as ilusões da modernidade

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.. 1. AS ILUSOES DA MODERNIDADE IníciQ., ruptura, tradição, tradução e universalidade: eis \( os termos de uma viagem. Com eles, julgo ser possível cobrir um largo espectro das relações entre poesia e modernidade. Na verdade, como as ondas que se formam na água, mi- núsculas, incessantes, a partir do impacto de um objeto só- lido, assim este texto - esse, aquele, o-que-há-de-vir - pre- tende operar a convergência de numerosos textos projetados. Texto-esponja e, ao mesmo tempo, texto-pedra, abrindo fulcros, singrando ondas, construindo o espaço para a re- flexão. Início: não apenas o começo da poesia moderna mas a poesia como começo. E claro que a pergunta seguinte é verti- ginosa: começo de quê? Responder desde já, no entanto, se- ria colocar no início o fim das reflexões possíveis. Por isso, a pergunta fica sem resposta, conservando o texto nos limites da impossibilidade. Digamos assim: começo de um certo tipo de relação en- tre o poeta e a linguagem da poesia e, mais do que depressa, I tJ I I '1~ r .' j J ~ / ~, c, \, , /.\. 13

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1. AS ILUSOES DA MODERNIDADE

IníciQ., ruptura, tradição, tradução e universalidade: eis \(os termos de uma viagem. Com eles, julgo ser possível cobrirum largo espectro das relações entre poesia e modernidade.

Na verdade, como as ondas que se formam na água, mi­núsculas, incessantes, a partir do impacto de um objeto só­lido, assim este texto - esse, aquele, o-que-há-de-vir - pre­tende operar a convergência de numerosos textos projetados.

Texto-esponja e, ao mesmo tempo, texto-pedra, abrindofulcros, singrando ondas, construindo o espaço para a re­flexão.

Início: não apenas o começo da poesia moderna mas apoesia como começo. E claro que a pergunta seguinte é verti­ginosa: começo de quê? Responder desde já, no entanto, se­ria colocar no início o fim das reflexões possíveis. Por isso,a pergunta fica sem resposta, conservando o texto nos limitesda impossibilidade.

Digamos assim: começo de um certo tipo de relação en­tre o poeta e a linguagem da poesia e, mais do que depressa,

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, /.\.13

Fabiane
Texto
BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade: notas sobre a historicidade da lírica moderna. São Paulo:Perspectiva, 1986.

entre o leitor e o poema. A ampliação é inevitável: como sevai ver, a primeira relação é modificada na medida em quea seg\lnda se transf.orma numa condição imprescindível à suaoperacionalidade.'Entre O poeta e a linguagem, o leitor dopoema deixa de ser o consumidor para se incluir como latên-cia de uma linguagem possível. Não se escreve mais apenas .~para o leitor: este é o Edipo de uma Esfinge cujo nome o ~poeta-oráculo esqueceu. Por isso, a decifração não está mais. ina correta tradução do enigma mas sim na recifração, criaçãode um espaço procriado r de enigmas por onde o leitor pas-seia a sua fome de respostas. .

Entre a linguagem da poesia e o leitor, o poeta se ins­taura como o operador de enigmas, fazendo reverter. a lin­guagem do poema a seu eminente domínio: aquele onde odizer produz a reflexividade. Parceiros de um mesmo jogo,poeta e leitor aproximam-se ou afastam-se conforme o graude absorção da/na linguagem.

Parecendo ser do poeta, a primeira cartada já inclui oleitor, revelado pela explicitação no uso da linguagem. O pon­to zero das relações está situado na implicação do leitor nopoeta, sua consciência. O início, portanto, é uma busca pelomomento em que seja possível deflagrar a linguagem.

O que chamo de poesia moderna é, sobretudo, aquelaem que a busca pelo começo se explicita através da consciên­cia de leitura: a linguagem do poeta é, de certo modo, a tra­dução/traição desta consciência. .

Neste sentido, começar o poema equivale a repensar asua viabilidade através da armação de novos enigmas cujasolução o leitor há de procurar não somente na personali­dade do poeta mas naquilo que - indício de um trajeto deleituras - aponta para a saturação dos usos da linguagem.

Por isso, a consciência que o poema deixa aflorar nãoé apenas descritiva do poeta enquanto personalidade: cadaverso, cada imagem, ritmo ou anotação semântica, tudo pro­põe a recuperação da qualidade histórica do poema. Leitorda história de seu texto, o ~oeta instaura, mesmo que sejapor virtude de um silêncio prolongado, o momento para areflexão sobre a continuidade. Não há história do poema mo­derno sem que esteja presente, como elemento às vezes arris­cado de passagem entre poeta e poema, a parábola dessaconsciência de leitura.

Pode ser, não duvido, que estejamos assistindo aos últi­mos momentos dessa história. O certo, no entanto, é que nãoserá possível compreender o que se seguirá sem uma noção

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1"- ,1 aproximada das transformações registradas por mais de umséculo de renovadas incursões aos meandros de uma lingua­gem - a da poesia - que se sabe em crise.

Sendo assim, a história do poema moderno nada tema ver com a descrição sucessiva de seus apogeus e declínios: éantes uma história que só se desvela no movimento internode passagem de um para outro poema.

A história que se internalizou, sendo mais e não menos

vinculada à experiência concreta da realidade, é aquela que (

as formas possíveis do poema vão permitindo ler por entre asexecuções tangíveis da linguagem (em crise) da poesia.:J

Não será muito difícil encontrar exemplos que marcam

o desprezo de uma grande maioria de poetas modernos - I'L\sobretudo daqueles que abriam os caminhos novos do poema Ú----:com rel~ção à história. Na verdade, sabendo da alta ten-Isão CõITOsivada consciência enquanto sintoma de uma leitu-ra incessante da tradição, aqueles poetas tinham que despre- -..zar a história: para a realização de seus textos, desbravamento

. de seus espaços por entre a espessa "floresta de símbolos",o esquecimento (ainda que impossível, temporário) signifi­cava o modo de cony-erter o enigma em encantamento, parautilizar uma ex.celente distinção de Northrop Frye '. E claroque, no momento seguinte, a força, o peso mesmo, da cons­~ciência é restaurado: a qualidade histórica do poema, a suainevitável leitura palimpsesta, instila o sabor amargo da re­petição e dúvida acerca da originalidad,e.

Por isso, o poeta moderno é aquéle que sabe o que háde instável na condição de encantamento de seu texto, sempredependente de sua condição de enigma. Consciência e histó­ria são vinculadas pelo mesmo processo de intertextualidade:o novo enigma é a resolução transitória de numerosos enig­mas anteriores. Para o poeta moderno, a consciência histórica,' I}sendo basicamente social e de classe, é também de cultura. \.:.)'

Sendo assim, a historicidade do poema não é um dadoque possa ser localizado apenas nas relações entre o poetae as circunstâncias espácio-temporais: o tempo do poema émarcado, agora, pelo grau de seu componente intertextual.

E claro, todavia, que este componente não surge senãocomo uma maneira de responder à forma assumida por aque­las relações. Não se institui a intertextualidade a partir de .um ato de vontade puramente pessoal ou "erudito".

I. Cf. "Charms and Riddles", em Spiritus Mundi. Essays onLiterature, Myth, and Society, Bloomington, Indiana University Press,1976, pp. 123-147.

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Na verdade,' se, por um lado, a força das circunstânciasmodela a posição do yoeta com relação a seu tempo, por ou­tro lado, no entanto, é a própria maneira de questionar a lin­guagem da poesia que configura o tempo do poema.. Mas o que é este tempo senão o momento furtivo deconvergência entre o tempo do poeta e o da linguagem dapoesia?

Neste sentido, (o tempo do poema não existe a não sercomo espaço de relações: entre o poeta e a linguagem, o poe­ma acena para a intemporalidade. J

Mas o que é esta intemporalidade senão a presença, nopoema, de um roteiro intertextual? De fato, ao fazer-se con­sumidor da linguagem da poesia, lendo ao escrever, o poetadesfaz o nó das..circunstâncias apontando para as intérseçõesda cultura. Isto, é preciso acentuar, não significa a intempo­ralidade do poeta: ao criar o espaço para a atualização dacultura, a sua leitura já está, inevitavelmente, marca da pelascircunstâncias que a propiciam.

Na verdade, a própria consciência daquelas interseções,permitindo e limitando o seu roteiro pessoal, obriga o reco­nhecimento de um certo tipo de relações circunstanciais (so­ciais, históricas) que fundam o seu aparecimento. Não háconsciência da cultura ali onde não existe basicamente umquestionamento crítico de suas fundações. No caso do poema,estas são necessariamente as da linguagem que o configura.Só que, e aqui se refaz aquele nó antes desfeito, entre a lin­guagem da poesia e a das circunstâncias (quem disse que asociedade ou a história não possuem uma linguagem?) existeum movimento de implicação incessante, somente discernívelpela leitura da complexidade de suas fundações.

Deste modc, a linguagem do poema que se erige sobrea consciência da historicidade do poeta e da poesia, refazen­do o nó das circunstâncias pela leitura das interseções cultu-

" rais, é marcadamente crítica. Por isso, as relações entre opoeta e a sociedade só podem, a meu ver, serem fisgadas pelodesvendamento de seus respectivos modos de vinculação aosdois tempos descritos: o das circunstâncias e o das interse­ções culturais.

A leitura do poema moderno termina, assim, envolvendoum modo localizado de ler o grau de componente intertex­tual que permite ao poeta responder ao dinamismo das t:ela­ções entre aqueles dois tempos.

Num outro contexto, Gaetan Picon soube registrar o pro­blema escrevendo:

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o movimento poético que, partindo do Simbolismo do fim doséculo, conduz, através de múltiplas transformações, ao movimentosurrealista, é uma consciência antes de ser uma criação. Nunca tantosescritos teóricos acompanharam o movimento da criação. A poesiacontemporânea é uma poesia reflexiva, crítica, uma poesia de cultura,ligada à meditação e à leitura de obras anteriores2•

:É claro que a última oração do primeiro período dotexto não dá conta de toda a complexidade: consciência e cria­ção não se vinculam obedecendo a uma ordem de precedên­cia. Dizendo de outro modo: aquilo que está referido naúltima parte do texto recupera a dependência interna de am­bos os termos. A criação poética não é posterior à consciênciamas esta atua como instrumento, ao mesmo tempo, controla­dor e procriador de novos espaços criativos. Reflexividade ecrítica são sintomas e síndromes culturais, para usar da ter­minologia de E.H. Gombrich 3, que apontam para uma novaconcepção não só da poesia como do poema e do poeta, vin­culados pelo mesmo processo itltertextual de meditação e lei­tura.

Na verdade, a partir de um certo momento - que é bemrazoável situar, como faz Picon, em meados e fins do séculoXIX -, não mais consciência e mas na criação, o que vemresponder com mais propriedade, a meu ver, à complexidadede uma linguagem poética atenta agora para a historicidadede sua condição.

Por outro lado, aquilo que Baudelaire via como "perdada auréola" na configuração de um certo tipo de poeta, quenão era senão ele mesmo, explicita as conseqüências sociaisdeste processo de entranhamento da consciência na criação.Embora as formas de resposta sejam as mais diferentes ­indo desde, por exemplo, a dicção irônica e surda de um La­forgue até as piruetas estilísticas e criativas de um Huidobro,sobretudo o de Altazor, ou a retenção da imagem num JorgeGuillén ou num Wallace Stevens -, não há dúvida, que,seja qual for o poeta usado para exemplo, em todos está sem­pre atuante o subjacente conflito entre a linguagem da poe- 'sia, individualizante e solitária, e a condição do poetà bus­cando interpretar a voz social, como bem viu T.W. Adorno 4.

2. Cf. "Le style de Ia 110uvelle poésie", em Histoire des Litté­ratures, lI, Encyclopédie de Ia Pléiade, Paris, NRF, 1957, p. 212.

3. Cf. "Symptoms and Syndromes", em In search of CulturalHistory, Oxford, Clarendon Press, pp. 32-35.

4. Cf. "Discurso sobre lírica y sociedad", em Notas de litera­tura, Barcelona, Ariel, 1962.

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No entanto, aquilo que singulariza o conflito (pois nãose há de esquecer a sua enorme generalidade com referênciaa toda a história da poesia) é que, entre o indivíduo e a so­ciedade, agora se interpõem os mecanismos de uma consciên­cia crítica operando sobre os fundamentos das relações entreum e outra.

Neste sentido, Octavio Paz soube, com muita argúcia,fisgar a diferença entre o hermetismo de Góngora e o deRimbaud: ali onde a cultura, através das alusões e da tradu­ção histórica, funciona como empecilho à cristalina compreen­são do leitor, caso de Góngora, agora é substituída pelo esfa­celamento da sintaxe e pela dissipação da imagem 5; Nãomais uma poesia de leitura: uma leitura incrustada na poesia,exigindo do leitor um duplo movimento de decifração e re­cifração que aponta para o desaparecimento (parentético) de.um referente encontrável, ainda que pelo esforço da erudição.

Nada mais perigoso, todavia, do que afirmar este pro­cesso como definidor ou caracterizador excludente da poesiamoderna: corre-se o risco de uma interpretação, por assimdizer, metonímica da história, tomando-se um elemento decaracterização possível pelo conjunto dos procedimentos deque se utiliza o poeta moderno.

Este tipo de interpretação - que uso na esteira das.classificações de Hayden White para os modos da leitura his­tórica 6 _ tende a desprezar não somente aquilo que temsido registrado pelas indagações poéticas contemporâneas,em que ressaltam as desenvolvidas por Roman Jakobson, co­

.mo ainda a própria existência de reflexões de poetas, elesmesmos preocupados em apontar, seja no poema, seja no co­mentário marginal, para aquilo que Jakobson chamou de am­bigüização da referencialidade 7.

Não obstante todo o seu estofo histórico e teológico,

quem poderá afirmar, com certeza, o referente de certas pas­sagens de Dante?

Não seria desprezar as tensões que sustentam a própriaexistência da linguagem da poesia, daquilo que, a partir de

5. Cf. "Qué nombra Ia poesia", em Corriente alterna, México,Siglo Veintiuno, 1967.

. 6. Metahistory, The historical imagination in Nineteenth Cen­tury Europe, Baltimore, The lohn Hopkins University Press, 1973.

7. Cf. "Linguistics and Poetics", em THOMAS A. SEBEOK,Style in Language, Cambridge, Massachusetts Institute of Technology,1960, p. 371: "The supremacy of poetic function over referentialfunction does not obliterate the reference but makes it ambiguous".

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~\i Roman Jakobson, costuma-se chamar de função poética dalinguagem, operar-se a dicotomia que manda ver em Danteuma espécie de tradutor (que, inegavelmente, ele tambémfoi) da Súmula tomasiana e em Petrarca um lírico de subje­tividades?

Deste modo, não gostaria que fossse tomado como traçoredutor aquilo que afirmei como conseqüência da forma derelacionamento entre poeta e sociedade.

De fato, o direcionamento assumido pela linguagem dapoesia que está nas distinções entre Góngora e Rimbaud,conforme viu Octavio Paz, não liquida o problema de umaconfiguração possível d~ modernidade da poesia. O que, semdúvida, acrescenta um elemento de grande importância paraesta configuração é a idéia, que está sobretudo em WalterBenjamin, de que aqueles traços de esfacelamento da sintaxee dissipação da imagem, anotados com referência a Rimbaud,são respostas adequadas de uma consciência de criação àsvoltas com as inadequações de relacionamento entre poeta esociedade.

Sendo assim, a resposta à questão-título do texto deOctavio Paz tem que ampliar a reflexão: dizer o que nomeiaa poesia moderna é, necessariamente, definir o modo dúplicede existência do poeta moderno nas suas relàções com a pró­pria linguagem da poesia e com uma sociedade que, laicizan­do aquela, subtraiu do poeta o elemento que lhe dava a con­dição· de intérprete vaticinador e oráculo.,

O enigma criado por Góngora - e ele é dos primeirosa sistematizar no poema a polaridade entre enigma e encan­tamento, conforme a expressão de Northróp Frye - é aindatraduzível no nível das experiências culturais na medida emque as alusões mitológicas, as resistências sintáticas ou mes­mo a fina e mágica exploração da musicalidade não envolvema urgência da própria dissipação do poeta através das ima­gens de negatividade com referência à tradição. Já o enigmacriado por Rimbaud implica na volatização multiforme, querdo poeta enquanto personalidade ("Je est un autre"), quer dopoema enquanto estação infernal nos reinos de uma lingua­gem dessacralizada pela sociedade que consumia Victor Hu­go mas martirizava e condenava Charles Baudelaire.

Neste sentido, por· exemplo, a distinção, numa direçãosemelhante, fixada por J. M. Cohen é muito pobre e não dáconta da complexidade de relações entre poeta e linguagemda poesia, embora o texto seja útil como processo geral decaracterização.

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I:

As obscuridades de Marino e Góngora, de Donne e La Ceppe­de, no século dezessete, podem ser resolvidas mais facilmente do queas de Mallarmé e seus sucessores, porque mesmo as suas mais com­plicadas imagens são extraídas da Bíblia, da ciência e descobertasde seu tempo, ou da mitologia clássica. O poeta contemporâneo, poroutro lado, elabora suas metáforas a partir ou dos incidentes de suaprópria experiência ou de sua leitura ocasional que certamente nãoserão familiares à sua audiência8.

A pobreza do texto está, para mim, na descrição dasduas linhas de procedimento como se decorrentes exclusiva­mente de um ato de vontade puramente individual: como jáse disse, o veio de intertextualidade que percorre o poemamoderno não pode ser deixado à conta da erudição do poeta.Mais ainda: somente pela percepção daquilo que é inadequa­ção na forma de relacionamento entre sociedade e poeta é, ameu ver, possível uma descrição suficientemente problemati­zadora da modernidade na poesia.

Por isso mesmo, parecem-me de enorme importância ostextos que Walter Benjamin escreveu sobre Baudelaire 9. Asua caracterização de Baudelaire como "um poeta lírico naera do alto capitalismo", buscando, com fineza admirável,relacionar os motivos do escritor à existência da cidade deParis enquanto módulo de transformações capitalistas, pos­tula uma rigorosa maneira de apreensão dos impasses comque se tinha de haver a linguagem da poesia em suas relaçõescom um público para quem, segundo Benjamin, a leitura dapoesia lírica apresentava dificuldades lU.

Deixando para o capítulo específico sobre Baudelaire oaproveitamento de algumas das decisivas aproximações deWalter Benjamin, vale a pena, contudo, no contexto destaintrodução, citar o texto em que o crítico descreve metodi­camente a situação de impasse da lírica num certo momentode sua evolução.

Esta situação, o fato, em outras palavras, de que o clima parapoesia lírica tornou-se grandemente inóspito, é atestado por, entreoutras coisas, três fatores. Em primeiro lugar, o poeta lírico cessoude represerttar o poeta per se. Ele não é mais um "menestrel", comoLamartine ainda era; ele tornou-se um representante de um gênero.(Verlaine é um exemplo concreto desta especialização; Rimbaud de­ve previamente ser visto como uma figura esotérica, um poeta quemanteve uma distância ex o//icio entre seu público e sua obra.) Em

8. Poetry o/ this age: 1908-1965, New York, Harper & Row,1966, pp. 31-32.

9. CL Charles Baudelaire: A lyric p0et in the Era o/ HighCapitalism, London, NLB, 1973.

10. CL Iliuminations, New York, Schocken Books, 1969, p. 155.

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segundo lugar, não houve sucesso em escala de massa na poesialírica desde Baudelaire. (A poesia lírica de Victor Hugo foi aindacapaz de lançar poderosas reverberações quando apareceu. Na Ale­manha, o Buch der Lieder de Heine marca um limite.) Como resul­tado, um terceiro fator foi a maior frieza do público mesmo ante apoesia lírica que tinha sido transmitida como parte de sua própriaherança cultural. O 'período em questão data aproximadamente dasegunda metadÇ. do último século".

A noção de público domina as reflexões benjaminianassem que, no entanto, seja estabelecido um esquema redutor.

a público de que trata Walter Benjamin com relação àpoesia moderna é aquele que se introjeta na própria concep­ção da lírica: a transformação em gênero, marcando o graude especialização que agora se configura, abre as portas paraa alegoria, instrumento central nas reflexões de Benjamin.

Pensada como estratégia de articulação entre a lingua­gem da poesia e o leitor, a alegoria atua como elemento aptoa recifrar aquilo que o poema incorpora como leitura da rea­lidade pelo poeta. Criação de um espaço de linguagem cujarealidade é sempre mais e menos do que aquela experimen­tada pelo poeta, o poema transfere o sentido para um outroespaço - aquele que está sob a formulação tradtizível daalegoria.

Mais uma vez, contudo, é preciso estar alerta para asespecificações: tão velha quanto a poesia, a alegoria não podeser tomada como instrumento absoluto de caracterização damodernidade na poesia. a que, sim, ,pode ser consideradocomo traço de definição é a freqüência de utilização do pro­cedimento alegórico, isto é, aquele que aponta para a rever­sibilidade da linguagem da poesia, instaurando o jogo doselementos intertextuais.

Para o poeta moderna, a alegoria deixou de ser umatradução do oculto para ser uma possibilidade de, na lingua­gem do poema, insinuar a consciência de sua historicidade.Dizendo de outro modo: ao recifrar-se como alegoria, o poe­ma moderno recupera, no espaço da linguagem da poesia, osentido da distância entre poeta e público.

A leitura do procedimento alegórico transforma-se, destemodo, numa possibilidade de reconciliação entre a históriacircunstancial (do poeta, do leitor) e historicidade do poemaenquanto realização marcada pelas tensões da consciênciacrítica. São estas, de fato, que exigem e justificam a leiturados procedimentos alegóricos: a consciência ,crítica do leitor

11. Idem, pp. 155-156.

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funciona como desdobramento correlato da duplicidade fun­damental da linguagem do poema.

Por isso mesmo, convém retomar aquilo que, no iníciodestas páginas, se afirmou: deixando de ser um simples con­sumidor do poema, o leitor internaliza-se, para o poeta, comolatência de uma linguagem possível.

Eis, portanto, o paradoxo fundamental de caracterizaçãoda modernidade na poesia: parecendo desprezar o leitor, namedida em que não facilita o relacionamento através de umalinguagem que fosse sempre o eco de uma resposta previa­mente armazenada, o poeta moderno passa, a depender dacumplicidade do leitor na decifração de uma 'linguagem que,dissipada pela consciência, já inclui tanto poeta quanto leitor.

Dissipada pela consciência: a crise da representação,com que se tem de haver o poeta (o artista) moderno, criaa suspeita para com os valores da linguagem, obrigando oartista (o poeta) a assumir a função ambígua de quem co­nhece, pór antecipação, os desvios da referencialidade. .

O desprezo aparente, portanto, não é senão a afirmaçãode uma dependência ainda maior. Enquanto encantamento,o poema é pensado e realizado para o leitor, enquantoenig­ma, todavia, e é o caso do poema moderno, entre leitor epoeta estabelece-se a parceria difícil de quem joga o mesmo

, jogo.

Neste sentido, a "hipocrisia" do possível leitor de Bau­delaire, através da qual o poeta tornava-o seu "semelhante"e "irmão", não é, como uma leitura ingenuamente biográficade Les Fleurs du Mal pode propor, uma recuperação catár­tica da personalidade dissipada; ecoando mesmo' as suas raí­zes etimológicas, "hipocrisia" remete antes para a perspectivabasicamente ambígua de quem desconfia, criticamente, dahierarquia dos valores incorporados pelo poema. O "leitorhipócrita", portanto, convocado nesta condição pelo poeta,não está fora, mas dentro do poema: que a linguagem comque as coisas são enumeradas e descritas seja um espelho ca­paz de refletir, revelando os mecanismos que os símbolosocultam, a própria trajetória do leitor do poema.

Não o reflexo do poeta sobre o leitor - na perspectivalâmpada~espelho, em que o último é recipiente de uma lin­guagem que não é a sua lZ -, mas sim a criação de uma ima-

12. Está claro que uso a expressão no sentido do famoso e belolivro de M. H. ABRAMS, The Mirrar and the Lamp: Romantc Theo­ry and the Critical Tradition, New York, Oxford University Press,1953.

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Ilgem onde o leitor reconhece a sua condição histórica ao re­volver, para poder ouvir o que diz o poeta, a linguagemrefletida de sua própria experiência.

Por outro lado, ao intensificar a dependência entre poe­ma e leitor, radicalizando o modo deste estar presente nosinterstícios de sua linguagem, o poeta moderno acentua a his­toricidade de·seu texto. O objetivo não é mais convencer oleitor de sua experiência metafórica mas antes fazê-Io cúm­plice na decifração do procedimento alegórico através do quala metáfora é também crítica da experiência.

É claro que, deflagrado o processo de leitura, não é pos­sível continuar falando em decifração: a cada instância dopoema, o leitor retém a resposta àquilo que, pela própriasaturação metafórica, abre o caminho para a multiplicidadedas significações.

Por outro lado, no entanto, seria uma ingenuidade pen­sar nesta abertura como indício de uma configuração únicado poema moderno. Nflm a abertura à multiplicidade dassignificações serve como roteiro de definição, nem o poemamoderno se esgota na sua caracterização como instrumentoprocriador de espaços significativos.

Toda a questão, a meu ver, está precisamente na possi­bilidade de uma reflexão que leve em conta, sobretudo, aqualidade de relacionamento que, no poema moderno, assu­mem ambigüidade e univocidade. Quer dizer: a perguntaessencial não é acerca da existência daqueles dois vetoressubstanciais da comunicação lingüística mas acerca do modopelo qual agora eles se relacionam como elementos capazesde deflagrar as significações.

É claro que, pela leitura do que foi dito antes, não édifícil perceber que, para mim, um dos traços fundamentaisdeste relacionamento é a maneira pela qual, fazendo valeras tensões da própria linguagem, o poema moderno instauraa reversibilidade dos significados pela criação de um espaçode leitura intertextua1.

Para usar os termos hoje clássicos de I. A. Richards, asrelações entre tenor e vehicle são intensificadas não mais pormaior ou menor especificidade de um ou de outro, mas peloteor de reflexividade que permite, não obstante o possíveldesgaste imagético, a criação de um espaço metafórico. Di­gamos assim: a "metáfora viva", segundo a expressão de PaulRicoeur 13, é necessariamente aquela que envolve, para o seu

13. Cf. La Métaphore Vive, Paris, Gallimard, 1975.

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contínuo funcionamento, a suspeita crítica sobre a sua ope­racionalidade. Por isso, consumindo poeta e leitor num espa­ço de alusões e reciprocidades, o poema moderno é uma crí­tica da metáfora. O sujeito da linguagem não existe por seudistanciamento com relação àquilo que ele profere mas nomomento em que foi possível suspender - sempre tempora­riamente - a distância: a intensidade subjetiva da lírica mo­derna reponta, sob o disfarce da ironia, no pólo da objetivi­dade da linguagem. Criada a metáfora, irrompe a consciênciade um sujeito que não somente a profere como experimentaa sua viabilidade. Por isso, é possível inverter os termos: aobjetividade reponta na densidade com que o sujeito saturaas relações entre tenor e vehicle. Exemplo:

T&rde dominga tardepacificada com os atos definitivos.Algumas folhas da amendoeira expiram

em degradado vermelho.Outras estão apenas nascendo,verde polido onde a luz estala.O tronco é o mesmoe todas as folhas são a mesma antiga folhaa brotar de seu' fimenquantoroazmentea vida, sem contraste, me destrói14.

Este poema de Carlos Drummond de Andrade, intitu­lado "Janela", pode servir como ilustração (e todas as ilus­trações, neste caso, são empobrecedoras!) do procedimentono poema moderno antes descrito.

Onde está o sujeito da linquagem? Não é de imediatoapreensível. Na verdade, parecendo assumir aquele parti prisdes choses de um Ponge, com um mapeamento distanciadoe rigoroso da realidade objetiva (e visual), desde o primeiroverso, no entanto, é insinuada a tensão entre sujeito e objeto.

Ao adjetivar o substantivo (domingo, dominga), sabia­mente situado entre um mesmo nome, e por aí tirando partidodo mecanismo de repetição central no poema, o poeta sin­gulariza o teor de individualidade no estranhamento grama·tical.

Neste sentido, o segundo verso, funcionando como umaposto do primeiro, é uma redundância instaurada a partirdo próprio símile que o constitui. Todavia, há um elementofundamental de sustentação do verso: a sua organização so-

14. Em Lição de Coisas. Utilizo o texto da edição Aguilar.1974.

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nora é uma variante da aliteração de primeiro verso e, aomesmo tempo, uma ampliação, recuperando o traço repetitivopredominante. -

Mas é, sem dúvida, o contraste violento entre aquiloque, nesta senda, está expresso no primeiro verso e o adje­tivo de atos (':atos definitivos") que concorre para o alarga­mento do modelo de significação que o poema, em seguida,impõe ao leitor.

A oposição entre morte e nascimento dos três versosseguintes, ampliando o contraste, encontra em "degradadovermelho" e "verde polido" aquilo que T. S. Eliot chamariade "objective correlative" para a expressão da passagem en­tre os dois momentos fundamentais: a percepção da cor éuma estratégia de, simultaneamente, aproximar e distanciaro poeta daquilo que lhe serve de tenor na elaboração de umametáfora de repetição. O sujeito, recoberto pelo uso de umalinguagem descritiva, sendo olho, visão, e não fala, repontana própria objetividade da realidade circunstancial apreen­dida.

Por isso, os quatro versos seguintes mal suportam a in­flexão objetiva: na repetição de mesmo e na magistral espa­cialização de folha, seguidos por um verso (o nono do poe­ma) em que a oposição básica é intensificada por sua redu­ção ao mínimo verbal ("a brotar de seu fim"), o poeta deixaentrever a subterrânea força individualizadora que, assimcomo a luz do quinto verso, estala no fim do texto. Mas es­tala num verso de rigorosa construção. De fato: há como queuma equação emotiva na distribuição dos elementos compo­nentes do último verso.

Em primeiro lugar, a palavra vida, fazendo convergiros termos de oposição do texto, é de uma enorme generali­dade que, no entanto, encontra sua singularização no próprioritmo do verso, opondo-se, pela presença das vírgulas, à li­berdade dos anteriores.

Em segundo lugar, o aparecimento do sujeito ("me des­trói"), depois da expressão que condensa todo o movimentode significações do poema ("sem contraste"), ocorre nummomento em que o leitor absorve, para a sua consciência,todo o substrato objetivo do texto. E, enfim, a linguagem daobjetividade que possibilita a maior densidade subjetiva.

O leitor, obrigado pela estrutura do poema a percorreros caminhos ocultos das imagens, não se conserva à margemdo texto: a sua inclusão é parte do exercício da linguàgemem.preendido pelo poeta. E claro que o texto é também uma

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expressão do poeta mas, entre o que o poema diz e a suaconstrução é mantida a necessidade permanente de uma re­cifração por parte do leitor que termina por elidir a subje­tividade. Ou: aquilo que o leitor absorve do texto está,necessariamente, vinculado ao grau de sua decifração emprogresso por onde os elementos subjetivos são transforma­dos na objetividade da leittura.

O poeta, ao ler a realidade através do poema, constróium espaço em que a linguagem não oferece transparênciaimediata: a sua univocidade está limitada pelo jogo possíveldas imagens utilizadas.

Por isso, não basta saber o que o poeta quer dizer comtal ou qual imagem;· as significações do .poema talvez resi­dam precisamente no obscurecimento das relações entre ima­gens e referentes circunstanciais.

No caso do poema utilizado para exemplo, é patente oesforço no sentido de registrar um espaço exterior através doqual seja possível criar as condições para uma expressãoemotiva: mesmo assim, no entanto, ao apreender a circuns­tância do poeta, o leitor é obrigado a reconhecer as tensõesdo trajeto metafórico que permitiu a sua concretização. Estastensões, no caso específico do poema de Drummond, são li­beradas pelo tratamento da metáfora natural (árvore, tronco,folhas) em relação ao dado cultural (sentido do nasGimentoe da morte), tecendo a rede de percepção para o sentimentode destruição que está fixado no último verso.

Não há, de fato, muita novidade nesta tessitura: toma­das em si mesmas (e isto haveria de requerer uma abstraçãopara fora do texto), as relações metafóricas são ecos de umatradição poética que manda ver na expressão da continuidadedos mecanismos vitais um projeto de entrapia. O que fazvibrar as cordas do texto, entretanto; é, pela construção dosseus elementos imagéticos, a qualidade de relacionamento en­tre tenor. e vehicle, isto é, o modo pelo qual é ainda possíveldar validade ao entrelaçamento das metáforas naturais e daexperiência cultural. Por isso mesmo, as pulsações subjetivasque sustentam a aparente objetividade descritiva (adjetiva­ção do nome, escolha das cores), indicando o trabalho derecuperação de uma larga metáfora cultural, propõem a ta­refa do poeta como vinculada ao esforço de "dar um sentidomais puro às palavras da tribo".

Numa palavra, a expressão da subjetividade é retida (e,por aí, intensificada) pela experiência de cultura que implicana consciência reflexiva da linguagem.

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Entre poeta e realidade circunstancial interpõe-se a pró­pria estrutura da linguagem da poesia: suas possibilidadesinovadoras, seus limites de repetição.

O tratamento da metáfora pode ser, assim, um recurso. privilegiado para que se tenha instrumentos de caracterizaçãoda modernidade na poesia.

Na verd;de, sendo basicamente um modo de estabelecera vinculação entre linguagem e realidade, a metáfora possi­bilita a apreensão da qualidade do relacionamento analógicofundamental que caracteriza o poema moderno.

B claro que em seus limites - como é o caso da expe­riência inovadora do Surrealismo - a analogia é praticadapela dissolução dos vínculos realistas, criando-se um proces­so intervalar de referencialidade por onde a linguagem vaidesdobrando uma múltipla possibilidade de "incoerentes"leituras da realidade. Neste caso, todavia, a coerência ressur­ge na própria composição diagramática do texto que buscaabsorver a multiplicidade possível de repostas aos incitamen­tos da realidade.

Talvez o Surrealismo fosse possível sem Freud: certa­mente não o seria sem a consciência moderna dos limites dafabulação metafórica.

B esta consciência que impulsiona a ruptura do proce­dimento analógico (em que se funda toda a tradição poéticaocidental), abrindo o espaço para as experiências de iconiza­ção que, de certa forma, ampliam o roteiro das correspon­dências baudelaireanas.

Daí a recuperação do procedimento alegórico no poemamoderno.

O poema metalingüístico - aquele que faz da lingua­gem do poema a linguagem da poesia - interioriza a alego­ria ao problematizar os fundamentos analógicos da linguagem.

Não deve haver equívoco a este respeito, entretanto:a existência do poema metalingüístico não significa, necessa­riamente, o desaparecimento dos dados da .realidade que in­formam a presença do poeta no mundo; o que, de fato, ocorreé que o poema metalingüístico vem apontar para a precarie­dade das respostas unívocas oferecidas aos tipos de relaçãoentre poeta e realidade. A esta univocidade agora se substituia construção de um texto por onde seja possível apreender,como elemento básico de seu processo de significação, a pró­pria precariedade referida.

O poema moderno institui-sé no horizonte da insignifi­cação justamente porque busca o significado mais radical de

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sua viabilidade com relação aos modos de nomear as circuns­tâncias do poetta. O que há de mais radical do que pôr emxeque aquilo que funda a própria existência da linguagemda poesia, isto é, o mecanismo analógico de vinculação entrepalavra e realidade?_ Pôr em xeque: o poema moderno, ao fazer-se críticoda metáfora, assenta as bases para que os dados da realida­de - aqueles que modelam a existência do poeta no mun­do, circunstâncias da história mas também a historicidade dascircunstâncias, suas formas - sofram o mesmo processo desuspeita e crítica.

A entrada desses dados no poema moderno se faz maisestreita para que, uma vez interiorizada a consciência, sejapossível vislumbrar-se uma saída mais fértil de respostas.

A crítica da metáfora - resultado da metáfora crítica,que é o poema moderno - desfaz os limites entre criação ecrítica.

O envolvimento das relações entre poeta e leitor pelaexistência da convenção das formas poéticas - elemento ca­pital para a compreensão daquilo que J. Tynianov viu, me­lhor do que T. S. Eliot, como substituição de sistemas 15 ­

é, deste modo, uma senda fértil para que se possa avaliar ograu de poeticidade do texto.

Neste sentido, as questões concernentes à tradição comque se tem de haver o poeta moderno, modelando o alcancede seus recuos ou audácias, são repensadas no nível da ela­boração do poema e não apenas como vínculo de relaçãoentre o poema e "o talento individual".

Para o poeta moderno, a tradição não é somente aquiloque é preciso desprezar ou ultrapassar: a existência de uma"tradição do novo", nas palavras d~ Harold Rosenberg 16 en­contra a sua contrapartida naquilo que, invertendo os termos,poder-se-ia chamar de novo na tradição, isto é, a permanente

. recuperação da linguagem da poesia enquanto capaz de ins­taurar um discurso intertextua1.

Muito mais do que uma tarefa arqueológica, a busca.pela tradição, marcada pelo direcionamento crítico da metá­fora moderna, aponta para o esfacelamento de uma perspec­tiva ortodoxamente diacrônica, abrindo (paradoxalmente) o

15. Cf. "De l'évolution littéraire", em TZVETAN TODOROV,Théorie de ia littérature, Paris, Seuil, 1965, pp. 120-137.

16. CL The tradition of the new, New York, Horizon Press,1959 [trad. bras.: A Tradição do Novo, São Paulo, Editora Perspecti­va, 1974].

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caminho para uma sincronização poética que vai encontraro seu melhor correia to no exercício da tradução. Tradição:tradução. Ou: para o poeta moderno, a tradição que inte­ressa é aquela que, traduzida, implica no desbravamento denovas possibilidades de utilização da linguagem da poesia.

Entre o ~to de traduzir e a leitura .da tradição, estabe­lece-se, desta maneira, uma relação substancial de dependên­cia: traduzir já não significa somente recuperar os veios deuma língua diversa mas, sobretudo, criar o espaço para umaleitura convergente dos tempos da linguagem. Tadução dalinguagem e não da língua: a modernidade do poema encon­tra no movimento tradição/tardução mais um elemento decaracterização para a forma de relacionamento entre poetae história.

O poêta moderno· traduz na medida em que o seu textopersegue uma convergência de textos possíveis: a traduçãoé a via de acesso mais interior ao próprio miolo da tradição.Pela tradução, a tradição do novo perde o seu tom repetiti­vo: re-novar significa, então, ler o novo no velho.

Se faltassem outros argumentos para uma afirmação dasrelações entre poeta moderno e história, bastaria a existênciado tradutor no poeta moderno para falar do grau de sua his­toricidade.

Eis, portanto, outro aspecto crucial da tensão da moder­nidade do poema: a recusa da história, que já se viu comotendência generalizada, esfacela-se ante a urgência de umaleitura das formas poéticas que a tradução possibilita.

Por isso mesmo, a ocorrência da tradução não se des­vincula da predominância intertextual: traduzir, para a mo­dernidade do poema, significa assumir a leitura como instru­mento de deflagração do poema.

. O texto moderno - diga-se The Waste Land - tantose oferece à leitura quanto, para a sua elaboração, é, desdeo início, uma leitura: erudita, mítica, religiosa, não impor­ta; a linguagem de Eliot absorve quer Frazer ou Weston,quer o coloquial irônico de alguns simbolistas franceses .

O que interessa é que, por essa leitura diversificada,entre a projeção da personalidade do sujeito (T. S. Eliot) e osignificado mais amplo de época, o poema configura um es­paço em que a criação e a crítica estão vinculadas pela me­táfora intertextua1.

Virando o feitiço contra o feiteiceiro: as relações entrea tradição e o talento individual são anuladas na medida em

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que a tradição discernível no texto é, ela mesma, uma tradu­ção, vale dizer, um ato crítico.

O presente do poema, instalado pela leitura, é mais his­tórico do que as suas bases eruditas desde que a sua existên­cia implica na interdependência entre tradição e tradução.

Sendo assim, a historicidade do poema moderno revela­se, por entre aparentes paradoxos, no princípio da composi­

.ção: são os procedimentos que trazem a marca da história.Em seus casos mais extremados e dramáticos, é pela

paródia, pela montagem, pela citação alusiva, pelo pastiche,que a tradução encontra o seu caminho interior no poemamoderno.

A obra de Ezra Pound já demonstrou que o Canto dopoeta moderno não é a eliminação, num presente situado,dos tempos da linguagem.

O aqui e agora do poema é sempre um ali, ontem, ama­nhã: uma única linguagem que permite a leitura sucessivada multiplicidade das linguagens no espaço e no tempo.

Desde o Baudelaire tradutor de Edgar Poe, pelo menos,que a poesia moderna aponta para a confluência, no poeta,do criador e do crítico.

Não é sem razão, portanto, que Baudelaire, no textomais longo em que tratou do caráter da modernidade, visseno artista plástico Constantin Guys um tradut()r, pelo dese­nho, da diversidade da vida moderna.

O poeta-crítico encontrava no inquieto desenho de C.G. o traço profundo daquilo a que chamou de modernité:a fixação do presente histórico não é compreensível senãoem relação à intemporalidade da arte. Mas, depressa: estanada significa se não está marcada por seu modo específicode conquistar aquele.

Para Baudelaire, ser moderno significava, sobretudo, darao presente histórico a ilusão da intemporalidade. Exemplo:

Le beau est fait d'un éIément éternel, invariabIe, dont Ia quan­tité est excessivement difficile à déterminer, et d'un éIément reIatif,circonstanciel, qui sera. si l'on veut, tour à toU!: ou tout ensembIe,I'époque, Ia mode, Ia morale, Ia passion. Sans ce second éIément, quiest comme l'enveIoppe amusai:J.te, titillante, apéritive, du divin gâteau,Ie premier éIément serait indigestibIe, inappréciabIe, non adapté etnon approprié à Ia nature humaine17.

17. Cf. "Le peintre de Iavie moderne", em Oeuvres Complij­tes, Paris, Ed. CIaude Pichois, II, Gallimard "Bibliotheque de IaPIéiade, 1976, p. 685.

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Ou, mais incisivo:

La modernité, c'est Ie transitoire, Ie fugitif, Ie contingent, Iamoitié de I'art, dont l'autte moitié est l'immuabIe18•

Modernidade: ilusão da intemporalidade. Sem aquelesegundo elemento descrito pelo poeta não haveria, na arte, oestofo de tensãõ fundamental: a possibilidade de aspirar-sepelo primeiro elemento, embora se saiba, desde sempre, queeste é "non adapté et non appropriéà Ia nature humaine".

Ê, portanto, uma ilusão cultivada com todo o rigor daconsciência: a busca do intemporal afunda o artista modernono "transitório", no "fugitivo", e no "contingente" porqueeste - mais do que os artistas anteriores - assume a cons-.ciência nostálgica da eternidade.

Neste sentido, a busca pelo poema é sempre um saltona direção daquilo que está para além de uma forma parti­cular; Mallarmé sabia disso: existem poemas porque nãoexiste o poema. Fragmentos de um texto que a tradição es­queceu e que a tradução procura recuperar. Como o artistamoderno, o poeta e tradutor moderno é um iludido. Ele, noentanto, persegue esta ilusão pois sabe que as inadequaçõesentre a sua condição e a da sociedade negam-lhe o direitodo vaticínio e' da intemporalidade.

A refutação radical da história encontra assim a sua con­trapartida na qualidade não menos radical da historicidadedaquilo que se refuta: é somente no tempQ, parodiando o Eliotdos Four Quartets, que o tempo é anulado.

Retifiquemos, pois, dúvidas anteriores: o poeta modernonão é menos infenso à multiplicidade temporal do que osanteriores - ele é mais consciente de sua diversificação.

Da mesma forma, ou por isso mesmo, ele se imaginaum intérprete do Homem, e não dos homens, pelo cultivo deuma outra ilusão: a da ubIqüidade. Ser de todas as épocas- e somente o sentido mais radical da tradução permite estacrença -'- é também ser de todos os lugares.

Ê claro que o cosmopolitismo não é uma invenção re­cente; para, não falar em ép0cas mais remotas, basta recordaro século:XVIII: a "literatura de viagem" encontrou a suahipérbole na ficção da "literatura mundial" de Goethe.

Mas também é claro que há um abismo entre o sentidoda viagem cosmopolita do homem do século XVIII, ou deseus herdeiros ~xóticos dos inícios do XIX, e aquela outra,

18. Idem, P.1695.

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atormentada, vertiginosa, empreendida por Baudelaire, "ouplus profond du gouffre". A radicalização do espaço, tantoquanto a do tempo, implica a sua negatividade: é pela redu­ção dos espaços múltiplos a um feixe obsessivo da persona­lidade individual que o poeta moderno termina achando ocaminho para a experiência daquilo a que Octavio Paz gostade chamar de otredad )~.

A viagem, para o poeta moderno, não significa apenasconquista cumulativa de novos espaços mas, sobretudo, acriação de um espaço em que seja possível reduzir a multi­plicidade individual da linguagem da poesia aos parâmetroshomogêneos da linguagem do poema.

Viagem: linguagem. Ou, para utilizar a expressão cer­teira de um poeta contemporâneo: via linguagem 20. (Nãoserá possível pensar no poema de Mallarmé como uma radi­calização do tema da viagem baudelairiano?)

Assim como a historicidade do poema moderno encon­tra na ilusão da intemporalidade um correlato preciso parao paradoxo essencial da modenúdade, assim é na ilusão daubiqüidade que a busca pelo poema se converte na ambiçãomaior da destruição de todos os poemas pela instauração dopoema único - convergência de todos os tempos e espaços.

Até mesmo a prática do fragmento como roteiro parauma poética, como está, por exemplo, em Ungaretti, não fazsenão acentuar este pendor do poema moderno: o fragmentoé pensado como fragmento no horizonte de um único poema_ aquele que é possível ler, somente é possível ler, pelaprocura incessante de uma linguagem perdida.

A ilusão da ubiqüidade encontra a sua justificação nahipertrofia do espaço poético: aquele em que todas as lingua­gens não são senão uma só: o poema.

Para a leitura do poema moderno, é fundamental estaperspectiva: o espaço do poema enfeixa os espaços do poetapela operação da intertextualidade. Da mesma forma que osseus tempos particulares são consumidos pelo tempo da lin­guagem da poesia, através de uma leitura intertextual que seintrojeta na composição, assim os espaços circunstanciais sãodependentes da construção intensificadora do espaço da lin-guagem do poema. I

Somente assim, a meu ver, é possível pe1).sarde modocoerente noutro traço fundamental da modernidade do poe-

19. Penso, sobretudo, no que está em "Los Signos en Rotación".20. A expressão é o título de um poema-objeto de Augusto de

Campos.

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ma: a universalidade. De fato, é o princípio da intertextua­lidade que permite a ilusão da ubiqüidade.

Todos os espaços são um só espaço porque a linguagemdo poema, articulando tempos diversos da linguagem da poe­sia, adia o presente e a ele substitui a presença simultâneadas épocas. Algo na direção daquela poética histórica defen­dida por Roma'h Jakobson: uma série de sucessivas descri­ções sincrônicas em que as noções de dinamismo e estatici­dade vinculadas à diacronia e à sincronia, respectivamente,perdem o sentido 21.

A conversa entre textos de poetas diferentes, ou mesmoentre textos de um mesmo poeta, acentua a urgência da bus­ca pela linguagem capaz de articular espaços diversos. To­davia, é preciso assinalar muito claramente, é somente pelaconstrução de um outro espaço específico - aquele de umsó e único poema - que a variabilidade das circunstânciasou das individualidades encontra a sua organização.

Quando se diz, portanto, que o presente é adiado e subs­tituído pela presença das épocas não significa a negação dacircunstância do poema e do poeta: significa, isto sim, a suaampliação intensificadora pela convergência das linguagens.Mesmo porque, como já assinalou Ja'kobson, no texto antesmencionado, alguns autores são e outros não são contempo­râneos não só do poeta mas de sua linguagem.

Assim, por exemplo, Shakespeare, de um lado, e Donne, Mar­vell, Keats e Emily Dickinson, de outro, são consumidos pelo atualmundo poético inglês, enquanto as obras de James Thomson e Long­fellow não pertencem, no momento, aos valores artísticos viáveis22.

Ser contemporâneo da linguagem e não do poeta: asparticularidades de tempo e espaço são integradas - e nãonegadas - pela especificidade do espaço do poema. Nestesentido, as releituras são fundamentais: a recuperação daslinguagens do passado, a sua atualização a partir de um in­teresse contemporâneo (Góngora, os "poetas metafísicos",Sousândrade), pode, e deve sempre, significar mais do queum simples interesse erudito, desde que importam tanto paraa caracterização do universo recuperado quanto daquele querecupera.

Sendo, mais largamente, um problema central das re­centes pesquisas da chamada "estética da recepção" 23, a ques-

21. Ob. cit., p. 350.22. Idem, p. 352.23. Penso, sobretudo, na obra de Hans Robert Jauss.

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\

tão é também básica para uma reflexão acerca da moderni­dade do poema uma vez que se vincula ao traço fundamentalda universalidade. E, digamos assim, o seu aspecto tempo­ral; o outro, aquele que me interessa sobretudo, neste con­texto, é o que se refere ao espaço.

Sem esquecer o que há de ilusório naquela "conquistada ubiqüidade", a que já se referia Paul Valéry em textode 192824, desde que a linguagem do poema é sempre a con­quista de um espaço único pelo desafio aos espaços da lin­guagem - do poeta e das circunstâncias históricas -, amodernidade do poema espelha (talvez fosse melhor resolve)esta ilusão.

Será isto apenas decorrente de nossa maior proximidade?A resposta afirmativa parece-me ingênua. A resposta maiscrítica, e por isso mais radical, parece ser aquela que pro­cure estabelecer, para uma apreensão da modernidade, umquadro de reflexão em que seja possível vincular história epoema. Não simplesmente o texto na história, ou o seu re­verso, mas o modo através do qual o poema tem a sua exis­tência marca da pela consciência de que as linguagens da his­tória - aquelas que forjam a circunstancialidade do poeta- são os limites para os quais aponta sempre a organizaçãoda linguagem do poema.

Por outro lado, não é afirmando somente a vinculaçãoreferida que o poema moderno encontra a sua definição: in­temporalidade e ubiqüidade são os traços de tensão funda­mental, sem os quais não seria possível compreender comoo texto deixa ler a sua historicidade básica. Dizendo de ou­tro modo, a modernidade do poema não é definÍvel a nãoser com relação à maneira pela qual, no espaço do texto,estão, por assim dizer, resolvidos temporariamente (desdeque fundados negativamente) os espaços circunstanciais.

Quando digo negativamente, quero dizer: a linguagem dopoema, sendo aquela em que é restabelecido o desequilíbriofundamental da arbitrariedade entre os nomes e as coisas 25,

encontra a sua realização no momento em que, afirmando os

24. Oeuvres, Il, Paris, NRF, Bibliotheque de Ia Pléiade, 1960,pp. 1284-1287.

25. Para o caso lingüístico, ver as observações fundamentaisde FERDINAND DE SAUSSURE em "Nature du signe linguistique",capítulo do Cours de Linguistique Générale e também as finas e pe­nclt>ante~ análises de ~MILE BENVENISTE, em Problemes de Lin­guistique Générale Paris Gallimard, 1966, pp. 49-55.

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valores da linguagem, retira da nomeação das circunstânciasa certeza da univocidade. Para dizer com Octavio Paz:

EI poeta no es eI que nombra Ias cosas, sino eI que disuelveSL13 nombres, eI que descubre que Ias cosas no tienen nombre y queIos nombres con que Ias llamamos no son suyos. La crítica deI pa­raíso se llama Ienguaje: abolición de Ios nombres propios; Ia críticadeI Ienguaje se IJ.ama poesía: Ios nombres se adeIgazan hasta Iatransparencia, Ia evaporación. En eI primer caso, eI mundo se vlIelveIenguaje; en eI segundo, eI Iengllaje se convierte en mundo. GraciasaI poeta eI mundo se queda sin nombres26.

Neste sentido, e o texto transcrito deixa ver bem o pro­blema desde que não é apenas de um sensível ensaísta masde grande poeta moderno, as relações entre texto e história,vale dizer, entre linguagem do poema e linguagem da história,não são apreensíveis sem que seja afirmado, como princípiofundamental, o modo pelo qual a linguagem da história, des­dobrando-se mesmo em história da linguagem (do poema, dacircunstância), implica na recusa das saturações unÍvocasatravés das quais a nomeação da realidade é, de certa forma,pacificada.

O poeta moderno sabe que a pacificação é impossível:a sua realidade - e a da linguagem - está sempre amea­çada pelo deslizamento constante da referencialidade desdeque o referente do poema não é jamais um dado tranqüilo.

E este deslizamento que impede também a afirmaçãotout court do caráter essencial do poema enquanto linguagem:não aquela que se satisfaz com a nomeação unívoca da cir­cunstância nem aquela que se refugia nos páramos distantesdas percepções individuais. Sabe-se: o poema oscila entre acomunicação da linguagem e a autonomia da arte e, por isso,a sua forma de designação inclui, substancialmente, a tensãoentre os dois pólos.

Por outro lado, é precisamente esta tensão, esta oscila­ção permanente, que confere ao poema o seu grau de histori­cidade: entre a linguagem da comunicação, partilhada portodos os homens, e a autonomia conquistada por sua orga­nização específica, o poema altera o percurso das significa­ções. B esta alteração que instala o poema na história: o quese transmite não é mais produto de uma escolha individual

mas envolve as variações que, de ordem semântica, marcam \a presença da coletividade no texto.

26. El mono gramática, Barcelona, Seix BarraI, 1974, p. 96.

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Desta maneira, a ilusão da ubiqüidade encontra o seucontrário na busca de uma linguagem que, sendo deste oudaquele poema, deixe ver o grau de universalidade da lingua­gem, isto é, a intensidade de uma particularização que re­gistra as circunstâncias do poeta no espaço do texto.

Isto que se pode afirmar como fundamento de toda aatividade poética é, por assim dizer, hipertrofiado no poemamoderno: não existe o poema moderno ali onde não estápresente, como modo básico de elaboração, o intuito de tra­dução universalizante. Quer dizer: o poeta moderno, porforça do movimento básico tradição/tradução, sabe que a sualinguagem não é senão um instante individual dos tempos dalinguagem. Por isso mesmo, o seu espaço está infiltrado pelapermanente passagem de outras linguagens. Assim como o seutempo, sempre a particularização momentânea dos tempos,assim o seu espaço, aquele que o poema constrói a partir dasrelações entre circunstâncias e linguagens, é a incessantetransformação do particular no universal.

Na verdade, a linguagem do poema moderno - a suamodernidade - traz a marca da universalidade porque asilusões da intemporalidade e da ubiqüidade permitem o des­vio da poesia ao poema: o objeto que se constitui como poe­ma somente é apreensível como crítica da poesia, isto é, comoauscultação das viabilidades de passagem entre poesia e poeta.

Deste modo, pode-se dizer que o traço de universali­dade do poema moderno, à diferença daquele de outros mo­mentos históricos, vincula-se à própria existência do poema,enquanto linguagem. Linguagem possível: a crítica da poesia,fundada nos mecanismos de saturação intertextual, permiteao poema moderno a exploração dos limites de designaçãoda realidade.

Quando se afirma, pois, a universalidade como caracte­rística do poema moderno não se está caindo no óbvio (desdeque o perigo existe: todas as épocas assinalam a universali­dade como meta possível): é a própria substância do poemamoderno, vale dizer, a discussão interna de sua viabilidade,que impede o isolamento e arrisca o confronto não menosradical com a universalidade. A afirmação desta, portanto,é dcpendente de uma leitutra crítica empenhada em articularos elcmcntos de composição do poema.

Nfio é uma proposição demagógica: a necessidade de111lI11 1I1ilizlIÇÜO do conceito é determinada pela forma de exis­I~ill'ill do poema moderno.

o que quero dizer é: quando se propõe uma leitura emque o arco espacial inclua tanto Baudelaire quanto Eliot,tanto Mallarmé quanto Octavio Paz ou Carlos Drummondde Andrade, não se está trabalhando no nível das acomoda­ções de uma consciência dilacerada pela diversidade de tem­po e espaço. B claro, por outro lado, que esta consciênciaexiste: não fosse assim, a leitura de um latino-americano, co­mo é o caso, seria igual à de um europeu ou de um norte­americano. A sua leitura é diferente na medida em que é desua situação. que o crítico busca articular as relações entrepoema e história, embora estas sejam detectáveis num trajetouniversal.

Na verdade, transformado pela existência daquela cons­ciência, o crítico atenta para o seu tempo e espaço: a leiturados tempos e espaços da linguagem da poesia é feita de acor­do com um roteiro de dependência entre poema e 'história.

B a história do crítico que é diversa, não o modo derefletir sobre ela, proposto quer pelos poetas escolhidos paraleitura, quer pelos textos críticos preocupados em rastrearaquela dependência.

A marca da universalidade, deste modo, implica numdesafio no.~nível também da reflexão desde que, instalada nopróprio cerne de elaboração do texto, recusa os piedosos,mas perigosos e redutores, esquemas de classificação entrepoemas mais ou menos importantes conforme privilégios na­cionalistas.

Entendida assim a universalidade, compreende-se quea leitura do poema moderno tenha que operar num processode intensa reversibilidade dos valores espaciais e temporais,De Les Fleurs du Mal a Piedra de Sol, ou a Blanco; de umsoneto de Mallarmé a The Waste Land; do Cimetiere Marina A Flor e a Náusea: nada mais homólogo do que o corteentre essa vertiginosa viagem e a própria modernidade dopoema.

Desde o início deste texto que o termo viagem apareciacomo uma espécie de acionador privilegiado da meditação.Acaso, coincidência? Desconfio que não: por sob as artima­nhas da linguagem crítica também se esconde uma razãomenos superficial e translúcida - que é aquela da própriapoesia.

Designação emblemática, figura do movimento, talveza viagem seja a tradução de um discurso situado no tempo eno espaço que procura a sua libertação pela linguagem. Via­jemos,

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