as metáforas de marx

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As metáforas de Marx Resenha: SILVA, Ludovico. El estilo literário de Marx. México, DF: Siglo XXI, 1978. William Héctor Gómez Soto 1 O estilo literário de Marx tem confundido seus discípulos e de- tratores, simpatizantes e inimigos. O venezuelano Ludovico Silva pu- blicou, em 1971, um livro precisamente com esse título: El estilo literá- rio de Marx, ainda sem tradução para a língua portuguesa. A obra de Marx está recheada de figuras literárias que, infeliz- mente, contribuem para muitas das interpretações equivocadas de suas ideias fundamentais. A intenção de Silva não é apresentar um novo Marx, mas desvendar as metáforas utilizadas pelo pensador alemão. A obra de Marx, sem nenhuma dúvida, é uma obra científica densa, porém incompleta e datada. Isto, por si, já é uma dificuldade para quem se aventura a interpretar suas idéias. As coisas se complicam mais ainda quando descobrimos, graças a este livro de Ludovico Silva, que há em Marx, um estilo literário. É disto que Ludovico quer persu- adir-nos. Precisamente porque a matriz conceitual de Marx está cons- truída a partir de um sistema criativo de metáforas e analogias, ou seja, Marx possui um estilo literário. Na sua obra, o rigor do cientista se mescla criativamente com um gênio que conscientemente se expressa de forma literária, utilizando diversos recursos de linguagem. Marx se esmerou, como o melhor dos artesãos, para que sua obra, principal- mente, “A contribuição à crítica da economia política” (1859) e o 1 Doutor em Sociologia. Professor do Mestrado em Ciências Sociais e do Instituto de Sociologia e Política (UFPEL). Pensamento Plural | Pelotas [06]: 165 - 171, janeiro/junho 2010

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El texto es una reseña del libro El estilo literário de Marx, de Ludovico Silva.

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  • As metforas de Marx

    Resenha: SILVA, Ludovico. El estilo literrio de Marx. Mxico, DF: Siglo XXI, 1978.

    William Hctor Gmez Soto1

    O estilo literrio de Marx tem confundido seus discpulos e de-tratores, simpatizantes e inimigos. O venezuelano Ludovico Silva pu-blicou, em 1971, um livro precisamente com esse ttulo: El estilo liter-rio de Marx, ainda sem traduo para a lngua portuguesa.

    A obra de Marx est recheada de figuras literrias que, infeliz-mente, contribuem para muitas das interpretaes equivocadas de suas ideias fundamentais. A inteno de Silva no apresentar um novo Marx, mas desvendar as metforas utilizadas pelo pensador alemo. A obra de Marx, sem nenhuma dvida, uma obra cientfica densa, porm incompleta e datada. Isto, por si, j uma dificuldade para quem se aventura a interpretar suas idias. As coisas se complicam mais ainda quando descobrimos, graas a este livro de Ludovico Silva, que h em Marx, um estilo literrio. disto que Ludovico quer persu-adir-nos. Precisamente porque a matriz conceitual de Marx est cons-truda a partir de um sistema criativo de metforas e analogias, ou seja, Marx possui um estilo literrio. Na sua obra, o rigor do cientista se mescla criativamente com um gnio que conscientemente se expressa de forma literria, utilizando diversos recursos de linguagem. Marx se esmerou, como o melhor dos artesos, para que sua obra, principal-mente, A contribuio crtica da economia poltica (1859) e o

    1 Doutor em Sociologia. Professor do Mestrado em Cincias Sociais e do Instituto de Sociologia e Poltica (UFPEL).

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    primeiro volume de O Capital (1867), adquirisse uma bela forma literria. Marx esculpia magistralmente cada frase e escolhia a palavra mais adequada para expressar suas ideias. Por isso, Marx subverte a linguagem fechada e impenetrvel com que os cientistas costumam a escrever. Qualquer pessoa, com certo grau de instruo, pode ler praze-rosamente, a prosa cientfica com que Marx escreveu A contribuio crtica da economia poltica. Umberto Eco (2003) lamentou que Lu-dovico Silva descuidasse a anlise do Manifesto Comunista. Um texto formidvel, segundo Eco, que consegue combinar tons apocalti-cos e ironias com explicaes claras. O Manifesto inicia com um golpe de tmpanos disse Eco: Um espectro ronda Europa. As pgi-nas do Manifesto, dedicadas s conquistas da nova classe (a burgue-sia) permitem visualizar, de modo quase cinematogrfico (ECO, 2003), a poderosa fora do capitalismo, que tudo o transforma e con-verte em mercadoria.

    Diante da obra de Marx nos deparamos no s com o produto final, mas com o processo de seu pensamento. Ao ler Marx, presenci-amos o movimento do ato de pensar. Em vez de um pensamento cristalizado, encontramos neste autor um pensamento vivo, o alum-bramento e a evoluo da criao original da sua obra sem paralelo. Nela, o leitor levado a seguir Marx nas suas descobertas. Mesmo sabendo pouco ou nada de economia, o leitor atento de A contribui-o crtica da economia poltica fica envolvido no raciocnio eco-nmico, descobrindo desde suas noes mais simples como a de mer-cadoria s mais complexas como a de valor.

    Marx se empenha em demonstrar que as idias, mesmo a mais abstratas, podem ser visveis e percebidas claramente. Marx era um exmio conhecedor da lngua grega, sabia exatamente o significado original da palavra ideia, ou seja, aspecto exterior, aparncia, forma. Ele sabia tambm que a palavra teoria em grego significa a ao de ver, de observar, de contemplar. E suas metforas cumprem esse papel: ajudar a perceber e ver as idias mais abstratas.

    Para Marx, sua obra tinha que ser vista e percebida. Por isso, suas ideias mais abstratas adotam formas coloridas e vivas. Sua teoria perceptvel e pode ser apreendida visualmente. A sociedade pode ser percebida como uma enorme obra arquitetnica, cuja base a econo-mia e sua fachada a ideologia. Estas so, como disse Ludovico Silva, metforas que nos ajudam a perceber o contedo propriamente cient-fico ou terico. neste uso abundante de metforas e analogias, pre-

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    sentes na obra de Marx, que muitos se perdem, porque tomam equivo-cadamente as metforas por explicaes e vice-e-versa.

    Por exemplo, muitos dos seguidores e crticos de Marx defen-dem ou criticam a teoria da superestrutura, quando, na verdade, esta uma metfora e no propriamente uma teoria. Ao mesmo tempo, as metforas de Marx se tornaram crenas quase religiosas, tomando essas metforas por explicaes. Em consequncia, as coisas mais absurdas foram aceitas, s porque vinham de Marx.

    Ludovico disse que com Marx ocorreu a mesma coisa que acon-teceu com aquela frase famosa do evangelho: mais fcil que um camelo entre no olho de uma agulha a que o rico se salve. Problemas na interpretao das grafias provocaram, por sculos, uma grande confuso (cmelos por cmilos que significa cabo). Muitos crentes tentaram justificar, a qualquer custo, a presena do camelo. Algo mui-to parecido aconteceu com as metforas de Marx. A metfora da su-perestrutura, por exemplo, foi utilizada para explicar o fenmeno ideolgico, mas se efetivamente a ideologia fosse uma superestrutura, Marx seria o mais entusiasta discpulo de Plato, isto , um defensor de um mundo das ideias. Pelo contrrio, Marx foi um vigoroso crtico do idealismo.

    O uso das metforas por Marx representa um necessrio gasto adicional de energia verbal para realizar uma efetiva comunicao com o leitor. Um economista formal fica horrorizado quando Marx afirma que as mercadorias assumem uma forma metafsica para se apresentar no mercado. Da mesma forma, os economistas burgueses ficaram escandalizados com uma obra econmica que citava Shakespeare e Homero, este ltimo citado em grego. Por isso, de forma equivocada, se qualificou a obra de Marx como literria, ainda que, como disse Ludovico Silva, haja nela um estilo literrio. E Marx, usa muitas ana-logias e metforas para tornar visveis suas idias.

    Antes de Marx ser um cientista social, ele foi um poeta. Poste-riormente, percebeu que sua vocao era a cincia e no a literatura. Foi na obra cientfica que Marx empenhou seu gnio literrio ou, por outras palavras, foi na cincia que esqueceu a sua frustrao de poeta.

    Ento, a obra de Marx uma obra de arte. Ludovico Silva con-sidera que o trao mais marcante do estilo literrio de Marx o seu carter arquitetnico. Ou seja, h em Marx um sistema arquitetnico construdo de metforas e analogias como expresso harmnica da cincia.

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    Um dos maiores desafios da anlise de Ludovico separar sig-nos e significados, metforas e teorias. Nem o melhor cirurgio seria capaz de separar os signos dos seus significados, isto , a forma do contedo. Uma tarefa praticamente impossvel. A est precisamente o estilo literrio na construo musical dos significados densos. Os sig-nos se apresentam como a expresso mais exata dos significados. Marx dono de um estilo brilhante. Nele, forma e contedo, signos e signi-ficados adquirem um equilbrio impressionante e uma articulao que s o melhor dos compositores capaz de realizar.

    Em Marx disse Silva existem trs grandes metforas, espcies de metforas matrizes que aglutinam todas as figuras literrias. Estas trs grandes metforas so: a metfora da superestrutura, a metfora do reflexo e a metfora da religio. Com elas, Marx ilustra sua concepo da histria, mas no so s figuras estticas, elas possuem um valor cognitivo.

    Afirmar que a teoria ou o conceito de superestrutura uma metfora, parece ser a maior das heresias ditas por Ludovico. Quando Marx se refere ao que em portugus seria superestrutura, ele utiliza a etimologia latina Superstruktur e tambm o termo alemo berbau que significa a parte superior de um edifcio. Engraado que at o prprio dicionrio da lngua portuguesa o Aurlio incorpora a palavra superestrutura como se ela fosse uma teoria. Igualmente, no Dicionrio Houaiss (2009), pode-se ler que a superestrutura no marxismo, sistema de idias e sentimentos, instituies jurdicas e polticas, e manifestaes culturais que constituem a conscincia social nas diferentes sociedades humanas, dependente em ltima instncia do condicionamento de uma infraestrutura econmica.

    Ao contrrio do que pode esperar-se com tanto alarde em torno do conceito de superestrutura, nem Superstruktur nem berbau so termos que Marx utiliza de forma abundante na sua obra. Pelo contrrio, segundo Silva, Marx utiliza o primeiro termo em trs ocasi-es, enquanto o segundo apenas uma vez. Pode ser que Ludovico esteja enganado quanto ao nmero de vezes que Marx utilizou tais expres-ses, mas o certo que o pensador alemo usou-as muito pouco. Isso nos leva a pensar que a superestrutura, em vez de ser uma teoria cientfica, no passa de uma simples metfora, utilizada em contadas ocasies. Marx saba lo que no parecen saber los marxistas: que una cosa es presentar esquemticamente una teora recurriendo a algunas

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    metforas, y otra cosa muy distinta explicar cientfica y positivamente esa teora (SILVA, 1978, p. 62).

    H uma constelao de marxistas que reduzem a teoria das formaes ideolgicas mera superestrutura ideolgica, que a met-fora utilizada por Marx para ilustrar sua teoria. Ao fazerem isto, al-guns marxistas esvaziam o poder terico explicativo de Marx. Quan-do eles consideram a superestrutura ideolgica como uma teoria, colocam de ponta-cabea o pensamento de Marx. O que essa teoria explicaria? Que a sociedade considerada uma estrutura material e tem montada sobre si, uma superestrutura ideal. Porm, se a superestrutura est colocada sobre a estrutura, possvel consider-la separadamente da estrutura. Ento, se a ideologia uma superestrutura: por que no pode ser considerada separadamente? Aqui est precisamente a inver-so do pensamento de Marx. Marx se empenhou em atacar os idelo-gos que consideravam possvel um mundo das idias independente da sociedade civil, da vida material da sociedade. En otras palabras, to-mar la superestructura por una explicacin cientfica equivale a con-vertir a Marx en un idelogo, cuando no en un desaforado platnico creyente en un topos hyperournios o lugar supraceleste donde estn instaladas las ideas (SILVA, 1978, p. 63).

    No seu famoso Prlogo da sua Contribuio crtica da e-conomia poltica, de 1859, Marx se refere base e superestrutura como analogias. Marx pretende comparar a estrutura econmica da sociedade s fundaes de um edifcio e comparar a formao ideol-gica da sociedade, isto , a fachada jurdica e poltica prpria edifi-cao que descansa sobre aquela fundao. Os idelogos so aqueles que, no conseguindo enxergar as fundaes do edifcio, pensam que no existem e confundem a sociedade com sua fachada jurdica e pol-tica.

    A maior parte das acusaes de determinismo que alguns confe-rem a Marx provm dessas confuses, infelizmente difundidas por muitos marxistas dogmticos que transformaram a metfora da su-perestrutura numa teoria cientfica.

    No Prlogo de 1859, Marx utiliza uma dicotomia que, segundo Silva, possibilita estabelecer o vnculo entre a metfora da superestru-tura e a do reflexo. A dicotomia: estrutura econmica/ideologia a expresso da teoria, enquanto que base/edifcio a correspondente metfora. Ludovico Silva adverte sobre o perigo de pensar a teoria

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    marxista em termos de superestrutura, considerando a ideologia como um mundo independente da estrutura social.

    A metfora do reflexo se encontra na Ideologia Alem, mas desaparece nas suas obras posteriores. curioso que Engels, co-autor de Ideologia Alem, continuou utilizando at o fim da sua vida a metfora do reflexo, sem se preocupar em diferenciar a metfora da teoria.

    Ludovico Silva mostra que, a referida teoria do reflexo ape-nas uma metfora baseada em duas analogias entrelaadas e compl-ementrias. Na primeira analogia, a ideologia aparece como o reflexo tico invertido na cmera escura. A ideologia seria uma representao invertida do mundo. Isto , a crena ideolgica de que as ideias produ-zem a histria e no o contrrio. Ento, quando Marx refere-se ao reflexo ideolgico, ele est fazendo uso de uma metfora.

    Poucos autores tm dado ateno ao estilo literrio de Marx. A consequncia tem sido confundir figuras literrias com explicaes tericas. Silva separa minuciosamente as metforas e analogias da teoria. Poucos sabem, mas na sua juventude, como j fizemos refern-cia, Marx quis ser poeta. Um pssimo poeta, diga-se de passagem. A distino entre o que expresso literria e teoria nos permite outro olhar sobre a obra de Marx. o que Silva chama de dialtica da ex-presso ou expresso da dialtica.

    Alm das analogias e das metforas, Ludovico Silva destaca o carter irnico da obra de Marx. Essa ironia de Marx provm da sua capacidade de olhar, de um lado inusitado, os fenmenos sociais. Marx era irnico, porque era materialista e, por isso, se empenhava em descobrir o que estava alm das aparncias ideolgicas do Estado, da religio e do direito. Ludovico ressalta que a ironia em Marx tinha a funo de denunciar, de iluminar a realidade. A ironia no um mero detalhe, um elemento chave que permite entender a concepo da histria de Marx. Enfim, Ludovico Silva, ao deslindar o que metfora e o que explicao terica, contribui para superar os erros de leitura da obra de Marx. E precisamente aqui que se encontra a originalidade deste pequeno livro que merece uma traduo brasileira.

    Sobre o autor

    Luis Jos Silva Michelena, ensasta, poeta e filsofo venezuela-no, morreu precocemente em 1988, aos 51 anos. Ludovico, como era

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    conhecido, foi um dos mais importantes intelectuais da Venezuela. Estudou filosofia e letras na Espanha, literatura na Frana e filologia na Alemanha. Suas principais obras so: La plusvala ideolgica (1970), El estilo literario de Marx (1971), Marx y la alienacin (1974) e Anti-manual para uso de marxistas, marxlogos y marxianos (1976).

    Referncias

    HOUAISS, Antnio. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2009.

    ECO, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.

    William Hctor Gmez Soto E-mail: [email protected]

    Resenha recebida em abril/2010. Aprovada em junho/2010.