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Universidade do Sagrado Coração Rua Irmã Arminda, 10-50, Jardim Brasil CEP: 17011-060 Bauru-SP Telefone: +55(14) 2107-7000 www.usc.br 44 AS INSCRIÇÕES COMO DOCUMENTOS PARA AS PESQUISAS EM HISTÓRIA Lourdes Conde Feitosa 1 1 Dra em História Cultural. Professora do Curso de Licenciatura em História da Universidade do Sagrado Coração USC/SP. RESUMO Ao longo do século XX intensificou-se, em diferentes campos das Ciências Humanas, a utilização de variadas fontes, além da usual documentação literária, com o intuito de ampliar as informações sobre a organização social de sociedades passadas. O uso de outras evidências históricas como as fontes epigráficas, arqueológicas, iconográficas, entre outras, têm trazido valiosas contribuições para este processo de revisão e ampliação das temáticas discutidas pela História. Dentre as fontes citadas, destaca-se, neste texto, a documentação epigráfica e as possibilidades de pesquisa a partir delas. Palavras-Chave: Inscrições. Pesquisas. História. INTRODUÇÃO Há tempo tem-se discutido sobre o conceito de História e as maneiras de conceber o conhecimento e a escrita da História. O interesse pelo registro a respeito de novos personagens e temas tornou necessário a revisão dos paradigmas da História tradicional e a busca por novas fontes, novas abordagens e novos métodos para organizar e desenvolver as pesquisas históricas (CHARTIER, 1994, p. 100). Neste artigo, analisaremos o uso da fonte epigráfica como um documento histórico e as possibilidades de pesquisa desenvolvidas por meio dela, com destaque para os registros encontrados em dois momentos históricos: grafites da antiguidade romana e aqueles realizados no Brasil. O pesquisador que usa fontes epigráficas estuda as inscrições, incluindo sua decifração, datação e interpretação. A palavra “inscrição” tem origem na expressão latina inscriptio ação de escrever sobre algo e é utilizada, em tempos modernos, para definir um texto entalhado, gravado, traçado ou, de outra maneira, estampado sobre uma superfície durável como pedra, tabuinhas de madeira, placas de argila, paredes de templos, tumbas, casas e muros, arcos, objetos de metal, cerâmica e louça, vidros, mosaicos, dentre diversos outros (BODEL, 2001; KEPPIE, 1991).

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AS INSCRIÇÕES COMO DOCUMENTOS PARA AS PESQUISAS EM HISTÓRIA

Lourdes Conde Feitosa1

1 Dra em História Cultural. Professora do Curso de Licenciatura em História da Universidade do Sagrado

Coração – USC/SP.

RESUMO

Ao longo do século XX intensificou-se, em diferentes campos das Ciências Humanas, a

utilização de variadas fontes, além da usual documentação literária, com o intuito de ampliar as

informações sobre a organização social de sociedades passadas. O uso de outras evidências históricas

como as fontes epigráficas, arqueológicas, iconográficas, entre outras, têm trazido valiosas

contribuições para este processo de revisão e ampliação das temáticas discutidas pela História. Dentre

as fontes citadas, destaca-se, neste texto, a documentação epigráfica e as possibilidades de pesquisa a

partir delas.

Palavras-Chave: Inscrições. Pesquisas. História.

INTRODUÇÃO

Há tempo tem-se discutido sobre o conceito de História e as maneiras de conceber o

conhecimento e a escrita da História. O interesse pelo registro a respeito de novos

personagens e temas tornou necessário a revisão dos paradigmas da História tradicional e a

busca por novas fontes, novas abordagens e novos métodos para organizar e desenvolver as

pesquisas históricas (CHARTIER, 1994, p. 100). Neste artigo, analisaremos o uso da fonte

epigráfica como um documento histórico e as possibilidades de pesquisa desenvolvidas por

meio dela, com destaque para os registros encontrados em dois momentos históricos: grafites

da antiguidade romana e aqueles realizados no Brasil.

O pesquisador que usa fontes epigráficas estuda as inscrições, incluindo sua

decifração, datação e interpretação. A palavra “inscrição” tem origem na expressão latina

inscriptio ação de escrever sobre algo e é utilizada, em tempos modernos, para definir um

texto entalhado, gravado, traçado ou, de outra maneira, estampado sobre uma superfície

durável como pedra, tabuinhas de madeira, placas de argila, paredes de templos, tumbas,

casas e muros, arcos, objetos de metal, cerâmica e louça, vidros, mosaicos, dentre diversos

outros (BODEL, 2001; KEPPIE, 1991).

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As inscrições de sociedades passadas começam a ser abundantemente encontradas na

Europa a partir do século XVIII, fato que estimulou o ritmo das escavações e a própria

consolidação da Arqueologia como uma área da Ciência. Dos documentos descobertos em

diferentes extensões da Bacia Mediterrânica, grande parte era relativa ao mundo antigo, fato

que estimulou a organização de coleções com as inscrições encontradas como o Corpus

Inscriptionum Latinarum (CIL), que contém os registros relacionados ao Império Romano; o

Corpus Inscriptionum Graecarum (CIG), que compila as inscrições gregas; o Corpus

Inscriptionum Etruscarum (CIE), com os registros epigráficos etruscos, e outras inúmeras

coleções de escritos persa, babilônico, acádio, elamita, frígio, celta, siríaco, aramaico dentre

outros1.

O interesse contemporâneo pela escrita e pela própria cultura escrita intensificou-se na

segunda metade do século XX em razão do grafocentrismo de nossa sociedade, de nossa

obsessão pela palavra escrita, fato que tem motivado estudos interessados em compreender os

variados usos deste registro no passado e a relação dos indivíduos e Estados com ele. Uma

preocupação atual é rever o olhar etnocêntrico e anacrônico depositado nas análises deste

escritos ao longo do século XIX e boa parte do XX, e reinterpretá-los sem a transposição dos

valores ocidentais contemporâneos para outros momentos e sociedades.

A atenção para a possibilidade de os indivíduos relacionarem-se de modo distinto com

o registro escrito, sem a crença absoluta e generalizada no poder da escrita como um modo de

transformação pessoal e social, como crível em nossos dias, faz com que Bowman e Woolf

destaquem a importância de investigar os usos da escrita a partir da experiência histórica

construída, pois:

A cultura escrita, por si mesma, não promove o crescimento econômico, a

racionalidade ou o triunfo social. Os alfabetizados não se comportam ou

pensam de maneira necessariamente diferente dos alfabetizados, e não

existe uma divisão absoluta entre as sociedades que conhecem a escrita e as

que a desconhecem. A invenção da escrita não promoveu a revolução

social ou intelectual, e as referências à morte da oralidade têm-se mostrado

exagerado. ...Com certeza, muitos estudiosos da cultura escrita chegaram à

1 Muitos destes registros estão disponíveis em páginas da web. Cf, como exemplos, SANTOS, D. V.

C. De tablete para tablete – novas ferramentas para a pesquisa e o ensino de História das culturas

cuneiformes na era digital. Tempo & Argumento. v. 6, n. 12, p. 212–241, 2014. Disponível em:

file:///D:/Usuarios/Downloads/4347-15095-2-PB%20(1).pdf. e o Corpus Inscriptionum Graecarum,

disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/38042967/Corpus-Inscriptionum-Graecarum-Vol-I-Pt-1-

Pt-2-Bockh-BOA-1828>. Acesso em: 30 abr. 2016.

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conclusão de que os usos da escrita precisam ser investigados sociedade a

sociedade (BOWMAN; WOOLF, 1998, p. 7).

Desta maneira, para a leitura de tais registros como documentos históricos é

imprescindível compreender as singularidades nas quais foram produzidos e usados, com

mais ou menos intensidade, e como foi o vínculo pessoal e social com a grafia. Pode-se

observar, por exemplo, que na Grécia Arcaica e Clássica (séculos VI ao IV a.C.) nada possuía

que se assemelhasse à burocracia contemporânea: “os registros, quando feitos, tendiam a ser

breves, desorganizados e [...] descentralizados”. (BOWMAN; WOOLF, 1998, p. 46). Em

Atenas, de onde provém a maior parte das evidências, como sinalizam os autores citados

acima, o registro escrito ganha valor e peso similar ao testemunho oral apenas na metade do

séc. IV a.C. diferente é a utilização da escrita pela sociedade romana nos séculos I e II antes e

depois de C., muito comum para os registros burocráticos do Estado e de uso cotidiano em

algumas cidades, como registrado em Pompéia (FEITOSA, 2010).

A atenção dada em dias atuais para estes documentos epigráficos tem permitido

conhecer aspectos do passado até então não imaginados há poucas décadas. Por meio deles

são descobertos pessoas e aspectos da vida social, política, econômica, familiar, amorosa,

dentre outros, até então desconhecidos. Para o historiador francês Nora (1993), estes registros

constituem-se em “lugares de memória”, criados com o intuito de preservar uma memória

oficial, diferente do que acontecia em sociedades nas quais a memória era algo vivido no

cotidiano e a sua preservação realizada pelos próprios grupos sociais por meio da oralidade.

Ou seja, segundo o autor, a criação de lugares de memória resulta do sentimento de que não

há memória espontânea, por isso a necessidade de acumular vestígios, testemunhos,

documentos sobre o passado, que se tornarão provas e registros daquilo que se foi. Estas

considerações de Nora são particularmente relevantes para as inscrições denominadas

Monumentais.

O tipo de letra, o conteúdo e a finalidade destes registros escritos definem a sua

classificação em Inscrições Monumentais e Inscrições Comuns. No Império Romano, as

Inscrições monumentais – aquelas gravadas com letras capitais ou maiúsculas, esculpidas em

monumentos, tumbas funerárias, edifícios públicos e outros, eram usadas, principalmente,

para divulgar decretos oficiais, datas comemorativas e fins honoríficos. Exemplo deste tipo

de inscrição pode ser visto em Arcos de Triunfos construídos pelos romanos para comemorar

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vitórias militares. O apresentado abaixo está localizado no Fórum Romano e foi erigido em

nome do Senado e do povo romano em homenagem ao imperador Tito Flávio Vespasiano, por

sua conquista a Jerusalém no ano de 70 d.C.

Figura 1 - Arco de Tito. Roma, Séc. I d.C.

Fonte: Cornell e Matthews (1996).

SENATUS

POPULUSQUE ROMANUS

DIVO TITO DIVI VESPASIANI F(ILIO)

VESPASIANO AUGUSTO

O SENADO E O POVO ROMANO AO DIVINO TITO,

FILHO DO DIVINO VESPASIANO,

VESPASIANO AUGUSTO2.

Outro significativo registro monumental corresponde à participação de uma romana na

vida pública da cidade de Pompéia. Uma inscrição celebrativa encontrada na entrada do

grandioso edifício dos fullones3, sede de uma das maiores corporações de Pompéia, faz

referência a Eumáquia. Logo nas colunas de entrada do edifício encontra-se a inscrição que

2 Interpretação de Lourdes C. Feitosa. 3 Este edifício seria usado para depósito e venda de lã e de tecidos.Como a inscrição informa sobre a

participação de Eumáquia em sua construção, portanto, de seu caráter privado, a exuberância deste

edifício parece um sinal evidente da riqueza dessa pompeiana, cuja ostentação também foi

manifestada no mausoléu que construiu para si mesma e para sua família (FEITOSA, 2005, p. 34).

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explicita a sua condição de sacerdotisa pública e patrona da associação dos fullones, com a

qual contribuiu financeiramente para a construção do edifício:

EUMACHIA L F SACERD PUBL NOMINE SUO ET M NUMISTRI

FRONTONIS FILI CHALCIDICUM CRYPTAM PORTICUS

CONCORDIAE AUGUSTAE PIETATI SUA PECUNIA FECIT

EADEMQUE DEDICAVIT (CIL, X, 810)

EUMÁQUIA, FILHA DE LÚCIO, SACERDOTISA PÚBLICA, EM

SEU NOME E DE SEU FILHO M NUMISTRO FRONTÃO, FEZ,

COM SUA PECÚNIA, A GALERIA DO MERCADO, UM

CRIPTOPÓRTICO E VESTÍBULOS EM HONRA À CONCÓRDIA

AUGUSTA E À PIEDADE (AUGUSTA)4.

O caso de Eumáquia é um dos exemplos da participação de mulheres abastadas na

vida pública da cidade, atestada por meio de fontes materiais como as inscrições e que não é

perceptível na literatura. Mas a cidade de Pompéia guarda outras inúmeras evidências

materiais da participação feminina de diferentes estratos sociais na economia, na vida social e

no apoio a candidatos em eleições locais (TREGGIARI, 1981), vista por meio das Inscrições

comuns.

As Inscrições comuns – aquelas escritas em letras cursivas eram utilizadas em

anúncios, recados, insultos, sátiras a políticos, declarações e disputas amorosas, reproduções

literárias, campanhas políticas, dentre inúmeros outros temas mencionados pelo povo em suas

escritas cotidianas. Este tipo de escrito é muito comum nas paredes da Pompéia Romana,

cidade na qual foram encontrados milhares deles em muros, paredes externas e internas de

edifícios públicos, tabernas, locais de trabalho, habitações, ou seja, em quase todos os espaços

disponíveis da cidade.

Nas paredes encontram-se grafites com apoio a candidatos políticos registrados por

mulheres pompeianas, que não eram candidatas nem votantes, mas que participavam de

campanhas políticas:

4 Tradução proposta por Étienne (1971, p. 153).

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Cássia e seu marido, Ceriales, pedem voto a A. Trébio Valente em uma mesma

inscrição (CIL, IV, 7669). A menção dos dois nomes parece indicar que Cássia tinha

independência para apoiar um candidato diferente daquele escolhido por seu marido. Mesmo

porque, se o apoio da esposa necessariamente acompanhasse o do marido, não precisaria ser

mencionado. Também deixaram as suas menções trabalhadoras de tabernas como Polia, que

apoiou Cn. Cerino Vátia à edilidade (CIL, IV, 368;) e Ferusa, que preferiu L. Popídio

Segundo (CIL, IV, 7749). Da mesma maneira fizeram diversas outras mulheres5 (FEITOSA;

FAVERSANI, 2003).

Outro exemplo de registro comum verifica-se nesta meditação sobre o amor:

Figura 2 - Grafite, CIL, IV, 8408

Legenda: a) Amantes ut apes vita(m) mellita(m) exigunt

b) Velle

c) Amantes, amantes cureges

Os amantes, como as abelhas, uma vida doce buscam. Antes

fosse assim!

Amantes, amantes, precisam é de tratamento!6

Para a leitura e análise dos registros epigráficos, como os indicados acima, alguns

cuidados são importantes. Observa-se que toda a pontuação adotada é feita a partir de critérios

atuais uma vez que no texto original não há qualquer marca de pontuação. Isso significa que a

própria transcrição desses registros é influenciada pela interpretação apresentada pelos

paleógrafos, e este é o primeiro aspecto a ser relevado no trato deste tipo de fonte.

Outro aspecto relevante é verificar as diferenças do latim usado. As monumentais

5 Cf., entre outros exemplos, Junia (CIL, IV, 1168), Epídia (CIL, IV, 6610) e Sutoria Primigênia

(CIL, IV, 7464), na campanha de 79; Cornelia (CIL, IV, 3479), em 77; Caprasia (CIL, IV, 171), em

76; e Víbia (CIL, IV, 3746), cujo candidato não foi possível discernir. 6 Interpretação proposta por Funari (1989, p. 55-56), que lê cureges como equivalente a curae egentes

sunt.

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seguiam as regras da língua erudita, tanto no vocabulário como na sintaxe, e eram realizados

sob encomenda a um profissional pago, enquanto o popular era mais flexível e próximo à fala

cotidiana. De autoria própria, estes registros eram feitos com um instrumento barato e

acessível, o grafium, e expressavam questões do cotidiano popular (FUNARI, 2003).

Identificar a data, locais de produção e menção a nomes são outras informações

significativas no manuseio destas fontes. No caso de Pompéia, que foi soterrada pela erupção

do Vesúvio em 79 d.C. e redescoberta apenas a partir do século XVIII, a possibilidade de

precisar o período em que os escritos foram realizados, principalmente os populares, é um

aspecto diferenciador entre estas inscrições e outras poucas do mesmo gênero encontradas em

outras localidades e épocas que são, em geral, muito difíceis de serem datadas (VÄÄNÄNEN,

1937, p. 19).

Outra marca destes registros é a sua manifestação cotidiana e livre nas paredes da

cidade. Como destaca Feitosa (2005, p. 62-63):

A ação dos “grafiteiros” era tão intensa que, mesmo com a atuação dos

dealbatores, trabalhadores que tinham por finalidade a limpeza das paredes,

um grande número delas foi encontrado nas escavações... O dealbator era

encarregado de apagar velhas notícias, mensagens indesejáveis ou mesmo de

deixar as paredes limpas. Parte desses novos espaços era utilizado com

recados “oficiais”, ou seja, anúncios de venda de produtos, de espetáculos ou

cartazes eleitorais, por exemplo, escritos, via encomenda, por trabalhadores

pagos para isso os scriptores7. Contudo, de todas as inscrições catalogadas,

a imensa maioria corresponde àquelas registradas de próprio punho pelo

autor.

Pode-se destacar, desta maneira, que as paredes e muros eram concebidos como

espaços naturais para as manifestações tanto de cunho oficial como pessoal. A escrita nas

paredes não era vista como um problema ou crime, como pode ser considerado em dias atuais

na sociedade brasileira, aspecto a ser discutido na análise dos registros feitos no Brasil, a

seguir.

INSCRIÇÕES NO BRASIL

De maneira geral, pode-se organizar as inscrições usadas no Brasil da mesma maneira

que a realizada para as inscrições romanas, ou seja, em monumentais e comuns.

7 Menções a esses trabalhadores podem ser vistas em grafites como CIL, IV 222, 230, 1190 e 3529.

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O primeiro registro oficial realizado no Brasil que poderíamos elencar como Inscrição

Monumental foi feito em pedra e erguido em Laguna/SC para lembrar a assinatura do Tratado

de Tordesilhas, em 1494, realizado entre Portugal e Espanha.

Figura 3 - Lápide sobre o Tratado de Tordesilhas – 1492

“Reza” o tratado:

[...] que se faça e assinale polo dito mar oceano uma raia ou linha direita de

pólo a pólo, a saber do pólo árctico ao pólo antárctico, que é de norte a sul.

A qual raia ou linha se haja de dar e dê direita, como dito é, a trezentas e

setenta léguas das ilhas do Cabo Verde pera a parte do ponente, por graus ou

por outra maneira como melhor e mais prestes se possa dar de maneira que

não sejam mais nem menos[...].(TORDESILHAS, 1494, apud CINTRA,

2012, p. 422).

Por meio dele estabelecia-se uma linha imaginária 370 léguas a oeste do Arquipélago

de Cabo Verde, sendo que as terras a leste desse meridiano pertenceriam a Portugal. O trecho

de terra limitado pelo tratado se estendia de Belém do Pará, ao norte, até Laguna, ao sul. Este

tratado delimitava, oficialmente, a divisão do mundo entre portugueses e espanhóis.

Este tipo de registro é frequente em monumentos como este, em placas comemorativas

de edifícios públicos e privados, estelas funerárias, dentre outros, como dito anteriormente.

Entretanto, diferente do ocorrido em outros centros de pesquisas, no Brasil o trabalho de

catalogação e estudo destes registros oficiais ainda é relativamente recente. O Laboratório de

Imagem e Som (LIS), do Instituto de Artes (IA) da UNICAMP, desenvolve o projeto

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“Paisagens Tipográficas” e busca constituir um Acervo Epigráfico Paulistano a partir da

compilação de inscrições encontradas em fachadas de edifícios de uma área determinada do

Centro Histórico da cidade de São Paulo.

O objetivo é o de construir uma história da cidade a partir dos dados sobre a atuação

de arquitetos, engenheiros e construtores, alguns deles totalmente desconhecidos ou pouco

estudados:

A investigação que culminou com a elaboração do acervo partiu da premissa

de que a expressão estética de uma época contém matrizes culturais comuns

tanto no que se refere aos desenhos de letras quanto à linguagem

arquitetônica e à estrutura da paisagem urbana. Isso se torna mais evidente

quando o elemento tipográfico é apropriado como elemento paisagístico e,

portanto, integrado à própria linguagem da cidade (ACERVO..., [2016?]).

Um aspecto relevante desta pesquisa está no interesse em identificar nomes e/ou

referências sobre quem foram os arquitetos, engenheiros e construtores destes edifícios do

centro histórico de São Paulo com o intento de registrar, além da própria história da cidade,

também uma possível história dos profissionais, pessoas “comuns” que tornaram possível o

projeto de urbanização em diferentes épocas de desenvolvimento da cidade.

O acervo é constituído por dois tipos de arquivos, um físico e outro digital. O primeiro

inclui decalques, moldes em silicone e réplicas em resina das inscrições, guardados no LIS. O

arquivo digital se constitui em um banco de dados, contendo fotos, desenhos vetoriais e

mapas, além de fichas e planilhas que organizam as informações. Parte deste arquivo digital

está disponível no website mencionado acima.

Um exemplo deste trabalho vê-se no registro de uma inscrição frontal encontrada no

Edifício Martinelli, considerado um dos primeiros “arranha céus” da América Latina dos anos

de 1920, com 25 andares e uma altura 105.65 metros. Localizado no centro de São Paulo,

entre as ruas São Bento, Av. São João e a Rua Libero Badaró, o empreendimento foi do

empresário italiano Giuseppe Martinelli e o projeto arquitetônico do húngaro William

Fillinger. Construído de 1924 a 1929, nele trabalharam mais de 600 operários. A obra gerou

muita polêmica, pois até então não havia nenhum prédio em São Paulo com grande altura. Na

época, edifícios com mais de 10 andares eram considerados muito altos8.

8 Informações disponíveis em: <http://cidadedesaopaulo.com/sp/o-que-visitar/1175-edificio-

martinelli> e <http://jvillavisencio.blogspot.com.br/2011/05/edificio-martinelli-o-processo-de.html>.

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Figura 4 - Edifício Martinelli

Fonte: Rodrigues (2015).

Figura 5 - Inscrição em mármore do

Ed. Martinelli

Fonte: Souza ([1929?]).

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Figura 6 - Decalque da inscrição em

mármore

Fonte: Gouveia ([1929?]).

Em relação às inscrições comuns, no Brasil há muita discussão a respeito de sua

legalidade. Pelo Art. 65 da Lei no. 9.605/98 todo tipo de registro popular, denominado como

pichação, é considerado crime: “Pichação é Crime Ambiental e é proibida a venda de tinta

spray para menores de 18 anos”.

Os intensos debates sobre o que poderia ser caracterizado como pichação ou não

resultaram em uma revisão jurídica - Lei de 26 de maio de 2011 – que estabelece distinção do

Grafite em relação à Pichação: “o grafite não é crime e é “manifestação artística” quando tem

o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado”. Apesar das distinções legais, não

sobejam críticas e discussões nas mídias a respeito destas diferenciações9.

9 Cf, como exemplos: Poesia na Rua, em: <https://poesiadarua.wordpress.com/a-pixacao-segundo-a-

lei-penal/; Estadão - Lei contra a Pichação, em http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,lei-

contra-a-pichacao-imp-,727789>. Acesso em: 24 maio 2016.

Linha 42 – A pichação, segundo a Lei penal, em <http://www.linha42.com.br/arte-e-lazer/98/a-

pixacao,-segundo-a-lei-penal>. Acesso em: 24 maio 2016.

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Figura 7 - Exemplo de um grafite

Fonte: Humphreys (2015).

Figura 8 – Exemplos de pichações, segundo a legislação brasileira

O uso destas inscrições de rua e aquelas registradas em portas de banheiros de

edifícios, realizadas com tinta em spray, caneta, baton, grifo, etc, tem sido cada vez mais

frequentes nas pesquisas em Antropologia Social, Artes e História. Por meio delas pode-se

considerar as diferentes percepções, pessoal e social, a respeito da finalidade desta escrita, as

variações entre a sintaxe e o vocabulário usado, os tipos de materiais utilizados e,

fundamentalmente, a função e as mensagens de cada uma delas 10

. Elementos parecidos com

aqueles destacados nas inscrições romanas, embora o conteúdo e a relação dos indivíduos

com estes registros tenham suas especificidades históricas.

10 Conferir os estudos disponíveis em:

<http://www.ppgartes.uerj.br/seminario/2sp_artigos/marcelo_araujo.pdf> e

<http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/anais3/flavia_calo.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2016.

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Embora apresentado de maneira breve, destacamos que as inscrições constituem-se

como fonte ímpar para o desenvolvimento de análises históricas e culturais sobre o

pensamento erudito e, principalmente, popular, tanto da Antiguidade Romana como do Brasil.

Os grafites fornecem subsídios para que sejam questionados conceitos genéricos como

“romanos”, “brasileiros”, expressão que oculta as diferenças sociais e os embates discursivos

postos entre os muitos grupos sociais, além de permitir vislumbrar uma heterogeneidade de

culturas e valores próprio de sociedades complexas como as aqui estudadas.

INSCRIPTIONS AS DOCUMENTS FOR RESEARCH IN

ABSTRACT

Throughout the twentieth century, the use of various sources, besides the usual literary

documentation was intensified in different fields of the Human Sciences, with the intent to expand the

information about the social organization in past societies. The use of other historical evidence such as

the epigraphic, archaeological, iconographic ones, among other sources, has brought valuable

contributions to this process of revision and expansion of the themes discussed by History. Among the

sources mentioned, the epigraphic documentation and search possibilities based on them stand out in

this study.

Keywords: Inscriptions. Research. History.

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AGRADECIMENTO

Agradeço os colegas Nair L. Nassarala, Roger M. M. Gomes, Fábio P. Pallotta e Pedro

P. A. Funari. As ideias aqui apresentadas são de minha responsabilidade.