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    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudosacadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo decompra futura.

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • As nove vidas de Dewey

  • Folha de Rosto

    Vicki Myroncom Bret Witter

    As nove vidas de DeweyMais histrias do gatoque viveu entre livrose emocionou o mundo

    traduo:Beatriz Bastos

  • Disponibilizao: Baixelivros.org

    Copyright 2011 by Editora Globo S.A. para a presente edioCopyright 2008 by Vicki Myron

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizadaou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico,

    por fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistemas de bancosde dados sem a expressa autorizao da editora.

    Texto fixado conforme as regras do Novo Acordo Ortogrfico da

    Lngua Portuguesa (Decreto Legislativo n 54, de 1995)

    eISBN: 978-85-250-5104-2

    Ttulo original: Deweys nine livesPreparao de texto: Marleine Cohen

    Reviso: Adriana Bernardino e Carmen T. S. CostaPaginao: Ana DobnProjeto de capa: epizzo

    Foto de capa: Rick KrebsbachFoto de orelha: Tim Hynds

    Demais fotos cedidas por: Vicki MyronDiagramao para ebook: Janana Salgueiro

    Direitos da edio em lngua portuguesaadquiridos por Editora Globo S.A.

    Av. Jaguar, 1485 05346-902 So Paulo SPwww.globolivros.com.br

  • Capa

    Folha de Rosto

    Crditos

    Dedicatria

    Prlogo

    1 Dewey e Tobi

    2 Sr. Sir Bob Kittens

    3 Arrepio

    4 Tabita, Boogie, Gail, BJ, Chimilee, Kit, Srta. Cinza, Maira, Meia-noite, Preta, Lola-Bunny, Chazzy, Docinho, Nikki, Facinha, Buffy, Dengo, Caramelo... e outros

    5 Gato de Natal

    6 Biscoito

    7 Marshmallow

    8 Gata da Igreja

    9 Dewey e Ferrugem

    Agradecimentos

    Animais carentes

  • Dedicatria

    Para Glenn,por seu apoio e amor incrveis

  • Prlogo

    Obrigada, Vicki, e obrigada, DeweyEu no acredito em anjos, mas Dewey chega perto.

    Christine B., Tampa, Flrida

    Eu discordo da pessoa que escreveu essa carta, porque acredito que existem anjos andandoentre ns, que nos ajudam a crescer. Acredito em momentos de aprendizagem, quando podemosaprender algo valioso sobre a vida se nossos olhos estiverem abertos ao mundo que nos cerca. Essesanjos da oportunidade, como eu gosto de cham-los, possuem diversas formas. Eles aparecem graass pessoas importantes em nossas vidas, mas tambm por meio de encontros casuais ou de pessoasestranhas. Acredito que Dewey Readmore Books,[1] o famoso gato da biblioteca de Spencer, emIowa, era um desses anjos. Ele me ensinou tantas lies e afetou tantas vidas, que no acredito quetenha sido uma mera questo de sorte. E no acredito em coincidncias.

    Mas sei o que essa jovem quer dizer. Ela est dizendo que Dewey, atravs de suas aes e deseu exemplo, transformou sua vida. Ela no tem palavras para descrever esse poder, mas sabe que algo especial.

    Bom, eu tenho uma expresso para isso: a Magia de Dewey. a expresso que usava toda vezque via a habilidade de Dewey para mudar o modo como as pessoas pensavam a si mesmas.Ningum viu essas mgicas mais do que eu, porque, de todas as pessoas do mundo, eu era a quemelhor conhecia Dewey, e a mais afetada por ele. Sou apenas uma garota comum do estado de Iowa,e h muito tempo trabalho como diretora da biblioteca de uma cidade pequena, a menos de vintequilmetros da fazenda onde nasci e fui criada. Porm, por dezenove anos, tive o privilgio dedividir minha vida com Dewey. E o Dewey... bem, ele era especial. Transformou muitas vidas.Inspirou uma cidade. Ficou famoso no mundo inteiro, foi manchete de revistas e jornais, e foi tema dolivro de memria que ficou em primeiro lugar na lista de mais vendidos do The New York Times, queeu, sendo a me de Dewey, tive o privilgio de escrever. Foi a Magia de Dewey. Ele era apenasum gato, mas tinha um modo especial de aflorar o que h de melhor em ns. Ele fazia todo mundo seapaixonar por ele. Comoveu o mundo. Quem um dia conheceu Dewey Readmore Books nunca mais o

  • esqueceu.Sua histria comeou sem estardalhao, durante um final de semana estupidamente frio, em

    janeiro de 1988. A temperatura era de menos quinze graus, o tipo de frio que queima o pulmo edescasca a pele do rosto (ao menos esta a sensao). Esse tipo de frio, frequentementeacompanhado por ventos ferozes, a pior coisa de morar nas grandes plancies do Norte. A genteaprende a tolerar o frio, mas no se acostuma com ele. Algumas vezes, no norte de Iowa, no aconselhvel sair de casa.

    Apesar do frio gelado, algum passou pelo centro de Spencer, porque, em algum momentodaquele domingo, um gatinho pequenininho e sem casa foi colocado no buraco de devoluo delivros nos fundos da Biblioteca Pblica de Spencer. Eu espero que tenha sido um ato de bondade.Algum viu um gatinho de oito semanas, pesando menos de um quilo, tremendo na neve, e quisproteg-lo. Se foi isso, a pessoa se enganou. O lugar por onde se fazia a devoluo de livros dabiblioteca era um tubo de metal que descia pouco mais de um metro e levava a uma caixa de metalfechada. Na verdade, era como uma geladeira. No havia cobertores, almofadas nada macio ,apenas um metal frio. E livros. Por pelo menos dez horas (talvez 24 horas), o pequeno Dewey ficousentado num ambiente terrivelmente frio e escuro, com nada mais para confort-lo alm de livros.

    Eu entro na histria na segunda-feira bem cedo pela manh, quando abri a caixa de devoluode livros e encontrei um gato minsculo l dentro. Quando ele olhou ansiosamente para mim, meucorao parou. Ele era to fofo... e to carente. Eu o envolvi com as mos at que parasse de tremer,depois lhe dei um banho quente na pia da livraria, e o sequei com o secador usado normalmente parao artesanato das crianas. Depois Dewey assumiu o controle, cambaleando, com seus pscongelados, em direo a todos que trabalhavam na biblioteca, fazendo carinhos com o nariz.

    Eu decidi, naquele momento, que a biblioteca deveria adot-lo. No s porque me apaixoneiquando ele me olhou com aqueles radiantes olhos dourados. Eu sabia, por causa daqueles olhos, epor causa de sua determinao em agradecer a cada membro da equipe por t-lo salvado, que ele seencaixaria perfeitamente no meu plano de aquecer o ambiente institucional e frio da BibliotecaPblica de Spencer. Ele tinha uma personalidade amvel e extrovertida, uma presena acalentadora,e fazia todo mundo se sentir bem.

    Naquele momento, era exatamente isso que Spencer, Iowa, precisava. A cidade agonizava porconta de uma crise agrcola, com 70% das lojas do centro vazias e as fazendas do campo indo falncia. Precisvamos de alguma histria acalentadora. Alguma coisa boa sobre a qual conversar,uma lio de persistncia, esperana e amor. Se era possvel que um pequeno gatinho tivesse sidoposto numa caixa de metal fria e escura, e que tivesse sado de l com sua confiana e compaixoinabaladas, ento ns tambm podamos aguentar nossos sofrimentos.

    Mas Dewey no era um mascote. Era um companheiro de carne e osso, um animal semprereceptivo e amvel com todos que adentravam a biblioteca. Ele aquecia os coraes indo de um colopara o outro. E o que talvez seja ainda mais importante, ele sempre sabia quem precisava mais dele.

    Lembro dos aposentados que nos visitavam todas as manhs. Depois que Dewey apareceu,

  • muitos passaram a ficar mais tempo na biblioteca, conversando mais com o pessoal que trabalhaval.

    Lembro de Crystal, uma aluna do ensino secundrio com graves incapacidades fsicas, que nofazia nada, s olhava para o cho, at que Dewey a encontrou e comeou a pular na cadeira de rodasassim que ela entrava pela porta. Ento, Crystal passou a olhar o mundo sua volta. Toda semana,quando entrava na biblioteca, fazia barulhos, e quando Dewey vinha correndo e saltava sobre ela, umsorriso explodia de seu corao.

    Lembro da nova assistente da seo de livros infantis, que havia se mudado recentemente paraSpencer para cuidar da me doente. Ela e Dewey sentavam juntos toda tarde. Um dia eu a descobricom uma lgrima no rosto. Percebi o quanto ela andara sofrendo, e que apenas Dewey estivera alipara ela.

    Lembro da mulher tmida que tinha dificuldade para fazer amigos. Lembro do jovem frustrado,incapaz de encontrar trabalho. Lembro do sem-teto que nunca falava com ningum, mas sempre queencontrava Dewey o colocava no ombro (o ombro esquerdo, claro; Dewey s ficava no ombroesquerdo) e andava com ele por quinze minutos. O homem cochichava, Dewey ouvia. Sei que ouvia.E por escutar, por estar presente, Dewey ajudava a todos.

    Mas, acima de tudo, lembro das crianas. Dewey tinha uma relao especial com as crianas deSpencer. Ele amava os bebs. Deslizava para dentro dos seus carrinhos e se aninhava ao lado delescom uma expresso de completo contentamento no rosto, mesmo que lhe puxassem as orelhas. Ascrianas um pouco maiores faziam carinho, cutucavam e soltavam gritos de alegria diante de Dewey.Ele ficou amigo de um menino muito alrgico e inconsolvel por no poder ter seu prprio bichinhode estimao. Dewey passava a tarde com os alunos do ensino secundrio que ficavam na bibliotecaenquanto os pais trabalhavam, brincando com seus lpis e se escondendo nas mangas dos casacos. Ena Hora da histria, a cada semana, ele se roava lentamente em todas as crianas antes deescolher o colo no qual iria sentar alis, um colo diferente a cada semana. Sim, Dewey tinhahbitos tpicos de gatos. Dormia muito. Era fresco com essa coisa de carinho na barriga. Comiaelsticos. Atacava as teclas da mquina de escrever (naquela poca, ainda havia mquinas deescrever) e teclados de computador. Descansava em cima da mquina de xerox, que soprava um arquente. Subia nas luminrias. Era impossvel abrir uma caixa em qualquer lugar da biblioteca semque Dewey pulasse dentro dela. Mas o que ele realmente fez foi algo no menos felino, mas muitomais profundo: um por um, ele abriu o corao dos habitantes de Spencer uns para os outros e para abeleza e o amor em nossa pequena cidade situada no meio das grandes plancies do Iowa.

    Era esta a verdadeira Magia de Dewey, sua capacidade de contagiar todas as pessoas queconhecia com seu jeito alegre, amigvel e relaxado de encarar a vida.

    Por que ele ficou famoso? Foi por puro carisma. Eu queria, claro, que ele fosse bemconhecido em Spencer. Dei duro para que ele ajudasse a mudar a imagem da biblioteca, para torn-laum ponto de encontro e no apenas um lugar no qual livros eram armazenados. Surpreendeu-me quealgum fora do noroeste de Iowa se importasse com isso. Comeou lentamente, mas depois uma

  • enxurrada de pessoas passou a aparecer, atradas pela histria do gato especial que inspirava umacidade. Primeiro vieram os jornalistas de Des Moines, da Inglaterra, de Boston e do Japo.Depois, os visitantes. Um casal de idosos de Nova York que atravessava o pas de carro, depois deconhecer Dewey, todos os anos mandava dinheiro no seu aniversrio e no Natal. Veio uma famlia deRhode Island, que estava em Minneapolis para um casamento, a cinco horas de distncia de Spencer.Veio uma pequena menina doente do Texas que, certamente, havia pedido essa visita como umpresente aos pais. Era incrvel observar esse florescer acidental da fama. As pessoas conheciamDewey, passavam um tempo com ele e se apaixonavam. Ento, iam para casa e falavam dele paraoutras pessoas, a vinham essas outras pessoas, que saam daqui impressionadas, e, logo depois,quando nos demos conta, estvamos recebendo telefonemas de um jornal de Los Angeles ou de umreprter da Austrlia.

    Portanto, quando, aos dezenove anos, Dewey morreu depois de servir comunidade deSpencer e biblioteca pblica, todos os dias, com sua graa e entusiasmo , no me surpreendeu queseu obiturio, publicado inicialmente em Sioux City, aparecesse em mais de 275 jornais. Tambmno foi uma surpresa a biblioteca receber milhares de cartas de todo o mundo. Tampouco o fato decentenas de fs assinarem seu livro de condolncias e comparecerem a uma homenagem improvisada.Durante dois meses, fomos cercados por reprteres e admiradores que pediam para que falssemossobre Dewey. Depois, lentamente, o alvoroo diminuiu. As cmeras foram desligadas e Spencervoltou a ser a cidade pacata que sempre foi. Aqueles que amavam Dewey, finalmente, ficaramsozinhos com seus lutos particulares. A celebridade de Dewey acabara, mas as lembranas do nossoamigo ficaram guardadas em nossos coraes. Quando finalmente enterrei as cinzas de Dewey dolado de fora da janela da seo infantil da biblioteca, que ele tanto amava, foi na aurora de um diagelado de dezembro, e apenas a diretora-assistente da biblioteca estava ao meu lado. E era assim queele teria gostado.

    Eu sabia que ele deixara um legado, pois Dewey havia me transformado. Ele havia mudado atodos que trabalhavam na biblioteca. Ele havia mudado Crystal, a garota com deficincia, e o homemsem-teto, e as crianas que vinham toda semana para a Hora da histria, muitas das quais, depois,trouxeram seus prprios filhos para conhecer o Dewey mais velho. Eu sabia o quanto ele eraimportante, porque as pessoas continuavam me contando suas histrias com Dewey, confiando emmim, de certa forma. No final, ele tocou mais do que a cidade de Spencer. Mas quem tinha conhecidoDewey, quem amava Dewey e conhecia sua histria, foi transformado por ele. O seu legadosobreviveria dentro de ns.

    Eu achei que seria assim. Eu realmente achei.Ento, algo incrvel aconteceu. Escrevi um livro sobre Dewey, e recebi mensagens de pessoas

    do mundo todo. O livro deveria ser um tributo ao meu amigo, um obrigado por seus servios aSpencer e pelo impacto que teve sobre a minha vida. Eu sabia que ele tinha fs, e achei que eles iamgostar de saber a histria toda. Mas eu no esperava uma resposta to intensa. Muitas pessoas queiam aos eventos que eu promovia com o livro no gostavam apenas de Dewey ou de ler o livro, elas

  • amavam os dois. Sentiam-se tocadas pela histria. E sentiam que haviam mudado. Lembro de umamulher de Sioux City que desabou em lgrimas quando me contou que a me dela, uma professora depiano de Spencer que tocava o rgo da igreja, a levava todos os sbados para comer pezinhosdoces de canela e para um passeio at a biblioteca para ver Dewey. Depois, a me teve Alzheimer e,aos poucos, esqueceu o marido, os filhos e a prpria identidade. Ento, ela dirigia duas horas deSioux City, todas as semanas, para visit-la e sempre trazia seu gato. O gato era preto e branco, nadaparecido com a cor de cobre de Dewey, mas sua me sempre sorria e dizia: Oh, o Dewey.Obrigada por trazer o Dewey. A filha mal conseguiu falar essas ltimas palavras, de tanto quechorava.

    Depois que te conheci, fui para o estacionamento, ela me contou algum tempo depois, senteino meu carro e chorei durante uns quinze minutos. As lgrimas no paravam. Minha me est mortah doze anos, mas foi a primeira vez que eu realmente chorei por ela. Quando pensei em Dewey,lembrando o quanto minha me o amava, foi o final do meu processo de luto.

    O que foi mais estranho? Eu no conhecia essa mulher, Margo Chesebro, ou a me dela, GraceBarlow-Chesebro (mas, pela descrio que a filha fazia dela, de uma mulher esperta, forte,independente, que acreditava na magia dos animais, eu sei que teria gostado dela). Ainda assim, elashaviam conhecido e amado Dewey. Ele foi uma parte constante e importante de suas vidas,suficientemente importante para que Grace no se esquecesse dele, mesmo estando com a cabearuim, mesmo depois de se esquecer para sempre do nome dos seus prprios filhos e de estarconvencida de que o marido era o seu irmo que morrera havia muito tempo. Foi ento que percebique eu no poderia nunca, realmente, saber quantas vidas foram tocadas por Dewey.

    E havia tambm as pessoas que nunca chegaram a conhecer Dewey, os estranhos que ficavamto comovidos com sua histria que se sentiam compelidos a me escrever. Isso comeou quaseimediatamente depois da publicao do livro. Eu nunca escrevi para um autor antes, mas fiqueimuito comovido com a histria de Dewey.... Ou: Dewey era um anjo, obrigado por dividi-lo com omundo.

    Conforme os meses passavam, e o livro alcanava o topo das listas de mais vendidos do pas,as cartas se tornaram mais frequentes, at que comecei a receber dzias de cartas todos os dias.Depois de um ano, eu j tinha recebido mais de 3 mil cartas, e-mails e pacotes, quase sempre depessoas que nem sequer haviam ouvido falar de Dewey antes de ler o livro. Recebi um travesseirocom um bordado do rosto de Dewey, como aparece na capa do livro. Recebi diversas pinturas dele.Uma pessoa que morou em Spencer se mudou, mas nunca se esqueceu de Dewey, encomendou umaescultura dele para a biblioteca. (Eu sabia que a Magia de Dewey estava funcionando quando vi ondeera o ateli do artista que trabalhava na escultura: Dewey, Arizona.) No d nem para contar quantosdesenhos, enfeites e esculturas de gatos eu recebi de fs. Tenho uma estante em casa s para essascoisas e ela est transbordando.

    Uma pessoa me mandou vinte dlares para comprar rosas para Dewey. Outra mandou cincodlares para comprar erva-gato e colocar no seu tmulo. Uma mulher de um centro de telefonia de

  • Idaho me disse que toda vez que algum liga de Iowa, ela pergunta por Dewey, esperando encontraralgum que o conhea. Um outro homem me mandou a foto de uma jarra onde guarda moedas, e najarra tem uma foto de Dewey. Desde ento, o homem passou a doar esse dinheiro para o socorro deanimais.

    Eu leio todos os cartes, cartas e e-mails. Queria responder a todos, mas era impossvel,tamanha a demanda. Ainda mais porque com frequncia eu estava viajando, encontrando fs deDewey. (Mas podem ficar seguros, escritores de cartas, que eu levei as tais rosas e a erva-gato parao tmulo de Dewey.) Os sentimentos expressos nas cartas, e o modo como Dewey continuava atransformar a vida das pessoas, me tocaram mais do que os fs podem imaginar.

    Um jovem que passara por um divrcio devastador e por problemas em sua profisso coisasque o deixaram amargo e raivoso escreveu para dizer que a vida de Dewey abriu meu corao.

    Uma mulher com esclerose mltipla grave me contou que, depois de ler Dewey, curvou-se at ocho para beijar a cabea do cachorro da casa de sade onde morava. Precisou de ajuda para selevantar, mas no se arrependeu do que fez, visto que o co faleceu uma semana depois.

    Um homem da Inglaterra escreveu para dizer que havia perdido sua esposa muitos anos antes.Foi apenas depois de ler Dewey que percebeu que os dois gatos que ela deixara dois animais que oincomodavam tinham, na verdade, o amparado. Se no precisasse cuidar daqueles gatos, escreveu,estaria numa depresso negra que poderia ser insuportvel.

    A carta de uma mulher jovem da Flrida era tpica. Logo antes de ler Dewey, escreveu, elaterminara uma relao conturbada de dois anos com um perigoso alcolatra, que destrura suaautoestima e a levara a criar dvidas e a ter seus bens hipotecados. Eu me senti boba, ela disse, emais que tudo, me senti um fracasso. Mas a li seu livro.

    Agora, fico feliz de dizer que, ela continuava depois, na segunda-feira volto a estudar. Estoume esforando para reconstruir a minha vida. Isso no aconteceu por causa do seu livro, mas o seulivro me deu fora, me fez ter determinao. Acima de tudo, a leitura me fez ver que eu no tinhachegado ao fim.

    Por isso, obrigada, Vicki, e obrigada, Dewey... Eu no acredito em anjos, mas Dewey chegaperto. Mesmo morto, ele tocou vidas, como a minha, atravs de voc. Voc foi realmente abenoadapor ter convivido com algum to especial, mas nem preciso te dizer isso. Eu sei que fui abenoadapor ter Dewey na minha vida, mesmo sem nunca t-lo conhecido.

    Se eu fiquei emocionada quando li essa carta? Claro que sim. Comover algum toprofundamente, e ajudar esse algum a ver perspectivas em sua vida, um presente que vou cultivarpara sempre. Fico orgulhosa. E esse presente me foi dado por Dewey.

    Desde a publicao do livro, no recebi notcias apenas de estranhos. Velhos amigos e pessoasda famlia, que estavam distantes da minha vida, me procuraram tambm. Conheci pessoas, como omeu coautor, os meus editores e o meu agente, que se tornaram verdadeiros amigos. (O ilustrador doslivros infantis de Dewey chama-se Steven James, o mesmo nome do meu irmo que morreu de cnceraos 23 anos de novo, a Magia de Dewey!) At meu ex-marido me procurou. Ele era um homem

  • doce, inteligente, mas tambm sofria de um alcoolismo grave, e prejudicou a minha vida e a suaprpria mais do que qualquer outra pessoa. Ns tivemos uma filha, mas eu no tinha notcias delehavia onze anos. At que, depois de ler o livro, ele me escreveu uma carta. Fazia uma dcada queestava sbrio. Casou-se com sua primeira namoradinha e eles viviam felizes no Arizona. Ele mandoufotos e parecia bem. Sempre foi um homem bonito. Parecia feliz, e sua mulher tambm. Ele meenviou uma camiseta que dizia Cuidado, seno coloco voc no meu livro outra de suas piadas.Ele no ficou chateado com nada do livro, pois era tudo verdade. Me desculpe, ele dissesimplesmente. E terminava a carta: Estou orgulhoso de voc. Eu tambm fiquei muito orgulhosadele.

    Tambm me procuraram colegas bibliotecrios, pessoas que cresceram no campo, messolteiras, nativos de Iowa, pessoas que haviam perdido entes queridos que se suicidaram (no meucaso, um irmo) e mulheres que sobreviveram ao cncer de mama. Soube de outras mulheres que,assim como eu, passaram pela experincia terrvel de uma histerectomia desnecessria nos anos1970. Incluindo uma mulher de Fort Lodge, em Iowa, cuja cirurgia foi feita pelo mesmo mdico e namesma poca que eu. A cirurgia quase me matou, ela me disse em uma noite de autgrafos. Fiqueiem coma por uma semana. Minha sade, como a sua, nunca foi a mesma. Nos abraamos. Elachorou. s vezes, eu acho, bom saber que no estamos ss.

    Comunidade, esse o nome. Comunidade. Eu acredito, fortemente, no poder da comunidade,seja ela uma cidade real, uma religio ou o amor pelos gatos. Acredito que Dewey seja um livrosobre pessoas comuns que mostra o que bom e possvel na vida normal, e por esse motivo elecomoveu tantos coraes. As pessoas gostam de Spencer, Iowa. Gostam dos nossos milharais e danossa arquitetura, e tambm gostam do que representamos: simplicidade, muito trabalho (comoantigamente), mas tambm criatividade, comprometimento e amor. (O mdico que me ajudou comminha mastectomia dupla, dr. Kohlgraf, me disse que, depois de vinte anos, ele afinal haviaconseguido convencer uma das melhores cirurgis da Califrnia a vir trabalhar na sua clnica. Ela leuo livro, amou e quis morar em um lugar como Spencer.) A honestidade e os valores expressos nolivro Encontre o seu lugar. Seja feliz com o que tem. Trate bem a todos. Viva uma vida boa. No o material que importa, o amor. E impossvel prever o amor transcendem fronteiras. A histriade Dewey foi um best-seller na Inglaterra, no Brasil, em Portugal, na China e na Coreia. Eu j fuiconvidada para ir Turquia. Um homem de Milo, na Itlia, veio a Spencer s para ver a cidadeonde Dewey vivia. Pessoas do mundo inteiro me disseram que vm visitar a famosa cidade deSpencer, Iowa. E, mais importante: as pessoas guardam o livro e passam para as geraes seguintescomo um tesouro de famlia. Vocs acham que porque elas se importam tanto assim com a histria?No, claro que no. Elas querem dividir o poder do amor que est tecido naquelas pginas.

    Em outras palavras, o que essas pessoas buscam a Magia de um animal especial chamadoDewey Readmore Books, um gato que conseguiu, dentro das paredes de uma pequena biblioteca doestado de Iowa, comover o mundo. Como eu disse no comeo, tudo isso para e por causa deDewey. No haveria um livro sem ele. Como escreveu a jovem mulher da Flrida, todos os leitores

  • experimentaram a Magia de Dewey nas suas vidas, mesmo sem nunca o terem conhecidopessoalmente.

    Dewey est vivo! Mesmo no estando mais aqui, ele vive na memria, como uma lembrana,um exemplo do que correto no mundo. Mais importante, eu percebi, conforme lia cartas e maiscartas, Dewey vivia em todos os outros animais que compartilhavam sua ternura, sua vontade debrincar, sua ateno e devoo. O que eu mais gostava nas cartas era que 30% eram escritas porhomens (incluindo dois xerifes amantes de gatos), mas todos comeavam dizendo: Eu sei que vocnunca recebeu cartas de homens.... No se preocupem, homens de verdade amam gatos tambm! Maso mais importante, que eu li repetidas vezes, era isto: Dewey me emocionou, porque ele melembrava do meu prprio bicho de estimao.

    Aos poucos, percebi que Dewey havia tocado no amor profundo que pessoas ao redor domundo sentem por animais. E aquele Dewey, o livro, deu a essas pessoas algo igualmente importante:um modo de compartilhar seu amor. Acredito que de algum modo o livro fez com que fosse aceitveldizer a um estranho, mesmo que esse estranho fosse eu: Eu amo meus gatos. Eles so importantes.So meus amigos. Eles mudaram a minha vida. Quando morrerem, vou sentir muitas saudades.Como um homem me escreveu, aps relatar o quo mal se sentiu ao passar por um divrcio difcil, ecomo os seus gatos foram a sua nica luz durante esse triste perodo:

    Primeiro pensei, meu Deus, como posso amar tanto dois animais? Deve haver algo errado comigo. Minha vida deve estarmuito vazia. Eu tinha vergonha de admitir para mim mesmo o quo importante eram os gatos na minha vida. Ento li seulivro e entendi que no havia nada de errado em amar um animal to profundamente. De algum modo, seu livro me mostrouser normal amar os meus gatos dessa maneira, e mostrou ser normal eu querer explorar ainda mais este amor,aprofundando a nossa amizade e entrelaando as nossas vidas ainda mais.

    Obrigado.

    Por muito tempo, a palavra que vinha mente das pessoas quando ouviam falar de uma relaoprofunda entre um gato e uma pessoa era: triste. Mas eu era apaixonada pelo meu gato. E no era anica, de modo algum. Eu acho que Dewey, atravs de sua generosidade de esprito e de suapersonalidade cativante atravs da Magia de sua vida na biblioteca de uma pequena cidade ,tornou-se smbolo da conexo vital que tantos seres humanos tm com os animais da sua vida.

    Em As nove vidas de Dewey, voc vai ler nove histrias sobre gatos extraordinrios e sobre aspessoas que os amavam. Trs dos captulos se passam em Spencer, Iowa, ou por perto, e contamhistrias de Dewey que no entraram no primeiro livro porque eu desconhecia essas histrias napoca. As outras seis histrias so sobre pessoas que me escreveram depois de ler Dewey. So oscolaboradores mais puros: fs que escreveram apenas para expressar admirao e amor por Dewey epor seus prprios animais, sem esperar nada em troca.

    Sero estas as melhores histrias que poderiam sair daquelas 3 mil cartas? No sei. Afinal, emboa parte dos casos, uma ou duas frases bastavam para me impressionar.

    Fizemos de nossa casa um abrigo para gatos abandonados ou maltratados...Ele sobreviveu ao ataque de um coiote e a uma patada de urso, e andou quase cinquenta

    quilmetros para voltar para mim, depois que uma mulher vingativa o levou para longe apenas para

  • me fazer sofrer.Eu nunca fui amada por ningum, nem mesmo pela minha filha nem pelos meus pais, tanto

    quanto fui amada pela minha Biscoito.Quando eu e meu coautor, por meio de telefonemas, investigvamos as cartas, ouvamos

    histrias completamente inesperadas sobre pessoas e gatos. Algumas melhores, outras piores. Todasgenunas, histrias comoventes sobre pessoas de verdade e seus animais. Depois de Dewey, aspessoas me aconselharam a escrever sobre o gato achado no sof doado a Goodwill, sobre o gatoqueimado que viram no noticirio local, sobre o gato de um olho s, ou sobre o gato sem orelha quepassou a vida num bar de Chicago. Mas pensei: por qu? Qual a conexo com Dewey? Sohistrias fofas, mas onde est o amor? Se eu for contar essas histrias, quero que tenham o mesmofundamento de Dewey: a ligao especial entre um gato e uma pessoa. Eu queria escrever histriassobre pessoas cujas vidas tivessem sido transformadas por causa de seu amor por um gato.

    As pessoas neste livro no se veem como heris. Como costumo dizer, elas no fizeram nadaque pudesse aparecer no programa Today ou no telejornal da manh. So pessoas comuns, que levamuma vida normal e tm animais normais. No sei dizer se so as melhores histrias entre todas ascartas, mas posso assegurar uma coisa: eu gosto de todas as pessoas deste livro. So como aspessoas com as quais cresci em Spencer, o tipo de gente que quero como amiga. Com os seus gatos,elas encarnam tudo que Dewey significava: bondade, perseverana, moralidade, trabalho duro efora inesgotvel, no importam quais as circunstncias, so fiis aos seus valores e a si prprias. Sea ressonncia das histrias de Dewey ocorre, em parte, pelos valores que representa, ento eu queriaque essas pessoas tambm refletissem esses valores. E acho que elas conseguem. Fico orgulhosa deter conhecido cada uma delas.

    Eu no sei se voc vai gostar de todas as atitudes tomadas pelos personagens deste livro. Vocno vai, porque eu mesma no concordo com algumas. Por mais que tente, por exemplo, no consigoaceitar o fato de Mary Nan Evans no ter castrado suas gatas antes. Simplesmente no aceito. Outrosdeixam seus animais passear fora de casa, mesmo que todo mundo saiba que isso diminui aexpectativa de vida deles. Alguns gatos parecem muito mimados, ou sufocados, ouantropomorfizados. Sei que vo discordar. Afinal, eu mesma recebi e-mails raivosos porque deixeiDewey comer sanduches de rosbife do Arby durante seu ltimo ano de vida. Eu amava aquele gatocom todo o meu corao; eu dava a ele tudo que podia; ele viveu dezenove anos maravilhosos dezenove! e, mesmo assim, pessoas me maltrataram ou me chamaram de assassina porque, no finalda vida dele, por um ato de misericrdia que rasgou o meu corao, eu o botei para dormir.

    Se voc se sentir tentado a criticar, pare e pense no seguinte: todas as pessoas neste livroamavam seus animais, intensa e profundamente. Todas elas fizeram o melhor que podiam, do modocomo sabiam, pelos seus animais. Se tomaram decises com as quais voc discorda, isso no motivo para julgar seu carter. Elas simplesmente so diferentes de voc. Ou viveram em um tempodiferente, com um entendimento diferente de como animais e pessoas se desenvolvem juntos. Ou, emmuitos casos, as duas coisas. No mudamos nada nas histrias deste livro. Nada foi enfeitado. Este

  • no o Feiticeiro de Gatos ou um guia sobre como cuidar de gatinhos. Esta uma coleo dehistrias sobre como vivem gatos reais e pessoas reais.

    Este livro no um Dewey: a sequncia, nem deseja ser isso. H apenas um Dewey (o livro),assim como h apenas um Dewey (meu incrvel gato). Mas h milhares de histrias. H milhes degatos que poderiam, se tivessem uma chance, mudar uma vida. Eles esto por a, morando com aspessoas que aparecem neste livro e com milhes de outras como elas. Eles tambm esto por avivendo em condies bem piores: em abrigos, com grupos de gatos selvagens, ou lutando parasobreviver sozinhos em ruas frias, esperando uma chance.

    De todas as lies que aprendi nos ltimos vinte anos, talvez a mais importante seja esta: anjosexistem em todas as formas. O amor pode chegar de qualquer lugar. Pode mudar uma cidade. De ummodo pequeno, pode mudar o mundo.

    Assim como voc.

  • 1Dewey e Tobi

    Ela era uma gata calma, gentil e nunca se metia em encrenca com ningum. S queria viver edeixar viver, entende o que eu quero dizer?

    Para quase todo o mundo, a minha amada Spencer, em Iowa, com uma populao de mais oumenos 10 mil pessoas, uma cidade pequena. As ruas, em sua maioria numeradas numa malhaquadrangular que se estende 29 quadras de norte a sul (com um rio no meio) e 25 quadras de leste aoeste, so fceis de entender. As lojas, que basicamente ficam ao longo da Grand Avenue, nossa ruaprincipal, so suficientes sem serem opressivas. A biblioteca de um nico pavimento, prxima esquina da Grand Avenue com a Third Street, no corao do centro da cidade, familiar eacolhedora.

    Mas tamanho relativo, sobretudo num lugar como Iowa, um estado com um sexto da populaoda Flrida, mas quase o dobro de cidades incorporadas.[2] Muitos de ns somos de cidades aindamenores do que Spencer, como Moneta, o lugar que considero minha cidade natal, ainda que eu tenhacrescido numa fazenda a trs quilmetros de distncia. Moneta tinha seis quarteires e cincoedifcios comerciais, se voc incluir o bar e o salo de baile. No seu auge, a populao era de poucomais de duzentas pessoas. Isto menos gente do que as que atravessam a porta da Biblioteca Pblicade Spencer todo dia.

    Assim, por aqui, na rea rural de Iowa, Spencer grande. o tipo de cidade para a qual aspessoas se dirigem, e no simplesmente passam por ela. o tipo de cidade onde voc reconhece amaioria das pessoas, mas no necessariamente sabe seus nomes. Uma cidade onde todos ficamsabendo do fechamento de um negcio, e tm uma opinio sobre isso, embora nem todos sejamdiretamente afetados pelo fato. Quando uma fazenda vai mal em Clay County, onde Spencer selocaliza, talvez a gente no se lembre do fazendeiro, mas lembramos de algum como ele, e nosinteressamos e entendemos do assunto. No importa se somos de uma velha linhagem de agricultores,ou um dos recentes imigrantes hispnicos que ocupam vrias funes na enorme economia agrcolaindustrial, pois compartilhamos mais do que um pedao de terra de linhas retas e cuidadosamente

  • demarcado chamado Spencer, Iowa. Compartilhamos uma atitude, uma tica de trabalho, uma visode mundo, e um futuro.

    Mas nem todo mundo se conhece. Como diretora da Biblioteca Pblica de Spencer, isso semprefoi claro para mim. Eu podia andar pela biblioteca a qualquer momento, em qualquer dia, ereconhecer os visitantes costumeiros. Eu sabia o nome de muitos deles. Cresci com muitos deles, egeralmente conhecia suas famlias tambm. Lembro-me de um frequentador costumeiro, mais de umadcada atrs, que durante alguns meses ficou cado em completo esquecimento. Eu o conhecia desdea escola, e conhecia seu passado. Ele se envolvera pesadamente com drogas, largou o vcio, masficou claro que enfrentava problemas de novo. Ento, liguei para seu irmo, um velho amigo que veiodirigindo de fora do estado para providenciar ajuda. Esta a bno de uma cidade como Spencer:as ligaes so profundas. Socorro e amizade esto frequentemente a um telefonema de distncia.

    Mas a biblioteca atraa visitantes de nove municpios quando eu me aposentei, ns tnhamos18 mil membros associados, quase o dobro da populao de Spencer , ento no havia jeito deconhecer todo mundo. Um dos muitos visitantes costumeiros que eu reconhecia (mas no conhecia)era uma mulher chamada Yvonne Barry. Era quinze anos mais jovem do que eu, ou seja, eu no aconhecia da escola. Ela no era originalmente de Clay County, ento eu no conhecia a famlia dela.O pessoal ficava de olho no homem desabrigado que vinha toda manh ver Dewey, pois queramoster certeza de que ele se portava bem, mas Yvonne estava sempre bem-vestida e arrumada, entonunca pareceu haver motivo para nos preocuparmos. E ela era muito quieta. Nunca puxava conversa.Se voc dissesse, Bom dia, Yvonne, o mximo que recebia era um sussurrado Oi. Ela gostava derevistas, e sempre levava livros. Alm disso, eu s sabia uma coisa sobre ela: ela amava Dewey. Eupodia ver pelo sorriso em seu rosto sempre que ele se aproximava.

    Todo mundo achava que ela tinha uma relao nica com Dewey. Eu no sei quantas vezesalgum cochichou para mim, em estrita confidncia: No diga a ningum, pois vo ficar comcimes, mas Dewey e eu temos algo especial. Eu sorria e concordava e esperava pelo prximo queme diria exatamente o mesmo. Dewey era to generoso em seu afeto, veja voc, que todo mundosentia a ligao. Para eles, Dewey era nico. Mas, para Dewey, eles eram um entre trezentos...quinhentos... mil amigos costumeiros. Eu pensava que ele no podia guardar todos no corao.

    Ento, presumi que Yvonne fosse mais uma companhia ocasional. Ela passava seu tempo comDewey, mas eles no corriam um para o outro. No me lembro de Dewey esperando por ela. Mas, dealgum modo, durante as visitas de Yvonne, eles pareciam sempre terminar juntos, zanzando pelabiblioteca numa busca secreta e silenciosa, contentes e quietos como peixes no fundo do mar.

    Foi apenas quando Dewey morreu que Yvonne comeou a falar. Um pouco. Durante dezenoveanos eu acompanhei o invarivel fluxo das conversas de Dewey com muitos dos frequentadores dabiblioteca. Depois de sua morte, parecia que s podamos conversar sobre isso. No entanto, foisomente quando o nervosismo inicial passou, quando a marcha pesada e fria do inverno assentou, equando a percepo de que Dewey morrera j havia penetrado fundo nos nossos ossos, que Yvonneme abordou, quieta e nervosamente, e falou sobre Dewey. Disse-me o quanto ela esperava para v-

  • lo. O quanto ele a havia entendido. O quo gentil e bravo ele era. Contou-me, mais de uma vez, dodia em que Dewey dormiu em seu colo por uma hora, e como isto a fez se sentir especial.

    lindo isso, eu lhe disse. Obrigado.Eu apreciei sua considerao, tanto mais por saber o quo difcil era para ela iniciar uma

    conversa. Mas eu estava ocupada, e nunca perguntei mais nada a ela. Por que deveria? Deweysentava no colo de todo mundo. Claro que era especial.

    Aps algumas poucas conversas, Yvonne parou de falar. Ela voltou para os bastidores e seumomento especial com Dewey tornou-se apenas outra pincelada no gigantesco retrato da vida dele.Foi somente dois anos depois, aps saber como ela havia ficado alegre por seu nome ter aparecidoem Dewey, que voltei a conversar com ela. At ento eu tinha colecionado tantas histrias doces,porm ingnuas, de frequentadores da biblioteca a respeito de Dewey histrias que diziam poucomais do que Eu no sei explicar, ele apenas me fazia feliz que duvidei de que nesta histriahaveria algo especial.

    Mas a histria de Yvonne era diferente. Havia algo na ligao dela com Dewey que me fezlembrar por que eu sempre amei bibliotecas. E cidades pequenas. E gatos. Yvonne era to fechada,tenho de admitir, que no descobri muito a seu respeito. Na poca eu achava que sabia, mas quando liessa histria, percebi que ela permanecia, e sempre permanecer, um tanto misteriosa.

    Em lugar disso, aprendi como vidas podem ser diferentes, mesmo quando vividas lado a lado. Ecomo fcil se perder, mesmo numa cidade pequena e simples como Spencer, Iowa. Aprendi como difcil conhecer algum, e como isso pouco importa, se o seu corao estiver aberto s necessidadesdessa pessoa. No temos que entender, temos apenas que nos importar.

    Mais uma vez, isto algo que eu aprendi com Dewey. Esta era a sua Magia. Afinal, suponho,esta mais uma histria sobre ele.

    ***

    Yvonne cresceu em Sutherland, Iowa, uma cidade de mais ou menos oitocentas pessoas, acinquenta quilmetros a sudoeste de Spencer. Seu pai era o que poderamos chamar de um faz-tudo.Ele trabalhou numa pequena fazenda alugada, prximo estrada municipal M12, serviu numa srie decargos administrativos de baixo escalo do municpio e tinha um velho caminho de gua que eleenchia no poo da sua propriedade e distribua entre os currais da regio. Eu conheci muitos homenscomo ele: calado e de andar meio arrastado, quase sempre despercebido, mas sempre l; um bomrapaz esperando um empurro que nunca chega. Finalmente, depois de terem decidido afast-lo doescritrio, a famlia deixou a fazenda alugada e se mudou para uma casa na cidade. O pai delacomeou a trabalhar na fbrica. Yvonne, com cinco anos e a mais nova entre cinco crianas, passou acuidar dos gatos que perambulavam pela nova propriedade.

    Eu mesma me lembro destes dias de infncia no campo: as longas e lentas estaes, as horasgastas brincando com meus irmos no quintal, enquanto meus pais trabalhavam para fazer a fazendaproduzir. Eu ainda lembro, como se fosse ontem, da tarde em que meu pai apareceu em casa com

  • Bola de Neve, o primeiro animal que amei na vida. Era um dia quente de comeo de vero, e euestava no quintal vendo-o se aproximar cada vez mais, saindo do milharal que batia na altura dosseus joelhos. Papai transpirava horrores sob o chapu, o que quase pareciam lgrimas, e, como eusegui o seu rastro para dentro de casa, pude ver que ele tinha alguma coisa nas mos, ainda que nosoubesse o qu.

    Deve ter nascido no campo, ele disse minha me, porque havia um bando deles escondidospor l. A me e os outros bebs foram mortos pelo arado. Esta aqui, ele disse, levantando a gatinhacoberta de sangue, teve as patas de trs cortadas.

    A maioria dos fazendeiros teria deixado o animal gravemente ferido morrer, deixando anatureza tomar seu prprio curso, mas, quando meu pai viu que a gatinha ainda estava viva, ele aapanhou e correu para casa. Minha me, que amava animais tanto quanto meu pai, assumiu o comandoa partir dali e cuidou da gatinha, dando-lhe leite de garrafa durante um ms. noite, dava-lhecobertores quentes e, durante o dia, deixava-a ficar em sua cozinha abafada. Eu monitorava minhame cuidando dela, maravilhada com a recuperao da gatinha. Pelo meio do vero, os cotos de Bolade Neve tinham cicatrizado. Muitas pessoas acham que os gatos so preguiosos, mas o esforo queBola de Neve fez! A determinao! Num piscar de olhos, desenvolveu a habilidade de se equilibrarsobre as duas patas dianteiras, com as costas suspensas na vertical. Ento ela aprendeu a pular comas duas patas, com o traseiro balanando no ar como uma dama pomposa e com o rabo apontandopara o cu. Eu adorava isso. Naquele vero, eu e Bola de Neve brincvamos juntas todos os dias. Eucorria ao redor do terreno, sorrindo e gritando, e ela saltitava atrs de mim, com as costastremulando. No outono, ao fim de cada dia de aula, eu saltava do nibus, jogava a mochila no cho ecorria para o quintal gritando por ela. Ela no viveu muito, e quando morreu fiquei inconsolvel porum tempo, mas jamais vou esquecer o modo como Bola de Neve danava pelo quintal, em cmeralenta, como se estivesse fazendo um passo de dana acrobtico de suingue. A determinao dela, e alio dos meus pais de respeitar e amar cada ser vivo, foram os duradouros legados do meu verocom Bola de Neve.

    O quo diferente foi a experincia de Yvonne aos cinco anos? No sei. No sei se ela brincavacom seus irmos mais velhos, ou se ficava sozinha no quintal. No sei se ela escolheu a companhiados gatos devido solido ou a um amor natural. Eu sei que seus pais, assim como muita gente dafazenda, no pensavam muito em gatos e tampouco a ajudavam a cuidar daqueles que apareciam noseu quintal. Os gatos sempre morriam ou sumiam, Yvonne me contou. Isso partia meu corao.Mas os meus pais nunca compravam comida para eles, no importava o quanto eu pedisse. Diziamque no podiam bancar.

    Minha lembrana de infncia mais clara a de meu pai, com aquele gato machucado nas mos,falando com minha me. A lembrana mais clara de Yvonne a de uma fotografia. Ela tinha seisanos. Sua me queria uma foto dos filhos com os seus gatos favoritos. Yvonne no conseguiuencontrar o seu, um gatinho preto e branco conhecido como Preto e Branco. Sua me lhe disse paraparar de procur-lo e que ficasse com seu irmo e sua irm, que mostravam gatos agitados para a

  • cmera.Vamos, agora, sorriam, sua me ordenou.Eu no achei meu gatinho.No importa. Sorria.Depois, Yvonne ficou olhando para os campos vizinhos, mordendo os lbios. Existem espaos

    vazios e planos em Iowa, mesmo nas cidades, onde voc pode ver o mundo expandindo-se a partir devoc. D para olhar sempre l fora se voc continuar procurando, mas, afinal, Yvonne se virou,caminhou at a me e perguntou se ela tiraria uma foto dela com algum dos outros gatos.

    No, disse a me. No tenho mais filme.Eu queria chorar, me disse Yvonne, mas no chorei. Eu sabia que eles iam rir de mim.Dez anos depois, quando Yvonne tinha dezesseis anos, seu pai arrumou um trabalho na fbrica

    Witco e a famlia mudou para Spencer. Lembro de me aventurar em Spencer quando ainda era umaadolescente vivendo na cidade prxima de Hartley. Foi assustador. As meninas da Escola Secundriade Spencer pareciam to mundanas, to preocupadas em estar na moda e a falar com garotos, e seagrupavam nas esquinas como se fossem as Garotas Rosas do filme Grease Nos tempos dabrilhantina. Lembro-me de achar que elas eram fisicamente maiores do que ns, crianas do campo,e que, se quisessem, poderiam nos esmagar. Isto era Spencer para mim, mas eu tinha contrapartidas.Minha av morava na cidade, ento eu conhecia as ruas e lojas; eu fui para a Escola Secundria deHartley, uma das maiores escolas da regio; eu era uma garota extrovertida e popular que quasenunca se sentiu fora do lugar ou subjugada. Ento, posso imaginar como deve ter sido para Yvonne,uma garota tmida que nunca estivera em Spencer, que nunca fora bem na escola e que nunca sesentira confortvel em situaes sociais, mesmo em Sutherland. Eu entendi o que ela queria dizerquando me disse que o seu ano e meio no ensino mdio de Spencer fora uma tortura.

    Seus pais lhe deram algo para atenuar a solido: um gato. Pouco antes de se mudar paraSpencer, o gato de sua tia May dera luz uma ninhada de gatinhos meio siameses. Quando chegoupara a adoo, a ruidosa ninhada correu em disparada pelo quintal, deitando e rolando e lanandosujeira na cara uns dos outros. Yvonne ficou pasma. Olhou para eles e pensou: Como vou conseguirescolher meu gato?

    Ento uma gatinha, que devia estar se escondendo, engatinhou e encarou seus grandes olhostmidos, como se estivesse sussurrando na voz mais doce e calma imaginvel: Oi.

    Est certo, fico com voc, Yvonne sussurrou de volta.Chamou a gatinha de Tobi. Ela era mais marrom e redonda do que uma tpica siamesa, mas tinha

    a suave exuberncia e os vistosos olhos azuis to tpicos da raa. E doce no era apenas umadescrio do seu pelo. Tobi era uma gata doce. De fala macia. Suave nas maneiras. Tambm no eravalente. Corria quando qualquer um entrava em um aposento; corria ao ouvir alguma porta abrir emqualquer lugar na casa; disparava at a segura cama de Yvonne s de ouvir pegadas nas escadas. Elasaiu de casa apenas uma vez, passando por Yvonne que estava na soleira da porta. Yvonne foi at avaranda de concreto e viu Tobi desaparecer ao redor da casa de seus pais em Spencer. Ela percorreu

  • o caminho inverso e encontrou-a nos fundos da casa. Tobi veio lacrimejante em direo a ela e saltoudireto em seus braos, com um olhar de terror no rosto pequeno e doce.

    Oh, no faa mais isso, gatinha, Yvonne suplicou. Por favor, no faa mais isso. Eraimpossvel dizer quem estava mais assustado.

    Tobi adorava um colo. Foi como Yvonne a descreveu. Ela sempre queria ficar em cima demim. Dormia na minha cama todas as noites.

    Eu aposto que isso fazia voc se sentir bem, eu respondi.Sim, fazia, ela disse. Ento, sentava olhando para mim, esperando pela minha prxima

    pergunta.Concluda a escola, Yvonne juntou-se ao seu pai na Witco. A fbrica produzia ferramentas

    hidrulicas, conhecidas como pistolas de lubrificao, que esguichavam graxa dentro de pequenosespaos em motores de carros e outras mquinas. Depois de suas dificuldades na escola de Spencer,a linha de produo era um alvio. O trabalho era acelerado, alm de exigir grande esforo fsico,mas Yvonne era jovem e forte. Ela podia apertar parafusos to velozmente quanto qualquer um nalinha, e isso no lhe exigia conversar com seus colegas.

    No era o melhor emprego do mundo, me disse, como se se sentisse desconfortvel pelo seuorgulho bvio por uma tarefa bem-feita. Mas era trabalho. E no h nada melhor, como eu bem sei,que um trabalho em que voc se saia bem.

    Yvonne no tinha muita vida social fora da fbrica, mas sempre que finalizava um turno, elapodia contar com uma coisa: Tobi estaria esperando. A gatinha gostava de lugares altos, longe de psque pudessem chut-la e de braos balanantes, e frequentemente olhava Yvonne de cima da estantede livros. Outras vezes, Tobi ficava observando do alto das escadas quando Yvonne abria a porta deentrada. Se no havia mais ningum, Tobi a seguia de perto: at a cozinha ou o gabinete. Mas quandoalgum mais aparecia, ambas iam para o quarto de Yvonne e fechavam a porta. Tobi, Yvonne logopercebeu, passava a maior parte do dia em sua cama, sob suas cobertas, esperando que a nicapessoa com quem ela se sentia confortvel retornasse. E mesmo que a ideia nunca tenha atravessadosua mente conscientemente, isto era exatamente o que Yvonne queria: um amigo que sempre estivessel para ela.

    Depois dos vinte anos, Yvonne se mudou da casa dos pais para um prdio de quatro andarescom sua irm mais velha. Tobi adorou a quietude. Yvonne adorava ficar sozinha. Ela progrediu nalinha de montagem, fixando pequenos pinos em pistolas de lubrificao. Durante anos, a teia de ruasnumeradas de Spencer a intimidou, e todo mundo que cruzava o seu caminho lhe parecia um estranho.Mas lentamente ela desenvolveu um apreo pelos padres e comeou a reconhecer os rostos ao seuredor. Ela fazia compras nas lojas ao longo da Grand Avenue ou no novo centro comercial no ladosul da cidade. Comprava roupas na Fashion Bug e a comida favorita de Tobi num pequeno pet shoplocal. Para um Halloween, ela comprou uma mscara assustadora. Vestiu-a e subiu a escada fazendobarulho. Cruzou a porta do quarto com um gemido baixo Ahhhhhhh e os belos olhos siamesesde Tobi espocaram para fora da cabea. Ela comeou a andar para trs, seu pelo arrepiou-se de

  • medo e Yvonne se sentiu to mal que logo arrancou a mscara.Ah, Tobi, disse. Sou eu.Tobi encarou-a por alguns segundos mais, ento se virou e olhou para longe, como se dissesse,

    eu j sabia.No dia seguinte, Yvonne decidiu assustar Tobi novamente. Colocou a mscara e caminhou

    pesadamente at o quarto. Tobi deu uma olhada e se afastou, enfadada, como se dissesse, Por favor.Eu sei que voc.

    Yvonne riu Voc uma espertinha, no , Tobi? e lhe deu um abrao. A vida era simples,mas era boa. Yvonne Barry tinha achado sua zona de conforto; ela encontrou uma companhia e estavafeliz. Sua vida era vivida atravs de detalhes repetidos, pequenos momentos no tempo. No Natal,Yvonne construiu um pequeno tnel com os presentes e Tobi sentou naquele tnel durante dias. Euachava que ela era nica. Tobi adorava a rvore de Natal. Mas ento eu descobri que muitos gatosfaziam o mesmo.

    noite, em seu quarto, Yvonne fazia Tobi girar numa cadeira giratria; e a pequena gata dava obote em suas mos a cada giro. Mesmo dcadas depois, Yvonne sorria com a lembrana. Tobiadorava aquela cadeira giratria. E se Tobi amava isso, ento Yvonne amava tambm.

    Quando, em meados dos anos 1980, a economia local piorou e Yvonne perdeu muitos turnossemanais, ela voltou para a casa dos pais. Eu no sei como Yvonne realmente se sentiu em relao aisso porque ela no falava nada, mas acho que a mudana no foi grande. Meu aluguel era alto, foitudo o que me disse. Perguntei aos meus pais se poderia voltar, e eles disseram que tudo bem.

    s vezes, meu pai balanava o dedo embaixo do jornal, ela continuou. Tobi pulava em cimae papai ria. Mas, de modo geral, com os meus pais, Tobi ficava no fundo da cadeira, olhando pelajanela, enquanto meu pai lia o jornal.

    Eu no sei o que pensar de uma histria assim. Ser que havia mais diverso e risos na casa doque eu imaginava? Ser que Tobi conseguiu quebrar o gelo com aquele homem calado? Ou ser que ojogo com o jornal era apenas um breve momento de leveza em um universo quase sempre montono eempoeirado? Eu quero ouvir a risada, mas s consigo pensar nas horas e dias e semanas e at dosmeses, se entendi bem as inflexes de Yvonne que se passavam entre uma brincadeira e outra com ojornal. S posso imaginar um homem de idade sentado silenciosamente em sua cadeira, um jornalcobrindo seu rosto, um pequeno gato olhando pela janela. Os irmos de Yvonne haviam se mudado, eno acredito que nada mais do que um vazio preenchesse as longas horas na casa quieta. A me liaromances no quarto. O pai assistia beisebol na televiso. Yvonne e Tobi ficavam l em cima, quietasfeito ratos, brincando de dar voltas na cadeira giratria.

    Mas ento, a apenas poucos quarteires de distncia, estava Dewey.

    ***

    Uma biblioteca mais do que um lugar de armazenamento de livros. Na verdade, a maioria dosbibliotecrios inteligentes que eu conheo acredita que uma das funes principais de uma biblioteca

  • no envolve sequer livros. Essa funo a abertura e a disponibilidade. Em um mundo em que muitaspessoas se sentem deslocadas pela sociedade, uma biblioteca um lugar livre. Quantas vezes vocno ouviu um adulto hoje bem-sucedido, mas outrora uma criana pobre dizer que a bibliotecasalvou sua vida? Sim, o conhecimento armazenado nos livros, e agora nos computadores, expandiu ouniverso para alm dos limites estreitos do pedao de mundo em que essa criana vivia. Mas abiblioteca tambm oferece outra coisa: espao. Se houvesse uma briga em casa, a criana poderiarefugiar-se no silncio. Se a criana se sentisse negligenciada, poderia encontrar interao humana.No sequer necessrio, em uma biblioteca, falar com algum. maravilhoso como as pessoas estoligadas. s vezes, basta estar junto a algum, mesmo que no se diga nada.

    Quando me tornei diretora da Biblioteca Pblica de Spencer, minha primeira prioridade foitorn-la mais aberta, acessvel e amigvel. Livros e materiais novos faziam parte do meu plano, maseu tambm queria mudar a atitude do lugar. Queria que as pessoas se sentissem confortveis naqueleambiente, que se sentissem parte de uma comunidade, e no meros visitantes de um prdio pblicomunicipal. Fiz com que as paredes fossem pintadas de cores mais fortes e troquei os imponentesmveis pretos por mesas e cadeiras mais confortveis. Criei fundos para comprar obras de arte paraas paredes e esculturas para colocar sobre as estantes. Instru os funcionrios que sorrissem ecumprimentassem todos que chegassem. Menos de seis meses depois, quando Dewey apareceu nacaixa de devoluo de livros, percebi imediatamente que ele caberia com perfeio dentro do meuplano. Eu sabia que ele era um gatinho calmo e que nunca criaria problemas. Mas achei que ele seriaapenas um figurante, como uma obra de arte qualquer, fazendo com que a biblioteca parecesse umacasa.

    Mas Dewey no tinha inteno alguma de ficar nos bastidores. Assim que suas patas sararam(ele ficou com feridas por causa do frio na caixa de devoluo de livros) e pde caminhar pelabiblioteca sem desconforto, Dewey insistiu em ser o centro das atenes. Para um bibliotecrio,porm, um paradoxo se coloca: que, para uma biblioteca funcionar, no se pode serdemasiadamente amigvel. Queremos que as pessoas se sintam bem-vindas, mas no invadidas. Umabiblioteca no um ambiente social. Pode-se entrar na hora que se quer, mas no preciso seenvolver mais que o desejado. uma escolha. Quem quiser conversar, pode bater papo o dia inteiro.Quem quiser ficar annimo, a biblioteca assegura isso tambm. Muitas pessoas, especialmente os queso marginalizados, ou os que ficam nervosos em situaes sociais, adoram o modo como abiblioteca mistura privacidade e espao pblico uma oportunidade de estar cercado por pessoassem a presso de ter que interagir com elas.

    Isso pode criar questes difceis de serem resolvidas pelos bibliotecrios, como, por exemplo,o caso de Bill Mullenberg. Durante dcadas, Bill foi o diretor da Escola de Ensino Mdio deSpencer, um trabalho no apenas respeitado e importante, mas que tambm exigia que ele falasse comcentenas de pessoas todas as semanas. Eu sei que a aposentadoria foi difcil para Bill, porquesempre difcil deixar para trs o trabalho de uma vida. Mas a transio de Bill tornou-se aindamais difcil devido morte de sua esposa amada.

  • Depois que ela morreu, ele comeou a vir todas as manhs biblioteca para ler os jornais eeu sei que no era para economizar o custo com uma assinatura. Bill estava solitrio em casa e queriaum lugar para onde ir. O que o pessoal fazia? Ns dizamos ol, mas seria ir contra a praxe dabiblioteca prolongar a conversa para alm de banalidades. Alm disso, estvamos ocupados.Spencer no nos pagava para fazer amigos ou terapia; todos os funcionrios da biblioteca tinham, nomnimo, quarenta horas semanais de trabalho s para manter o lugar funcionando.

    Foi ento que Dewey entrou em cena. Sendo um gato, ele no tinha as limitaes sociais de umbibliotecrio. E como nosso diretor social e recepcionista oficial, no tinha nenhuma outra tarefa queo mantivesse ocupado nos escritrios dos fundos. Dewey achava normal andar at estranhos e pularno colo deles. Se o empurrassem, ele insistia umas duas ou trs vezes, at entender o recado de queno era desejado. Ento, ele se afastava, sem fazer mal algum. Um gato atrevido, afinal, no nem deperto to chato quanto o bibliotecrio que ajuda demais. Um gato no d aquela sensao de estarjulgando, pressionando ou perguntando coisas sobre as nossas vidas que preferiramos noresponder.

    Porm, quando o visitante aceitava a presena de Dewey, o efeito era profundo. Depois de umms tendo aceitado Dewey como companheiro de colo, o comportamento de Bill mudou. Paracomear, ele estava sorridente. Acho que a primeira vez que o vi sorrindo desde que sua esposahavia morrido foi na segunda ou terceira vez em que Dewey pulou no seu colo, empurrou o jornal epediu afeto. Agora, ele sorria o tempo todo, como sorria no seu antigo trabalho. Ele interagia maiscom o pessoal e todas as manhs ficava mais tempo na biblioteca papeando. Observando Bill, eunotei pela primeira vez que Dewey era mais do que uma obra de arte peluda circulando por ali.

    Depois da chegada de Dewey, as visitas biblioteca aumentaram drasticamente. No sei se elelevava as pessoas a entrarem na biblioteca pela primeira vez, mas acho que as convencia a voltar.Yvonne, por exemplo, s visitou a biblioteca quando Dewey tinha uns quatro ou cinco meses. Elalera o artigo sobre ele no Jornal Dirio de Spencer, logo depois de ele ter sido salvo, mas foi squando chegou o vero que ela decidiu vir biblioteca. Naquela poca, Dewey j tinha metade doseu tamanho. Com seu rabo peludo, o pelo de cobre brilhante e sua magnfica gola natural,paparicado e patrulhando todos, ele parecia o Rei da Biblioteca. E de fato era. Calmo e confiante,Dewey ficava completamente vontade em seu ambiente. Da primeira vez que Yvonne o viu, eledesfilava como se fosse o dono do lugar.

    Que gato bonito, ela pensou.No sei como se conheceram. Presumo que Dewey tenha abordado Yvonne, pois era o que ele

    sempre fazia, mas talvez ela tenha ido em direo a ele. Na falta de uma expresso melhor, possodizer que era fcil conversar com ele, j que no h presso social quando se faz carinho num gato.S depois de se relacionarem por algum tempo que notei, de passagem, que Dewey ficava muito aolado dela. Ele se esfregava em sua perna, cheirava a sua mo quando lhe fazia carinho, escutava seuscumprimentos sussurrados. Quando ela fazia uma bola com um pedao de papel e jogava para ele,ele pulava nela, rolava com as costas no cho e chutava a bola no ar com as patas de trs. Ento ela

  • jogava de novo.Yvonne comprava bobagens para ele no shopping, os mesmos brinquedos que comprava para

    Tobi. Ela gostava de segurar os brinquedos em diferentes alturas, fazendo Dewey pular para alcan-los. Certa vez, ela segurou um brinquedo na altura da cabea, mais ou menos um metro e meio acimado cho. Vamos, Dewey, ela disse. Voc consegue.

    Dewey levantou os olhos para o brinquedo, mas depois olhou para baixo. Ele no consegue,ela pensou. Depois Dewey virou e deu um salto feito um foguete, como lembrou Yvonne,igualzinho a um foguete e agarrou o brinquedo de sua mo. Ela ficou olhando para eleimpressionada, depois comeou a rir. Voc me enganou, Dewey, ela disse. Voc me enganou.

    Em novembro, ela veio na primeira festa de aniversrio de Dewey. Ela no est no vdeo, masisso no me surpreende. Yvonne dessas pessoas que fica ao seu lado por horas at que voc reparee diga: Ah, eu no tinha te visto. Ela a trabalhadora quieta e diligente que parece nunca sair doescritrio; a vizinha que no vista nunca; a mulher no nibus que nunca tira os olhos do livro. errado pensar nisso como algo triste ou incompleto, porque quem somos ns para julgar a vidainterior de algum? Quem somos ns para saber como so os dias de uma pessoa? Os vizinhos deEmily Dickinson pensavam nela como uma solteirona triste vivendo tranquilamente na casa dos pais,quando, na verdade, ela era uma das maiores poetas na histria da lngua inglesa e frequentementetrocava cartas com os mais bem-sucedidos escritores de sua poca. Timidez no um problema,afinal; apenas um tipo de personalidade.

    Dewey, claro, era o exato oposto. V-lo naquele vdeo de aniversrio ver um verdadeiroartista em ao. As crianas se aglomeravam ao redor dele, brigando por um lugar, mas Dewey nuncaparecia assustado. No importava o quanto fosse agarrado ou o quanto gritassem, ele gostava daateno. Ele aceitava tudo quase com o mesmo fervor com que lambeu o seu bolo de aniversrio, emforma de rato e com cobertura de queijo cremoso. Para Dewey, era tranquilo morder o bolo na frentedaquela multido de fs. E eu aposto que, depois de desligarem a cmera, ele fez algo to mgicoquanto isso: foi andando at Yvonne ou ao menos olhou para ela , fazendo com que ela se sentisseespecial por ter vindo.

    Eu sei disso por um fato que aconteceu um ano depois, numa festa da biblioteca em 1989. Cercade duzentas pessoas vieram comemorar a reabertura da biblioteca que ficara fechada para reformaspor um pequeno perodo e eu estava ocupada fazendo visitas guiadas para mostrar as melhorias.Yvonne estava l, margem da multido, provavelmente se sentindo como na poca da escola,porque ficar annima em uma biblioteca uma coisa, ficar annima em uma festa estranho edesconfortvel. Porm, seu desconforto terminou quando ela viu Dewey dando voltas no meio daspessoas. Ningum lhe dava ateno, e isso o deixava claramente muito irritado. At que ele viuYvonne e foi danando at ela. Ela o pegou. Segurou-o prximo ao corao. Dewey colocou suacabea no ombro dela e comeou a ronronar.

    Algum tirou uma foto da gente, Yvonne me disse muitas vezes durante nossas conversas.No sei quem foi, mas houve uma foto. Eram s as minhas costas. Era o rosto de Dewey. Mas teve,

  • sim, uma foto de ns dois juntos.

    ***

    Eu no quero fazer muito caso da relao de Dewey com Yvonne. No quero deduzir que a vidadela girava em torno da biblioteca. Eu sei que ela tinha uma existncia limitada e sei que no eranenhuma Emily Dickinson, mas tambm sei que Yvonne Barry escondia dos olhos alheios uma grandeparte da sua alma. Sei que ela se correspondia com frequncia com amigos. Sei que, como a maioriade ns, tinha uma relao de amor e dio com o trabalho. Tinha orgulho do seu trabalho, mas estavacada vez mais frustrada por ser o tempo todo ultrapassada na corrida por posies mais bemremuneradas. Sei que ela amava a famlia e que por trs dos seus silncios havia uma rede complexae multifacetada de relaes. Essas facetas eram... eram apenas dela, como ela escolheu, suas e demais ningum.

    O que ela dividia comigo era Tobi. Eu acho que Dewey, talvez por ser to diferente dela, erasua vlvula de escape social. Tobi era sua melhor amiga. Ela amava estar com Dewey, mas elaamava Tobi. E Tobi a amava tambm. Mais do que qualquer outra coisa no mundo, Tobi se importavacom Yvonne Barry, e ficava feliz sempre que ela atravessava a porta. Tobi e Yvonne no eramopostas, eram almas gmeas. Quando Yvonne me disse: Ela era uma gata calma, gentil e nunca semetia em encrenca com ningum. S queria viver e deixar viver, entende o que eu quero dizer?, meuprimeiro pensamento foi ela deve estar falando de si mesma.

    Elas tambm eram dedicadas uma outra. Eu nunca fiz passeios que demorassem mais de umdia, Yvonne me disse, porque no conseguia deixar Tobi. Uma vez viajaram juntas, para visitar airm Dorothy, em Minneapolis. Durante os primeiros 25 quilmetros, Tobi esperneou e bateu o rostocontra a grade. S quando chegou em Milford, Iowa, que a gata se deu conta de que no estava indopara o consultrio mdico e finalmente se acalmou. Durante alguns quilmetros, ela ficou miandopara Yvonne, como se esperasse uma explicao. Mas como pode um gato entender um conceitocomo Minnesota? Finalmente, ela se jogou no fundo da caixa de transporte, deitou... e assimpermaneceu por cinco horas. Em Minneapolis, Tobi foi direto para o quarto de visitas. Ela usava suacaixinha de areia, comia sua comida Tender Vittles e se escondia debaixo das cobertas at Yvonnevoltar todas as noites. Ento Tobi subia e se aconchegava no pescoo de Yvonne, alegrssima de tersua amiga de volta. Eu te amo, Tobi, Yvonne dizia baixinho, abraando sua gatinha. Exceto pelaviagem de carro, foi como qualquer outro final de semana em suas vidas.

    tentador dizer que essa a razo pela qual Yvonne ama tanto Tobi: a gata era a nica coisaconstante em sua vida. Mas, na verdade, acho que a vida de Yvonne era repleta de constncias. Omesmo emprego na linha de montagem, cumprindo a mesma funo. As mesmas tarefas. As mesmasrefeies. As mesmas noites silenciosas em casa com os pais. Mesmo em sua relao com Deweyhavia uma familiaridade confortvel, ela sabia que ele sempre estaria l. Elas podiam no ter muitaanimao, mas Tobi e Yvonne tinham uma rotina. Tinham uma outra. E isso era suficiente.

    Mas h algo sobre os gatos que precisamos encarar: em geral, vivemos mais do que eles. Treze

  • anos de amor era uma pequena fatia da vida para Yvonne, mas era uma vida inteira para Tobi. Em1990, a gata estava visivelmente definhando e sua artrite tornava difcil subir e descer as escadas.Seu pelo ficou mais ralo, e, cada vez mais, quando Yvonne chegava a casa, encontrava Tobi toenroladinha em sua cama que preferia no acord-la.

    Nessa mesma poca, Yvonne descobriu a Bblia. Ela diz que o catalisador foi a Guerra doGolfo. A ameaa de violncia a deixava ansiosa e incerta sobre o futuro, e ela sentia o peso dainfelicidade. No tenho motivos para duvidar disso, mas talvez houvesse dores mais complicadaspara uma pessoa to reservada quanto Yvonne discutir. Como sua frustrao com a fbrica Witco,cuja administrao lhe recusou uma posio melhor, mesmo que ela soubesse que daria conta dotrabalho. E a dor nos seus joelhos, causadas pelas oito horas dirias em p na linha de montagem. E asade de sua me, que se deteriorava. E tambm por que no? o abatimento de sua amada gata,que tanto significava para ela.

    Conforme a guerra se aproximava e a sade de Tobi fraquejava, as leituras religiosas deYvonne aumentaram. Inicialmente ela se sentiu atrada por profecias bblicas sobre guerra edestruio, mas foram o conforto e a esperana do Senhor que afinal a inspiraram. Seis meses depoisde pegar a Bblia pela primeira vez, enquanto avies com tropas sobrevoavam as fronteiras doIraque, e exploses escureciam os cus de Bagd, Yvonne se ajoelhava ao lado da cama e pedia queJesus entrasse no seu corao.

    Eu senti como se tivesse enfiado o dedo na tomada, disse a respeito daquele momento. Eume sentia to diferente, e, depois, tive a noite de sono mais tranquila da minha vida. Eu sabia quealgo havia mudado.

    Yvonne comeou a ler a Bblia durante uma hora todos os dias. Comeou a frequentar aPrimeira Igreja Batista duas vezes aos domingos, e toda quinta-feira ia para grupos de orao.Frequentemente aconteciam atividades de grupo na igreja, e Yvonne se viu atrada por essacomunho. Nas noites silenciosas em casa, ela buscava conforto no Livro. s vezes, Tobi estava l,enrolada ao seu lado, mas a gata passava a maior parte do tempo dormindo em uma cesta coberta,que Yvonne encheu com l de ovelha para mant-la quentinha. Yvonne ouviu dizer que a rao FancyFeast fazia os gatos viverem mais tempo, e ento comeou a dar Fancy Feast para Tobi, em vez deTender Vittle, mesmo no podendo arcar com essa despesa. Ela adorava Tobi, cuidava dela comosempre. Mas, depois do jantar, em vez de girar Tobi na cadeira, Yvonne voltava para a Bblia,deixando a gata cada vez mais sozinha.

    E ento, um ano depois de Yvonne tornar-se crist, Tobi comeou a tropear. Certa noite devero, a gata caiu no quarto e urinou em si mesma. Ela levantou os olhos para Yvonne, morrendo demedo, implorando por uma explicao. Yvonne a levou dra. Esterly, que lhe deu a triste notcia. Ofgado de Tobi falhava. A veterinria poderia mant-la viva por mais uns dias, mas a gata sentiriamuita dor.

    Yvonne olhou para o cho. Eu no quero isso, sussurrou.Ela segurou Tobi em seus braos e a acariciou enquanto a dra. Esterly preparava a injeo. A

  • gata apoiou a cabea no cotovelo de Yvonne, fechando os olhinhos, como se estivesse confortvelcom a amiga. Quando sentiu a agulhada, soltou um grito terrvel, mas no se mexeu. Simplesmente,olhou aterrorizada para o rosto de Yvonne, cambaleou, desfaleceu e se foi. Yvonne, com a ajuda dopai, enterrou Tobi em um canto distante do jardim dos fundos.

    Elas tinham tantas lembranas felizes. A rvore de Natal. A cadeira giratria. As noites juntasna cama. Mas aquele ltimo grito, um som que Tobi nunca fizera antes... foi algo que Yvonne nuncaconseguiu esquecer. Aquilo a corroeu e uma onda enorme de culpa transbordou de dentro dela. Tobidedicara sua vida a Yvonne, mas, nos seus ltimos anos, quando estava velha, doente e carente decuidados, Yvonne deu as costas para ela. Era como se sentia. Ela no brincava mais com Tobi nacadeira; no fazia tneis com os presentes de Natal; no notou o quo doente Tobi estava.

    Naquela noite, ela foi a um encontro de orao. Seus olhos estavam inchados e vermelhos e aslgrimas corriam sobre seu rosto. Seus companheiros de orao perguntaram: Voc est bem,Yvonne? O que houve?.

    Minha gata morreu hoje, disse.Oh, sinto muito, diziam, dando tapinhas em seu brao. Depois, sem ter mais o que dizer, iam

    embora. Queriam ajudar, Yvonne sabia. Eram pessoas boas, mas no entendiam. Para eles, eraapenas um gato. Como o restante de ns, eles nem sabiam o nome de Tobi.

    No dia seguinte, ao visitar a Biblioteca Pblica de Spencer, Yvonne ainda no se sentia melhor.Na verdade, estava pior. Sentia-se mais culpada e mais sozinha. Ela percebeu que no tinha vontadealguma de folhear os livros. Em vez disso, foi direto para a cadeira, sentou-se e pensou em Tobi.

    Um minuto depois, Dewey apareceu e foi andando lentamente em sua direo. Toda vez que elea via, ao menos durante os ltimos cinco anos, Dewey miava e ia correndo para a porta do banheirofeminino. Yvonne abria a porta e Dewey pulava na pia e miava para que ela ligasse a torneira.Depois de olhar para a gua caindo durante um minuto, ele tocava a gua com a patinha, dava umpulo para trs, chocado, e depois chegava para a frente e repetia o mesmo processo. E de novo. E denovo. Era a brincadeira especial deles, um ritual que fora desenvolvido atravs de centenas demanhs juntos. E Dewey fazia a mesma coisa sempre.

    Mas no desta vez. Desta vez, Dewey parou, levantou a cabea e olhou para ela. Ento pulou noseu colo, fez um carinho suave com a cabea e se aconchegou em seus braos. Ela o acariciousuavemente, s vezes secando uma lgrima, at que a respirao dele ficou calma e relaxada. Depoisde dez minutos, ele dormia.

    Ela continuou fazendo carinho nele, suave e lentamente. Depois de um tempo, o peso de suatristeza pareceu ficar mais leve, suspenso, at que, enfim, foi como se flutuasse para longe. No foiapenas o fato de Dewey perceber o quanto ela estava triste. Tampouco o fato de ele a conhecer e serseu amigo. Enquanto ela observava Dewey dormindo, sentiu sua culpa desaparecer. Ela percebeu quefez o melhor possvel para Tobi. Ela amara a pequena gata e no precisava passar o tempo todoprovando isso. No havia nada de errado em ter uma vida prpria. J estava na hora, para o bem deambas, de deixar Tobi ir embora.

  • ***

    Meu amigo Bret Witter, que me ajuda com esses livros, fica doido feito bicho (sim, umapiada) sempre que lhe perguntam: Afinal, o que faz de Dewey um gato to especial?.

    Vicki passou 266 pginas tentando explicar isso, ele diz. Se fosse possvel resumir numafrase, ela teria escrito um carto-postal.

    Ele achava essa resposta esperta. Depois, percebeu que a pergunta o levava a pensar em algoque havia ocorrido na sua prpria vida, e s vezes pensava numa coisa que no envolvia gatos, nembibliotecas, ou mesmo Iowa, mas que poderia servir, afinal, como uma rpida explicao. Ento, elefazia a piada do carto, depois contava uma histria de sua cidade natal, Huntsville, no Alabama,onde cresceu com um menino com srias incapacidades fsicas e mentais. Eles frequentavam amesma igreja e a mesma escola, e, portanto, quando o acidente ocorreu, na stima srie, Bret haviaestado com ele seis dias por semana, nove meses por ano, durante sete anos. Em todo esse perodo, omenino, que tinha problemas demais para falar, nunca fora sentimental, nunca expressara felicidadeou frustrao e tampouco solicitara qualquer tipo de ateno.

    Ento, um dia, no meio da escola dominical, ele comeou a gritar. Empurrou uma cadeira, pegouum porta-lpis e, depois, com uma emoo exagerada, comeou a jogar os lpis de modo selvagempela sala. As outras crianas ficaram sentadas, olhando. A professora, depois de alguma hesitao,comeou a gritar para que ele se acalmasse, que tivesse cuidado, que no interrompesse a aula.Estava prestes a expuls-lo da sala, quando, de repente, um garoto chamado Tim se levantou, andouat o menino, colocou seu brao em volta dele como faria com um ser humano, como sempre contaBret, e disse: Est tudo bem, Kyle. Est tudo bem.

    E Kyle se acalmou. Ele parou de espernear, largou os lpis e comeou a chorar. E Bret pensou:Eu queria ter feito isso. Eu queria ter compreendido o que Kyle precisava.

    Esse era Dewey. Ele sempre parecia entender e sempre sabia o que fazer. No estou sugerindoque Dewey fosse igual ao menino que se levantou Dewey era um gato, afinal , mas ele tinha umraro entendimento dos outros seres. Ele percebia o momento, e agia. isso que torna pessoas, eanimais, especiais. Olhar. Cuidar. Amar. Agir.

    No fcil. Na maior parte do tempo estamos to ocupados e distrados que no percebemosque uma oportunidade passou. Agora, olhando para trs, lembro que o primeiro ritual que Yvonnedesenvolveu com Dewey, antes da histria de brincar na pia do banheiro, foi com a erva-gato. Tododia, ela colhia um pouco de erva-gato fresca do jardim e colocava no tapete da biblioteca. Deweysempre ia correndo cheirar. Depois de algumas fungadas, ele enfiava a cabea, mastigandoferozmente, com a boca abrindo e fechando e a lngua rpida no ar. Ele esfregava as costas no cho eas folhinhas verdes ficavam presas nas suas costas. Ele virava de barriga para baixo e empurrava oqueixo no tapete, serpenteando feito o Grinch ao roubar presentes de Natal. Yvonne sempre seajoelhava ao seu lado, rindo e falando baixinho: Voc gosta mesmo de erva-gato, no , Dewey?Voc adora, no ?, enquanto ele balanava as patas dando uns chutes loucos, at finalmente cair

  • exausto no cho, com as patas esticadas para todos os lados e a barriga para o cu.At que um dia, enquanto Dewey tinha seu faniquito de erva-gato (apelidado pelo pessoal da

    biblioteca de O Mambo do Dewey), Yvonne olhou para cima e notou que eu a observava. Eu nofalei nada, mas, alguns dias depois, eu a parei e disse: Yvonne, por favor, no traga tanta erva-gatopara o Dewey. Eu sei que ele gosta, mas no bom para ele.

    Ela no disse nada. Olhou para o cho e foi embora. Eu s quis dizer para ela diminuir a dosede erva-gato para, por exemplo, uma vez por semana, mas ela nunca mais trouxe erva-gato para abiblioteca.

    Na poca, pensei ter feito a coisa certa, porque aquilo estava deixando Dewey cansado. Eleficava completamente maluco durante vinte minutos, aps o que Yvonne ia embora e Dewey ficavadesmaiado por horas. Virava um gato catatnico. No parecia justo. Yvonne se divertia com Dewey,mas seus outros amigos no tinham nenhuma chance.

    Pensando agora, eu deveria ter sido mais delicada no modo como lidei com o evento da erva-gato. Devia ter compreendido que isso no era apenas um hbito para Yvonne, mas uma parteimportante do seu dia. Em vez de tentar entender a raiz de seu comportamento, me detive apenas naaparncia exterior de suas aes e lhe disse para parar. Em vez de abra-la, lhe dei um empurro.

    Mas Dewey ele nunca fazia isso. Milhares de vezes, de milhares de modos diferentes, Deweyestava presente quando as pessoas precisavam dele. Ele fez isso para diversas pessoas, eu sei, quenunca haviam se aberto comigo. Ele fez com Bill Mullenberg e Yvonne exatamente o que Tim fez comKyle na escola dominical. Quando ningum mais entendia, Dewey fazia um gesto. Ele nocompreendia as motivaes, claro, mas percebia que algo estava errado. E, com seu instinto animal,agia. Ao seu modo, Dewey colocava seus braos em volta de Yvonne e dizia: Est tudo bem. Voc uma de ns. Voc vai ficar bem.

    No estou dizendo que Dewey mudou a vida de Yvonne. Acho que ele aliviou sua dor, mas noacabou com ela. Um ms depois de Tobi morrer, Yvonne teve um ataque na linha de montagem, e nos foi despedida, como acompanharam sua sada do prdio. Ela estava frustrada com a administraohavia muito tempo, e eu no posso deixar de pensar que a morte de Tobi foi a gota dgua.

    No acabou a. Alguns anos depois, sua me morreu de cncer de clon. Dois anos depois,Yvonne foi diagnosticada com cncer de tero. Durante seis meses ela dirigia seis horas at IowaCity para se tratar. Quando enfim venceu o cncer, suas pernas cederam. Ela havia trabalhado em poito horas por dia, cinco dias por semana, durante anos, e o esforo repetido desgastou seus joelhos.

    Mas ela ainda tinha sua f. Ainda tinha sua rotina. E ainda tinha Dewey. Ele viveu mais quinzeanos aps a morte de Tobi e, em todos esses anos, Yvonne Barry veio biblioteca diversas vezes porsemana para v-lo. Se voc me perguntasse na poca, eu no diria que a relao deles eraparticularmente especial. Muitas pessoas vinham biblioteca toda semana, e quase todas paravampara visitar Dewey. Como eu podia saber a diferena entre as pessoas que s achavam Deweyfofinho e aquelas que valorizavam sua amizade e seu amor?

    Depois do evento em homenagem a Dewey, Yvonne me falou do dia em que ele se sentou no seu

  • colo e a reconfortou. Mesmo uma dcada depois, isso ainda era significativo para ela. Eu fiqueiemocionada. At aquele momento, eu no sabia que Yvonne tivera seu prprio gato. Eu no sabia oque Tobi havia significado para ela, mas sabia que Dewey a confortava, como sempre me confortou,simplesmente por estar na minha vida. Pequenos momentos podem significar tudo. Podem mudar umavida. Dewey me ensinou isso. A histria de Yvonne (quando afinal parei para ouvi-la) confirmavaisso. Aquele momento no seu colo resumia a compreenso e a amizade de Dewey, sua afeio pelaspessoas de Spencer de um modo que eu nunca havia considerado antes.

    Eu no notei quando Yvonne parou de vir biblioteca depois da morte de Dewey. Eu sabia quesuas visitas haviam se tornado menos frequentes, mas ela sumiu do mesmo modo que surgiu: comouma sombra, sem som. Quando fui visit-la dois anos depois da morte de Dewey, ela estava morandoem um centro de reabilitao, com um aparelho na perna direita. Ela s tinha cinquenta e poucosanos, mas os mdicos no sabiam se ela voltaria a andar. Mesmo que melhorasse, no tinha paraonde ir. Seu pai estava num asilo ao lado, e a casa da famlia fora vendida. Yvonne disse para osnovos donos: No cavem naquele canto do jardim porque minha Tobi est enterrada ali.

    Tobi ainda est l, ela me disse. Seu corpo ao menos.Havia uma Bblia no criado-mudo e uma escritura presa na parede. Seu pai, numa cadeira de

    rodas, estava no quarto de Yvonne, um velho frgil que no ouvia nem enxergava mais. Ela nosapresentou, mas, a bem da verdade, ela mal parecia notar sua presena. Em contrapartida, memostrou a pequena esttua de um gato siams que deixava sobre uma bandeja ao lado da cama. Suatia Marge lhe dera de presente, em homenagem a Tobi. No, ela no tinha nenhuma foto de Tobi paracompartilhar. Sua irm colocara todos os seus pertences em um armazm, e ela no tinha a chave. Seeu precisasse de fotos, disse, havia sempre aquela dela e de Dewey, tirada na festa da bibliotecavinte anos antes. Algum, em algum lugar, provavelmente tinha uma cpia.

    Quando eu lhe perguntei sobre Dewey, ela sorriu. Contou-me do banheiro feminino, da festa deaniversrio e finalmente da tarde em que ele permaneceu no colo dela. Depois, olhou para baixo ebalanou a cabea com tristeza.

    Eu fui biblioteca diversas vezes para ver seu tmulo, ela disse. Entrei, olhei em volta, massimplesmente no a mesma coisa. Quero dizer, Dewey no est l. Eu vi a esttua dele e pensei:Que legal, parece mesmo com Dewey, mas no era como se Dewey estivesse l realmente.

    Eu no quero mais ir l. Era o gato, sabe. Dewey, ele sempre estava l. Mesmo que estivesseescondido, eu dizia a mim mesma: Bem, na prxima eu encontro com ele. Mas ento eu voltava enada de Dewey. Olhava para onde ele costumava sentar, estava vazio e eu pensava: Nada para fazeraqui. Agora apenas um prdio com livros dentro.

    Eu queria perguntar mais coisas a ela, descobrir algo profundo sobre gatos e bibliotecas ecorrentes subterrneas de solido e amor que se cruzam debaixo da superfcie das cidades e dasvidas mais tranquilas. Eu queria conhec-la, porque, no fim das contas, ela mal esteve presente emsua prpria histria.

    Mas Yvonne apenas sorriu. Ser que naquele momento ela pensava que Dewey estava no seu

  • colo? Ou ser que pensava em outra coisa, em algo mais profundo que no me contaria e que apenasela poderia entender?

    Era o meu Garoto Dewey. Foi tudo o que disse. Grande Dew.

  • 2Sr. Sir Bob Kittens

    (tambm conhecido como Ninja ou Sr. Gato de Botas Abboras)

    Eu queria simplesmente lhe agradecer por expressar com palavras to eloquentes o que muitosde ns que amamos gatos ou qualquer outro animal sentimos todos os dias. Eles so como a

    nossa famlia, amamos os gatos com a mesma intensidade, e sentimos o mesmo desespero quandose vo.

    Conheci muitos gatos na minha vida e, por isso, eu sei que todos so diferentes, mesmo os maisespeciais. Alguns gatos so especiais porque so doces. Alguns gatos so especiais porque sosobreviventes. Alguns gatos so especiais por terem sido exatamente o que algum precisava, na horaem que precisava: uma alma gmea, um companheiro, uma distrao, um amigo. Alguns gatos, porm,so simplesmente loucos.

    Assim era o Sr. Sir Bob Kittens, antes conhecido como Ninja, que morava numa casa comum dosubrbio de Michigan com sua famlia, James e Barbara Lajiness e a filha adolescente deles,Amanda. Sr. Kittens no o gato fofinho. Ele o gato esperto, o gato que tem atitude, o que faz o quequer, geralmente de um modo que no d para entender muito bem. Talvez por isso ele tenha sido oltimo de sua ninhada a ser adotado na Associao de Proteo aos Animais de Huron Valley, emAnn Arbor, Michigan. Ou talvez por causa do bilhete afixado na sua gaiola: Ninja, estava escrito.Depois: No se d bem com outros gatos ou cachorros. Aparentemente, ele brigava com todo mundo.

    Quando Barbara Lajiness conheceu Ninja, no foi amor primeira vista. Sim, ele era lindo,com grandes olhos acastanhados, uma pelugem bem laranja e os bigodes mais longos que ela j haviavisto num gato. Sim, ele parecia inteligente e bem-comportado. Mas no era ativo. Ele no subia nascoisas, nem clamava por ateno, como os outros gatinhos do abrigo. Ele no... bem, na verdade, eleno fazia nada. Ficava apenas deitado e sozinho na grande gaiola vazia, e nem se dava ao trabalho deolhar para os estranhos que passavam por ele.

    Ele timo com pessoas, disse a voluntria, quando viu que Barbara olhava para Ninja. Oproblema dele com outros animais.

  • O marido de Barbara e sua filha queriam Ninja. Sentiram algo especial nos seus olhos travessose no seu jeito aparentemente tranquilo. Quando Barbara o segurou, ela sentiu a mesma coisa. Umaenergia em potencial, talvez, que mal se continha. A soltou o gato e pediu desculpas filha, dizendoque no estava pronta. A famlia havia perdido seu gato amado havia um ms. Barbara no contouisso para a filha, mas ela estava com muito medo de investir emocionalmente em outro ser vivo queela acabaria vendo morrer.

    Mas Ninja era to gracioso e bonito. E sua filha e seu marido estavam to inflexveis. E todavez que ela voltava ao abrigo o que nunca deveria ter feito, mas no conseguia evitar , ficava cadavez mais claro que o pobre Ninja nunca seria adotado. No naquela cela isolada que o fazia parecero pior prisioneiro do presdio, e no com aquele aviso na gaiola. Ele no era um gato fofo, do tipoque ronrona feito um trenzinho, lembrava Barbara, mas ele merecia um lar. Todo animal merece umlar. Era triste que ningum tivesse espao em suas vidas para ele. Barbara se preocupava com avida dos animais, e l estava um gato que precisava ser salvo. Ele precisava de uma boa casa, semoutros bichos (obviamente), e era exatamente isso que ela podia oferecer. Ela no podia dar ascostas. Em sua vida inteira, em grande parte graas sua me, Barbara Lajiness nunca haviarecusado ajuda a uma criatura necessitada.

    Por que o chamam de Ninja?, Barbara perguntou voluntria enquanto preenchia a papeladae pagava pela adoo.

    No se preocupe, a voluntria respondeu com um sorriso. Voc vai ver.

    ***

    Os pais de Barbara se divorciaram em 1976. Ela tinha oito anos e, mesmo sendo to pequena,sabia que isso estava para acontecer. Seus pais no se davam bem havia muitos anos, a vida em casaera desconfortvel e tensa com duas pessoas que tomaram rumos diferentes se forando para fazer acoisa funcionar. Sua me se dedicava famlia. Seu pai queria diverso: sair para beber, ficar na ruaat tarde sem as crianas, viajar. Quando ele vinha para casa, chegava zangado e frustrado com avida. Barbara tinha dois irmos adolescentes que no gostavam nem da ausncia, nem da raiva dopai. Durante um tempo, todo mundo gritava. Depois, ningum conversava mais. A vlvula de escapede Barbara, mesmo sendo to nova, era Samantha, a gata da famlia. Isso bom, Barbara pensouquando seus irmos disseram que o pai havia sado de casa definitivamente. Agora, a casa vai ficarcalma de novo. Que pensamento triste para uma criana de oito anos.

    Mas logo ela descobriu que a vida sem um pai era bem pior do que esperava, ao menosfinanceiramente. Quase imediatamente, a famlia deixou de ter uma existncia confortvel de classemdia e ficou pobre. Seu pai tinha um emprego estvel trabalhando para a Michigan Bell, acompanhia telefnica local. Antes de se casarem, sua me trabalhava na Michigan Bell tambm,como operadora. Mas ela abriu mo do trabalho para criar os filhos. Dezoito anos depois, eladescobriu que, mesmo em tempos bons, empregos para mulheres de meia-idade com currculoslimitados eram raros. Em 1976, nas comunidades pouco favorecidas ao redor de Flint, Michigan, os

  • empregos eram inexistentes. No havia trabalho suficiente para os homens, que haviam perdido seusempregos quando a General Motors transferiu suas fbricas para outros pases. A nica colocaoque Evelyn Lambert pde encontrar para sustentar seus filhos foi numa casa de sade, preparando ocaf da manh para os residentes. Seu turno comeava s trs da manh. Ela recebia um salriomnimo.

    Essa no era uma ocupao considerada aceitvel para uma me. Em 1976, na pequena cidadede Fenton, Michigan, no subrbio fora de Flint onde os Lambert moravam, nenhum emprego eraaceitvel para uma me. Em Fenton, mulheres no se divorciavam, no trabalhavam fora de casa, nodeixavam seus filhos sozinhos por longos perodos de tempo. Ningum queria saber o que haviaacontecido com Evelyn Lambert. De algum modo, era real demais, e quem sabe no era contagioso.Alguns vizinhos declaradamente sentiam pena, algo que a me de Barbara nunca suportou. Outros aignoravam. Zombavam de Barbara na escola, onde todos pareciam saber tudo sobre sua me. Seusamigos no podiam mais ir a sua casa brincar, pois no havia nenhum adulto tomando conta. Empoucos meses, Barbara se deu conta que seu estatuto social despencara to rpido quanto as finanasfamiliares. No ajudava o fato de o pai ter se mudado para Grand Blanc, um subrbio perto de Flint,e gastar seu tempo e dinheiro com uma mulher mais interessada em viver do modo como ele queria.

    Finalmente, uma vizinha veio ajud-los. Seu nome era sra. Merce e vivia do outro lado da rua,algumas casas depois. A sra. Merce, com outras mulheres da vizinhana, havia comeado umaorganizao chamada Adote-um-animal. As sociedades de ajuda aos animais da poca erambasicamente lugares para se livrar dos bichos. Eles guardavam os animais s por um ou dois dias, edepois os faziam dormir. Matavam centenas deles e a sra. Merce e suas amigas achavam que essa noera a atitude adequada de uma sociedade civilizada. Adote-um-animal acolhia os animais e ficavacom