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1 AS LIDAS CAMPEIRAS NA REGIÃO DE BAGÉ/RS: sobre as relações entre homens, mulheres, animais e objetos na invenção da cultura campeira 1 Profa. Dra. Flávia Maria Silva Rieth (PPGA/UFPEL) Mestranda Marta Bonow Rodrigues (PPGA/UFPEL) Mestre Liza Bilhalva Martins da Silva (PPGA/UFPEL) Resumo Este estudo busca apresentar o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) Lidas Campeiras na Região de Bagé 2 , investigação cujo objetivo é identificar e documentar o trabalho na pecuária extensiva do pampa sul-rio-grandense como referência cultural desta região tornado patrimônio imaterial brasileiro. A pesquisa de campo do Inventário foi executada no período de 2010 a 2013, por uma equipe de antropólogos, historiadores e geógrafos da UFPEL, com financiamento e metodologia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional (IPHAN). Somam-se aqui os desdobramentos do INRC que aprofundaram as pesquisas sobre as relações entre homens e animais, os objetos na lida, masculinidade e migração rural e urbana, sociabilidade em meio rural em trabalhos de conclusão de curso (TCC), dissertações de mestrado e projeto de doutorado. PALAVRAS-CHAVE: patrimônio imaterial; trabalho campeiro; relação humanos e não-humanos. Lidas campeiras As lidas campeiras correspondem a um conjunto de ofícios executados na manutenção das estâncias e demais propriedades rurais voltadas para a atividade econômica de criação, manutenção e reprodução de rebanhos de gado bovino, equino e ovino. Homens, mulheres, animais e objetos compartilham territórios de existência em 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Compõem a equipe do INRC Lidas Campeiras na Região de Bagé: Profª Flávia Rieth Coordenadora; Pesquisadores:Marília Kosby, Liza Bilhalva Martins, Marta Bonow Rodrigues, Pablo Dobke; Consultores: Cláudia Turra (Imagem), Fernando Camargo (História), Erika Collischonn (Geografia), Karen Mello (Urbanismo); IPHAN: Beatriz Freire e Marcos Benedetti.

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AS LIDAS CAMPEIRAS NA REGIÃO DE BAGÉ/RS: sobre as relações entre

homens, mulheres, animais e objetos na invenção da cultura campeira1

Profa. Dra. Flávia Maria Silva Rieth (PPGA/UFPEL)

Mestranda Marta Bonow Rodrigues (PPGA/UFPEL)

Mestre Liza Bilhalva Martins da Silva (PPGA/UFPEL)

Resumo

Este estudo busca apresentar o Inventário Nacional de Referências Culturais

(INRC) – Lidas Campeiras na Região de Bagé2, investigação cujo objetivo é identificar

e documentar o trabalho na pecuária extensiva do pampa sul-rio-grandense como

referência cultural desta região tornado patrimônio imaterial brasileiro. A pesquisa de

campo do Inventário foi executada no período de 2010 a 2013, por uma equipe de

antropólogos, historiadores e geógrafos da UFPEL, com financiamento e metodologia

do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional (IPHAN). Somam-se aqui os

desdobramentos do INRC que aprofundaram as pesquisas sobre as relações entre

homens e animais, os objetos na lida, masculinidade e migração rural e urbana,

sociabilidade em meio rural em trabalhos de conclusão de curso (TCC), dissertações de

mestrado e projeto de doutorado.

PALAVRAS-CHAVE:

patrimônio imaterial; trabalho campeiro; relação humanos e não-humanos.

Lidas campeiras

As lidas campeiras correspondem a um conjunto de ofícios executados na

manutenção das estâncias e demais propriedades rurais voltadas para a atividade

econômica de criação, manutenção e reprodução de rebanhos de gado bovino, equino e

ovino. Homens, mulheres, animais e objetos compartilham territórios de existência em

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

2 Compõem a equipe do INRC Lidas Campeiras na Região de Bagé: Profª Flávia Rieth – Coordenadora;

Pesquisadores:Marília Kosby, Liza Bilhalva Martins, Marta Bonow Rodrigues, Pablo Dobke; Consultores: Cláudia Turra (Imagem), Fernando Camargo (História), Erika Collischonn (Geografia), Karen Mello (Urbanismo); IPHAN: Beatriz Freire e Marcos Benedetti.

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um modo de vida chamado “campeiro” que traz como motor de sua descrição/ invenção

(Wagner, 2010) a própria ruína, apontada pelas transformações que o mundo do

trabalho na pecuária processa desde a sua instauração na porção mais meridional do

Brasil, correspondendo à área do pampa sul-rio-grandense3 que ultrapassa as fronteiras

políticas do país.

Os “viventes” que significam e experienciam esse modo de vida “campeiro” são

pessoas que vivenciam ou já vivenciaram os trabalhos realizados na empresa da

pecuária extensiva com o intuito de criar, manter e reproduzir rebanhos de gado ovino,

equino e bovino, no extremo meridional da América do Sul – realidade que mescla as

fronteiras político-geográficas entre o estado do Rio Grande do Sul e os países vizinhos,

Argentina e Uruguai (Leal, 1989; 1992a; 1992b; 1997; Rieth & Kosby, et al, 2011).

Ondina Leal (1997) discute a constituição acadêmica e sócio-antropológica do

“Sul” como um território de significados de uma realidade social específica, de um

sistema de valores e de uma determinada área social. Para Leal (1997),

“os limites desta área cultural etnografada e etnografável,

frequentemente nominada o Sul, numa estratégica imprecisão

retórica, não coincidem com os limites políticos do estado do

Rio Grande do Sul ou mesmo os da nação Brasil”.

O Pampa se estende pelos territórios do Uruguai e da Argentina, fronteira que se

expande - compondo culturas de fronteira (Hartmann, 2011) - e se inventa, na relação

entre paisagem, humanos, animais, objetos e ofícios (Latour, 1994). Assim, a

denominação pampa, aqui, não será configurada somente conforme delimitações

geográficas e biológicas, mas será referida a partir dos agenciamentos de relações que se

estabelecem na configuração de um modo de vida “campeiro”.

Dentre as inúmeras atividades que podem ser abarcadas pelo que se conhece por

“lida campeira”(conceito êmico) estão os ofícios de esquila (que fazem a tosa dos

ovinos), doma, tropeirismo, lida caseira (manutenção doméstica e cotidiana da

propriedade rural), pastoreio (lida com rebanhos), feitura de aramados, ofício do

guasqueiro (fazedor de artefatos e utensílios em couro) que vivem ou viveram

praticando trabalhos relacionados à pecuária. Esses ofícios, citados assim, como

especialidades de determinados trabalhadores, são, no entanto, abarcados pelo saber de

3 O sítio da pesquisa corresponde à região característica do pampa (campos naturais), o que alicerça a

vocação da pecuária extensiva.

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um único (e múltiplo) agente, o “campeiro”, aquele que conhece e sabe fazer um pouco

de cada uma das lidas.

Desta forma, a proposta de inventariar a pecuária como referência cultural do

pampa, privilegia a relação cultura/natureza, mais especificamente a relação dos

humanos com os animais, para pensar a configuração deste modo de vida que também

compreende a experiência e é formada pela interação entre agentes (Wagner, 2010 ) em

contextos de transformação.

O pastoreio de bovinos na região do pampa sul-rio-grandense está diretamente

associado ao povoamento das porções meridionais da América Latina e à criação de

fronteiras político-administrativas neste território, desde o século XVII. Sobre a

introdução do gado pelos colonizadores espanhóis, as opiniões divergem entre iniciativa

estatal e dos missionários jesuítas – a mais plausível é de que múltiplos atores tenham

agido na introdução dos rebanhos ovino, equino e, principalmente, bovino; que as

origens dos mesmos tenham sido diversas (Camargo, 2013). Após a expulsão dos

jesuítas dos territórios espanhóis, as primeiras estatísticas verificaram uma imensa

abundância de gado bravo (chamado cimarrón/chimarrão), cuja pecuária de extração ou

de produção movimentaram o comércio platino.

A era dos tropeiros e dos charqueadores inaugurou o processo de cercamento

dos campos, mantendo as práticas cotidianas até então desenvolvidas, mas num

contexto de privatização (tanto da terra como do gado) que alienou os trabalhadores

tradicionais, ligados à preia do gado livre e bravio das duas principais fontes de riqueza

regional ao longo do século XIX (Camargo, 2013).

Foram diversas as técnicas de exploração pecuária trazidas da Europa, mas

nenhuma preparada para a quantidade impressionante (para o olhar europeu coevo) de

gado vacum disponível. Novas técnicas precisaram ser adotadas para dar conta dessa

abordagem numérica completamente nova. Isso implicava em mesclar as práticas

tradicionais com as novas, criadas num ambiente sincrético (Camargo, 2013).

Com relação às formas de criar ovinos, bovinos e equinos, elas variam conforme

o tamanho da propriedade ou o tipo de manejo que se pretende utilizar. Há propriedades

rurais que mantém o processo de criação de bovinos tido como tradicional, em que é

feito o ciclo completo, de cria, recria e engorda (ou terminação), nas quais as operações

cosmológicas ficam mais evidentes. A cria envolve desde o manejo reprodutivo, em que

as fêmeas passam pelo acasalamento e pelo controle da prenhez, até o parto e

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amamentação dos terneiros. A recria abrange desde a desmama dos filhotes até a fase de

acasalamento das fêmeas e a engorda dos machos que não serão utilizados como

reprodutores. A engorda é a fase posterior, em que se faz a terminação dos animais para

o abate. No entanto, também se valem desses saberes tradicionais, os criadores que

tratam só de engorde, comprando animais magros, ainda não “terminados”, ou seja,

ainda sem a cobertura de gordura necessária para que sejam abatidos.

Lidas brabíssimas

Peões descrevem o universo desta lida como árduo, perigoso, insalubre. No

entanto, essas mesmas agruras parecem trazer os atributos ontológicos necessários à

construção desses homens como pessoas – e mesmo imprescindíveis à manutenção de

sua existência. Acordar antes de raiar o sol e ter que quebrar geada com a sola do pé

descalço, derrubar novilhos com o próprio corpo (pois a contenção com o laço pode

fraturar o animal), correr risco de morte ante a fúria de um touro, participar do mesmo

ambiente que animais peçonhentos, enfrentar temporal no meio do campo aberto para

salvar filhotes do rebanho, domar cavalo xucro, são alguns aspectos apontados como

responsáveis pelo fato de serem “brabíssimas” as lidas campeiras - o que, no entanto,

não chega a representar uma potência negativa, visto que, pelo contrário, o controle

dessas situações impostas pelas forças da natureza selvagem, incorporado, é claro, pela

exploração capitalista de sua força de trabalho, tem agência construtora dos sujeitos.

Estudos sobre masculinidade (Silva, 2014; Leal, 1989) apontam que através do trabalho,

da memória, dos objetos, da relação com o feminino, e, sobretudo da arte criativa

própria dos seres humanos (Wagner, 2010), os homens campeiros se constroem

enquanto sujeitos masculinos também nos contextos de migração rural/urbana. Silva

(2014)

Essas lidas campeiras compõem e são abarcadas pela atividade do pastoreio,

executada pelo campeiro. Elas estão relacionadas umas às outras para um desempenho

pleno da atividade pecuária e seguem ciclos diários e ciclos sazonais, acompanhando os

ritmos da natureza.

Diariamente, ao longo de todo o ano, as lidas iniciam-se com a busca dos

cavalos no campo, ou nos potreiros4 próximos às casas, para posterior encilha

5 no

4 Divisões dos campos dentro de uma propriedade, destinados à alimentação (pastos) e paragem dos

animais. Em geral são demarcados por cercas de arame. 5 Colocar sobre o cavalo todo o conjunto de artefatos – arreios, que são necessários para que o cavaleiro

tenha segurança e destreza enquanto cavalga.

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galpão; logo, os peões dirigem-se às invernadas6

para trabalhar com os rebanhos. Na

região pampa, trabalha-se principalmente com gado bovino, entretanto ovinos e equinos

também estão presentes na maioria das propriedades rurais e em algumas podem ser a

fonte de renda principal. À atividade de lida com o gado chama-se, comumente,

pastoreio, e envolve uma série de cuidados que podem ser feitos “a campo”, com

artefatos adequados para contenção, como o laço7 ou em locais próximos às casas, como

galpões, bretes, mangueiras – estruturas que fazem parte da propriedade. Nos galpões os

materiais são armazenados e é onde, geralmente, os campeiros reúnem-se antes e após

as atividades. Os bretes e as mangueiras fazem parte de edificações onde ocorre o

manejo e dos animais. Nas invernadas, o campeiro observa todo o gado, faz a contagem

dos animais, no intuito de verificar se não há nenhum extravio ou alguma rês, ovelha ou

cavalo doente, ou mesmo, em época de parição, alguma fêmea ou filhote nascido

precisando de assistência. Existem relatos de campeiros que só pela observação é

possível saber se o gado está doente e qual é a doença. Há um hibridismo nas práticas

para prevenção ou cura das enfermidades, onde o uso de medicamentos farmacêuticos

acompanha a aplicação de ervas e realização de benzeduras.

O manejo com as vacas e ovelhas, e também com os equinos, é, portanto,

tradicionalmente, feito a cavalo, o peão “toca por diante” os animais, reunindo-os para

os locais onde serão melhor observados ou manejados. O cavalo e o homem parecem

compor um só ente: as atividades desenvolvidas no trabalho da pecuária extensiva8

dependem tanto do conhecimento do homem campeiro, quanto do bom desempenho do

cavalo. Um bom cavalo não deixará o homem desamparado durante a lida com os

rebanhos, ele corresponde aos comandos do cavaleiro em todas as situações em que é

solicitado. É essa a proposta primordial da doma de equinos: obter, através de técnicas

apropriadas o amansamento dos animais, acostumando-os ao contato com humanos e,

posteriormente, treinando-os para que se transformem em “bons” cavalos, ou seja, para

que possam ser utilizados nas lidas de campo. A doma dos cavalos ocorre durante o ano

todo, e a idade para início dos treinamentos depende tanto da composição física do

6 Sinônimo de potreiro.

7 Artefato utilizado para contenção dos animais a campo. Na região pampa, o mais comum é o laço de

couro. 8 Empresa rural em que a criação e manutenção dos rebanhos ocorre em campos abertos, muitas vezes

em grandes extensões, apenas divididos em potreiros/invernadas. Esse tipo de criatório é conhecido, também, como “sistema tradicional de criação de gado”.

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animal, quanto da preferência do domador9. Um cavalo que não “se presta” para ser

domado, ou seja, não se deixa dominar pelo humano, não servirá para trabalho de

campo; ele poderá ser direcionado para os rodeios de gineteada10

.

Os primeiros trabalhos da doma iniciam-se na primavera estendendo-se até o

verão e início de outono. Antigamente, a doma era realizada dentro dos próprios

estabelecimentos rurais, porém, atualmente, centros especializados para essa atividade

operam fora das propriedades e treinam os animais não só para o trabalho de campo,

como para esportes de equitação. Ao longo do processo têm-se etapas bem definidas

que vão desde o amansar o animal para o contato com humanos e artefatos utilizados na

doma e na montaria, até a cavalgada. Em todas essas fases, objetos específicos são

utilizados para a condução do animal e, dependendo da técnica empregada11

, utiliza-se

gradativamente esses artefatos.

Pode-se considerar o momento de enfrenar12

o cavalo como a etapa final do

processo de adestramento. O freio é uma embocadura de ferro, metal, madeira, borracha

que se compõem de barra, parte que vai dentro da boca do cavalo, sem articulações

exercendo uma forte pressão nesta. O domador tem que saber o momento certo, de

acordo com o aprendizado do cavalo, para enfrenar. Nas domas ditas “racionais” tem

prevalência à utilização do artefato chamado bridão que é uma embocadura de ferro,

metal, madeira, borracha que se compõem de barra, parte que vai dentro da boca, ligada

por articulações. Por exercer uma pressão menos intensa na boca do cavalo, os

domadores dessa técnica entendem que o bridão maltrata menos o animal. Por outro

lado, ha necessidade de confiança entre ambos, pois o cavalo não esta sujeito pela boca

e nesse sentido pode em algum momento não atender as mensagens de quem o monta.

Por outro lado, dependendo da técnica do domador e da característica individual do

cavalo pode-se utilizar os três artefatos no processo de doma nesta ordem: Bocal, freio,

e bridão. Partem do principio que, conforme o cavalo vai se submetendo a pressão na

9 Pessoa que faz a doma dos cavalos.

10 Eventos nos quais os cavalos xucros (sem contato com humanos) ou que não foram totalmente

domados são montados por peões na tentativa de dominar os animais; o peão deve permanecer o maior tempo possível sobre o cavalo, enquanto este tenta tirar o peão de cima de si, pulando, saltando e escoiceando. 11

Têm-se, na região, uma série de técnicas de doma, entre amais conhecidas estão: a doma tradicional, que requer muita força do domador, tempo de treino e impõe a vontade do humano sobre o cavalo; a doma racional, pouco usada isoladamente, que usa o contato humano mais direto com o cavalo; a doma híbrida, que usa elemento das anteriormente citadas. 12

Colocar o objeto de condução do cavalo (usado na boca do animal) e ensiná-lo a seguir os comandos do cavaleiro através desse objeto.

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boca vai diminuindo a intensidade. Além disso, existem diversos tipos de freios e

bridões que serão acionados conforme vai demandando o processo de domesticação do

cavalo (Lima, 2014).

Assim como o cavalo configura-se essencial para as lidas na pecuária

extensiva, muitos peões campeiros consideram o cachorro como um par, pois

desempenha as mesmas atividades do trabalhador humano: arrebanha animais

extraviados, faz os rebanhos concentrarem-se em um local preterido pelo peão,

direciona o gado pelos caminhos a serem seguidos. Além disso, em propriedades com a

presença intensa de matas, em que é difícil ou impossível para o campeiro a cavalo

tentar qualquer manobra, o cão é elemento fundamental na busca pelo rebanho (seja

bovino, equino ou, principalmente ovino e caprino).

Cabe salientar que, apesar de na maioria das propriedades o cavalo ser um

elemento imprescindível para a lida com os rebanhos e ser preterido em lugar de outras

formas de transporte e meio de integração com os outros animais (pois, em geral, os

rebanhos aceitam melhor a aproximação de um cavalo em detrito da aproximação de

uma pessoa), há, atualmente, em alguns estabelecimentos de pastoreio extensivo, no

trabalho de recorrer o campo para observar a situação dos rebanhos, a substituição do

cavalo por motos ou caminhonetes.

Assim como a doma integra a lida maior do pastoreio, outras lidas trabalham

compondo-o. O trabalho do aramador (ou alambrador, em uma referência ao termo

usado nos países vizinhos de língua espanhola) é, hoje, especializado. Poucos são os

que se dedicam à essa tarefa como meio de subsistência. Historicamente essa lida faz

parte do serviço dos campeiros como mais um saber dentro de todo o conhecimento de

campo, da pecuária; todo trabalhador do campo sabe, ao menos, como reparar uma

cerca de arame com defeito. Entretanto, com o trabalho de campo cada dia mais

especializado, hoje são contratados, de maneira terceirizada, trabalhadores que fazem os

reparos maiores em uma cerca, trocam-nas por outras novas, instalam-nas onde são

necessárias. É uma atividade solitária, em geral o aramador conta somente com um

ajudante durante todo o período de trabalho que pode demorar mais de um mês. Esse

trabalho é realizado nos meses mais quentes do ano, pois no inverno a dificuldade do

frio, aliada à umidade do solo não permite o desenvolvimento de um bom serviço. Para

o deslocamento do material a ser usado na feitura do aramado é, comumente, utilizada

uma carroça puxada a cavalo. Em alguns sistemas de pastoreio diferentes do conhecido

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como tradicional, as cercas de arames múltiplos podem ser substituídas por um único

fio eletrificado. Nessa transformação não há necessidade do trabalho do aramador, uma

vez que a instalação do fio eletrificado não requer serviço especializado.

Da mesma forma como acontece com a feitura da cerca de arames, a esquila13

tornou-se um serviço terceirizado. Antigamente, as propriedades reuniam os próprios

empregados para essa atividade e era um trabalho artesanal, realizado através da retirada

da lã por tesouras específicas. Hoje, o trabalho é feito através de máquinas específicas

de tosa e uma equipe de esquiladores, chamada comparsa, em que cada um tem uma

tarefa específica durante todo o processo da retirada da lã dos ovinos, é chamada pelo

proprietário do rebanho quando o verão aproxima-se (em geral inicia-se em novembro).

Compõem a equipe o chefe da comparsa, que possui a máquina de esquilar e pode

administrar o processo ou atuar diretamente na utilização da máquina; o esquilador,

pessoa que faz a tosa; o agarrador, que busca os animais na mangueira e derruba-os para

a tosa; o cancheiro, limpando o espaço físico entre uma esquila e outra; o

descascarreador, homem que limpa as partes do animal em que a lã se prende com

sujidades e não é considerada um material de boa qualidade (em geral lã das patas e

partes traseiras do ovino); o atador, quem amarra os velos de lã14

; o levantador, quem

levanta os velos para serem embolsados; o embolsador, quem coloca os velos em uma

grande bolsa de armazenamento da lã; e o pagador, quem controla o número de ovelhas

esquiladas ao final do dia de trabalho. Ainda pode-se ter o cozinheiro para a equipe. A

atividade da esquila está diretamente relacionada tanto à uma questão econômica,

quanto ao bem-estar dos animais, pois a lã faz com que o animal sofra com o calor

excessivo do verão. A comparsa movimenta toda a propriedade; apesar de ser

terceirizada e ter uma curta durabilidade, acaba envolvendo outros trabalhadores da

propriedade, pois é necessária a busca dos ovinos no campo, a posterior soltura dos

mesmos, o que envolve todo o procedimento com os cavalos, homens, cães, a lida diária

do campeiro.

O guasqueiro é quem trabalha com o artesanato de artefatos em couro. É mais

uma função atribuída aos campeiros em dias de muita chuva ou poucas atividades no

campo. Todo trabalhador sabe como fazer um “remendo” em um laço de couro, como

13

Esquila ou tosa: Atividade de retirar a lã dos ovinos através de máquinas específicas ou tesouras apropriadas. 14

São os montantes de lãs retirados do animal e enrolados para posteriormente serem atados (para que não se extraviem) e colocados em uma grande bolsa específica feita para esse fim.

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tirar um tento15

para usar na feitura de objetos de couro. Trabalho para o ano todo, e

considerado um ato comum entre os campeiros: cada homem cuida de seus arreios e

seus objetos de serviço. O capricho no cuidado desses materiais é muito buscado entre

os campeiros, assim como o capricho em todas as atividades relacionadas ao universo

do campo. Nos dias atuais essa atividade continua fazendo parte e relacionada

diretamente, assim como todas as outras, com o pastoreio. Entretanto, há artesãos que se

especializaram e têm nesse trabalho o seu meio de vida e fazem além dos arreios para

montaria, outros objetos como bolsas, carteiras, cintos, enfeites para casas.

As lidas caseiras fazem parte, assim como o pastoreio, do cotidiano de uma

propriedade. A limpeza do pátio das casas, a ordenha das vacas, a carneada de um

animal, o corte da lenha, os reparos das edificações, o cuidado de hortas, o trato dos

pequenos animais (cães, gatos, galinhas, porcos) precisam ser realizados diariamente,

independente da época do ano e do clima. É, mais uma vez, no capricho da prática das

atividades que se observa o capricho da propriedade. Em geral há homens e/ou mulheres

encarregados, especificamente, das lidas caseiras. Elas fazem parte de todo o

funcionamento da pecuária; mantém a propriedade em andamento, alimentando as

pessoas, cuidando de seus espaços físicos, propiciando um lugar de boa moradia e

estada.

A lida que diretamente compõe o pastoreio e que mais sofreu mudanças ao longo

do tempo é a tropeada, atividade em que se reúne os rebanhos com o intuito de

transportá-los um lugar para outro. As tropas, historicamente formadas pelos rebanhos

mistos (ovelhas, vacas, cavalos), ou de uma única espécie, e pelos cavaleiros, para

condução dos animais através dos campos até os locais de abate, foram substituídas pelo

transporte por caminhões em longas distâncias. Junto à formação das tropeadas tem-se o

aparecimento dos caminhos, estradas e locais de paragens, que são marcados, até hoje,

por mangueiras, ou resquícios de mangueiras e cercas de pedras. Outras construções

como cercas de madeira, valas de terra e mangueiras de árvores eram utilizados para o

local de descanso dos rebanhos durante as tropeadas, mas por serem feitas de materiais

perecíveis, não resistiram à ação do tempo. Em dias atuais, as tropeadas são realizadas

apenas com pouca quantidade de animais e em curtas distâncias, pois essa prática pode

diminuir o custo com transporte e não sacrifica a saúde dos rebanhos; em longas

15

São finas tiras de couro utilizadas para costurar partes do couro ou para fazer enfeites e trançados nos objetos em couro.

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distâncias a tropeada pode causar malefícios aos animais, acarretando a instalação de

enfermidades e perda de peso ou mesmo morte de indivíduos.

Aqui, o contraponto com o sistema de pastoreio Voisin16

é elucidativo para a

descrição/invenção das lidas tradicionais. No Voisin o cão é deixado de lado, pois o

gado é criado de forma mansa, com manobras lentas e com métodos que excluem a

presença de qualquer elemento de agressividade, inclusive o cavalo. Essa técnica é

utilizada em rebanhos bovinos, com o campeiro trabalhando a pé em meio aos animais,

em comunicação direta entre os agentes. Graças ao trato diário com os animais, que

acaba domesticando-os e fazendo-os andar atrás do pastor o cavalo é dispensado. Não

há necessidade de artefatos específicos, como ocorre no pastoreio tradicional, em geral

os únicos objetos envolvidos são a cerca eletrificada, um alicate para a mudança de

direção desta cerca e um cabo de madeira que serve para levantar os fios eletrificados

para o gado passar por baixo deles (não sendo necessário o deslocamento total do fio

para a passagem do rebanho). Este tipo de técnica sofre de escassez de mão-de-obra

para lidar com o gado, já que os trabalhadores campeiros relutam em deixar o cavalo, o

laço, o cachorro e a emoção de dominar vacas brabas. Segundo o Sr. Nilo Romero,

proprietário de um estabelecimento em que se trabalha com o pastoreio Voisin: “Agora,

em relação ao Voisin, eles não gostam (os funcionários). Eles dizem que não querem

trabalhar no choque. É difícil, não é, a mentalidade deles. Então, mas nós temos gente,

dos rapazes que a gente especializa, e que eles ficam... Porque tem que na hora de

trocar, né? É muito pra vagabundo, o Voisin é pra vagabundo! Não é? Porque o sujeito

abre a porteira, o gado passa, e depois não tem nada mais pra...”. A Sra Percília

Romero, esposa do Sr. Nilo confirma essas informações: “Não, eles não gostam,

porque eles gostam... Eles gostam é do cavalo, é de laçar... é, eles não gostam, eles

gostam é da vida de gaúcho, mesmo. E o gaúcho é... Isso tem dificuldade, o Voisin é

difícil de funcionar. Porque eles não querem”.

As práticas campeiras são percebidas por esse grupo cultural como um saber

viver e se relacionar com o ambiente e seu entorno, onde o valor trabalho sofre

constantemente transformações decorrentes do processo histórico de desenvolvimento

associado à modernização (Silva, 2014). Ferreira e Gonçalves (2011) apresentam ainda

16

Técnica advinda da Engenharia Agronômica, desenvolvida na Europa e pouco utilizada da região pampa; consiste na rotatividade dos campos: os potreiros são delimitados por um fio de arame eletrificado, não é necessária a implantação de cercas de arame com mais fios, e o rebanho é trocado de potreiro, conforme o desgaste e a recuperação dos pastos.

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as dificuldades do peão campeiro em se sentir um sujeito de direitos, considerando que

o trabalho é, acima de tudo, um estilo de vida. Levantar de madrugada, tomar chimarrão

no galpão e comer o churrasco, antes de sair o sol já esta “se indo para o campo” e

retornar “quando o sol encerra as brasas”17

são heranças que remetem, para um modo

de vida que, por sua vez, entra em conflito com a legislação trabalhista

Considerações finais

As investigações do INRC – Lidas Campeiras informaram que o trabalho no

campo, ou lida campeira aparece nesse universo como um entrelaçamento entre trabalho

e modo de vida. E, considerando o processo do INRC, a proposição é registrar as lidas

campeiras como ofícios e modos de saber, tomando-as como semantizadoras da cultura

na região de pecuária, no pampasul-rio-grandense.

A lida com os rebanhos de bovinos, ovinos e equinos se inventa na interação

entre o campeiro, as mulheres, juntamente com os animais, a paisagem e os objetos.

Essa ideia vem de encontro com o que alguns autores da teoria ator-rede trabalham: a

interação e não a separação de entidades que formam uma rede heterogênea e que não

operam umas sem as outras. (LATOUR, 1994; LAW, 1992).

“Não se trata apenas de que nós comemos, achamos abrigo em nossas

casas e produzimos objetos com máquinas. Trata-se também de que

quase todas nossas interações com outras pessoas são mediadas

através de objetos. [...] Nossas comunicações com os outros são

mediadas por uma rede de objetos [...]. E é também mediada por

redes de objetos-e-pessoas [...]. O argumento é que essas várias

redes participam do social. Elas o moldam. (Law, 1992. p. 2).

O social, portanto, não é composto apenas por humanos, ele abarca diferentes elementos

que estão atuando em conjunto. Em que as diversas conexões heterogêneas entre os

agentes que compõe essa cultura entrelaçados no tempo e no espaço trazem as

transformações como motor na invenção permanente do pastoreio de animais.

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17

Processo denominado “seguir o horário do sol”.

Page 12: AS LIDAS CAMPEIRAS NA REGIÃO DE BAGÉ/RS: sobre as … · própria dos seres humanos (Wagner, 2010), os homens campeiros se constroem enquanto ... como o laço7 ou em locais próximos

12

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