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AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE CURRÍCULO E A SUA RESSONÂNCIA NA PRÁTICA DOS EDUCADORES Profa. Dra. Branca Jurema Ponce PUC-SP Profa. Dra. Sanny S. da Rosa PUC-SP RESUMO Entre os anos 2010-2012, a partir de pesquisas próprias e de orientações a teses e dissertações defendidas na PUCSP e na UNISANTOS, pode-se observar e identificar características comuns em propostas curriculares nos sistemas públicos de educação, que proporcionaram reflexões vinculadas ao projeto “Políticas curriculares para a educação básica propostas pelo Estado e sua ressonância na prática pedagógica”, que se desenvolveu no Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da PUCSP. Este artigo é um dos produtos desse estudo. Dentre os objetivos propostos neste texto, destacam-se o interesse de identificar as características das propostas curriculares dos sistemas públicos de educação, e compreender as repercussões dessas políticas nas práticas pedagógicas escolares. Esses objetivos articulam-se com a preocupação de analisar o sentido dessas reformas locais impactadas por políticas educacionais em esfera global. Para tanto foi preciso problematizar estas para buscar compreender aquelas em seu contexto. O artigo propõe-se a analisar as reformas curriculares empreendidas pelo Estado brasileiro (especialmente em sua esfera estadual de São Paulo) e a função dos educadores nos processos de formulação, gestão e execução de orientações curriculares por meio de suas práticas escolares. Os resultados das pesquisas analisadas dão conta que as políticas públicas de educação, salvo honrosas exceções, têm contribuído para aprofundar a tendência neoliberal, que vem se impondo como sistema hegemônico de valores e crenças na sociedade contemporânea; que o binômio currículo-avaliação em larga escala oferece-se como um instrumento de controle a serviço de uma lógica estranha à do processo educativo; e que os educadores posicionam-se de forma ambivalente em relação às políticas públicas e às prescrições curriculares. Palavras-chave: Políticas públicas de currículo. Sistemas de educação. Papel dos educadores. Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 01028

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AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE CURRÍCULO E A SUA RESSONÂNCIA NA

PRÁTICA DOS EDUCADORES

Profa. Dra. Branca Jurema Ponce – PUC-SP

Profa. Dra. Sanny S. da Rosa – PUC-SP

RESUMO

Entre os anos 2010-2012, a partir de pesquisas próprias e de orientações a teses e

dissertações defendidas na PUCSP e na UNISANTOS, pode-se observar e identificar

características comuns em propostas curriculares nos sistemas públicos de educação, que

proporcionaram reflexões vinculadas ao projeto “Políticas curriculares para a educação

básica propostas pelo Estado e sua ressonância na prática pedagógica”, que se

desenvolveu no Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da PUCSP. Este

artigo é um dos produtos desse estudo. Dentre os objetivos propostos neste texto,

destacam-se o interesse de identificar as características das propostas curriculares dos

sistemas públicos de educação, e compreender as repercussões dessas políticas nas

práticas pedagógicas escolares. Esses objetivos articulam-se com a preocupação de

analisar o sentido dessas reformas locais impactadas por políticas educacionais em esfera

global. Para tanto foi preciso problematizar estas para buscar compreender aquelas em

seu contexto. O artigo propõe-se a analisar as reformas curriculares empreendidas pelo

Estado brasileiro (especialmente em sua esfera estadual de São Paulo) e a função dos

educadores nos processos de formulação, gestão e execução de orientações curriculares

por meio de suas práticas escolares. Os resultados das pesquisas analisadas dão conta que

as políticas públicas de educação, salvo honrosas exceções, têm contribuído para

aprofundar a tendência neoliberal, que vem se impondo como sistema hegemônico de

valores e crenças na sociedade contemporânea; que o binômio currículo-avaliação em

larga escala oferece-se como um instrumento de controle a serviço de uma lógica estranha

à do processo educativo; e que os educadores posicionam-se de forma ambivalente em

relação às políticas públicas e às prescrições curriculares.

Palavras-chave: Políticas públicas de currículo. Sistemas de educação. Papel dos

educadores.

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Introdução

Pesquisa realizada entre os anos 2010-2012 na área de políticas públicas de

currículo sinalizam que os sistemas de ensino brasileiro têm empreendido iniciativas por

meio de duas modalidades básicas (não únicas) de propostas curriculares: a primeira, por

material apostilado/padronizado produzido pelos sistemas públicos de educação; a

segunda, pela compra, pelas redes públicas, de propostas padronizadas de ensino de

empresas privadas de educação ou de organizações não governamentais (CHIZZOTTI;

PONCE, 2012). Os efeitos dessas iniciativas sobre as práticas pedagógicas e escolares

demonstram que elas “quase sempre geram a desvalorização dos sujeitos no processo

curricular” (Ibid., 2012, p.34), o que também se traduz numa relação cada vez mais

pragmática e imediatista [dos sujeitos educadores] com o conhecimento, com os alunos e

com a própria finalidade da educação (ROSA, 2012).

Dessas constatações decorre a necessidade de aprofundar reflexões já esboçadas

em trabalhos anteriores (CHIZZOTTI; PONCE, 2012; ROSA, 2010, 2012) que, neste

trabalho, agrupamos em dois focos complementares de análise. De um lado, uma

discussão sobre a natureza e o sentido político das reformas curriculares empreendidas

pelo Estado brasileiro; de outro, sobre a função dos educadores nos processos de

formulação, gestão e execução das orientações curriculares que chegam às escolas. A

relevância do tema reside no fato de que a articulação entre essas arenas políticas - o da

formulação das políticas públicas (pelos sistemas de ensino) e o das ações práticas (pelos

educadores, nas escolas) – vem, aos poucos, redesenhando e redefinindo o próprio sentido

da escola e da educação na contemporaneidade (BALL et al., 2012 ), o que justifica o

esforço de reunir elementos, empíricos e teóricos, para formular uma compreensão mais

consistente sobre o tema.

O artigo sintetiza indagações vinculadas ao projeto “Políticas curriculares para a

educação básica propostas pelo Estado e sua ressonância na prática pedagógica”. Dentre

os objetivos propostos, destaca-se o interesse de identificar as características das

propostas curriculares de sistemas públicos de educação para além das fronteiras de nosso

país, compreendendo-as como parte de um desenho globalizado e de um modelo de

economia política cujo centro está distante da Nação. É também objetivo deste texto

reunir elementos e iniciar uma reflexão sobre as repercussões dessas políticas nas práticas

pedagógicas escolares. Esses objetivos articulam-se com a preocupação de compreender

o sentido e a direção política dessas reformas.

A literatura produzida sobre o tema, principalmente nas duas últimas décadas,

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tanto nacional como internacional, indica que dispomos de farto material para a discussão

sobre essas reformas educacionais orientadas pelo e para o mercado. Os seus traços mais

característicos são os currículos organizados por competências e habilidades, inspiradas

no modelo empresarial de gestão, que estimula a competição entre escolas e entre

sistemas de ensino via responsabilização (accountability) de professores e gestores

acionada pelos resultados de desempenho escolar em avaliações de larga escala. A

produção acadêmica disponível, contudo, ainda não proporciona compreensão suficiente

sobre as condicionantes e efeitos das reformas nas práticas pedagógicas.

Perfil das reformas curriculares empreendidas pelo Estado brasileiro

Que direções e finalidades têm as propostas de autoria do Estado brasileiro nas

três esferas administrativas que o compõem: a da União, a dos estados e a dos municípios?

Em linhas gerais, elas estão alinhadas com as reformas educacionais implementadas em

escala mundial, cujas diretrizes são emanadas de organismos multilaterais tais como o

FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial e a OCDE (Organização para a

Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Para captar o sentido político dessas

propostas é preciso considerar o papel do Estado nas relações com a sociedade civil a

partir do modelo neoliberal difundido, especialmente na década de 1980, que

supostamente seria capaz de corrigir as imperfeições e inconsistências do Estado do Bem-

Estar-Social.

Neste raciocínio, em sua origem, estão em jogo dois modelos de economia-

política: o da social-democracia e o do neoliberalismo. Enquanto aquele tem a sua

centralidade no Estado e busca a humanização do sistema capitalista com vistas ao

socialismo, este tem a sua centralidade no mercado e afirma o sistema capitalista como o

seu eleito.

O primeiro modelo busca resistir, no interior do próprio capitalismo, ao que

considera processos de exploração e desumanização, propondo jornadas menores de

trabalho, proteção a idosos, gestantes, doentes e desempregados. Propõe o pleno emprego

como meta e o planejamento da atividade econômica pelo Estado. Após a Segunda Guerra

mundial, levanta a bandeira da democracia e da justiça social, buscando ampliar a

participação de trabalhadores na vida econômica e política das nações. O modelo de

Estado pretendido pelos grupos defensores dessa proposta de economia política é o do

Bem-Estar-Social.

Um grupo de economistas, que se opunha à social-democracia, cujos nomes de

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referência são o do Hayek e Milton Friedman, também em meados do século XX, criam

– em oposição ao modelo anterior - a alternativa da economia-política neoliberal:

Opondo-se à social-democracia, no correr das décadas de 1959 e 1960,

o grupo de Mont Saint Pélérin elaborou um detalhado projeto

econômico e político no qual atacava o chamado Estado da Providência

com seus encargos sociais e com a sua função de regulador das

atividades do mercado, afirmando que esse tipo de Estado destruía a

liberdade dos cidadãos e a competição, sem as quais não há

prosperidade (CHAUÍ, 2006, p. 313).

Mesmo tendo sido elaborada teoricamente em meados do século XX, o mundo só

veio a conhecer a proposta neoliberal após a crise econômica dos anos 1970. Ela trazia

entre suas promessas o que parecia ser a solução esperada: a estabilidade monetária por

meio da superação da inflação, que era atribuída ao avanço das reinvindicações por

melhores salários e aos investimentos estatais em projetos sociais. Paralelamente, o

mercado deveria assumir o papel de regular a economia com a sua racionalidade própria,

e a competição deveria ser restaurada como um valor fundamental no desenvolvimento

econômico, recuperando as possibilidades de avanço das iniciativas privadas nos diversos

setores.

Mesmo considerando as muitas mutações (PECK; TICKELL, 2002) que o

conceito sofreu desde meados do século XX, é inegável que o neoliberalismo se impôs

como sistema hegemônico de valores e crenças na sociedade contemporânea:

Esta modalidade de teoria econômica do livre mercado, manufaturada

em Chicago e vigorosamente comercializada através dos principais

escritórios comerciais de Washington DC, Nova York e Londres, se

transformou na racionalização ideológica dominante da globalização e

da contemporânea reforma do estado (PECK; TICKELL, 2002, p. 380,

tradução nossa.).

A lógica de operação e os discursos que passaram a justificar as reformas

educacionais realizadas pelos países alinhados a este novo projeto de economia mundial

revelam a força de outro fenômeno decorrente dos processos de globalização: o da

desnacionalização do Estado (JESSOP, 2002, p. 202). Em outras palavras, o

deslocamento do centro de produção das políticas dos Estados-Nação para as “policy

networks”: as redes políticas transnacionais (BALL, 2012). Esse movimento foi

observado por Morrow e Torres (2004, p.28), para quem o processo de globalização

“obscurece os limites nacionais, altera solidariedades dentro dos Estados e entre eles, e

afeta profundamente a constituição das identidades nacionais e de grupos de interesse”.

É verdade que as reformas educacionais empreendidas no Brasil desde a década

de 1990 vêm sendo conduzidas por grupos com concepções políticas distintas, o que pode

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ser observado, por exemplo, a partir das relações do Estado com a sociedade civil, dos

governos FHC (1995-2002) e Lula (2003-2010). Para levar a termo o projeto educacional

desenhado pelo MEC nas duas gestões do PSDB, a equipe montada pelo então ministro

Paulo Renato de Souza deu preferência ao apoio técnico de especialistas (nacionais e

internacionais) de organizações não-governamentais e representantes do setor

empresarial. Em contraste, o governo Lula demonstrou preocupação em contar com a

participação de representantes de setores organizados da sociedade como entidades

universitárias, estudantis, dirigentes e profissionais da educação básica e de movimentos

sociais, chamados a elaborar propostas, por exemplo, para o Plano Nacional de Educação

(2011-2020).

Nos dois governos, podemos afirmar que o Brasil tem feito a sua “lição de casa”

do ponto de vista das “policy networks” transnacionais, para as quais importa que, em

grandes linhas, as reformas estejam afinadas aos seus princípios gerais. Observe-se que o

Brasil, definiu – antes mesmo da promulgação da nova LDBEN de 1996 - os parâmetros

curriculares nacionais e, em seguida, instituiu avaliações de desempenho em larga escala.

A continuidade, entre esses dois governos, na área de educação, se consubstancia em

torno do binômio currículo-avaliação em grande escala.

No modelo neoliberal, o Estado não precisa, e nem deve, ofertar a educação

escolar gratuitamente para toda a população. O seu papel em relação as “policy networks”

é deixar o mercado regular a oferta educacional, supervisionar o resultado obtido para

mantê-lo sob controle, e eventualmente fazer suas ofertas educacionais. A articulação das

duas dimensões da educação escolar - currículo x avaliação em larga escala - permite o

desempenho do papel de regulador do Estado, praticamente imposto por meio de

diretrizes quase inegociáveis das políticas mundiais de educação orientadas pela lógica

econômica. Essa articulação ocasiona também a abertura de novos mercados para a

produção de livros, para outros materiais didáticos ligados ou não às tecnologias, e para

a formação continuada de professores, assim como engendra um maior controle sobre a

gestão educacional e as políticas de formação e monitoramento do desempenho docente.

Encontramos aqui as três “tecnologias” consideradas imprescindíveis, pelo ideário

neoliberal da knowledge economy, nas reformas educacionais: forma de mercado,

gerencialismo e performatividade (BALL, 2008). A forma de mercado se manifesta não

apenas por meio dos rankings, mas, sobretudo pela crescente ocupação de espaços

políticos, por parte de entidades privadas na elaboração e na oferta de soluções

educacionais de serviços públicos (ADRIÃO et al., 2012; CHIZZOTTI; PONCE, 2012;

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CÁRIA, 2012.). O gerencialismo, por seu turno, é propiciado por estratégias de

descentralização administrativa que, na esteira dos discursos progressistas, que se

utilizam dos conceitos de autonomia e de gestão democrática esvaziados de seu

significado original, cumpre a função primordial de manter o controle e a vigilância sobre

o trabalho docente. Por fim, o espaço de autonomia e criatividade dos professores tem

sido substituído pela cobrança de sua performance no processo de cumprimento de

currículos padronizados e das políticas de metas, movidas a bônus e concebidas para

recompensar os docentes por sua adesão ao processo.

Tanto na forma como no conteúdo, as reformas educacionais brasileiras

expressam um crescente alinhamento do país com o receituário neoliberal. As instituições

educacionais no Brasil constituíram-se sobre uma base republicana de tradição francesa,

na qual o Estado tendeu a manter centralidade na oferta e condução das políticas de

educação que a entendem como bem público, e – mais recentemente – a partir de

influências de países anglo-saxônicos, como os Estados Unidos e a Inglaterra, vivemos

uma tensão entre os modelos republicano e neoliberal, que resulta em “um modelo híbrido

que precisa ser compreendido em suas propostas e práticas contraditórias” (CHIZZOTTI;

PONCE, 2012, p.30). Algumas contradições certamente também se revelam no papel

desempenhado pelos educadores ao reinterpretarem os textos oficiais e prescrições que

orientam o trabalho nas escolas. É preciso, portanto, tentar entender o lugar e o papel

desses sujeitos no processo educativo atual.

O papel dos educadores a partir das políticas públicas

A avaliação em larga escala assumiu, na cena da educação contemporânea, o papel

de principal elemento regulador, instrumento de controle a serviço de uma lógica estranha

à do processo educativo. O olhar menos avisado sobre ela, a toma como aferidora da

qualidade da educação, do trabalho dos professores, das escolas, etc. Os ranqueamentos

se multiplicam, gerando a busca cega por melhores colocações nos rankings, que se torna

a obsessão educacional do nosso tempo.

As políticas públicas de educação escolar, salvo honrosas exceções, têm

contribuído para aprofundar essa tendência; e o impacto desse processo sobre a definição

dos currículos, sobre as práticas dos educadores – professores e gestores -, sobre a escola

e as redes escolares, tem sido devastador.

As pesquisas realizadas no âmbito do projeto anunciado na introdução deste texto

indicam que, no contexto das políticas curriculares empreendidas pelo Estado – tanto em

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sistemas estaduais como municipais de ensino –, é possível classificar o papel

desempenhado pelos educadores em categorias distintas, em função do grau de

organicidade de suas atribuições. Para fazer a afirmação, tomou-se a noção gramsciana

de intelectual orgânico, que cumpriu a função de nortear as reflexões atinentes ao lugar e

ao papel desempenhado pelos diferentes agentes nos processos de formulação, gestão e

execução das propostas curriculares em curso. A opção é ousada e desafiadora – embora

não inédita (SEMERARO, 2006) – uma vez que impõe realizar um exercício de releitura

e atualização de algumas categorias associadas a esse conceito, o que, nos limites de um

texto como este será brevemente esboçada.

Para Gramsci, “não existe atividade humana da qual se possa excluir toda

intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens” (1968, p.7).

Nessa passagem dos seus Quaderni del carcere, o que o autor nos ensina é que a vulgar

separação entre trabalho físico e intelectual utilizada como critério para distinguir os

intelectuais dos não-intelectuais diz respeito a um erro metodológico que precisa ser

superado:

O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, consiste em se

ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades

intelectuais, ao invés de buscá-lo no conjunto do sistema de relações no

qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se

encontram, no conjunto geral das relações sociais. (Ibid., p. 7, grifos

nossos).

Esta perspectiva de análise opera uma mudança teórica e metodológica importante

no que diz respeito às relações entre as estruturas socioeconômicas e a superestrutura

política-ideológica. A articulação orgânica entre elas dá origem a outro conceito central

do pensamento político do autor: o de bloco histórico. Com a noção de organicidade, o

pensador e militante político italiano rompe com a visão comum de independência e

neutralidade atribuída a atividade intelectual, tradicionalmente associada à filosofia, às

ciências e às artes. Os intelectuais, nessa concepção, não constituem um grupo social

autônomo, mas se articulam com o projeto econômico e político da classe social a que

pertencem.

Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função

essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo

tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que

lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no

campo econômico, mas também no social e no político (...).

(GRAMSCI, 1968, p.3).

É preciso enfatizar, porém, que esta função orgânica não se restringe aos grandes

intelectuais, mas se distribui, hierarquicamente, entre diferentes categorias de acordo com

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o lugar que ocupam na superestrutura e “segundo o valor qualitativo de sua função, do

grande intelectual ao intelectual subalterno: na cúpula, os criadores da nova concepção

de mundo (...); no escalão inferior, aqueles que estão encarregados de administrar ou

divulgar essa ideologia” (Ibid., p.97). Em seu conjunto, porém, cumprem a função

primordial do conjunto das superestruturas das quais são funcionários porque com suas

ações buscam “assegurar a hegemonia ideológica e cultural da classe fundamental sobre

o conjunto da sociedade.” (GRAMSCI, 1968, p.10).

Algumas dessas ferramentas conceituais podem oferecer pistas valiosas para

refletir sobre as políticas educacionais que vêm sendo propostas, a sua expectativa e

esforço em relação ao papel que deve ser desempenhado pelos professores e gestores, e a

prática pedagógica concreta desses profissionais, que é ambivalente em relação à adesão

à proposta, ao mesmo tempo em que é descaracterizada em relação às expectativas que

dela se têm, além de ser criticada e desvalorizada socialmente.

Professores, em sua maioria, coagidos pela má formação a que foram submetidos

que não lhes permite uma leitura mais profunda das políticas, acabam – incomodados ou

não - assumindo no chão da fábrica das escolas, neste cenário recente, a função de

assegurar a hegemonia ideológica e cultural de um projeto educativo, que se revela por

meio de uma proposta curricular de caráter neoliberal, que por sua vez expressa um

projeto de sociedade e um modelo de economia-política.

Da base para o topo, identificamos aqueles professores que são vistos pelos

intelectuais criadores das políticas como executores das orientações curriculares

prescritas pelo Estado. A política proposta prevê um papel para os professores e para os

gestores escolares e o seu esforço é no sentido do cumprimento do que objetiva. Em artigo

Freitas (2013), enfatiza o seguinte trecho de palestra proferida por Maria Inês Fini, então

Coordenadora Geral da Proposta Curricular da Secretaria da Educação do Estado de São

Paulo (2009), endereçado aos professores coordenadores:

[...] o nosso foco, até mesmo o foco das sequencias didáticas, é o

desenvolvimento de competências e habilidades que estão claramente

indicadas em cada Caderno do Professor. Então, vejam. Suponhamos

que o professor diga pra vocês que ele não quer usar o Caderno do

Professor, ora, ele não tem liberdade para fazer o que ele quer, ele pode

trabalhar com suas fontes, com seus recursos, o seu material, desde que

ele garanta que os alunos desenvolverão aquelas competências e

habilidades previstas no currículo [...] (SÃO PAULO, 2009).

O discurso oficial não deixa dúvidas sobre o limitado espaço destinado aos

professores em sua atividade, o que se revela desde a proposta curricular do Estado –

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neste caso, representado pela gestão do estado de São Paulo – e se reforça pela submissão

destes, forjada pela precarização de suas condições de trabalho, pela pouca percepção das

fragilidades do processo de sua participação, por acreditarem-se - eles mesmos - como

executores das orientações curriculares ou por não se sentirem em condições de oferecer

resistência ao modelo imposto.

Os resultados de nossas pesquisas dão conta que os professores posicionam-se de

forma ambivalente em relação às prescrições curriculares. Se, de um lado manifestam

clara percepção dos conflitos existentes entre as políticas que os responsabilizam pelo

fraco desempenho dos alunos sem que, em contrapartida, sejam consideradas as

condições desfavoráveis em que desenvolvem o seu trabalho, ou as variáveis

(psicossociais, econômicas e culturais) sobre as quais não conseguem exercer nenhum

controle; de outro, “parcela considerável dos professores mimetiza o discurso oficial,

reproduzindo em discurso e em ato a lógica performática e competitiva de uma política

curricular de resultados” (ROSA, 2013, p.15). Assim, a despeito de manifestarem certo

desconforto quanto à posição submissa que mantêm em relação ao modelo oficial, pode-

se dizer deste primeiro grupo de profissionais que cumprem, na prática, o papel de

representantes orgânicos do discurso e das práticas oficiais.

Em um degrau acima na hierarquia dos funcionários (na expressão de Gramsci)

dos sistemas públicos de ensino, figuram os gestores, que são os encarregados de

administrar e divulgar a ideologia dos grupos hegemônicos. Não por acaso, como lembra

Ball (2008, p. 47) ele se transformou no herói cultural do novo paradigma. Trecho da

palestra de Fini novamente ilustra o modo de operação esperado do professor-

coordenador no gerenciamento da proposta curricular da SEE-SP. TAVARES (2012)

pontua, nessa palestra, “as orientações que visam ao controle da ação do professor pelo

Professor-Coordenador”, apesar de todo o cuidado com o uso das palavras por parte da

palestrante:

[…] é claro que ele [o PC] não vai fiscalizar as aulas, embora seja super

recomendado que ele assista algumas, e ele poderá monitorar o trabalho

do professor para saber o que é que está acontecendo, o que está sendo

ensinado, como se dão as relações sociais dentro da sala de aula […]. É

este monitoramento, esta é a essência da função estratégica de

mediação. (SÃO PAULO, 2009 apud TAVARES, 2012).

Conclusão semelhante foi observada por Freitas (2011) a respeito do papel do

professor-coordenador nesse mesmo sistema de ensino. A Proposta Curricular do Estado

de São Paulo apresenta a reorganização social do trabalho pedagógico pautado na adesão.

A inequívoca intenção de homogeneizar as ações didáticas com a intenção de alcançar

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um modelo de ensino “à prova de professor” (GIROUX, 1997, p. 160; APPLE, 1989) é o

que, em última instância, almejam algumas reformas em curso analisadas em diversos

estudos que compuseram o projeto de pesquisa em análise neste texto.

É preciso levar em conta, contudo, que na sombra e no silêncio de tais reformas

curriculares muitos educadores têm a corajosa capacidade de transgredir, uma vez que,

como lembra Contreras (2002, p.128), “são os próprios profissionais do ensino que, em

ultima instância, decidem a forma com que planejam suas aulas, por meio dos quais as

tentativas de influência externa são transformadas em práticas que nem sempre têm muito

a ver com a essência das mudanças pretendidas”. Ainda que em menor numero, essa

possibilidade também foi identificada em estudos conduzidos por pesquisadores

vinculados ao projeto discutido neste trabalho (SANTOS; ROSA, 2011; PONCE; LEITE,

2012). Em momento oportuno, essa discussão também será apresentada.

Entre as conclusões da pesquisa, destaca-se, por ora, o desmonte de ideias

oriundas do senso comum, como a de supor que os educadores, se bem preparados

tecnicamente, seriam bem sucedidos em suas tarefas e as políticas teriam bons resultados.

Antes, há que analisar a pertinência das políticas públicas que vêm sendo empreendidas

e o que vem produzindo na formação e na prática educativa, assim como na vida de todos

os sujeitos envolvidos na e com a escola.

Necessita-se de profissionais da educação que saibam fazer leituras profundas das

políticas públicas e que coletivamente – como parte de sua formação continuada na escola

– discutam as intencionalidades das políticas, de modo a participar efetivamente do

processo educativo, o que poderia fazer com que os profissionais da educação se

apropriassem efetivamente de seu processo de trabalho, que fragmentado como está, os

desorienta.

REFERÊNCIAS

ADRIÃO, Theresa et al. As parcerias entre prefeituras paulistas e o setor privado na

política educacional: expressão de simbiose? Educ. Soc., Campinas , v. 33, n.

119, jun. 2012.

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London, New York, Routledge, 2012.

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CÁRIA, Neide Pena. A parceria de empresas educacionais de iniciativa privada com

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em Educação: Currículo) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,

2012.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São

Paulo: Cortez, 2006.

CHIZZOTTI, Antônio; PONCE, Branca Jurema. O Currículo e os sistemas de Ensino no

Brasil. Curriculo sem Fronteiras, v. 12, n. 3, p.25-36, Set/Dez 2012.

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