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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO
FELIPE BATISTA MASSAINI
As Políticas Públicas no Brasil: análise da ausência de
ferramentas adequadas ao gestor e o crescente controle judicial
a respeito do tema
Orientador: Prof. Dr. Raul Miguel Freitas de Oliveira
Ribeirão Preto, São Paulo
2016
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO
AS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: ANÁLISE
DA AUSÊNCIA DE FERRAMENTEAS ADEQUADAS
AO GESTOR E O CRESCENTE CONTROLE
JUDICIAL A RESPEITO DO TEMA
FELIPE BATISTA MASSAINI
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Departamento de Direito
Público da Faculdade de Direito de
Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de bacharel
em direito.
Área de concentração: Direito do Estado.
Orientador: Prof. Dr. Raul Miguel
Freitas de Oliveira.
Ribeirão Preto, São Paulo
2016
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Massaini, Felipe Batista
As Políticas Públicas no Brasil: análise da ausência de
ferramentas adequadas ao gestor e o crescente controle judicial a
respeito do tema – Ribeirão Preto, 2016.
p. 65; 30 cm.
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentada à Faculdade de
Direito de Ribeirão Preto/USP.
Orientador: Prof. Dr. Raul Miguel Freitas de Oliveira.
1. Políticas Públicas. 2. Direito Administrativo. 3. Controle
Judicial de Políticas Públicas. 4. Orçamento. 5. Competências
Democráticas.
MASSAINI, Felipe Batista. As Políticas Públicas no Brasil: ausência de ferramentas
adequadas ao gestor e o crescente controle judicial a respeito do tema. Trabalho de
Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo para a obtenção de título de bacharel em direito. Ribeirão
Preto, 2016.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof.Dr.________________________________________________________________
Instituição: ________________________Julgamento:___________________________
Assinatura:_____________________________________________________________
Prof.Dr.________________________________________________________________
Instituição: ________________________Julgamento:___________________________
Assinatura:_____________________________________________________________
A minha família por ter me ajudado e sempre me
apoiado na decisão de estudar longe se casa,
apesar das saudades que sentiram ao longo de
todos esses anos.
Àqueles que durante essa graduação se tornaram
verdadeiramente a minha segunda família, colegas
de Faculdade e principalmente aos moradores da
Mansão Foster, os quais me proporcionaram além
de grandes momentos, verdadeira oportunidade de
amadurecimento pessoal e aprofundamento nos
questionamentos a respeito do papel do Direito em
nossa realidade social.
“A noção de Público foi despojada de seus conteúdos diferenciais e
ficou sem agenda própria – não passa agora de um aglomerado de
problemas, preocupações e interesses individuais”.
EM BUSCA DA POLÍTICA – ZYGMUNT BAUMAN
RESUMO
Em virtude da significativa importância que os processos de implementação das políticas
públicas representam na busca pelo desenvolvimento social e econômico brasileiro, bem
como na consecução dos direitos fundamentais estampados na Constituição Federal, o
presente trabalho buscou analisar, dentre o cenário das políticas públicas, em que medida
o distanciamento entre a teoria do Direito Administrativo e a realidade experimentada
pelos gestores dessas políticas contribui para o notório quadro de ineficácia sistêmica,
que, por sua vez, fomenta o crescente controle judicial a respeito do tema. Objetivando a
satisfação de tal propósito, a investigação organizou-se em duas etapas principais. Na
primeira delas, pretendeu-se analisar os entraves e dificuldades geradas pelo
distanciamento entre o arcabouço teórico das políticas públicas da experiência prática de
sua implementação, bem como se procurou abordar as possíveis alterações que poderiam
surgir neste ponto para melhorar a eficácia do sistema e introduzir um novo modelo de
governança das políticas públicas, tecnologia mais apropriada para a implementação e
gestão de processos complexos, articulados e intersetoriais. Já em sua segunda etapa, o
trabalho destinou-se ao estudo dos efeitos deletérios advindos do controle judicial destas
políticas, que vão desde problemas relacionados à ausência de preocupação com a estrutura
orçamentária dos entes federativos, ao déficit democrático da usurpação das funções legislativas e
executivas pelo Poder Judiciário. Por fim, levantou-se o questionamento se o controle judicial
representaria a melhor abordagem da problemática, sobretudo sob uma perspectiva de plano de
desenvolvimento nacional duradouro.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 13
CAPÍTULO 1 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS: DISTANCIAMENTO ENTRE A
REALIDADE E AS ABORDAGENS TRADICIONAIS CONTIDAS NOS
MANUAIS DE DIREITO ADMINISTRATIVO .......................................................... 20
1.1 Abordagem do tema ................................................................................................. 20
1.2 Ineficácia sistêmica como fator determinante para crescente atuação do Judiciário35
CAPÍTULO 2 – O CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO
ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO ..................................................................... 37
2.1 Noções gerais sobre o tema ......................................................................................... 37
2.2 Controle judicial e questão orçamentária .................................................................... 42
2.3 Controle judicial e distribuição democrática de competências entre Poderes ............. 48
CAPÍTULO 3 – CONCLUSÃO ..................................................................................... 56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 61
13
INTRODUÇÃO
A busca pelo desenvolvimento é o mote central da agenda política, sobretudo na
realidade brasileira em que muito se discute a necessidade de gerar recursos e reparti-los com
os substratos mais pobres da sociedade.
Historicamente, o tema direito e desenvolvimento foi estudado sob o prisma
marcadamente liberal, pelo qual se acreditava de maneira ingênua que a mera adoção do
modelo jurídico-institucional dos países desenvolvidos já seria suficiente para fomentar o
desenvolvimento nos países periféricos (RODRIGUEZ, 2009, P. 10).
Ingênua, pois, partilhava-se da premissa que adoção de um sistema jurídico autônomo
e racional, por si só, poderia levar os países periféricos a alcançar o desenvolvimento
econômico, social e político. Ou seja, de acordo com essa visão teórica, para que países
periféricos pudessem se desenvolver bastaria que estes copiassem o modelo jurídico-
institucional liberal dos países centrais, especialmente o modelo norte-americano.
Percebe-se, portanto, que o surgimento dessa linha de pensamento está ligado a um
ideal etnocêntrico, fruto de toda a conjuntura política e acadêmica desenvolvida nas
universidades americanas durante as décadas de 1950, 60 e 70, que, por sua vez, repercutiu
diretamente nas políticas internas dos países do Terceiro Mundo, que passaram a adotar o
modelo de desenvolvimento ditado pela corrente do neoliberalismo1, presente até os dias
atuais.
Ocorre que com o passar do tempo, pode-se constatar que a replicação de um modelo
referencial abstrato, produzido a partir da experiência ocidental, não seria suficiente para levar
os países do Terceiro Mundo a alcançar o tão cobiçado desenvolvimento, sobretudo em vista
de que a referida abordagem acabava por desprezar as peculiaridades locais, bem como as
1 Tal crítica é elabora nos textos e trabalhos científicos do autor norte-americano David Trubek, traduzidos e
organizados na obra de Rodriguez (2009).
No mesmo sentido, o documentário norte-americano “Too Big to Fail”, do diretor Curtis Hanson, aponta a
ocorrência do fenômeno de cooptação da produção acadêmico-científica pelos interesses e agentes do mercado.
Apesar de demonstrar a ocorrência do aludido fenômeno na produção acadêmica da área ligada à Economia, tais
ponderações podem ser transportadas para a disciplina do Direito, na qual também é possível vislumbrar o
fenômeno de cooptação da produção científica, que, dessa forma, passa a tentar explicar e justificar de maneira
lógico-formal, a adoção de determinadas correntes doutrinárias convergentes aos interesses do mercado, ao invés
de analisá-las de modo crítico e imparcial.
14
diversidades culturais, destruindo as instituições já existentes nestas localidades,
comprometendo, assim, a organização da sociedade e a coesão social2.
Tanto isto é verdade que o próprio modelo americano (tido como paradigma) vem
sofrendo desde as décadas de 1960 e 1970 (e ainda sofre), diversas críticas em razão da
evidência de que a forma de estruturação das instituições estatais busca reprimir as minorias e
favorecer as camadas mais elevadas do substrato social.
Nesse contexto de crise do paradigma teórico, o tema de direito e desenvolvimento,
especialmente no que tange à implementação e gestão das políticas públicas, que, em última
instância, representa à consecução dos direitos sociais previstos na Constituição Federal de
1988, ressurge com um papel central nas discussões jurídicas, não para resolver a crise de
paradigmas acima denunciada, mas para estabelecer o termo final de cada projeto de
desenvolvimento e garantir as medidas práticas para que se possam alcançá-los.
Assim, entre os diversos atores e interessados envolvidos nos projetos de
desenvolvimento social e a pluralismo ideológico, mormente a este setor, a missão da
academia é clara: adotar compromisso programático com a racionalidade da argumentação e
não se deixar influenciar (se é que isso é possível) pelos grupos que tentam cooptá-la para
conferir “veracidade” aos seus interesses particulares.
Prosseguindo com essa missão, o direito deverá participar da discussão a respeito de
qual seria o melhor desenho institucional para se atingir determinado objetivo econômico,
social ou político, sob pena de restar reduzido ao estudo das normas abstratas e operações
lógico-formais de aplicação e interpretação, que, hodiernamente, possui pouco potencial
explicativo da realidade social. Em outras palavras, as transformações sofridas ao longo do
tempo e a crescente complexidade das relações sociais, fazem com que o Direito tenha que
assumir que o seu campo de atuação não se resume apenas às operações lógico-formais e
2 Nesse ponto é importante destacar a ferrenha crítica feita por Faria (1999) em relação à adoção do sistema
econômico e político do neoliberalismo, construído dentro do cenário da Guerra Fria e que visava e, ainda visa,
manter os mercados dos países emergentes abertos e alinhados com os interesses dos grandes conglomerados
econômicos oriundos dos países desenvolvidos.
Isso porque, em que pese o fato de que, em sua origem, o modelo neoliberal visava à ampliação das liberdades
individuais e promover à participação dos cidadãos nas tomadas de decisões de modo a aumentar a racionalidade
no processo de mudança social, por trás, encontrava-se escamoteado o desejo de frear o avanço do Comunismo e
abrir os mercados internos dos países emergentes para os produtos e serviços das empresas transnacionais.
15
arquitetura de um desenho institucional abstrato, mas sim aos problemas de ordem social,
política e econômica.
Do mesmo modo, deve-se encarar o fato de que a teoria e a pesquisa “são incapazes de
abarcar toda a complexidade do mundo” (RODRIGUEZ, 2009, P. 19).
Por isso, em virtude da descrença no modelo liberal de Direito e da consequente
ausência de outro modelo teórico que possa servir como paradigma para a realização dos
projetos de desenvolvimento social, tornou-se ainda mais difícil a conceituação daquilo que
seria “o direito das políticas públicas” e respectiva delimitação de funções entre os atores
envolvidos com o planejamento, implementação e gestão destas políticas.
Veja-se, por oportuno, que a boa conceituação e classificação daquilo que seria o
direito das políticas públicas, bem como a eficiente delimitação de competências entre os
atores envolvidos no processo, são indispensáveis para a consecução da finalidade última do
Estado, que, à luz dos ditames previstos em nossa Carta Programática, consistente na redução
da desigualdade social e a obtenção de um padrão aceitável de desenvolvimento.
Isso porque, dentro de uma estrutura intervencionista do Estado não é possível se
conceber a ideia de obtenção de desenvolvimento social, econômico e político de forma
dissociada da existência de políticas públicas instituídas e geridas pelo ente político.
Assim, após essa breve análise conjuntural, imperioso expor que o presente trabalho se
propõe a estudar os problemas e entraves práticos que fazem com que as implementações das
políticas públicas sejam realizadas de maneira pouco eficaz no cenário nacional, analisando
de maneira crítica, o espaço deixado pela notória descredibilidade do sistema atual para o
crescente protagonismo do Judiciário no controle destas políticas, cujos efeitos deletérios
serão abordados ao final deste ensaio.
Para tanto, o presente estudo consistirá basicamente em duas grandes fases (que não
correspondem à divisão física do trabalho, mas apenas à ordem lógica de exposição dos temas
relativos a ele). Destarte, apesar de separadas com a finalidade de melhorar a exposição dos
assuntos propostos nesta monografia, estas devem sempre ser interpretadas em conjunto,
posto que a segunda se encontra contida na primeira e é resultado direto desta.
Feita esta observação, na primeira fase deste trabalho será exposta toda a problemática
relacionada ao fato de que as categorias tradicionais do direito administrativo não retratam e
16
não são capazes de explicar os mecanismos pelos quais as políticas públicas são implantadas
na prática, haja vista que estas últimas são “mais dinâmicas do que a interpretação tradicional
permite” (ANNENBERG, 2014, P. 13).
Neste diapasão, será inicialmente abordada, ainda que de forma breve, a ausência de
ferramentas e instrumentos teóricos que possam corroborar a tomada de decisão dos atores
envolvidos no direito das políticas públicas, elencando-se, outrossim, os principais fatores que
contribuem para o distanciamento entre as categorias clássicas contidas no direito
administrativo e o cotidiano vivenciado pela burocracia estatal.
Nesse sentido, é revelador notar que o entendimento destes fatores caracteriza-se como
sendo um dos melhores métodos para distinguir as hipóteses em que é necessário a utilização
da concepção básica de “legalidade”, “função administrativa”, “ato vinculado ou
discricionário”, com escopo de conter a atuação estatal e o autoritarismo da Administração,
das situações em que a utilização estanque destes conceitos “paralisa” o gestor e o impede de
adotar saídas mais criativas para contornar os imprevistos que surgem no cotidiano de
implementação de políticas públicas, o que acaba por tornar todo o processo mais custoso e
ineficiente (BUCCI, 2006. P. 15).
Em seguida, e ainda inserido dentro da primeira fase deste trabalho, serão expostas
novas abordagens a respeito da função legislativa (inovadora) exercida pela Administração,
de modo a superar o conceito clássico de que a esta última apenas compete à observância dos
exatos termos contidos na lei (SUNDFELD, 2013, P. 29).
A compreensão desta função pouco estudada nos manuais clássicos permite concluir
que a elaboração de um sistema maleável, caracterizado por uma governança do tipo “bottom
up”, marcada pelo experimentalismo e pela troca de experiências positivas realizadas em
âmbito local, seria mais eficaz do que o sistema de implementação “top down”, no qual uma
autoridade central (no caso brasileiro, Federal) estipula de forma inflexível os parâmetros a
serem seguidos pelos gestores de “ponta”, sob a premissa equivocada de que o sucesso de
uma política pública depende do grau de identidade com o seu desenho inicial (ANNEMBERG,
2014, P. 133-137).
Prosseguindo com esse mesmo raciocínio, a primeira fase deste estudo apresentará
uma sucinta exposição acerca do fato de que a ausência de um arcabouço jurídico propício à
dinâmica inerente ao direito das políticas públicas, bem como a ausência de paradigma
17
jurídico a ser seguido, apesar de poderem ser vistos como um empecilho, oferecem a
oportunidade de “rompimento” com o modelo tradicional de direito administrativo, de modo a
repensá-lo sob a óptica plural e descentralizada, pelo qual se busca soluções pontuais e locais
(experimentalismo) ao invés de a elaboração de um modelo abstrato que seja capaz de
explicar as mais diversas realidades sociais. Tal mudança, dentro do cenário atual, revela-se
ainda mais premente, dado que a própria legitimidade do Estado de proferir normas gerais e
abstratas é colocada em xeque no cenário político-institucional dos dias atuais3 (RODRIGUEZ,
2009, P. 19-21).
Por fim, essa etapa inicial se preocupa em traçar um paralelo entre a carência de
ferramentas institucionais à disposição do gestor e a consequente ineficácia e morosidade
excessiva nos procedimentos de implementação de políticas públicas com o cenário nacional
de crescente judicialização dos controles das políticas públicas, que resulta no ativismo
judicial e desequilíbrio do modelo democrático e federativo de organização do Estado.
Destaca-se, por sua vez, que a segunda etapa deste ensaio irá introduzir uma análise
mais aprofundada a respeito do tema do controle judicial das políticas públicas e suas
implicações deletérias em relação às questões orçamentárias, de distribuição constitucional de
competências e de planejamento do desenvolvimento nacional a longo prazo. Todavia,
conforme já relatado, o leitor deverá sempre se atentar às considerações expostas na primeira
fase da pesquisa elaborada, posto que existe uma relevante conexão entre elas.
Consectariamente, em termos cronológicos de apresentação, inicialmente será
abordada na segunda fase desta monografia, o tópico relativo à questão orçamentária do
controle judicial das políticas públicas, muitas vezes ignoradas pelos operadores do direito
que possuem enorme dificuldade em lidar com a complexidade da matéria.
Em decorrência deste desprezo pelo assunto ou mesmo do despreparo acima
denunciado, verifica-se que os gestores públicos encontram-se submetidos a um cenário
extrema insegurança e com pouco espaço para manobrar a escassez de recursos, pois além de
terem que observar o surgimento de um novo arcabouço de novas regras de gestão,
responsabilidade e governança, ao mesmo tempo, têm que lidar com as cada vez mais
rotineiras investidas do Judiciário, que acabam por dissipar os recursos que se encontravam à
3 Para se aprofundar sobre o tema, recomenda-se a leitura da obra de Faria (1999), que aborda o novo papel do
Estado dentro da Economia Globalizada e da Sociedade Informacional.
18
sua disposição, resultando no manejo ineficiente de verbas apenas com a finalidade de se
adequar às formulas restritivas impostas pela legislação (verbas carimbadas), na tentativa
desesperada de elidir-se das prováveis penalidades que lhe poderão ser imputadas
(BLIACHERIENE, 2010, P. 22).
Não menos importante do que a enorme dificuldade gerada aos gestores das políticas
públicas, deve-se levar em conta que a ingerência do Judiciário nas políticas públicas,
marcada pela ausência de um sério debate em relação à questão orçamentária, acaba por
favorecer o desvio de receitas públicas de áreas prioritárias e o aumento do fenômeno da
corrupção sistêmica (BURGO, 2013, P. 50).
Portanto, sob este aspecto, apesar de louvável, serão ressaltados os motivos que levam
o controle judicial e individual das políticas públicas a causar uma enorme dificuldade em
termos de eficiência na alocação dos recursos públicos, o que apenas dificulta a já hercúlea
tarefa de garantir o desenvolvimento social e os direitos fundamentais consubstanciados na
Constituição Federal.
Posteriormente, sem prejuízo às indagações realizadas a respeito da questão
orçamentária do controle judicial das políticas públicas, será retomado o assunto de vital
importância para a formação de nossa concepção de Estado, consistente no estudo em relação
à ausência de legitimidade democrática da intervenção judicial no controle, implementação e
execução das políticas públicas, sendo que a referida análise terá como ponto de partida a
leitura da Carta Federal de 1988 e do papel conferido ao Poder Judiciário dentro do desenho
constitucional de distribuição de competências.
Isso porque não se pode olvidar que a eleição de determinada área como prioritária
envolve sempre um escolha de cunho eminentemente político, que, portanto, jamais poderá
ser exercida por um Poder que apesar de sujeito à Constituição Federal e às leis, não se
submete ao crivo das eleições e, portanto, não detém a soberania oriunda da vontade do
popular, designada tão somente aos seus representantes eleitos (LOPES, 1989, P. 124).
Desse modo, forçoso reconhecer que a crescente atuação do Judiciário, à luz daquilo
que se denominou como ativismo judicial e judicialização da política tem o condão de
desequilibrar a configuração de distribuição de competências indispensáveis à forma de um
Estado Democrático de Direito, em que competiria aos representantes do povo (Legislativo) à
19
direção política do governo e a tomada de decisão a respeito das políticas públicas, enquanto à
Administração caberia a tarefa de executá-las (BUCCI, 2006, P. 249).
De tal sorte, diante da nossa atual conjuntura social e política é possível imaginar o
quão sedutor aos olhos dos juristas é o ideal de que somente a racionalidade lógico-formal do
direito poderia nos conduzir a um estágio de desenvolvimento satisfatório.
Todavia, será encerrada a segunda fase desta monografia com um alerta de que o
controle judicial das políticas públicas, além de não representar um plano de desenvolvimento
duradouro, também é marcado por um viés nitidamente elitista e refratário ao autogoverno
popular (SARMENTO, 2009, P. 277).
Observadas as elencadas inconveniências da prática de controle judicial das políticas
públicas e suplantando-se às polêmicas relativas à notória descrença e a imputada ineficácia
dos Poderes Legislativo e Executivo, abre-se espaço para uma discussão mais aprofundada do
tema, em que deverá ser construído paulatinamente um efetivo plano de desenvolvimento
social, pautado na discussão interdisciplinar e em um sistema de governança das políticas
públicas maleável e marcado pela abertura ao experimentalismo e troca de experiências
positivas.
Por fim, concluir-se-á este ensaio com uma breve análise a respeito do papel que seria
reservado aos juristas nos processos de implementação, gestão e controle das políticas
públicas. Adverte-se, entretanto, que o presente trabalho não pretende se aprofundar em uma
análise exaustiva deste assunto, vez que se assim o fosse, restariam ultrapassados os
instrumentos teóricos e dogmáticos condizentes ao nível de graduação. Ademais, conforme
ressaltado, o esgotamento do tema exigiria também o aprofundamento em conhecimentos
oriundos de campos interdisciplinares, tais como da sociologia e da ciência política.
Dessa forma, uma vez apresentada o plano esquemático de como será elaborado o
estudo proposto neste trabalho, faz-se oportuna a inauguração do próximo capítulo que se
segue.
20
CAPÍTULO 1 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS: ANÁLISE DO
DISTANCIAMENTO ENTRE A REALIDADE E AS ABORDAGENS
TRADICIONAIS CONTIDAS NOS MANUAIS DE DIREITO
ADMINISTRATIVO
O presente capítulo deste trabalho tem como objetivo precípuo o de situar o leitor,
ainda que de maneira sucinta, defronte à problemática do distanciamento e ineficácia das
abordagens tradicionais previstas pelo direito administrativo, da prática vivenciada pelos
gestores e juristas que buscam implementar as políticas públicas.
Nesse contexto, é importante ter em mente que o modo dinâmico como o direito das
políticas públicas é operado na prática, é muito distante da maneira estática como é
apresentado e sistematizado nos manuais de direito administrativo (ANNENBERG, 2014). Por
esse motivo, a abordagem mais tradicional não é capaz de auxiliar na compreensão e
avaliação desse fenômeno, bem como não serve como base norteadora para os gestores e
juristas que atuam no setor.
Em outras palavras, quando os gestores se deparam com dificuldades técnicas na
concretização prática das políticas públicas, os manuais teóricos não fornecem subsídios
adequados para que estes possam pautar a sua decisão, tendo em vista que as opções ali
previstas são demasiadamente estáticas e, portanto, inadequadas às particularidades e
necessidades do caso concreto e, nesse sentido, as alternativas apresentadas pela academia
representam tão somente “apetrechos enferrujados” aos gestores (BUCCI, 2009, P. 16).
1.1 Abordagem do tema
Evidencia-se, nesse cenário, que a implementação e gestão de políticas públicas no
Brasil vem sendo realizada em dissonância com os conceitos jurídicos previstos nos manuais
de direito administrativo, o que faz com que os manuais teóricos apresentem pouco potencial
explicativo da realidade das práticas cotidianas da burocracia estatal.
21
Isso porque, os aludidos processos não possuem correlação com as explicações
jurídicas contidas nos supracitados manuais e tampouco podem ser descritos pelo raciocínio
jurídico tradicional.
Em decorrência dessa ausência de subsídios teóricos é possível vislumbrar que o
gestor que atua no setor de implementação de políticas públicas encontra-se submetido a um
quadro diagnóstico de carência de ferramentas adequadas e flexíveis à sua disposição.
Ademais, as categorias trabalhadas no direito administrativo, sobretudo no que se
refere àquelas que envolvem a temática relacionada às funções entre os poderes democráticos
e os mecanismos de controle externo4, tradicionalmente descritos como “pesos e
contrapesos”5 são tratadas de forma demasiadamente estática, sem captar as nuances e
modificações ocorridas na concepção clássica do Poder Excutido e da Administração Pública,
que hodiernamente são responsáveis por desempenhar “um amplo papel normativo, fazendo
normas gerais e abstratas (os regulamentos), semelhantes às leis em vários aspectos
importantes” (SUNDFELD, 2013, P. 29).
Na tentativa de explicar o mencionado desligamento entre a forma com que o direito é
teoricamente sistematizado e classificado, do modo como ele é operacionalizado na prática
Annenberg afirma que:
Essas categorias, [...] carregam problemas de duas ordens: epistemológica e prática.
O direito administrativo, enquanto disciplina que visa, entre outros objetivos,
orientar a ação do Estado nas políticas públicas tem dificuldades até mesmo para dar
o primeiro passo, qual seja, descrever e explicar essas políticas. Tais problemas se
devem principalmente ao fato de que falta aos manuais uma dimensão de análise
aplicada que dê à implementação das políticas públicas centralidade na análise
(ANNENBERG, 2014, P. 128).
Seguindo a mesma esteira de raciocínio, Coutinho aponta como outra possível causa
para a dissociação entre a teoria e a prática:
4 Exemplos das principais categorias relacionadas à temática abordada no presente trabalho são “função
administrativa”, “legalidade”, “discricionariedade e vinculação” e “ato administrativo”. 5 Modelo clássico de limitação do Poder elaborada pelo pensador clássico francês Montesquieu, pelo qual se
busca controlar o abuso de poder por meio de uma fiscalização mútua exercida entre os demais órgãos do
Estado, com o objetivo último de se garantir a liberdade política.
22
A relação um tanto ambígua com o campo transversal das políticas públicas. Se, de
um lado, quando desempenham os papéis de gestores, administradores ou
procuradores, os juristas interagem com elas intensamente (moldando-as e
operando-as), de outro lado delas mantêm, como cientistas sociais, uma reveladora
distância. Essa relação simultânea de proximidade (prática) e distância (acadêmica)
entre o direito e o campo das políticas públicas brasileiras seguramente tem muitas
causas. Algumas delas estão, acredito, relacionadas a certos traços do ensino jurídico
que temos, que embora venha se dedicado a formar magistrados, advogados,
promotores, procuradores, defensores políticos, autoridades públicas e políticos há
quase dois séculos, não se propôs, especificamente, a formar profissionais do direito
preparados para estruturar, operar e aprimorar políticas públicas e programas de
ação governamental (COUTINHO, 2013, P. 183).
Mas não é só. Alia-se a esse distanciamento o fato de que a formação dos operadores
do direito não apresenta caráter multidisciplinar e, desse modo, não se aprofunda no estudo
das demais ciências sociais, tais como a sociologia, antropologia, economia, etc, cujo
conhecimento é indispensável para real compreensão das políticas públicas, marcadas pela
interdisciplinaridade de disciplinas.
Assim, é possível perceber que o ensino jurídico no Brasil é tido como:
Pobre de conteúdo e pouco reflexivo, [...] hoje se destaca por uma organização
curricular meramente “geológica”. O que se espera dos professores dos primeiros
anos (...) é a oferta de informações não problematizantes, um conhecimento claro e
evidente, à força de tanta repetição, mas desatualizado e alienado com relação às
condições reais do país; um conhecimento ‘receita-de-doce’, que propicia aos
professores dos anos seguintes lecionar sobre estratos sucessivamente mais técnicos,
mas nem por isso mais atualizados ou ensinados com rigor metodológico (FARIA,
1995, P. 102).
Outro fator importante para o surgimento desse distanciamento reside na elaboração
teórica do direito administrativo, de que a atuação da Administração Pública se dê sob óptica
eminentemente negativa, ou seja, busca-se delimitar aquilo que não pode ser feito pela
Administração na tentativa de conter a discricionariedade do Estado ao invés de elaborar
caminhos e possibilidades mais eficazes para a sua atuação, de maneira a coordenar os seus
esforços (BUCCI, 2006, P.11).
Se por um lado é possível compreender que as abstrações e generalizações do direito
administrativo cumprem com o seu papel didático de simplificar a matéria aos estudantes de
direito, por outro lado não se pode esquecer que os gestores públicos, ao implementarem uma
23
determinada política pública, muitas vezes se deparam com imprevistos e dificuldades
inesperadas, cuja solução geralmente não está prevista no “leque de possibilidades” ofertado
pelos manuais teóricos, uma vez que tais estudos apresentam uma série de lacunas em virtude
de sua natureza excessivamente generalista e estanque, conforme já noticiado.
Posto isto, durante a vivência prática, a funcionalidade destes diplomas eminentemente
teóricos acaba por ser esvaziada, o que faz com que as tomadas de decisões sejam feitas sem
qualquer embasamento teórico, mas apenas com observância dos costumes e procedimentos
usualmente estabelecidos pelos profissionais que atuam no setor.
Outra deficiência importante contida nos manuais de direito administrativo e que ajuda
a explicar o distanciamento acima denunciado, é o fato de que as linhas doutrinárias mais
tradicionais ainda continuam a seguir o entendimento de que os administradores públicos não
passariam de meros “braços mecânicos do legislador” (SUNDFELD, 2013, P. 133).
Tal entendimento também é adotado nos manuais de direito constitucional que
pontuam que “em razão do princípio da legalidade os órgãos estatais não só devem abster-se
de atuar contra legem mas estão adstritos a não agir senão secundum legem, não cabe decisão
individual que não seja conforme uma prescrição legal” (FERREIRA FILHO, 2009, P. 24).
Veja-se que com essa observação não se pretende relevar a segundo plano a
importância fulcral da lei stricto sensu como elemento indispensável para pautar e dirigir a
atuação estatal e estabelecer os objetivos políticos do governo, uma vez que é ela quem
confere legitimidade a todo processo – única fonte que advém do espaço de discussão
democrática do Legislativo, mas apenas alertar que a adoção dessa visão engessada,
sobretudo, diante do dinamismo próprio da implementação e gestão de políticas públicas, faz
com que os referidos processos fiquem “reféns” do quanto estabelecido pela legislação, que
obviamente não é capaz de antecipar todos os pormenores e detalhes que certamente irão
surgir durante a atuação administrativa (BUCCI, 2006, P. 15).
E, mais, impende notar, no mesmo sentido, que a administração também possui função
criadora e não meramente executora, pois “administrar é também criar, a partir das leis”
(SUNDFELD, 2013, P. 137).
Apenas para deixar estreme de dúvidas, antes de iniciar a análise mais profunda do
tema, há que ressaltar que as ponderações feitas neste trabalho de forma alguma pretendem
criticar os autores e teóricos do direito administrativo ou suas obras, mas apenas demonstrar
24
como a problemática do distanciamento teórico da prática de implementação das políticas
públicas deixa importantes lacunas que hodiernamente são preenchidas pela atuação do Poder
Judiciário, cuja delimitação será abordada no próximo capítulo.
Destarte, tendo sido feitas estas ponderações iniciais sobre o tema tratado no presente
capítulo, agora faz-se imperativo adentrar de vez em sua análise, esmiuçando de forma
pormenorizada o paradoxo consistente na cisão entre aqueles que operacionalizam a
implementação das políticas públicas e aqueles que a estudam e, portanto, detém expertise
teórica sobre ela.
Munido do esclarecimento alhures, importa consignar que o primeiro ponto que
contribui para a formação do quadro acima denunciado é a conceituação a respeito da
separação dos poderes e do princípio da legalidade.
Isso porque os manuais de direito administrativo geralmente costumam classificar o
direito administrativo como “conjunto de normas e princípios que regem a atuação da
Administração Pública” (MEDAUAR, 2012, P. 40)6.
Dessa classificação, é que surgem as categorias do direito administrativo que envolve
as relações entre o Poder Executivo e os demais poderes democráticos, quais sejam, o
Legislativo e o Judiciário7.
Todavia, a classificação e a sistematização atual têm-se revelado particularmente
insensível em relação à compreensão das novas funções e finalidades do Estado (sobretudo de
sua função Executiva) e as mudanças histórias no seu papel na construção das políticas
públicas e, por conta disso, é que o direito administrativo encontra séria dificuldade em
estabelecer a composição adequada entre “poder discricionário e certeza jurídica, eficácia na
gestão pública e segurança do direito” (FARIA, 1999, P. 179).
6 Em sua obra, Anneberg (2014) pontua que existem diversas definições diferentes sobre o conceito de “direito
administrativo”, mas a definição de Medauar reúne os principais elementos comuns das demais classificações e,
por isso, foi escolhida para sintetizá-las. 7 Nesse ponto, conforme as palavras de Coutinho (2013), importante destacar que o direito administrativo
brasileiro encontra-se marcado por viés nitidamente liberal, ou seja, de caráter “predominantemente negativo”
voltado ao objetivo de contenção da discricionariedade estatal em detrimento da busca pela coordenação e
efetividade de sua atuação.
25
Alia-se a essa dificuldade de entender as novas finalidades e objetivos do Estado, “um
subconjunto de problemas epistemológicos e práticos em torno do anacronismo de algumas
categorias jurídicas do direito administrativo brasileiro” (COUTINHO, 2013, P. 190).
Retomando a questão do anacronismo das categorias do direito administrativo que se
encontram na intersecção entre Poderes, vale colacionar o salutar apontamento realizado por
Sundfeld, que esclarece de forma concisa e em um único encadeamento, as grandes categorias
estudadas pelos administrativistas clássicos:
O Executivo exerceria uma função administrativa, atuando sempre sob a legislação
feita pelo Poder Legislativo (princípio da legalidade) e sob controle do Judiciário,
salvo quanto ao exercício da margem de liberdade que lhe seja deixada pela lei
(discricionariedade, o contrário de vinculação) (SUNDFELD, 2013, P. 21).
Ressalta-se que a partir dessa elaboração é que os estudiosos do tema puderam
arquitetar a classificação das funções do direito administrativo, divididas da seguinte forma:
“função legislativa, com produção de normas gerais e abstratas, função judicial, enquanto
atuação imparcial que depende de provocação externa e, novamente, função administrativa,
qual seja, a autuação estatal residual e burocrática subordina às leis e ao controle dos juízes”
(ANNENBERG, 2014, P. 130).
Entretanto, tal sistematização estática vem sendo colocada em xeque8, uma vez que
não consegue explicar a efetiva atuação da administração, principalmente quando esta planeja,
implementa e executa as políticas públicas, ocasião em que se faz necessário a elaboração de
amplo conteúdo normativo, de modo a adequar o processo às particularidades de cada caso,
ou, nas palavras de Bonavides:
Chegamos, de nossa parte, a essa conclusão: a teoria da divisão dos poderes foi, em
outros tempos, arma necessária da liberdade e afirmação da personalidade humana
(séculos XVIII e XIX). Em nossos dias é um princípio decadente na técnica do
constitucionalismo. Decadente em virtude das contradições e da incompatibilidade
em que se acha perante a dilatação dos fins reconhecidos ao Estado e da posição em
que se deve colocar o Estado para proteger eficazmente a liberdade do indivíduo e a
sua personalidade (BONAVIDES, 2007, P. 86).
8 Autores como Bucci (2006), Coutinho (2013) e Annnemberg (2014) também apresentam um posicionamento
crítico em relação a delimitação estanque geralmente prevista nos manuais de direito administrativo.
26
E, mais, deve-se atentar para a crítica realizada por Dallari em relação à divisão
clássica de poderes e suas respectivas funções:
Os três Poderes que compõem o aparado governamental dos Estados
contemporâneos, sejam ou não definidos como poderes, estão inadequados para a
realidade social e política de nosso tempo. Isso pode ser facilmente explicado pelo
fato de que eles foram concebidos no século dezoito, para realidades diferentes,
quando, entre outras coisas, imaginava-se o “Estado mínimo”, pouco solicitado,
mesmo porque só uma pequena parte das populações tinha a garantia de seus
direitos e a possibilidade de exigir que eles fossem respeitados. Esse desajuste, sob
certos aspectos, é ainda acentuado quanto ao Judiciário (DALLARI, 2007, P. 1).
Pois bem. No cenário atual é possível perceber a necessidade de que a administração,
especialmente quando esta atua nos processos de implementação de políticas públicas,
complemente as lacunas deixadas pela legislação, sendo que tal processo se dá por meio da
elaboração de decretos, resoluções e portarias (DI PIETRO, 2012, P. 240).
Assim, na seara das políticas públicas, diversas vezes a atuação do Poder Público não
pode ser explicada pelo conceito de princípio da legalidade, tão caro aos administrativistas.
Uma vez que, em certas ocasiões, as particularidades do caso concreto, não previstas quando
da elaboração da lei geral que estabelece/planeja determinada política pública, impõe ao
gestor a necessidade de restringir, condicionar e conceder direitos não previstos na lei
instituidora, sem que isso configure qualquer tipo de nulidade procedimental, mas apenas uma
contingência de implementação (ARRETCHE, 2001, P. 52).
Esse fato releva-se especialmente dissonante da concepção clássica do supracitado
princípio da legalidade9, que obriga à administração a atuar de maneira “complementar e
sublegal”, ou seja, em “completa submissão às leis” (BANDEIRA DE MELLO, 2012. P. 104).
Seguindo a linha de raciocínio dos teóricos clássicos, não restaria alternativa à
administração senão aguardar que o Legislativo emanasse uma nova legislação que abarcasse
9 Ressalta-se que o temor e o receio do direito administrativo de que a Administração Pública atue de modo
autoritário é completamente legítima, ainda mais se levarmos em consideração o nosso passado recente de
governos despóticos e autocráticos. Em contrapartida, deve-se considerar que em determinadas hipóteses, a
administração não atua como mero braço executório da lei, mas em busca da garantia de mais direitos sociais
(políticas públicas), ou seja, em favor de toda a coletividade e, particularmente nestes casos, a sua atuação não
pode ser explica pela concepção stricta do aludido princípio.
27
as excepcionalidades contidas em cada caso concreto, sob pena de que fosse declarada a
nulidade de todo o procedimento.
Ocorre que na prática, a adoção desse entendimento resultaria na impossibilidade de
implementação e gestão das políticas públicas, bem como anularia o poder estatal de conduzir
e planejar a concreção dos direitos sociais consubstanciados em nossa Constituição Federal.
Portanto, no tocante ao direito das políticas públicas, deve ser levado em consideração
toda a dinâmica particular desse nicho que envolve constante coordenação de um vasto
conjunto de atores, que planejam, implementam, adaptam e modificam a todo momento (e de
forma concomitante) os critérios propostos e, que dessa forma, não podem ficar estritamente
vinculados aos termos da lei geral e abstrata.
Isso sem falar que a proximidade com o objeto, representa “uma vantagem nesse modo
de funcionamento, pois a elaboração de normas no âmbito burocrático caracteriza-se por um
maior comprometimento dos atores envolvidos no processo e pela maior coerência com a
totalidade do arcabouço normativo do programa” (ANNENBERG, 2014, P. 132).
Em complementaridade à problemática da sistematização das categorias de direito
administrativo, decorrentes da concepção tradicionalista de divisão de poderes, também deve
ser objetivo de questionamento, a abordagem frequentemente adotada no sentido de que as
políticas públicas seguem um curso linear desde a sua concepção até efetiva implementação e
manutenção.
Segundo essa corrente de pensamento, os procedimentos de implementação iniciam
com a formulação de diretrizes por parte do Poder Legislativo e do governo e são finalizados
pela Administração, a qual compete, tão somente, a função de colocar em prática o quanto
determinado pelos legisladores, nos exatos termos programados.
Vislumbra-se, pois, que há pouco espaço para experimentações nessa linha de
raciocínio, uma vez que se parte da premissa equivocada de que o sucesso de uma política
pública depende do fiel cumprimento do plano idealizado pelo legislativo e não dos resultados
empíricos obtidos.
Por outro lado, o campo da ciência política já desenvolveu a teoria de que a distância
entre o desenho de um programa e as intervenções públicas que traduzem esse desenho é
somente uma contingência de implementação perfeitamente natural, porquanto as políticas
28
públicas geralmente passam por modificações quando da sua efetiva implementação, ou seja,
a etapa de formulação não passa de um estágio transitório na ‘vivência” de uma política
pública.
De fato, aduz-se que os escopos das políticas públicas fatalmente são modificados
durante o decorrer de sua fase de implementação em virtude de fatores que não poderiam ser
previstos em sua fase de planejamento, o que, por sua vez, faze que o plano inicialmente
projetado tenha que ser redesenhado para se adequar às necessidades particulares do caso
concreto.
Pires (2010) ainda conclui em sua pesquisa que essa ação discricionária por parte dos
implementadores não deve ser encarada de forma negativa, pois permite a descoberta de
soluções para os problemas cotidianos da burocracia, independentemente de sua
complexidade, que não poderiam ser antecipados desde o começo, o que melhora
significativamente a eficácia das políticas públicas.
O sincretismo entre as fases de planejamento e execução das políticas públicas impõe
que esta última etapa conte com ferramentas e desenhos institucionais mais flexíveis e
maleáveis, consonante aponta Coutinho em sua obra:
Essa visão fragmentária impõe limitações severas à compreensão de políticas
públicas como planos de ação prospectivos que, para serem efetivos e eficazes,
precisam de alguma dose de flexibilidade e revisibilidade (isto é, serem dotados de
mecanismos de autocorreção), já que estão em permanente processo de
implementação e avaliação (COUTINHO, 2013, P. 187).
Permitir uma atuação estatal mais arrojada e maleável não implica necessariamente na
ocorrência de abusividade ou desvios de finalidade, uma vez que a adoção de tal modelo não
importa na desconsideração e inobservância dos limites de contenção da arbitrariedade da
Administração, mas somente a transferência desta função controladora para novos atores.
Ao contrário, o que se percebe na prática, é que a limitação excessiva da
discricionariedade quando da implementação de políticas públicas não é o melhor caminho,
pois amarra o gestor e o impede de adotar as alternativas mais eficazes e adequadas ao caso
concreto.
29
Percebendo essa diferença, Bucci ainda afirma que “a exteriorização da política
pública está muito distante de um padrão jurídico uniforme e claramente apreensível pelo
sistema jurídico” (BUCCI, 2006, P. 257).
Sendo assim, no que se refere ao campo das políticas públicas, é possível ultimar que a
efetividade na atuação da Administração é diretamente proporcional à flexibilidade
procedimental contida na fase de implementação e do rol de possibilidades à disposição dos
gestores.
Isso porque, em virtude do aumento da complexidade das relações sociais juntamente
com surgimento de uma nova concepção de Estado desenvolvimentista (FARIA, 1999), ao
invés de se pregar a obediência de um modelo pré-determinado, desenvolvido sob outras
circunstâncias sociais, econômicas e culturais, passou-se a incentivar que cada país desenhe o
seu próprio modelo institucional por meio da dinâmica de experimentação em que o
aprendizado e a aquisição de conhecimento detêm a centralidade das políticas públicas.
A constatação acima exposta pode ser facilmente verificada por meio das observações
e conclusões contidas na análise de caso sobre a implementação do Programa Bolsa Família
(ANNENBERG, 2014).
Ainda, de acordo com o estudo conduzido por Trubek, Coutinho e Schapiro (2013)10,
bem como diversos estudos encabeçados por teóricos estrangeiros11, restou bem comprovada
a eficácia superior das abordagens experimentalistas na condução das políticas públicas.
10 Os autores desta obra chegam à conclusão que o novo cenário jurídico-político-econômico mundial exige que
o direito assuma o papel de permitir a abordagem de novas alternativas, privilegiando a experimentação e
fomentando a inovação, tudo isso com a finalidade de facilitar o intercâmbio de informação entre os
experimentos realizados. Em outras palavras, o novo conceito de Estado demanda a criação de um regime
jurídico aberto que possibilite o aprendizado constante e que privilegie a autoanálise e a correção rotineira dos
objetivos e rumos de uma determinada política pública.
11 Lobel (2005) aponta que existe um novo modelo de implementação de políticas públicas em que há menos
imposição de cima para baixo (top-down) e em que são privilegiadas as políticas realizadas na esfera local. Tal
modelo adota o tratamento reflexivo e adaptável, em que se prega a descentralização e fomento de
experimentações no âmbito local das políticas públicas, como forma de testar as mais diversas abordagens para a
obtenção de resultados melhores.
Sabel e Simon (2011) realizaram um estudo empírico sobre modelos tidos como “experimentalistas” e
“minimalistas”, em que se chegou à conclusão que as abordagens minimalistas que almejam à elaboração de
normas e institutos que possam frear a discricionariedade e estabelecer pouco espaço de atuação para os gestores
locais, com a finalidade de se obter de metas baseadas no critério de custo-benefício são menos eficientes e
profícuas do que as abordagens experimentalistas, nas quais se nega a adoção de respostas burocráticas padrões e
30
Outro aspecto imprescindível para compreensão da problemática tratada no presente
capítulo, diz respeito às leituras mais tradicionais do direito administrativo que enxergam os
fatos e problemas encarados no cotidiano da burocracia estatal sob a dicotomia: jurídico ou
não jurídico, permitido ou não permitido. A partir desta noção é realizada a leitura das
grandes categorias administrativas (abrangentes), tais como “direitos”, “deveres”, “normas”,
“nulidades” e “sanções”, que servem de base para a conduta do Poder Público.
No entanto quando se fala do direito das políticas públicas, surge um grande desafio
de categorizar determinado fato ou situação dentro das supracitadas categoriais gerais e
abstratas, tendo em vista que na prática é possível encontrar diversas figuras “que na verdade
não se tratam exatamente de direitos, nem deveres, que causam efeitos diferentes de punições,
que são controlados pela esfera pública em geral e não apenas por uma autoridade”
(ANNEMBERG, 2014, P. 135).
Alia-se à essa dificuldade de sistematização de figuras atípicas, o problema de
definição de competência, porquanto se de um lado temos que o pressuposto de validade de
um ato ou decisão administrativa depende da competência da autoridade que o proferiu, por
outro lado temos que as mais recentes políticas públicas necessitam de delimitações mais
complexas e que exigem a articulação entre múltiplos atores do setor público, divididos entre
as três esferas federativas, bem como a participação de organismos da sociedade civil.
Entretanto, as sistematizações mais restritivas concebem o conceito de competência de
maneira bem limitada e sinalizam para a impossibilidade de se realizar acordos para que esta
seja reduzida ou ampliada:
A competência, como se sabe, não se presume (requer texto legal expresso), é
improrrogável e intransferível, salvo previsão legal ou disposição hierárquica, é de
exercício obrigatório (portanto, irrenunciável e intransigível, pelo princípio da
indisponibilidade do interesse público, não podendo ser objeto de pactos que a
reduzam ou impeçam o seu exercício (ARAÚJO, 2010, P. 496).
existe a predileção por mecanismos que garantam oportunidades de aprendizado e adaptação, em que as
instituições centrais apenas estabelecem objetivos gerais e dão ampla margem de atuação para os agentes locais.
Por sua vez, o trabalho elaborado por Pires (2010) pode concluir que a melhoria de performance dos burocratas
não está atrelada tão somente à incentivos comportamentais (recompensas e prêmio) mas também à possibilidade
de revisão de processos e redefinição das rotinas de trabalho quando estas se tornarem um empecilho para a
consecução dos resultados almejados.
31
Ocorre que esse cenário de intrincado desenho institucional funciona melhor com a
previsão de uma “ação articulada do que atribuição de competências bem delimitadas e
inflexíveis” (ANNENBERG, 2014, P. 136), conforme tradicionalmente previsto pelos teóricos do
direito administrativo.
Como é possível de se imaginar, outro aspecto importante que contribui para o quadro
acima denunciado de inefetividade na implementação das políticas públicas, é a submissão
dos administradores e gestores que atuam no setor, à uma ampla gama de órgãos
controladores, tais como (órgãos fiscalizadores, autoridades, opinião pública e a imprensa).
Esse cenário faz com que os operadores do direito sejam demasiadamente conservadores, em
virtude do fato de que as ações pioneiras geralmente são malvistas pelos referidos órgãos
controladores e, portanto, costumam ser rejeitadas pelos advogados que atuam junto à
Administração12.
Por isso, o pensamento jurídico acostou-se a tratar a questão da discricionariedade não
como a busca pela melhor solução para o problema, mas sim como a simples obediência aos
parâmetros meramente formais relacionados ao binômio de atos vinculados/discricionários e
a observância dos critérios13 que disciplinam a liberdade de atuação da Administração.
12 A respeito do tema, Coutinho (2013) pontua que “embora seja importante reconhecer que políticas públicas
requerem um certo grau de liberdade ou de margem de manobra e adaptação por parte dos agentes públicos (por
exemplo, na escolha de meios alternativos e concorrentes para a realização de objetivos ou na opção por esta ou
aquela solução para dado problema identificado ao longo da implementação da política), a doutrina jurídica
brasileira, ao tratar da discricionariedade, parece estar mais preocupada com a busca do que são, intrinsecamente,
atos vinculados ou discricionários, ou com o delineamento de critérios para disciplinar a liberdade de escolha do
agente público e, por isso, menos engajada em ajudá-lo a tomar a melhor decisão dados os constrangimentos
reais que a realidade impõe”. 13 Annenberg (2014) relaciona o fato de que os renomados autores de direito administrativo, no caso Di Pietro
(2012), asseveram que os parâmetros que disciplinam a liberdade de escolha dos agentes públicos estão
relacionados à critérios de competência, formais e de finalidade, o que, por sua vez, corroboram o entendimento
esboçado por Coutinho (2013), tendo em vista que a priori busca-se justificar a existência da discricionariedade
por meio de explicações jurídicas e empíricas, para depois restringir o seu âmbito de aplicação, sistematizando as
diversos embasamentos da discricionariedade (competência, forma e finalidade). No que se refere à
competência, Di Pietro (2012) afirma que a discricionariedade pode estar ligada à escolha de quanto a prática do
ato vai ser realizada e na definição de seu conteúdo e de sua motivação, mas jamais à escolha do sujeito (sempre
vinculada). No tocante à finalidade, a autora conclui que pode haver discricionariedade apenas se a finalidade for
analisada sob aspecto macro (interesse público), nunca se ela estiver sendo investigada sob o aspecto restrito
(resultado específico que decorre da lei), todavia, ressalta que existe grande dificuldade de se averiguar na
prática, todas as hipóteses em que a utilização de conceitos indeterminados implica necessariamente na
possibilidade de discricionariedade para a Administração. Quanto ao último parâmetro, qual seja a formalidade,
Di Pietro pontua às vezes existe a possibilidade de a Administração escolher o meio utilizado (decreto,
resolução, portaria, etc.), mas geralmente é a própria lei quem define aquilo que pode ser regulado por decretos,
resoluções, etc.
32
Esse tipo de pensamento dificulta a invenção de desenhos de políticas públicas mais
ousados e diferentes da mera reprodução do que sempre foi feito e aceito. Existe um
desestímulo à utilização de “testes” no decorrer da implementação, pois aposta em
tentativas e erros faz uso do experimentalismo que, na perspectiva jurídica
tradicional, deve ser contido. Isso está relacionado ao fato de esse direito
administrativo volta-se à limitação do poder de modo que antes se preocupa com o
que não é permitido em vez de abrir caminho para soluções criativas preocupadas
com algo que se precisar fazer poder ser feito (sic) (ANNEMBERG, 2014, P. 137).
No mesmo sentido, o receio excessivo dos gestores, juntamente com preocupação com
o atendimento de aspectos meramente formais por parte da Administração determina:
Como resultado, o binômio ou “pode/não pode” prevalece, em suma sobre a
discussão sobre “como se pode” alcançar objetivos na administração pública. E em
grande medida isso tem relação com o fato de que gestores públicos, juristas ou não,
temem que as razões práticas e funcionais que dão para justifica esta ou aquela
medida sejam questionadas por órgãos de controle, como os tribunais de contas
(COUTINHO, 2013, P. 188).
A existência de um rigoroso controle, apesar de ter significado um grande avanço em
diversas áreas do direito administrativo, no sistema de implementação de políticas públicas,
ele deve ser construído de maneira diversa do que aquela usualmente adotada, ou seja,
elegendo-se como objetivo basilar não só a fiscalização, mas também a interação e a análise
dos programas sociais, promovendo-se, da mesma forma, uma maior interação entre a
sociedade civil e a Administração Pública e, por consequência, fomentando mais que uma
atuação meramente fiscalizatória, mas uma verdadeira troca de informações de forma ampla e
paritária.
Outro problema presente na concepção clássica do direito administrativo é o da
posição de superioridade do Poder Público em relação ao particular, pelo qual é construído o
entendimento de que a administração deve contar com poderes especiais (SUNDFELD, 2013,
p. 22).
Isso porque, a transposição desse entendimento para o direito das políticas públicas
afasta o interesse do particular de tomar participação do processo de implementação de
programas sociais, pois na ocorrência de qualquer imprevisto, sabidamente haverá um
desequilíbrio entre as partes envolvidas, que irremediavelmente resultará em prejuízo para os
administrados.
33
Importante sedimentar que em última análise, é interesse de toda a sociedade que as
políticas públicas promovidas pelo governo sejam implementadas de maneira mais eficiente,
de modo a garantir os melhores resultados possíveis. Entretanto, para que isto ocorra é
necessário que haja uma articulação entre diversos atores, inclusive da sociedade civil,
conforme estudado neste capítulo.
Destarte, o raciocínio que projeta uma diferença hierárquica entre a Administração e
os particulares, especialmente quando se fala de direito das políticas públicas, ao invés de
cumprir com a sua função de garantir a consecução do interesse público acaba por fazer
exatamente o contrário, porquanto dificulta a participação da sociedade civil na elaboração e
implementação de políticas públicas, que, dessa forma, ficam impossibilitadas de serem
arquitetadas sob um desenho institucional mais entrelaçado e participativo, cuja eficiência é
significantemente superior14.
Ante todo o exposto no presente capítulo, pode-se aduzir que o modo como as
categorias do direito administrativo são tradicionalmente teorizadas no Brasil é muito distante
da realidade vivenciada pelos gestores que trabalham na prática de elaboração e
implementação de políticas públicas.
Essa assertiva decorre de problemas que vão desde questões relacionadas ao ensino jurídico
pobre que negligência o papel de coordenador e articulador desempenhado pelos operadores
de direito e juristas no desenho institucional das políticas públicas, que, desse modo, deveriam
ser o responsáveis por determinar aspectos centrais destas políticas, como, por exemplo,
atribuir funções e tarefas aos mais diversos atores, estabelecer competências, promover a
interlocução entre os atores envolvidos, reunir informações a respeito de modelos bem
sucedidos e difundi-los aos demais agentes que trabalham cotidianamente no setor. Até
mesmo de problemas epistemológicos de conceituação e definição do próprio objeto
trabalhado no presente capítulo.
Pois, se de um lado os autores administrativistas clássicos adentram com pouca
profundidade ao tema e por conta disso possuem grande dificuldade em elaborar a própria
14 Coutinho (2013) aponta que as investigações feitas por Lobel (2004) sobre o sistema de implementação de
políticas no cenário norte-americano identificou que a existe uma necessidade de superação das tendências
regulatórias mais tradicionais que preveem a imposição “rígida” e “top down” - baseadas em instrumentos de
comando-e-controle e sanções punitivas - em uma forma de governança “bottom up” pela qual se privilegia as
soluções empíricas encontradas em âmbito local e a também compartilhamento de atividades e funções entre os
atores públicos e privados, superando-se o entendimento de que estas somente podem ser executadas por entes
públicos. Tal mudança se faz necessária como primazia para a obtenção de melhores resultados na
implementação das políticas públicas.
34
conceituação de política pública, chegando ao ponto de ventilar o entendimento de que
políticas públicas é a mera sucessão de atos administrativos sucessivos ou, “um conjunto de
atos unificados por um fio condutor que os une ao objetivo comum de empreender ou
prosseguir de um dado projeto governamental para o País” (BANDEIRA DE MELLO, 2010, P.
821).
Por outro lado, os autores que se aprofundaram na pesquisa do tema, detêm uma visão
perceptivelmente mais atrelada à vivência prática da burocracia estatal e do modo como as
políticas públicas são efetivamente implementadas e, por conta disso, são mais eficazes para
explicar os fenômenos que ocorrem na realidade, conforme se pode depreender da definição
elaborada por Maria de Paula Dallari Bucci:
Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou
conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de
planejamento, processo de governo, processo de orçamento, processo legislativo,
processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à
disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos
socialmente relevantes e politicamente determinados.
Como tipo ideal, política pública deve visar à realização de objetos definidos,
expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua
consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados
(BUCCI, 2006, P. 39).
Este panorama evidencia todo o anacronismo com que são tratadas diversas categorias
jurídicas do direito administrativo, bem como demonstra a flagrante limitação dos manuais
teóricos que além de não apresentarem capacidade explicativa da realidade, também não
apresenta instrumentos e soluções úteis aos gestores envolvidos em questões de ordem
concreta.
Sem prejuízo ao quanto acima destacado, cabe notar que a sistematização estanque
contida nos mencionados manuais clássicos, da mesma forma despreza o fato de que o
ordenamento jurídico vem sofrendo profundas transformações desde o surgimento dos
governos neoliberais e a crise institucional do Estado contemporâneo, que hodiernamente
desempenha muito mais a função de “corretor de falhas de mercado e vetor de promoção de
eficiência econômica do que o papel de estruturar mercados, formular planos de ação e
implementar políticas públicas” (COUTINHO, 2013, P. 188).
35
Em razão dessa remodelagem do papel do Estado é possível perceber que os governos
passaram a se preocupar não somente com a consecução dos direitos sociais, mas
principalmente com permitir condições adequadas para o desenvolvimento econômico:
A ser menos caracterizado (o Estado) por metas substantivas – certo objetivos
macroeconômicos, como o pleno emprego, ou sociais, como a redistribuição da
renda, por exemplo - uma vez que sua racionalidade vai se tornando
progressivamente procedimental, “facilitadora” e descentralizada (em oposição à
racionalidade substantiva, centralizadora e finalística do Welfare State). [...] as
técnicas de prescrição e indução de comportamentos voltados a objetivos de
interesse social passam a conviver a proliferação de normas que definem
procedimentos, estruturam competências e asseguram as “regras do jogo” capitalista
(FARIA,1999, P. 195).
A soma dos fatores descritos anteriormente, quais sejam o anacronismo das categorias
do direito administrativo clássico e a crescente complexidade das relações sociais, fazem com
que seja necessária a remodelagem da teoria clássica, de modo que os administradores e
gestores públicos tenham à sua disposição um arcabouço jurídico maleável, que prime pela
realização de experimentações e análises com a agregação de resultados positivos e, ao
mesmo tempo, possa garantir os instrumentos de governança democrática, bem como a
fiscalização e o controle de contas.
Dessa forma, com base na análise de todo os fatores apresentados neste capítulo,
constata-se que o direito administrativo deve continuar funcionando como mecanismo de
contenção e proteção do indivíduo em face dos atos imperativos da Administração, entretanto,
deverá ser repensado, sobretudo, para que possa servir, no futuro, “como uma espécie
tecnologia de implementação de políticas públicas, gestão de programas de ação complexos,
inter setoriais e articulados” (COUTINHO, 2013, P. 192).
1.2 Ineficácia sistêmica como fator determinante para crescente atuação do Judiciário
Importante entender, por derradeiro, que esse cenário de ineficácia sistêmica –
catalisada pelo distanciamento entre as categorias estanques e a realidade dos processos de
implementação de políticas públicas, contribui sobremaneira para o quadro de morosidade
experimentado nestes processos e de pouca efetividade na sua condução, que, aliado com a
morosidade legislativa e o pouco interesse político em resolver as grandes questões sociais,
36
fazem com que o Poder Judiciário venha “se tornando, paulatinamente, o foro principal para
cobrar dos Governos a implementação de políticas públicas” (MENDES, 2008, P. 22).
Nota-se, dessa forma, que o discurso jurídico brasileiro passou a auto proclamar que
vivenciamos a “era do Judiciário”15 e que “não é só o Judiciário brasileiro que está em alta, é
o Judiciário no mundo. Tivemos o século do Executivo e o século do Legislativo. Este é o
século do Judiciário”16.
Tais discursos marcados por um cunho nitidamente relacionado ao movimento
neoconstitucionalista, demonstram que atualmente o Poder Judiciário e os operadores do
direito acreditam que, baseado na Constituição Federal de 1988, os Tribunais nacionais têm a
competência e, mais, têm o dever de realizar o controle da implementação das políticas
públicas.
Essa tendência ficou conhecida como “ativismo judicial”, que, por sua vez, acarreta
diversos problemas, que vão desde aqueles de ordem democrática – legitimidade do Judiciário
tomar as rédeas do controle das políticas públicas e deixar prejudicada a importância da
discussão política realizada no Legislativo, único ente dotado de soberania oriunda do
sufrágio -, até problemas de ordem econômica e de desrespeito às leis orçamentárias e a
repartição das competências para alocação dos recursos oriundos das receitas fiscais.
Agora munido desta delimitação, caberá ao próximo capítulo da presente monografia
esmiuçar os aspectos mais importantes da problemática anunciada.
15 Tema da palestra do eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandovisk, conferida na
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto em 2009. 16 Texto apresentado pelo então Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Asfor Rocha, publicada no
sítio eletrônico especializado Conjur, em novembro de 2009.
37
CAPÍTULO 2 – O CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
O presente capítulo aprecia dois objetivos específicos. O primeiro pretende
sistematizar a relação entre o controle judicial das políticas públicas e a questão orçamentária,
evidenciando os aspectos mais importantes que costumeiramente são ignorados pelos
operadores do direito e, sobretudo, pelos membros do Poder Judiciário, delineando, de tal
modo, as principais prejudicialidades decorrentes da adoção desse sistema. O segundo
objetivo, por sua vez, pretende analisar a contextualização do tema frente à distribuição
democrática de competências proposta pelo Estado de Direito, para que a legitimidade de
atuação do Judiciário, pelo menos na forma como vem sendo conduzida atualmente, seja
colocada em xeque, haja vista se tratar de uma usurpação de competência dos demais Poderes.
2.1 Noções gerais sobre o tema
Conforme já relatado na presente monografia, a estratégia de intervenção
governamental por meio de políticas públicas relaciona-se com o objetivo estatal de buscar o
desenvolvimento e a melhoria das condições de vida de seus cidadãos. Este objetivo encontra-
se pareado com a concepção de Estado em vigor (Estado social e democrático de Direito), ou
seja, a elevação das políticas públicas a um dos motes centrais está devidamente adequada ao
contexto histórico que vivenciamos hodiernamente.
É óbvio que a formatação das políticas públicas se conecta e se desenvolve em
concomitância com o modelo de Estado em vigor. Afirma-se, assim, que políticas públicas
representam o conjunto de ações destinadas a setores específicos da sociedade, a partir do
aparato estatal.
Em nosso contexto, observa-se que a relação entre Estado e o desenvolvimento torna-
se mais latente quando se trata de políticas sociais, porquanto a estrutura permanente do
Estado contemporâneo liga-se a uma teoria social que se depara com a mediação da intensa e
complexa relação existente entre os diversos grupos que compõem a sociedade, que se
encontram em constante embate em busca da consecução de seus próprios interesses. Esse
38
diálogo entre os anseios da sociedade e a linha de atuação do governo são ditadas pelo grau de
coercibilidade que determinados grupos apresentam frente ao Estado, senão vejamos:
A relação entre sociedade e Estado, o grau de distanciamento ou aproximação, as
formas de utilização ou não de canais de comunicação entre os diferentes grupos da
sociedade e os órgãos públicos – que refletem e incorporam fatores culturais, como
acima referidos – estabelecem contornos próprios para as políticas pensadas para
uma sociedade. Indiscutivelmente, as formas de organização, o poder de pressão e
articulação de diferentes grupos sociais no processo de estabelecimento e
reivindicação de demandas são fatores fundamentais na conquista de novos e mais
amplos direitos sociais, incorporados ao exercício de cidadania (HOFLING, 2001, P.
39).
Com estas observações, aduz-se que o Estado brasileiro formado após o término do
período da ditadura militar, preocupou-se intensamente em declarar direitos aos seus
cidadãos, como forma de atender aos anseios da sociedade daquele determinado período.
Por conta disso, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seus artigos 5° e 6°,
direitos que são usualmente classificados como sociais e que devem ser considerados como
“direitos prestacionais, base para a formação de uma sociedade mais igualitária e justa”
(TELLES, 2006, P. 171).
Nesse sentido, é possível observar que a preocupação na criação de uma sociedade
menos desigual é um dos principais motes da República surgida após a queda do
autoritarismo, de tal forma que, em seu artigo 3°, a Carta Magna evidencia de forma preclara
esse objetivo e o reafirma em cada um de seus incisos, conforme se depreende da leitura do
supracitado dispositivo constitucional:
Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).
39
A forma de garantir boa parte destes direitos sociais passa pela criação,
implementação e gestão de políticas públicas, ou seja, não é possível se pensar em direitos
sociais desvinculado da noção de políticas públicas.
Isso significa dizer que quando se fala em direito das políticas públicas, tratamos
também da busca pela concreção dos direitos sociais, tidos como fundamentais e cuja
importância lhes confere uma característica singular, qual seja o fato de que são
irrenunciáveis e independem do posicionamento político do governo, uma vez que a sua
previsão constitucional impõe ao Poder Público, independentemente da corrente ideológica
que este segue, o dever de garanti-los e ampliá-los17:
Aproximação da ideia de políticas públicas com os propósitos e plataformas
eleitorais não desviar o foco dos direitos fundamentais. É que, em governos
democráticos, submetidos à regra do direito não há espaços para negociações e
propostas que lhes subtraiam a obrigação de melhorar a realidade social mediante a
garantia desses direitos (BURGO, 2013, P. 39).
Ocorre que apesar de constitucionalmente previstos como direitos fundamentais e
dotados da característica singular acima explicitada, os direitos sociais – distribuídos e
aprimorados por meio dos processos de implementação de políticas públicas, sofrem, na
prática, em virtude de diversos de problemas estruturais, que vão desde a falta de interesse
político (que conforme visto não será objeto do presente estudo), à carência de ferramentas e
meios eficazes para o gestor público colocar em prática os desenhos jurídico-institucionais
projetados pelo legislativo e de alterar os seus parâmetros conforme as necessidades que este
sistema dinâmico exige, possibilitando a reformulação do projeto inicialmente concebido, de
modo a se adequar aos desafios encontrados no cotidiano da burocracia.
Esse cenário acarreta os problemas enunciados no capítulo anterior do presente
trabalho. Mas não é só, além disso, o referido cenário traz o Judiciário para o centro do
controle da implementação das políticas públicas, que acaba tendo a “sua legitimidade
democrática robustecida por passar a atender os pleitos formulados individual ou
coletivamente pelos cidadãos e demais atores sociais” (BURGO, 2013, P. 40).
17 Importante notar que os direitos sociais são frutos de um compromisso celebrado entre a sociedade e o
Governo e, por conta disso, o seu descumprimento é inaceitável, pois configura um verdadeiro retrocesso social.
40
Muito por conta dessa frustração social e da nítida ineficiência do Poder Legislativo e
Executivo em concretizar os direitos sociais previstos na Constituição, é que o movimento do
neoconstitucionalismo tomou força entre os operadores do direito, influenciando, inclusive, as
decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema18.
Essa corrente de pensamento consolida o entendimento de que o juiz é o ator principal
na implementação e aplicação dos ditames constitucionais19, ou nas palavras de Sarmento:
O grande protagonista das teorias neoconstitucionais é o juiz. O direito é analisado,
sobretudo a partir de uma perspectiva interna, daqueles que participam dos
processos que envolvem a sua interpretação e aplicação, relegando-se a segundo
plano a perspectiva externa, do observador. Esta obsessão pelo Poder Judiciário leva
a uma certa desconsideração do papel desempenhado por outras instituições, como o
Poder Legislativo, na interpretação constitucional (SARMENTO, 2009, P. 277).
Seguindo essa esteira de raciocínio, o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal
Federal no julgamento do leading case contido na arguição de descumprimento de preceito
constitucional n.° 45, publicado em 04.05.2004, é no sentido de que o Poder Judiciário detém
legitimidade constitucional de atuar e intervir nos processos de implementação de políticas
públicas, uma vez que este órgão “não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar
efetivos os direitos econômicos sociais e culturais – que se identificam enquanto direitos de
segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas” sob o risco de
“comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional” (STF,
2004, P. 03).
Diante do teor da fundamentação do acórdão paradigma acima colacionado, formou-se
o juízo de que a intervenção do judiciário se justifica nas hipóteses em que houver ocorrido o
desrespeito ao “mínimo existencial”, sendo que nestes casos, a atuação do judiciário não
depende da “observância da cláusula da reserva do possível” (NOJIRI, 2012, P. 101) e
tampouco “se submete a qualquer argumento de restrição orçamentária” (BURGO, 2013, P. 42).
18 Nojiri (2012) aponta que essas circunstâncias fizeram com que o Judiciário brasileiro passasse a se afiliar à
tendência do “ativismo judicial”, no qual se prega, em reflexo das teses neoconstituionalistas, um papel mais
“ativo e renovado” aos Tribunais e Cortes Superiores. 19 Sarmento (2009) também destaca um aumento do papel do Judiciário no horizonte da política, sendo este
Poder o responsável por inúmeras decisões referentes à temas relevantes e polêmicos da sociedade (liberação do
matrimônio homo afetivo, descriminalização do porte de drogas, pesquisa com células tronco, liberação do
aborto de fetos anencéfalos, entre tantos outros). Contudo, critica a ideia do juiz como “guardião das promessas
civilizatórias dos textos constitucionais”, por se tratar de ideal elitista e refratário ao autogoverno popular.
41
No mesmo sentido, assevera-se que o Estado deve fornecer de forma progressiva o
acesso aos direitos sociais e caso assim não o proceda, abrirá caminho para o cidadão
socorrer-se do Judiciário como forma de obtê-los.
Enquanto esse entendimento é louvável sob o ponto de vista da garantia ao acesso
individual ou de um grupo restrito aos direitos sociais, sob o ponto de vista orçamentário, tal
aplicação é perniciosa e acarreta o descontrole das finanças do Estado, diminuiu a quantidade
de recursos disponíveis ao Poder Público, cria enormes desafios para a realocação dos
recursos remanescentes nas áreas prioritárias e, em última instância, favorece o desvio e o
fenômeno da corrupção sistêmica - que encontra nesse cenário de descontrole de contas,
ambiente extremamente favorável para o seu florescimento.
Por esse motivo, os estudiosos e os operadores do direito envolvidos com a questão da
implementação das políticas públicas não podem jamais se esquecer de que a realização dos
objetivos fundamentais da Constituição Federal passa pela criação:
De um modelo racional de distribuição de competências e recursos financeiros aos
entes federados. Disso decorre a compreensão de que o orçamento é tema
inseparável da discussão acerca do controle de políticas públicas e, logo, das formas
de cumprimento dos objetivos fundamentais da república (BURGO, 2013, P. 44).
Este é exatamente o elemento da primeira análise a ser realizada neste capítulo, que irá
buscar demonstrar como as reiteradas decisões proferidas pelo Judiciário afetam de forma
grave o planejamento e o controle dos gastos orçamentários dos três níveis da federação.
Sem prejuízo, mais adiante também será objeto de estudo o tema relacionado à
legitimidade democrática da intervenção judicial no controle, implementação e execução das
políticas públicas (inerentemente ligadas à concreção dos direitos sociais estampados na
Constituição Federal), analisando-se, a partir da leitura da Carta Federal de 1988, o papel
conferido ao Poder Judiciário e a distribuição de competências entre os demais órgãos que
compõem o Estado.
Por fim, será analisado se as decisões a respeito das políticas públicas e dos gastos
públicos, de cunho eminentemente político, podem (ou devem) ser tomadas no âmbito do
Poder Judiciário, formado por meros funcionários públicos (ainda que dotados de
características especiais) e não representantes eleitos, estes sim dotados de legitimidade vez
que se encontram revestidos da soberania conferida pela representação popular.
42
2.2 Controle judicial e questão orçamentária
Antes de adentrar ao assunto propriamente dito, convém elucidar que o sistema
orçamentário brasileiro atualmente encontra-se regulado pela Constituição Federal, conforme
se depreende da leitura dos artigos 165 a 169 da referida Carta da República20.
Destarte, pode-se concluir que a questão orçamentária foi encarada como de suma
importância pelos constituintes originários, que enxergaram nesse tema a necessidade de alça-
lo ao patamar constitucional.
Isso porque, o orçamento é o principal instrumento de realização das políticas
públicas, pois importa na obtenção de recursos necessários e gastá-los em obras e serviços
públicos de maneira adequada para atingir a finalidade última do Estado, de forma a consagrar
os ditames previstos na Constituição Federal (RIBEIRO, 2011, P. 1091).
Destarte, a concreção dos ditames constitucionais passa pela existência de meios
materiais para a sua realização fática, ou nas palavras de Elival da Silva Ramos:
Não pode ser equacionada com plena autonomia pelo direito e seu instrumental,
envolvendo, a par da concretização legislativa, o exercício da função de governo
(escolha de políticas públicas), da função administrativa, quer no tocante à prática de
atos administrativos, quer no tocante à atividade material da Administração,
alocação e dispêndio de recursos financeiros, todas essas ações pressupondo a
existência de condições socioeconômicas favoráveis ao seu desenrolar (RAMOS,
2007, P. 335).
Veja-se que no cenário brasileiro, quando se fala em planejamento orçamentário, não
existe grande margem de discricionariedade para o gestor, haja vista a existência das
chamadas “verbas carimbadas”21, quais sejam os percentuais mínimos que devem ser
20 Os referidos artigos estabelecem a competência de o Poder Executivo criar leis que versem sobre os planos
plurianuais (art. 165), diretrizes orçamentárias e orçamentos anuais, que serão analisadas e votadas pelas duas
Casas do Congresso Nacional (art. 166). Sendo vedadas a execução de projetos, despesas ou operações não
previstas na lei orçamentária (art. 167), estabelecendo, ainda, os limites máximos para a despesa com pessoal da
União, Estados e Municípios (art. 169). 21 O montante pré-fixado pela Constituição para investimento em áreas prioritárias como educação e saúde
ficaram conhecidas como “verbas carimbadas”. Estas verbas não podem ser modificadas pelo gestor, o qual é
obrigado a destinar a esses setores o percentual mínimo exigido pela Carta de República. Ocorre que, na prática,
43
destinados às áreas tidas por prioritárias. Todavia, essa imposição meramente formal revela
um paradoxo, porquanto, se de um lado ela obrigada o gestor a destinar um percentual
mínimo de recursos para setores essenciais (aspecto positivo), por outro lado, ela desobriga o
administrador a investir além do mínimo formalmente previsto, ou seja, os mandamentos
constitucionais acabam por ser ao mesmo tempo, o valor mínimo e máximo dos gastos
governamentais com programas sociais (aspecto negativo).
A ausência de arrojo por parte do gestor público se deve, em grande parte, “pela falta
de consciência de que para além das garantias formais descritas na lei, os direitos estruturam
uma linguagem pública que baliza os critérios pelos quais os dramas da existência são
problematizados em suas exigências de equidade e justiça” (TELLES, 2006, P. 178).
Ademais, alia-se ao problema de vinculação acima denunciado e da falta de arrojo por
parte dos gestores, o fato de que muito embora a questão orçamentária seja um dos principais
aspectos da implementação de políticas públicas, os juristas em geral possuem enorme
dificuldade em lidar com a complexidade dessa matéria, que inclusive é pouco estudada nos
cursos de direito. Tal circunstância, como era de se esperar, acaba por levar a Administração a
ficar refém de milhares de ações judiciais proferidas de maneira não razoável – em sua
maioria, decididas em sede de cognição sumária - e que produzem grande impacto financeiro
em suas contas, subtraindo de forma inesperada recursos que haviam sido previstos para
atendimento de áreas prioritárias.
Nesse sentido, convém alertar que a discussão realizada pelo Judiciário nas demandas
envolvendo o controle de políticas públicas ainda continua a ignorar a questão orçamentária,
colocando-a em segundo lugar frente aos direitos fundamentais, olvidando-se,
consequentemente, que a consecução dos direitos sociais depende diretamente da boa gestão e
aplicação do orçamento.
Sobre essa questão, imperioso revelar o entendimento de Burgo acerca do debate
travado no Poder Judiciário:
Estão lidando [nossos Tribunais] diariamente com os orçamentos dos entes
federados, alterando-os de forma impensada e, no limite, irresponsável, mas, quando
uma vez “atendida a aplicação dos recursos mínimos exigidos pela Constituição, o gestor não pode ser
responsabilizado por inobservância dos preceitos constitucionais mandatórios. Assim, a princípio, as verbas
carimbadas acabam por revelar o piso e o teto do gasto com a área tida por prioritária” (BURGO, 2013, P. 47).
44
são chamados ao conhecimento da verdadeira estrutura orçamentária alegam tratar-
se de questão secundária não imponível à efetivação dos direitos fundamentais. Se
toca os direitos fundamentais e os objetivos fundamentais da República, a questão é
jurídica e assim deve ser tratada (BURGO, 2013, P. 49).
Em que pese à relação direta entre o orçamento e os processos de implementação de
políticas públicas, percebe-se que o Judiciário não enfrenta a questão com a seriedade e
responsabilidade necessária, talvez pelo completo desconhecimento (ausência da matéria nos
cursos de formação) ou pela dificuldade de entender a complexidade inerente ao tema.
A assertiva acima se comprova pela preocupante frase emitida muitas vezes pelos
Juízes ao tratar a questão: “dane-se o orçamento” (BLIACHERIENE, 2010), o que, por sua vez:
Demonstra o rumo de subdesenvolvimento e falta de seriedade que o Judiciário pode
imprimir às contas públicas, sem as devidas alterações estruturais, se houver uma
imposição de despesas em grande escala no setor da saúde ou qualquer outro setor
que contenha demandas sociais reprimidas (BLIACHERIENE, 2010, P. 25).
Em outras palavras, importa dizer que atualmente os gestores encontram-se inseridos
em um sistema pernicioso, pelo qual cada vez mais são obrigados à observar regras de gestão,
responsabilidade e governança, e ao mesmo tempo, lidar com as rotineiras investidas do
Judiciário, que dilapidam os recursos a sua disposição e os obrigam a manejar as verbas
remanescentes de maneira pouco eficiente, visando apenas o cumprimento das formulas
restritivas impostas pela legislação na tentativa de elidir-se das prováveis penalidades
previstas:
Considerando a boa-fé do gestor condenado a cumprir uma determinação judicial
para o pagamento de fármaco ou terapêutica, devemos analisar os limites
orçamentários para o cumprimento da sentença. Quero deixar claro, no entanto, que
não defendo que a análise econômica do direito ou de questões de ordem
administrativa venham a se sobrepor à garantia do direito constitucional à vida e à
saúde. O que é preocupante é o absoluto desconhecimento ou, pior, absoluta
desconsideração, pelo Poder Judiciário, dos limites legais impostos ao gestor pela
legislação orçamentária e constitucional, com suas implicações administrativas e
inclusive penais e patrimoniais para o gestor, sem deixar de citar os impactos
possíveis de restrições dos seus direitos políticos, todos ligados à execução do
orçamento público de determinada dotação orçamentária (BLIACHERIENE, 2010, P.
22).
45
Evidente que as investidas “irresponsáveis” do Judiciário, somados à não observância
das regras orçamentárias, acaba por produzir um desequilíbrio sistêmico nas contas públicas,
abrindo “espaço para maior corrupção e consequente redução das receitas públicas
disponíveis para investimento em áreas prioritárias” (BURGO, 2013, P. 50).
Isso porque, em um cenário caótico em que a saída de recursos se dá de forma
totalmente descontrolada - mediante milhares de decisões judiciais individuais envolvendo
direitos sociais e controle das políticas públicas -, torna-se uma tarefa praticamente impossível
a de organizar os recursos do erário e combater o desvio ilícito de recursos, que, neste
ambiente, encontra panorama extremamente favorável à sua proliferação, uma vez que os
agentes envolvidos possuem ciência da dificuldade de comprovação das irregularidades e
acreditam na certeza da impunidade.
Assim, em última instância, apesar de bem-intencionadas, as decisões judiciais no
controle das políticas públicas revelam uma contradição em sua fundamentação haja vista que
baseiam a sua atuação na irrenunciabilidade dos direitos sociais e necessidade de se garantir o
chamado mínimo existencial para o cidadão, enquanto a sua implementação prática, resulta no
descontrole orçamentário e, consequentemente, tolhe do Estado a capacidade de se buscar os
mesmos objetivos fundamentais que baseiam a necessidade de intervenção do Judiciário. Ou
seja, pode-se afirmar que “a atuação do Poder Judiciário nesse ponto é perniciosa porque mina
a base de legitimidade de seu discurso” (BURGO, 2013, P. 50) 22.
Afora isso, cabe ressaltar que além do favorecimento da corrupção sistêmica e
descontrole estrutural das contas públicas, deve-se levar em consideração que o controle
judicial das políticas públicas também pode ser questionado sobre o ponto de vista da
eficiência e economicidade23.
22 Sobre essa carência de legitimidade no discurso que fundamenta a atuação do Poder Judiciário, Burgo (2013),
de maneira salutar nos leva a considerar que: “(i) que a prioridade imposta pela Constituição ao estado brasileiro
é o cumprimento dos objetivos fundamentais da República e a satisfação dos direitos fundamentais; (ii) que o
instrumento de concretização dessa prioridade são as chamadas políticas públicas; (iii) que nenhuma política
pública pode ser executada sem que tenha sido fruto de um planejamento orçamentário e; (iv) que o orçamento
serve como redutor das arbitrariedades e garante a legalidade e constitucionalidade das escolhas feitas pelos
gestores públicos, não é possível que se admita a atuação do Poder Judiciário que não observe, declaradamente, a
estrutura orçamentária dos entes federados”. 23 Veja-se que a atuação dos gestores e administradores públicos deve necessariamente ser orientada pelos
princípios da eficiência e economicidade, pelos quais busca-se a decisão que resulte menor no custo aos cofres
públicos e, ao mesmo tempo, afete de maneira positiva o maior número de cidadãos.
46
A respeito do princípio constitucional da eficiência, que vincula toda a atividade da
administração, vale colacionar a definição de José Afonso da Silva sobre o tema:
Eficiência não é um conceito jurídico, mas econômico; não qualifica normas;
qualifica atividades. Numa ideia muito geral, eficiência significa fazer acontecer
com racionalidade, o que implica em medir os custos que a satisfação das
necessidades públicas importam em relação ao grau de utilidade alcançado. Assim, o
princípio da eficiência, introduzido agora no art. 37 da Constituição pela EC-19/98,
orienta a atividade administrativa no sentido de conseguir os melhores resultados
com os meios escassos de que se dispõe e a menor custo. Rege-se, pois, pela regra
da consecução do maior benefício com o menor custo possível. Portanto, o princípio
da eficiência administrativa tem como conteúdo a relação dos meios e resultados
[...]. Logo o princípio da eficiência administrativa consiste na organização racional
dos meios e recursos humanos, materiais e institucionais para a prestação de
serviços públicos de qualidade com razoável rapidez. (SILVA, 2008, P. 671).
Eficiência, enfim, seria a maximização dos resultados com o dispêndio mínimo de
recursos de maneira a atingir a maior parcela de indivíduos. Esse processo se daria por meio
de “políticas públicas sociais e assistenciais dentro das orientações das melhores práticas
administrativas e econômicas a fim de dotar o gasto de maior eficiência, ou seja, evitando o
desperdício” (TIMM, 2008, P. 67).
Note-se, nesse sentido, que a concretização de direitos sociais pelas vias judiciais,
salvo raras exceções, pode ser considerada pontual e casuística. E, mais, estas demandas
geralmente envolvem altos custos financeiros, mas em contrapartida não importam em
melhorias para a coletividade, pois apenas solucionam situações individuais. Portanto, a
adoção reiterada desta prática não é capaz de gerar a tão almejada maximização de recursos -
corolário indispensável para o cumprimento do princípio da eficiência.
O desvio forçado de verbas não negligenciáveis para atender às imposições judiciais
concretas pode pôr em causa e forçar mesmo a inflexão significativa ou o retrocesso
nas políticas públicas que haviam sido globalmente programadas e planificadas em
direção a uma melhoria de condições dos setores mais desfavorecidos (NOVAIS,
2010, P. 27).
Dessa maneira, verifica-se que sob o aspecto supracitado, o controle judicial das
políticas públicas não se revela o melhor mecanismo para se buscar a concreção dos direitos
sociais, ao contrário, a sua aplicação indiscriminada somente servirá para dificultar ainda mais
47
a já extremamente dispendiosa tarefa de garantir o desenvolvimento social e consagrar os
direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Isso porque, as decisões judiciais a respeito desta temática, em sua enorme maioria,
são tomadas em uma seara de discussão individual, sem observar, portanto, um planejamento
geral e os planos de desenvolvimento para a coletividade. Mas não é só, além de não observar
qualquer tipo de planejamento, este tipo de ingerência acaba por drenar “as verbas públicas
sem gerar justiça social, sem conseguir incluir os excluídos e, como destacado, sem atinar
para os princípios da economicidade e da eficiência” (BURGO, 2013, P. 53).
Ademais, deve-se atentar que hodiernamente a atuação do Poder Judiciário
responsável pela alteração de aproximadamente 1,82 % das receitas orçamentárias
originalmente previstas, enquanto o Poder Legislativo, que deveria ser o grande responsável
por estas alterações, corresponde a apenas 2,96 %. Em suma, conclui-se que é atuação judicial
é quase tão impactante quanto a legislativa na questão orçamentária (CHRISTOPOULOS, 2011,
P. 115).
Como resultado, as políticas públicas desenhadas dentro do contexto de discussão
democrática do legislativo e implementadas pelo executivo, acabam por ser sistematicamente
“sabotadas” pela utilização de recursos pré-determinados para o seu custeio, no atendimento
das inúmeras decisões judiciais tomadas em âmbito individual, que, conforme já relatado, não
se vinculam a um plano de desenvolvimento maior, que possa beneficiar toda a sociedade.
Veja-se que é importante deixar estreme de dúvidas que não se pretende nessa
monografia negar que tal atuação é extremamente louvável sob o ponto de vista individual,
pois garante o mínimo existencial e a consecução dos direitos fundamentais de um cidadão
afetado por uma condição particular, mas apenas levantar o questionamento se as milhares de
intervenções pontuais e consequente alocação deficitária de recursos financeiros representa o
melhor projeto de desenvolvimento nacional.
Para responder o questionamento anterior, basta a leitura de todos os fundamentos
construídos neste tópico, para compreender que o cenário de controle judicial das políticas
públicas, por desprezar a relevante questão orçamentária, não pode ser considerado como um
projeto de desenvolvimento duradouro e sustentável.
48
2.3 Controle judicial e distribuição democrática de competências entre Poderes
Conforme já antecipado, a presente etapa desta monografia se preocupa em analisar a
questão da legitimidade do Poder Judiciário em conduzir os processos de implementação e
gestão de políticas públicas, ligados à concreção dos direitos sociais (fundamentais) dispostos
na Carta Maior. Sem prejuízo, neste momento também será avaliada se a nova função que
vem sendo desempenhada pelo Judiciário se encontra corretamente adequada à função que lhe
era originalmente concebida dentro da divisão democrática de competências previstas no
Estado de Direito.
Com observância deste objetivo, importante notar que a atual configuração do estado
social “impõe ao Estado a implementação de diversas políticas sociais e econômicas, visando
ao cumprimento dos referidos dispositivos [aqueles que estabelecem os direitos sociais]”
(NASCIMENTO, 2013, P. 33).
Por isso, em atendimento da expectativa da sociedade, gerada pela positivação destes
direitos, o Poder Público, dentre as suas demais funções, deverá atuar na implementação das
políticas públicas:
O Estado, mediante leis parlamentares, atos administrativos e a criação real de
instalações de serviços públicos, deve definir, executar e implementar, conforme as
circunstâncias, as chamadas políticas públicas (de educação, saúde, assistência,
previdência, trabalho, habitação) que facultem o gozo efetivo dos direitos
constitucionalmente protegidos (NUNES JUNIOR, 2009, P. 68).
Sendo que o cumprimento das suscitadas expectativas da sociedade cabe, via de regra,
ao legislativo que deve “a partir da identificação de um problema, estabelecer a ordem de
prioridades, formulando e escolhendo as políticas públicas a serem concretizadas pela
Administração mediante a prestação de serviços públicos essenciais” (NASCIMENTO, 2013, P.
46).
Portanto, a escolha das áreas prioritárias, a formulação e o desenho inicial das políticas
públicas, bem como os seus processos de implantação, não devem ocorrer no âmbito do Poder
Judiciário, o qual não detém a expertise nem o conhecimento necessário (e sequer a
legitimidade) para traçar o plano de atuação do Estado.
49
Importante lembrar que o Judiciário não é composto por representantes do povo, mas
de funcionários públicos sujeitos à Constituição Federal e às leis (e não aos eleitores) e por
isso não detém soberania24, que pertence ao povo e é exercida por seus representantes (LOPES,
1989, P. 124).
Por não deter a soberania fundada na representação popular, o Judiciário não deveria
comandar ou influenciar as decisões políticas25 a respeito dos processos de criação e
implementação de políticas públicas.
Compete aos representantes do povo, isto é, ao Poder Legislativo e à direção política
do governo a decisão sobre políticas públicas. À Administração compete a sua
Execução. Entretanto, o fato de ser a política pública um “quadro normativo de
ação” informado por “elementos de poder público, elementos de expertise e
elementos que tendem a construir uma ordem local” – todos da órbita do aparelho
burocrático -, faz com que a Administração desempenhe papel relevante na análise e
na elaboração dos pressupostos que dão base à política pública (BUCCI, 2006, P.
249).
Todavia, a partir do advento do texto da Constituição de 1988 atribuiu-se ao Poder
Judiciário a tarefa de examinar a constitucionalidade das leis e dos atos do governo, como
forma de “velar pelo respeito dos demais Poderes à ordem jurídica, negando efeito às leis
inconstitucionais e anulando atos administrativos ilegais” (SUNDFELD, 2007, P. 200). Da
confiança depositada no direito e na justiça nasceu e se desenvolveu o fenômeno da
“judicialização da política”26, em que “problemas da política são traduzidos, deslocados e
selecionados pelo sistema jurídico com critérios particulares e internos a esse sistema”
(CAMPILONGO, 2002, P. 24).
24 No modelo de repartição de poderes elaborado pelo pensador francês Montesquieu o órgão de soberania é o
Legislativo, cuja formação é composta por representantes do povo eleitos pelo sistema democrático. Nesse
sistema, a atuação do Estado é fundada na soberania da representação popular pelo que o Poder Judiciário (por
não deter soberania) seria considerado não como um “poder” propriamente dito, mas apenas como um órgão
formado por um corpo de funcionários especiais, destituídos de soberania e vinculados à lei e a Constituição.
Essa classificação é importante para nos fazer relembrar que o Judiciário não pode ser considerado como um
órgão acima do Estado, mas sim um ente inserido no Poder Público – e, consequentemente em suas crises, apesar
do que afirma a corrente doutrinária costumeiramente aceita entre os operadores do direito que insiste em eximir
o Judiciário pela atual crise de representatividade e da legitimidade do Poder Público. 25 O termo “política” aqui é empregado para tratar da ideia de hegemonia, controle social, decisão generalizável,
etc. e não no sentido de mera disputa eleitoral de cargos. 26 Campilongo (2002) alerta que a política naturalmente se desenvolve em um cenário de alta complexidade e
indeterminado, enquanto o direito tenta trabalhar sob uma complexidade reduzida - dentro de determinadas
regras estruturais pré-estabelecidas.
50
A partir daí, formou-se a corrente de pensamento muito difundida entre os
operadores do direito de que os Tribunais seriam a alternativa para solucionar o problema de
crise de representatividade política e combater a inércia estatal em relação à formulação das
políticas públicas. Isso porque, parte-se da premissa de que o legislador é idealista ou atua
segundo seus próprios interesses e que o administrador é incompetente ou, no mínimo,
ineficiente.
A falta de transparência na prática pública reforça a ideia de que as tarefas
constitucionais não encontram concretização, não necessariamente por
impedimentos materiais absolutos, mas muitas vezes por falta de vontade política,
ou por prioridades outras, que não aquelas enunciadas na Carta de Outubro. Assim,
se as políticas públicas não se revelam aptas à proteção aos direitos fundamentais,
isso assim seria por disfuncionalidade do poder, que devem ser corrigidas via
prestação jurisdicional (VALLE, 2009, P. 57).
No mesmo raciocínio, é comum que o direito autoproclame que somente ele poderia
atuar de maneira independente e “como oráculo da razão”, sendo que o legislador é
considerado:
Um agente egoísta, autointeressado, suscetível de endossar decisões coletivas
irracionais em prol de seu interesse individual. Não podendo ser esse [o legislador],
certamente, o personagem a conferir estabilidade a uma república democrática
(MENDES, 2008, P. 177).
Ocorre que adoção irrestrita desse entendimento ingênuo e pernicioso poderá resultar
na subtração de competências do legislativo e usurpação do seu papel de dirigente dos
grandes debates políticos, que, dessa forma, deixariam de ser realizados num ambiente de
discussão democrática de ideias e passaria a ser realizado no âmbito restrito e isolado,
seguindo as regras lógico-formais próprias do ordenamento jurídico27.
Certamente, essa descrença em relação ao processo legislativo contribuiu
sobremaneira para o desenvolvimento do fenômeno do ativismo judicial – mencionado no
início do presente capítulo – e da judicialização da política. Extremamente sedutor aos olhos
dos juristas, mas marcado por um viés nitidamente elitista e refratário ao autogoverno popular
27 Nesse ponto, Nascimento (2013) julgou necessário atentarmos para a advertência de Garapon (2001) de que “o
atual entusiasmo exagerado pela justiça pode conduzir a um empasse. A transferência irracional de todas as
frustrações modernas para justiça, o entusiasmo ingênuo pela sua onipotência, podem voltar-se contra a própria
justiça”.
51
(SARMENTO, 2009, P. 277), esse movimento traz consigo o ideal de que na atual conjuntura
social e política de nosso país somente a racionalidade lógico-formal do direito poderia nos
conduzir a um estágio de desenvolvimento satisfatório.
Pautado nesse ideal “libertador”, os operadores do direito têm cada vez mais
fundamentado as suas decisões em elementos externos ao ordenamento jurídico, “valendo-se
também de métodos modernos de interpretação constitucional, que permitem ao intérprete
maior liberdade na aplicação da norma” (NASCIMENTO, 2013, P. 67). Sobre o tema, cabe
colacionar também a pontual análise de José Eduardo Faria:
Atualmente o papel das instituições do direito vem sendo atravessado pela crescente
complexidade dos conflitos emergentes no Brasil contemporâneo, o que tem
comprometido a efetividade de seus códigos e de suas normas, levando os
operadores do direito a assumirem no exercício de suas funções uma postura
eminentemente política, valendo-se dos aspectos ambíguos e contraditórios do
direito positivo para expandir uma “práxis liberadora” das estruturas normativas, em
prol de uma efetividade material (FARIA, 1994, P. 18).
A decisão que ultrapassa os limites estabelecidos pela Constituição Federal e pelo
ordenamento jurídico, utilizando-se para tanto, de elementos não previstos internamente,
substituindo os ditames constitucionais e legais por suas próprias convicções políticas,
econômicas, religiosas, etc., é o que hodiernamente se entende por ativismo judicial, que nas
palavras de Elival da Silva Ramos é definido como:
O exercício da função jurisdicional para além dos limites legais impostos pelo
próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer
atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e
controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos), em detrimento
particularmente da função legislativa, com a descaracterização da função típica
daquele Poder, que se imiscui sobre o núcleo essencial de funções atribuídas
constitucionalmente aos demais Poderes (RAMOS, 2010, P. 308).
Nota-se que as decisões proferidas na seara do Judiciário aproveitam-se da
característica inovadora da Constituição Federal de estabelecer diversos termos de textura
aberta, com delicada e conflituosa repercussão filosófica (MENDES, 2010, P. 162). Da mesma
maneira, a técnica legislativa de profusão dos mencionados termos e expressões abertas, tais
como “função social”, “dignidade da pessoa humana”, “boa-fé”, etc., que permitem ampla
gama de interpretações, também contribui de maneira importante para que os magistrados
incluam indevidamente em suas decisões suas próprias convicções políticas, sociais e
52
econômicas, mascaradas pela interpretação das supracitadas categorias abstratas (FARIA,
1989, P. 100-101).
Feitas estas ponderações, é possível aduzir que boa parte da fundamentação utilizada
para sustentar a ampliação de competência do Judiciário no controle dos processos de
implementação e gestão de políticas públicas passa pela descrença na atuação dos poderes
Legislativos e Executivos e consequente crise de representatividade parlamentar e dos chefes
de governo.
Entretanto, em que pese o fato de que as resoluções sobre os conteúdos das políticas
públicas e a determinação da agenda a respeito dos direitos sociais sejam tomadas pelos
parlamentares sem a consulta prévia da população e que nestes processos somente seja
permitida uma participação popular de forma muito restrita, não abre espaço para que outro
órgão do Poder Público, formado por funcionários públicos que não foram escolhidos por
meio do sufrágio (Judiciário), venha à substituir o Legislativo que detém a soberania fundada
na representação popular (LOPES, 1989, P. 124). Destarte, ainda que possa se falar em crise de
legitimidade do Legislativo, tal fato jamais poderá derrogar a competência parlamentar para
os demais Poderes, sobretudo ao Judiciário.
Do mesmo modo, não merece prosperar o argumento frequentemente utilizado pelas
decisões judiciais para se auto legitimar no sentido de que “a própria legitimidade do
Legislativo e do Executivo deva ser avaliada com certa reserva, em virtude de que as decisões
parlamentares nem sempre correspondem aos anseios de seus eleitores” (OLSEN, 2010, P.
283). Porquanto no âmbito do Poder Judiciário não existem mecanismos de responsabilização
política dos juízes pelo conteúdo de suas decisões, conforme bem pontua Luiz Alerto do
Nascimento:
O fato de os representantes não corresponderem às expectativas dos representados
não confere legitimidade para que um órgão sem representatividade os substitua,
pois aqueles que têm mandato com prazo determinado e podem deixar de ser
reconduzidos ao cargo, diferentemente dos juízes, que, independentemente das
consequências das decisões que tomem, terão seus cargos vitaliciamente
(NASCIMENTO, 2013, P. 114).
Ainda, mesmo quando há mecanismos de self-restraint do Poder Judiciário, qual seja
a possibilidade de revisão das decisões pelos tribunais de segunda instância ou tribunais
superiores, Taylor verificou que os juízes continuam a tomar “decisões que influenciam ou até
53
criam políticas públicas” (TAYLOR, 2007, P. 248), de forma a estimular um ambiente propício
ao decisionismo judicial, cujas consequências podem ser uma espécie de populismo dos juízes
e cujos riscos podem ser idênticos àqueles derivados do populismo do Executivo, tão em voga
no cenário atual dos governos da América Latina (NASCIMENTO, 2013, P. 118).
Quanto ao populismo judicial28, insta destacar a problemática que reside no fato de
que quem decide se o dispositivo constitucional está satisfeito ou não, se existe efetivamente
controvérsia ou não, é o próprio Judiciário:
Parece claro, dessa forma, que os juízes acabam por controlar o próprio poder. O
órgão que impõe o limite é o mesmo ao qual se destina o próprio limite. Esta
situação de autocontrole confere aos tribunais certa liberdade na aferição da
conveniência de se julgar determinada questão (LEAL, 2006, P. 29).
Posto isto, na tentativa de se evitar os perigos do populismo, bem como frear o
crescente movimento de ativismo judicial, deve-se fortalecer o amadurecimento institucional
e, consequentemente, na criação de medidas de self-restraint nos tribunais (RAMOS, 2010, P.
278).
Isso, pois, o Judiciário, sobretudo, as suas Instâncias Nobres, possuem ainda uma
importante ferramenta que os ajuda a controlar o momento de implementação e os efeitos das
políticas públicas, quer seja apoiando as políticas públicas que por eles sejam consideradas
convenientes, quer seja atrasando a derrocada de políticas públicas questionáveis sob o ponto
de vista de sua constitucionalidade, mas que são oportunas por motivos específicos.
Em suma, o Judiciário pode influenciar os resultados das políticas públicas tanto no
momento de deliberação quanto na hora da implementação com uma variedade de
possíveis estratégias: sinalizando as fronteiras permitidas para a alteração da política
28 Saindo um pouco do tema sem objetivo de fazer uma crítica pessoal a figura do vetusto Presidente do Supremo
Tribunal Federal, mas apenas para ilustrar a proporção que a figura dos magistrados pode assumir na atual
conjuntura social e política de nosso país, vale lembrar toda a comoção social e midiática estabelecida ao redor
do então Ministro Joaquim Barbosa, incumbido da relatoria do processo de julgamento criminal do “Mensalão”,
cuja atuação e decisões proferidas neste caso, bem como das demais decisões proferidas em casos de grande
repercussão política, ensejou a sua classificação como figura emblemática da Justiça e como único agente capaz
de mudar o país (que posteriormente seria passada ao Juiz Sérgio Moro).
A respeito do tema, vale relembrar a icônica capa da revista “Veja” de 27.11.2013 que estampa a figura do então
Presidente do Supremo Tribunal Federal de costas, vestido de sua toga, em referência a figura de um super-herói
devidamente trajado com a sua capa. Também é digna de nota a capa do referido periódico semanal de
11.10.2012, que estampa a fotografia de infância de Joaquim Barbosa com os dizeres “o menino pobre que
mudou o Brasil”. Isso sem falar que as decisões proferidas pelo referido servidor, no exercício das atribuições
próprias do seu cargo, acabaram por alça-lo ao patamar de possível candidato a disputa presidencial das Eleições
de 2014, o que acabou não se concretizando.
54
pública, sustentando-a e legitimando-a diante da possível oposição, atrasando uma
decisão sobre uma determinada política e, assim, controlando a agenda de
deliberação da política pública, ou, até mesmo, alterando ou rejeitando a proposta
após a sua implementação (TAYLOR, 2007, P. 243).
Por fim, é revelador notar a patente inconsistência no alinhamento do discurso jurídico
em relação ao tema do direito das políticas públicas, porquanto se de um lado é possível
afirmar que a atividade dos gestores é prejudicada pelo distanciamento das concepções
conservadoras e estanques contidas nos manuais de Direito Administrativo da sua realidade
cotidiana, por outro lado, os operadores do direito aproveitam-se justamente da lacuna
deixada pelo distanciamento para afirmar a sua própria posição de “superioridade” de modo a
justificar o seu crescente protagonismo e ingerência sobre os demais Poderes.
Melhor explicando, sob a perspectiva interna do universo jurídico não se reconhece
que a notória ineficácia dos Legisladores e do Executivo é, em boa medida, resultado direto
das amarras que lhe são impostas pelo próprio Direito, assim, diante de um contexto de
ineficácia sistêmica, ao invés revisar os seus posicionamentos e, com isso, perseguir uma
verdadeira melhoraria nas ferramentas disponíveis ao gestor, os operadores do direito
preferem omitir-se da sua responsabilidade e imputar exclusivamente ao legislativo e ao
executivo a culpa pela deficiência do sistema, apresentando-se, por outro lado, como os
únicos agentes capazes de alterar esta realidade, ao ponto de autoproclamar que
experimentamos a “era do Judiciário”.
Veja-se que a alegação anterior não pretende negar que Poder Judiciário deve atuar
dentro da sua competência, como órgão independente e imparcial, com objetivo de zelar pela
observância da Constituição e garantidor a própria estrutura governamental (MORAES, 1999, P.
415). Mas apenas ressaltar que não há como concordar com um movimento adotado
estritamente sob a perspectiva interna do Direito e propagado aos demais setores da
sociedade, que consiste na intenção de substituição do legislador eleito, detentor da soberania
popular, por um governante apócrifo ou pela ascensão de uma casta de elite de servidores
públicos (Juízes, Desembargadores e Ministros) ao comando da política estatal, mesmo que
de forma bem intencionada, sob pena de destruição do Estado Democrático de Direito e da
criação de um de governo comandado por uma espécie de “oligarquia esclarecida”, formada
justamente pelos operadores do direito.
55
Além disso, não se pode olvidar que o Legislativo também está vinculado aos ditames
constitucionais e deve observá-los quando da formação de sua agenda e escolha de
determinada política publica. Motivo pelo qual parece ser mais acertado que a busca pela
superação da atual crise de representatividade passe pelo aprofundamento da discussão a
respeito da reforma do sistema político e pela necessária ampliação dos meios de controle do
Legislativo por parte dos cidadãos, do que pela adoção da solução paradoxal de derrogação de
sua competência originária às demais funções do Estado.
56
CAPÍTULO 3 – CONCLUSÃO
A busca pelo desenvolvimento econômico e social passa pela elaboração de boas
políticas públicas que, obviamente, deverão ser geridas de maneira eficiente pelos atores
responsáveis pela sua implementação.
Todavia, as categorias clássicas do Direito Administrativo encontram-se
demasiadamente distantes da realidade cotidiana dos gestores e de todo o dinamismo com que
o direito das políticas públicas é operado na prática. Por esse motivo, a teoria que trata das
políticas públicas detém pouco potencial explicativo da realidade e, portanto, oferece poucos
subsídios para tomada de decisão dos gestores, que, por sua vez, adotam um posicionamento
conservador com receito de terem as suas condutas responsabilizadas pelos órgãos de
controle.
Diante deste cenário, são estimuladas modalidades de governança top down em que a
figura de um ente central determina todos os parâmetros e procedimentos que deverão ser
estritamente observados pelas ramificações periféricas da cadeia de gestores, ao invés de
permitir a elaboração de sistemas bottom up, mais maleáveis e propensos ao
experimentalismo, comprovadamente mais eficazes29 do que às modalidades de governança
mais rígidas (LOBEL, 2005).
Nesse sentido, o distanciamento entre as categorias estanques da realidade dos
processos de implementação de políticas públicas, contribui para o quadro de ineficácia
sistêmica que, aliada à descredibilidade legislativa e o pouco interesse político em resolver as
grandes questões sociais, acabaram por trazer Judiciário para o centro da implementação das
políticas públicas.
Sendo que a ideia central por traz do controle judicial das políticas públicas é
justamente de que a atuação deficitária dos demais poderes não é capaz de garantir de forma
mínima os direitos fundamentais estampados na Constituição Federal, restando a consecução
de tal tarefa a cargo da função jurisdicional.
29 No mesmo sentido, (Coutinho, 2013) também aponta que os métodos experimentalistas são comparativamente
mais eficientes do que as modalidades de governança mais rígidas e centralizadoras.
57
Entretanto, o presente trabalho procurou demonstrar que a existência de um
distanciamento entre as ferramentas disponíveis ao gestor e os desafios encontrados na prática
da burocracia estatal não deve servir, como atualmente tem se evidenciado, para fomentar
simples substituição dos Legislativo e Executivo pelo Poder Judiciário.
Isso, pois, segundo o quanto destacado à saciedade neste ensaio, o controle judicial
destas políticas é interpretado de forma dissociada da indispensável questão orçamentária. Em
virtude desse fato, diversos efeitos perniciosos podem ser constatados, tais como adoção de
soluções pontuais e casuísticas aos problemas relacionados à consecução dos direitos
fundamentais e a garantia do mínimo existencial, ao invés da realização de um planejamento
que possa abordar coletivamente a questão e de forma mais eficiente.
Na mesma esteira é possível observar que as constantes investidas do Judiciário junto
aos recursos disponíveis aos gestores os obrigam a manejar as verbas remanescentes de
maneira pouco eficiente, apenas para atender às formulas restritivas impostas pela legislação
orçamentária.
Por fim, o desequilíbrio sistêmico nas contas públicas, que decorre do
desaparecimento material de recursos disponíveis, acaba gerando um ambiente extremamente
propício para o fomento da corrupção sistêmica que desvia o investimento das áreas
prioritárias (BURGO, 2013, P. 50).
E se isto não fosse o bastante, a última parte do segundo capítulo abordou a relevante
problemática relacionada ao crescente controle judicial das políticas públicas no Brasil e a
consequente violação da repartição de competências delimitada pela Carta Republicana de
1988.
Adentrando-se no contexto específico da anunciada violação de competências, o
capítulo anterior verificou que a formação de determinada agenda e posterior eleição de certas
áreas como sendo prioritárias, passa necessariamente por uma decisão política, sujeita à
influência de diversos grupos de interesses e dotada de alta complexidade, que, por sua vez,
não é condizente com a complexidade reduzida em que o Direito atua, posto que este universo opera
dentro de regras estruturais pré estabelecidas (CAMPILONGO, 2002, P. 24).
A partir de tal enfoque, destinou-se a construção do entendimento de que o Judiciário,
em decorrência do fato de ser constituído por funcionários públicos submetidos à Constituição
e às leis, mas não ao crivo do eleitorado, não detém soberania, que, veja-se, é pertencente ao
58
povo e transferida aos seus representantes por meio da figura da representação popular
(LOPES, 1989, P. 124).
Portanto, à luz do sistema de representatividade democrática e distribuição de
competência, pode-se ultimar, então, que a subtração de competências do legislativo e
usurpação do seu papel de dirigente dos grandes debates políticos, como vem ocorre com o
controle judicial de políticas públicas, é inaceitável e deve ser contida para que seja evitado
que os grandes debates de cunho social, político e econômico sejam retirados do ambiente de
discussão democrática de ideias (parlamento) para integrar o âmbito restrito e isolado das
regras lógico-formais particulares ao ordenamento jurídico.
Assim, apesar de extremamente sedutor sob uma perspectiva interna do direito, os
movimentos de ativismo judicial, judicialização da política e consequente populismo judicial
devem ser mitigados, por meio da criação de medidas de self-restraint dos tribunais (RAMOS,
2010, P. 278), como forma de impedir o fenômeno de usurpação de competências e seus
consequentes efeitos deletérios, que vão desde o desconhecimento da problemática
orçamentária até o deslocamento das grandes discussões do centro democrático de debate de
ideias.
Além disso, deve-se ressaltar que apesar da visível crise de representatividade de
nosso sistema político, cujos governantes eleitos não correspondem às expectativas de seus
representados, tal lacuna não confere legitimidade para que um órgão sem legitimidade
(judiciário) venha a tomar o seu lugar, especialmente considerando-se que os juízes,
independente das consequências de suas decisões, continuarão a exercer os seus cargos de
modo vitalício, enquanto que as decisões do legislativo podem ser revistas pelo critério
eleitoral, uma vez que os seus representantes são eleitos por prazos determinados e podem
deixar de ser reconduzidos ao cargo (NASCIMENTO, 2013, P. 114).
Neste ponto, não parece gerar qualquer discussão o entendimento de que a atribuição
de ditar a agenda política, bem como o exercício da função dirigente do governo não combina
com a previsão de vitaliciedade no cargo, ainda mais dentro de um regime como o nosso, de
Estado Democrático de Direito, em que a figura de alternância de poder é indispensável.
Com essas observações, o presente trabalho pode concluir que sob a perspectiva de
longo prazo, a busca pelo desenvolvimento social e diminuição da desigualdade por meio do
controle judicial das políticas públicas não se apresenta como a melhor opção para o Estado,
59
Nesse viés, sem adentrar muito ao assunto, haja vista que uma análise do tema
transcenderia a delimitação proposta neste estudo, foi possível verificar que parece ser mais
acertado que ao invés de se buscar a superação da atual crise de representatividade pela
derrogação de competência e centralização das ações em torno do Poder Judiciário, é
necessário que a referida solução seja obtida através do aprofundamento da discussão a
respeito da reforma do sistema político e pela necessária ampliação dos meios de controle do
Legislativo por parte dos cidadãos.
Construído o cenário, não se pretendeu aqui a fragilização da figura do Judiciário, mas
ao contrário, assentou o entendimento de que é sempre desejado que o mesmo continue a
exercer a sua indispensável função de velar pelo respeito dos demais Poderes à ordem
jurídica, negando efeito às leis inconstitucionais e anulando atos administrativos ilegais e
resguardando os administrados.
Firmada esta premissa, em relação à tarefa a ser atribuída aos operadores do direito
dentro do contexto das políticas públicas no Brasil, pode-se determinar que compete ao
universo jurídico o papel de assumir uma posição de diálogo com as demais disciplinas
envolvidas no tema das políticas públicas (marcado pela interdisciplinaridade), visando,
sobretudo, a realização de uma ampla revisão dos conceitos clássicos de Direito
Administrativo para que se possa, enfim, disponibilizar aos gestores ferramentas úteis que
sirvam como espécie tecnologia de implementação de políticas públicas, gestão de programas
de ação complexos, intersetoriais e articulados (COUTINHO, 2013, p. ).
No mesmo sentido, como se viu, a preocupação dos operadores do direito deveria ser
concentrar em canalizar esforços no debate aprofundado com a sociedade civil em relação à
reforma política e introdução de meios de controles dos representados sobre os seus
representantes com o fito de solucionar a crise de representativa dos Poderes Legislativos e
Executivos.
Em termos conclusivos, pôde-se afirmar que é inquestionável que o problema de
desenvolvimento do Brasil passa pela deficiência nos processos de implementação, gestão e
controle das políticas públicas, evidenciada pelo distanciamento da dogmática teórica da
realidade cotidiana experimentadas pelos gestores. Entretanto, o Direito, apesar de ser
diretamente responsável pela descredibilidade do Legislativo e Executivo em decorrência da
ineficiência de gestão, adota um posicionamento caracterizado pelo ativismo judicial e
crescente centralização dos processos de concretização das políticas públicas sob o controle
60
do Poder Judiciário. Assim sendo, com fundamento neste ideal “libertador” propaga-se o
entendimento de que somente a racionalidade lógico-formal do direito poderia nos conduzir a
um estágio de desenvolvimento satisfatório, o que em tese justificaria a intenção de usurpação
de competências dos demais poderes democráticos. Entretanto, o que se observa na realidade
é que a substituição do papel dirigente exercido pelos representantes dotados da soberania
fundada no voto popular, por uma casta ou classe de funcionários públicos submetidos apenas
ao crivo do concurso público e dotados de vitaliciedade, daria azo à destruição do Estado
Democrático e Social de Direito e o retorno a um sistema oligárquico, tudo isto à revelia dos
princípios fundantes da Constituição Federal de 1988.
Em razão disso, conclui-se que para a verdadeira efetivação das políticas públicas que
nos permite alcança um patamar minimamente razoável de desenvolvimento social, é preciso
que os operadores do direito façam uma autorreflexão a respeito da necessidade de conter o
controle judicial destas políticas, reafirmando o seu compromisso com a realização de estudos
em conjunto com as demais disciplinas relevantes ao tema, para que sejam disponibilizadas
aos gestores ferramentas que possam conceder maior eficácia aos processos de
implementação das políticas públicas. Do mesmo modo, em relação à crise de
representatividade política, compete igualmente ao Direito o dever de participação no debate e
formulação de uma reforma do sistema político-eleitoral, sem se preocupar com substituição
desse sistema pelo comando exercido pelo Judiciário.
A interpretação do direito de forma dissociada destes objetivos acarreta
inevitavelmente na formação de um discurso jurídico falacioso e da concentração de todas as
expectativas sociais em volta de si mesmo, comprometendo e perpetuando deficiências
estruturais que impedem o objetivo estruturante e legitimador do Estado de perseguir o pleno
desenvolvimento econômico e social embasado na concreção e na total observância das
políticas elegidas pelos representantes do povo e detentores da soberania.
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