as melhores histórias de gatos

Upload: clarajsales

Post on 18-Jul-2015

184 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

As Melhores Histrias de GatosLesley OmaraReviso e Formatao http://groups.google.com/group/digitalsource

Organizao da Antologia Traduo de: Maria Joo Delgado Luisa Feij Sigrid Jansen Leite Faria

PREFCIONo h nada de mais apaixonante para quem goste de gatos como eu do que fazer uma nova antologia de histrias de gatos. Sou um pouco como a Sra. Bond da histria de James Herriot. S que ela tem uma casa cheia de gatos e eu s tenho dez! Cada um dos meus gatos completamente diferente dos outros: na forma, no tamanho e na personalidade, mas nunca tenho favoritos no deixo que isso me acontea. Gostava de poder pensar e falar como um gato, tal como Emile Zola faz na sua histria O Paraiso dos Gatos. Os gatos tm tido uma histria atribulada. No Antigo Egipto houve uma grande deusa gato chamada Bast. No Egipto descobriram-se milhares de mmias de gatos, muitas vezes acompanhadas de mmias de ratos que serviam de comida para os gatos no Alm. Depois temos Isabel I e Jaime I que metiam todos os gatos que encontravam em sacos de couro ouferkins e penduravam-nos nas rvores para os archeiros praticarem! Esta a origem, penso eu, da expresso tirar o gato do saco porque evidente que havia pessoas que gostavam de gatos e tinham corao. Por falar em corao, o mais espantoso que se, vivermos com gatos, ou com um gato, h menos probabilidades de termos problemas cardacos ou de hipertenso. Portanto, ns que os amamos e que vivemos com eles, temos realmente muita sorte. Tenho a certeza que o ler histrias de gatos tambm lhes vai fazer muito bem; especialmente se o fizerem com um gato a ronronar no colo! Recomendo-vos de todo o corao a leitura de As melhores histrias de gatos; dar um enorme prazer s pessoas que, como eu, pensam que os gatos so uma verdadeira maronronvilha! Boa leitura! BBRYL REID OBE

O PARASO DOS GATOS Emile ZolaUma tia deixou-me em testamento um gato angor que realmente o animal mais estpido que jamais conheci. Aqui est a histria que o meu gato me contou, numa noite de inverno, em frente da braseira: Nessa altura eu tinha dois anos e era de certeza o gato mais gordo e ingnuo que imaginar se possa. Nessa tenra idade eu tinha ainda toda a presuno dos animais que desdenham as douras do lar. E, contudo, quantas graas eu devia Providncia por me ter instalado em casa da sua tia! A boa da mulher adorava-me. Tinha, no fundo de um armrio, um verdadeiro quarto, almofada de penas e cobertor almofadado. A alimentao valia a dormida: nada de po, nada de sopa, s carne, bela carne mal passada. Ora bem! No meio de todos aqueles confortos eu s tinha um desejo, um sonho, que era raspar-me pela janela entreaberta e fugir para os telhados. As carcias pareciam-me inspidas, a fofura da minha cama dava-me nuseas; eu estava to gordo que me enojava a mim mesmo. E durante o dia inteiro aborrecia-me de ser feliz. Devo dizer-vos que, esticando o pescoo, tinha visto pela janela o telhado da frente. Nesse dia estavam l quatro gatos bulha, de plo eriado, rabo no ar, a rebolar ao sol sobre as lajes de ardsia azul, soltando gritos de alegria. Nunca eu tinha visto espectculo to extraordinrio. Desde ento a minha convico tornou-se inabalvel. A verdadeira felicidade estava naquele telhado, para alm daquela janela que to cuidadosamente era fechada. E a prov-lo estava o facto de fecharem do mesmo modo as portas dos armrios atrs das quais se escondia a carne. Decidi ento fugir. Devia haver, na vida, coisas mais interessantes do que carne mal passada. Era o desconhecido, o ideal. Um dia esqueceram-se de fechar a janela da cozinha. Por a saltei para o telhadinho que se encontrava por baixo. Que lindos eram os telhados! Bordejavam-nos grandes caleiras que exalavam perfumes deliciosos. Caminhei voluptuosamente por essas caleiras, onde as minhas patas se enterravam numa lama fina que era infinitamente morna e macia. Parecia que estava a andar em cima de veludo. E estava quentinho ao sol, um calorzinho que me derretia as banhas. No vou negar que tremia como varas verdes. Misturado com a minha alegria havia um terror pnico. Lembro-me sobretudo de uma tremenda emoo que quase me fez cair rua. Trs gatos que desceram do cume do telhado vieram ter comigo miando assustadoramente. Mas ao verem-me desfalecer, trataram-me de parvo e disseram que estavam a miar por brincadeira. Pusme a miar com eles. Era encantador. Os tipos no tinham a minha estpida gordura. Faziam troa de mim quando eu rebolava como uma bola pelas placas de zinco aquecidas pelo sol. Um velho gatarro do bando tomou-se de amizade por mim. Props-se educar-me, o que eu aceitei cheio de gratido. Ah! Como estavam longe os bofes da sua tia! Bebi nas caleiras e soube-me melhor que qualquer leite com acar. Tudo me parecia bom e belo. Uma gata passou; uma gata encantadora, cuja viso me encheu de uma emoo desconhecida. S os meus sonhos me haviam mostrado aquelas criaturas deliciosas cuja espinha adoravelmente flexvel. Corremos ao encontro da recm-chegada, os meus trs companheiros e eu. Eu ia frente, preparando-me para apresentar os meus cumprimentos formosa criatura, quando um dos meus companheiros me mordeu cruelmente o pescoo. Soltei um grito de dor. Pffi disse-me o gatarro velho, puxando por mim ainda lhe ho-de acontecer muitas mais. Ao fim de uma hora de passeio, senti um apetite feroz. Que que se come nos telhados? perguntei ao meu amigo gatarro. Aquilo que se encontra respondeu ele doutamente.

Esta resposta embaraou-me porque, por muito que procurasse, no encontrava nada. Vi, finalmente, numa mansarda, uma jovem operria que estava a preparar o seu almoo. Na mesa, por baixo da janela, via-se uma bela costeleta de um vermelho apetitoso. Ora aqui est o que me vai servirpensei eu muito ingenuamente. E saltei para cima da mesa onde agarrei na costeleta. Mas a operria viu-me e veio atrs de mim com uma vassoura com que me deu uma forte pancada nas costas. Larguei a carne e fugi, soltando um grito aterrador. Voc chegou agora das beras? perguntou-me o gatarro. A carne que est em cima das mesas para ser desejada distncia. nas caleiras que temos de procurar. Nunca consegui entender que a carne das cozinhas no pertena aos gatos. A minha barriga comeava a dar horas furiosamente. O gatarro acabou de me desesperar dizendo que era preciso esperar pela noite. Nessa altura desceramos rua para procurar nos montes de lixo. Esperar pela noite! E ele dizia-me aquilo com toda a calma, como um filsofo empedernido. Eu sentia-me a desmaiar, s de pensar naquele jejum prolongado. A noite caiu lentamente, uma noite de nevoeiro que me gelou. No tardou a chover; uma chuvinha fina, penetrante, empurrada por bruscas rajadas de vento. Descemos pelo vitral de uma escadaria. Que feia me pareceu a rua! J no existia aquele calorzinho suave, aquele grande sol, aqueles telhados brancos de luz onde era to bom esticarmo-nos. As minhas patas escorregavam no pavimento oleoso. Recordei com amargura o meu cobertor acolchoado e a minha almofada de penas. Mal tnhamos chegado rua quando o meu amigo gatarro comeou a tremer. Agachouse todo e correu rastejando encostado s paredes das casas dizendo-me que fosse atrs dele sem demora. Quando encontrou a porta de um ptio apressou-se a esconder-se a, soltando um ronronar de satisfao. E, como eu o interrogasse sobre aquela fuga, disse: No viu aquele homem com um saco e um arpo? Vi. Ora bem! Se ele nos tivesse visto apanhava-nos e comia-nos em espetada. Em espetada! exclamei eu. Mas, ento, a rua no nos pertence? No se come nada e ainda se comido! Entretanto, tinham vindo despejar o lixo em frente s casas. Desesperadamente, pus-me a escabichar nos montes de detritos. Encontrei dois ou trs magros ossos misturados com cinzas. Foi ento que compreendi como so bons os bofes frescos. O meu amigo gatarro escarafunchava no lixo como um verdadeiro artista. Fez-me andar at de manh, a inspeccionar cada laje, sem pressa nenhuma. Durante quase dez horas apanhei chuva, tremendo de frio. Maldita rua, maldita liberdade, que saudades eu tinha da minha priso! Quando raiou o dia, o gatarro, vendo-me a desfalecer, perguntou com um ar esquisito: Ento, j est farto? Oh, se estou! respondi eu. Quer voltar para sua casa? Quero, mas como encontr-la? Venha da. Esta manh, quando o vi sair, percebi logo que um gato gordo como voc no era feito para as duras alegrias da liberdade. Sei onde a sua casa, vou deix-lo l porta. Dizia isto com toda a simplicidade, aquele digno gatarro. E quando chegmos: Adeus disse ele, sem manifestar a menor emoo. No exclamei eu no vamos separar-nos assim. Voc vem comigo. Partilharemos a mesma cama e a mesma carne. A minha dona uma boa mulher... Ele no me deixou acabar. Cale-se! disse bruscamente. Voc um parvo. Eu morria nas suas molezas mornas. A sua vida planturosa boa para os gatos bastardos. Os gatos livres nunca compraro pelo preo da priso os bofes e as almofadas de penas... Adeus!

E partiu em direco aos telhados. Vi a sua grande silhueta magra estremecer de prazer sob a carcia do sol nascente. Ao entrar em casa a sua tia pegou no chicote e administrou-me uma correco que eu recebi com uma alegria profunda. Gozei imensamente a voluptuosidade de estar no quente e de ser espancado. Enquanto ela me batia eu pensava, deleitado, na carne que depois ela me ia dar. Est a ver concluiu o meu gato, espreguiando-se frente s brasas a verdadeira felicidade, o paraso, meu caro dono, estar fechado em casa e ser espancado numa sala onde h carne. Falo pelos gatos. Trad: J.L.C.

LILLIAN Damon RunyonSempre disse que Wilbur Willard pura e simplesmente um tipo cheio de sorte porque... que outra coisa poderia ter sido seno a sorte que o fez cambalear pela rua 49 numa manh fria e com neve quando Lillian miava no passeio procura da me? E que outra coisa poderia ter sido seno a sorte que fez com que Wilbur Willard estivesse completamente bbedo; que tivesse estado a beber uns whiskies com um amigo chamado Haggerty num apartamento da rua S9? Porque, se Wilbur Willard no estivesse toldado, veria que a Lillian no era mais do que uma gatita preta e passaria de largo porque, como toda a gente sabe, os gatos pretos do azar mesmo quando ainda pequeninos. Mas, como estava toldado, tal como vos disse, para Wilbur Willard as coisas eram muito diferentes e no viu Lillian como uma gatita preta perdida na neve, mas sim como um belo leopardo porque um polcia chamado O'Hara que ia a passar e que conhecia muito bem Wilbur Willard, ouviuoo dizer: Oh, que lindo leopardo! O polcia deu uma olhadela, pois no queria nada que andassem leopardos a deambular pelo seu sector, j que era ilegal, mas tudo o que viu, como me disse depois, foi aquele odre, Wilbur Willard, a pegar num gatinho preto esqueltico e a enfi-lo no bolso do sobretudo; e ouviu ainda Wilbur a dizer: Passas a chamar-te Lillian. Depois Wilbur seguiu aos baldes para o quarto no ltimo andar de um velho hotel na 8 Avenida, chamado Hotel Bruxelas, onde j vivia h uns tempos porque o gerente no tinha nada contra os actores, j que a gerncia do Hotel Bruxelas era realmente muito tolerante. Surgiram ento queixas nessa mesma manh de uma das vizinhas de Wilbur, uma velha burlesca que dava pelo nome de Minnie Madigan, que j no trabalhava desde que Abraham Lincoln fora assassinado, porque ouviu Wilbur a andar pelo quarto atrs de um belo leopardo e ela resolveu chamar o empregado para dizer que um hotel que autoriza animais ferozes no respeitvel. Mas o empregado foi ver ao quarto de Wilbur e encontrou-o a brincar com, pura e simplesmente, um gatinho preto com ar inofensivo e a queixa da velha ficou sem efeito, especialmente porque tambm nunca ningum reivindicara que o Hotel Bruxelas era respeitvel, nem nada que se parecesse com isso. claro que quando Wilbur deixou de estar sob a aco dos vapores do lcool na manh seguinte, percebeu que Lillian no era um leopardo e efectivamente ficou espantado por se encontrar na cama com um gatinho preto, porque parece que Lillian estava a dormir em cima do peito de Wilbur para se aquecer. A princpio Wilbur no quis acreditar no que estava a ver e atribuiu tudo aquilo ao whisky do Haggerty, mas finalmente convenceu-se, meteu a Lillian no bolso e levoua at ao night club Hot Box e deu-lhe leite, coisa de que Lillian pareceu gostar muito. Ora, donde vinha a Lillian? Isso claro que ningum sabia. Talvez algum a tivesse atirado pela janela para a neve, porque em Nova Iorque as pessoas esto sempre a atirar gatinhos e outras coisas, pela janela fora. Efectivamente, se h algo que esta cidade tem a rodos, gatinhos, que acabam por crescer e ficar gatos e andam a virar os caixotes do lixo, a miar pelos telhados, acordando toda a gente. Pessoalmente os gatos no me servem para nada, inclusive os gatinhos, porque nunca encontrei nenhum que me trouxesse grandes vantagens, embora conhea um tipo que se chama Pussy McGuire que tem uma vida de nababo s a roubar gatos e s vezes ces, e a vend-los a velhotas que gostam muito dessa companhia. Mas Pussy s rouba gatos persas e angors, que so

gatos muito finos e, como evidente, a Lillian no era assim to chique. Lillian no passava de um gato preto e, nesta cidade, ningum d um chavo por gatos pretos, pois so normalmente tidos como muito agoirentos. E mais, acontecia que da a algumas semanas Wilbur Willard podia muito bem passar a chamar-lhe Herman ou Sidney, ou outra coisa qualquer; mas Wilbur insistia em Lillian, porque era esse o nome da sua parceira quando ele andara no vaudevilie h uns anos atrs. Falava-me muitas vezes em Lillian Withington quando estava com os copos, o que, alis, era muito frequente, pois Wilbur era um bom copo: whisky, de malte ou no, bourbon, gim ou qualquer outra coisa que estivesse mo, excepto gua. Efectivamente, Wilbur Willard era um bebedor de primeira e de nada servia dizer-lhe que neste pas beber era ilegal, porque isso s o enfurecia mais e mandava a lei s malvas, s que Wilbur Willard usava uma palavra muito mais forte do que malvas. Ela era como um belo leopardo contava-me Wilbur sobre Lillian Withington. Com os cabelos e os olhos pretos e toda encrespada, como um leopardo que eu vi num nmero com animais que actuou uma vez no mesmo espectculo que ns no Palace. Nessa altura ramos cabea de cartaz dizia ele Willard e Withington, o melhor nmero de dana e canto do pas. Apanhei-a em San Antonio, que uma terra no Texas dizia Wilbur. Ela tinha sado h pouco de um convento e eu acabara de perder a minha antiga parceira, Mary McGee, que morreu ali minha frente de pneumonia. Lillian queria ir para o palco e juntou-se a mim. Uma actriz nata e com uma ptima voz. Mas tal qual um leopardo; tal qual um leopardo. Havia algo de gato nela e os gatos e as mulheres so ambos ingratos. Amo a Lillian Withington. Queria casar com ela. Mas ela era fria comigo. Dizia que no havia de passar toda a vida no palco. Dizia que queria dinheiro e luxos e uma boa casa e, claro, um tipo como eu no pode dar essas coisas a uma boneca. Rendi-me totalmente a ela contava Wilbur. Passei a ser escravo dela. No havia nada que no fizesse por ela. At que um dia, em Boston, ela veio ter comigo e, friamente, disseme que me ia deixar. Disseme que ia casar com um tipo rico de l. evidente que o nosso nmero acabou e eu nunca mais tive coragem de procurar outra parceira e ento pus cinta esta velha garrafa preta e hoje que sou eu seno um artista de cabar? Ento, s vezes, ele desatava a chorar e s vezes eu chorava com ele, embora quanto a mim, Wilbur se tivesse safado de boa, livrando-se de uma tipa que queria coisas que ele no lhe podia dar. H muitos tipos nesta cidade que andam enredados com tipas que querem aquilo que eles no lhes podem dar mas que, numa tentativa para as acalmar, se mantm enredados e humilhados. Wilbur fazia um bom dinheiro como entertainer no Hot Box, embora gastasse a maior parte em whiskies e nem sequer era um mau entertainer. Eu ia com frequncia ao Hot Box quando me sentia em baixo para o ouvir a cantar Melancholy Baby e Moonshine Valley e outras canes tristes que me partiam o corao. Pessoalmente no percebia por que que as garotas no se apaixonavam pelo Wilbur; principalmente quando ele cantava canes como Melancholy Baby bem entrado nos copos, porque ele era um tipo alto, bem parecido, com grandes pestanas e olhos castanhos sonolentos, e a sua voz tinha um tom grave, lamentoso, que normalmente lhes caa no goto. um facto que muitas garotas se atiravam a Wilbur quando ele estava a cantar no Hot Box mas, por qualquer razo, Wilbur nunca lhes ligava porque, e era o que eu achava, s pensava em Lillian Withington. Bom, depois de ter encontrado a Lillian, a gatita preta, Wilbur pareceu ganhar um novo gosto pela vida e a Lillian acabou por se tornar bem engraadinha e nada feia depois de Wilbur lhe dar boa comida. Era negra que nem um tio, sem uma nica mancha branca, e crescia to depressa que em breve Wilbur deixou de a poder trazer no bolso e ento ps-lhe uma trela e andava com ela sempre atrs. Foi assim que Lillian passou a ser muito conhecida na Broadway, com Wilbur a lev-la a todo o lado e finalmente j nem era preciso lev-la pela trela, pois ela seguia Wilbur como um cozinho. E naqueles loucos anos 40 no havia um nico cachorro que

se metesse com a Lillian, pois ela saltava-lhes em cima num abrir e fechar de olhos; arranhava-os e mordia-os at eles se sentirem felizes por se verem livres dela. Mas claro que os cachorros nos anos 40 eram fundamentalmente chowchows, pequinses e lulus da Pomernea ou pequenos ces de gua brancos e felpudos que eram passeados por loiras e que no estavam preparados para enfrentarem um gato esperto. De facto, Wilbur Willard no se dava l muito bem com nenhuma pequena que tivesse um cachorro entre Times Square e Columbus Cir, e o que todas queriam era que Wilbur e Lillian fossem dar uma volta ao bilhar grande. Alm disso, Wilbur tinha alguns problemas com tipos que tambm pertenciam s garotas, mas Wilbur no era nenhum aselha quando se tratava de zaragatas se no estivesse muito toldado e com as pernas pesadas. Depois de entreter as pessoas do Hot Box, Wilbur costumava dar uma volta pelos speakeasies que ainda estavam abertos e bebia mais uns copos para alm dos que j bebera no Hot Box (e tinham sido muitos) e embora fosse considerado muito perigoso nesta cidade misturar as bebidas do Hot Box com outras, isso nunca pareceu preocupar Wilbur. J de manh levava algumas garrafas de whisky para o quarto no Hotel Bruxelas e usava-as para atestar e assim, quando Wilbur Willard estava pronto para finalmente adormecer, tinha tanto lcool deste e daquele tipo dentro dele que dormia que nem um justo. claro que ningum na Broadway censurava Wilbur por ser um beberro, porque sabiam daquele amor por Lillian Withington que perdera e, nesta cidade, o ter-se perdido a garota uma boa desculpa para um tipo beber daquela maneira e por isso que se bebe tanto aqui; mas ningum conseguia perceber como que Wilbur aguentava tanto lcool sem rebentar. Os cemitrios estavam cheios de tipos que bebiam bem menos que Wilbur, mas ele nem sequer parecia sentir-se mal ou, se que se sentia, no o manifestava e no andava pelas esquinas a dizer que era da porcaria do lcool que ento se arranjava. Num inverno Wilbur fez perder muita massa a uns tipos que frequentavam a Mindy porque, ao fim da noite, comeou a ir beber ao speakeasy Good Time Charley e os rapazes apostaram 4 contra 1 em como ele no passava da primavera, pois nunca imaginaram que um tipo que bebia tanto lcool do Good Time Charley conseguisse sobreviver. Mas Wilbur Willard conseguiu e toda a gente o passou a considerar como um super-homem nato, e pronto. Por vezes, Wilbur aparecia no Mindy com a Lillian atrs, sempre atenta aos cachorros ou, se o tempo estava mau, em cima do seu ombro; e os dois sentavam-se ao p de ns e ali ficavam horas a fio no paleio sobre isto e aquilo. Nessas alturas, Wilbur trazia normalmente uma garrafa cinta e, de vez em quando, dava uma golada; mas evidente que isto para ele no era beber a srio. Quando Lillian estava com Wilbur, ficava normalmente o mais perto possvel dele e toda a gente percebia que ela gostava muito de Wilbur e que ele gostava muito dela, embora por vezes ele se enganasse e falasse dela como de um belo leopardo. Mas claro que isso no passava de um lapsus image e era evidente que se Wilbur lhe apetecia pensar que a Lillian era um leopardo, ningum tinha nada a ver com isso. Provavelmente ela foge-me um dia destes dizia Wilbur, fazendo-lhe festas nas costas at o plo comear a estalar. Embora lhe d muito figado e comida de gatos, e isto e aquilo, e todo o meu carinho, ela um dia destes diz-me adeus. Os gatos so como as mulheres e as mulheres como os gatos. So muito ingratos. Trazem , normalmente, azar dizia Big Nip, o jogador de pocker. Especialmente os gatos e, muito especialmente, os gatos pretos. Havia muitos outros tipos que diziam a Wilbur que os gatos pretos davam azar e aconselhavam-no a atirar Lillian ao North River atada a um chumbo, mas Wilbur respondia que j tinha tido todo o azar do mundo quando perdeu Lillian Withington e que a Lillian, a gata, no lhe podia fazer pior e por isso continuou a tratar dela e a Lillian continuou a crescer, a crescer, ao ponto de eu ter comeado a pensar que talvez houvesse qualquer coisita de So Bernardo naquela gata. Finalmente comecei a notar algo de estranho em Lillian. s vezes parecia muito meiga

com Wilbur e outras vezes tornava-se muito desagradvel, bufava-lhe, arranhava-o e tornava-se muito hostil. Dava-me a ideia de que andava bem quando Wilbur estava com os copos, mas ficava triste e irritada quando ele estava sbrio, quando estava s um bocado toldado. E quando Lillian se sentia triste e irritada no dava trguas aos cachorros da vizinhana do Bruxelas. Com efeito, a Lillian gostava de perseguir cachorros, de se esgueirar quando Wilbur estava a descansar e de correr atrs dos cachorros de pernas tortas, especialmente quando encontrava um sem trela. Um cachorro livre era pra doce para Lillian. evidente que isto causava uma enorme consternao junto das donas dos cachorros, sobretudo quando a Lillian apareceu um dia em casa com um pequins do tamanho dela pendurado pelo pescoo e com uma loira toda excitada atrs a gritar Seu assassino! porta de Wilbur Willard, enquanto a Lillian irrompia pelo quarto de Wilbur adentro, por um buraco que ele fizera de propsito para ela, ainda a arrastar o pequins. Mas, em vez de ficar furioso com a Lillian e de lhe dar uma boa sova por tudo aquilo, Wilbur pareceu contente porque acontece que ele ainda estava toldado quando a Lillian apareceu com o pequins e imaginou que a Lillian era um belo leopardo. Ena! dissera Wilbur. Que dedicao! O meu belo leopardo foi selva e trouxe-me um antlope para o jantar. claro que isto era um absurdo, porque um pequins no tinha nada a ver com um antlope, mas a loira do outro lado da porta de Wilbur ouvia-o a resmungar algo e convenceu-se de que ele ia mesmo comer o seu pequins ao jantar e a gritaria que fez foi verdadeiramente terrvel. Houve uma enorme barafunda no Bruxelas para aplacarem a fria da loira que gritava que a Lillian lhe havia roubado o pequins e o pior foi que o eterno apaixonado da loira, que era um contrabandista bruto e italiano, chamado Gregorio, apareceu no Hot Box na noite seguinte e quis dar uma sova a Wilbur Willard. Mas Wilbur enrolou-o com umas bebidas e com a Melancholy Baby e antes de sair o italiano ficou muito sentimental com Wilbur e tambm com a Lillian e quis que Wilbur aceitasse umas moedas para que Lillian voltasse a apanhar o pequins, mas prometendo no o devolver. Pelos vistos o Gregorio no gostava l muito do pequins e s estava a dar-se ares de brigo para agradar loira e faz-la pensar que a amava muito. Mas percebi que a Lillian era de luas e acabei por perguntar a Wilbur se ele notava alguma coisa. Sim disse-me ele muito triste parece que no consigo captar o amor dela. Est a tornar-se muito caprichosa. Um tipo mudou-se no outro dia para o meu andar no Bruxelas, com um garoto e a Lillian ficou logo muito amiga do mido. So grandes amigos. Pois disse Wilbur os gatos so como as mulheres. O amor deles no dura muito tempo. Aconteceu que fui ao Bruxelas uns dias depois para dizer a um tipo chamado Crutchy, que vivia no mesmo andar de Wilbur Willard, que havia uns cidados que no gostavam da cara dele e que seria uma boa ideia ele abandonar a cidade, especialmente se insistisse em trazer cerveja para o territrio deles, e vi a Lillian na entrada com um mido que devia ser o garoto de que Wilbur falara. O garoto devia ter uns trs anos, era muito engraadinho, de cabelo e olhos pretos e fazia judiarias a Lillian de uma maneira assaz surpreendente, j que a Lillian no era um gato que gostasse muito de judiarias, nem mesmo quando feitas por Wilbur Willard. Perguntei a mim mesmo como que havia pessoas que levavam um mido daqueles para um lugar como o Bruxelas, mas conclu que devia ser o filho de algum artista e que talvez no tivesse me. Mais tarde estava eu a falar com Wilbur acerca disto e ele disse-me: Bem, se o pai do mido actor, no est a trabalhar. Fica fechado no quarto durante todo o dia e s deixa o mido ir at ao hall da entrada e eu tenho pena do garoto e por isso que deixo a Lillian brincar com ele. Ora aconteceu que estava muito frio e estvamos uns quantos no Mindy por volta das cinco da manh, quando se ouviu a sirene dos bombeiros a passar. Nessa altura apareceu um tipo que dava pelo nome de Kansas, que se chamava assim porque viera do Kansas, e que era um

jogador profissional. O velho Bruxelas est a arder disse esse tal de Kansas. Est sempre a arder disse o Big Nig, querendo dizer com isso que havia sempre sarilhos bem escaldantes no Bruxelas. Quem que havia de entrar ento seno Wilbur Willard? E toda a gente percebeu logo que vinha nas nuvens. Devia vir do Good Time Charley e j devia estar bem atestado. Nunca vira Wilbur Willard to bbedo. No trazia a Lillian consigo, mas ele tambm no levava a Lillian ao Good Time Charley porque o Charley detestava gatos. Ei, Wilbur disse o Big Nig a tua espelunca, o Bruxelas, est a arder. Bom disse Wilbur eu sou um pirilampo e preciso de lume. Vamos procura de lume. O Bruxelas ficava apenas a uns quarteires do Mindy e como no havia nada que fazer por ali, uns quantos de ns foram at 8 Avenida, com Wilbur aos baldes nossa frente. A velha espelunca estava mesmo a crepitar quando l chegmos e a vimos de perto, e os bombeiros lanavam-lhe gua para cima e os polcias estendiam as barreiras para impedirem as pessoas de se aproximarem, embora no houvesse l muita gente quela hora da manh. No uma maravilha? exclamou Wilbur olhando para as chamas. No como um palcio encantado todo iluminado? que Wilbur no percebia que aquilo estava a arder, embora houvesse homens e mulheres a fugirem l de dentro, a maior parte deles meio despidos ou nus e os bombeiros estivessem a colocar as redes de emergncia para o caso de algum querer saltar pelas janelas. mesmo bonito disse Wilbur tenho de ir buscar a Lillian para ela ver isto. E antes que algum tivesse sequer tempo de pensar, j Wilbur Willard se dirigia para a porta principal do Bruxelas como se nada tivesse acontecido. Os bombeiros e os polcias ficaram to pasmados que a nica coisa que fizeram foi gritar a Wilbur, mas ele no lhes ligou. Bom, claro que toda a gente achava que Wilbur estava perdido, mas dez minutos depois, ele saa pela mesma porta entre chamas e fumo com o ar mais calmo do mundo e com Lillian nos braos. Sabem disse-nos Wilbur dirigindo-se ao stio onde estvamos de olhos esbugalhados tive de subir a p at ao meu andar, porque os elevadores no funcionam. O servio est cada vez pior neste hotel. Hei-de apresentar queixa gerncia logo que pague alguma coisa por conta. Ento a Lillian lanou um fortssimo miado, saltou do colo de Wilbur, passou a correr por entre polcias e bombeiros com o plo todo eriado e o que toda a gente viu a seguir foi ela a lanar-se pela porta do velho hotel adentro com uma enorme rapidez. Olhem, olhem exclamou Wilbur com um ar muito espantado l vai a Lillian. E o que que o doido do Wilbur fez seno dar meia-volta e regressar ao Bruxelas? E por essa altura j o fumo saa pela porta da frente e era to espesso que, em segundos, ele deixou de se ver. evidente que apanhou bombeiros e polcias desprevenidos, porque no estavam acostumados a que as pessoas andassem a entrar e a sair dos incndios mesmo frente dos seus narizes. Dessa vez quem estava por ali no hesitou em apostar, dois e meio e talvez trs contra um, em como no aparecia mais, porque o velho Bruxelas explodia nessa altura em chamas e fumo vindos das janelas de baixo, embora parecesse no haver muitas chamas nos andares de cima. Tudo indicava que j toda a gente sara do prdio e at os bombeiros combatiam o incndio do lado de fora porque o Bruxelas estava to velho e decrpito que no valia a pena arriscarem-se para salvarem os andares. Isto , estava toda a gente l fora, menos o Wilbur Willard e a Lillian, e, na nossa opinio, eles estavam a rilhar algures l dentro embora o Feet Samuels andasse por ali a aceitar apostas de treze contra cinco em como a Lillian iria aparecer s e salva porque o Feet asseverava que os gatos tinham nove vidas e que era uma boa aposta. Bom, de repente apareceu uma pequena bonitita, toda histrica, a empurrar e a esbracejar por entre a multido at s barreiras, a gritar at ningum se conseguir ouvir e nessa altura toda a

gente ouviu uma voz a fazer iodediti, como um cantor dos Alpes suos, vinda do telhado do Bruxelas e, olhando para cima, vimos Wilbur Willard na beira do telhado, por cima das chamas e do fumo, a gritar muito alto. Debaixo de um dos braos, tinha um grande embrulho, no se sabia de qu, e debaixo do outro, o garoto que eu vira a brincar no hall com a Lillian. Ao mesmo tempo em que ele estava ali a cantar como um alpino, a pequena bonitota que estava ao p de ns, comeou a gritar mais alto do que o canto de Wilbur e os bombeiros apressaram-se a esticar uma rede debaixo do stio onde ele se encontrava. Wilbur lanou ento um segundo iodeliti e atirou-se todo esticado, com o embrulho e o garoto, mas chegou rede de rabo e durante alguns minutos ficou a saltar para cima e para baixo at que parou. O facto que Wilbur gostava daquele balanar e ainda agora estaria ali no fora os bombeiros terem largado a rede e o terem deixado cair ao cho. Ento Wilbur saltou da rede e vi que o embrulho era um cobertor enrolado com os olhos de Lillian a aparecerem numa das extremidades. Continuava com o mido debaixo do outro brao, de cabea para a frente e pernas para trs, dando a ideia de que segurava com mais cuidado a Lillian do que o garoto. Ficou ali a olhar para os bombeiros com um ar zombeteiro e finalmente disse: No pensem que me apanham na rede se eu no quiser. Sou uma borboleta e dificil de apanhar. Depois, de repente, a pequena bonitota que tanta gritaria fazia, atirou-se a Wilbur, arrancou-lhe o garoto e desatou a abra-lo e a beij-lo. Wilbur dizia ela. Bem hajas Wilbur por teres salvo o meu filho! Oh, obrigada Wilbur, obrigada! O sacana do meu marido raptou-o e fugiu com ele e s h umas horas atrs que os meus detectives descobriram onde ele estava. Wilbur olhou estranhamente para a pequena durante uns segundos e comeou a afastarse, mas nessa altura a Lillian tentou esgueirar-se do cobertor para fora, com um ar chamuscado e com um cheiro a condizer, e o mido viu a Lillian e desatou a gritar e Wilbur acabou por lhe passar a gata. E como no a queria deixar, ficou por ali um pouco confuso; a pequena falou com ele e finalmente afastaram-se ambos, Wilbur carregando o mido e o mido carregando a Lillian e esta sentindo-se mal com as queimaduras. E mais: Wilbur estava provavelmente sbrio, coisa que, quela hora da manh, no acontecia h anos. Mas antes de desaparecer, ainda tive a possibilidade de falar com Wilbur e das suas palavras depreendi que a primeira vez que fora buscar a Lillian a encontrara no quarto e no vira vestgios do mido e nem se lembrara dele, porque no sabia em que quarto estava, pois nunca ligava a essas coisas. Mas da segunda vez que l fora, Lillian estava a cheirar a frincha da porta de um dos quartos ao fundo do corredor e Wilbur disse-me que se lembrava de ter visto algo como umas pingas de gua a sarem da frincha. E disse-me Wilbur como andava a procura de um cobertor para a Lillian e no estava para voltar ao meu quarto, pensei que ali talvez arranjasse um. Tentei o puxador, mas a porta estava trancada e ento meti-a dentro com um pontap, entrei e vi que o quarto estava cheio de fumo e as chamas estavam paulatinamente a lamber as janelas e quando tirei um cobertor da cama para embrulhar a Lillian, o que que me apareceu debaixo do cobertor? O mido. Bom acrescentou Wilbur o mido guinchava, a Lillian miava e gerou-se uma tal confuso que comecei a ficar nervoso e, portanto achei que era melhor irmos at ao telhado para acabar com aquele cheiro e vermos o fogo de l. Pareceu-me ver um tipo esticado no cho do quarto ao lado de uma mesa tombada entre a porta e a cama. Tinha na mo uma garrafa e estava morto. claro que no valia a pena andar com um morto atrs e assim peguei na Lillian e no mido e fui at ao telhado e depois vomos todos como os colibris. Agora preciso de beber um copo acrescentou ele. Ser que algum traz no cinto algo que se beba?

Bem, no dia seguinte, os jornais vieram, naturalmente, cheios de notcias sobre Wilbur e Lillian, especialmente sobre Lillian e ambos passaram a ter o estatuto de grandes heris. Mas Wilbur no aguentava a publicidade por muito tempo porque deixava de ter tempo para si, para os seus copos, com os reprteres e os fotgrafos sempre em cima dele, a quererem ouvir a sua histria e a tirarem mais umas fotos a ele e Lillian e assim, uma noite desapareceu e a Lillian desapareceu com ele. Um ano mais tarde acabou por casar com a sua antiga pequena, a Lillian WithingtonHarmon, comeou a ganhar muita massa e mais do que isso, deixou de beber e, fosse como fosse, tornou-se um cidado muito respeitvel. Portanto, toda a gente acabou por admitir que os gatos pretos nem sempre do azar, embora eu diga que o caso de Wilbur um pouco a excepo regra, porque partida ele no sabia que a Lillian era um gato preto, mas pensava que era um leopardo. Um dia, por acaso, encontrei Wilbur, todo bem vestido, com boas roupas, jias e todo janota. Wilbur disse-lhe eu. Penso muitas vezes como espantoso que a Lillian se tenha afeioado tanto ao mido, assim de repente, e se tenha lembrado que ele estava no hotel e te tenha levado l, uma segunda vez, ao quarto certo. Se no o tivesse visto com os meus olhos, nunca acreditaria que um gato tivesse discernimento suficiente para fazer uma coisa dessas, porque acho que os gatos so muito estpidos. Qual discernimento qual qu! disse-me Wilbur. A Lillian no via um boi frente dos olhos. E, alm disso, ela tinha tanta afeio pelo mido como por um coelho. Chegou o momento disse Wilbur de dizer toda a verdade sobre a Lillian. Ela foi muito elogiada, mas sem o merecer. Vou-te falar agora da Lillian e mais ningum sabe disto, a no ser eu. Sabes continuou Wilbur Quando a Lillian era uma gatinha, eu punha-lhe sempre um bocado de whisky no leite; em parte para que ela ficasse boa e forte e, em parte, porque nunca gostei de beber sozinho, a no ser quando no tinha ningum a meu lado. Bom, a princpio a Lillian no ligava l muito ao whisky no leite, mas finalmente comeou a gostar e eu continuei a aumentar-lhe a rao at que no fim ela acabava por beber um bom naco j sem leite nenhum, e chorava por mais. At que me apercebi de que a Lillian era uma bbeda, tal como eu nessa altura, e que no passava sem a sua dose e era quando se sentia bem e com os copos que a Lillian andava atrs dos pequineses e se tornava violenta. Ora contou-me Wilbur o momento em que o incndio comeou, coincidiu com a hora em que eu chegava a casa todas as manhs e dava a dose Lillian. Mas quando entrei no hotel para a ir buscar pela primeira vez, esqueci-me de lhe dar o whisky e a razo por que ela voltou a entrar no hotel foi porque ia procura da sua dose. E a razo por que ela estava a cheirar porta do mido, no foi porque o mido se encontrasse l dentro, mas porque as pingas que escorriam da frincha por debaixo da porta, eram pura e simplesmente whisky que saa da garrafa que estava na mo do morto. Nunca disse isto a ningum porque achei que seria um golpe memria de um morto disse Wilbur. Beber uma coisa terrvel, especialmente o beber-se s escondidas. Mas como que est a Lillian agora? Perguntei eu a Wilbur Willard. Estou muito desapontado com a Lillian respondeu ele. Ela recusa-se a reabilitar-se como eu e a ltima vez que soube dela, estava com o Gregorio, o contrabandista italiano, que a mantinha bem alcoolizada e, portanto ela agora deve estar a dar uma vida de co ao pequins da loira. Trad. L. F.

A INFNCIA DE MISS CHURT R. BuckleyMiss Churt, britnica como toda a gente a bordo do Malvern, estava sentada no peitoril de proteco da galeota e, de olhos vidrados, contemplava o Atlntico Norte. Miss Churt estava mergulhada em meditaes sombrias acerca do bife de lombo que o cozinheiro lhe tinha dado. Come-o todo, bichaninha; bom tinha dito o cozinheiro e Miss Churt no se fizera rogada. Mas agora, embora o bife estivesse delicioso Miss Churt estava um pouco apreensiva: uma sensao semelhante a balas de canho no diafragma apoderara-se dela... Miss Churt decidiu ir apanhar um pouco de ar fresco, fazer uma visitinha ao seu amigo Sr. Wharton. Saltou do seu poleiro e, de rabo alado, caminhou com passos incertos para as escadas do camarote. A marcha do Malvern tambm era incerta e pela mesma razo: uma sensao de peso no diafragma, causada no por balas de canho, mas por munies de guerra muito mais modernas. As suas relaes com o leme nunca haviam sido das mais cordiais, mas agora, depois de ter sido bombardeado, abalroado e atacado por avies, parecia que tanto lhe fazia ir para aqui como para acol; o que, alis, era o que estava constantemente a fazer. Numa das salas no convs do navio, o primeiro oficial e o chefe maquinista estavam a discutir este e outros fenmenos relacionados com o conforto e o bem-estar da tripulao. O Sr. Mclvor que, naturalmente, era o maquinista, tinha entrado em Nova Iorque e estava a absorver o pessimismo do Sr. Wharton. Ele uma espcie de mistura de gripe com uma sala da bolsa de valores disse o primeiro oficial aludindo ao Comandante. ... bom, voc viu-o. Vi qualquer coisa disse Mclvor sem se comprometer muito. S podia ser ele. Sobrinho do presidente; anos e anos esparramado ao sol... vem a guerra... o velho Stokes apanha gripe mo da divina Providncia e aqui estou eu a dizer Sim, sim meu Comandante quela coisa. Se ao menos ele tivesse pestanas no me importava tanto, mas... Mclvor acenou que sim e o seu sujo cachimbo disse: Chlup, chlup. E houve algum problema at aqui? Submarinos, hem? No. Ol riquinha. Ol! Vieste ver o Pap? O Sr. Mclvor, arrelampado, fez um gesto instintivo para alisar o cabelo, mas era apenas Miss Churt. O Sr. Wharton foi at porta, pegou em Miss Churt ao colo e, antes de se voltar a sentar no seu beliche, estendeu cuidadosamente no tapete um jornal do ms anterior. A pgina que ficou voltada para cima tinha uma fotografia do casamento de Lady Fulana com o capito Sicrano de Tal dos guardas reais; o Sr. Wharton, debruandose com Miss Churt instalada na palma da mo, analisou, com um olhar corrosivo, flores de laranjeira, sorrisos, dentes, amgdalas e o arco de espadas. Pronto, queridinha disse, colocando Miss Churt em cima deles. Voc casado? perguntou o Sr. Mclvor. No. Mas hei-de ser. ela. O maquinista entortou um olho para a fotografia que se encontrava em cima da secretria. Bonita pequena. como diz. Cnego Hobson e tudo. Olhe l, viu o nosso canho de 4.7 no convs da popa? Para grande pena minha. Mas que histria essa disse Mclvor, cuja capacidade de absorver novidades pessoais era muito superior de as transmitir de cnego? No me diga que

a pequena tem uma paixoneta por ele. Pelo velho Hobson? No desse gnero disse o Sr. Wharton e o seu olhar fez Mclvor desconfiar de que no devia ter perguntado. O facto que... isso minha queridinha. Vem ao Pap. Linda menina! Parece que voc gosta da bichana. Sou louco por ela. E ela doida pelo Harry, no s, bichinha? Miss Churt lambeu uma mo calejada e nodosa. Sabia um pouco a bife temperado com alcatro, sal, tabaco e Unguento Maravilha de Mallison para golpes e arranhes superficiais. Ento onde que entra tal cnego? Todas as raparigas do meu tempo de Liverpool so malucas por ele. Est a ver, ele ensinou-nos a todos o catecismo; o grupo coral das crianas chamava-lhe ele; ns, os rapazes, samos logo que fomos crismados mas, quer voc acredite quer no, nunca fui um homem de dizer tantos palavres como seria normal na minha posio. Reparei nisso quando andmos aos bordos na corrente disse o Sr. Mclvor. At pensei que s tantas voc era bicha. Um sbito aperto das costelas de Miss Chart suscitou um miado. Magoei a barriguinha, foi? perguntou o Sr. Wharton. Pronto, j passou... linda menina. Barriguinha cheia que nem um tambor... Ah, ento pensou, foi? At nos conhecermos apressou-se a dizer o Mclvor. Mas esse padre, j no pode ser muito novo? Cnego disse o Sr. Wharton. Pois no e tambm no nenhuma beleza. Mas a menina dos olhos da Annie e ou ele que a casa ou no ningum, de modo que at agora no foi ningum... e agora ainda por cima, pe-me este palerma de suas corderosa perna... E que interessa quem que a casa? Aquilo no leva mais tempo que tirar um dente. Ai no leva? A que voc se engana. O velho todo pelos rituais e essas cenas todas. O que quer dizer vus e flor de laranjeira para a Annie e chapu alto e casaca para mim. Mas em tempo de guerra no! Quem disse que no? Se fosse comigo disse o Sr. Mclvor aps madura reflexo ia ter com o velho e mandava-o dar uma volta. Isso que no mandava disse o Sr. Wharton em tom sombrio. Voc que nunca o viu. No mede mais de um metro e setenta, mas um reguila. Tem um daqueles focinhos que parece cortado em granito com um martelo-pilo. um bocado parecido consigo. O maquinista chefe analisou isto cuidadosamente e pousou o copo. Pois disse ele levantando-se. vontade de calculo, que alguns casem e tenham puros enquanto outros esbanjam as suas paixes com gatos malhados. Boas noites, Sr. Wharton. Quando chegou porta voltou-se para assistir exploso desta bomba de Glasgow. Miss Churt, que tinha sido despertada por algo que parecia um tremor de terra, piscou-lhe os olhos e voltou a adormecer. Temos gente a bordo capaz de operar com o tal canho? perguntou Mclvor para encobrir a sua curiosidade mais mrbida. Temos respondeu o Sr. Wharton e se algum perguntar quem comanda essa equipa, pode dizer que sou eu. Reserva naval. E, por seu turno, voc comandado pelo Comandante Timbs. Bem... boa noite. Ouviu falar naquele navio madeireiro que foi torpedeado? perguntou Wharton. No. Que aconteceu? Oh, foi s que pensaram que se calhar ele no se afundou como devia e que pode andar por a aos pedaos. O Timbs tem andado a contactar por rdio toda a gente excepto o Churchill e o Presidente Roosevelt, mas ningum o viu. A noite tambm est escura. Bem... bons sonhos. O Sr. Mclvor retirou-se com um ar bastante pensativo, mas o primeiro-oficial pareceu sentir-se melhor.

Extraiu suavemente Miss Churt do pas dos sonhos, segurando-a pela barriga de modo que ela ficou com as patinhas a abanar; fez-lhe um sorriso gigantesco e deu-lhe um beijo muito pouco higinico no nariz. Ento, minha belezinha! disse o Sr. Wharton. Queres que o Pap case com aquela outra pequena para tu teres uma linda casinha e um jardinzito para poderes esgaravatar vontade? Miss Churt estava extremamente sonolenta; alm disso, parecia que o bife lhe tinha enferrujado as cordas vocais. Abriu a boca corderosa, mas no emitiu qualquer som. Ento estamos combinados disse o Sr. Wharton. E, por falar nisso... Tinha mesmo acabado de se levantar para apanhar do cho o jornal com as fotografias do casamento quando, vindo do lado da proa, l fora na noite estrelada, se ouviu um enorme estrondo. O Malvem estacou como uma velhota atingida no saco das migas. Ao mesmo tempo as luzes apagaram-se. Era, evidentemente, o navio abalroado a flutuar, de quilha para cima, naquilo a que os franceses chamam, de forma to potica, a flor da gua e que os anglo-saxes intitulam de superficie. Tendo cumprido o destino que lhe fora traado por aquelas luzes celestiais que brilhavam l em cima; Neptuno atormentado por Marte, talvez; quem sabe? E, metido dentro a proa do Malvem como o fole de uma concertina, o navio madeireiro rolou sobre si mesmo, vomitou mais uma centena de metros de tbuas por um novo rombo e afundou-se; enquanto, por detrs do pique de vante do Malvern, o Sr. Wharton mais um punhado de marinheiros seminus lutavam para impedir que acontecesse a mesma coisa sua barcaa. Era necessrio reforar uma antepara; mas reforar anteparas no tarefa fcil no meio de uma noite de breu. Levou uma hora at o Sr. Mclvor e a sua horda conseguirem pr de novo a funcionar o dnamo que fora arrancado do seu lugar; e depois aquilo que a luz das lanternas apontada ao casco revelou estava longe de ser encorajador. No s a antepara cuspia gua atravs dos buracos dos rebites desenraizados, como a prpria antepara estava visivelmente encurvada para dentro, de modo que era mais que bvio que no havia tempo para grandes obras de carpintaria nem para escoramentos delicados. Os olhos do Sr. Wharton, por debaixo das melenas desgrenhadas, vagueavam desesperadamente pelo poro. A bombordo e a estibordo munies de vrios tipos formavam uma admirvel escora dos lados da parede da proa. Mas a meio encontravam-se dois caixotes que haviam posto prova os estivadores: eram to grandes e pesados que poderiam perfeitamente conter tanques de guerra e a notria instabilidade do Malvern fizera com que tivessem sido estivados bem atrs da antepara. O espao intermdio estava cheio disto e daquilo em pacotes que pesavam umas meras centenas de quilos. Tirem-me esta tralha do caminho! uivou o Wharton. Despachem-se, rapazes! Ele prprio ia pegar num dos caixotes quando o terceiro oficial o agarrou pelo ombro. Oia l! Oio, uma ova! Mexa-se e empurre aqui qualquer coisa. Vou levantar estas malditas locomotivas ou l o que aqui est dentro. Oia-me! O velho est desvairado a mandar tantos SOS para todo o lado que o ter j est cheio de cogulos... Ele que v para o inferno! E agora est a preparar-se para abandonar o navio. O Sr. Wharton largou o caixote que tinha entre mos e foi a correr soltar da confuso a caixa das chaves. Por qualquer razo desconhecida, a sua camisa tinha-se desintegrado e as suas calas compunham-se unicamente de um arremedo de cales e de uma perneira, mas, mesmo assim, continuava a no praguejar.

O Cnego Hobson que, nesse momento, dormia pacificamente na longnqua Liverpool com o nariz afilado enterrado numa almofada macia que lhe fizera uma paroquiana teria ficado muito contente se soubesse tal coisa. Que vai voc fazer? perguntou o terceiro oficial. Ele j tem prontos todos os papis do navio e diz que o dever dele para com os homens e que se, de madrugada, no vierem socorrer-nos, que manda toda a gente para os salvavidas. Se voc no me sair do caminho, de madrugada j fomos todos para os peixinhos disse o Sr. Wharton... Mas voc tem de o impedir. E arriscar-me a ser acusado de motim? No, muito obrigado; eu c obedeo. Mexamme essa tralha, seu bando de lagostas moles! Venham para aqui seus preguiosos morces. Querem que eu empurre isto sozinho? Tu Fawdry... e tu, Wilson... Havia agora um espao vazio entre a antepara e o tanque que, claro, no era um tanque, s parecia s-lo. De qualquer modo o problema era levar este at a antepara e o outro a seguir, se possvel. E a antepara estava a dar a entender, na sua linguagem de ao torturado, que raios a partissem se ainda ia esperar muito mais tempo por aquele apoio. No se consegue empurr-los disse fracamente o terceiro-oficial e, se conseguirmos, ainda vo pela proa fora e ns atrs. Como o Tornado em Coney Island disse o Wharton sorrindo. L se foi o MeGinty. Prontos rapazes? Ponham-se em linha, metam-lhe os ombros. empurrar ou deixar crescer guelras! Agora... um... dois... O caixote no mexeu. O velhote diz... arquejou o terceiro-oficial. Cante-nos qualquer coisa grunhiu um dos homens e o Sr. Wharton acedeu ao pedido. Quase se podia dizer que a boca falava com a profunda voz do corao. No era muito correcto chamar quilo cantar e o palavreado era pobre e incompleto; contudo no que tocava ao tema, objectivo e, sim, a paixo do amor no correspondido, o canto do Sr. Wharton podia pedir meas aos romances dos trovadores. O Cooomandaaante Tiiimbs entoou ele num rugido desafinado um filho da ia! A licena dos homens em Staten Island tinha sido cancelada. O Cooomandaaante Tiiimbs ecoaram eles entusiasticamente um filho da ia! O caixote mexeu-se. O Cooomandaaante Tiiimbs,ia! O caixote avanou vinte centmetros. ...filho da ia! Mais vinte centmetros. L em cima, na ponte, o tema da cano estava a falar com trs graduados da marinha que no tinham ar de gostar dele. Eram os responsveis pelo canho de 4.7 que estava na popa e pareciam estar a sofrer do esprito de Nelson ou de Collingwood ou de outro qualquer. Apesar disso, tudo o que fizeram quanto ao assunto foi dizer que no pensavam que... Vocs no tm nada que pensar! disse o Comandante Timbs. O senhor no o nosso chefe, Comandante disse o mais velho dos graduados. Esto sob as minhas ordens! Se eu mandar abandonar o navio, abandonaremos o navio! Aqui foi a vez do graduado mais novo: Sim, meu Comandante disse ele. Se assim o diz. O Comandante Timbs engoliu um grande e visvel n da garganta. So essas as ordens disse. Mal amanhea. Temos um rombo enorme. O mar est encrespado, meu Comandante disse o mais velho dos graduados. Contactei por rdio um cargueiro sueco; a essa hora estar aqui, de preveno. Quem raio so vocs a porem em causa as minhas ordens?

Ningum, meu Comandante. Rua, daqui para fora! Sim, meu Comandante disse o terceiro; e l foram eles. O que disseram enquanto desciam coisa com que ningum tem nada a ver: meras especulaes abjectas sobre quantias pagas pelo governo a pobres armadores despojados dos seus bens; pragas e palavres do mais ordinrio e vulgar. Podemos, no entanto, citar alguns trechos como, por exemplo, ter o mais velho dito que j estava a amanhecer; o segundo dizer que por acaso at parecia que a barcaa estava com vontade de dar o grande mergulho; e o mais novo, depois de olhar r, dizer que de qualquer modo o navio se afundaria de bandeira iada e canhes vazios. Ento mais vale ir l dispar-lo disse ele. Mais vale ires l abaixo e dar uma mozinha ao Wharton disse severamente o mais velho; e assim fizeram. Pouco tempo depois destes acontecimentos, Miss Churt, a quem o bife de lombo tinha enchido o sono de sonhos de ratos gigantescos que a perseguiam por becos infindveis, acordou sobressaltada e com um mau sabor na boca. Bocejou e decidiu, mais uma vez, que um pouco de ar fresco lhe havia de fazer bem. Saltando abaixo do seu poiso, descobriu que o cho no estava exactamente onde o tinha deixado; tinha agora um declive acentuado e, antes que Miss Churt se habituasse nova situao, as suas patas dianteiras cederam e ela rebolou para um canto. Conseguindo pr-se mais ou menos em p, dirigiu-se para a porta e da foi rebolando em busca de companhia. J estava dia, de modo que bocejou e esticou-se da maneira como os gatos fazem para agradecer a Deus cada noite passada ao abrigo; mas havia qualquer coisa que estava errada. Onde estava toda a gente, para comear? E porque no estava o convs a vibrar como era hbito? E, normalmente, as gruas da carga funcionavam com um barulho atroador que atirava as orelhas para trs; agora o silncio era total e olhem! quando se passava para l da casa dos mapas via-se que a antepara dos botes tinha desaparecido e o vento soprava sem que nada o impedisse. Havia apenas por ali alguns cabos espalhados... Miss Churt avanou mais alguns passos e sentou-se como a clave de sol numa pauta de msica. Ao longe, por entre a nvoa, conseguiu descortinar a silhueta de um navio parado; e quanto aos botes do Malvern estes estavam na gua e a mover-se, de facto, a mover-se e a afastar-se dela. E num deles, junto com trs graduados da marinha e mais alguns cavalheiros robustos que discordavam do Comandante Timbs e estavam naquele momento a exprimir tal ideia, o Sr. Wharton estava, tambm naquele mesmo momento, a lembrar-se de que tinha deixado Miss Chort a bordo. Pelos pregos de No! exclamou ele; e o Cnego Hobson que ainda dormia, sorriu nos seus sonhos longnquos. Ora... Os remos ergueram-se. Esqueceu alguma coisa, Sr. Wharton? perguntou o graduado mais velho. Se me esqueci de alguma coisa? disse o Sr.Wharton. Deixei l a minha gata. Das entranhas do bote veio uma gargalhada mal abafada. Riam-se de mim que eu dou-vos uma cabeada! disse o primeiro-oficial e o silncio voltou a reinar sobre o oceano. Quer voltar atrs, Sr.? Eu... acho que sim disse o Sr. Wharton. Se estamos a salvar a porcaria das nossas peles sem necessidade nenhuma, no vejo por que razo h-de um pobre animalzinho irracional sofrer. A no ser que alguns destes cavalheiros ponham alguma objeco? Ora, ento para estibordo, directos ao resbordo da r. Fora, seu bando de alfaiates!

O bote do Comandante parou de remar disse o remador da proa. Deixem l disse o Sr. Wharton. Tambm nos podamos amotinar daqui a dez minutos. E aquele sueco bem pode esperar pelo parente rico... Vamos, fora nesses remos! Um apelo distante ecoou sobre as guas que, alis, estavam espantosamente calmas. Vou s ali e venho j respondeu o Sr. Wharton, sem saber que a cerca de uma milha, do outro lado do Malvern, o mar escondido pelo navio estava a ser rasgado pelo periscpio de um submarino. O Comandante deste, por sinal um tipo bastante simptico chamado Koenig, com residncia habitual em Munique, na Glocknergasse n 8, tinha ouvido os frenticos apelos transmitidos via rdio pelo Comandante Timbs e perguntara a si mesmo se estes no estariam a prognosticar algo de interessante no seu ramo de negcios. Ele bem sabia que estavam em fase de escassez temporria de contratorpedeiros naquela rea mas, afinal de contas, as coisas estavam a correr-lhe melhor do que o previsto. Atravs do periscpio tinha visto a tripulao abandonar o navio e, verificando que no fim de contas o Malvern no se apressava a precipitar-se nos abismos, comentara para os seus homens, com deleites de alma, quo parca era a valentia martima dos marinheiros britnicos. Que no se tratava de um navio camuflado era para ele uma certeza, que lhe advinha tanto da presena do navio sueco como do modo perigoso como o prprio Malvem adernava. Assim, as suas intenes eram combinar negcios e prazer, dando oportunidade tripulao em fuga de ver como ele usava o navio abandonado para exerccios de tiro ao alvo. Decidiu utilizar torpedos de percusso e comear por mandar pelos ares a chamin. Quando o submarino emergiu, a tripulao saiu a correr para a proa e comeou a preparar o canho. Nesse preciso momento, o olhar saudoso de Miss Churt iluminou-se todo ao vislumbrar o Sr. Wharton, mais peludo do que nunca. Miss Churt gostava de gente peluda, tinham muito mais cantos para um gato se enroscar. O seu dono, ao desembarcar do bote no parecia to bem disposto como de costume; parecia estar preocupado com qualquer coisa; no sorria. Mas Mss Churt conhecia um bom remdio para isso. Quando algum tinha um ar triste ela fugia a correr e o Sr. Wharton corria atrs dela e apanhava-a e chamava-lhe diabinho e corrigia-se e chamava-lhe diabrete e dava-lhe um beijo na ponta do nariz. Assim Miss Churt fugiu a correr, derrapando um pouco por causa da inclinao do convs, de orelhas em riste escuta dos passos amados em sua perseguio. E l vinham eles. Mas vinha tambm outra coisa... Uma coisa terrvel. Um barulho que se prolongava, que crescia, que saa do meio de um pulsar distante, que lhe perfurava os ouvidos; to aterrador e depois um imenso claro, que levantava o mundo inteiro e o partia em pedaos, que lhe abalava de tal modo o estmago que o bife deixava de ter qualquer importncia... O Sr. Wharton, saindo de trs da casa do rdio, deteve-se por instantes. Viu um grande buraco irregular no soalho do convs que teve de contornar para seguir o seu caminho. Ao faz-lo, viu o submarino do Comandante Koenig, parado a a uns trs quartos de milha de distncia. Mas aquilo de que estava procura era uma bolinha de plo sujo e encontrou-a, totalmente inerte, mesmo adiante da escada do tombadilho. O mais curioso era que o Comandante Koenig tambm adorava gatos e tinha trs em casa, na Glocknergasse. Mas guerra guerra. O Sr. Wharton tomou na sua grande mo aquilo que a guerra deixara de Miss Churt, pousou sobre ela a outra mo como se fora a tampa de um caixozinho e insultou o Comandante Koenig assim como os seus superiores e inferiores; levantou, depois, ambos os braos e, segurando ainda na mo direita o corpinho inerte, ergueu a voz num grito capaz de cobrir

distncias. E, de facto, no Presbitrio de Sta. Maria, o Cnego Hobson acordou sobressaltado; olhou para o relgio que estava na mesinha de cabeceira e viu que eram 5.25; voltou-se na cama, mas fosse qual fosse a razo, no sentia vontade de voltar a adormecer. Sacana de aougueiro de merda! gritava agora o Sr. Wharton; mas, de repente a voz quebrou-se-lhe. A minha pequenina... Uma voz falou mesmo por detrs dele. Eram os graduados que no tinham achado muito correcto que o seu superior fosse a bordo sem escolta e, portanto, tinham tambm escalado os destroos e ali estavam. A voz era a do graduado mais velho, como convinha. Que acha de lhe mandarmos tambm um, Sr. Wharton? inquiriu. O Sr. Wharton tinha-se esquecido do canho de 4.7 da r. Agora que lho lembravam emitiu um verdadeiro rugido de assentimento. Enfiou o corpo de Miss Churt no bolso lateral do casaco e foi, escada abaixo, seguido pelos trs graduados. Tinham de descer ainda outra escada, atravessar o convs em direco popa e depois subir popa. E foi ento que o Comandante Koenig os viu. Numa avalanche de sons em au e numa revoada de terminaes em ch, ordenou aos seus homens que alterassem a pontaria e mandassem a Wharton uma boa boiada; de forma que a questo se ps muito claramente, em termos grosseiros, em saber quem mandava primeiro uma boiada a quem. O submarino, que estava j preparado, foi o primeiro a disparar; mas o alvo, assim alterado pressa, estava muito alto e a bala s no atingiu o navio sueco por uma escassa meia milha (Relatrio de 27 de maro de 1940, pargrafo 2). Entretanto, o graduado mais velho tinha estado a proceder a variadas manipulaes de variadas coisas; e agora, com um aceno de cabea, declarava-se satisfeito. Olhou desnecessariamente para o Sr. Wharton, abriu a boca e estava a pontos de perguntar se podia fazer fogo quando o oficial (que, evidentemente, no era um oficial de carreira) o empurrou para o lado, agarrou na alavanca de tiro e disparou. Foi uma questo de sorte, de pura sorte para todos os interessados; mas a verdade que aquela bala inconvencional, quase ilegtima, voou, como se atravs de um tubo, direita ao cano do canho do submarino, dobrou-o, ricocheteou, sem ferir nem o Comandante Koenig nem nenhum dos seus homens, e foi esmagar o bordo da torre de comando, onde explodiu com o abandono tpico dos explosivos de alta potncia. Ningum ficou ferido excepto o Marinheiro Albrecht Otto de Bremen (surdez e escoriaes), mas a torre de comando ficou impossibilitada de se fechar. O que significava impossibilidade de submergir... E na linha do horizonte, para sul, aparecera e estava a aproximar-se uma nuvem de fumo que prenunciava contratorpedeiros. Assim comentaram entre si os trs graduados. Entretanto o Sr. Wharton, na outra amurada, estava a exprimir a sua opinio de frentico desprezo contra o Comandante Timbs e contra todos os homens que se metessem em botes, abandonando gatos em navios perfeitamente slidos e cheios de preciosas e necessrias munies. Esta manifestao, para alm de chamuscar a pintura (a acreditar no terceiro-oficial) dos bancos do salva-vidas n 1, deixou o Sr. Wharton completamente exausto. E mais pacificado. Meteu a mo no bolso e extraiu dele os restos mortais de Miss Churt. Os olhos azuis estavam fechados, a cabea macia caida sobre o pescoo e os bigodes estavam chamuscados. Quer que voltemos para a? ouviu-se um coro de vozes por sobre o mar. Vo mas para o inferno! rugiu o Sr. Wharton de forma que todos se puseram a remar em direco ao navio. Mas uma voz calculada para cobrir um quarto de milha algo de tremendo quando ouvida de perto.

Cada uma das clulas de Miss Churt comeou a vibrar. O estmago recomeou a incomod-la. Nas suas narinas havia um cheiro familiar que se insinuava para alm do cheiro a bigodes queimados, tabaco, alcatro e Unguento... Abriu os olhos e disse: Miau! Guerra ou no guerra, a verdade que a igreja paroquial de Sta. Maria estava convenientemente decorada para aquele casamento; embora, tendo em conta as circunstncias, o Cnego Hobson tivesse condescendido em atenuar as regras do vesturio no que dizia respeito ao noivo. A menina Woollard, porm, estava vestida a preceito at ao pormenor da septuagsima nona flor de laranjeira. Mostrava, contudo uma certa propenso a mordiscar nervosamente o vu. Estava mais nervosa do que esto habitualmente as noivas; mais nervosa ainda do que podia levar a crer o facto de o noivo ter trs padrinhos: o graduado mais velho, o mais novo e o do meio, todos ostentando medalhas que eram apenas inferiores de um grau quela que fora concedida ao Sr. Wharton. A causa deste mal-estar tornou-se patente quando o Cnego Hobson, ao abrir o seu livro de oraes, comeou por reparar, depois ver e finalmente por arregalar os olhos para o bolso direito do casaco do noivo. Talvez se devesse aqui mencionar que, para alm de uma cara de granito e de um corao extraordinariamente mole, o reverendo senhor era dotado de olhos que pareciam ter sido talhados em diamante que, depois, fora modo fino. Fechou o livro de oraes e falou numa voz baixa e intrigada. Henry disse ele, enquanto a congregao esticava os pescoos no pode ser um gato isso que tens no bolso do casaco. No pode ser um gato!? Isto era uma afirmao um tanto exagerada sobre Miss Churt, que fazia naquele dia seis semanas e que s tinha posto fora do bolso o focinho barbeado pela bala para apanhar um pouco de ar fresco. Mas a ideia geral era inquestionvel. disse o Sr. Wharton. sim. Ele tinha de a trazer Tinha! Eu bem lhe disse... gaguejou a noiva; mas o Cnego Hobson no lhe prestou qualquer ateno apesar de ela comear a soluar. Ao encontrar os olhos azulados de Miss Churt, porm, as suas pupilas adamantinas sofreram um processo esquisito. Primeiro comearam por pestanejar, cobrindo o olhar condenatrio; depois como que se liquefizeram de tal forma que as suas qualidades de penetrao se tornaram completamente nulas. Disse: Deverei deduzir que... isso... alguma espcie de mascote? Ligada, talvez, aos recentes... Que lhe aconteceu aos bigodes? Digo-lhe depois, na sacristia disse o Sr. Wharton. E cruzando o olhar do Cnego, arrependeu-se dos preconceitos da sua juventude. O Cnego Hobson acenou com a cabea; abriu o livro que tinha fechado sobre um dedo preventivo e tossicou para aclarar a garganta. Queridos noivos proclamou ele estamos aqui reunidos... Miss Churt no conseguiu identificar todos os cheiros (na sua maioria aucenas) nem todos os sons (principalmente o Cnego Hobson) que a rodeavam. Eram interessantes e ela tinha uma vaga ideia que ainda um dia se viria a interessar por qualquer coisa parecida com aquilo, pelo menos quanto ao seu objectivo geral. Mas para j, ainda no. Ainda faltava muito tempo. E entretanto j tinha arejado o suficiente. Retirou a cabea do ar fresco de Sta. Maria, recolheu-a ao twed quentinho do bolso do Sr. Wharton e, enroscando-se, preparou-se para dormir. Trad. L. F.

A GATA GORDA Q. PatrickOs fuzileiros encontraram-na quando, por fim, se apoderaram da velha casa da misso em Fufa. Aps dois dias de tiroteio incessante no estavam espera de encontrar ali nenhum ser vivo, e muito menos uma gata gorda. E era de facto uma gata muito gorda, ruiva como um escocs, com enormes olhos de gata e uma cara redonda e amvel. Ali estava, sentada no tapete, ou melhor, no que restava do tapete, em frente quilo que havia sido o alpendre da misso, lambendo as patas to placidamente como se a selva devastada pelas bombas fosse um relvado de vero em Nova Jersey. Um dos homens, lembrando-se da cartilha da sua infncia, citou: A gorda gata sentada na manta. Os outros riram-se. No que o comentrio tivesse de facto alguma graa, mas o riso ajudou a aliviar a tenso e exprimiu o alivio que sentiam por terem finalmente atingido o objectivo aps dois dias de duro combate. A gata gorda, ainda instalada no tapete, sorriu para eles como para mostrar que no se importava nada que se rissem custa dela. Depois viu o Cabo RandyJones e, por qualquer razo s dela conhecida, correu para ele como se se tratasse do dono havia muito perdido. Com um ronronar de frigorfico roou-se-lhe pelas pernas cobertas de lama. Todos voltaram a rir quando Randy pegou na gata e encostou a cara feia ao plo macio. Era cmico ver um ser vivo mostrar preferncia pelo melanclico e solitrio Randy. Um sargento estalou os dedos: Bichaninha, vem c. Vamos fazer de ti a mascote da Companhia B. Mas a gata, empoleirada no ombro de Randy como uma rainha no trono, limitou-se a sorrir l do alto com um ar majestoso como se dissesse: Vocs podem ser os meus sbditos, se quiserem. Mas este o meu homem, o meu prncipe consorte. E nunca, nem por um segundo, renegou a sua devoo. Vivia com Randy, dormia com ele, s aceitava comida dada por ele. Quase todos os homens da Companhia B tentaram seduzi-la com carcias e bocados das raes de combate, mas a todas as propostas ela respondia com um bocejo de desprezo. Para Randy este novo amor era puro xtase. Velava por ela com a ternura possessiva de uma me. Escovava-lhe o plo at ficar brilhante; quase se matava fome para a manter gordinha. E havia nele, ao mesmo tempo, uma mistura de encantamento e espanto. Porque, sendo o mais desengraado e desajeitado dos dez filhos de uma famlia de mineiros da Virgnia do Oeste, nunca antes tinha despertado qualquer afecto em homem ou mulher. Ningum tivera importncia para ele at aparecer a gata gorda. A felicidade de Randy foi, porm, sol de pouca dura. Passados poucos dias, a Companhia B foi escolhida para levar a cabo uma manobra destinada a surpreender o inimigo e, se possvel, a apoderar-se do seu quartel-general que se sabia ficar a uns trinta quilmetros dali, no meio daquela zona de selva densa e infestada de atiradores inimigos. O avano seria rduo. Os homens levariam as suas prprias raes de comida e de gua e dormiriam em trincheiras individuais. No teriam qualquer apoio da base. O comandante foi categrico quanto gata gorda: declarou ao desolado Randy que a presena de um gato poria em grave risco a segurana de toda a companhia. Se vissem que o animal o seguia abat-lo-iam imediatamente. Momentos antes da hora marcada para a partida, Randy levou a gata gorda para a messe da Companhia H onde foi entusiasticamente recebida pelo no menos gordo cozinheiro. Randy no teve coragem para olhar para trs, pois sabia que os olhos ambarinos da gata estavam cheios de uma expresso de censura. Mas durante todo aquele primeiro dia de perigosa caminhada pela selva a ideia do olhar da gata atormentou-o e Randy sentia o corao desfeito pela separao. Ao deixar a gata havia

abandonado me, mulher e filha. A noite, como um imenso pra-quedas negro, abatera-se j h horas sobre a selva quando Randy foi arrancado ao seu sono de cansao. Uma coisa macia e quente roava-se-lhe pela cara e a trincheira onde dormia ressoava com uma sinfonia de ronrons. Randy estendeu uma mo incrdula; mas no, no era um sonho. Real e slida, a gata estava enroscada como uma bola satisfeita junto do seu ombro. O seu primeiro impulso foi de alegria, mas quando se lembrou das palavras do comandante, ficou gelado. A gata, desdenhando os mimos da cozinha da Companhia H, tinha-o seguido atravs de quilmetros de selva traioeira e o seu destino era a morte quando a luz do dia revelasse a sua presena. Randy sentia-se numa agonia de dvidas. Lev-la de volta base seria desero. Bater-lhe e enxot-la era qualquer coisa que a sua natureza simples no podia sequer admitir. A gata esfregou o focinho na cara de Randy com um miado plangente. No havia dvidas que estava cheia de fome depois de to longa caminhada. De sbito, Randy percebeu o que devia fazer. Se conseguisse resistir a dar-lhe de comer, a fome obrig-la-ia certamente a regressar ao santurio do cozinheiro. A gata voltou a miar. Ele mandou-a calar com um chiu e deu-lhe uma palmadita. No tenho nada para te dar, querida. Vai-te embora. Para casa. Pira-te! Com um misto de prazer e desapontamento, Randy viu a gata saltar silenciosamente para fora da trincheira. De manh no havia sinais dela. Enquanto a Companhia B ia avanando furtivamente, palmo a palmo, atravs da espessa vegetao, Randy pensou que a visita nocturna da gata devia ter sido um sonho. Mas, na terceira noite, a visita repetiu-se. A gata voltou a esfregar-se de encontro sua cara e a mordiscar-lhe a orelha. Quando miou, o som continuava a ser abafado e cauteloso, mas tinha uma nota de splica que penetrou em Randy como uma baioneta japonesa. Na primeira visita Randy no tinha visto a gata, mas desta vez movido por um qualquer impulso, agarrou na lanterna. Voltando-a cuidadosamente para baixo acendeu a luz. Aquilo que viu constituiu uma provao terrvel. A gata j no era gorda. O corpo estava escanzelado, o plo rijo e enlameado, as patas feridas e ensanguentadas. Mas o pior eram os olhos que o fitavam pestanejando. No havia neles qualquer censura, apenas uma expresso de infinita confiana e splica. Esquecendo tudo o resto para alm daqueles olhos, Randy tirou do saco uma das poucas latas de rao que lhe restavam. Ao v-la, a gata lambeu fracamente os beios. Randy comeou a abrir a lata. E ento, de repente, apercebeu-se de que ia assinar a sentena de morte da gata. E, porque tinha de haver um escape para a emoo acumulada, Randy sentiu uma fria irracional contra aquele bicho cujo sofrimento ultrapassava tudo o que Randy conseguia suportar. Pira-te! rosnou entre dentes. Mas a gata no se mexeu. Bateu-lhe, ento, com a pesada lanterna. Durante alguns segundos, sob a fora da pancada, a gata ficou imvel. Depois, com um pequeno gemido, fugiu. Na noite seguinte no voltou e Randy no dormiu. No quinto dia entraram em territrio verdadeiramente perigoso. Randy e outro fuzileiro, Joe, foram destacados como batedores procura do quartel-general do comando japons. De repente, em plena selva, deram com ele. Um silncio profundo pairava sobre a clareira e sobre os dois barraces apressadamente construdos. Espreitando por entre a folhagem espessa viram sinais de uma evacuao recente: papis espalhados pela erva, um monte de lixo ainda fresco, uma camisa do exrcito japons que ondulava ao vento suspensa de uma rvore. Em frente de um dos barraces, sob um toldo, havia uma mesa improvisada onde se viam os restos de uma refeio. Devem ter-se apercebido da nossa presena e piraram-se disse Joe. Randy avanou e, de sbito, estacou ao ver qualquer coisa mexer entre as ervas altas junto da porta do primeiro barraco. E viu ento a gata, que em tempos fora gorda, sair para a luz do

sol a coxear. Uma sensao de perigo iminente lutava dentro de Randy contra o orgulho por a gata no o ter abandonado. Tenso e expectante, ficou a ver a gata desaparecer dentro do barraco. Passado pouco tempo o animal voltou a sair. Nada de japoneses! disse Joe. Aquele gato tinha-os posto c fora enquanto o diabo esfrega um olho. E avanou resolutamente para a clareira. Ei, Randy, est aqui um frango inteiro em cima da mesa! Vai-nos saber lindamente depois das raes K. Calou-se porque a gata tambm tinha visto o frango e, desajeitadamente, com uma fraqueza que metia d, tinha saltado para cima da mesa. Com um berro de fria, Joe abaixou-se para apanhar uma pedra que atirou gata. Randy sentiu-se a arder de indignao. Tinha deixado a gata fome, tinha-a enxotado e, apesar disso, o animalzinho tinha-o seguido com uma devoo cega. O frango devia, indubitavelmente, ser a sua recompensa. No esprito de Randy, lento e simples, a coisa mais importante do mundo era a sua amada ter um justo quinho no festim. A gata, ao ver a pedra, saltou da mesa e f-lo mesmo a tempo, pois a pedra acertou em cheio no frango, atirando-o para fora do prato. Randy correu para a clareira. Nesse mesmo instante uma exploso ensurdecedora atirou-o ao cho. Alguns segundos depois, quando se soergueu, no havia mesa nem barraco; nada, a no ser uns restos de madeira a arder. Estonteado, ouviu a voz de Joe: Havia uma armadilha debaixo do frango. Ena, se o gato no tivesse saltado para o frango eu no tinha atirado a pedra. Tnhamos sido ns a pegar no frango e agora estvamos no cu. A voz de Joe transformou-se num murmrio de admirao reverente. Aquele gato... Acho que foi pelos ares... Mas salvou-nos a vida. Randy no conseguia falar. Tinha um n na garganta. Estava ali, deitado, e sentia-se triste como nunca se sentira na vida. Depois, atrs de si, ouviu um ronronar satisfeito. Deu meia volta. Curiosamente a exploso atirara para fora do barraco um tapete de juta que acabara por aterrar na erva mesmo por trs de Randy. E, serenamente instalada no tapete, estava a gata a sorrir-lhe. Trad. L. F.

A QUEDA DO MORNING GLORY ADOLPHUS N. Margaret CampbellO Morning Glory Adolphus o nosso gato mais velho e mais calmo. Tem a sua prpria coutada de caa numa ravina arborizada nas traseiras da nossa casa e escorraa qualquer gato ou co que a invada. Na sua juventude granjeou a reputao invejvel de grande caador e tinha um mtodo especial de preservar a considerao que lhe era devida pelos seus feitos. Sempre que caa um coelho, um esquilo, um rato de gua ou uma cobra, anda de um lado para o outro at encontrar a dona, e coloca a presa, orgulhosamente, a seus ps. Esta determinao em ser recompensado pela sua bravura e proeza, torna-se por vezes assaz embaraosa, especialmente quando arrasta uma cobra de um metro e meio at a sala de msica e a deixa em cima do tapete para grande horror e consternao das visitas. Mas, acontea o que acontecer, o Adolphus nunca se priva da publicidade que o seu engenho lhe pode granjear. Se fosse homem, far-se-ia sempre acompanhar, nas suas caadas, por um reprter e, no regresso, daria um almoo e convidaria os editores de todos os jornais desportivos. De qualquer maneira, mesmo no tendo qualquer curso por correspondncia em publicidade, o Adolphus sai-se muito bem. Os actores de expresso corporal fariam bem em procurar o Adolphus para efeitos de estudo da dignidade aristocrtica pontuada, por vezes, com uma arrogncia desdenhosa. Pavoneia-se pela rua, sem pressas e sem se preocupar minimamente com a sua segurana pessoal, por entre carros que buzinam e ces que atacam. Quando aparece um co estranho e confunde o Adolphus com um gato vulgar que pode ser perseguido s por prazer, o Adolphus costuma abrandar a marcha e estende-se frente do inimigo potencial, assumindo a pose e a expresso da esfinge. a imagem, por excelncia, da serenidade e do perfeito controlo muscular. Apenas brilham os seus olhos de mbar, sem pestanejar, sempre fixos no focinho enraivecido do inimigo que o ataca de presas salientes e de plo eriado. Quando a agresso demasiado feroz mesmo para o gosto de um co e acompanhada de latidos e dentadas histricas, o Adolphus conhecido por bocejar no focinho do atacante, propositada e muito delicadamente, como um cavalheiro bem-educado faria perante a exibio exagerada de uma qualquer emoo. Normalmente o co estaca como por milagre a uns centmetros daqueles calmos olhos amarelos e faz um semicrculo enquadrado por aqueles dois focos, lanando uma espcie de improprios que vo gradualmente esmorecendo at ficarem reduzidos a uma lamria ridcula no momento em que inicia uma retirada indigna, enquanto o Adolphus pestaneja solenemente e passa, sempre fitando o seu cobarde inimigo, em direco a um lugar misterioso, jamais profanado por ces barulhentos. Alguns ces houve que no pararam perante a ordem hipntica daqueles olhos amarelos. Nessas alturas viu-se um relmpago de plos pelo ar e o Adolphus aterrou mesmo em cima do cachao da vtima, com as enormes garras a rasgarem com a preciso de um profissional as tenras orelhas e a testa do aterrorizado co. Talvez que a fama desses encontros se tenha espalhado por entre a populao canina do nosso bairro, pois que nunca a reputao de lutador de um co foi abalada pelo facto de se desviar das zonas frequentadas pelo Adolphus. Durante anos, o estatuto de chefe que o Adolphus detinha entre os gatos da casa, nunca foi posto em causa. E foi ento que apareceu o Silver Paws, um jovem e bonito vadio com um belo plo acetinado e reflexos prateados e azulados. No havia qualquer dvida, o Silver Paws sabia lidar com as senhoras. Enquanto o Adolphus ainda o via como um gatito travesso cujo sentido de humor prevalecia sobre o sentido de dignidade, ele foi astuciosamente conquistando todos os coraes e, sempre que aparecia, tornava-se imediatamente o centro de todas as atenes. O Adolphus sentia-se incomodado ao ver o modo como aquela coisita presunosa arqueava o lombo sempre que uma mo humana se aproximava para o acariciar. Se o Adolphus tivesse a mente retorcida de um trocadilhista, teria percebido, ao jeito cnico de quem perde as preferncias pblicas em favor de um rival indigno, que a sua glria estava a chegar ao fim. Mas ele nunca foi de se render sem luta. Partiu para a caada nocturna

com o corao frio de um assassino e decidido a fazer com que a luz dos holofotes voltasse a incidir sobre si. Todos os dias colocava aos ps da dona coelhos cada vez maiores e mais selvagens, ratos mais vorazes e cobras cada vez mais compridas. Tudo em vo. Fez mesmo o papel de herico salvador quando o seu odiado rival ficou preso numa rvore por causa do co do merceeiro. Trepou calmamente rvore debaixo de cujo galho o co corria de um lado para o outro e onde se encontrava empoleirado o Silver Paws, e o co lembrou-se de repente que tinha de voltar para a carrinha do merceeiro e que nem sequer era l muito interessante ficar ali a ladrar a um gatinho estpido! Quando o Silver Paws desceu assustado da rvore, o Adolphus dirigiu-selhe com o ar farisaico de um cavalheiro benevolente que acaba de salvar uma alma perdida, no porque a alma o merecesse, mas porque ele era assim por natureza. Esta atitude magnnima conferiu ao Adolphus uma vantagem momentnea sobre o seu rival, mas as volveis atenes da casa no tardaram a concentrar-se de novo no jovem sedutor. Ento o Adolphus habituou-se a ficar sentado em casa, olhando dignamente para o stio onde o Silver Paws comia os melhores nacos de carne, rodeado de todo o tipo de meiguices, e lavando, meditativo, os bigodes com a pata. Foi por essa altura que o Silver Paws, para grande consternao da famlia, desapareceu. Foi feita uma busca nas redondezas, mas ele havia desaparecido sem deixar rasto, como se uma bruxa o tivesse levado na sua vassoura. Muito tristes, juntmos os brinquedos que ele deixara espalhados pela casa: um pedao de pele atado a uma corda, uma bola colorida, uns feijes secos que marraqueavam na vagem quando uma pata de veludo lhes tocava e, com estas recordaes, fizemos um montinho que colocmos na cadeira de baloio sua favorita. H-de quer-las se algum dia voltar dissemos ns. Operou-se uma mudana notvel no Morning Glory Adolphus. H muito que o considervamos como um caador emrito e um lutador de primeira, mas achvamolo um tudo ou nada insensvel, um bocado indiferente e frio, como, alis, era natural para quem havia granjeado uma tal fama. Qual no foi o nosso espanto ao ver que ele se tornara, do dia para a noite, muito caloroso nas suas manifestaes de afecto e desejoso de nos fazer esquecer o outro que havamos perdido. Era realmente comovedor ver como ele nos seguia por toda a casa, se sentava aos nossos ps a ronronar com um abandono arrebatado sempre que parvamos para descansar um pouco. Esquecidos estavam os prazeres da caa, o agradvel passatempo de meter na ordem ces mal-educados. Durante trs dias, dedicou-se totalmente actividade da seduo. Se o tentassemos ignorar, ele rojava-se aos nossos ps e ali ficava, de patas no ar, nossa merc; como a dizer que se entregava a ns, que, se no o amssemos, at o podamos matar. Andava pela casa com o ar orgulhosamente possessivo do chefe altivo que regressa aos seus domnios depois de uma ausncia forada e enrolava-se agradecido nas almofadas onde o seu antigo rival costumava fazer a sesta. Uma vez, encontrmo-lo esticado desdenhosamente em cima dos brinquedos que se amontoavam na cadeira de baloio. Devia ser uma cama um bocado incmoda, mas o Adolphus tinha um ar contente e confortvel. A suspeita assaltou imediatamente a sua dona. Adolphus! disse ela zangada. Acho que tu sabes o que se passou com o nosso bonito Silver Paws! O acusado ergueu-se em toda a sua estatura, olhou-a com a expresso gravemente inocente de um dicono ultrajado e depois, virando-lhe deliberadamente as costas, voltou a cair no sono dos justos. Mas as suspeitas da famlia no se aplacaram. O Adolphus est a esforar-se demais por ser bonzinho diziam eles. No nada natural. Deve ter alguma coisa a pesar-lhe na conscincia! Pois essa era uma das maneiras de Adolphus erguer um escudo protector, de esconder as maldades. J o haviam constatado no passado. Isso foi uma grande humilhao para um esprito orgulhoso como era o Adolphus e ele demonstrou o seu ressentimento saindo de casa, batendo com a porta como qualquer macho ofendido.

A famlia seguiu-o de longe. Ele foi direito ravina onde costumava caar e ficou na borda a olhar intensamente l para baixo, com as orelhas puxadas para trs, todo ele irradiando um regozijo maldoso, desde os bigodes nervosos at ponta da cauda agitada. Era dificil acreditar que se tratava da mesma criatura simptica que h umas horas atrs se insinuava toda para ns. Quando nos aproximmos, ouvimos um choro fraco, lamentoso e triste e, l no fundo, no meio do arvoredo, descobrimos o nosso Silver Paws, demasiado fraco e esfaimado para se aguentar de p e bastante alquebrado pelos maus tratos infligidos pelo seu carcereiro. Quando o Adolphus nos viu olhar para a ravina, retirou-se aflito, pois sabia que a brincadeira acabara. Com um desprezo desdenhoso, ficou a ver-nos recolher o rival banido, a dar-lhe leite quente, a acarici-lo e a confort-lo. Com que terrveis artimanhas tinha o Adolphus mantido o seu prisioneiro no fundo da ravina, mesmo ali ao alcance dos nossos chamamentos, durante todas aquelas horas em que nos seduzira a seu belo prazer; e que encantamentos lhe lanara para o gatito esfaimado no ter ousado responder aos nossos apelos? Entre regozijos e ralhetes vimos que o co do merceeiro se aproximava, vindo da esquina da casa. Tornara-se mais atrevido durante aqueles dias de fraqueza, quando o Adolphus andava atrs das senhoras. Mas bastou olhar uma vez para os olhos cor de mbar do Adolphus para desaparecer logo com um latido, pois percebeu que o lutador estava novamente em forma.

Trad. M. J. D.

DE COMO UMA GATA FEZ DE ROBINSON CRUSO Charles G. D. RobertsA ilha era um mero banco de areia ao largo da costa plana e baixa. Nem uma rvore sequer quebrava a sua planura deserta, nem mesmo um arbusto. Mas os longos e speros caules das ervas dos pntanos cobriam-na por completo acima da linha da mar; e um pequeno ribeiro de gua doce que corria de uma nascente no centro da ilha traava uma faixa de verdura suave por entre o cinza amarelado, sombrio e seco da erva. Pouca gente escolheria a ilha como local para viver e, contudo, na orla, no outro extremo, encontrava-se uma casa espaosa, de um andar e com um amplo terrao, com um barraco baixo nas traseiras. A virtude daquele pedao isolado de areia, era a sua frescura. Quando no continente mesmo ali ao lado estavam uns dias, e tambm umas noites, sufocantes, com um calor irrespirvel, ali na ilha corria sempre uma aragem fresca. Assim, um sensato citadino apropriara-se daquele pedao arrancado ao mar e construra a a sua casa de vero, onde o ar puro poderia voltar a colorir as faces plidas dos filhos. A famlia vinha para a ilha em fins de junho. Na primeira semana de setembro, iam-se embora, deixando todas as portas e janelas da casa e do barraco bem fechadas, pregadas ou trancadas contra as tempestades do inverno. Um barco espaoso, remado por dois pescadores, levava-os por aquela meia milha de mars vivas que os separava do continente. Os mais velhos da famlia no lamentavam aquele regresso ao mundo dos homens, depois de dois meses de vento, sol, ondas e ervas ondulantes. Mas as crianas regressavam com as faces riscadas pelas lgrimas. Haviam deixado para trs o seu animal de estimao, a companheira de sempre das suas migraes: uma bela gata, com cara de meia-lua, listrada como um tigre. O bicho desaparecera misteriosamente dois dias antes, evaporando-se da face da ilha sem deixar qualquer rasto. A nica explicao lgica era ter sido levado por uma guia qualquer que por ali passara. Entretanto a gata estava bem presa, do outro lado da ilha, debaixo de um barril partido e de quilos e quilos de areia amontoada. O velho barril, com as aduelas rachadas num dos lados, ficara ali, semi-enterrado, na crista de uma duna que se formara com os ventos dominantes. A abrigada, a gata encontrara um buraco protegido, ensolarado onde gostava de se enroscar durante horas a apanhar sol ou a dormitar. Entretanto a areia foi-se acumulando cada vez mais por detrs da barreira instvel. At que ficou demasiado alta e, de repente, com uma rajada mais forte, o barril rebolou por ali abaixo atrs de uma massa de areia e enterrou a gata que ento dormia no escuro. Mas, ao mesmo tempo, a parte intacta do barril formou uma espcie de cpula, cobrindo a prisioneira evitando que esta ficasse esmagada ou abafada. Quando as crianas, na sua busca desesperada por toda a ilha, chegaram quele montculo de areia fina e branca, nem sequer repararam nele. No ouviram os miados fracos que, de vez em quando, vinham l de dentro, do escuro. E assim, foram-se embora muito tristes sem sonharem que a sua amiga estava presa quase debaixo dos seus ps. Durante trs dias a prisioneira lanou constantes apelos de socorro. No terceiro dia o vento mudou e no tardou a transformar-se numa enorme ventania. Em poucas horas descobriu o barril e um raiozinho de luz apareceu num dos cantos. Ansiosamente, a gata enfiou a pata no buraco. Quando a voltou a retirar, o buraco j estava maior. Percebeu e comeou a esgadanhar. A princpio os seus esforos no obtiveram grandes resultados, mas logo de seguida, quer por mera sorte, quer por sagacidade, aprendeu a esgadanhar com mais eficcia. A abertura aumentou rapidamente e por fim l conseguiu sair. O vento, levantando a areia, assolava a ilha. O mar golpeava a praia com o troar de um bombardeamento. As ervas tombavam formando longas filas ondulantes. Por cima de todo aquele torvelinho, o sol brilhava num cu azul, limpo e profundo. A gata, quando enfrentou pela primeira vez a ventania, foi praticamente arrastada. Logo que conseguiu recompor-se, ps-se a rastejar e enfiou-se nas ervas para se proteger. Mas a proteco no era muita j que os longos

caules se encontravam completamente tombados. Mas l avanou contra o vento, por entre aquelas filas, em direco casa, no outro extremo da ilha onde encontraria, como pensava, no s comida e abrigo, como ainda umas meiguices que a fariam esquecer todo aquele pavor. Silenciosa e abandonada em plena luz do sol e no meio de ventos desencontrados, a casa assustou-a. No compreendia aquelas portadas fechadas, as portas mudas, indiferentes, que no se abriam perante o seu chamamento desesperado. O vento arrastou-a violentamente pelo terrao vazio. Trepando com dificuldade para o parapeito da janela da sala de jantar, onde tantas vezes estivera, ali ficou por uns momentos miando desesperadamente. Ento, entrando em pnico, saltou e correu para o barraco. Tambm este estava fechado. Nunca vira as portas do barraco fechadas, e no percebia por qu. Com toda a cautela, fez uma ronda pelos alicerces mas esses tinham sido bem construdos e no havia hiptese de se entrar por ali. Fosse por que lado fosse, aquela velha casa familiar s lhe oferecia espaos vazios e muros fechados. A gata fora sempre to paparicada e to amimada pelos midos que nunca tivera de arranjar comida; mas, felizmente para ela, aprendera a caar os ratos dos pntanos e os pardais das ervas s por brincadeira. E agora, esfaimada como estava por aquele longo jejum debaixo da areia, afastou-se penosamente da casa vazia e arrastou-se ao abrigo de uma duna, at um pequeno buraco cheio de erva que j conhecia. Ali, a ventania apenas atingia a parte de cima da vegetao; e era ali, na calma quente e relativa, que as criaturinhas peludas dos pntanos, os ratos e os musaranhos faziam a sua vida sem serem perturbados. A gata, rpida e furtivamente, no tardou a apanhar um, aliviando assim a fome. Apanhou outros. E depois, regressando casa, passou horas a fio num miado lamuriento, rondando e voltando a rondar a casa, cheirando e espreitando, gemendo desesperadamente na soleira da porta e nos peitoris das janelas sendo, de vez em quando, atirada impiedosamente contra o cho macio do terrao. Por fim, j sem qualquer esperana, enroscou-se debaixo da janela dos midos e adormeceu. No obstante a sua solido e tristeza, a vida daquela prisioneira da ilha, naquelas duas a trs semanas, no foi de modo algum dura. Para alm da abundante rao de pssaros e de