou usar; a mesa de nogueira – longa o suficiente – que Fabrizioencontrou para mim; livros empilhados no peitoril fundo – e preciso tirá-los daliquando chove porque a janela deixa entrar água –; a estante apinhada delivros que Ann Cornelisen me deu quando partiu para sempre da Itália e nuncamais escreveu um livro. Uma janela dá para o sul, a outra, para o leste,sempre ímãs me fazendo olhar lá para fora. O quartinho é amarelo-claro comuma borda que Eugenio pintou sob as vigas, da trepadeira de batatassilvestres que rasteja sobre as nossas colinas e os pássaros e borboletas quevisitam o jardim, às vezes voando por uma janela e saindo pela outra, como seeste quarto fizesse parte das árvores e do céu, e talvez faça. Este escritório,esta casa e jardim, esta cidade e paisagem me deram livros para escrever.Desejaria poder fazer jus ao lugar. Numa vida, entretanto, seja tendo satisfeitoas suas aspirações ou apenas tentado, o importante é o interesseapaixonado, essa agulha apontando para o norte verdadeiro que mantém vocêem foco. Não sou o tipo de escritora atormentada que se obriga a ficar diantedo computador e espreme dali um certo número de palavras por dia. Desdeos nove anos de idade, quando descobri que não é preciso estar morto para

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ser um escritor, sempre pensei que escrever livros era a melhor vida que eupodia imaginar – prazerosa e excitante. Eu estava certa.

Mais tarde, quando brincava de arquitetura como profissão, ainda pretendiaescrever. Mas aí tive de admitir que não iria além da equação de segundograu em matemática. Meu interesse, eu me disse com arrogância, estava naintegridade dos prédios, como eles interagiam com seus arredores e pessoas– não com as complexidades de estruturas, as chaminés, o isolamento econdutos. Especialmente porque estes aspectos exigiam matemáticaavançada. Agora eu gostaria apenas de escrever um livro sobre prédios queadmiro.

Escrever é brincar. Você escolhe um assunto e parte para aprender epensar o máximo que puder sobre ele. Depois, solta a imaginação. Minhascaixas de projetos me lembram as caixas de charutos que eu usava paracolecionar e empilhar no meu armário de brinquedos. Uma tinha pedaços devidro bonito quebrado. Em outras, eu colecionava cartões-postais, bonecas depapel, lápis de cor e conchas. Neste quarto de brincar adulto, gosto desobrepor muitas possibilidades que possam produzir faíscas de energia e seinflamar umas às outras. Talvez uma ideia se transforme numa inesperadacadeia de pensamentos.

Eu costumava citar para meus alunos uma máxima de Ezra Pound: Inove.Ele queria dizer com isso um esforço no sentido do que fosse criativo, umesforço para se afastar do que é conhecido, aceito, esperado. Cair em trilhasjá desgastadas pode ser confortável, mas é difícil se alçar acima das margensdaquilo em que você caiu. Aos poetas, ele aconselhava abandonar velhasformas e rimas, encontrar suas vozes em algo novo. Como uma filosofia devida, inovar desafia o dia. Como escritor, ele conhecia o ofício.

NO MEU JARDIM DE ERVAS, fiz uma mesa com um pedaço de mármore queencontrei no meio das ervas daninhas quando nos mudamos. Esta mesa sobuma pereira passou a ser o meu refúgio, o meu escritório ao ar livre. Equilibro

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uma tigela de macarrão com pesto de rúcula sobre o meu notebook e subo osdegraus até o nível do primeiro terraço. Há uma pedra solta e alguém poderiatropeçar se ela cedesse. Ah, sim, a terra tem sempre algo em mente parafazermos.

Penso no trabalho exaustivo que tivemos para reconstruir o jardim de ervasdepois que o muro de pedra desabou. Dores, suor, arranhões. Eu arrumeiuma ciática e mal conseguia sair da cama. Ainda assim, adoramos o trabalho;estávamos vivendo no mundo do projeto. Desenhar a planta, plantar asvoluptuosas rosas Éden para subirem pelo muro, observar as abelhasricochetearem entre as novas plantas, deitar na grama de noite vendo asestrelas cadentes, caçar vaga-lumes, voltar da sementeira no Fiat quentecheirando a ervas. Nós fizemos esse espaço ao ar livre.

Como interior e exterior se tornaram uma coisa só, recupero a excitantesensação dos longos crepúsculos de um verão na Geórgia, quando todas ascrianças da vizinhança brincavam de chutar latas nos becos e de pique-esconde entre as moitas de buquê-de-noiva e velhas gardênias matriarcais.Quando as mães começavam a chamar, em geral fingíamos não ouvir.Estávamos na cúspide da noite no suave clima sulista, suspensos nesse arcomo se pertencêssemos ao próprio lugar e não às casas iluminadas com asilhueta das mães nas portas.

Em vez de estar cercada por prateleiras de livros dentro de casa, estou numambiente mais suave: estragão, arruda, erva-cidreira, hortelãs, lavanda,santolina, rosas e a tarde inteira pela frente sem mais nada para fazer alémde observar os raios tremeluzentes riscando o vale lá embaixo. Um ramo deoliveira balançando roça o meu pescoço. O espírito da minha mãe passou derepente?

Mal abro o meu livro, escuto “C’è nessuno?” Tem gente? Chiara chega aoportão, sorrindo para mim. Está segurando uma peneira e, como estamos emsetembro, sei que traz amoras. Carpe diem. Carpe lucem. Curta o dia. Curtaa luz.

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Permissão para o novo

O açougueiro me deu um pedaço de osso de prosciutto. Quando o leveipara casa, Gilda achou graça. “Isto é antigo, muito antigo”, ela disse.“Minha avó costumava cozinhar estes ossos. Só era possível encontrá-los” – ela fez um gesto em direção às montanhas – “em lugares

remotos.” Ela deixou de molho durante dois dias na água para perder o sal,tirou o resto da carne, acrescentou tomate e feijões cannellini e, em seguida,colocou a panela para cozinhar em fogo brando. Ontem de noite, ficamossurpresos ao saborear a intensa carne e o cozido grosso e tosco impregnadode um gosto denso, rico de confit. Alguns sabores evocam lembranças eemoções. Este prato lembrava os contadini que sempre usavam o que tinham.O gosto era como se tivesse sido preparado com uma concha de tempoacrescentada à panela. Sabedoria antiga: raspe o osso para cada fragmentode sabor. E, simultaneamente, era uma nova e excelente guloseima para nós.

EXATAMENTE ASSIM, o que é velho se renova.Walter aparece na porta esta manhã com longos rolos de projetos de

arquitetura debaixo do braço. Como de costume, está impecável numa jaquetade camurça marrom-claro, calças recém-passadas a ferro e sapatosengraxados. Olhar para ele inspira a confiança de que qualquer projeto queele supervisione excederá as expectativas; a atenção com minúcias deixa osempreiteiros doidos. Mas felizmente Rosanno, um construtor que ele costumaescolher, talvez seja igualmente detalhista. Juntos, seriam eles a colocarBramasole no seu próximo estágio de vida. Ele está sorrindo e balançando acabeça incrédulo. “Grandes novidades. A comuna aprovou tudo. Tutto.Veramente un miracolo.” Tudo. Realmente um milagre.

Ele entra e, o mais importante, Ed faz um expresso. Walter abre os

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desenhos, pasmo com todas as aprovações de pedidos em geral difíceis dese conseguirem. Eles até aprovaram uma garagem para dois carros enfiadana colina, porque, setenta anos atrás, Bramasole era uma casa para oproprietário e para quem cuidava da fazenda. Costumava ser impossívelqualquer tipo de garagem, depois foi permitida a construção de uma paracada casa, desde que ficasse escondida. Duas é um golpe de sorte. “Veja, oterraço dos fundos. A duplicação da sala de estar. A piscina externa no lugar,eles só querem que vocês a movam dois metros.”

Não esperávamos uma decisão tão cedo. Nos seis meses desde o pedido, ovalor da nossa carteira de investimentos mergulhou de nariz na recessãoamericana. “O cronograma agora é um problema”, Ed começa.

Walter tinha previsto isso e acena com o braço. “Meus amigos, não sepreocupem. Temos três anos para completar a obra. E existe a possibilidadede estender os prazos. Usem o tempo para pensar, planejar, até procurarmateriais especiais. Vocês vão precisar de uma lareira antiga de pedra,batentes de pedra para porta e portas de madeira; não se preocupem.”

Conversamos sobre sua filha que está se formando em direito, sobre adoença da sua mãe. Agora ele está decidido a se mudar para a villa dos seussonhos. Em seguida, ele atende o telefone e precisa sair correndo.

Ficamos olhando um para o outro. Todas as ambiciosas possibilidades paraa transformação de Bramasole espalhadas e se enrolando em cima da mesa.Durante quase todo o verão, não falamos sobre a Grande Reforma.Ocasionalmente, ao conferir o balanço dos nossos investimentos em quedavertiginosa, Ed praguejava e dizia que não deveríamos gastar nada.

Enquanto coloco a água do macarrão do almoço para ferver e Ed dá início àsalada, ambos falamos ao mesmo tempo: “Sabe, não tenho certeza...” Rimos.

Nós dois estivemos pensando em silêncio, meditando durante estassemanas, e chegamos à mesma conclusão. Bramasole é o que é, como Fulvionos disse. Mudá-la, mesmo fazendo melhorias tão luxuosas como Walter e euimaginamos, talvez significasse perder a nossa conexão psicológica maisprofunda com a casa. Receio casar as pátinas da sua história com superfícies

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e estruturas modernizadas, mesmo obras executadas com todo o cuidado.Reformada, ela ficaria genial, mas não tão intrigante e misteriosa. Tememosque fique despojada da sua anima, alma.

“Mas o telhado”, começo. Nesta manhã mesmo escutei a coruja fazendobarulho no sótão, sobre a minha cabeça. Marcas de chuva escorrendo pelasparedes amarelo-claro não são exatamente pátina encantadora.

“Concordo. Precisamos substituir o telhado”, Ed fala. “Rosanno diz que estáperigoso lá em cima.”

“Bem, mais de duzentos anos – as vigas por baixo devem ser gravetos.Rosanno disse que eles aproveitariam as telhas velhas o máximo possível.”

“Sim, temos outras guardadas, lembra, do lado da fonte que desmoronou.”Nós, como todos os toscanos em casas velhas, guardamos nossas pilhas depedras, tijolos e telhas. Nunca se sabe quando elas serão úteis.

“E Ed, a porta do terraço. Temos de fazer algumas manutenções, mesmoque não sejam empolgantes.”

“As persianas.”“Ah, esqueci. O problema da umidade.” Visto que as paredes da sala de

estar secaram em junho e eu as cobri com umas duas mãos de cal, eu tinhabloqueado o cheiro de mofo da primavera, a parede com brotos brancos e odesumidificador cumprindo seu árduo trabalho.

Ficamos olhando para as plantas. Só o que mencionamos soa assustador,devido à economia. E se ela afundar ainda mais?

Levo os pratos para a mesa, afastando as plantas claras e inspiradas.“Vamos esperar seis meses para decidir como e quando vamos nos meternisto.”

“Mesmo que não tivéssemos perdido um sacco di soldi, acho que teríamoschegado à mesma decisão. Parece correto.” Ed serve a salada. Ele fez umatonelada. Estamos voltando para os Estados Unidos em breve e ele queraproveitar totalmente as alfaces do orto antes de partirmos. “O tempo. Todasas reuniões sobre cada uma das maçanetas das portas. As idas ao banco.Estou cansado de toda essa aventura reformadora. Eu mesmo estou

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precisando de uma reforma.”“E não faz muito tempo desde Fonte e os muros derrubados. Precisamos

nos concentrar em nossas próprias vidas.” Já começo a sonhar com a viagempara o meu livro sulista e com o plano para um jardim que não revelei aninguém. Tenho pensado em tempo o ano inteiro. Estou sonhando com horastranscorrendo livremente.

“Estamos acostumados com a cozinha pequena. Gosto das travessasespalhadas por toda parte. É só pegar uma quando é preciso.”

“Nem tudo tem de ser perfeito.”“Quando é que foi?”“Esteve bem perto.”“Sim”, reconheço. Tivemos sorte de viver nesta casa especial, catalisadora

de sonhos. “Lembra daquele sonho que tive? Quando aquele decano rígido mefez escolher entre o meu braço e Bramasole?”

“Sim, você não foi capaz.”“Agora sou. Eu escolheria o meu braço, muito obrigada. Uma lenta mudança

de prioridades, acho eu.”“Bem, eu sabia que você ia preferir o braço, mesmo que não preferisse.”“Lembra daquele poema de Auden de que gostávamos tanto:

Embora eu o ame, você terá de saltar;Nosso sonho de segurança tem de desaparecer.”

“Sim – Salte antes de olhar, ou é Olhe antes de saltar?”“Na verdade, é salte primeiro – me lembra estar balançando sobre o rio

pendurada numa trepadeira, e tem aquele segundo, quando você está prestesa voltar para o ponto de partida. É o momento de cair, o único momento.Exatamente na hora em que você solta as mãos, antes de cair e o rio pegarvocê, a excitação...”

“Então, você está dizendo?”“Vamos fazer o que tem de ser feito, mas, além disso, vamos balançar

sobre o rio e deixar acontecer. Ver como podemos nos abrir para o que é

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novo. Fé.”“Va bene. Quem sabe eu vou começar a escrever romances nas paredes,

como William Faulkner. Quem sabe isso seria mais divertido do que umaadega para vinhos com temperatura controlada.”

“Você queria mesmo isso, não queria?”“Non ne vale la pena.” Não vale a pena. “E estamos aqui há quase vinte

anos. Vinte anos! Mais tempo do que moramos em qualquer outro lugar,exceto quando éramos crianças.”

“Bem, eu fantasiei a respeito de uma sala de jantar espaçosa. Mas agoranão me importo. Adoro esta mesa oval com o círculo claro onde alguémdepositou um prato quente. E, quando comemos dentro de casa, oito é muitode uma só vez. Vamos exorcizar esse desejo por mais.”

“Sim, que se dane! Não que eu não esteja furioso porque a nossa economiafoi pro brejo, mas, não sei, talvez sinalize um tempo para reagrupar.Reexaminar.”

“Gostando ou não.” E eu não gosto. Mas, de algum modo, nós gostamos deter mais controle e decidir que a simplicidade oferece uma chance de saltar.

DECISÃO TOMADA, nós dois sentimos uma nova energia em estar em Bramasole.Redistribuo todas as estantes apinhadas de livros que acumulamos em quasevinte anos aqui. Viagens e referência no meu escritório, ficção num quarto dedormir, arte na sala de estar, poesia no escritório de Ed, não ficção no nossoquarto, livros infantis e miscelâneas no corredor.

Ed pinta a porta da cozinha. Gilda encera os pisos de cotto e nós fielmentecortamos as rosas mortas. Quando começo a empacotar as coisas paravoltar para casa, também reorganizo a despensa (nenhum rato-do-mato esteano) e Ed tira o lixo que está no jardim de inverno. Vou procurar cadeirasnovas para a sala de estar. As molas do nosso par branco rangem quandovocê se recosta e ameaçam saltar fora. Uma faísca que escapou da lareiraabriu um buraco no assento de uma delas. Ed sugere que pintemos o nosso

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quarto de azul. Eu jogo fora três caixas de roupas velhas e transformo toalhascom vinte anos de idade em trapos para a cozinha. Nós dois limpamos asmesas, uma tarefa semimonumental. Na primavera que vem, acrescentareimais rosas antigas ao jardim.

“O que tem para o jantar?”, Ed pergunta enquanto faz uma trouxa com o lixoreciclável. Tem sobras suficientes da criação de Gilda com osso de prosciutto.Que prato! E Ed vai abrir um Ardito do nosso próprio esconderijo debaixo daescada.

APRONTAMOS A CASA para o tempo em que ficará sozinha, quando estivermosfelizes de volta com a nossa família e com os amigos na Carolina do Norte,quando guardaremos a imagem de Bramasole serenamente olhando para osul, refletindo a luz do inverno, assumindo uma dignidade solitária como faz há220 anos e como fará muito depois de estarmos simplesmente entre aquelesque, por uns tempos, amaram a vida nesta encosta.

NA MANHÃ ANTES DE PARTIRMOS por quatro meses, vou a pé até a cidade com omeu notebook. No bar, em silêncio cumprimento o retrato de Luca e levo omeu café lá para fora. Antes de poder abrir o notebook, Claudio se junta amim, depois Sheryl, que está fazendo compras cedo para a iminente chegadade hóspedes, e, em seguida, Ed estaciona com a sua Vespa e pede um café.Eta e Marco, acabando de abrir as portas, vêm conversar. A tensa Jacquelinecai na cadeira como um fantoche cujas cordas foram relaxadas. Placido estáaqui, conversando com Lucio.

Estamos todos aqui, na piazza, numa luminosa manhã de setembro. Ospombos estão excitados demais hoje e se aproximam da mesa em um passocambaleante, voando baixo. Eu vejo o prefeito olhando pela sua janelamedieval. Ele deixou de fumar e precisa andar de um lado para o outro. Osentregadores passam rápido, transportando mercadorias para as lojas antes

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de ter de retirar seus caminhões da piazza. Jim vem caminhando com o jornale toma seu lugar. Alessandra para com seu cachorro, em seguida continua nadireção da loja sob o teatro. Angela – “orgulho de Cortona” – passa com o seugrande sorriso e seios francos. Massimo traz mais cappuccinos, e, derepente, um helicóptero voando baixo cruza o céu sobre a prefeitura. Lembro-me da cena de Fellini, na qual o crucifixo oscila sobre Roma. Na primavera,sonhei acordada que Placido, carregado pelos ares, acenava para todos nósaqui embaixo.

O helicóptero se afasta de cena, nos deixando cá embaixo ao redor de umamesa na piazza, e sobe, sobe até não nos distinguirmos das outras pessoasconversando nas mesas, então mais alto, até que viramos pontinhos, e acidade se espalha pela encosta, ruas estreitas, domos, campanários etelhados largados numa ampla faixa de vegetação, pedras e tijolos, quepoderia ser emoldurada e receber o nome de Uma visão de Cortona.

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Posfácio –Fox Song

Vênus se inflama numa bolha do vidro antigo na janela do meu quarto.Por um momento, o reluzente planeta parece preso numa armadilha. Aluz azul se divide, pulsa: olho de peixe das profundezas cintilando, cristalde quartzo que escavei de um regato no Alabama, cubo de gelo lascando

sob o golpe da picareta. Uma raposa começa a ganir no bosque de oliveiras.Eu me deito de lado, observando Vênus atravessar da vidraça do meio para oalto, cruzar para a direita, escorregando sobre as imperfeições no vidro,depois sumir de vista. Na noite antes de partir daqui, não consigo dormir. Nãoparo de pensar – minhas irmãs dizem “Você insiste nas coisas” – no atoantinatural de voar numa bala de prata onze mil quilômetros acima da Terra.

Uma hora, duas? De relance, como as estrelas parecem fixas – mas comoesse punhado de luz se move rapidamente pela janela. Nunca compreendicoisas básicas: nascimento, sofrimento aleatório, morte, o movimento daTerra girando em seu eixo. “Planeta velozmente inclinando-se”, um poetadescreveu.1 O que compreendo é o estado natural de ter os dois péscravados no chão.

A raposa elegante, Vênus na vidraça e eu, com sede, sem sono, com calor– uma triangulação casual. Desloco minha mente de volta através do espaço,mais além deste encanto cujo nome significa amor. Uma aranha, viajandocomo é do seu estilo: minha mente tecendo além da minha imaginação, alémdo que as lentes são capazes de ver, lá no abismo cinza onde se espera paranascer. (Sorrio no escuro, me lembrando de quando perguntei a Willie, aosquatro anos de idade, onde ele estava antes de nascer, e ele respondeu:“Acho que em Phoenix.”) Lá fora, séculos de queda livre. Não toque nada atéque o universo se curve.

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Ele se dobra sobre si mesmo, trazendo o tempo de volta? Dentro do globodo meu crânio, planando longe demais, vertiginosamente, e esse avião em quevou embarcar, com o seu falso mundo interior, como se lançar-se pelo espaçoescuro fosse uma coisa normal. O universo – a alguma megadistância – tem aforma dos ossos do crânio? Estarei deitada nos canalículos de uma mentecolossal? Ou deitada em lençóis macios na minha cama terrena de ferro comum barco pintado num disco de estanho sobre a minha cabeça?

Ah, sim, é a Terra que se move em torno de um eixo que eu costumavapensar ser real, como um espeto atravessando um tomate, e viajamos nestabola suspensa no espaço apenas por uma concatenação de rodopiantesforças magnéticas que, segundo um amigo espirituoso, significa Deus.Qualquer outro deus, diz ele, está firme no reino de Joãozinho e o pé de feijãoe vacas pulando sobre a lua. Eu girei o canudinho da minha limonada eperguntei: “O que fez o universo?” A lei do quadrado inverso, ele proclamou,embora neste momento eu não lembre o que é igual a quê.

A raposa simplesmente chama na noite. Eu gostaria de sentir a minha mãono contorno da sua cabecinha matreira, erguida num grito prateado, os pésretesados na terra molhada da chuva da tarde, o pelo cor de ferrugemcheirando a covil. Grama encharcada, girassóis caídos, minhocas, buracosnegros, meteoros, constelações como leões e uma coroa de louros. Estacama perto da janela, tração de patas de raposa, tração de Vênus. Água dopoço numa caneca de prata.

Então as primeiras notas agudas dos pássaros. O céu negro, coberto porum véu de noiva estrelado, não mostra nem um débil raio na borda das colinasnem um sutil clarão do céu no oriente. Mas este merlo, este melro, sabe.Como, eu me pergunto.

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NOTAS

Uma casa voadora

1. Anneli Rufus conta muitas vívidas tradições no seu Magnificant Corpses.A obra de Caroline Walker Bynum é extraordinária, especialmente HolyFeast and Holy Fast e The Ressurrection of the Body.

2. Um estudo sobre esse afresco é de propriedade do Museu Getty em LosAngeles, enquanto o Gatti está exposto no Metropolitan Museum, em NovaYork.

Orto e forno

1. Existem também pequenas amêijoas chamadas dateri na Sicília. Istomostra a importância e ascendência da cozinha árabe na região. Astâmaras do deserto oferecem a metáfora. Observe que as tâmaras nãoforam chamadas de tomates e amêijoas!

Gite al mare

1. A designação Blue Banner, conferida pela Fundação Europeia paraEducação Ambiental, é dada às praias limpas, bem administradas nosentido ambiental, com boa qualidade de água. As atuais praias BlueBanner de Marche são, de norte a sul, Gabicce Mare, Pesaro, Fano,Senigallia, Sirolo, Numana, Porto Recanti, Civitanova Marche, Porto SanGiorgio, Grottammare e San Benedetto del Tronto.

Amici

1. Esta e outras pesquisas chegaram até nós através da leitura de TimelessCities: An Architect’s Reflections on Renaissance Italy, de David Mayernik.Durante uma semana de fevereiro em Roma, este livro levou Ed, Alberto eeu a mergulharmos cada vez mais fundo na cidade. O autor associa opórtico do mausoléu de Augusto às dimensões do pórtico do Panteão. Eletraça vários programas arquitetônicos ao longo da história e dá ao leitor umjeito de “ler a cidade inteira em uma narrativa compreensível”. O maisimportante para nós é a explicação que Mayernik dá para a estrutura

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arquitetônica romana como lugares para armazenar lembranças de ideias,isto é, artifícios mnemônicos, tais como os antigos retóricos construíampara ajudar a lembrar textos antes da imprensa. Roteiros completos deprogramas de construção lembravam os antigos lugares onde Rômulo eRemo nasceram, onde São Paulo parou ou onde se deu algum encontrohistórico. Os prédios estão ali para fazer a conexão com a memóriacultural. Este, para mim, é um livro para ler e reler.

A trilha de Signorelli

1. Luca Signorelli: The Complete Paintings, de Tom Henry e LaurenceKanter. Este grande volume é valiosíssimo, visto representar asinformações mais recentes e autorizadas sobre muitos aspectos da obrade Signorelli. Para muitos fatos usados neste capítulo, li informaçõesconflitantes de vários autores e fontes na internet. Confiei em Henry eKanter para a palavra final. Como novas pesquisas estão sendo realizadas,as atribuições estão sujeitas a expansão ou modificação, mas por enquantoacredito que estas são as melhores informações disponíveis.

Città di Castello

1. Agriturismo significa uma pousada no campo onde atividades agrícolasrealmente acontecem. Por exemplo, Giusi, que trabalhou em Bramasoledurante anos e é nossa grande amiga, transformou um redil para ovelhasna fazenda da família do seu marido numa pousada, agora alugada porintermédio da Classic Tuscan Homes. Essas acomodações oportunasexistem por toda a Itália e são um jeito especial de viajar. Você fica emcontato com uma família, em geral com um estilo tradicional de vida, evivencia uma Toscana muito pessoal. Muitos sites na internet e vários livrosrelacionam acomodações de agriturismo. Uma boa relaçãocusto/benefício, assim como um prazer.

Desde os etruscos

1. Em Bringing Tuscany Home, escrevi mais extensamente sobre o azeitede oliva. É preocupante – enlouquecedor! – que tantas informações

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erradas continuem a circular. Recentemente vi um artigo numa revista deculinária respeitável recomendando guardar o azeite num recipiente deplástico. Por favor! O cheiro de plástico penetra no azeite em menos dedois dias. Nós trazemos o nosso da prensa em enormes frascos deplástico e o transferimos imediatamente para recipientes de aço inoxidávelchamados fustini. Ao sairmos do moinho, o dono sempre nos lembra: “Tireo azeite desse plástico assim que puder.” Compre o azeite mais novo quepuder encontrar e guarde-o num armário fresco e escuro. Em casa, nosEstados Unidos, temos um fustino para o azeite não embalado queembarcamos em recipientes de metal. Armazenamos as garrafas quetrazemos na adega. A temperatura constante de 14 graus e o local escuromantêm o azeite em excelentes condições. Um vidro de azeite deixado naluz forte começará a “estragar” em uma semana. Armazenados comcuidado, vidros que não foram abertos podem durar três ou quatro anos,até mais. A validade do azeite não expira realmente na data marcada. Eleapenas vai perdendo aos poucos o efeito estimulante. Os toscanosguardam o azeite do ano anterior ou de dois anos antes e o usam paraassar e regar o assado, deixando o azeite novo para vegetais e saladas. Adata de validade nos vidros é importante porque, primeiro, quanto maisnovo, melhor, e segundo, o azeite provavelmente foi exposto à luz. Vejaoutras informações em Bringing Tuscany Home. Se você está viajandopela Itália, pode comprar um fustino numa loja de utensílios. Eles existemde vários tamanhos e têm um bico no fundo para encher de novo os seusvidros.

Uma liberdade maior

1. Estou indecisa quanto a instalar ou não uma arquitetura contemporâneaem áreas tão particulares há muito definidas como elas mesmas.Teoricamente, a ideia é empolgante, mas, na realidade, aplicar umanacronismo num ambiente assim muda tudo de lugar. Esta é a intenção –mas uma boa intenção? O novo prédio redefine, tonifica ou justapõecriativamente os veneráveis vizinhos? Nova York parece de certa forma

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capaz de assimilar a arquitetura contemporânea; o ritmo contínuo dacidade aceita todos os estilos. A pirâmide de vidro empoeirada – agoracom vinte anos de idade – do lado de fora do Louvre me assustou quandofoi parar ali e ainda assusta. Ela desvia a atenção do peso sombrio dopassado que o Louvre personifica ali sozinho melancolicamente. Fiqueichocada em Toronto quando vi o Royal Ontario Museum. Numa áreaisolada, tudo bem, embora eu imagine que ainda ficaria parecendo umprédio contemporâneo que jogaram lá de cima e se estilhaçou em váriosângulos. Onde está, não só acorda a vizinhança com um balde de água friana cara como coloca o resto da área em suspenso enquanto faz de tudopara chocar.

Teoricamente, intervenções tão drásticas funcionam, mas onde? Estouprocurando. Gosto do átrio desenhado por Sir Normam Foster no velhoescritório de registro de patentes em Washington. Ele não obscurece asestruturas adjacentes nem compete com elas, mas faz a transição, protegee proporciona um espaço interior novo e agradável. Há um sentido deiluminação.

2. Vernon Lee escreveu mais de quarenta livros, um pelo menos sobrebeleza. Ela é conhecida como autora de contos sobrenaturais, mas o queadmiro nela é o seu agudo sentido de lugar, como em The Spirit of Rome.Ela era filha de ingleses, nascida na França, mas adorava a Itália eescolheu viver lá por meio século. Se tiver curiosidade, leia Vernon Lee: ALiterary Biography, de Vineta Colby. The Spirit of Rome está disponívelon-line no Project Gutenberg Canada Ebook.

Posfácio – Fox Song

1. “The Morning Song of Senlin”, de Conrad Aiken. Uma parte lá no final mevem à mente com frequência: É de manhã, Senlin diz, Ascendo daescuridão / E parto nos ventos espaciais para onde não sei.

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BIBLIOGRAFIA

Cruttwell, Maud. Luca Signorelli. Londres: George Bell and Sons, 1899.

Gilbert, Creighton E. How Fra Angelico and Luca Signorelli Saw the End of the World. University Park,Pensilvânia: The Pennsylvania State University Press, 2002.

Henry, Tom, e Laurence Kanter. Luca Signorelli: The Complete Paintings. Nova York: Rizzoli, 2002.

Mayernik, David. Timeless Cities: An Architect’s Reflections on Renaissance Italy . Cambridge,Massachusetts: Westview Press, 2003.

Vasari, Giorgio; traduzido para o inglês por Gaston du C. de Vere. As vidas dos mais excelentes pintores,escultores e arquitetos. Nova York: Modern Library Classics, 2006.

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GLOSSÁRIO

AAgnello – carneiroAntipasto – antepasto, aperitivo

BBarista – atendente de barBocce – bochaBorage – erva usada com ricota no recheio de massasBriscola – jogo de cartasBronzati – bronzeadosBrutta – feiaBudino – pudim

CCampanille – campanário, torre de igrejaCanellini – tipo de feijão-brancoCarabinieri – policiaisCasalinga – caseira, feita em casaCeci – grão-de-bicoCena – jantar, ceiaCiliege – cerejasCinghiale – javaliConiglio – coelhoContadini – camponesesContorni – acompanhamentosCotto – tijolo, terracotaCrostini – fatias de pão tostadas, torradas

DDolce – doce, sobremesa

FFratello – irmão

GGelato – sorveteGita – passeio, pequena viagemGrappa – aguardente de uvaGremolata – acompanhamento tradicional para ossobuco, contendo alho, salsa e limão

I

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Insalata – saladaInterrato – porão

LLardo di Colonnata – receita muito antiga feita com gordura de porco e especiarias. Especialidade dacidade de Colonnata, na ToscanaLimoncello – licor de limãoLoggia – pórtico

MMotorino – moto pequena, motoneta

NNoce – nozes

OOdore – perfume, cheiro, aromaOrto – horta

PPancetta – banha de porco, toucinhoPanna cotta – sobremesa feita com creme de leite e frutasPappa – mingau ou papaPappardelle – talharim largoPasseggiata – passeio, caminhadaPassito – vinho feito com uvas-passasPecorino – queijo de cabraPellegrini – peregrinosPredella – estrado, retábulo, fundo de altarPiazza – praçaPranzo – almoçoProsciutto – presuntoPutti – crianças

RRibollita – cozido

SSagra – festa de consagraçãoSalumi – salameSoldi – dinheiroSoppressata – espécie de salameSpeck – bacon

T

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Trattoria – restaurante, taberna

VVal – valeVendemmia – colheita da uva

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Título originalEVERY DAY IN TUSCANYSeasons of an Italian Life

Copyright © 2010 by Frances MayesTodos os direitos reservados.

Agradecimentos à Copper Canyon Press pela permissão de reproduzir quatro versos de Rising, Falling,Hovering by C. D. Wright, copyright © 2008 by C. D. Wright. Reproduzido por permissão de CopperCanyon Press.

Mapa: Jackie Aher

Direitos desta edição reservados àEDITORA ROCCO LTDA.Av. Presidente Wilson, 231 – 8º andar20030-021 – Rio de Janeiro – RJTel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) [email protected]

Revisão técnica: CILÉA GROPILLO DE CARVALHO

Preparação de originais: DEBORA FLECK

Conversão para E-bookFreitas Bastos

Foto de capa: Albert Hurley

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE.SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

M421tMayes, Frances, 1941-Todos os dias na Toscana [recurso eletrônico]: as quatro estações de uma vida italiana / FrancesMayes; tradução de Talita Rodrigues. – Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2012.recurso digital

Tradução de: Every day in TuscanyFormato: e-PubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-8122-115-1 (recurso eletrônico)

1. Mayes, Frances, 1941-. 2. Toscana (Itália) – Descrições e viagens. 3. Toscana (Itália) – Usos ecostumes. 4. Culinária italiana. 5. Livros eletrônicos. I. Título.

12-6117 CDD–914.55 CDU–914.55

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FRANCES MAYES é autora dos bestsellers Bella Toscana e Sob o sol daToscana, que foi adaptado para o cinema. Lançou também Um ano deviagens e o romance A cidade dos cisnes, todos pela Rocco. Ela divide seutempo entre casas na Itália e na Carolina do Norte.