as formigas e os carreiros

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1 Universidade de Lisboa Instituto de Educação As formigas e os carreiros Uma abordagem de inspiração biográfica aos percursos de aprendizagem e à construção identitária de Assistentes Sociais Isabel Cristina da Conceição Passarinho Doutoramento em Educação Especialidade em Formação de Adultos 2012

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Page 1: As formigas e os carreiros

1

Universidade de Lisboa

Instituto de Educação

As formigas e os carreiros

Uma abordagem de inspiração biográfica aos percursos de

aprendizagem e à construção identitária de Assistentes Sociais

Isabel Cristina da Conceição Passarinho

Doutoramento em Educação Especialidade em Formação de Adultos

2012

Page 2: As formigas e os carreiros

2

Universidade de Lisboa

Instituto de Educação

As formigas e os carreiros

Uma abordagem de inspiração biográfica aos percursos de

aprendizagem e à construção identitária de Assistentes Sociais

Isabel Cristina da Conceição Passarinho

Orientado por Professor Doutor Rui Fernando Canário

Doutoramento em Educação

2012

Page 3: As formigas e os carreiros

3

A formiga no carreiro

Vinha em sentido contrário

Caiu ao Tejo

Ao pé dum septuagenário

Lerpou, trepou às tábuas

Que flutuavam nas águas

E do cimo de uma delas

Virou-se ‘pró formigueiro

Mudem de rumo

Já lá vem outro carreiro

A formiga no carreiro

Vinha em sentido diferente

Caiu à rua

No meio de toda a gente

Buliu, abriu as gâmbeas

Para trepar às varandas

E de cima de uma delas

(…)

A formiga no carreiro

Andava à roda da vida

Caiu em cima

Duma espinhela caída

Furou, furou à brava

Numa cova que ali estava

E do cimo de uma delas

Virou-se ‘pró formigueiro

Mudem de rumo

Já lá vem outro carreiro

Zeca Afonso, Álbum «Venham mais

cinco» (1973)

Page 4: As formigas e os carreiros

4

À memória dos meus pais José e Ema,

que me amaram muito e cujas vidas

foram exemplos de dignidade e

sabedoria, que nunca esquecerei.

Aos meus filhos, Nuno e Gonçalo,

homens da minha vida que inspiram

futuros.

À Sónia pelos anos de inestimável

apoio.

Aos meus amigos e parentes

significativos por serem como são, e

pela amizade e suporte, mesmo em

ciclos de vida onde estive menos

disponível.

Aos colegas e amigos do trabalho e

da profissão por toda a inspiração,

compreensão e disponibilidade.

A todos que procuram interrogar os

«rumos» e «carreiros» da vida e que

durante estes anos me ensinaram que

pensar e fazer em ‘conjunto’ é uma boa

maneira de encontrar soluções.

Page 5: As formigas e os carreiros

5

AGRADECIMENTOS

Fazer uma tese não se traduz apenas no «produto» final. O processo de

elaboração deste trabalho constituiu um marco de formação e aprendizagem

que, pela sua exigência, complexidade e morosidade, cruzou a minha vida com

muitas outras, numa mistura de tempos, espaços e «formas de pensar».

Destaco neste processo, motivações e circunstâncias que permitiram a sua

finalização: as primeiras, ligadas à curiosidade pelos processos de produção de

conhecimento, à reflexividade e questionamento pessoal, à visibilidade que

procurei dar às trajectórias e representações dos assistentes sociais que

colaboraram neste estudo e ao contributo que pretendi dar à profissão; as

segundas, que constituíram a oportunidade e a possibilidade desta trajectória.

Em conjunto, todas constituíram reforços positivos sobretudo, nas alturas mais

solitárias desta trajectória, em que foi decisiva a colaboração e incentivo de

outros. Importa, assim, expressar um agradecimento sincero a todos os que

colaboraram e possibilitaram este processo e este «resultado».

Gostaria, de agradecer ao meu orientador – Professor Doutor Rui Canário – pela sua

sabedoria e humanidade, pela confiança que depositou em mim, pelo incentivo e

estímulo na procura de respostas às minhas dificuldades e por ter aceite os meus

períodos mais confusos e caóticos.

A nível institucional, agradeço à Câmara Municipal de Cascais, em especial à

autarca responsável, aos dirigentes e colegas do Departamento de Educação,

a oportunidade de compatibilizar este processo com o desempenho das minhas

funções; destaco também a importância das perguntas sobre ‘o que andava a

fazer’ – ao longo do tempo, as respostas que fui dando permitiram-me

importantes tomadas de consciência sobre as minhas narrativas e sobre o

próprio processo de pesquisa e aprendizagem.

Aos assistentes sociais que foram sujeitos neste trabalho e sem os quais esta

tese não seria possível, um imenso obrigado pela sua disponibilidade para

Page 6: As formigas e os carreiros

6

conversar sobre a profissão e a vida e por me terem confiado as suas reflexões

sobre o Serviço Social.

Estou muitíssimo grata aos colegas e/ou amigos que me apoiaram de perto

(com quem me cruzei nos meus espaços profissionais e não-profissionais),

através das conversas e partilhas que tivemos; entre eles gostaria de destacar

a Irene Santos (que leu, interrogou, comentou, reviu o texto e me deu um

suporte inestimável), a Miriam Sampaio (que deu uma colaboração fundamental nas

questões da forma), a Fernanda Cristino (que ajudou na revisão e a manter ‘a cabeça

no lugar’), a Sónia Martins (que me motivou e apoiou em todas as fases deste longo

processo) e a Manuela Correia (que, na recta final, me possibilitou condições de

trabalho favoráveis para finalizar a tese) – a todos (os que nomeei e os que não

nomeei) faço um agradecimento especial.

Não esqueço também a importância e a gratidão que tenho para com a minha

rede de afectos, a que chamo carinhosamente «o meu centro comunitário» e

que é constituída por pessoas que se gostam, cuidam e estão disponíveis, nos

bons e nos maus momentos.

Um último agradecimento especial «aos de casa», aos que ocupam uma

posição central na minha vida e «bem-querer» e a quem, muitas vezes, não

dedico o tempo e a atenção que merecem.

Para todos e todas, o meu muito obrigado!

Page 7: As formigas e os carreiros

7

RESUMO

Este trabalho de investigação resulta de um caminho de “prática-investigadora”

que pretende aprofundar a reflexão sobre a profissão de Assistente Social

numa perspectiva a partir de dentro do campo e no entendimento de que a

profissão se constrói e se aprende, no diálogo entre a sua própria explicitação

e as teorias sobre o mundo. A área científica em que se insere é uma das suas

particularidades, já que foi desenvolvido no campo da Educação/Formação de

Adultos e tem como eixo central o interesse pela compreensão dos percursos

formativos e de construção identitária dos assistentes sociais.

A análise realizada parte do pressuposto de que, num tempo de ultra-

racionalidade instrumental, o conceito de profissão está em mutação; e, no

caso, a profissionalidade dos assistentes sociais não será excepção, pela sua

prática interventiva conotada com as pessoas em situação de pobreza e/ou

vulnerabilidade social, «colada» às instituições e ao Estado-providência e

estigmatizada como «placebo» do Capitalismo. Contudo, será importante

pontuar que o trabalho social, com a complexidade, multidimensionalidade e

transversalidade que lhe estão associadas, constitui um campo próprio onde

exercem genericamente os chamados trabalhadores sociais e, de entre eles,

@s assistentes sociais como grupo profissional específico.

Estes profissionais partilham as problemáticas, os contextos e os riscos e são

actores de «inclusão e exclusão» numa sociedade que tende a desvalorizar os

seus fazeres e saberes, tal como o faz com as populações com que trabalham.

Por um lado, branqueando a profissionalização e a profissionalidade numa

categoria genérica de ‘técnicos superiores’ e, por outro, exigindo uma prática

baseada em ‘evidências’ prescritas e quantificáveis que pouco têm a ver com o

seu ‘Know-how’ específico e/ou com as respostas às necessidades das

pessoas. Em simultâneo, os próprios profissionais, por vezes, não se

descrevem nem se reconhecem como actores e autores ao serviço de uma

cidadania democrática.

Page 8: As formigas e os carreiros

8

A presente tese analisa e reflecte o Serviço Social, como uma profissão e uma

disciplina que procuram novas legitimidades entre velhas dicotomias, num

processo de reflexão emancipatória que equacione a construção profissional,

entre as heranças e dinâmicas de um percurso histórico e o imperativo de

explicitar a profissionalidade. Neste processo de explicitação, são questionados

aspectos como a «colonização disciplinar», a adaptabilidade e a neutralidade

da profissão, entre outros, que dificultam espaços de autonomia e produção de

conhecimento e onde @s assistentes sociais parecem cada vez mais

confinados a espaços de exercício sujeitos à ‘funcionalização’ e à ‘evidência’.

Nesta conjuntura, a realização de entrevistas de inspiração biográfica a

dezanove assistentes sociais e a análise das suas narrativas permitiu dar-lhes

voz e esboçar tipologias de percursos de aprendizagem da profissão e

tipologias de formas identitárias. O material empírico recolhido durante a

pesquisa revela uma grande diversidade, mas também contradições e tensões

presentes no campo profissional, a que não serão estranhas as relações de

força e poder dentro e fora do campo científico e profissional.

A passagem do comunitário ao societário implica uma modificação da própria

estrutura da identidade pessoal, o aparecimento de novas formas de

subjectividade e a conversão identitária que faz passar os indivíduos de

membros submissos a sujeitos actores – o que, embora os torne muito mais

incertos e expostos, pode fazer emergir oportunidades de transformação.

O Serviço Social, na medida em que se afasta da identidade que o

estigmatizou como mediador de um pensamento conformista, vai recuperando

diversidade interna e oportunidades de construção de novas formas de

participação nos processos de mudança social. E ao equacionar a necessidade

de produzir conhecimento sobre os processos pelos quais se aprendem e se

constroem saberes, numa tentativa de desocultar e nomear o que se vive e

aquilo a que se atribui significado nestes contextos de intervenção, pode

restaurar-se um espaço público de profissionalidade como lugar de visibilidade

de si e do outro, pela acção e pela palavra. E também de identidades co –

construídas na interacção com muitos «outros».

Palavras-chave: profissão, autoformação, percursos de aprendizagem, formas

identitárias, Serviço Social

Page 9: As formigas e os carreiros

9

RESUME

This investigation work comes from a “practical-way” that pretends to deepen

the reflexion about the social worker job in a perspective from inside the field

and in the knowledge that the profession is build and learned in the dialogue

between it’s own explication and the theories about the world. The scientific

area in which is inserted it’s one of his particularities, since it was developed in

the field of Education/Adults Formation and has as central axis the interest for

the comprehension of the formative routes and the construction of the identity of

the social workers.

The analysis held goes from the assumption that in an ultra instrumental

rational time, the concept of the profession is changing; and in the case that the

professionalism of the social workers won’t be an exception, by his

interventional practice connoted with the people in a poverty situation and/or

social vulnerability «glued» to the institutions and the welfare state and

stigmatized as capitalism placebo. However, it will be important punctuate that

the social work, with the complexity, multidimensionality and transversality that

are associated to it, constitutes an own field where exercise generically the so

called social workers as a specific professional group.

This professionals share the problematics, the contexts and the risks and are

actors of “Inclusion and exclusion” in a society that tends to overestimate their

doings and knowledge, just as it does with the populations that they work with.

In one way, bleaching the professionalization and the professionalism in a

generic category of “superior technicals” and in another way, demanding a

evidence practice based, prescribed and quantified, what have little to do with

their specific “know-how” and/or with the answers to the people necessities.

Simultaneously, the own professionals, sometimes, don’t describe neither

recognize themselves has actors and authors in the service of a democratic

citizenship.

The present thesis analyses and reflects the Social Work, as a profession and a

discipline that looks for new legitimacy between old dichotomies, in process of

Page 10: As formigas e os carreiros

10

emancipatory reflexion that balances the professional construction between the

inheritance and dynamic of an historic process and the imperative of explaining

the professionalism. In this process of explanation, some aspects are

questioned, such as the “disciplinary colonization”, the adaptability and

neutrality of the profession, among others, which difficult spaces of autonomy

and production of knowledge, and where the social workers look even more

confined to spaces of exercise subjected to “functionalization” and to

“evidence”.

In this conjuncture, the realization of interviews of biographic inspiration to

nineteen social workers and the analysis of their stories allowed giving them

voice and identify typologies of ways of learning the profession and typologies

of identity forms. The empiric material collected during the research reveals a

huge diversity, but also contradictions and tensions present in the professional

field, to which are not strange the relations of strength and power inside and

outside the scientific and professional field.

The passage from the community to the corporate implicates a modification of

it’s own structure of personal identity, the appearing of new ways of subjectivity

and the identity conversion which makes move the individual of submissive

members to actors subject – which, though makes them more uncertain and

exposed, can make emerge transformation opportunities.

The social service, in the way that goes further away from the identity that

stigmatized it has a mediator of a conformist thinking, goes recovering intern

diversity and the opportunities of constructing new ways of participating in the

processes of social changing. And equating the necessity of producing

knowledge over the processes by which learn and builds knowledge, in a way of

uncover and nominate what is living and what we give significance in this

intervention contexts, can restore a public space of professionalism as a place

of visibility of self and other, by the action on the word; and also of identities co-

build in the interaction with “others”.

Key words: Profession, self-training, learning pathways, identity forms, social

work

Page 11: As formigas e os carreiros

11

ÍNDICE

Agradecimentos…………………………………………………………………. 5

Resumo ............................................................................................................ .7

Introdução ....................................................................................................... 14

A origem deste projecto ............................................................................. 18

O Objecto de Estudo.................................................................................. 24

Uma determinada perspetiva ..................................................................... 29

A entrada pela Educação ........................................................................... 32

Capítulo 1 - Serviço Social: uma profissão e uma disciplina que procuram

novas legitimidades ....................................................................................... 37

1.1. . Entre a (s) Ideologia (s), a (s) Prática (s), a (s) Técnica (s) e a (s) Ciência

(s) .................................................................................................................. 38

1.2.Sistema identitário e Sistema simbólico na profissionalidade ................. 45

1.3.Os espaços e os tempos da aprendizagem da profissão ........................ 54

1.4.A formação contínua e a produção de conhecimento ............................. 70

Capítulo 2 - A (des) construção profissional do Serviço Social ................ 78

2.1.Heranças e Dinâmicas de um percurso histórico .................................... 80

A institucionalização e a profissionalização .............................................. 85

O referencial do Capitalismo e da Pobreza ………………………………..89

A legitimação da profissão e a «bandeira» do bem-estar social ................ 97

A Participação, a Mudança e os Movimentos de reconceptualização ..... 105

Os Direitos Humanos e a Justiça Social numa época de globalização

111

2.2.Uma Profissão a Explicitar .................................................................... 120

Revisitar a profissão ................................................................................ 124

O que significa «ser» profissional? .......................................................... 136

De que falamos quando falamos do «social»? ........................................ 148

Ambiguidades de uma profissão que se adapta ...................................... 156

(Re) Situar velhos e novos problemas ..................................................... 165

Da «descolonização disciplinar» à Transdisciplinaridade ........................ 169

A neutralidade técnica em debate ........................................................... 175

Capítulo 3 – O lugar do «não-saber» face ao saber dos outros ............... 180

3.1.O conhecimento pertinente ................................................................... 184

- Formar assistentes sociais .................................................................... 189

Page 12: As formigas e os carreiros

12

- As competências ................................................................................... 195

- A articulação e a produção de saberes ................................................. 199

3.2.Os processos de Construção Identitária ............................................... 205

- Formas identitárias ................................................................................ 210

- Identidades profissionais em tempos de incerteza ................................ 216

3.3.Autoformação ........................................................................................ 223

- As abordagens biográficas .................................................................... 226

- A dialéctica entre explicação e compreensão ........................................ 230

- Reflexões sobre «compromissos» ......................................................... 234

Capítulo 4 - Metodologia - Percurso de investigação ............................... 237

4.1.Questão de partida e questões orientadoras ……………………………238

4.2. Opções e Estratégia metodológica ...................................................... 245

- Da pertença às Ciências da Educação ………… 248

4.3. Desenho da investigação de inspiração biográfica ………….……….253

- Os tempos e as «fases» das diferentes «conversas»……………………….258

4.4. A análise dos dados …………………………………………………………261

Capítulo 5 - A (s) voz (es) dos actores da profissão ................................. 263

5.1. Trajetórias profissionais e biográficas………………………………….......262

- @s seniores………………………………………………………………………..265

- Os do tempo da ‘luta’: Inês e António ......................................................... 297

- Os primeiros doutores………………………………………………….………..312

- Os mais novos ……………………………………………………….………….348

5.2. Percursos de Aprendizagem da profissão…………………………………375

5.3. Sobre a importância de prosseguir com uma análise temática…………..413

Capítulo 6 - Formas identitárias: Esboço de uma tipologia…………….. 415

- Desafios da construção tipológica……………………………………………..418

6.1. «Ecossistemas protegidos»…………………………………………………..421

- A relação dos profissionais com o sujeito coletivo……………………………422

a) Modos de entender o estatuto socio profissional……………………………423

b) Modos de entender o relacionamento com a organização coletiva……….426

Page 13: As formigas e os carreiros

13

c) Modos de entender a abertura e o fechamento social da profissão……….433

6.2. «Trilhos seguros»……………………………………………………………..439

- A relação de aprendizagem da profissão com 'o que se sabe'………………440

a) Em relação aos saberes de experiência……………………………….…….443

b) Em relação aos saberes de organização e procedimento…………….…...448

c) Em relação aos saberes temáticos e especializados……………………....454

d) Em relação aos saberes de explicitação……………………………………..459

6.3. «Abrir Caminhos»……………………………………………………………..464

- A relação de 'quem se é' com a aprendizagem da profissão……………….468

a) @s tecelãs/ões de histórias……………………………………………………469

b) @s semeadores do estado social……………………………………………..476

c) @s hibridas/os……………………………………………………………………480

6.4. «Inventar Carreiros»…………………………………………………………..485

- A relação com a heterogeneidade e a incerteza………………………………487

a) Processos de resistência e experimentação social………..……….…….…490

b) A construção de novo vocabulário e novos «palcos» para a profissionalidade

………………………………………………………………………………………493

Síntese conclusiva…………………………………………………………………497

Limitações do Estudo e investigações futuras………………………………….512

Bibliografia………………………………………………………………………….514

Anexos……………………………………………………………………………….531

Page 14: As formigas e os carreiros

14

INTRODUÇÃO

Este relatório pretende dar conta do trabalho realizado durante os anos em que

me propus fazer o Doutoramento no Ramo da Educação no Instituto de

Educação, da Universidade de Lisboa.

Para este projecto de investigação, o objecto de estudo foi/é a própria

profissão, na procura de entender os processos de formação dos assistentes

sociais, identificar as aprendizagens realizadas nos seus percursos

profissionais e os significados que lhes atribuem e os processos das suas

construções identitárias, a partir de uma análise de inspiração biográfica.

Na impossibilidade de suspender a vida para dar conta do processo formativo,

diria que este tempo foi marcado pelo trabalho e pelo gosto, pela curiosidade e

pela inquietação mas também pela complexidade, pelas dúvidas e por

movimentos de fluidez e intermitência de tempos, espaços e investimento.

A área científica em que se insere este trabalho é talvez a primeira

particularidade, já que foi desenvolvido no campo da Educação/Formação de

Adultos, e tem como eixo central o interesse pela compreensão dos percursos

formativos e de construção identitária dos Assistentes Sociais.

Esta abordagem realizada a partir de uma perspectiva fenomenológica onde

também se cruzam a minha realidade subjectiva e o contexto histórico, social e

cultural onde me inscrevo, liga-se com um objecto construído na área do

Serviço Social e mobiliza muitos conceitos de outras áreas científicas. De uma

forma sintética, diria que esta investigação procura conhecer e produzir

conhecimento sobre a formação (com especial enfoque na autoformação) de

Assistentes Sociais, procurando identificar os seus percursos profissionais, os

significados que lhes atribuem e quais os processos das suas construções

identitárias, a partir de uma análise de inspiração biográfica.

A escolha, dentro dos adultos possíveis, de Assistentes Sociais, prendeu-se

com razões endógenas (porque sendo pares talvez possa compreender e

compreender-me melhor, num processo que também pretende ser de

autoformação) e razões exógenas – porque, numa altura de morte anunciada

do Estado-providência e das respectivas políticas, com consequências

Page 15: As formigas e os carreiros

15

nomeadamente ao nível das práticas, do emprego e do trabalho disponível

para estes profissionais, procura-se entender que «profissão» é esta que,

apesar de tudo, construiu uma história, diversificou-se e equaciona actualmente

possibilidades de futuro, para além da utopia impossível de humanizar um

capitalismo, cada vez menos humanizável.

Neste caminho de “prática-investigadora” (no conceito de Berger, 1992:36)

parto do princípio que todo o conhecimento é autobiográfico e que, tenho

percorrido tempos e espaços onde se misturam informações, referências,

acontecimentos, dúvidas e sentimentos (muitas vezes sem conseguir fazer

deles uma leitura clara ou encontrar sentidos), procuro com este trabalho de

investigação compreender, por aproximações sucessivas, os percursos

profissionais e de formação. Boaventura Sousa Santos, refere que “No

paradigma emergente, o carácter autobiográfico e auto-referencial da ciência é

plenamente assumido” (1991a:53) o que suporta, de certa forma, este

posicionamento.

De igual modo, procurei percepcionar as representações e a(s) identidade(s)

como dimensões interactivas, dinâmicas e estruturantes da actividade

profissional, entendendo que as actividades profissionais se traduzem num

“conjunto ordenado de práticas, de representações e de identidades capazes

de se adaptarem aos constrangimentos da organização e de se auto regularem

sob a pressão dos atores coletivos” (Blin, 1997:160). Ao mesmo tempo que

procuro identificar as representações da profissão e dos contextos de trabalho,

procuro aprofundar um entendimento crítico da profissão em termos macro,

contribuindo para a reflexão sobre a sua situação, no contexto da actual

organização do trabalho.

Conceber os assistentes sociais como sujeitos passou por colocá-los no lugar

central da sua própria formação, num entendimento próximo do Movimento de

Educação Permanente, que defende que todos os espaços/tempos são

potencialmente formativos. Procurar entender as suas perspectivas sobre os

seus próprios processos de formação e de construção identitária, talvez

contribua para conhecer melhor que quadros de referência utilizam quando

intervêm com as respectivas populações e como justificam o seu trabalho -

para si, para os outros e para a sociedade em geral.

Page 16: As formigas e os carreiros

16

Actualmente e, entendendo ainda a questão da política social, enquanto

política pública de co-responsabilização estatal, tem-se assistido a uma

progressiva erosão do Estado de bem-estar, fundado originalmente em direitos

sociais de carácter universal.

Vivem-se hoje tempos de incerteza, de crise generalizada nos países ditos

desenvolvidos e de manipulação dos actores políticos pelo poder financeiro

sem rosto nem país. Uma incerteza que é também

“…crise de um modelo de sociedade, crise essa que, só a lógica da aniquilação de uma das conquistas civilizatórias mais importantes da humanidade – a responsabilidade solidária e colectiva do Estado face à protecção dos cidadãos – pode ajudar a explicar os propósitos de desmantelamento indiscriminado do Estado-providência” (Rodrigues, 1999: 20).

Se a persistência, renovação e alargamento de fenómenos de pobreza, de

desigualdades sociais e de cada vez maior vulnerabilidade social, questiona as

medidas redistributivas e a eficácia das políticas sociais, o problema da

pobreza parece residir, além de mais, na repartição primária do rendimento, da

propriedade e do poder - o que remete este fenómeno para a política

económica e para os baixos salários, para além do desemprego e da

precariedade contratual (Costa, 2008:197).

Apesar do «luto» que muitos de nós fazemos pelo «desmantelamento do

Estado-providência», admite-se na linha deste autor que a via das políticas

sociais é claramente insuficiente para quebrar o ciclo persistente da pobreza e

da vulnerabilidade social.

Na crise de modelo de sociedade associada a este «desmantelamento», a

privatização e a desregulação têm sido meios de ajustamento estrutural do

Estado à economia global – um processo simultâneo de globalização e

localização com consequências ao nível da perda de legitimidade e autoridade

política e com a erosão do projecto de modernidade, onde a educação como

um todo perde a sua orientação (Finger e Asún, 2003:106). Esta realidade (a

que alguns autores chamam «pós-moderna» e outros de «modernidade

tardia») tem no individualismo uma característica marcante, quer para a prática

da educação de adultos, quer para a acção social.

Neste entendimento, não resisti a associar o conceito de “não-lugares” à

possibilidade de que a profissão de Assistente Social se torne uma “não-

Page 17: As formigas e os carreiros

17

profissão”, tendo-se apenas a si própria por referência, sem atender ao

compromisso com uma dimensão ética, histórica e política e com um modelo

de sociedade comprometido com os princípios de direitos humanos e de justiça

social. Marc Augé refere em torno deste conceito de «não-lugares» a metáfora

da viagem que me é útil neste processo de investigação-aprendizagem:

“A viagem constrói uma relação fictícia entre o olhar e a paisagem. E, se chamamos «espaço» à prática dos lugares que define especificamente a viagem, devemos ainda acrescentar que há espaços em que o indivíduo se experimenta como espectador sem que a natureza do espectáculo para ele conte realmente. Como se a posição de espectador constituísse o essencial do espectáculo, como se, em última análise, o espectador (...) fosse para si próprio o seu próprio espectáculo. (...) O espaço do viajante será assim o arquétipo do não-lugar. (...) estamos em condições de redescobrir a evocação profética de espaços onde nem a identidade, nem a relação, nem a história fazem verdadeiramente sentido, em que a solidão se experimenta como superação ou esvaziamento da individualidade, em que só o movimento das imagens deixa antever por instantes àquele que as vê fugir e que as olha a hipótese de um passado e a possibilidade de um futuro” (Augé, 2006:74).

Nesta perspectiva que arrisco a definir como estando na tensão entre

espectadora e actor/autora destaco a necessidade que as pessoas continuam

a ter de atribuir sentido,

“…dar um sentido ao mundo, e não a certa aldeia ou a certa linhagem. Esta necessidade de dar um sentido ao presente, senão ao passado, é a contrapartida da superabundância de acontecimentos que corresponde a uma situação que poderíamos dizer de “sobre modernidade”, a fim de darmos conta da sua modalidade essencial: o excesso” (Augé, 2006:28,29).

Este “excesso” de que fala Augé, com teorias, acontecimentos, «coisas»,

perspectivas, conflitos, fontes de informação, nas suas diferentes modalidades,

acentua paradoxos e institui a complexidade e a imprevisibilidade.

Por sua vez, Sousa Santos (2005:21) refere que o excesso de teorias em

desequilíbrio sobre o que ainda está, constitui em simultâneo um deficit teórico

e um grande desafio. Em todo o processo senti o cruzamento desse deficit e

desse desafio mas procurei deixar-me interrogar pelos contributos dos vários

autores de muitos campos teóricos, pela recolha empírica e pelas narrativas

das pessoas entrevistadas.

A estrutura deste trabalho está subdividida em seis capítulos: no primeiro

aborda-se o Serviço Social, enquanto profissão e disciplina que procuram

novas legitimidades e desenvolvem-se as questões teóricas que norteram este

Page 18: As formigas e os carreiros

18

processo de investigação e a respectiva pesquisa; o segundo capítulo prentede

abordar e (des) construção profissional do Serviço Social, entre as heranças e

as dinâmicas do seu percurso histórico e o interesse em revisitar a profissão,

em confronto com um questionamento de algumas questões consideradas

centrais e no entendido de que esse questionamento constitui simultaneamente

um campo de possibilidades de futuro(s); no capítulo três, intitulado “O lugar do

«não-saber» face ao saber dos outros”, desenvolvem-se perspectivas de

relação com o conhecimento e os saberes, desenvolvendo três aspectos,

respectivamente sobre o conhecimento pertinente, os processos de construção

identitária e a autoformação; no quarto capítulo explicita-se o caminho

metodológico utilizado neste percurso de investigação, pontuando as opções e

a estratégia metodológica, a questão de partida e as questões orientadoras, o

desenho da investigação e a pesquisa empírica; no quinto capítulo, é dada

centralidade à(s) voz(es) dos actores da profissão em resultado da análise e

interpretação do material empírico recolhido e no sexto e último capítulo,

esboçam-se tipologias dos percursos profissionais e das formas identitárias,

fazem-se as conclusões da pesquisa e as pistas de investigação futura.

A ORIGEM DESTE PROJECTO

Neste processo de formação e de investigação, ao procurar entender como os

assistentes sociais se formam ao longo da sua vida, e em particular ao longo

da sua trajectória profissional, parti do pressuposto que uma profissão se

aprende, exercendo.

Privilegiei o contexto não formal e informal das relações de trabalho com os

vários intervenientes dos processos de intervenção social, para procurar

desocultar os processos de aprendizagem destes adultos, através da

experiência reflectida e no contacto com muitos outros.

Neste âmbito, achei necessário explicitar o lugar e a perspectiva de quem

investiga, pois como diz Remi Hess (2005), defender uma tese significa

defender um ponto de vista.

No caso, o meu lugar é o de uma mulher que já passou os 50 anos, de origem

social modesta, filha única de uma família rural oriunda da zona oeste que

Page 19: As formigas e os carreiros

19

migrou para os arredores de Lisboa à procura de melhores oportunidades de

vida. Fiz o meu percurso escolar com gosto e sem incidentes, mas com a

consciência de que a escola era uma via privilegiada para a mobilidade social

ascendente e que o conhecimento tinha uma função emancipadora.

Não tive uma juventude politizada (tinha 14 anos no 25 de Abril de 1974) e,

passei pelo período revolucionário com preocupações mais «sociais» do que

«políticas». Desta época, lembro sobretudo a nível familiar, as discussões

político/partidárias que aqueceram os ânimos dos membros da família mais

chegada com quem compartilhávamos os momentos de lazer e festividade e o

seu consequente afastamento e o envolvimento do meu pai no partido

comunista (um envolvido do qual não se falava em casa e era apenas inferido

por meias conversas, pelas discussões familiares e pelos livros que o meu pai

lia). A nível do contexto onde vivia, recordo o tempo das RGA/Reuniões Gerais

de Alunos no Liceu de Oeiras a que assisti sem grande entusiasmo, a “balda”

no ensino que apanhou sobretudo os colegas que estavam a terminar o

secundário e as manifestações em Caxias (lugar onde creci e existe a prisão

homónima) a propósito da libertação dos presos políticos.

Uma recordação desta época que jamais esquecerei foi uma exploração que

eu e uma série de outros miúdos fizemos às celas subterrâneas da prisão de

Caxias onde estiveram os presos políticos, e que entretanto foram

desactivadas.

Nunca esquecerei as condições dessas celas cujo acesso era feito por um

fosso dentro das instalações prisionais a que tivemos acesso porque alguns

dos meus amigos eram filhos de guardas prisionais. As celas eram autênticas

grutas escavadas no monte até ao nível de um lençol de água subterrâneo,

distribuídas por corredores imensos, com chão de terra húmida e paredes de

pedra escritas e pintadas, onde não entrava a luz e a humidade era muito

elevada. Imaginar que tinham estado ali pessoas a viver anos seguidos, presas

pelas suas convicções e privadas das mais elementares condições de vida, foi

algo que me impressionou e me provocou uma indignação que me acompanha

até aos dias de hoje.

Em termos culturais as minhas referências eram muito «misturadas» e, por

exemplo, na música, tanto ouvia e gostava dos músicos de intervenção

Page 20: As formigas e os carreiros

20

portugueses, como da música popular portuguesa ou dos artistas franceses,

ingleses e italianos que estavam na moda.

A opção por Serviço Social surgiu no final do ensino secundário (1976), em

resultado dos testes psicotécnicos que começavam a ser correntes na época -

das três possibilidades apresentadas: Direito, Artes e Serviço Social, optei por

exclusão de partes; nas Artes, não tinha certeza de encontrar sustento nem

convicção de talento e do Direito afastava-me a possibilidade de defender

causas em que não acreditava ou que iam contra os meus valores.

Após um interregno de sete anos (em que fui cobaia do indescritível ano

«propedêutico», interrompi os estudos, vivi um ano em casa de familiares

emigrados na Suíça e comecei a trabalhar num emprego indiferenciado) voltei

a estudar para completar o 12º ano e segui para a formação em Serviço Social

(1983/1988).

Entrei no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa com uma média alta

que me teria permitido entrar noutros cursos nas faculdades públicas e sem a

consciência de que o curso de Serviço Social não atribuía o grau de

licenciatura.

Durante os quatro anos do curso fui estudante trabalhadora (porque as

propinas eram caras e queria preservar uma certa independência familiar),

numa altura em que não havia turma nocturna, o que implicava ter aulas de

manhã e trabalhar de tarde, dilatando quer os horários de trabalho em

compensações necessárias para a entidade patronal, quer os horários de

estudo e de realização de trabalhos.

De uma forma geral gostei do curso e, ultrapassada uma crise no 3º ano que

quase me fez desistir, posso dizer que a formação inicial, e sobretudo alguns

profissionais que fui encontrando, quer como docentes, quer como orientadores

de estágio, foram constituindo a malha identitária onde me situei.

Sem qualquer originalidade, diria que a construção da minha identidade

profissional tem dois marcos profundos, um na importância da «escola» de

formação inicial e outro, na socialização profissional e organizacional, marcada

por vários contextos e várias figuras de referência.

Terminei o curso consciente de algumas fragilidades teóricas e metodológicas

mas convencida que levava as «ferramentas» para continuar a aprender.

Page 21: As formigas e os carreiros

21

Também saí pouco agradada com a «escola» como organização, com a sua

dimensão demasiado pequena, doméstica e feminina e com as «guerras de

alecrim e manjerona», onde nunca consegui identificar o que separava ou unia

as pessoas em torno de «facções» rivais.

A esta distância, recordo-me de achar que a renovação do Serviço Social e a

luta contra os problemas sociais se iria fazer pela substituição de «velhas»

práticas assistencialistas e pela injecção de novos profissionais com outras

perspectivas e outras formas de intervir. Com o tempo, percebi o quanto esta

perspectiva era simplista...

Hoje, como assistente social a intervir ao nível territorial e municipal desde

1988, continuo identificada com a escolha profissional que fiz. Acumulo com a

experiência de uma década como professora na formação inicial de assistentes

sociais, com a experiência como formadora e supervisora na formação

contínua de interventores sociais e com a experiência de terapeuta familiar,

mas nunca quis deixar de ser assistente social.

Salientando os aspectos mais positivos do meu percurso profissional, diria que

foram a riqueza e a diversidade de aprendizagens em diferentes exercícios

profissionais e a mobilidade por vários contextos de intervenção; embora

reconheça que só foi possível realizar este percurso numa situação de

emprego «fixo», onde a conjugação da oportunidade, com a possibilidade e o

gosto, permitiram acumular papéis profissionais, conciliando também com

apoios relevantes na esfera privada. Por outro lado, esta variedade de papéis

profissionais e de contextos de intervenção cumpriu vários objectivos, desde os

mais prosaicos de ajudar a garantir o sustento familiar, até o propósito de

ajudar a contrariar a tendência de instalação em zonas de conforto que não

facilitam a aprendizagem contínua.

No exercício profissional da ‘função pública’, o risco de nos tornarmos

funcionários, meros especialistas de procedimentos, é particularmente elevado,

pois o que é globalmente pedido aos técnicos, seja qual for a sua formação, é

que sejam rigorosos nos procedimentos, independentemente do «para quê?»,

do «para quem?» ou do «com quem? E como?» intervimos.

Ademais, o aprofundamento do rigor técnico e conceptual, nem sempre é tido

como uma mais-valia nas organizações, onde ainda imperam «carreiras» cujos

critérios de ascensão a cargos com maior reconhecimento social e mais poder

Page 22: As formigas e os carreiros

22

atribuído são pautados por critérios de «confiança» e de «pertença» a grupos

bem posicionados por relação aos poderes instituídos.

Honoré de Balzac, no seu livro sobre «Os funcionários» descrevia em 1830 de

forma jocosa, sete categorias de funcionários e dez categorias de amanuenses,

definindo genericamente como funcionário “um homem que vive do seu

ordenado e que nada mais sabe fazer do que mexer, remexer e escrevinhar em

papéis” (2007:11).

Em posição divergente com esta lógica, o meu lugar e a minha perspectiva

foram-se construindo de forma plástica, no plural, através de duas estratégias

complementares:

1ª) Assumir o trabalho como um projecto com princípio, meio e fim, foi-me

permitindo mudar de contexto organizacional de intervenção sempre que

considerei esgotadas as minhas possibilidades de aprendizagem e de

compromisso com o que estava a fazer e/ou com o serviço onde exercia;

2ª) Assumir a responsabilidade de formação contínua como minha, o que foi

fundamental para sentir que sou uma profissional que não se esgota no posto

de trabalho (apesar da repercussão que tem no exercício profissional e na

organização onde se exerce).

Estas duas estratégias, tornadas conscientes ao longo do meu percurso de

vida, permitiram-me circular por entre muitas perspectivas e posicionamentos,

o que facilitou cruzar informações, reflectir, procurar outras fontes de

conhecimento e atribuir um significado de reflexividade e de autoformação a

este percurso, a partir da posição de «profissional-prática» no conceito de Remi

Hess ou, no caso, de “prática-investigadora” na terminologia de Berger.

Nesta trajectória, o que me mobilizou desde sempre foi a intervenção social

(como contributo para mudar algo na sociedade/no território/no grupo/na

pessoa), qualquer que fosse o contexto, o projecto ou o(s) público(s) em causa

e entendi sempre a pesquisa, o aprofundamento teórico e/ou a investigação

como um alargamento de referenciais ou de metodologias para procurar intervir

melhor. Clara e assumidamente, não sou uma académica no sentido em que o

meu compromisso não é com o conhecimento enquanto conhecimento.

Paradoxalmente, não optei por um projecto de Investigação-Acção no processo

de doutoramento, o que teria sido mais coerente. Achei que podia aproveitar a

Page 23: As formigas e os carreiros

23

oportunidade para «fazer um balanço» e, no actual projecto de formação e de

investigação (não esquecendo a fase do ciclo de vida em que me encontro) a

motivação foi sobretudo de desenvolvimento pessoal, com a tentativa de me

pôr à prova sim, de dar um contributo para a profissão e de obter feedback por

parte da comunidade científica e dos pares sim, mas sobretudo de fazer o

balanço de uma história de vida profissional e procurar uma relevância

formativa em toda esta trajectória, que gosto de considerar «atípica».

Desde já identifico que, se existiram variáveis que marcaram claramente, quer

a minha formação inicial de assistente social, quer todo o meu percurso

profissional e de formação contínua, foram o «gosto por trabalhar com

pessoas», a «interacção e a relação» que esse trabalho foi permitindo, a forte

convicção de trabalhar para a «mudança» e para o «desenvolvimento» e a

«interdisciplinaridade» absolutamente necessária, quer do ponto de vista

conceptual e metodológico, quer do ponto de vista operacional.

Contudo, mesmo assumindo a hipótese de que a divisão disciplinar é uma

convenção datada e cada vez menos útil para enfrentar a complexidade do

mundo contemporâne, não deixo de experimentar alguns desconfortos no

relacionamento quer com as áreas disciplinares que me têm atraído

(Sociologia, Gestão/Administração, Psicologia, Ciências da Educação, …), quer

com a minha própria área disciplinar: nas primeiras, porque me sinto uma

«outsider», alguém que não aprofunda suficientemente o pensamento analítico

ou o conhecimento explícito para ser um parceiro pleno na discussão e, na

segunda, porque estando o Serviço Social em fase de afirmação académica

como «campo científico» entendem-se, por vezes, estes movimentos por

outras áreas disciplinares como «dissidências».

A estes desconfortos somo o sentimento de pouca especialização. Dizia-me

uma colega que entrevistei neste processo que «os assistentes sociais têm a

mania que sabem de tudo» e, de facto, os assistentes sociais podem correr

esse risco.

Ao fim de quase três décadas de exercício profissional como Assistente Social,

do que é que eu sei? E como é que eu sei que sei? Como é que eu legitimo e

partilho esse conhecimento? E para quê, ao serviço de quê é que coloco esse

conhecimento?

Page 24: As formigas e os carreiros

24

O OBJECTO DE ESTUDO

Foram interrogações como estas que estiveram na origem deste projecto de

formação e desta interrogação sobre «como se formam» os assistentes

sociais? Ou, afinal, o que é ser assistente social?

São interrogações que continuam a fazer sentido, mesmo sabendo que não

são originais, porque as obras produzidas a este propósito – e destaco ‘What is

social case work?’ (1922, NY) da pioneira Mary Richmond e ‘What is

Professional Social Work?’ (2006, UK) de Malcolm Payne - reportam-se a

épocas e contextos muito diferentes.

No meu caso, o processo de problematização foi demorado e complexo, sendo

particularmente difícil a cadeia de opções que envolveu e, em última análise, a

dificuldade em admitir o imperativo da possibilidade – tentar fazer o trabalho

possível, nas minhas circunstâncias e com consciência das várias limitações.

«Olhei» o objecto de estudo de muitos lados, fiz pesquisa bibliográfica por

muitos autores e perspectivas, comecei e abandonei tantos caminhos, que

dificilmente conseguirei explicitar essa exploração.

A necessidade foi a de reflectir e tentar compreender o que é a formação e qual

o lugar que nela ocupam as experiências, ao longo das quais se formam e se

transformam as nossas identidades e a nossa subjectividade (Josso, 2002).

Sabendo que ia correr um risco acrescido ao investigar a própria classe

profissional, ao não ter distanciamento que facilitasse a objectividade, ao

participar necessária e simultaneamente na investigação como sujeito e como

objecto, encontrei em Berger os fundamentos do posicionamento que me

podiam fazer sentido. Diz ele,

“…o aparecimento de práticos-investigadores e o desenvolvimento da investigação (…) é um fenómeno que, tendo implicações práticas, metodológicas e epistemológicas, tem fundamentalmente um significado social. O problema da participação na investigação, da produção da investigação corresponde de facto a uma revolta de uma espécie de classe média no domínio das práticas sociais que se recusa a ver elaborar à sua margem um saber que a esmaga, que a trata como objecto, e que, em consequência desta revolta procura transformar-se em investigadora de si própria” (Berger, 1992:25,26).

Este posicionamento, que se tem desenvolvido quer no seio dos trabalhadores

sociais, quer entre enfermeiros e professores, tende a tornar-se num

Page 25: As formigas e os carreiros

25

verdadeiro desafio para a investigação. “Um desafio onde intervém também um

terceiro parceiro – o poder político – que procura jogar o papel de árbitro entre

as duas partes definindo os papéis de quem sabe e de quem tem direito ao

produto do conhecimento” (Berger, 1992:26).

Os modelos de investigação mobilizados constituem-se assim, grosso modo,

como diferentes modalidades das ciências sociais se relacionarem com o

objecto de estudo e de se integrarem numa luta que se trava entre um saber já

pré-construído e erudito e um outro, que resulta de transformações sociais

onde é notória a redução da distância entre os que sabem e os que agem, ou

entre «autores» e «actores», mas onde também se assiste ao acentuar da luta

em torno da posse da produção do saber e do reconhecimento do saber que se

possui.

Valerá a pena recordar que, a ciência moderna enquanto construção histórica,

tem como primeiro referencial a física de Newton - baseada na existência de

uma dicotomia entre o mundo da Natureza e o mundo do Humano, assente na

exterioridade e neutralidade do observador, na quantificação, na abordagem

analítica cartesiana e no modelo hipotético-dedutivo, o que fez com que fosse

uma ciência marcada pela «exactidão» e por uma busca das leis universais

que regiam a Natureza. Mas, se o alastramento desta concepção positivista da

ciência às ciências sociais (e note-se, a título de exemplo, a designação da

Sociologia como ‘Física Social’ precisamente por Augusto Compte, um dos

seus fundadores) permitiu inegáveis avanços, também teve como

consequência a interiorização de um sentimento de menoridade das ciências

sociais em função do seu hipotético «atraso».

Apesar da produção teórica mais recente de sentido inverso, quer dentro das

ciências da natureza, quer nas ciências sociais, quer na própria investigação

realizada em Serviço Social, este sentimento de menoridade persiste e foi

ainda constatável na recolha empírica, estando claramente identificado na

narrativa de algumas das pessoas entrevistadas.

O que será tanto mais curioso quanto a própria dicotomia entre ciências da

natureza e ciências sociais passa a estar abalada no quadro de um paradigma

emergente (Sousa Santos, 1987; 1989) onde se entende a unidade do real e o

carácter total dos fenómenos.

Page 26: As formigas e os carreiros

26

O entendimento deste novo paradigma questiona as fronteiras entre as várias

ciências baseadas em segmentações fictícias da realidade. Sobre este aspecto

Rui Canário refere:

“Da análise da pluralidade das ciências sociais e da sua conflitualidade interna, é possível concluir pelo carácter histórico, contingente e sempre provisório das fronteiras existentes entre as várias ciências sociais. Elas exprimem, em cada momento, formas de divisão de trabalho condicionadas por circunstâncias históricas e sociais. Por outro lado, essas fronteiras são porosas e nenhuma disciplina tem hoje o monopólio dos conceitos, de assuntos, ou de métodos e técnicas de recolha e tratamento da informação empírica. (...) será mais fecundo concentrar esforços na construção de objectos científicos e metodológicos, próprios e singulares para cada investigação, fazendo apelo ao património teórico e conceptual que tende a ser comum às várias ciências sociais e promovendo a consciente e deliberada transgressão das fronteiras disciplinares (...) ” (2003:8).

Este foi mais um posicionamento que me inspirou a explicitar como construí o

«olhar» que condiciona o presente trabalho, feito a partir do interior do campo

que pretendi investigar, porque pertenço ao mesmo «universo» que é

simultaneamente o meu objecto, e esse «universo» faz parte do meu sistema

de pertença e de finalidades (Guy Berger, 1992). Assim, as questões que

orientam a investigação em curso não são estranhas ao meu próprio processo

de autoconhecimento e de autoformação, alimentado na dinâmica entre a

estabilidade, o incómodo e a mudança.

O estado de dissociação quase permanente entre os apelos, os ritmos, os

espaços e os tempos da intervenção profissional e a sedução dos tempos, da

linguagem e do debate de ideias no campo académico, tornou difícil gerir estas

tensões. Mesmo sabendo que a pesquisa é um processo inacabado por

definição, o facto de trabalhar nela por fases, quando foi possível, de vez em

quando, fez com que tenha tido a sensação de que em cada recomeço,

começava do zero.

Esta é uma sensação familiar, pois toda a formação contínua que fiz, quer a de

curta duração, quer a de longa duração1, foi em «corrida», retirando tempo e

energia aos meus outros compromissos e espaços de vida, foi uma formação

suportada financeiramente por mim e com tempo limitado para maturar

1 Destaco a formação mais longa e significante, nomeadamente a 1ª pós-graduação em Administração (com duração de 2 anos lectivos), o Curso de Terapeuta Familiar (com duração de 5 anos) e o Mestrado em Ciências da Educação (que resultou no ano curricular, com a 2ª pós-graduação em Ciências da Educação e passagem directa para o processo de doutoramento).

Page 27: As formigas e os carreiros

27

conteúdos. Sem me querer vitimizar, não posso deixar de dizer que tenho uma

enorme nostalgia de algo que só conheço por relatos como «ter tempo pago

para ler, reflectir e escrever»...

Provavelmente, na organização social do trabalho, esta é uma dimensão pouco

disponível para os profissionais do terreno, ou dito de outra forma, elegível

sobretudo para os «profissionais das terras altas», na terminologia de Schon

(1996). Donald Schon aborda a questão da segmentação entre a teoria e a

prática do ponto de vista de um “dilema entre o rigor e a pertinência” e utiliza

uma metáfora muito interessante para expressar a distinção entre “os

profissionais das terras altas” (os que optam por uma prática profissional

estritamente técnica e podem fazer um uso eficaz das teorias e das técnicas

provenientes da pesquisa) e os “profissionais das terras baixas” (aqueles que

se comprometem deliberadamente com os problemas complexos mas cruciais

e que, se lhes pedirmos para descreverem os seus métodos de investigação,

falam de experimentação, de tentativa e erro, de intuição e de improviso). Esta

metáfora é útil para ajudar a entender a dificuldade que alguns trabalhadores

sociais (entre eles muitos Assistentes Sociais), na qualidade de «profissionais

das terras baixas», têm em «dizer o que fazem». Como afirma A. Martins

(1998), sabe-se que a profissão do Assistente Social não foi reconhecida e

identificada por contribuir para a produção de um saber específico, mas pelo

modo como historicamente intervinha nas situações sociais, como

desempenhava as atribuições institucionais e a política do serviço onde se

inseria, privilegiadamente associada às políticas sociais. Acrescentando a

mesma autora que:

“…não se esperava que os assistentes sociais dominassem os fenómenos e processos sociais e participassem na produção de conhecimentos, mas que agissem e fossem interventores com o conhecimento produzido pelas ciências sociais. O profissional de serviço social é, assim, concebido para agir e não para produzir conhecimentos, inserindo-se na divisão social do trabalho, que separa produtores do conhecimento e interventores na realidade social” (Martins, 1998, pp. 98).

Com o modelo tecnicista do Serviço Social, nos anos 60 e 70, são pedidas aos

Assistentes Sociais formas de intervenção que constituam respostas novas ao

agravamento das questões sociais e são de destacar, neste campo, as

intervenções ao nível do desenvolvimento de novas competências como as de

planificação e do estudo/investigação das comunidades. Por outro lado, a

Page 28: As formigas e os carreiros

28

formação inicial dos assistentes sociais, embora tenha sofrido influências de

épocas, modelos e contextos diferentes, assentou de uma forma genérica, até

meados dos anos 80, sobretudo em conceitos, apresentação de produtos e

resultados do processo de investigação em diferentes áreas das ciências

sociais, sem ultrapassar o patamar da transmissão dos resultados da produção

e das divulgações destas ciências, já que o assistente social não era formado

para investigar, e menos ainda para dominar o próprio processo de construção

do conhecimento.

Actualmente, o conhecimento parece ter mudado de natureza e de estatuto,

sendo reconfigurado como rede comunicacional e informacional e como

mercadoria. Então, se nas sociedades actuais, o conhecimento e a informação

estão a transformar-se em força motriz da produção, “os grupos ligados à sua

criação e manipulação passam de reprodutores a produtores” (Stoer e

Magalhães, 2005:52). Nesta perspectiva de entender o conhecimento como

veículo de formação este:

“…configura-se de uma forma dúplice: como competências, como competências essenciais que dão azo, pelo menos em parte, a iniciativas como a da «gestão flexível do currículo»; e, como formação integral do indivíduo que está longe de se esgotar na sua relação com o trabalho. Com o surgimento da sociedade em rede esta duplicidade parece esbater-se, dado que a oposição entre o conhecimento como competência e o conhecimento como formação, ela própria, se reconfigura, dadas as transformações da natureza do trabalho, do mercado de trabalho, da vivência da cidadania e da afirmação sem precedentes das identidades pessoais e grupais” (Stoer e Magalhães, 2005:51).

Estas questões assumem grande importância para os assistentes sociais, cuja

história profissional é essencialmente marcada pela reprodução do

conhecimento e da norma e, mais recentemente, pela «forma dúplice» de se

relacionar com o conhecimento e com a informação. Mas de uma forma muito

geral pode afirmar-se também que, apesar da conotação do Serviço Social com

a conformidade e a reprodução da norma, têm existido movimentos

profissionais com posturas críticas e alternativas ao «Serviço Social

Tradicional», comprometidas com a dignidade, a autonomia e a libertação das

populações mais vulneráveis.

Recorda-se que, em última análise, o paradigma crítico visa (na linha de

Habermas, 1971), a libertação humana. Para este autor, a questão decisiva é

Page 29: As formigas e os carreiros

29

colocada ao nível de «ao serviço de quê» está esse conhecimento,

considerando igualmente válidas as formas de conhecimento conseguido

através do positivismo (que privilegia o pensamento empírico-analítico) e as

formas do conhecimento histórico-hermenêutico, que procuram a compreensão

de significados. Na verdade, para ele os vários tipos de conhecimento devem

estar ao serviço da libertação humana, reservando para o conhecimento crítico

os papéis de revelar os interesses, os poderes e as ideologias e criar mudança

social.

Outros autores mais recentes como Beck (1992) ou Giddens (1990) apontam

para uma «segunda cientifização», onde o conhecimento é enformado pela

reflexividade e articula-se com novas formas de cidadania e de afirmação

identitária, contendo a possibilidade renovada do conhecimento ser

reconfigurado por essa mesma reflexividade.

UMA DETERMINADA PERSPETIVA

Imersa na vida quotidiana e nas múltiplas práticas de intervenção e acção nos

contextos onde interajo e, onde se vive tudo ao mesmo tempo, procuro

fundamentar a minha perspectiva do mundo actual no cruzamento dos papéis

complementares de cidadã, de aprendente, de interventora social e de

formadora.

As reflexões, que tentarei explicitar ao longo deste trabalho sobre o processo

de produção social do Serviço Social, evidenciam um conjunto de questões

muito diversas:

i) questões que se colocam no decurso do seu processo histórico;

ii) questões que se cruzam com as concepções de conhecimento e com

a distribuição histórica das profissões em cada época e contexto;

iii) questões que se cruzam com a dinâmica da sua formação, inicial e

contínua e com as construções identitárias dos seus profissionais.

A diversidade ideológica presente nesta profissão enfatiza a sua dimensão

sociocultural e evidencia também a sua capacidade de se renovar, admitindo

como «ferramentas» uma pluralidade de esferas (conceptual, metodológica,

emocional, pessoal e intuitiva) que permitem interpretar o mundo e as práticas

Page 30: As formigas e os carreiros

30

deste grupo profissional. Para tal parto da perspectiva de que o conhecimento

científico constitui uma das formas específicas, entre muitas outras

modalidades de conhecimento, de conhecer o mundo. E «conhecer o mundo»

é aqui entendido como um processo que perspectiva a realidade como

construída e co-construída socialmente, remetendo a compreensão sociológica

da “realidade” e do “conhecimento” para um terreno que se situa «num meio-

termo entre a Compreensão do homem comum e a do filósofo» (Berger e

Luckmann, 2004:14). Estes autores defendem ainda que, ao longo dos tempos,

apenas uma minoria em cada sociedade, se dedicou ao pensamento “teórico” e

às “ideias”, mas que todos participamos de diferentes formas, do seu

“conhecimento” e da sua construção da realidade: “Dito de outra forma, só

muito poucas pessoas se preocupam com a interpretação teórica do mundo,

mas todas vivem em algum tipo de mundo” (Berger e Luckmann, 2004:26). E

inevitavelmente diria eu, fazem construções sobre os seus mundos.

Este entendimento da multiplicidade de formas e modos de «conhecer o

mundo» e de que, participar desse conhecimento é, na perspectiva utilizada,

uma inevitabilidade (nossa e dos outros), esteve na génese desta tentativa de

juntar saberes de diferentes tipos e proveniências. Nomeadamente, a

valorização do saber experiencial, associado com frequência às pessoas de

baixa escolaridade e em contraponto à formação científica mas que, neste

processo, se revaloriza ao longo do percurso de vida, centrada na pessoa e na

descoberta e desenvolvimento das suas potencialidades, numa lógica

emancipatória.

Ser «pessoa» é uma qualidade que une os assistentes sociais e os seus

diferentes interlocutores (‘públicos’, chefias, pares e decisores), numa

perspectiva de que o «indivíduo» é um ‘ser em devir’ e não é estritamente

individual, mas sim, um conjunto de relações dinâmicas e em constante

transformação, com a natureza, com os artefactos e com as outras pessoas e

respectivos contextos sócio-historicos.

Este projecto de formação e de investigação pretende partir da perspectiva

transdisciplinar que fui construindo e preocupar-se com uma interpretação

teórica, se não do mundo, pelo menos do «mundo» de uma dada actividade

profissional e científica, observada e analisada a partir de um determinado

Page 31: As formigas e os carreiros

31

ponto de vista – o das tensões existentes entre saberes de diferentes

proveniências (os saberes experienciais e as competências que as pessoas

constroem ao longo da vida, os saberes profissionais e os saberes

académicos) e lógicas que se confrontam e se interpelam mutuamente.

Nomeadamente a tensão entre saberes académicos, marcados pela lógica do

conhecimento científico, fragmentado, declarativo e cumulativo e saberes

profissionais e experienciais na óptica dos saberes integrados e

contextualizados. E se, nos critérios do conhecimento científico, o que parece

distinguir a «ciência» da «não ciência» reside na capacidade de colocar

problemas e de constituir respostas provisórias a partir de uma recolha

sistemática e controlada da informação empírica, quando se coloca o problema

de saber se determinada actividade (o Serviço Social, por exemplo) pode ser

adjectivada de científica, ou não, estamos a questionar qual a relação dessa

actividade com a teoria e com o método. Sendo o método que lhe permite

pensar-se e explicar-se de forma permanente, o que, na verdade constitui uma

oportunidade de compreensão do modo como se alterou a relação entre

saberes e práticas sociais.

Em qualquer sociedade, os saberes são simultaneamente expressão e produto

de processos sociais, na medida em que actuam sobre esses processos

transformando-os, numa relação permanente e constitutiva da própria

sociedade. A par do efeito de criação e de destruição de saberes, é forçoso

admitir que as sociedades contemporâneas (simultaneamente «sociedades do

conhecimento» e «sociedades de risco») se pensam mais a si próprias, ao

mesmo tempo que se alargam as camadas sociais envolvidas nessa

reflexividade social, ela própria condição de cidadania.

As relações entre o conhecimento e as práticas e a contextualização dos

saberes, acham-se assim em questão no que respeita aos processos de

apropriação social do conhecimento e desafiam nomeadamente, a

possibilidade de formação generalizada de uma cultura científica e técnica.

Assim, adequa-se bem ao objecto de estudo uma abordagem ao uso do

conhecimento como uma relação social, de saber, dependente da relação

particular que os sujeitos desenvolvem com o mesmo, na linha do que

defendem autores como Charlot e Schon :

Page 32: As formigas e os carreiros

32

“(…) a ideia de saber implica a ideia de sujeito, de actividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo, de relação desse sujeito com os outros (que co-constroem, controlam, validam, partilham esse saber)” Charlot (2000:61); ” (…) o nosso conhecimento é ordinariamente tácito, implícito nos nossos padrões de acção e no nosso sentido para aquilo com que estamos a lidar; parece correcto dizer-se que o nosso conhecimento está na nossa acção” Schon (1983:49).

Identificar estas relações e os processos pelas quais os assistentes sociais

podem tornar conscientes os seus saberes, para si e para os outros, implicará

um contributo para abordagens menos dicotómicas e mais fecundas.

A ENTRADA PELA EDUCAÇÃO

Sinto necessidade de explicitar a opção de entrada pelas Ciências da

Educação. O que me trouxe inicialmente a este campo disciplinar foram

principalmente duas ordens de razões: umas razões de ligação efectiva e

afectiva à Formação de Adultos, com umas reminiscências positivas do tempo

em que utilizei o método de Paulo Freire na alfabetização de adultos,

continuadas posteriormente pelo meu percurso como docente e formadora de

interventores sociais e, outras razões de ordem prática, já que o meu actual

exercício profissional numa autarquia se realiza num campo híbrido de

cruzamento entre o «social» e o «educacional».

Posteriormente, pude constatar a riqueza do novo referencial e realizar novas

conexões com as anteriores aprendizagens de outras áreas disciplinares,

sendo que tem sido neste cruzamento de saberes que, à semelhança dos

ecossistemas naturais, me tem sido possível desenvolver formas plurais de

entendimentos – de mim, dos outros e das construções sociais das realidades

que vou vivenciando.

As Ciências da Educação têm uma produção teórica própria já legitimada e um

campo de investigação e autores de referência que a tornam uma disciplina

mais ou menos reconhecida, embora a sua profissionalidade seja ainda

incipiente. Partilha, no entanto, com o Serviço Social alguns aspectos:

i) a ausência de abordagens consensuais, no sentido dado por Khun;

ii) o carácter multiparadigmático do seu estatuto epistemológico;

Page 33: As formigas e os carreiros

33

iii) a porosidade entre o campo da produção do conhecimento, o campo da

decisão política e o campo da acção profissional;

iv) e a persistência de uma distinção binária entre a teoria e a prática,

segundo a qual os investigadores produzem os conhecimentos em que

se baseiam e que contribui para a distinção dicotómica entre uma

«Ciência de autores» de uma «Ciência de actores».

A Educação de Adultos nasce mais tardiamente do que o Serviço Social, a

seguir à 2ª Grande Guerra, à boleia dos «30 gloriosos anos» assentes na

Teoria do Capital Humano, em que se entendia que a Educação era essencial

para o Desenvolvimento e se pretendia prolongar a escolarização aos adultos.

Historicamente, tem uma perspectiva predominante de extensão escolar ou

educação de segunda oportunidade, num modelo de Estado-nação, e outras

perspectivas mais abrangentes (mas também mais periféricas), onde se

incluem os sectores formal, informal e não formal, visando a construção de

uma sociedade educativa e educadora e de uma maior autonomia e

emancipação dos seus cidadãos.

A diversidade de conceitos que lhe estão associados (Cidadania, Trabalho,

Formação, …) varia ao longo dos tempos e das latitudes e tem sido fortemente

dependente das ideologias dominantes.

Utiliza conceitos de construção social que são criados e evoluem na base de

tensões e contradições permanentes, quer nas experiências dos países

escandinavos e anglo-saxónicos, quer nas experiências de Educação Popular

na América Latina, onde a obra de Paulo Freire é incontornável ou ainda nos

movimentos cívicos e educativos que surgiram após a II Guerra, por exemplo,

em França, onde a Educação Popular conduziria, já nos anos 60 e 70 do

século passado, ao Movimento da Educação Permanente, um conceito de base

alargada e essencialmente humanista.

A definição abrangente que hoje é consensual provém da UNESCO (e data de

1976, com revisões em 1997 e 2009) e é feita por justaposição, somando os

diferentes subsectores que, ao longo da história, se têm inserido neste vasto e

variado campo da acção educativa e está relacionada com a formação de um

cidadão com acesso à cultura e informação e também, na valorização dos

princípios da democracia e de uma participação activa na vida cívica e política.

Page 34: As formigas e os carreiros

34

A UNESCO tem assim, um importante papel na sua legitimação e

reconhecimento e produz documentos incontornáveis sobre a Educação de

Adultos, inscritos numa batalha travada contra a pobreza e o

subdesenvolvimento. Por outro lado, o campo da qualificação profissional surge

em paralelo mas são duas histórias e duas tradições com vias distintas.

Neste campo acentua-se actualmente o paradoxo entre o pedido para a

Educação de Adultos garantir um processo ao longo da vida que assegure a

integração das diferentes dimensões do desenvolvimento e da

‘empregabilidade’ das pessoas - o que remete para a responsabilização

individual, segundo a qual caberá a cada trabalhador ou candidato a

trabalhador e, ao longo de toda a sua vida, garantir condições para ser e

manter-se ‘empregável’ - em sociedades onde o direito ao trabalho está em

vias de extinção e onde a rescisão do Contrato Social (no caso de muitos

países do hemisfério norte que desenvolveram o Estado Providência)

‘desobriga’ o Estado dos chamados direitos humanos de terceira geração.

Valerá a pena recordar (segundo Stoer e Magalhães, 2005) que a modernidade

assume o sistema escolar como um dos instrumentos centrais da sua

realização, onde o conhecimento surge ao mesmo tempo como «mediador

entre a ignorância e o saber e como organizador da relação entre a natureza e

a humanidade» (é atribuída à socialização escolar o papel de transformar a

natureza natural dos homens em natureza social). Neste ponto é notória a

convergência da pedagogia com o contrato social moderno, na medida em que

coloca o sujeito no centro do processo de ensino/aprendizagem.

No quadro destas abordagens pode verificar-se que a institucionalização

académica da Educação de Adultos corresponde ao cruzamento e fusão de

várias dimensões: o desenvolvimento local, a escolaridade de segunda

oportunidade, a educação popular, a animação e educação não formal e a

formação profissional – e essas dimensões têm constituído também campo de

intervenção da acção social, com intervenientes do Serviço Social e de outras

profissões sociais.

A Educação de Adultos liberta-se do paradigma escolar na medida em que cria

referências externas, modelos e quadros teóricos unificados em relação aos

diferentes públicos da educação mas, segundo Canário (1999) mantém por

Page 35: As formigas e os carreiros

35

muito mais tempo a visão instrumental, que é complementada por uma visão

técnica das práticas educativas, e que reflecte frequentemente a procura da

«eficácia» e da «qualidade», transportando critérios de ordem empresarial para

a esfera educativa.

Com este ‘pano de fundo’ que também envolve os assistentes sociais na sua

múltipla condição de profissionais, muitas vezes a intervir em contextos de

educação não formal e de pessoas, trabalhadores, investigadores, cidadãos,

actores e autores, poderei estabelecer uma relação contingente entre o

estatuto social da sua intervenção profissional e a formação das suas

configurações identitárias, verificáveis no presente e no decurso do processo

histórico de construção da profissão.

Entre muitas outras analogias e cruzamentos que arriscarei fazer entre as

ciências da educação e o serviço social, não resisto a colocar em comum esta

tendência para uma visão instrumental, quer na educação, quer na intervenção

social, complementando-se para compor uma conformidade com muitas faces.

Page 36: As formigas e os carreiros

36

CAPÍTULO 1 - SERVIÇO SOCIAL: UMA PROFISSÃO E

UMA DISCIPLINA QUE PROCURAM NOVAS

LEGITIMIDADES

Este capítulo tem por objectivo situar as questões centrais do presente trabalho

de investigação.

Pretendo aprofundar a reflexão sobre a profissão de Assistente Social numa

perspectiva a partir de dentro do campo e no entendimento de que a profissão

se constrói e se aprende, no diálogo entre o exercício e a reflexão sobre si

própria e o mundo. A partir da exploração das suas singularidades por relação

às profissões sociais, interroga-se o saber profissional, as suas construções

identitárias, os processos de formação inicial e ao longo da vida, a

permeabilidade ao poder e às ideologias e a produção de conhecimento

próprio.

Assim, o capítulo é estruturado em torno de quatro pontos: no primeiro, propõe-

se uma problematização e uma ‘recriação’ da profissão numa visão

transdisciplinar que ultrapasse referenciais e representações, tradicionalmente

antagónicos e dicotómicos e que colocam a profissão como estando «entre»

direcções irreconciliáveis.

No segundo, aborda-se a profissionalidade, ou seja, situa-se o debate sobre o

‘como’ se constrói o conjunto articulado de saberes requeridos para o exercício

profissional, na defesa de que esses processos são marcados (e marcam) as

respectivas dimensões identitárias e simbólicas.

No terceiro, são identificadas as perspectivas utilizadas sobre a formação e a

aprendizagem da profissão, desbravando caminho pelas várias possibilidades

e dando conta da escolha conceptual realizada.

No quarto, é identificada a relação entre a formação e a produção de

conhecimento, valorizando os saberes tácitos e implícitos da experiencialidade,

e querendo com isso defender a possibilidade de que estes saberes possam

ser explicitados, objectivados, formalizados e colectivizados, explorando a

recontextualização do conhecimento próprio deste campo profissional, como

uma das formas de encontrar novas legitimidades.

Page 37: As formigas e os carreiros

37

1.1. ENTRE A (S) IDEOLOGIA (S), A (S) PRÁTICA (S), A (S)

TÉCNICA (S) E A (S) CIÊNCIA (S)

Em tempos de fluidez de teorias e paradigmas o conhecimento do Serviço

Social terá de ter em conta a “etnodiversidade que sempre caracterizou a

profissão” (Mouro: 2009), dado que a sua expansão resulta de diferentes

formas de agir e de pensar situadas entre os processos de contextualização

cultural e política e as formas de actuar sobre os problemas sociais.

No contexto da sociedade do risco e em face da pressão exercida pelo

processo de Globalização em curso, o desenvolvimento da profissão e da

disciplina dependerá quer da forma como os próprios profissionais conseguem

legitimar e credibilizar um processo interno de inovação com a produção de

conhecimento, quer da maneira como forem capazes de se posicionar nos

processos de transformação social, de governança dos problemas sociais e do

seu próprio processo de trabalho.

Quando se reflecte sobre a complexidade e a legitimidade do Serviço Social

importa utilizar formas de ‘leitura’ que deixem espaço para percepcionar

movimentos, por vezes muito subtis, contraditórios e diversos. E esta

aproximação não enjeita a importância das aproximações disciplinares mas

implica também a aceitação de espaços fluidos situados entre as fronteiras, ou

para além das zonas clássicas de objectivação, bem como o reconhecimento

da implicação pessoal no acto cognitivo, de um sujeito em formação

permanente e em transformação ao longo da sua vida.

Do ponto de vista epistemológico, o conceito de transdisciplinaridade parece

bastante fecundo para abordar este desenvolvimento da profissão e da

disciplina, na medida em que tenta dar resposta a uma nova visão do homem e

da natureza através duma ultrapassagem integrativa do paradigma actual.

“A Transdisciplinaridade abre as ciências, em particular as ciências humanas e sociais, a uma relação diferente entre objecto e sujeito, ao mesmo tempo mais matizada (pelo conceito de níveis de realidade) e mais larga» (Paul e Pineau, 2005:5).

A transdisciplinaridade, segundo estes autores, assemelha-se com efeito a

uma epistemologia dos limites, de zonas fluidas, quer dizer ‘entre’, ‘através’, ou

‘para além’ dos campos identificados, promovendo um diálogo, não tanto pela

existência de um território comum, mas por um alargamento das margens, de

Page 38: As formigas e os carreiros

38

pontes e de fronteiras entre os campos disciplinares. Ela define-se como um

processo epistemológico e metodológico de resolução de dados complexos e

contraditórios situando as ligações no interior de um sistema global

hierarquizado mas sem fronteiras imutáveis entre as disciplinas, de forma a

encontrar soluções práticas.

Neste entendimento, distancio-me de um «etnocentrismo científico-disciplinar»

e sinto-me relativamente confortável com a possibilidade de questionar a

profissão da qual faço parte numa perspectiva de reflexividade que procura

colocar em debate aspectos que suponho importantes para os interventores

sociais, sejam ou não, de serviço social.

Entendo que o Serviço Social faz parte das «profissões sociais», no sentido

mais próximo do conceito anglo-saxónico das ‘care professions’ e mais

abrangente do que as designações francófonas de ‘trabalho social’ ou de

‘intervenção social ‘ (Branco, 2009), embora estas últimas designações

também sejam utilizadas por fidelidade às respectivas fontes.

Não defendo uma neutralidade e tenho consciência de que este trabalho está

centrado na subjectividade dos actores sociais (inclusive, na minha e, no caso,

dos assistentes sociais entrevistados) ou seja, assente num estudo que

evidencia a representação social que estes actores (e autores) têm da sua

posição num campo social específico e nas normas e valores que lhes

permitem interpretar os processos de interacção social que descrevem. E

admito que a necessidade de «novas» legitimidades tem acompanhado a

trajectória do Serviço Social.

Recuando à genealogia do Serviço Social recorda-se que já para a pioneira

Mary Richmond a prática profissional deveria ser reflectida e objecto de

diagnóstico, embora a definição dos problemas que foram móbil do Serviço

Social fosse mudando. Para Mary Richmond, o problema social situava-se na

personalidade; mais tarde passou a considerar-se que se situava no indivíduo e

no meio e no significado do meio para o indivíduo; e com a perspectiva

marxista veio a compreensão das trajectórias sociais e dos grupos de

referência, passando-se a considerar a ligação e a interdependência entre

indivíduo e sociedade.

Page 39: As formigas e os carreiros

39

As diferentes leituras dos problemas que eram, foram e são objecto do Serviço

Social foram mudando, conforme o seu enquadramento sócio-histórico e as

influências teóricas e ideológicas, com múltiplas tensões entre o individual e o

colectivo, o controlo e a autonomia, a assistência paliativa e a ‘capacitação’, a

reprodução da ordem e da moral e a produção de novas ordens e saberes,

entre outras dimensões em tensão.

Hoje, persiste a necessidade de reflectir a profissão de Serviço Social,

conjugando aspectos dos modelos mais presentes e actuais, numa lógica de

compreensão antropológica do homem e das sociedades e numa visão que

pretende ser mais integradora.

Esta visão não se resume à integração de conhecimentos, defendendo a

necessidade de novos posicionamentos, quer nos autores que se

comprometem com a mudança social como Desrumaux – Zagrodnicki

(1998:137) e que apontam o Serviço Social como uma «profissão que tem por

finalidade a produção de mudanças», através do desenvolvimento de

capacidades sociais, quer nos autores que perspectivam uma intervenção mais

individualizada como Garnier (1999) na defesa de uma ética comprometida

com a empatia, com a compreensão e o respeito pelas lógicas conceptuais dos

sujeitos de intervenção.

O debate sobre a natureza da profissão protagonizado pela escola latino-

americana a partir do movimento da reconceptualização do Serviço Social, foi

prosseguido pela atenção dada pela escola anglo-saxónica ao espaço da

profissão face às novas profissionalidades em matéria de intervenção social.

Enquanto a primeira exprime a atenção atribuída à relação da profissão com as

suas questões existenciais, a segunda reflecte uma preocupação especial com

os alinhamentos da profissão face a outras profissões, essencialmente quando

a diferenciação e a especialização funcional se transformaram num ‘problema

de fronteiras’ (Giddens:2001).

Com a recomposição da segmentação profissional e a crescente

transdisciplinaridade, impõe-se uma atitude auto reflexiva sobre a prática dos

assistentes sociais e a importância de uma compreensão mais ampla da

profissão. Como refere Helena Mouro:

Page 40: As formigas e os carreiros

40

“…o conhecimento sobre o seu ethos foi alicerçado através da desconstrução e reconstrução da sua trajectória para, em função da realidade percebida e em articulação com os conhecimentos produzidos fora da área do Serviço social, se investir na projecção do seu futuro” (2009:p.412).

Na actualidade passou a considerar-se que a intervenção social implicava

decisões e actuações complexas e que seria preciso articular os saberes

teóricos mais genéricos com os saberes construídos na prática. Mas a crítica

interna do campo aponta a fragilidade destes saberes referindo que, muitas

vezes a sua exposição fica-se pela mera descrição, sem formalizar uma

estrutura epistemológica que dê significado ao empírico e evidencie as

componentes, as relações e as funções mais significativas.

Segundo Desrumaux – Zagrodnicki (1998), a dificuldade de reconhecimento

das profissões do ‘social’ prende-se com a sua história (não nasceram de uma

ciência, mas sim de ideologias) e com o facto de se constituírem

essencialmente como práticas. Apesar do reconhecimento de que o Serviço

Social se possa definir como profissão, devendo dotar-se de métodos de

avaliação reconhecidos no plano científico, a sua formação privilegiou a

aprendizagem sobre o terreno e o conjunto da profissão ainda evolui a partir do

pragmatismo. E se a qualificação científica não parece resolver a insuficiência

de conhecimentos integrados, a explicitação dos conhecimentos adquiridos por

via experiencial, por si mesma, parece não ser suficiente para o aumento

pretendido (em quantidade, qualidade e diversidade) da produção de

conhecimento específico de Serviço Social.

Teresa Zamanillo (2001), numa abordagem de orientação sistémica, chama a

atenção para o facto dos trabalhadores sociais se moverem no nível da

experiência, explicitando que a sua acção se alimenta do conhecimento

imediato, cujo critério de verdade é o «êxito da acção» na resolução do

problema. Esta posição contribui para manter uma relação de externalidade

entre a teoria e a realidade, ilustrada pela voz corrente entre muitos

profissionais de que “a formação recebida é muito teórica”, o que pretende

significar que as teorias são pouco válidas/úteis para explicar e resolver os

problemas quotidianos com que se defrontam.

Esta posição evidencia também a ambiguidade (e por vezes a divergência)

entre «compreender» e «controlar», assumindo a autora atrás citada que os

Page 41: As formigas e os carreiros

41

trabalhadores sociais têm uma grande necessidade de controlar a realidade e

alguma dificuldade em lidar com a desordem, o caos e o vazio. Ao invés, o

compreender, permite conectar a teoria com a prática, relacionando o

conhecimento comum com o conhecimento teórico e com a experiência.

Esta autora defende a necessidade de ordenar os conhecimentos em teorias já

existentes e produzir novo conhecimento a partir de uma investigação de

campo, que desenvolva conceitos sensibilizadores numa dinâmica

interdiscisciplinar; ao invés de prosseguir uma teoria e uma metodologia

próprias – o que ela designa de tarefa impossível que pretende uma identidade

falsa pelo seu carácter auto referencial.

Esta posição está longe de ser consensual mas existe, em concomitância com

muitas outras perspectivas, o que também demonstra alguma vitalidade

reflexiva dentro do campo profissional. E aos Assistentes Sociais continuam a

ser solicitadas competências para intervir e controlar, o que nesta perspectiva,

tem assegurado mais postos de trabalho aos profissionais mas constitui uma

dificuldade acrescida para o seu reconhecimento profissional.

Esta dificuldade situa-se entre múltiplas tensões, nomeadamente a tensão

entre os conhecimentos teórico-metodológicos e experienciais (que, na prática,

parecem cada vez mais preteridos) e os saberes procedimentais das

organizações de trabalho que tendem a ser sobrevalorizados como

conhecimento operacional. O que recoloca uma questão que hoje continua a

ser importante colocar, enquanto princípio epistemológico da concepção formal

da ciência, é a de saber qual é o objecto do Serviço Social?

Qual é o elemento do todo social que focaliza o Serviço Social? O que é que

determina o seu conhecimento e a sua prática?

Na tentativa de equacionar estas questões encontra-se com frequência alguma

confusão entre «o quê» (problema social, necessidade social), o «quem»

(‘indivíduo desajustado’, ‘homem oprimido e explorado’) e o «onde» (área de

interacção entre o indivíduo e o meio), dando a todos estes termos a categoria

de objecto, dependendo do momento histórico, da área geográfica e/ou da

ideologia.

Apesar destes termos serem elementos constituintes para a construção do

objecto, são aspectos parciais de uma realidade que envolve o sujeito

Page 42: As formigas e os carreiros

42

contemporâneo e que se pode sintetizar no conceito de «mal-estar», onde

constituem apenas a ponta visível do iceberg os estados de carência, os

problemas sociais actuais e a falta de cobertura das necessidades em muitos

grupos da população.

Para Zamanillo, a produção e reprodução destas condições é o que gera este

«mal-estar» de que não podem fugir os indivíduos, na sua condição de sujeitos

interdependentes. Então a proposta de objecto é formalizada como sendo:

“…todos os fenómenos relacionados com o «mal-estar» psicossocial dos

indivíduos, ordenado segundo a sua génese sócio-espacial e as suas vivências

pessoais” (Zamanillo, 2001:141).

Por mais perspectivas que se possam nomear, o Serviço Social situa-se neste

espaço paradoxal que designei de «entre». Nomeadamente entre o ‘mandato’

das instituições na aplicação de medidas de política social, na redistribuição de

recursos e no controle social e as populações sem voz junto dessas mesmas

instituições, que desempenham um papel de interface entre a procura e a

oferta de bens e serviços sociais.

Neste âmbito, é frequente a incompatibilidade das relações intersubjectivas de

ajuda, mais ou menos terapêuticas e das dinâmicas mediadoras de processos

de desenvolvimento que os assistentes sociais desenvolvem com as pessoas

que os procuram, ou a quem se juntam, e a função de trabalhadores por conta

de outrem com um mandato institucional em que lhes é pedido que

implementem respostas relativamente tipificadas em contextos de organização

e de trabalho cada vez mais baseados em evidências quantificáveis e

actuações de curto prazo. Por outro lado, a fragmentação dos profissionais por

diferentes ‘sectores’ e áreas de intervenção e a tendência para assumirem uma

postura camaleónica nos respectivos contextos faz com que pareçam assumir

um compromisso prioritário com a instituição e a respectiva área de intervenção

em detrimento da profissão e das pessoas com quem trabalham.

São frequentes as narrativas profissionais que evidenciam, quer a utilização de

léxico de sector (saúde, justiça, segurança social, autarquias…), quer a

construção de quadros de referência e de metodologias de intervenção mais

próximas da área de intervenção do que de uma especificidade da profissão.

Page 43: As formigas e os carreiros

43

Este fenómeno de «desprofissionalização» tem tradução do lado dos poderes

instituídos e é particularmente visível na tendência actual de utilizar

designações genéricas de, por exemplo «Técnico de reinserção Social»

(utilizada na Justiça) ou «Técnico Superior» (utilizada na Função Pública em

geral) para designar funções que correspondem a postos de trabalho no campo

da intervenção social, para as quais é elegível qualquer formação na área das

Ciências Sociais e cujo conteúdo funcional é semelhante, independentemente

da formação inicial e da profissão.

A ‘recriação’ do Serviço Social está influenciada por movimentos centrípetos e

centrífugos que se desenvolvem na profissão, sendo que os primeiros utilizam

a acção social como elemento galvanizador da sua especificidade e elemento

de salvaguarda do poder profissional adquirido por via da sua herança cultural,

e os segundos fragmentam o centro de gravidade da intervenção profissional,

sendo a inclusão tomada como ponto fulcral da sua orientação (Helena Mouro,

2009). Esta perspectiva dinâmica e tensional, destaca dois movimentos com

uma comparação dicotómica entre um “cenário vivido/experimentado” de

características etnocêntricas e um “cenário proposto” de características

ecocêntricas, com diferenças ao nível das finalidades (controlo e regulação dos

problemas sociais ou emancipação social e individual?), dos objectivos (a

gestão do equilíbrio da vida ou a requalificação da vida quotidiana na

sociedade do risco?), das culturas (proteccionista ou igualitária?) e dos

paradigmas (inserção social ou pedagogia da autonomia?).

As possibilidades de divergências e incongruências entre estes cenários,

podem contribuir para que alguns profissionais sintam clivagens quase

esquizofrénicas entre o «vivido» e o «pretendido», entre o que «pode» e o que

«deve» ser feito, entre o «discurso» e a «acção», entre as «realidades» e os

«mapas teóricos» - só para nomear algumas dessas clivagens.

Para que os assistentes sociais possam estar «entre» tantos cruzamentos,

movimentos e tensões, sem serem esmagados e/ou indiferenciados e, sem se

tornarem eles próprios executantes acéfalos de um sistema em decadência,

precisam de saber «quem são», «o que fazem» e «para que fazem».

Outra tendência protagonizada por autores científicos reconhecidos, como

Boaventura Sousa Santos no campo da Sociologia, acentua a necessidade de

Page 44: As formigas e os carreiros

44

desdogmatizar a ciência, advogando a necessidade de analisar as condições

históricas e teóricas da produção do conhecimento para entendê-la no seu

tempo e no seu contexto.

Conceber a ciência como imbricada nas relações sociais, implica alterar

práticas, construir novas relações sociais e narrativas científicas, reconhecendo

o conhecimento como parcial e inerentemente social e político.

Neste âmbito os sentimentos de “perda” expressos pelos assistentes sociais,

especificamente no quadro político de (des) legitimação do Estado-providência,

ao mesmo tempo que questionam legitimidades, exercícios e identidades

profissionais, abrem um espaço privilegiado para negociar novas legitimidades.

Helena Mouro, a este propósito, refere que a profissão consignou-se

socialmente como um dispositivo de conversão de poderes tanto de ordem

profissional, como política. De ordem profissional, na medida em que se tornou

num objecto de disputas profissionais entre os diferentes actores profissionais

envolvidos na procura de um lugar próprio no “não-lugar” onde se insere a

intervenção social e, de ordem política, uma vez que se tornou num meio ideal

para enfatizar o investimento político na redução de custos sociais da

“exclusão” (Mouro, 2009: 433).

O reconhecimento de que os modelos de conhecimento e de «verdade»

dependem das relações sociais estabelecidas num determinado contexto

histórico e dos interesses em presença, remete para que «entre» as

possibilidades de uma meta teoria se possam encontrar o reconhecimento

da(s) identidade(s), como fragmentada, plural e, eventualmente, em conflito.

Neste posicionamento, a linguagem e as relações sociais tornam-se centrais

para a reflexividade sobre a experiência e para a produção de conhecimento,

nas suas componentes de competência e formação.

Page 45: As formigas e os carreiros

45

1.2. SISTEMA IDENTITÁRIO E SISTEMA SIMBÓLICO NA

PROFISSIONALIDADE

A profissionalidade é aqui tomada enquanto conjunto articulado de saberes,

saberes-fazer e atitudes requeridas pelo exercício profissional. Neste âmbito,

têm-se multiplicado os estudos referentes às identidades sociais e profissionais

em contextos de acção empírica, mas estes têm reunido alguma unanimidade

ao afirmar que problematizar as construções das identidades sociais dos

actores em contextos de trabalho não significa reduzi-las a estatutos de

emprego ou a níveis de formação.

A pessoa, antes de adquirir uma determinada habilitação profissional, possui já

uma identidade (étnica, religiosa, sexual, de classe), onde a reconstituição

identitária posterior, como será o caso da que ocorre em contexto de trabalho,

é condicionada pelo conjunto de experiências e vivências anteriores e ainda

pelos construídos identitários preexistentes.

Dubar (1997a), que parte de uma reflexão alimentada pelas perspectivas

psicanalítica e fenomenológica, define identidade como o resultado

simultaneamente estável e provisório, individual e colectivo, subjetivo e

objectivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização, que

conjuntamente constroem os indivíduos e definem as instituições. Nesta

concepção, a identidade incorpora as representações do sujeito sobre si

próprio e sobre os outros e, nesse sentido, é construída numa dinâmica de

interacção permanente na qual intervêm as representações de si e o olhar do

outro.

A construção da identidade é assumida como um processo de transacções

objectivas e subjectivas; as transacções objectivas (onde predomina a

atribuição) procuram acomodar a identidade para si à identidade para o outro, e

as subjectivas (ou internas ao indivíduo) variam entre a necessidade de manter

identificações anteriores e o desejo de construir para si novas identidades no

futuro. Este autor não defende, ao contrário do que outros fazem, o

estabelecimento de diferenciação entre identidade individual e colectiva; para

ele, a identidade construída pelo indivíduo no decurso do processo de

socialização pode ser analisada alternadamente como produto interiorizado das

Page 46: As formigas e os carreiros

46

condições sociais anteriores objectivas e como expressão dos desejos

particulares mais subjectivos, mas é necessariamente marcada pela dualidade

entre o processo biográfico e o relacional.

Em paralelo, vários autores referem-se à identidade como algo paradoxal

dando conta de que a identidade diz respeito simultaneamente ao que parece

idêntico e diferente, único ou aproximado aos outros (Lipiansky, 1992). Por

outro lado, o estudo das identidades a nível científico, implica a abordagem de

um paradoxo que consistiria em tentar articular diversas perspectivas de

fenómenos sociais diferentes.

Paradoxal, ou não, o conceito de identidade utilizado aponta para uma

interacção dinâmica entre o indivíduo e o seu grupo de pertença e,

paralelamente, para a representação que possuem do grupo e da sua posição

social no seu interior.

Os modelos da identidade social das escolas de Bristol e de Genebra, no

âmbito da Psicossociologia e da Sociologia compreensiva, tiveram uma grande

repercussão nos estudos sobre a identidade, o primeiro pretendendo não só

ultrapassar as extrapolações do nível individual e interindividual para o nível

das relações intergrupos, como questionar a importância do conflito na

ocorrência da discriminação entre grupos sociais; o segundo, com estudos

orientados segundo o interaccionismo e o construtivismo, onde o indivíduo era

simultaneamente visto como alvo dos condicionamentos do meio e agente

activo sobre esse meio, elaborando sistemas de organização e coordenação

das suas acções com as dos pares, em ordem a estruturar a acção colectiva.

Os abundantes e variados estudos de ambos os modelos, que se focaram na

identidade vivida e na identidade atribuída, revelam precisamente as

dimensões biográfica e relacional, onde o espaço de trabalho se traduz numa

recursividade permanente entre as duas dimensões.

A identidade profissional designa, assim, simultaneamente a imagem que o

indivíduo possui de si próprio e a forma como se define por referência às

instâncias que o rodeiam, designadamente ao grupo de pertença (Dubar,

1998).

Sainsaulieu é um autor que desenvolveu estudos que se inscrevem, em grande

medida, na linha dos estudos desenvolvidos no interior da escola de Genebra e

Page 47: As formigas e os carreiros

47

que apontam, entre outras, para duas dimensões existentes nos contextos de

trabalho que condicionam a construção das identidades: a ideologia e o poder.

Segundo este autor (Sainsaulieu, 1977) a identidade constitui-se um campo de

investimento (das práticas, do trabalho, dos saberes, da relação), no decurso

do qual se registam transacções entre o indivíduo e a sociedade.

Pelo que referi até aqui verifica-se que o conceito de identidade, que pretende

ser central neste trabalho, é polissémico e bastante complexo, até porque

recolhe diferentes usos sociais (psicológicos e sociológicos) e comporta a

noção de identidade enquanto processo dinâmico e simultaneamente biográfico

e relacional (Dubar, 1997a).

Diria que para este trabalho me situo na concepção de identidade filiada na

perspectiva interaccionista (inspirada em Mead) onde se entende a acção

humana como algo que se constrói na comunicação frente a frente, com os

outros, e não estritamente comandada pelas normas e valores sociais

impostos, reconhecendo a participação activa dos sujeitos na construção da

sua identidade.

Recorda-se que o interaccionismo simbólico teve origem nos E.U.A., surgindo

ligado aos princípios filosóficos do pragmatismo defendidos, entre outros, por

autores como William James, George Mead e John Dewey que consideravam

que a pessoa humana é o produto das interacções sociais, nomeadamente das

que se produzem a partir da linguagem e do jogo. No âmbito da sociologia, o

interaccionismo, cujo objecto é a estrutura da experiência individual na vida

social, tem-se constituído como pólo centralizador de um debate de ideias,

alimentando diversas perspectivas interpretativas e dinâmicas da

problematização social (Goffman, 1993).

A questão das socializações e da identidade remete-nos por sua vez para o

conceito de profissionalização e para a dinâmica de uma profissão, e segundo

Rodrigues “este é devedor mais da perspectiva interaccionista do que da

perspectiva funcionalista” (1997: 20-22). As representações que os

profissionais fazem de si (bem como as representações que os outros fazem

da profissão e dos profissionais) dependem das crenças, valores e referências

culturais que se adoptam no quotidiano, mas também de patrimónios

simbólicos herdados e construídos ao longo dos tempos.

Page 48: As formigas e os carreiros

48

Uma vertente que ainda está presente nessas representações é a concepção

da profissão como essencialmente feminina, o que condicionou parte da

identidade profissional ao papel de género que a sociedade esperava da

mulher, na valorização da actividade observável e na desvalorização da

dimensão intelectual da prática profissional.

Valerá a pena recordar que na sua emergência era uma ocupação

predominantemente feminina e elitista, exigindo para o exercício profissional a

“vocação e a boa formação moral” e tendo como postulado que “só por amor

ao próximo” se abraçava esta profissão. Só com a introdução das teorias

sociais e humanas, na formação académica e profissional e na análise dos

processos sociais, foram adoptadas pelo Serviço Social concepções teóricas e

metodologias específicas (o método de caso, de grupo e, mais tarde, o de

comunidade) que lhe permitiram alargar os campos de intervenção e

sedimentar a construção identitária.

O desenvolvimento desta função em todas as esferas da actividade

socioeconómica é uma das características das civilizações do tipo ocidental e

um dos operadores essenciais do processo de racionalização da sociedade, no

sentido de Max Weber.

Apesar de uma primeira visão da profissão linear e psicologizante, a detenção

e a transmissão de um saber e de uma prática, de um «saber – fazer»,

contribuiu para o reconhecimento profissional dos Assistentes Sociais enquanto

grupo específico. Garnier é um dos autores que defende que os assistentes

sociais conseguiram criar um «modelo autónomo», referindo que:

“…foi construído a partir do envolvimento profissional, baseado sobre uma ética, com um valor dominante, o humanismo, fundado na relação com as pessoas, sobre a confidencialidade e o segredo profissional, baseado num processo pedagógico de transformação do indivíduo, utilizando um saber e um saber fazer psico – educativo” (1999: 25-43).

Este modelo estava ligado à permanência da relação de ajuda como princípio

fundador da identidade, tornando o assistente social num profissional “que

ajuda” e permanecendo até a prática do Serviço Social se inserir no âmbito das

políticas sociais, as quais têm por base o modelo democrático ancorado nos

direitos do homem: um homem – cidadão, agora visto como sujeito portador de

direitos e deveres. Do ponto de vista da sua prática profissional, estas

Page 49: As formigas e os carreiros

49

mudanças de perspectiva implicaram mudanças na intervenção do Serviço

Social, passando a sua actuação a privilegiar uma concepção mais

tecnologizante da gestão social.

O Serviço Social adoptou um «modelo instrumental e tecnicista», onde a acção

dos Assistentes Sociais reforçou a instrumentalidade da acção social,

consistindo na organização da vida, na divisão e coordenação das diversas

actividades, sobre a base de um estudo preciso das relações entre as pessoas

que procuram os serviços onde eles estão, os instrumentos e o meio, visando

uma maior eficácia e rentabilidade.

Na década de 60 a profissão de Serviço Social é influenciada por sectores

intelectuais de esquerda, que a concebem como uma forma de regulação e

controle social. O movimento de reconceptualização contribui, assim, para uma

nova reflexão sobre o seu papel e a sua eficácia, levantando a questão da sua

relação com o capitalismo e as classes sociais e proporcionando um repensar

da profissão pelos próprios assistentes sociais, relativo aos seus pressupostos

teórico – políticos. Este movimento acabou por permitir a introdução de uma

prática do Serviço Social “politicamente orientada, inserida no processo de luta

de classes, e crítica do sistema capitalista de exploração e dominação,

possibilitando um questionamento da prática institucional de adaptação social e

uma articulação do Serviço Social com os movimentos sociais” (Faleiros, 1996:

10), ao mesmo tempo que também questionou as condições estruturais da

visão adaptadora.

Associado a este movimento, surgem na divisão social do trabalho, outros

profissionais da área das ciências humanas. Esta inserção de outros

profissionais no campo da intervenção social prendeu-se com aspectos ligados

à racionalização do trabalho na sociedade contemporânea e à mudança de

alguns indicadores sociais.

O Serviço Social não ficou alheio a estas mudanças, que lhe questionaram o

simbolismo, a legitimidade e o monopólio do campo profissional procurando,

em simultâneo, fazer a autocrítica dirigida à dimensão moralizadora e

normativa que estigmatizava a sua prática profissional. Tornou-se, assim

inevitável uma reflexão profunda sobre as funções básicas e tradicionais do

Serviço Social, e sobre a sua identidade e prática.

Page 50: As formigas e os carreiros

50

Da emergência à institucionalização e desta à actualidade foi feito um percurso

por várias gerações de assistentes sociais e, apesar das crises, tensões e

contestações, oriundas quer de dentro, quer de fora, do campo profissional, o

Serviço Social foi fazendo reflexões, cedências, rupturas e evoluções que

constituem uma história e, foi ainda utilizando margens de autonomia para se

posicionar, adaptar e/ou evoluir.

Identifico-me com a proposta do Serviço Social como uma «profissão

complexa» que se diferencia mais «pelos seus objectivos do que pela sua

tecnologia» e que ao partilhar um mesmo corpo de conhecimentos com outras

profissões de ajuda (como é o caso por exemplo, da Psicologia, da Sociologia,

da Pedagogia), distingue-se sobretudo por ter objectivos de “ justiça social,

cidadania e autodeterminação” (Mc – Donough,1999:101).

Neste movimento interno de construção de novas identidades profissionais,

reaproxima-se das Ciências Sociais e avalia as suas capacidades para

ultrapassar a inevitabilidade da partilha do processo de intervenção social, mas

também acentua dilemas para os profissionais entre os objectivos «prescritos»

e o trabalho real em intervenções movidas, na maioria das vezes, por

imperativos e procedimentos organizacionais rigidificados.

A nível da profissionalização do Serviço Social pode constatar-se o reavivar de

outros dilemas (por exemplo, o suposto carácter missionário, a auto-

representação da profissão como vocação e a histórica tendência da

substituição da intervenção profissional, que também pode ser tida, em alguns

casos, como paliativa e paternalista, por actividades voluntárias) recolocados

pelas condições de trabalho e pela persistência de uma acção profissional

intuitiva, mais inspirada na experiência pessoal do Profissional do que na

mobilização de referenciais teórico-metodológicos. Mas apesar desta situação

estrutural, cresce a convicção de que, para satisfazer as necessidades de bem-

estar, não chegam os preceitos neo-liberais, nem as novas filantropias e de

que é preciso mudar a sociedade através de processos individuais e colectivos

de participação e implicação.

Se o processo de profissionalização foi marcado por uma tecnicidade, por uma

racionalização de procedimentos e por uma preocupação com os

Page 51: As formigas e os carreiros

51

conhecimentos específicos da disciplina científica (que tiveram o seu papel

nessa «evolução»), a partir da década de 90, assiste-se a um maior

questionamento sobre o sentido do Serviço Social na defesa dos Direitos

Humanos e das suas próprias fontes de legitimação.

Com base nas sucessivas crises da sua trajectória e, na medida em que o

Serviço Social se afasta da identidade que o estigmatizou como mediador de

um pensamento conformista (em perspectivas mais abrangentes mas também

mais periféricas), vai recuperando diversidade interna e oportunidades de

construção de novas formas de participação no processo de mudança social.

Voltando a Giddens e questionando de que forma a «modernidade tardia»

causa impacto no projecto reflexivo, o autor refere que:

“…uma das características distintivas da modernidade é uma intercomexão crescente entre dois extremos da «extensionalidade» e da «intencionalidade»: de um lado influências globalizantes e, de outro, disposições pessoais (…) Quanto mais a tradição perde terreno, e quanto mais se reconstitui a vida quotidiana em termos da interacção dialéctica entre o local e o global, mais os indivíduos se vêem forçados a negociar opções de estilos de vida no meio de uma série de possibilidades (…). O planeamento da vida organizada reflexivamente (…) torna-se característica fundamental da estruturação da auto-identidade” (Guiddens, 1991:1,5)

Por outro lado, visões menos optimistas, colocam em causa a possibilidade da

reflexividade na «sociedade em rede», que:

“… está fundamentada na disjunção sistémica entre o local e o global para a maioria dos indivíduos e dos grupos sociais e também, na separação entre diferentes estruturas de tempo/espaço, entre poder e experiência. Portanto, (…) o pensamento reflexivo da vida torna-se impossível” (Castells, 2007:9).

Estes posicionamentos divergentes sobre a hipótese ou não hipótese de

«planeamento da vida» questionam a construção identitária em múltiplas

dialécticas (nomeadamente entre as dimensões global e local) evidenciando a

questão da autonomia das pessoas para decidir entre diferentes possibilidades

(ou para submergir aos condicionalismos societários) e essas concepções

afectam necessariamente quer as formas como os assistentes sociais se

perspectivam, quer as formas como entendem as pessoas com quem

trabalham, quer as formas como influenciam as decisões nas organizações

onde intervêm, quer ainda os contributos que dão para as formas como as

populações com quem trabalham se identificam.

Page 52: As formigas e os carreiros

52

Neste âmbito, destaco duas concepções de proveniências diferentes

(Sociologia e Psicologia) que ilustram posições críticas sobre o papel

«técnico», no sentido de aquele/a que domina uma dada tecnologia:

a concepção de «aprendizagem da desqualificação social» do sociólogo

francês Serge Paugam (2003) que nos destaca, entre outros aspectos «a

carreira psicológica dos assistidos» e a «constituição de uma identidade

negativa» nas populações que recorrem aos serviços de acção social,

marcada pelos «mecanismos de desqualificação social da comunidade»,

pelos efeitos da intervenção social num plano normativo e pela «eficácia da

intriga discriminatória e da etiquetagem da população»;

a concepção do psicólogo e terapeuta familiar português, José Manuel

Almeida e Costa, que destaca as “intromissões pseudoprotectoras das

«fábricas» estatais, especializadas em «integrar» famílias de classe baixa

na normapatia vigente, coisificando-as” (in Gameiro, 2011:14).

Estas perspectivas ilustram, a título exemplificativo, que os fenómenos de

«desqualificação social» e/ou de «coisificação» (no sentido de perda de poder

e autonomia) são produto de construções sociais para as quais também

contribuem os Trabalhadores Sociais (entre eles, os assistentes sociais).

Não quero (nem poderia) com a inclusão destas perspectivas diabolizar os

assistentes sociais, mesmo que na sua vertente mais normativa e paliativa;

mas parece-me de grande importância analisar as criticas e as perspectivas

que as sedimentam de forma a reflectir sobre «o quê», «como» e «para quê»

se intervém, no entendimento de que já não nos basta o mandato social para

realizar análises competentes e válidas, no plano legal e científico.

Estas análises, por outro lado, têm um efeito (por vezes, menos visível e

menos consciente) de contributo para constituir o mundo no qual vivemos e

para legitimar definições e interpretações da realidade, tendo também

consequências para a burocratização e para a construção dos sistemas

simbólico e identitário, quer dos profissionais, quer das organizações, quer das

populações com quem interagem.

Nestes processos ganham importância quer dimensões de auto-identidade (no

conceito de Giddens), quer dimensões relativas à socialização e à identidade

atribuída. Em relação às primeiras impõe-se a questão do significado atribuído

Page 53: As formigas e os carreiros

53

e da procura de sentido (s) num projecto reflexivo que orienta a vida e a

necessidade de aprendizagem permanente – e recorde-se que para este autor:

“…a auto-identidade não é um traço distintivo apresentado pelo indivíduo. Trata-se do próprio ser apreendido reflexivamente pela pessoa em relação à sua biografia. (...) o que define ser humano é saber (...) tanto o que se está a fazer como por que se está a fazer algo (...). No contexto da ordem pós-tradicional, o próprio ser torna-se um projecto reflexivo” (Giddens, 1991:35).

Em relação às segundas, será possível:

“… abordar a questão da socialização numa perspectiva da mudança social e não somente da reprodução da ordem social. Ao relacionar a questão da diferenciação do social em “esferas‟ especializadas dotadas de uma autonomia cada vez maior e à constatação da tendência para a formação se generalizar ao conjunto da existência biográfica, esta teoria permite definir a mudança social como um processo conjunto de “construção de um mundo específico” e de “transformação de uma identidade especializada” e, portanto, da socialização secundária em ruptura com a socialização primária (…) qualquer análise dos processos e condições de mudança ou da inovação se confronta com a questão da aprendizagem colectiva pelos actores das capacidades de «invenção» de novos jogos, de novas regras e de novos modelos relacionais” (Dubar, 1997a: 98/99).

Neste sentido, a mudança social é inseparável da transformação das

identidades, isto é, simultaneamente inseparável dos «mundos» construídos

pelos indivíduos e das «práticas» que decorrem desses «mundos» - para o que

contribui a problemática da «construção social da realidade» que faz a apologia

das possibilidades de mudança nomeadamente através de uma modificação

das interacções, das relações sociais, em suma, através da acção

comunicacional.

Page 54: As formigas e os carreiros

54

1.3. OS ESPAÇOS E OS TEMPOS DA APRENDIZAGEM DA

PROFISSÃO

Quando me penso, quer como formanda, quer como formadora, penso-me nos

territórios anfíbios em que o ensino e a aprendizagem, embora com recurso a

processos diferentes, se cruzam. Esta opção não pretende sublinhar a

dicotomia no espaço e no tempo destas duas faces da mesma «moeda», mas

apenas evidenciar alguns aspectos de relação e interacção destes processos,

quer no debate sobre o ensino académico dos assistentes sociais, quer na

relação que o profissional faz com o seu processo de aprendizagem inicial e ao

longo da vida, com a apropriação dos conhecimentos, com a relação da

formação com o trabalho e com a relação deste com o reconhecimento dos

saberes.

A formação, à qual está ainda subjacente uma lógica técnico-instrumental, não

pode ser só formação «por» qualquer coisa e «para» qualquer coisa, tem

também inerente um processo e um percurso inerente à relação do homem

consigo próprio - a individualidade - à relação com os outros - a sociabilidade -

e à relação com o mundo que o rodeia – mundanidade - e com o tempo que lhe

é simultaneamente imanente e transcendente - a temporalidade. Essa mesma

temporalidade marca o historial do Serviço Social, com algumas tensões,

paradoxos e crises, mas também com processos de institucionalização e

academização que constituem um campo de reconhecimento entre os próprios

assistentes sociais.

Respeitando os diferentes sentidos e as várias relações necessários para

conjugar os vocábulos «formação» e «educação» no plural, partilho aqui uma

concepção de fundo que tem percorrido a experiência deste processo de

investigação: a produção da vida, através da apropriação da experiência e dos

processos de formação dos seus profissionais, acompanha as mudanças e a

produção da profissão de assistente social.

As práticas de formação enquanto processo, valorizam as experiências e as

vertentes informais da formação (Pain, 1990), o papel central de cada sujeito, e

a temporalidade longa - Aprender uma profissão está para além da formação

Page 55: As formigas e os carreiros

55

em sentido estrito e remete para a aprendizagem contínua dos próprios actores

numa multiplicidade de espaços e tempos. Esta temporalidade longa, de

acordo com Honoré (1990), está inerente à dinâmica de formatividade.

A propósito lembro outros autores que considero centrais, um da sociologia

política e outros do próprio campo do serviço social:

Donzelot (1994:231-34) que tece uma posição bastante crítica sobre a

«Invenção do Social» no declínio das paixões políticas e fundamenta a

critica ao Estado-providência e os seus críticos (entendidos como faces da

mesma moeda). Este autor encontra o gérmen de uma solução na medida

em que ocorra a possibilidade de negociação com a base da sociedade, no

suposto de que o renascimento dos conflitos na base surgirão na medida

em que as formas centrais e globais de transacção fiquem cada vez mais

descredibilizadas. Para este autor a observação destes novos dispositivos

(de base local), e sobretudo da linguagem que eles utilizam, revela a

natureza do mecanismo que eles irão jogar; acrescentando que o princípio

da formação permanente é significativo do mecanismo de articulação entre

«o desejo de mudar a vida com a necessidade de mudar a sociedade»;

Chris Rojek et al (1988), na tese central do livro «SocialWork & Received

Ideias» defendem que o Trabalho Social é sobre pessoas e sobre palavras,

argumentando que a linguagem que os assistentes sociais são ensinados a

utilizar para «libertar» os seus ‘clientes’ frequentemente tem o efeito de os

aprisionar a eles próprios. Estes autores destacam que, apesar da

existência de muitas diferenças de referente epistemológico e de contextos

de exercício profissional, o que une estes profissionais é o objectivo de

promover o ajustamento do ‘cliente’ às condições existentes na sociedade.

Fazem um percurso nesta obra desde o que denominam «Trabalho Social

Tradicional» até ao «Trabalho Social Radical» - que identificam como uma

terceira via que se apoia no construtivismo crítico para explorar e

desenvolver possibilidades.

O termo «Trabalho Social» é aqui utilizado como sinónimo de Serviço Social,

apesar da génese diferente de uma e outra designação. Como já referi, esta

diferença de terminologia traduz historicamente diferenças conceptuais, em

que a segunda decorre do modelo francófono e a primeira do modelo anglo-

saxónico. Enquanto «Serviço Social» se associa à ideia de um serviço prestado

Page 56: As formigas e os carreiros

56

à sociedade na lógica do assistencialismo ligado ao humanismo cristão,

«Trabalho Social» identifica-se com uma actividade realizada em benefício da

sociedade, focada no aconselhamento social para capacitar os indivíduos a

potenciar os seus recursos disponibilizados pela sociedade. Divergem ainda na

forma atribuída à sua vinculação académica e à natureza da sua filosofia de

formação. Enquanto o modelo francófono se pauta por uma ética social de raiz

religiosa e um conteúdo de formação essencialmente doutrinário, o modelo

anglo-saxónico caracteriza-se por ser mais ecléctico, expressando a sua

formação uma simbiose entre o pragmatismo social e o pragmatismo científico.

O que me pareceu mais interessante nestas perspectivas foi o lugar de

destaque da linguagem como forma narrativa de descrever a intervenção e a

leitura da sociedade onde esta ocorre, e o alimento da controvérsia do campo

profissional a propósito da diversidade de práticas, entendimentos e

posicionamentos.

Destaco então três aspectos que fundamentam a importância da linguagem:

i) a ausência de neutralidade. A linguagem é evocativa de uma herança

específica da profissão onde se congregam as «ideias recebidas» e os

códigos de intervenção que organizam o mundo profissional;

ii) a existência de um léxico específico. As «ideias recebidas» do serviço

social consistem em termos-chave tais como «respeito», «risco»,

«tolerância», «necessitado de ajuda», «confidencialidade»,

«responsabilidade profissional»… os quais são bastante elásticos e

resistem a uma definição fechada, sendo símbolos que condensam,

misturam e re-arranjam crenças, especulações, percepções, factos,

expectativas, memórias e emoções e, muitos dos termos combinam um

alto nível de irrealidade com alguma ambiguidade e constrangimento por

parte dos «clientes»;

iii) a linguagem profissional do serviço social como uma forma de poder -

Ela dá oportunidade ao assistente social para etiquetar o «cliente» e

regular o seu comportamento que é definido como «em risco»,

«inadequado», «disfuncional» ou «anormal».

A utilização da «discourse theory» parece uma abordagem útil para reflectir e

entender muitos aspectos no Serviço Social na contemporaneidade,

contribuindo para o distinguir da «prática ideológica».

Page 57: As formigas e os carreiros

57

A propósito da perspectiva de uma prática profissional ideologicamente

conotada será importante distinguir dois níveis de ideologia: por um lado, um

nível geral, onde se pode assumir que cabe aos assistentes sociais trabalhar

numa sociedade marcada por uma ideologia de classe e modelo de

desenvolvimento dominantes - o que quererá dizer que os nossos

pensamentos, sentimentos e acções são quotidianamente sublinhados como

relações de poder; e, por outro lado, um nível específico, onde uma ideologia

prática enforma as ideias, crenças e teorias do trabalho diário.

A distinção entre uma prática ideológica e a ideia de que o Serviço Social vive

e convive com «ideias recebidas» e códigos de prática de uma história

profissional e de formação, assenta sobretudo na possibilidade do profissional

reconhecer essa «herança» e optar por a seguir, ou não. Assim, a linguagem

«tribal» do Serviço Social, nas suas versões mais tradicionais ou mais radicais,

faz uma utilização extensiva dos conceitos humanistas, tais como «pertença»,

«necessidades partilhadas», «acções necessárias», etc., na defesa de que a

pessoa é composta por capacidades, necessidades e vontades comuns e

naturais que podem ser desenvolvidas progressivamente através de uma

orientação sensata e racional. Este código coloca o assistente social no centro

do problema social e requer dele ação, numa dualidade de papel: por um lado,

um actor que desempenha um «papel heróico» de quem luta (e tem poder)

para aliviar o sofrimento e as necessidades dos outros e, por outro lado, um

papel de vítima, «ensaduichado» entre as populações e as organizações,

colocado nas instituições essencialmente para gerir respostas sociais,

redistribuir recursos e promover a conformidade à norma em nome da «coesão

social», em postos de trabalho onde a sociedade requer que ele «faça» e que

faça as «coisas certas».

Estes são profissionais cujo exercício é, cada vez mais, realizado sob fortes

pressões institucionais para estereotipar e mecanizar os procedimentos, na

tentativa de produzir eficácia e camuflar e reprimir a incerteza e a

conflitualidade. Nestas situações a excessiva normatividade contribui para

produzir acções e respostas rígidas, que não permitem ao profissional admitir a

dúvida, as contradições e os paradoxos.

Page 58: As formigas e os carreiros

58

Quando nos perguntamos «o que é o serviço social», teremos que perguntar o

que é que na nossa cultura é «social»? E que formas de «acção social» são

oficialmente sancionadas, reprimidas e punidas?

Teremos que perguntar o que é que na nossa cultura é definido por

«normalidade» e que critérios de moral normativa - o que é considerado

«intolerável»? (para quem e por quem) estão definidos na nossa cultura e são

objecto de passagem geracional?

Estas questões encontram-se em relação directa com a forma como se

entende o conceito de «social», aqui utilizado na perspectiva de Donzelot como

incluindo simultaneamente um leque de respostas que providenciam

mecanismos compensatórios (para o desemprego, a doença, a velhice, …) e

as práticas de assistência associadas aos trabalhadores sociais e que o autor

define como

“…um conjunto de significados que permite à vida social escapar das pressões materiais e das incertezas político-morais; o vasto leque de métodos que fazem com que os membros da sociedade se sintam relativamente seguros” (Donzelot, 1979:26).

Esta perspectiva complexa com vários ângulos inclui desde logo os

«significados», o que evidencia a subjectividade dos actores. Neste âmbito, tive

em consideração a ideia de que «a acção faz o actor» como defende Isabel

Guerra:

“A construção do actor colectivo, e do próprio sistema de acção, pode ser assim considerado um fenómeno identitário. Em qualquer grupo humano, a capacidade de representação simbólica (...) não pode ser separada do sistema de relações sociais. Se se podem identificar os actores, está, ainda, por identificar o processo da sua constituição – prática e simbólica – como actores colectivos no contexto das interacções, negociações e relações com o ambiente externo e as problemáticas em causa” (2006:23).

O Serviço Social, sendo simultaneamente um actor colectivo e uma profissão

de actores que se institucionalizou na modernidade, só pode estar em debate

sobre a sua formação, o seu exercício e a sua identidade plural. Este debate

tem a importância (e a necessidade) não só de reflectir referências e

posicionamentos, mas também de dar um contributo para a disciplina, que

encontra a sua justificação e reconhecimento na prática profissional mas que

continua a procurar fontes de legitimidade e novas construções identitárias.

Aliás, a identidade parece nunca ter estado tão interdependente das suas

dimensões científicas e profissionais como hoje: na medida em que ao mesmo

Page 59: As formigas e os carreiros

59

tempo que a disciplina se procura credibilizar e fazer reconhecer no terreno

académico, a profissão corre riscos de desprofissionalização e de

instrumentalização tecnocrática, ao ser essencialmente comandada pelas

lógicas instrumentais vigentes.

A situação de risco e incerteza é também composta pela grande diversidade de

teorias em conflito sobre os problemas sociais e o trabalho de intervenção

social; sendo que, em tese, caberá ao assistente social escolher. Mas não será

uma falsa «escolha» já que remete para a esfera individual escolhas que são

fundamentalmente societárias? E qual o papel da formação?

Neste domínio, partilhamos a convicção de que existem saberes que

funcionam como «modelos de referência», os quais ultrapassam as fronteiras

tradicionais – construídos através de redes, articulações e filiações – e que, ao

serem apropriados pelos actores, transformam as práticas locais de acção.

No entanto, este facto não se traduz directamente na homogeneização ou

uniformização de tendências, se se tiver em conta que a pós – modernidade é

simultaneamente mais diversa e mais homogénea do que a modernidade

(Nóvoa, 2001).

A importância atribuída hoje, no campo das teorias da aprendizagem e da

formação à experiência é incontornável e articula-se com a reflexão que os

sujeitos fazem sobre si próprios e sobre a sua acção no mundo. Neste

processo é valorizado o papel do sujeito e o processo experiencial que o

indivíduo desenvolve para a realização das suas aprendizagens significativas.

Assim, a aprendizagem é um processo holístico de adaptação à vida,

envolvendo transacções entre o sujeito e o meio e, por isso, é também um

processo de criação e de conhecimento.

Se os conceitos de educação e formação são susceptíveis de significados

muito variados, também o conceito de aprendizagem é polissémico, com

destaque para quatro grandes teorias construídas no campo da psicologia – as

teorias comportamentalista, cognitivista, humanista e da aprendizagem social.

Page 60: As formigas e os carreiros

60

À luz do paradigma hermenêutico e interpretativo, toda a acção humana é

portadora de sentido e só pode ser compreendida e interpretada a partir de

contextos históricos e culturais, valorizando o conhecimento como local e

particular. A reflexão na acção e sobre a acção, a que se refere Schon (1996)

apela a uma relação dialéctica entre saberes teóricos e saberes adquiridos na

acção. A este respeito, Canário (1999:111) refere que:

“A ideia que hoje tende a ser prevalecente, no campo das teorias da formação, nomeadamente da formação de adultos, conferindo uma importância decisiva aos saberes adquiridos por via experiencial, e ao seu papel de ‘âncora’ na produção de saberes novos, procura articular uma lógica de continuidade (sem referência à experiência anterior não há aprendizagem), com uma lógica de ruptura (a experiência só é formadora se passar pelo crivo da reflexão crítica) ”.

Se defendermos, como Dubar (1997a), que o problema da mudança (individual

e colectiva) das práticas profissionais é, acima de tudo, um problema de

socialização profissional, então, essa mudança supõe o desenvolvimento, no

contexto de trabalho, de uma dinâmica formativa e de construção identitária

que corresponde a reinventar novas modalidades de socialização profissional.

Se seguirmos a ideia de Rui Canário de que essa reinvenção só é possível na

acção, temos que admitir que os processos formativos passam a instituir-se

como processos de intervenção nas organizações de trabalho (Canário, 1998:

19), o que se revela particularmente desafiante com o desemprego em massa

e as relações de trabalho cada vez mais precarizadas.

A teoria cognitivista ou construtivista entende o

saber como um modo dinâmico de conhecer,

como um processo em que a aprendizagem é

concebida num movimento circular entre o

aprendente, a sua experiência e o meio

envolvente.

A aprendizagem é entendida como um processo

de reorganização dos elementos que constituem

uma representação.

A teoria comportamentalista concebe a

aprendizagem como uma actividade

intencional, com uma resposta esperada e

satisfatória a estímulos externos, sem grande

participação consciente do sujeito.

A teoria da aprendizagem social valoriza a

modelagem como via para adquirir e modificar

condutas e, fundamentalmente, atitudes.

A teoria humanista, identifica o carácter único

da experiência pessoal e centra a

aprendizagem no desenvolvimento pessoal do

aprendente.

Page 61: As formigas e os carreiros

61

Na linha da explicitação que acho necessário fazer de conceitos polissémicos,

opto pela concepção de «formação» de Bernard Honoré (1977) que entende a

formação como uma dimensão fundamental da vida e, neste sentido, afasta-se

quer das perspectivas funcionalistas de treino mais ou menos instrumental,

quer do paradigma escolar, aproximando-se da corrente das “histórias de vida”.

Honoré defende a sua «teoria da criação e da elaboração do projecto» (1977)

no pressuposto de que a formação é uma propriedade evolutiva na história

individual e colectiva dos seres humanos, em que as experiências de formação

só são formativas na medida em que ganham sentido na história pessoal de

cada um, numa perspectiva de educação regida por princípios de

desenvolvimento dos sujeitos em que fica sublinhada a importância da

formação para aqueles que a vivem.

O conceito de Educação que utiliza este autor (vocábulo que prefere ao de

formação) rege-se por princípios de desenvolvimento pessoal dos sujeitos,

embora limite o espaço e o tempo da formação às experiências de formação

inseridas em actividades educativas.

Dominicé (1984) diverge deste aspecto em particular e constrói uma concepção

que acentua o processo de formação, onde as acções educativas são apenas

uns dos lugares e momentos possíveis desse processo de formação. Pierre

Dominicé, é um autor de quem se integra uma ideia de formação como

articulação entre experiência e aprendizagem. Para este autor, o percurso

individual de formação decorre num processo global de socialização, onde se

articulam inserção profissional e institucional, contextos socioculturais e

económicos, e em que a história individual e os acontecimentos históricos que

modelam uma sociedade estão em interacção constante.

Gaston Pineau (2004) por sua vez, propõe uma revolução paradigmática

baseada numa dialéctica entre Autoformação e Heteroformação, identificando

esta última como uma educação pelos outros (através de processos

diversificados como a formação escolar, profissional e sociocultural) e

Autoformação, entendida como uma apropriação do poder de formação por

parte dos indivíduos. Desenvolveu também o conceito de Eco formação,

concebido como um processo de autoformação que decorre na ausência dos

outros, que reenvia o sujeito a si mesmo e às coisas do seu habitat físico

elementar e de ‘Co formação’, pela abertura a uma comunicação social mais

Page 62: As formigas e os carreiros

62

profunda. No processo de mudança de representações e modos de relação

aparece com particular importância uma problematização sobre as

necessidades de formação, associada ao modelo de resolução de problemas.

Em contracorrente, a formação como processo de desenvolvimento pessoal

tem necessariamente um carácter reflexivo e de apropriação dos recursos em

presença, assumindo o profissional o ‘empowerment ‘pela sua própria

aprendizagem e pelo significado que lhe atribui, na diversidade cada vez maior

de ofertas formativas e de formas de entendimento. E promover a diversidade

significa

“…aceitar a formação como um processo de pesquisa, em que o erro desempenha um papel importante no processo colectivo de aprendizagem”, aceitando igualmente que “a acção educativa não é redutível a ‘receitas’, qualquer que seja o seu grau de elaboração, nem a modelos acabados, universalmente válidos” (Canário, 1994: 67).

Neste sentido, importa aos assistentes sociais, como diz o dito popular “não

deitar fora a criança com a água do banho”, ou seja, apesar da recente

legitimação de um saber conquistado por via académica, não esquecer o

domínio da aprendizagem experiencial que é perspectivada no sentido de

Josso (1989) como uma capacidade para resolver problemas, mas

acompanhada por uma formação teórica e/ou de uma simbolização e a sua

importância como domínio de saber específico da profissão.

No meu percurso profissional aprendi precisamente pela via experiencial o

papel e o valor do erro nos processos individuais e colectivos de

aprendizagem. Pessoa ou equipa que não erra é porque não arrisca, não

inova, não tenta construir soluções à medida dos problemas identificados e

com a participação de quem tem esses mesmos problemas.

A posição de Christine Josso (1991) é a de que, por convenção, os saberes

resultam da experiência e que os saberes socialmente valorizados são

elaborados segundo modalidades socioculturais precisas. Refere a autora que

as experiências são objectivadas a partir do trabalho consciente, e são

descritas em registos de expressão de dimensões diferentes (psicológico,

cultural, sociológico, psicossociológico, político e económico), e a riqueza pode

estar no trabalho feito a partir dos diferentes registos.

Page 63: As formigas e os carreiros

63

A transformação do vivido para a experiência implica, segundo Josso (1991)

três variáveis mediadoras: i) a linguagem e as competências culturalmente

adquiridas; ii) os contextos socioculturais nos quais os acontecimentos se

produzem; iii) as diferentes vias de acesso aprendizagens, com grande

diversidade de lógicas individuais e de contextos; ou, “Dito de outra forma, se a

lógica da educação é a de transmitir padrões culturais, a lógica da formação é

a da sua integração e a da sua subordinação negociada” (Josso, 1991: 32).

Esta posição parece-me particularmente interessante para pensar as

dificuldades que alguns assistentes sociais evidenciam, nas (co) relações entre

os contextos muitas vezes «marginais», «deprimidos» e «estigmatizados» onde

actuam e as respectivas aprendizagens – quer as próprias, quer as das

pessoas com quem trabalham, quer ainda as das organizações onde actuam;

para além das tensões que alguns profissionais experimentam entre lógicas

transmissivas de padrão cultural e lógicas de negociação (apesar do

vocabulário corrente entre os profissionais utilizar a «contratualização» como

prática corrente).

A valorização da experiência tem sido ambivalente quer no domínio restrito do

campo dos profissionais de Serviço Social, quer no âmbito, mais global, de

uma concepção educativa que privilegia a aprendizagem do conhecimento

científico tradicional em detrimento da aprendizagem reflectida da experiência.

E ambivalente, porque apesar de ser considerada como um elemento central

na aprendizagem dos adultos, também serve a muitos profissionais para

justificar a protecção do seu campo de intervenção e do valor da «tutoria» que

aceitem fazer para introduzir os novos profissionais no terreno nebuloso do

«conhecimento da realidade», furtando-se ao esforço de explicitar e comunicar

em que consiste esse conhecimento.

Defende-se aqui a possibilidade de dirimir o antagonismo entre a

«experiencialidade» e a «cientificidade» dando contributos para ultrapassar a

dualidade entre considerar o Assistente Social como um técnico/executor ou

um cientista social/artesão. Para situar este debate apoio-me numa distinção já

antiga que Lévi-Strauss (1962) estabelece entre os mapas cognitivos

accionados por técnicos especializados na realização do seu trabalho (que lhes

permitem utilizar novos recursos e instrumentos cognitivos adaptados às

Page 64: As formigas e os carreiros

64

finalidades atribuídas à acção) e aqueles que sustentam a acção do artesão,

que se apoia num conjunto de recursos e instrumentos cognitivos, produzidos

ao longo do tempo, cuja integração depende mais do princípio de que eles

poderão servir ‘para alguma coisa’ do que da sua congruência com critérios

de funcionalidade imediata. Por outro lado, era/é frequente ouvir as

pessoas especializadas pelos saberes experienciais dizer «que não sabem

dizer como fazem, nem ensinar o que sabem» o que remetia os sistemas

de aprendizagem «artesanais» para uma formação em exercício, muito

próxima da partilha e observação do trabalho do «mestre-artesão».

No Serviço Social, como em outras profissões sociais academizadas, esta

formação «artesanal» está cada vez mais distante, mantendo-se contudo a

necessidade de promover vivências reflectidas e aprendizagens experienciais,

que os livros, as metodologias e as teorias não podem ‘ensinar’.

Garnier é um dos autores do campo profissional que considera que:

“…o Serviço Social não é uma entidade desligada da profissão, muito pelo contrário, está presente na estrutura semântica, à qual a profissão se deve reportar, retornando ao «métier» para lhe dar sentido, constituindo-se este, como um vector para consolidar a profissão” (1999: 253).

A análise da profissão enquanto «ofício» propõe que a profissão de assistente

social, tenha como objectivo a reafiliação social, em duas vertentes: a

reafiliação identitária (acção individualizada) e a reafiliação contributiva (acção

concertada). Estas duas acções fazem parte de uma mesma estrutura, e

não podem ser trabalhadas uma sem a outra. A primeira diz respeito à

valorização pessoal dos factores do sujeito e a segunda aos aspectos sócio

relacionais nas esferas da família, dos grupos de pertença, da comunidade

e da sociedade em geral.

Em profissões, como a dos assistentes sociais, com vertentes relacional e

simbólica muito fortes, esta questão carece de grande aprofundamento - por

maioria de razão, quando as socializações e os desempenhos profissionais são

realizados em contextos organizacionais, e esses próprios contextos são

simultaneamente promotores de aprendizagens de rotinas, de procedimentos,

de regras e de conteúdos teórico-práticos significativos.

Page 65: As formigas e os carreiros

65

Nestes processos a «subordinação negociada» de que nos fala Christine Josso

nem sempre está presente, até porque os profissionais tendem a desvalorizar a

sua própria capacidade negocial assumindo alguns a mesma submissão e

condicionamento à autoridade recebida que gostam de reconhecer nas

populações com quem trabalham.

A socialização e a aprendizagem organizacionais ocorrem quando os

indivíduos de uma organização, agindo a partir das suas representações,

detectam convergências ou desvios entre os resultados esperados e os

resultados obtidos. Quando se constata a existência de desvios, os indivíduos

procuram a sua correcção, formulando novas hipóteses e criando novas

estratégias (Argyris e Schon, 1978). Para que exista aprendizagem

organizacional, estas descobertas têm de ser codificadas nas representações

partilhadas pelos indivíduos, ou nos elementos das “teorias em uso” na

organização. Se esta codificação não ocorrer, os indivíduos terão aprendido,

mas as organizações não o terão feito.

Esta dimensão parece de grande importância, quando a constatação empírica

nos remete para organizações cristalizadas, apesar de nelas intervirem

profissionais qualificados e reflexivos que, em dado tempo e contexto

favorável, promovem intervenções não rotineiras, que introduziram

mudanças significativas mas que não conseguem alterar as “teorias em

uso”. E apresenta-se em consonância com a abordagem da aprendizagem

experiencial atrás referida, que é uma fonte legítima, a partir da qual,

através de uma dinâmica reflexiva, é possível dar forma ao ‘vivido’ e

transformá-lo em conhecimento.

Por outro lado, aguça a curiosidade científica para investigar a perspectiva das

“organizações qualificantes” que se podem constituir como relevantes

contributos, nomeadamente para a democratização do trabalho, a valorização

das suas valências qualificantes, a articulação entre saberes formais e

informais, entre outros (Correia, 1997). Esta perspectiva abre enormes

potencialidades, nomeadamente no que respeita, a um recente campo de

pesquisa que procura entender os saberes adquiridos pelos adultos à margem

dos sistemas formais de educação/formação, em contexto de trabalho, ou em

Page 66: As formigas e os carreiros

66

contextos não-formais ou informais, com uma especial atenção ao papel da

experiência reflectida e ao papel do sujeito no ‘controle’ do seu próprio

processo de formação.

“Estes saberes desenvolvem-se numa multiplicidade de situações e de contextos de vida, e obedecem a uma lógica de construção e de difusão distinta daquela que tem sido até muito recentemente a lógica dominante (disciplinar, transmissiva), traduzida no âmbito educativo através de um conjunto de modelos e práticas pedagógicas” (Pires, 2005: 111).

A propósito, não resisti à tentação de mobilizar o já velho marco - o Livro

Branco - para uma apreciação crítica do que parece estar ainda instituído como

norma sócio – política em matéria de educação/formação. O Livro Branco,

lançado pela Comissão Europeia em finais de 1995, faz parte de uma linha de

acção comunitária com vista à análise e definição de linhas orientadoras no

campo da educação e da formação. Este documento procura sintetizar as

principais questões que actualmente se colocam aos sistemas de

educação/formação, e apresenta algumas propostas respeitantes a iniciativas a

desenvolver no contexto comunitário. Por um lado, procura identificar desafios

emergentes no domínio da educação/formação, no contexto europeu e, por

outro, delinear orientações e linhas de acção que contribuam para o

desenvolvimento da qualidade destes sistemas. Como refere a autora,

“Destacando a importância que a educação/formação detém no plano económico, no acesso ao emprego e na manutenção da empregabilidade, no combate ao desemprego e à exclusão social, e na promoção da igualdade de oportunidades, o Livro Branco realça ainda o papel que a educação e a formação desempenham na «identificação, integração, promoção social e realização pessoal» dos cidadãos europeus, procurando conciliar a perspectiva da inserção social, da empregabilidade e da realização pessoal” (Pires, 2005: 77).

Contudo, como também realça esta autora, o discurso que foi amplamente

divulgado e faz parte de um senso comum alargado, encontra-se repleto de

contradições e paradoxos, nomeadamente:

A existência de um «objectivo» na aprendizagem versus uma

aprendizagem, entendida numa perspectiva holística, globalizante, que

remete para a diluição de fronteiras (espácio-temporais), e não se

confina a resultados predeterminados, nem a contextos e instituições

formais. Cabe aqui equacionar, quer o papel não previsto das

Page 67: As formigas e os carreiros

67

aprendizagens realizadas em contextos não-formais e informais, quer o

‘lugar’ de quem aprende;

A aprendizagem como «melhoramento dos conhecimentos, aptidões e

competências» versus a perspectiva de que os conhecimentos, as

aptidões e as competências não se melhoram, desenvolvem-se,

constroem-se com o papel activo da pessoa. Na base está uma

diferença essencial, entre considerar a pessoa a partir do seu deficit, ou

através do seu potencial;

O «aprender a aprender» e a «adaptar-se à mudança» é a competência

considerada – chave para a aprendizagem ao longo da vida e para

responder à necessidade dos mercados de trabalho. Contudo, o versus

aqui ainda é mais estrutural: Aprender o quê a para quê? Aprender

como? O que questiona directamente as práticas e os modelos

tradicionais de ensino-aprendizagem desenvolvidos pelos sistemas de

educação/formação (Pires 2005: 96, 98).

As modificações que se têm operado, quer no contexto político e económico

das organizações, quer nos seus processos de gestão, fizeram com que

emergissem novas práticas de formação mais integradas, com maior simbiose

entre as situações de formação e de trabalho, de modo a permitir aquilo que as

teorias das organizações aconselham: “pensar ao mesmo tempo o indivíduo e

a organização”.

Nesta linha advoga-se que a convergência real entre a evolução dos modelos e

referentes teóricos da formação contínua e a evolução dos modos de

organização e administração das instituições, não significa que exista uma

relação instrumental entre formação e organização (formar primeiro, para

mudar depois), mas sim que as pessoas ‘se organizam, formando-se’ e que ‘se

formam, organizando-se’. Neste sentido, as organizações, enquanto

construções sociais, são encaradas como um processo permanente de

formação contínua. E as formações, enquanto contextos de trabalho, são um

processo permanente de desenvolvimento organizacional.

Resta saber se todo este movimento de qualificação dos profissionais de

Serviço Social (ao nível académico e profissional) está a resultar num

movimento de qualificação das práticas e em mudança organizacional, no

sentido de também, as próprias organizações, se tornarem aprendentes.

Page 68: As formigas e os carreiros

68

A propósito será de interesse convocar Rui Canário (2000) na abordagem

daquilo que mudou na formação entre os anos 70 e 90 com a passagem do

modelo da qualificação para o modelo da competência, sendo que este autor

remete para uma «autêntica mutação cultural» que permitiu a transição de uma

«visão social e humanista da educação permanente» para uma «visão

económica e realista da produção de competências», dizendo expressamente

que:

“Se o modelo da qualificação, corresponde a um nível preciso de formação, o modelo da competência remete, nos anos 90, para um requisito de empregabilidade. (…) É ao nível da relação com o saber e da relação de poder que se situam as escolhas educativas fundamentais e se justifica falar de inovação e analisar e discutir o ‘como’ e o ‘por quê? ‘. Produzir, por um lado, um acréscimo de pertinência e, por outro, um acréscimo de democracia emergem, hoje, como os eixos finalizantes e estruturantes da produção de inovações na educação e na formação” (Canário, 2000: 45).

O mesmo autor (2006) evidencia o paradoxo entre a inspiração humanista no

movimento da educação permanente na década de 70, sob a égide da

UNESCO, e as políticas e práticas de formação que contrariam essa inspiração

fundadora, assente na produção de indivíduos definidos pelas suas

capacidades de produtividade, de competição e de consumo. Esta situação

paradoxal é polarizada entre uma lógica de pessoa e uma lógica de indivíduo.

Estas lógicas e paradoxos (e provavelmente outros) atravessaram, e

continuarão a atravessar, a formação – inicial e contínua - dos assistentes

sociais. A aprendizagem da profissão de Assistente Social foi, em cada época,

marcada por correntes e ideais-tipo presentes na época e na sociedade, onde

o que parece ser específico (uma história, uma identidade e formas de acção

colectiva) é exactamente a construção colectiva de regras do jogo onde um

grupo profissional se reconhece para além das divergências ou convergências

face aos interesses imediatos.

No ideal – tipo da «sociedade pós-industrial» proposta por Daniel Bell (1976) e

convocada por Dominique Schnapper (2000), o conceito de pós-industrialismo

abrange cinco dimensões:

a «economia» que passa da produção de bens a uma economia de serviço;

Page 69: As formigas e os carreiros

69

a «distribuição das profissões» ou «estrutura social» onde ele consagra a

«proeminência da classe de técnicos e similares»;

o «princípio axial da organização social» que se define pela centralidade do

saber técnico para produzir inovação e inspirar a comunidade;

as «perspectivas de futuro» que se caracterizam pelo «controlo do

desenvolvimento técnico e o controlo normativo da tecnologia»;

e o «processo de decisão» que conduz a «uma nova ‘tecnologia’ do

intelecto».

Todas estas dimensões estão ligadas a um traço essencial que me importa

evidenciar constituído pela «transformação da natureza e da difusão do saber»

num corpo autónomo de saber.

No entendimento de que o conhecimento é um recurso fundamental e, como

diz Isabel Guerra, é em torno da sua apropriação e do seu controlo, que são

desencadeados conflitos

«…porque ele é condição para revelar a natureza real das relações sociais a nível simbólico. Sair da ideologia e produzir conhecimento, ter capacidade de análise e de reflexão, ter capacidade de comunicação e de auto-reflexividade tornam-se recursos-chave para a acção colectiva» (Guerra, 2006:50).

Esta «acção colectiva» é algo que, na proposta de Neveu (1996) é entendida

como uma «acção comum tendo como objectivo atingir fins partilhados» e é um

objectivo de intervenção possível para a profissão de Assistente Social explorar

uma das suas vias de legitimidade e construção identitária.

Page 70: As formigas e os carreiros

70

1.4. A FORMAÇÃO CONTÍNUA E A PRODUÇÃO DE

CONHECIMENTO

Os domínios teóricos abordados ao longo deste capítulo revelaram-se

fundamentais para enquadrar teoricamente o objecto de estudo e parte dos

princípios e pressupostos orientadores da pesquisa.

Tive necessidade de balizar alguns termos e conceitos do campo semântico

que mobilizei, quer para mapear campos conceptuais complexos, quer para

explicitar o que pretendia significar quando utilizo determinado termo ou

conceito. Começando pelo termo «educação de adultos», exemplarmente

polissémico e multireferencial, é possível identificar diferenças substanciais nas

suas representações e práticas, e esta constatação desafia a construção de um

caminho de desocultação de perspectivas e de controvérsias que facilitem

entendimentos plurais dos diferentes discursos e que interrogam as minhas

convicções e a minha prática.

Primeiro, «Educação de Adultos» ou «Formação de Adultos»?

A resposta a esta questão não é simples e alimenta-se de uma vasta produção

teórica. Mas importa-me aqui apenas iluminar estes conceitos que no senso

comum são conotados respectivamente com «alfabetização» e «formação

profissional», no entendimento de que sendo a «flutuação terminológica

relativamente frequente na literatura científica» e, embora a distinção entre

«formação» e «educação» remeta para tradições e campos sociais distintos, na

prática conduz a uma utilização frequente destes vocábulos como sinónimos

(Canário, 1999). No presente trabalho, utilizo «Educação de Adultos» no seu

sentido mais lato, como sendo a totalidade dos processos educativos que estão

presentes ao longo da vida, incluindo assim, todas as modalidades educativas.

Segundo, fazer este percurso a pretexto de desbravar caminhos no campo das

Ciências da Educação/Formação de Adultos foi também revisitar a minha

formação inicial em Serviço Social e re-olhar os seus contributos para o meu

quadro de referência, para a minha fomação contínua e para a minha prática.

No percurso feito por diferentes abordagens, coloco o enfoque em poder

pensar a formação (como refere Abílio Amiguinho) como uma reflexão sobre o

modo como os indivíduos se formam; sobre a forma como os adultos se

Page 71: As formigas e os carreiros

71

apropriam de um determinado tempo e espaço educativos e o integram no seu

percurso de formação; sobre aquilo que é de facto significativo e formador na

vida de cada um; sobre a maneira como as experiências e os saberes

profissionais, sociais e culturais podem ser mobilizados no processo global de

formação.

“…em vez de formar preferem falar em formar-se ou educar-se, numa clara alusão a que, em qualquer caso, a formação pertence sempre àqueles que se formam, através de um processo reflexivo sobre si próprio, sobre as situações, os acontecimentos e as ideias.” (Amiguinho, 1992:34).

As Abordagens Pragmatista, Humanista e Marxista - utilizando a categorização

de Finger e Assún (2003), com influências e desenvolvimentos diferentes entre

si e ‘inter’ si, têm influenciado não só os autores e interventores subsequentes

das Ciências da Educação, como constituem ainda hoje referentes do

pensamento e da formação dos assistentes sociais. Nomeadamente:

A «Tradição pragmatista americana»

Incontornável, John Dewey (1859-1952), na sua perspectiva filosófica e

antropológica, tido como o pai da Educação de Adultos americana, atribui à

Educação uma função central no processo evolutivo da espécie humana.

Na sua caracterização da espécie humana, Dewey evidencia três capacidades

distintivas: a linguagem, a construção de ferramentas (e a possibilidade de,

com elas, transformar o mundo) e a plasticidade (um dos contributos mais

originais deste autor que entende por «plasticidade» a capacidade de aprender

com a experiência, ou seja, com os erros e construir sobre essa aprendizagem.

A aprendizagem pela experiência é a encarnação do método científico).

Nesta concepção a ciência é «a plasticidade aplicada» (Finger e Asún:

2003:37), onde a aprendizagem, a educação e a ciência apenas fazem sentido

como parte do processo de humanização, crescimento e desenvolvimento.

A teoria da educação de Dewey divide a educação em 4 funções: a educação

como preparação, como potencial, como acção e como oportunidade de

participação na mudança através do «aprender-fazendo». A partir de Dewey e,

sobretudo de Eduard Lindeman (1895-1953), a tradição pragmatista americana

da educação de adultos tomou duas vias diferentes: a aprendizagem

experiencial de Kurt Lewin, David Kolb (diagnosticar ou facilitar o ciclo de

Page 72: As formigas e os carreiros

72

aprendizagem), Chris Argyris e Donald Schon (aprendizagem em dupla-volta)

entendida sobretudo como um mecanismo de diagnóstico e de resolução de

problemas e, o interaccionismo simbólico onde a resolução de problemas é

aplicada ao auto desenvolvimento da identidade, representado por autores

como Peter Jarvis e Jack Mezirow, entre outros.

Esta perspectiva remonta a Chicago, no início do século XX, onde a famosa

«Escola de Chicago» fazia confluir um conjunto de trabalhadores sociais e

cientistas de várias ciências, com preocupações sociais e políticas, para quem

os problemas humanos (as questões da delinquência, do desvio social, a

pobreza urbana, o desemprego, etc.) ganhariam com uma nova metodologia,

simultaneamente participativa e biográfica. Nesta última abordagem, o papel da

educação de adultos é o de facilitar a «resolução simbólica de problemas»

entre o ‘self’ e o ambiente, ambos simbolicamente construídos.

Nos autores de concepções mais alargadas, como Mezirow, este processo é,

não só de auto desenvolvimento, mas também de mudança social, num sentido

mais compatível com as «perspectivas inclusivas, diferenciadas, permeáveis e

integradas» de aprendentes adultos criticamente reflexivos.

Apesar do fascínio por estes autores e por estas vias, nas suas complexidades

e complementaridades, não posso deixar de reconhecer pertinência à crítica

feita por Finger e Assún à educação de adultos pragmatista, ao evidenciar que

não são conceptualizadas as instituições e estruturas sociais e não é

problematizado o desenvolvimento e o crescimento social.

A escola do Humanismo.

Esta «corrente» teve origem na Psicologia Humanista de Abraham Maslow e

em Carl Rogers. Indo à sua génese é importante situar que a Psicologia

Humanista era considerada uma «terceira via» entre a Abordagem Behavorista

(Watson, Pavlov e Skinner) e a Abordagem Psicanalítica (Freud, Jung e

Erikson). Enquanto a perspectiva Behavorista colocava o enfoque no

comportamento observável e mensurável que considerava a aprendizagem

como uma questão de condicionamento e reforço, por meio do estímulo-

resposta, a Abordagem Psicanalítica focalizava-se nas componentes

subconscientes e irracionais do comportamento: mecanismos de defesa,

necessidades e transferência. Por seu lado, de Carl Rogers salientam-se os

Page 73: As formigas e os carreiros

73

conceitos de «centralidade da Pessoa» e de «não-directividade», entre muitos

outros contributos. Esta «terceira via» que pretendia respeitar o controlo de

cada um sobre o seu destino, teve a sua transposição para o campo da

educação de adultos com Malcom Knowles (1913-1997) assente em três

conceitos-chave:

- a «andragogia», entendida como «arte e ciência de ajudar os outros a

aprender», e que Knowles considerava como a antítese da pedagogia;

- a «facilitação» entendida, nesta perspectiva, como o processo de fomentar,

através de um clima e ambiente favoráveis, o crescimento, o desenvolvimento

e a aprendizagem auto-dirigida, no sentido de Rogers e Dewey, ajudando a

pessoa a controlar esse processo;

- e a «aprendizagem auto dirigida» que é um conceito-chave de duplo

significado que, por um lado, contempla a passagem do indivíduo da

dependência para a maturação, para a autonomia e para a independência

(Rogers) e, por outro, é um processo que conduz a um maior controlo sobre o

ambiente em que se vive (Dewey).

Knowles combina ambos os significados no conceito de «crescimento» que

articula «auto-realização» com «acumulação de experiências», as quais são

tidas como recurso para a aprendizagem. O seu quadro de referência é

fundamentalmente terapêutico, com o fim último de ajudar o indivíduo a

«crescer». Este processo de desenvolvimento e crescimento pessoal é

caracterizado por uma contínua incongruência entre a experiência (por

natureza, existencial) e o seu significado, para a própria pessoa. A teoria

humanista identifica, assim, o carácter único da experiência pessoal, centrando

a aprendizagem no aprendente, na ajuda positiva, na auto-aprendizagem, na

auto-realização e no desenvolvimento pessoal. A educação de adultos

humanista propõe-se «facilitar o processo de aprendizagem», procurando criar

as condições óptimas para o desenvolvimento humano. A promoção das

condições externas do ambiente e o importante papel do facilitador visam

libertar o indivíduo das suas resistências à mudança, ao desenvolvimento e ao

crescimento.

A crítica a esta abordagem acentua a sua «ingenuidade sociológica» ao

presumir que «indivíduos auto-realizados, conduzem automaticamente a uma

sociedade melhor, isto é, a um melhor ambiente que, por sua vez, facilita a

Page 74: As formigas e os carreiros

74

auto-realização dos indivíduos» (Finger e Assún: 2003, p.70). Os mesmos

autores identificam o risco de continuar a promover o individualismo e ainda

consideram que é uma abordagem ideológica, «a-histórica, a-estrutural, a-

política e não institucional».

A escola do Marxismo

Na sequência de duas gerações de autores da Escola de Frankfurt, foi a Teoria

Crítica de Habermas que foi transposta nos anos 70 e 80 para vários campos,

entre eles a «pedagogia crítica» e, mais tarde nos finais da década de 80 e 90,

a «educação crítica de adultos». Estas abordagens, essencialmente teóricas,

constituem discursos sobre a importância e a necessidade de “tornar-se

crítico”. A Teoria Crítica, a Pedagogia da Libertação de Paulo Freire e a

Investigação-Acção Participativa são provavelmente os maiores contributos na

área da Educação.

Do ponto de vista da prática, é o filósofo e educador brasileiro Paulo Freire que

se distingue, desafiando-nos a “reinventar” o mundo com a sua «pedagogia da

libertação», onde a formação pertence sempre àquele que se forma, embora

ninguém se eduque sozinho. A conscientização e a prática crítica são os

processos pelos quais se pode atingir a libertação, sendo fundamental a

dimensão colectiva da aprendizagem: é colectivamente que as pessoas

resolvem os seus problemas e transformam as suas condições sociopolíticas.

Paulo Freire, com raízes intelectuais no humanismo católico, no Marxismo, na

filosofia alemã e na teoria do desenvolvimento e, no contexto do movimento

intelectual da América Latina, desenvolve a Teologia da Libertação,

concebendo a pedagogia como a “acção cultural para a libertação, um

processo através do qual se pode extrair a consciência opressora que «vive»

na consciência oprimida” (Freire, 1985: 85).

O contacto com a Fenomenologia, na tradição alemã do Existencialismo, fez

Freire aperfeiçoar o seu pensamento sobre a linguagem. A linguagem e as

condições de vida, ambas manipuladas e manipuladoras, levam à

interiorização da opressão e à identificação dos oprimidos com os opressores.

O formador deixa de ser neutro e passa a ser um animador empenhado na

causa das pessoas com quem trabalha.

Page 75: As formigas e os carreiros

75

Na crítica à pedagogia da libertação sobressaem os argumentos de que a

maior fragilidade conceptual advém da mistura entre a epistemologia e a

política e de que Freire se mantém acrítico em relação às instituições e ao

processo global de desenvolvimento.

A Investigação-Acção Participativa (IAP) é outra das abordagens práticas da

mudança social através da aprendizagem que se desenvolveu nos finais de 70

e década de 80 do século passado. Convém destacar que a IAP se distingue

da Investigação-Acção, sobretudo pelos respectivos contextos sociopolíticos,

respectivamente defensores de modelos de desenvolvimento diferentes e como

crítica epistemológica da prática corrente das ciências sociais que se

desenvolveu na Alemanha e em França na década de 70 (com especial

enfoque nas questões epistemológicas e metodológicas ao «estilo do Norte»,

de que Alan Touraine foi um dos autores eventualmente mais difundido entre

nós). O objectivo da IAP é o desenvolvimento auto-sustentado ou alternativo,

com a libertação da dependência do Norte e a proposta de recuperar o

conhecimento endógeno para fazer dele o suporte dos esforços de

desenvolvimento auto-sustentado. A IAP é particularmente crítica do

«desenvolvimento», tem uma dimensão epistemológica, está muito

contextualizada e reflecte sobre as ferramentas e a tecnologia, situando-as no

contexto social.

No entanto, a crítica a esta abordagem evidencia algumas fragilidades, como

sejam a subsistência da crença no processo de desenvolvimento, o facto de

não situar os problemas do desenvolvimento na economia global e a ideia de

que o pensamento endógeno pode ser recuperado e activado.

A interrogação sobre «como se formam os adultos?» foi o mote para tentar

identificar e nomear os processos de aprendizagem, bem como os significados

que os assistentes sociais lhe atribuem. De outro lado da questão não se pode

esquecer, segundo Rui Canário que existe um entendimento instrumental da

Educação que se objectiva numa visão dos processos formativos e num

‘mercado de formação’: “… a subordinação da educação à lógica mercantil,

induz a que a própria educação se organize adoptando a racionalidade

económica do mercado” (Canário, 1999:90).

Page 76: As formigas e os carreiros

76

Mas em paralelo, a Educação de Adultos, como o Serviço Social, prosseguem

uma agenda de ‘responsabilidade social’, através da qual procuram contribuir

para humanizar o desenvolvimento. Só que o próprio processo de

desenvolvimento «tornou-se tão distorcido que já não há praticamente nada a

humanizar» (Finger e Asún, 2003:95).

Ainda segundo os mesmos autores, a referência teórica e prática da Educação

de Adultos ao «paradigma do desenvolvimento» colide com quatro tendências

actuais que a afastam deste referencial:

i) a «globalização ou o «turbocapitalismo», que está a destruir os próprios

alicerces do desenvolvimento, substituindo-o pelo comércio e pela

especulação financeira;

ii) o pós-modernismo, que está a apagar os próprios fundamentos culturais

do desenvolvimento e a substituir todo o projecto de modernidade pelo

individualismo;

iii) a erosão do Estado e da sua política tradicional, o que representa o fim

da unidade e do actor mais relevante para o desenvolvimento;

iv) a crise ecológica que conduz o ideal de desenvolvimento para um beco

sem saída».

Nos últimos tempos o cruzamento e agravamento destas dimensões, entre

outras, generalizou esta metáfora de «beco sem saída» para o «paradigma do

desenvolvimento» (e dentro dele para o lugar do trabalho, da educação e da

acção social) e tem vindo a instalar radicalismos e/ou alienações, que

dificilmente contribuirão para encontrar alternativas societárias.

Em termos do local e da função do conhecimento no processo educativo é

possível identificar em muitos autores uma tensão entre «educar para as

competências» e «educar para a formação»; assumindo que o primeiro

processo corresponderia à pressão exercida pelas exigências do mercado de

trabalho reconfigurado onde, em teoria, apenas os indivíduos competentes têm

lugar e o segundo corresponde à pressão resultante da exigência da educação

como uma mistura ambígua de emancipação individual e local.

Contudo, autores como Stoer e Magalhães (2005) têm uma posição menos

dicotómica que desvaloriza a clivagem do conhecimento como formação ou

como informação, passando a recentrar sobretudo num campo de batalha

ideológico a respeito do seu potencial de intervenção sociopolítica. Dizem eles:

Page 77: As formigas e os carreiros

77

“A fragilidade epistemológica do conhecimento não dilui o seu carácter formativo e ao mesmo tempo o informacionismo, em si mesmo, não esvazia o conhecimento do seu potencial de intervenção política e social. A questão que surge como central não é tanto a dos termos «informação» e «conhecimento», mas a sua relação com os contextos de agência social” (Stoer e Magalhães, 2005:58).

Se é verdade que a necessidade de Educação permanente se tornou hoje

parte integrante da vida, como verificamos pela banalização de expressões

como «sociedade da aprendizagem» (União Europeia, 1995) e «Sociedade do

Conhecimento» (Comissão da União Europeia, 1997), também será importante

pontuar que a Educação perdeu o seu projecto de emancipação e mudança

social ao ser amplamente privilegiada a vertente instrumental que, em teoria,

as pessoas podem usar na sua luta competitiva por melhores oportunidades de

vida económicas, sociais e culturais.

Consciente destas ambiguidades e das suas repercussões na formação inicial

e contínua dos assistentes sociais, destacam-se enormes desafios, seja para o

aumento da produção de conhecimento próprio do Serviço Social, a partir da

sua experiência e reflexividade interna, seja para «recuperar» ou realizar

projectos de emancipação e mudança social – necessariamente diferentes de

outros que já defendeu e abandonou em épocas e contextos precisos, mas

ainda assim comprometidos com abordagens novas ao processo de

conhecimento e às práticas.

Page 78: As formigas e os carreiros

78

CAPÍTULO 2 - A (DES) CONSTRUÇÃO PROFISSIONAL DO

SERVIÇO SOCIAL

Pretendo com este capítulo revisitar o processo histórico da criação da

profissão, abordando alguns contornos sobre um puzzle de conceptualizações

que podem servir à análise da profissionalização do Serviço Social e à sua

desconstrução e construção profissional.

Neste processo destaco duas ideias que me deram contribuições decisivas: a

ideia de construção social da «realidade» e da mudança constante a que está

sujeita (Berger e Luckmann, 1971), e a ideia de que o Serviço Social é

indissociável da interacção entre o profissional, o (s) cidadão (aõs) com quem

trabalha e o (s) contexto (s) onde actua.

Na primeira contribuição os autores destacam o entendimento que permite uma

co-construção da «realidade», entre muitas outras diferentes e possíveis, mas

também a noção de que existem «visões partilhadas» e que são essas visões

partilhadas que dão fundamento às convenções sociais e à sua respectiva

institucionalização.

Uma «construção social» é, nesta perspectiva, uma visão acordada (pelo

menos em parte) do mundo que é aceite dentro de um grupo social como uma

«realidade». Sendo este um processo circular entre indivíduos e sociedade, em

que os indivíduos contribuem para a criação do significado social dentro das

estruturas sociais das sociedades, e as sociedades, através da participação

dos indivíduos nas suas estruturas, criam as convenções, criando e recriando

essas estruturas.

Na segunda contribuição, a tese de construção social que aqui pretendo

explorar apresenta uma relação reflexiva e com influências recíprocas entre os

Assistentes Sociais, os seus «clientes» e os respectivos contextos. O que

afasta desde logo a hipótese da universalidade para os reconhecimentos da

natureza desta profissão e coloca a possibilidade de identificar e caracterizar

Page 79: As formigas e os carreiros

79

uma variedade de actividades que tem características comuns na maioria das

suas construções sociais.

Este foi também um processo de tomada de consciência do pouco que sabia

sobre a percurso da profissão, sobre as ligações aos respectivos contextos

sociais e políticos e sobre as produções mais actuais, quer da investigação

portuguesa, quer da produção teórica internacional. Mas foi essa tomada de

consciência que me fundamentou a necessidade de estabelecer uma espécie

de genealogia que tal como nas famílias, permite a cada elemento saber ‘quem

é’ e ‘de onde veio’ através da apropriação da história colectiva e das ‘histórias’

que herdou e/ou das quais é protagonista, directa ou indirectamente, e que

também na profissão permite uma apropriação singular e viva dessa história

colectiva. Esta apropriação singular não tem nada de linear como por vezes, a

estrutura de um trabalho académico, pode fazer crer ou aconselhar.

Do ponto de vista da estrutura, o capítulo subdivide-se em dois pontos: no

primeiro situam-se as heranças e as dinâmicas do seu percurso histórico,

tentando nomear alguns marcos que fazem parte dessa trajectória. Entre eles,

torna-se inevitável reflectir sobre as construções das ideias de Capitalismo e de

Pobreza, do «Bem-estar social» nos Estados-providência, do «social», dos

Movimentos de reconceptualização e da Globalização na medida em que a

profissão é influenciada e influencia as alterações societárias e os contextos

históricos. No segundo, proponho-me explicitar a profissão e reflectir sobre a

sua existência e sobrevivência, equacionando significados de «ser profissional»

num quadro de desprofissionalização crescente e «falência» do Estado Social

e tentando (re)visitar os velhos e novos problemas em conjugação com as

ambiguidades de uma profissão que se tem adaptado.

Defendo a necessidade de explicitar a profissão, enquanto exercício reflexivo e

de apropriação do conhecimento dos e pelos profissionais, mas também

enquanto forma de activismo social, no sentido de tomar parte dos processos

políticos de mudança em que participam e aponto a transdisciplinaridade como

uma das formas possíveis de superação da «colonização disciplinar» e da

«neutralidade» que têm marcado o Serviço Social.

Page 80: As formigas e os carreiros

80

2.1. HERANÇAS E DINÂMICAS DE UM PERCURSO HISTÓRICO

Os Assistentes Sociais constituem um grupo cuja prática organizada teve lugar

em finais do século XIX nos Estados Unidos e na Holanda (1899), na primeira

década do século XX na Inglaterra e na Alemanha (1911) e, nos anos 30, em

França e Portugal (Costa e Silva, 2003).

Entre outros profissionais fazem parte das “profissões sociais” que aparecem

para regular as políticas sociais e o acesso aos serviços e às novas medidas

de política, dando resposta à situação das classes trabalhadoras e

contribuindo, em simultâneo, para atenuar as tensões sociais (Martins, 1999).

Este grupo (onde se incluíam para além dos assistentes sociais, as

enfermeiras, educadoras e animadores especializados, entre outros) vai-se

constituindo como um grupo profissional heterogéneo que se configura, a partir

dos anos 70 do século passado, no quadro da designação mais genérica de

“trabalhadores sociais”. Contudo, existe uma mobilização reivindicativa por

parte dos assistentes sociais que, desde cedo, procuraram manter-se como um

grupo profissional específico e para o qual terá contribuído o contexto de acção

nas instituições criadas pelo Estado Providência.

Apesar da institucionalização e profissionalização da «relação de ajuda» ou do

«cuidar» (conforme se privilegiem as influências francófonas ou anglo-

saxónicas) e da legitimação da actividade como profissão, persistem

dificuldades sobre a sua construção profissional e identitária, em especial

quanto aos elementos sociais da sua prática.

A designação de «Serviço Social Clássico» a que alguns autores se referem

para situar a sua corrente mais tradicional está fundeada sobretudo na

literatura norte-americana de Serviço Social (caracterizada pelo empirismo e

que procura explicar o comportamento dos indivíduos através dos modelos

mecânicos e organicistas de John Dewey) e aparece associada a termos como

‘igualdade’, ‘democracia’, ’patologia’, ‘função/disfunção’ e ‘culpa’, com uma

visão dos problemas sociais centrada na inadaptação dos indivíduos à

sociedade.

Page 81: As formigas e os carreiros

81

O modo de actuação profissional tradicional dominante, ao priorizar a

casuística, desvalorizou as forças políticas e sociais nas quais se desenvolvia a

vida dos cidadãos e contribuiu para camuflar os problemas colectivos sofridos

por aqueles que estavam oprimidos e viviam na pobreza, sendo vulgarmente

identificado com modelos de actuação de vertente caritativa e assistencialista.

Na sua fase mais «tecnológica» o discurso tornou-se menos moralista e

doutrinário e mais asséptico, perante a emergência de novos métodos de

organização da política social, não deixando de ser associado a um mecanismo

de regulação social do Estado, cujas funções passam pela integração do

indivíduo na sociedade e pela reprodução da ordem social vigente.

A uma primeira concepção do Serviço Social de Casos (com inspiração

freudiana e conotada com o liberalismo económico), sucedem-se o Serviço

Social de Grupos (que surge como meio de controlar os problemas de

‘desadaptação’ manifestados pelos mutilados da 1ª Grande Guerra e os

desempregados da crise 29-30) e de Comunidade - que integrava a vertente de

organização e desenvolvimento de comunidades - de que se destaca a

publicação em 1952, por Murray Ross, nos E.U. A. , de um dos livros clássicos

desta concepção «Organização da Comunidade – Teoria e Prática».

A ampliação e diversificação das formas de intervenção em Serviço Social,

com uma estrutura tripartida dos métodos de Serviço Social Clássico que se

manteve até aos anos 60 do século XX, foram constituindo formas de dar

resposta aos problemas sociais que marcaram cada época, de acordo com as

teorias e as ideologias em voga.

“Na área da Segurança Social, a dicotomia entre seguro social e assistência tem contribuído para a manutenção da acção social enquanto área de «não direitos». Esta dicotomia persistiu como uma herança do modelo corporativo, apesar da tentativa de ultrapassagem em 1974, quando a assistência teve de mudar de nome para acção social, dada a carga negativa que possuía. É também esta dicotomia que tem alimentado a ideia de que só as prestações contributivas são direitos legalmente exigíveis” (Santos e Ferreira, 2002:191).

Generalizando, arriscaria a dizer que o papel das políticas sociais no quadro de

um “quase-Estado Providência” em Portugal, tem sido o de uma resposta

remediativa aos desequilíbrios e que não se tem mostrado capaz de garantir

uma sustentada progressão na luta contra a pobreza. Como defende Bruto da

Page 82: As formigas e os carreiros

82

Costa (2008), para diminuir a pobreza é preciso actuar nos mecanismos que a

produzem e esses não estão ao alcance das políticas sociais.

Sobre a génese da profissão, coexistem concepções que consideram a

profissão como uma decorrência necessária da racionalização e organização

da filantropia e da assistência social; outras, que defendem que o diferencial

entre as actividades caritativas e o Serviço Social estaria localizado no sistema

de saber, no estatuto teórico da profissão e na sua fase técnico-instrumental e,

outras ainda, que defendem que a profissão nasce no interior de um projecto

reformista conservador e localiza-se nos pedidos históricos e sociais,

comprometidos com a manutenção da ordem social. Mas nesta diversidade é

central a consideração de que a «questão social» do século XIX foi o elemento

propulsor do Serviço Social, embora coexistam diferentes lógicas que podem

ajudar a compreender melhor as memórias desta trajectória e que tornam

possível interrogar o significado da tradição ao nível da sua ordem prática e

conceptual, nomeadamente com as tensões existentes entre abordagens que

privilegiam diferentes aspectos como as de Marilda Iamamoto (1992) e de

Gustavo Parra (2001):

- Iamamoto defende que o Serviço Social é um produto da cultura moderna. Na

sua perspectiva, a construção social da profissão assentou em compromissos

estabelecidos com o filantropismo, com o feminismo burguês e com os

movimentos de renovação do papel das organizações religiosas, num processo

de flexibilização da estrutura política e identitária defendida pelo Iluminismo;

- Parra defende a tese de que o Serviço Social surgiu como uma força anti-

modernista e identifica três matrizes de análise: 1) um teor doutrinário -

construído entre as preocupações humanistas e o compromisso com as ordens

sociais preexistentes; 2) uma base racionalista e laica - com fortes influências

do positivismo e empenhado em criar respostas para descomprimir os

antagonismos sociais, o que reforça um conservadorismo social que legitima o

individualismo; 3) e uma raiz filosófica – que reflecte, entre outras, a influência

da filosofia de Habermas, traduzida no papel de mediador do assistente social

na relação entre a assistência social como dever do Estado e os direitos

humanos.

Page 83: As formigas e os carreiros

83

Apesar das diferenças de enfoque, parece consensual o facto de se sobrepor a

questão relacionada com a sócio-espacialidade dos problemas sociais, em

relação a uma reflexão sobre os agentes de produção do bem-estar e de

regulação social, quer na literatura de outras áreas disciplinares, quer na

própria produção teórica de Serviço Social. Esta lógica estende-se também às

representações sociais e colectivas de bem-estar, dissociando-as dos

fenómenos de vulnerabilidade, de invalidação e de desafiliação social (Castel,

2003). No entanto, sendo o campo profissional dos assistentes sociais

atravessado por paradoxos, controvérsias e alguma constância entre um

humanismo-cristão e uma «crítica anticapitalista romântica», será cada vez

mais importante alimentar a reflexão quer sobre as narrativas históricas, quer

sobre os fins e meios utilizados, bem como as suas implicações, tanto para a

sociedade como para o corpo profissional.

Falar dos movimentos da história do Serviço Social, ainda que de forma

intermitente e parcelar, passa por tentar referenciar alguns conceitos (dos

muitos possíveis e importantes) que fazem parte do referencial da acção de

uma profissão. Assumindo, como já anteriormente referi, que o seu campo

profissional tem contribuído para a manutenção da ordem social e

desempenhado um papel na reprodução social, mas assumindo também que

ele é sobre determinado pela aplicação de medidas políticas, exercidas no

campo institucional que o limitam, regulam e condicionam.

Fazer uma narrativa da história sob determinada perspectiva, sem ter a

pretensão de que exista «uma» única história, implica sempre uma maneira

muito particular de seleccionar informação e pontuar uns aspectos em

detrimento de outros.

Recorda-se que a palavra «narrar» remete para o verbo latino «narrare» que

significa «expor, contar, relatar» e possui a característica de pressupor o outro

a quem se expõe, conta ou relata – o que é uma tónica importante no trabalho

desenvolvido que tem a veleidade de pressupor os diferentes «outros» a quem

se dirige e, muito em especial, os assistentes sociais. A narrativa aqui realizada

pretende situar o património genético desta profissão no quadro das relações

desenvolvidas entre o Estado, a Economia e a Cultura e desconstruir alguns

Page 84: As formigas e os carreiros

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consensos estabelecidos sobre a sua capacidade de gerir os aspectos

simbólicos do Serviço Social e os riscos de desagregação social.

Nesta sequência, sublinho apenas a possibilidade de que estes diferentes

«raciocínios» e/ou «argumentos» não se excluam, numa lógica de «isto» ou

«aquilo» em sequências temporais e espaciais mas que se articulem como

diferentes «aspectos» do leque de entendimentos que se têm produzido sobre

a profissão, muitos deles em coexistência nas mesmas épocas e contextos.

Neste contexto e porque a formação em Terapia Familiar Sistémica foi muito

significante e inspiradora para mim, não resisti à tentação de transcrever parte

da deliciosa parábola sobre o seu nascimento e primeira infância, com a qual

Salvador Minuchin introduz a obra de Celia Falicov sobre as transições

familiares (citada em Relvas, 1999:19,20).

“A Terapia Familiar nasceu nos finais da década de 1950.É claro que não surgiu já completa do cérebro de Zeus. Não! Como todo o nascimento humano foi produto da união de duas famílias. Famílias muito distintas, na verdade: diferiam geograficamente, assim como nas suas tradições, rituais, linguagens, mitos e estilos cognitivos. Um delas – a materna? – tinha raízes no Nordeste. Era uma família numerosa com muitas tias, tios e primas, quase todos eles vinculados ao meio universitário e, indubitavelmente, ao establishment. (…) As crenças desta família constituíam uma continuação dos sistemas de crença psicodinâmicos, é claro que com modificações, conflitos e desafios. Mas o diálogo e a sua linhagem não davam lugar a dúvidas: a influência do passado sobre o presente; a importância de dominar certas experiências em determinadas etapas para alcançar um domínio conseguido e harmonioso das seguintes… Poder-se-ia dizer que os conceitos evolutivos influenciavam o pensamento e crenças de todos os seus membros, por intermédio de Freud, Sullivan, Erickson ou mesmo Piaget, tios-avós cujos retratos se podiam ver ainda nos seus gabinetes. Este ramo da família acreditava, de resto, na importância das emoções, dos processos inconscientes ou involuntários e em acontecimentos cataclísticos (…). Às vezes, todas estas crenças misturavam-se de formas estranhas e desconcertantes. (…) Era certo sentirem-se esmagadas por todas estas crenças e indagações minuciosas, e estavam dispostos a acolher novas ideias, novas linguagens e novos mitos. Na realidade, iniciaram a sua própria busca, mas os velhos sistemas de crença permaneciam ali, submersos mas influentes, umas vezes apareciam à luz do dia e, outras vezes, conservavam-se como parte da bagagem guardada na despensa. A família da costa Oeste era diferente. Era constituída por rebeldes e revolucionários. Antes de mais rejeitavam a sua linhagem e declaravam ter nascido já completos de ventre de Bertanlanffy, Weiner, Bertrand Russell… Seleccionaram para pais linguistas, teóricos da comunicação, místicos e filósofos, enquanto apedrejavam psicólogos e psiquiatras antiquados e queimavam os seus templos como castigo pelos seus velhos pecados. O primeiro a incorporar-se por eleição absoluta foi Bateson, o avô e líder do bando de jovens turcos; com ele vieram os outros membros da família

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mais chegada: Jay Haley, Weakland, Jackson, Virginia Satir. Outros se lhes juntaram, Watzlawick, Fish… Tinham a vantagem de viver todos juntos num grande castelo em Palo Alto. A partir daí empreenderam o seu bem sucedido ataque contra a verdade estabelecida, proclamaram a relatividade de toda a verdade e iniciaram a construção de um novo sistema de crenças que teria a vantagem de não estar enraizado em questões sociais. (…) Assim nasceu a Terapia Familiar. No momento do seu nascimento, os membros de ambas as famílias sorriram – como fazem todas as famílias nessas ocasiões – e formularam votos de que a recém-nascida fosse um motivo de orgulho para eles. É claro que, quando nasce o primeiro neto, sempre há rivalidades e competição entre famílias. E Jay Haley convidou Milton para o baptismo; era um convidado bastante estranho, que pertencia a ambas as famílias sem, no entanto, pertencer a nenhuma. (…) A Terapia Familiar mamou de ambos os peitos e cresceu dividida. À medida que se foi desenvolvendo, coligou-se por vezes com a família da costa Oeste e outras com a da costa Nordeste, como costumam fazer as crianças. Com cada coligação, adquiria maior competência nalguns campos e, em igual proporção, tornava-se mais incompetente noutros. Além disso, começou a conhecer e a diferenciar tios e tias e descobriu que esse grupo, que ao princípio lhe havia parecido uma família homogénea, era na realidade um conglomerado, um bando alegre e turbulento de parentes estreitamente unidos e, algumas vezes, renitentes nas suas opiniões. (…) Em ambos os ramos abundam alianças, coligações e paradoxos… como em qualquer família “ (Minuchin, in Falicov, 1988: IX-X).

Esta longa citação a propósito da Terapia Familiar, com todas as diferenças de

conteúdo que tem com o Serviço Social parece-me uma narrativa interessante

e uma forma possível de (re) olhar esta profissão, com as suas heranças

particulares e as dinâmicas do seu processo histórico, no suposto que sem a

integração crítica do passado não é possível equacionar futuro (s).

A INSTITUCIONALIZAÇÃO E A PROFISSIONALIZAÇÃO

O processo de institucionalização da formação escolar em Serviço Social

desenvolveu-se no tempo e no espaço, apesar das singularidades de cada

conjuntura e das diferentes expressões que materializaram os vários aspectos

simbólicos de que se rodeou. O fenómeno de institucionalização de escolas de

Serviço Social tem início quase ao mesmo tempo em realidades sócio-

gegráficas muito diferentes, embora um marco relevante seja colocado em

1898, com a abertura da Escola de Filantropia Aplicada, por Mary Richmond,

nos EUA.

Page 86: As formigas e os carreiros

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A profissionalização da actividade de «ajuda social» exercida até então no

âmbito do voluntariado social, surge “como forma de concertação dos

multifacetados interesses ideológicos, sociais e científicos, e resulta num

envolvimento da sociedade civil e da comunidade intelectual na reinvenção do

sistema de regulação social” (Mouro, 2001:29). A institucionalização das

primeiras escolas de formação do voluntariado já existente acontece em

Londres, em 1890 e nos EUA, em 1898, num contexto de mudança de

paradigma inerente à revolução industrial e ao desenvolvimento do capitalismo.

No âmbito de uma (então) desejada síntese entre a moral cristã e os valores

burgueses, põe-se em evidência um certo compromisso social entre

movimentos filantrópicos e científicos para prevenir ou apaziguar a

conflitualidade social e exercer uma reforma moral que imunizasse contra a

‘utopia revolucionária’ permitindo o crescimento das instituições assistenciais

de apoio à população pobre, em modelos mais ou menos inovadores.

Desde esta fase diferenciam-se, como já referi, “o modelo francófono” com a

utilização da designação de “Serviço Social”, do “modelo anglo-saxónico” com

a designação de “Trabalho Social”. Mas, de uma forma geral, esta fase de

crescimento e consolidação profissional particulariza-se por:

“…não ter tido a necessidade de enfrentar uma partilha de actuação no campo da intervenção social, por ter recuperado os campos vazios criados pelo processo de secularização da sociedade e por ter fornecido um carácter missionário ao trabalho «educativo» junto dos utilizadores dos serviços onde exerce a sua actividade profissional” (Mouro, 2001:41).

Os profissionais entretanto formados desenvolvem a sua actividade em

actuações centradas na família, nos menores (modelos francófono e anglo-

saxónico); no meio hospitalar, em especial psiquiátrico, no meio escolar, no

meio correccional (modelo anglo-saxónico); nas empresas e no contexto

médico-social (modelo francófono).

Embora seja reconhecido que o movimento instituidor da profissão é de

natureza conservadora, reconhece-se desde as suas origens, uma tensão

entre uma variante mais conservadora e individual e outra mais progressista e

comunitária (Amaro, 2009). Esta tensão remonta às suas duas figuras

instituidoras, respectivamente Mary Richmond e Jane Adams. A primeira,

assumida como a figura instituidora prevalecente numa corrente «diagnóstica»,

Page 87: As formigas e os carreiros

87

individual e adaptativa, e a segunda, na variante mais reformista que rejeitava o

modus operanti da época (as «visitas amigáveis aos pobres») e introduziu o

conceito de justiça social e que, a partir de sua posição social privilegiada

trabalhou em causas (Voto das Mulheres, Legislação e reforma da justiça, …),

em movimentos de ideias e de lutas por direitos (contra o Trabalho Infantil,

pelos direitos dos trabalhadores, sobretudo Imigrantes, …), na produção de

respostas inovadoras («Hull House») e na produção cientifica (trabalhou com

George H. Mead,1910).

Fazendo recurso à biografia-padrão mencionada por Helena Mouro (2009) será

importante caracterizar a trajectória social da profissão, da qual se destacam a

sua pertença de origem à sociedade industrial e o entendimento das suas

práticas profissionais como um produto cultural situado historicamente.

Apesar da perspectiva institucional que domina a nossa memória histórica, a

actuação profissional foi inicialmente influenciada pelas correntes positivistas

que elegeram como campos prioritários de intervenção a área da família, do

trabalho e da saúde, até ao surgimento das políticas sociais no pós-segunda

Guerra Mundial – altura em que o Serviço Social se tornou elemento activo da

consolidação de um processo político que tinha por objectivo firmar a elevação

do padrão médio de vida social, bem como pluralizar e democratizar o

consumo de bens e serviços.

Este contexto obrigava à implementação de um modelo de actuação mais

técnico e eficiente e impõe-se nos profissionais de Serviço Social uma vontade

organizada de assumir uma profissionalização como vector da política social.

Esta é, apesar de tudo, uma fase de qualificação onde se geram mudanças

significativas na cultura profissional, iniciando-se uma sistematização crescente

da acção empírica, uma procura de fundamentação teórica para as técnicas

utilizadas e uma preocupação com o próprio “agir” profissional.

Simultaneamente, a perda de referenciais colectivos permitiu a diversidade

interna e fomentou no campo profissional uma certa demarcação em relação

ao passado e ao Serviço Social Tradicional.

Nomear as tensões, as dinâmicas, os paradoxos… dentro do corpo profissional

contribui, na perspectiva utilizada, para enfraquecer o estereótipo da Assistente

Social como agente de reprodução social.

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88

Para os autores de inspiração marxista, a naturalização dos processos sociais

e a óptica da fragmentação e da formalização estão presentes no Serviço

Social desde sempre, na totalidade dos elementos que compõem o acervo

cultural da profissão: desde a perspectiva do conhecimento até ao âmbito dos

valores, objectivos, práticas, instrumentos e técnicas. Salientam que os

conhecimentos e os valores são retirados de campos diferentes, constituindo

um referencial profundamente ecléctico mas, as mais das vezes, comprometido

com a manutenção da ordem social.

Nas correntes ecológicas (Pincus e Minahan, 1973; Germain e Gittermn, 1980

por exemplo) bem como nos enfoques dos autores marxistas, radicais (Rojek,

1988; Mullaly, 1993) e de capacitação (Rees, 1991) e também para os autores

do campo profissional que defendem uma perspectiva crítica (como por

exemplo Dominelli, 2002), a profissão de assistente social nasce no seio de um

projecto reformista conservador, onde a presença de um humanismo

assistencialista e, mais tarde, de uma racionalidade instrumental, pretenderam

humanizar e racionalizar os efeitos do capitalismo.

Para este vasto conjunto de autores (sobretudo os de filiação marxista) é

impossível a conciliação entre a defesa dos direitos e interesses das Pessoas,

consideradas individual e colectivamente, e os interesses do Estado e do

Mercado através da implementação de políticas sociais conjugadas, pelo que a

profissão parece confinada às opções dicotómicas de ser «revolucionária» ou

de ser «conformista», mantendo nesta última opção o efeito placebo que os

mais críticos lhe atribuem.

Mesmo a autocrítica da profissão reconhece que a profissionalização do

Serviço Social (bem como dos outros Trabalhadores Sociais), com o

crescimento exponencial de profissionais disponíveis no mercado de trabalho,

terá também contribuído para a passividade, a alienação e dependência das

camadas mais vulneráveis da população, em simultâneo com o aumento da

«patologização» das dinâmicas individuais, familiares e comunitárias.

No entanto, coloca-se a hipótese de que na ‘impossibilidade’ de conciliar os

interesses das pessoas e os interesses do Estado e do Mercado possa radicar

uma noção de «crise» de identidade e de legitimidade (que, por circunstâncias

variadas, se mantém ao longo de várias épocas o que a tornará menos uma

Page 89: As formigas e os carreiros

89

crise e mais uma característica) e simultaneamente, a presença de

oportunidades do corpo profissional para se questionar a partir de dentro, o que

pretende significar possibilidades de se constituir mais solidamente como

objecto de conhecimento de si, dos ‘públicos’ e contextos com que intervém e

dos movimentos societários em que participa, construindo novas práticas e

novas legitimidades com identidade múltiplas e diversas.

O REFERENCIAL DO CAPITALISMO E DA POBREZA

O processo de crescimento e consolidação profissional desenvolveu-se a par

com o crescimento do Capitalismo, conceptualmente sustentado em modelos

concebidos em função de interesses político-religiosos que pretendiam

naturalizar as desigualdades sociais. Se o Capitalismo equivale a transformar o

indivíduo em mercadoria, o que o torna obrigado a encontrar um comprador da

sua força de trabalho se quiser satisfazer as suas necessidades elementares,

pelo contrário, o Estado-providência é «o capitalismo com rosto humano», um

sistema de mercado onde a oferta e a procura de trabalho não regem toda a

vida social num processo a que Esping-Andersen (1999) chama

«desmercantilização».

Na verdade, como nos recordam os liberais, o indivíduo moderno devia

aprender a medir os riscos e a sociedade desenvolvida supostamente oferecia-

lhe os meios para se segurar em função do grau de risco. Mas, na prática, a

apreciação dos riscos, tanto quanto a possibilidade de assumir os seus custos

individualmente é muito desigualmente partilhada e nalguns casos, como nas

situações de crise cíclica, impossível de prever. E, como também refere este

autor, o capitalismo pode produzir o melhor e o pior: o melhor – numa

concepção utilitária da existência mas que, aparentemente, foi suficiente para

satisfazer a procura de sentido durante bastante tempo com um crescimento

económico e de nível de vida difíceis de alcançar noutro regime económico; o

pior, na medida em que se faz acompanhar de crises brutais que colocam fora

do mercado de trabalho cada vez maior número de pessoas que se encontram

impossibilitados de satisfazer as suas necessidades e de verem reconhecida a

sua cidadania.

Page 90: As formigas e os carreiros

90

O que se passa ao nível macro social passa-se igualmente ao nível individual.

Quando, por uma qualquer razão, uma pessoa se encontra incapacitada de

«ganhar o seu pão» – por acidente, doença, velhice, desemprego, … – não

encontra resposta no ideário liberal e a instalação do capitalismo de mercado

equivale analiticamente ao enfraquecimento ou ao desaparecimento do

conjunto de solidariedades primárias e de barreiras jurídicas ou morais que

protegiam os indivíduos.

Vale a pena recordar que a opacidade da pobreza era quase total até à década

de 70 do século passado. Até à I Guerra Mundial prevaleceu a ideia optimista

do progresso no mundo, fundada na supremacia absoluta da ciência e da

tecnologia, na exploração dos recursos do planeta tidos como inesgotáveis e

no desabrochar das capacidades humanas para produzir riqueza e controlar o

meio ambiente. Seguiu-se um profundo sentimento de desespero, quando se

tornou moda falar sobre o «declínio do Ocidente».

A Grande Depressão, o Fascismo, a II Grande Guerra e o Holocausto

forneceram amplas provas de pessimismo que, só foi ultrapassado nos anos 50

do pós-guerra, quando a Europa e o Japão conseguiram reconstruir as

economias com impressionantes taxas de crescimento económico. Na

sociedade da abundância e dos milagres económicos não havia observações

substantivas da pobreza.

“A crise económica mundial, desencadeada no início dos anos 70, pelo primeiro choque petrolífero, veio pôr em evidência as limitações de um modelo desenvolvimentista, reduzido à vertente do crescimento económico, baseado no pressuposto da energia barata e, portanto, numa exploração massiva e não controlada dos recursos naturais. (…) Por outro lado, este modelo também não conseguiu corresponder às expectativas de um bem-estar crescente e generalizado, à escala de cada país e à escala planetária, contribuindo para uma maior igualdade e para uma justiça social” (Martins, 1999: 62).

Apenas na sequência de um conjunto de movimentos que agitaram o mundo

durante a década de 60 é que a pobreza ganha dimensão pública e muita

gente começa a chamar a tenção para a reapreciação da doutrina do

desenvolvimento. Vozes dissonantes avisaram da eminência da destruição

planetária, como por exemplo, em 1972, o Clube de Roma (um grupo de

gestores, engenheiros e cientistas de várias nações) que publicou ‘The limits of

Growth’. Esta publicação marcou uma época e provocou uma reacção em

Page 91: As formigas e os carreiros

91

cadeia de estudos para refutar ou confirmar a mensagem central de que um

sistema de recursos finitos, como a Terra, não podia sustentar infinitamente um

crescimento (populacional e produtivo) cumulativo.

A este primeiro momento cuja tónica foi colocada nos ‘limites de crescimento’,

seguiu-se um segundo momento em que se tornaram evidentes os efeitos

devastadores do modelo desenvolvimentista ao nível ambiental, conduzindo na

direcção do que Max-Neef (1992) chamou de «suicídio colectivo».

Neste âmbito, é importante um posicionamento na forma de perspectivar a

«Questão Social» pois, ela pode ser vista como um continuum com dois pólos,

um do lado do capitalismo, enquanto «conjunto de problemas económicos que

o surgimento da classe operária impôs ao curso da constituição da sociedade

capitalista» (na definição de Cerqueira Filho, cit. Martins, 1999) e outro do lado

da classe operária como “expressão do processo de formação e

desenvolvimento da classe operária e do seu ingresso no cenário político da

sociedade, exigindo o seu reconhecimento como classe (...) manifestação no

quotidiano da vida social da contradição entre o proletariado e a burguesia” (na

concepção de Marilda Iamamoto, cit. Martins, 1999). E se a «questão social»

era, desde a revolução industrial até à crise do início da década de 70, a

questão das condições de vida dos trabalhadores e dos mecanismos de

exploração e dominação capitalista geradores de desigualdades sociais, alguns

autores defensores do Welfare State concluem que nos países desenvolvidos

essa questão tendeu para a sua resolução com o pacto social em que se

fundaram os Estados – Providência e as economias do bem-estar.

Por seu lado a «actividade profissionalizada» dos assistentes sociais vai-se

consolidando como resultado da intervenção do Estado nos países

industrializados, com medidas de política social, a par com outras intervenções

de âmbito não estatal promovidas por vários grupos sociais e patronais.

As mudanças do último século na organização do capitalismo – o seu alcance

global, as inovações tecnológicas revolucionárias, a centralização em

empresas e instituições financeiras gigantes e transnacionais – resultaram no

aumento de assimetrias (no interior das regiões dos países ditos

desenvolvidos, entre países ‘ricos’ e países ‘pobres’, entre o norte

Page 92: As formigas e os carreiros

92

industrializado e o sul subdesenvolvido), e na exclusão de grande número de

pessoas pobres do mundo, da participação económica, social e política.

“A pobreza foi, durante todo esse tempo, ou bandeira de sectores conservadores da velha tradição filantrópica e assistencialista, ou objecto de interesse antropológico pelo subproletariado desadaptado em relação à evolução do capitalismo moderno, ou ainda, vector de interpretação das estruturas do subdesenvolvimento em países periféricos ou semi-periféricos” (Capucha, 2000: 9).

Mas o conceito de Pobreza (Costa, 1985) evoluiu de uma formulação que

privilegia sobretudo os rendimentos familiares e as necessidades de

sobrevivência para uma formulação que reflecte diferentes contributos,

evidenciando uma progressiva desmultiplicação do conceito por várias

dimensões que procuram enquadrar novas realidades associadas à pobreza -

nomeadamente as dicotomias que nos dão conta da multiplicidade de

significados que o conceito pode assumir: pobreza absoluta/relativa, pobreza

objectiva/subjectiva, pobreza tradicional/nova pobreza, pobreza rural/urbana,

pobreza temporária/duradoura, entre outros.

Em torno da pobreza enquanto fenómeno social surgem múltiplas abordagens

teóricas, das quais se destacam a abordagem socioeconómica e a abordagem

culturalista. Na primeira, a pobreza é associada a situações de privação por

relação à subsistência e às necessidades básicas resultantes da insuficiência

de recursos económicos. Na óptica de Luís Capucha (1992), os estudos

realizados nesta perspectiva limitam-se a descrever situações e categorias

mais vulneráveis à pobreza, privilegiando a utilização de metodologias

extensivas e segmentadas por dimensões.

Na segunda abordagem, a pobreza é associada ao conceito de ‘cultura da

pobreza’ e centra-se no carácter antropológico de comunidades, famílias e

indivíduos, sendo privilegiadas as relações interindividuais, as representações

e práticas sociais, as estratégias de vida, a organização familiar, os padrões de

consumo e os sistemas de valores que configuram modos de vida

diferenciados afectos à vivência da pobreza, que com frequência se transmitem

intergeracionalmente (Ferreira, 1997). Nesta tradição de análise faz-se recurso

a técnicas qualitativas, introduzindo na análise dos modos de vida das pessoas

pobres, as dimensões simbólica e espacial do fenómeno da pobreza e

privilegiando as micro-análises (Capucha, 1992).

Page 93: As formigas e os carreiros

93

Partimos assim, da concepção de que existe relação entre os modos de

«estudar» e entender a pobreza e a(s) luta(s) contra a pobreza, o(s) modo(s)

de conceber a política e as políticas sociais, as medidas e os instrumentos

através dos quais se pretende travar esse combate e a focagem na

territorialização da pobreza e nos processos de distribuição do rendimento.

Nos finais da década de 80 do século passado por influência francesa, surge o

conceito de «exclusão social» com a pretensão de substituir o conceito de

pobreza. No entanto, e apesar das tentativas de explicitação, vai tendo uma

utilização bastante fluida e por vezes, equívoca.

Apesar de defender que, hoje o conceito de «exclusão social» é pouco útil,

parece-me importante colocá-lo em perspectiva a partir de algumas posições

defendidas por autores que me serviram de referência, em determinada altura,

mesmo sabendo que a sociologia contemporânea tende a privilegiar o estudo

da ruptura e não da coesão. Segundo Capucha (1998), a exclusão resulta de

uma desarticulação entre as diferentes partes da sociedade e os indivíduos,

gerando uma ‘não-participação’ num conjunto mínimo de benefícios que

definem um membro de pleno direito dessa sociedade, opondo-se claramente à

noção de integração social.

A exclusão surge nesta elaboração como a agudização das desigualdades,

indissociável dos seus mecanismos de produção, resultando numa dialéctica

de oposição entre aqueles que efectivamente mobilizam os seus recursos de

participação social (recursos que ultrapassam a esfera económica e englobam

os que derivam dos capitais cultural e social dos actores sociais) e aqueles

que, por falta desses mesmos recursos, estão incapacitados de o fazer.

Já a sociologia do século XIX se debruçou bastante sobre os mecanismos de

exclusão social como podemos recordar em Durkheim com a distinção

estabelecida entre solidariedade mecânica e orgânica. A exclusão é concebida

como um produto de um défice de coesão social global, não se reduzindo a

fenómenos individuais nem a simples agregações de situações (Lamarque,

1995). Acrescem ao carácter cumulativo, dinâmico e persistente da exclusão,

os processos de reprodução, através da transmissão geracional, e a evolução

que constituem simultaneamente causa e consequência de múltiplas rupturas

na coesão social, implicando dualismos e fragmentação social.

Page 94: As formigas e os carreiros

94

Desta forma, os processos de exclusão são pensados como estando ligados à

quebra de laços de solidariedade e ao risco de marginalização, à desintegração

do sistema de actividade associada às mutações económicas e de organização

do trabalho e à desintegração das relações sociais e familiares, assumindo

também a forma de uma ruptura dos laços simbólicos (Xiberras, 1996). Esta

noção, cuja origem pode ser procurada nos mecanismos estruturadores do

funcionamento das sociedades modernas, remete para uma crise estrutural

que abala os fundamentos das sociedades contemporâneas.

Martine Xiberras (1996) afirma que a exclusão é resultado da dificuldade de

integração ou de inserção, colocando essa dificuldade do lado dos indivíduos

que não conseguem cumprir as normas sociais ou alcançar os níveis

socialmente considerados como regulares. A autora para definir o conceito

coloca em relação o «espaço de referência que provoca a rejeição» e «as

formas» pelas quais a exclusão se produz. Nesta óptica, a exclusão social é

produzida quando a “sociedade não oferece a todos os seus membros a

possibilidade de beneficiar dos direitos nem de cumprir alguns deveres que lhe

estão associados” (1996:28). Xiberras chama ainda a atenção para o facto de

que as sociedades tendem a aceitar a diferença ou o desvio, quando esses

fenómenos acontecem apenas num determinado ponto em relação às

respectivas «representações normalizantes», mas que a acumulação de

diferenças ou desvios já é bastante inadmissível.

A análise da vulnerabilidade à pobreza e à exclusão social implica uma

dimensão subjectiva que englobe, quer o sentido dado às suas vivências pelas

populações caracterizadas como desfavorecidas, quer os modos de adaptação

das mesmas aos constrangimentos situacionais que as rodeiam. Um dos

autores portugueses que se debruça sobre esta questão refere que:

“…o conceito de pobreza, analisado enquanto situação de escassez de recursos de que um indivíduo, ou família, dispõem para satisfazer necessidades consideradas mínimas, acentua o aspecto distributivo do fenómeno (a forma como os recursos se encontram distribuídos entre os indivíduos e/ou famílias na sociedade). Já o conceito de exclusão social acentua os aspectos relacionais do fenómeno, quando encaramos este conceito enquanto situação de inadequada integração social” (Pereirinha, 1992:170).

Page 95: As formigas e os carreiros

95

Não parece irrelevante privilegiar os aspectos distributivos ou relacionais do

fenómeno da pobreza, sendo que a mudança de designação socialmente

utilizada vem acentuar a inadaptação individual, responsabilizando os

indivíduos pelas suas condições de vida.

Nas sociedades actuais e segundo Paugam (1996), o debate sobre os

fenómenos de ruptura e de crise identitária que trespassam e caracterizam os

processos de exclusão já não se restringe à argumentação sobre o carácter

desigualitário da sociedade e sobre o fenómeno de pauperização que lhe é

inerente. A noção de exclusão ultrapassa a de desigualdade, conferindo-lhe um

outro sentido, assente não na oposição de interesse entre grupos sociais, mas

essencialmente sobre a fragilidade, fundada na ausência de reivindicações

organizadas e de movimentos com potencialidades ao nível do reforço da

coesão identitária das populações menos favorecidas (Paugam, 1996:15).

A tipologia de beneficiários dos serviços de acção social definida por Paugam e

utilizada para operacionalizar o conceito de «desqualificação social» considera

este processo de etiquetagem e a diversidade de estatutos que definem as

identidades pessoais e os sentimentos subjectivos da situação vivenciada em

três categorias: intervenção pontual (os fragilizados), intervenção regular (os

assistidos) e infra-intervenção (os marginais). Nesta linha, estas

representações são, na sua constituição, objecto de um processo de

etiquetagem e de estigmatização que as reforça e que reforça as dificuldades

de integração social acrescidas pela incapacidade destas categorias sociais

superarem o processo de etiquetagem que as identifica como desfavorecidas.

Como também defende Capucha,

“A exclusão social liga-se, precisamente, à falta de oportunidades e à incapacidade dos grupos com menores recursos materiais, culturais e sociais e com menor capital político para expressarem os seus interesses e para reivindicarem a ruptura com as condições e as imagens que os marcam” (2000: 10).

Ainda segundo o mesmo autor na relação entre os conceitos de

‘desenvolvimento’ e ‘pobreza’, o que tende a ficar esquecido é o lado activo dos

agentes, sobretudo quando a análise se remete para o nível das estruturas de

rendimento, das condições de vida ou das relações com o emprego e a

segurança social; e também a questão do território (que era lateral na tradição

Page 96: As formigas e os carreiros

96

marxista, mas era central na tradição culturalista da Escola de Chicago) que

coloca em contexto as formas de organização da sociedade e a crise de

identidade e de filiação social vivida pelas pessoas.

Neste quadro faz sentido e, utilizando uma expressão de Bruto da Costa (1985)

falar da «agonia de um paradigma» para referir o esgotamento do modelo

desenvolvimentista. Como também fará sentido, lembrar que a partir dos anos

70 e 80 do século passado começou a emergir uma outra concepção de

desenvolvimento sintetizada na expressão «pensar globalmente, agir

localmente».

A emergência deste novo paradigma, é marcada por 3 aspectos principais: a

multidimensionalidade, uma lógica qualitativa e uma valorização do local

(Canário, 1999: 63), mas arriscaria a dizer que não foram estes os aspectos

que têm prevalecido, apesar da sua inequívoca presença. A recusa da

mediação dos aparelhos centrais do Estado, preparou o terreno para a

regulação descentralizada que, assentou em procedimentos de implicação,

dando lugar a um novo tecido institucional, na procura de transferir para a base

os problemas e os conflitos que emergiam ou se concretizavam localmente.

Através da «Glocalidade» (Pensar Global e Agir Local) era pretendido

conseguir no plano local, as convergências possíveis sobre as questões que

afectam a vida económica e social, através do confronto e do debate entre

adversários que desta forma se transformariam em parceiros, obrigados a

encontrar soluções. Mas segundo a voz crítica de Marília Andrade,

“Os novos dispositivos de acção e os novos procedimentos, respondem exactamente a uma despolitização progressiva da vida pública e a um controle dos espaços públicos políticos, já que a acção pública se reduz a um nível estritamente gestionário e imediato. Ou seja, a tensão entre o presente e o futuro desaparece, as políticas sociais tendem a ser operacionalizadas no plano local, territorialmente ao nível dos municípios (o infra-estatal), por vezes sem que sejam transferidas para o local, as condições necessárias a essa gestão” (Andrade, 2001: 90).

Mais uma vez, foi possível segundo a mesma autora, constatar a distância

entre o pensamento teórico e os resultados práticos obtidos pela aplicação das

medidas de política de base local, dado que não foram atingidos os objectivos

previstos: i) não foram reduzidos os problemas e a importância dos conflitos; ii)

não ficou facilitada a arbitragem; iii) nem contribuiu para a mobilização da

sociedade e para a coesão e restabelecimento dos laços sociais.

Page 97: As formigas e os carreiros

97

No discurso político a noção de «progresso» passou a ser substituída pela de

«mudança social», alvitrando a possibilidade do nascimento de um «social do

terceiro tipo» que, num registo próximo de Bourdieu, seria um social que

passou para o campo da sociedade, tentando abranger quer o campo do

Estado, quer o campo do mercado. Nesta linha e, apesar da profissão de

assistente social ter sido “…frequentemente convertida em instrumento de

realização do capital, razão pela qual a crítica e a autocrítica realizadas pela

profissão remetem ao acervo técnico-instrumental e não à sua

instrumentalidade ao capitalismo, donde a perspectiva integrativa e adaptativa,

de carácter reformista” (Y.Guerra, 2001:273), não se podem esquecer

movimentos e profissionais que apostaram em «renovações» (mais do que em

«revoluções») comprometidas com processos de mudança social.

A LEGITIMAÇÃO DA PROFISSÃO E A «BANDEIRA» DO BEM-ESTAR SOCIAL

A legitimação da profissão, balizada pela I Guerra Mundial (1914-18) e pela

Revolução Russa de 1917, aproveita de uma ideia de reconstrução do tecido

ideológico como forma de conter as ideias socialistas e também do marco de

publicação da obra de Mary Richmond, Diagnóstico Social, que reflecte um

amadurecimento e um esforço de sistematização, bem visto pelo positivismo

que dominava as ciências sociais.

A profissão valoriza-se assim no contexto académico, em que as teorias da

personalidade assumem um papel importante no enfoque dado à análise dos

problemas sociais e mantém a legitimidade para a arbitragem dos conflitos

sociais “evitando a sua generalização” e passando “a ser prestigiada pela

autoridade moral que lhe advém do facto de, socialmente, se fazer impor como

mecanismo redutor de conflitos” (Mouro, 2001:37). O Serviço Social tenta

desvincular-se da cultura assistencialista e adoptar novos procedimentos

metodológicos de intervenção social, aproximando-se das Ciências Sociais - o

que também vai contribuir para colocar a questão da partilha do campo e dos

processos de intervenção social.

Apesar da presença consolidada no ideário da profissão de Serviço Social das

políticas sociais do Estado de bem-estar como «um meio natural de vida e

Page 98: As formigas e os carreiros

98

exercício profissional» e de persistirem territórios protegidos (nomeadamente

em alguns serviços dos sectores da saúde e da segurança social), arrisco-me a

colocar a hipótese de que muito do debate em torno da sobrevivência, ou não

sobrevivência do Estado-providência (mais Wellfare ou mais Workfare), das

suas mutações, legitimidades, crises, rupturas ou superações não tem

constituído espaço de implicação de grande parte de corpo profissional.

No cumprimento das suas múltiplas funções de «formiguinhas» do sistema e

na certeza de que, diariamente, dão grandes contributos para «segurar as

pontas» de novelos emaranhados, tanto do ponto de vista das situações

individuais ou familiares, como do ponto de vista das respostas

organizacionais, os assistentes sociais correm o risco de ficar numa posição

particularmente incómoda de «bode expiatório» - simultaneamente das

incongruências, paradoxos e ineficácias do sistema institucional de que fazem

parte e pelo qual muitas vezes «dão a cara» e dos movimentos de cidadãos

(com quem teoricamente estão comprometidos) que questionam o «status

quo» e reivindicam mudanças, mais ou menos radicais.

Equacionar e debater as políticas sociais e a «bandeira do bem-estar» parece

um caminho promissor para retirar linearidade ao entendimento de que este é

um meio ‘natural’ e ‘privilegiado’ da vida profissional. E sabendo que o mercado

económico é reactivo a qualquer regulação e o equilíbrio é precário por

definição, esta reflexão não pretende mascarar os dilemas contemporâneos do

«social» no seio do capitalismo.

O Estado de bem-estar, fundado no projecto moderno de construção dos

estados-nação, tinha como base da sua arquitectura política o «contrato social»

que garantia aos cidadãos um conjunto de deveres e protecções sociais e

políticas, agarrados a um conceito de cidadania delimitado pelo Estado-nação.

“A legitimidade da nacionalidade-cidadania-individualidade era assegurada pela meta narrativa da modernidade que localizava o Eu no cruzamento dos seus três eixos fundadores: a Razão, o Homem e o Estado. Estes três eixos desdobravam-se, por seu turno, em mediadores narrativos como a ciência, a filosofia, a arte, as instituições e o estado” (Stoer e Magalhaes, 2005:89)

Segundo estes autores, é na figura do cidadão que os três eixos referenciados

se cruzam, numa universalidade da Razão que, na herança cartesiana, parecia

Page 99: As formigas e os carreiros

99

a coisa mais bem distribuída do mundo. Contudo, o contrato social da

modernidade que expressa a troca da pertença local pela lealdade nacional

está, no contexto europeu, pressionado por factores de ordem económica

(como a reestruturação do mercado de trabalho), de ordem cultural (como, por

exemplo, o confronto entre modos de vida) e de ordem política (como, por

exemplo, os efeitos da construção europeia sobre as soberanias nacionais).

A reconfiguração para um contrato social emergente apresenta-o como

delimitado por três dimensões/exigências: a «empregabilidade» que implica

estar em contínuo estado de ‘formável’; a «identidade local», que implica

expressar as diferenças; e a «cidadania europeia», que envolve a construção e

os dilemas de uma «comunidade imaginada».

As dificuldades e os impasses do desenvolvimento dos Estados-providência

que se desenvolvem com base na cidadania social de Marshall (1950),

contribuíram para o questionamento das transformações do capitalismo desde

o século XIX através de diferentes formas de «capitalismo social» (passe o

paradoxo), no seio das quais o mercado continua a ser um mecanismo

importante mas, mais ou menos, contrariado e canalizado pelos esforços dos

governos para evitar os efeitos demasiados negativos sobre as populações e

desenvolver uma redistribuição económica de «compensação».

Na sequência da revolução industrial, o Estado-providência (na pluralidade das

suas formas) tornou-se um dos elementos mais estruturantes da vida social na

medida em que criou empregos, transformou o destino das mulheres, apoiou a

reestruturação das grandes empresas industriais e ajudou a formar mão-de-

obra e a substituir os trabalhadores mais velhos por trabalhadores mais jovens

e ‘maleáveis’. Mas, por outro lado, as suas políticas são a continuação das

trajectórias históricas que em grande medida modelaram determinadas opções

dentro da linha de pensamento liberal, no pós segunda Grande Guerra (período

marcado pelas necessidades de reconstrução e de animação da economia),

revelando que a sua natureza é uma forma institucional, complexa e instável de

compromisso com os imperativos do capitalismo.

Após a II Guerra Mundial, sobretudo nos gloriosos 30 anos que se lhe seguem,

a profissão de assistente social aproveita da consolidação e crescimento dos

Estados Providência e da ideologia desenvolvimentista que supõe um

Page 100: As formigas e os carreiros

100

crescimento económico acelerado, continuado e auto-sustentado no pleno

emprego mas também se defronta com tensões internas e novos intervenientes

no campo de intervenção social. Por toda a Europa os Estados-providência

desenvolvem sistemas de protecção, desenhando políticas sociais

concretizadas em medidas, mais ou menos redistributivas, mas que, em última

análise desenvolvem sistemas de bem-estar para que os indivíduos se

adaptem. Segundo Boaventura Sousa Santos, os elementos estruturais que

estão na base do Estado-providência (e que lhe permitem concluir que o

Estado português não é um Estado-providência no sentido pleno do termo)

são:

- a construção de um pacto social entre capital e trabalho sob a égide do

Estado, cujo objectivo último é compatibilizar democracia e capitalismo;

- a relação sustentada entre duas tarefas do Estado potencialmente

contraditórias: a promoção da acumulação capitalista e do crescimento

económico e a salvaguarda da legitimação;

- um elevado nível de despesas nas políticas de bem-estar;

- uma burocracia estatal que internalizou os direitos sociais como direitos dos

cidadãos e não como benevolência estatal (Sousa Santos, 1990:42).

O Estado capitalista, necessitando de promover a sua ideologia de igualdade e

de solidariedade, realiza um esforço de investimento nas políticas sociais,

alargando os benefícios sociais em prol do “bem-estar social”.

As motivações que presidiram à sua edificação são muito diversas e vão desde

a resposta às pressões do mundo operário, mas também à vontade de

suplantar as deficiências do mercado, ao humanismo esclarecido, não

esquecendo a dimensão de reforço da lealdade dos trabalhadores ou a

institucionalização das divisões sociais (Esping-Andersen, 1999). Este autor

aborda as consequências da criação dos Estados de Bem-estar não apenas do

ponto de vista da protecção social dos cidadãos, mas igualmente do ponto de

vista da estratificação social, do lugar das mulheres na sociedade e das

implicações na criação de emprego na era pós-industrial. A trama do livro

intitulado «Os três mundos do Estado-providência» cruza o nível de

«desmercantilização», a estrutura de classe beneficiária das políticas sociais e

Page 101: As formigas e os carreiros

101

a forma do laço existente entre o Mercado e Estado, em tentativas de encontrar

equilíbrios entre os imperativos do mercado e os imperativos da «compaixão».

No entanto o debate científico prossegue com contributos para a controvérsia

sobre a história do Estado-providência e dos dilemas políticos, produzindo

entendimentos sobre questões como: i) a imposição de uma forma de regime

político favorável aos interesses do mundo operário apoiando-se nas

instituições parlamentares; ii) o desenvolvimento de uma política favorável aos

interesses da classe operária quando esta é uma minoria da população; iii) a

constituição de um Estado social que reforce as solidariedades operárias sem

abandonar os «deixados por sua conta» na vida industrial, e pós-industrial (e

desprezadas tanto pelos operários quanto pelas classes médias ou superiores).

Destaco assim, este posicionamento de Esping-Andersen (1999) que reflecte

sobre a existência de vários Estados-providência profundamente diferentes

pela sua história, pelo modo de relação entre a sociedade e a sua protecção

social, pelo lugar acordado para o Estado e mais genericamente, pelo

paradigma que subentende a acção em matéria de política social. Neste

âmbito, lembramos as suas categorias «ideal-tipo» dos modelos ou dos

regimes de Bem-estar:

a) um Estado-providência liberal que limita ao essencial a sua protecção aos

mais fracos, desprotegidos e estigmatizados;

b) um modelo conservador, corporativo, um modelo de protecção social

endossado ao trabalho assalariado, visando não uma transformação da

sociedade num objectivo de equidade social, mas a manutenção dos estatutos

sociais e profissionais;

c) um Estado-providência social-democrata caracterizado não somente por um

nível elevado de protecção social contra os riscos e por uma oferta importante

de serviços sociais, mas também por uma vontade claramente afirmada de

redistribuição dos recursos recolhidos pelos impostos.

Ainda segundo a análise deste autor, podemos classificar os Estado-

providência em fortes, médios ou fracos, em função da possibilidade que eles

oferecem legalmente aos indivíduos de suprirem as suas necessidades,

mesmo ficando de fora do mercado de trabalho.

Page 102: As formigas e os carreiros

102

Não é possível encetar uma reflexão séria sobre a evolução social dos Estados

modernos sem fazer referência às etapas de desenvolvimento da democracia e

da cidadania social, ignorando a diferença entre os Estados-providência

institucionalizados e as formas residuais de Estado-providência, entre o nível

de desenvolvimento económico e o das despesas sociais, entre os processos

de edificação dos Estados modernos, o acesso das massas à democracia e o

desenvolvimento das políticas sociais, nem ainda subestimar os processos

concretos de invenção das políticas públicas.

A grande maioria das ciências económicas actuais sustenta ainda que só

através do crescimento do mercado pode desaparecer a precariedade,

ignorando que esta é chamada pela riqueza e que, ao mesmo tempo que existe

pobreza absoluta também faz a riqueza relativa - o que leva a levantar a velha

questão da apropriação e distribuição dos recursos e de quem tem o poder

para o fazer.

Não podemos esquecer que os Estados providência do pós-guerra se

edificaram sobre a promessa do pleno emprego na ideologia da sociedade de

abundância capitalista. Sabemos hoje o quanto esta promessa era arriscada,

mas os países comprometeram-se em políticas estruturalmente distintas que

foram o prenúncio da crise actual. Alguns, à falta de obter a moderação salarial

por via de compromissos neocorporativistas preferiam a inflação, outros

recorreram maciçamente ao emprego púbico e as compensações sociais

diferidas constituíram um elemento das políticas e do mundo social nos anos

gloriosos. Mas todas as estratégias utilizadas mostraram os seus limites num

mundo em acelerada mudança e onde os jogos sociais se resumem a um jogo

de soma nula e à compensação social pelo aumento do défice público.

Hoje a diferença crescente entre o número de activos e de inactivos faz pesar

tensões financeiras extremas sobre os Estado-providência continentais e os

encargos financeiros acabam por ter efeitos negativos no emprego.

A tendência para recorrer à redução da oferta de trabalho é uma das medidas

passivas em detrimento de medidas activas de acesso ao emprego que faz

pesar os seus custos crescentes sobre o trabalho.

Esping-Anderson realiza uma abordagem complexa dos Estados-providência

colocando em evidência que eles não são apenas uma criação do movimento

Page 103: As formigas e os carreiros

103

socialista e que o movimento operário e o liberalismo económico tomaram

igualmente parte dessa construção numa teia de interesses e compromissos –

não esquecendo que já o projecto social de Bismarck era de natureza

conservadora e visava o reforço do poder central e que os Estados-providência

trazem também a marca da igreja católica. Mas a forte mobilização do

movimento operário é apenas uma pré-condição para a nascença de um

Estado-providência na via social-democrática, enquanto a sua manutenção e

enraizamento foram essencialmente função da capacidade de criar interesses

comuns entre a classe operária e a classe média. Esping-Anderson coloca

ainda em evidência os efeitos de interacção entre outros factores: a capacidade

de construir aliança com o campesinato, mas também o modo de formação da

classe operária, a estrutura económica, as preferências ideológicas e políticas

dos fundadores dos primeiros tipos de regimes, o percurso histórico dos

primeiros regimes de protecção social e as preferências induzidas no seio das

classes médias.

Sobre os cenários de futuro, este autor indica que é preciso levar a sério a crise

actual dos Estados-providência. Se as crises precedentes foram sobretudo

crises de legitimidade política, a crise actual é também efeito de alterações

profundas nos pressupostos de democraticidade existentes entre os Estados e

os cidadãos. Neste âmbito, o cidadão passa a ser responsabilizado pelo seu

destino, quando tudo parece estar fora do seu controlo.

Sousa Santos a propósito refere que “…a sua responsabilização é a sua

alienação; alienação que, ao contrário da alienação marxista, não resulta da

exploração do trabalho assalariado mas da ausência dela” (1994: 28).

Este fenómeno é o que Robert Castel (1995) designa de «nova questão social»

no âmbito da qual ser excluído já não é sinónimo de ser explorado pelo capital

(paradoxalmente, ter trabalho e ser explorado é quase um privilégio), mas ser

excluído passa a significar «estar a mais». Como refere Sousa Santos,

“Esta metamorfose do sistema de desigualdade em sistema de exclusão ocorre tanto a nível nacional como a nível local. (…) A nível nacional, a exclusão é tanto mais séria quanto até agora não se inventou nenhum substituto para a integração pelo trabalho. (…) A erosão da protecção institucional, que sendo causa, é também um efeito do nono darwinismo social” (1994: 27).

Page 104: As formigas e os carreiros

104

Com o desenvolvimento destas concepções e estratégias políticas, o Serviço

Social (que deteve uma posição hegemónica na respectiva área de

intervenção), alarga o seu campo de actuação profissional e passa a orientar a

sua actuação por uma concepção tecnologizante da gestão do social. Contudo,

este alargamento veio evidenciar fragilidades na identidade histórica do

exercício profissional: por um lado, o Serviço Social (sobretudo norte

americano) pretendia determinar o seu espaço profissional em função de uma

articulação entre as necessidades histórico-sociais e os interesses de

crescimento e valorização profissional; por outro lado, a estratégia seguida

para desenvolver o Serviço Social europeu, optou por instalar-se na dinâmica

do processo político e adaptar-se às necessidades instrumentais da política

social. Este eclectismo redundou num processo descontínuo de qualificação e

numa certa descaracterização da actuação profissional

“...ligada a um processo social em que o serviço Social na sua intervenção profissional começou a confundir o acidental com o essencial, a ter um comportamento profissional imitativo, a empenhar-se na resolução de conflitos secundários, a dimensionar o exercício profissional de uma forma difusa e a investir num discurso profissional estereotipado” (Mouro, 2001:47).

A par disto, a vinculação ao aparelho do Estado (tornado o maior empregador),

contribuiu para esvaziar o imaginário profissional, numa altura em que a

“bandeira” empírica do Serviço Social choca com um movimento das Ciências

Sociais marcado pelo Positivismo e onde se começa a dar conta de uma

cidadania «reclamada» pelos indivíduos e pelos grupos contra as instituições e

respectivas racionalidades (Stoer e Magalhães, 2005).

Os assistentes sociais, que como outros trabalhadores sociais, têm enfrentado

dificuldades de se desvincular da meta narrativa da modernidade, situaram-se

privilegiadamente do lado das instituições, assumindo a lógica do contrato

social moderno através da «cidadania atribuída», que se veio a revelar incapaz

tanto de traduzir o reconhecimento da cidadania participada como de

responder à «cidadania reclamada».

“Esta grande narrativa da modernidade, portanto, legitimava, por um lado, a acção dos estados nacionais na sua centralidade; e, por outro, a determinação de quem são os «eles», de quem são os «outros». Actualmente, mesmo os discursos e as práticas mais envolvidas com o respeito pela diferença, pela alteridade, são frequentemente vítimas da matriz moderna de que partem. Continuam a ser estes discursos o locus em que se determina o que é a diferença, o que é a diferença aceitável

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105

(tolerada) e quem é verdadeiramente o Outro e o eventual «bom» interlocutor” (Stoer e Magalhães, 2005:98).

Esta «matriz moderna», onde a recomposição do contrato social e as formas

emergentes de cidadania não têm lugar, tem colocado grandes dilemas aos

trabalhadores sociais e às suas intervenções.

Isto significa que existem tensões, com tradução quer na educação, quer na

acção social, no sentido de reivindicar uma justiça cultural e socioeconómica,

com base na(s) identidade(s) e numa política de reconhecimento da diferença.

Nestas «áreas», problemas como o absentismo, o insucesso escolar ou a não

adesão dos «utentes» às medidas que lhes estão destinadas, questionam se

os vários «outros» já não atingiram uma situação de «intolerância» face à

generosidade de que são objecto, precisamente por se recusarem como

objecto e pretenderem assumir a voz de sujeitos de si.

Esta «intolerância» faz-nos reflectir, como actores da política redistributiva que

ficam frequentemente enleados e parados no seu desenvolvimento, sobre uma

eventual renovação do campo e sobretudo da acção dos trabalhadores sociais

que dependerá da capacidade de descentração de lógicas de desenvolvimento

já esgotadas (e de uma cidadania que era sobretudo social) e contemplará o

apelo da «cidadania reclamada» como uma das suas vertentes.

A PARTICIPAÇÃO, A MUDANÇA E OS MOVIMENTOS DE

RECONCEPTUALIZAÇÃO

A relação do Serviço Social com a «participação» e a «mudança» tem sido

eventualmente um dos eixos de maior tensão na profissão, desde as dinâmicas

clássicas instaladas pela adesão ao espírito protector do modelo social

beverigdeano até à visão de Desenvolvimento Local e de Desenvolvimento

Participativo, no pólo oposto, que se legitimou na década de 60 como um dos

modelos de Desenvolvimento em que os assistentes sociais se envolveram.

A título de exemplo, refere-se o ‘desenvolvimento comunitário’ que foi utilizado

em vários períodos pelo governo inglês com o objectivo de preparar países

colonizados para a independência e foi definido pela ONU como uma forma de

“…designar os esforços da população, aliados aos do governo, para melhorar a situação económica, social e cultural das comunidades, integrá-

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106

las na vida da nação e torná-las capazes de contribuir decisivamente para o progresso nacional” (ONU, documento 2/1956).

Ora este pressuposto de «aliança» entre os interesses, poderes e os esforços

de populações e governos constitui um dos constrangimentos/dilemas que

ainda hoje subsiste na profissão e que faz parte da tal «matriz moderna» de

que atrás se falou. Helena Mouro ilustra esse constrangimento, a propósito da

relação entre o Serviço Social Comunitário e o Desenvolvimento referindo que:

“Pese embora o facto de o Serviço Social na Comunidade ter estado mais adstrito ao exercício alargado da acção social ou da solução de problemas do que a questões intrínsecas ao desenvolvimento local (…), o certo é que, se por um lado (…) valorizava a participação como meio de descomprimir tensões ou de exercitar a cidadania, quando integrava a vertente da acção social fazia com que a sua função política se tornasse complexa, na medida em que a sua relação com o desenvolvimento podia tornar-se parasitária” (2009:113).

Esta citação evidencia a possibilidade da «acção social» se confinar a uma

intervenção estritamente micro social, tornando-se assim «parasitária» em

processos de mudança mais estruturais, eventualmente por não descolarem de

uma «comunidade imaginada» (Anderson, 1983) que, em nome do que era

«comum» a todos, atribuía o poder legítimo ao estado.

Para esta reflexão, assume importância o conceito de Desenvolvimento

Alternativo como um processo de ‘conscientização’ social e político cujo

objectivo a longo prazo é reequilibrar a estrutura de poder na sociedade,

salvaguardar o meio-ambiente e a natureza, amplificar as formas e os meios de

participação das pessoas na gestão dos seus próprios assuntos e redistribuir o

rendimento de forma menos assimétrica.

O carácter ideológico da profissão e a sua vinculação ao aparelho de Estado,

agravada pela burocratização do sistema de protecção social e pela própria

segmentação do social, tem dificultado uma reflexão endógena e aprofundada

sobre o futuro profissional. Helena Mouro defende que “A crise do capitalismo

arrastou consigo uma crise do Serviço Social” (Mouro, 2001:49), que acabou

por o deixar colado ao estigma de uma acção profissional “moralizadora e

normativa”.

Uma das tendências do corpo profissional no sentido de uma «revalorização da

prática» procura reinventar as «funções do Serviço Social» na

contemporaneidade. Recorda-se que o tema das «funções» constitui-se como

Page 107: As formigas e os carreiros

107

um pólo privilegiado de análise durante toda a década de 70, denotando uma

grande preocupação em definir e delimitar os espaços ocupacionais da

profissão e o seu papel no processo de mudança. Na verdade, o que estava

em jogo era a questão da sua identidade específica e distintiva, aliada à

convicção de que a clarificação das funções de Serviço Social levaria à

superação dos dilemas profissionais (Martinelli, 2006:23).

Já em Ander-Egg (1975) se identificam seis tendências para o Serviço Social e

classifica-as de acordo com o enfoque que sugerem: enfoque no científico; no

tecnológico-metodológico; no ideológico-político; na profissionalização; na

prática e no compromisso existencial.

Apesar da distância temporal arriscar-me-ia a dizer que estas tendências se

mantêm, embora de forma combinada e em cruzamento com novas tendências

(de modelo(s) de formação, de inscrição no mercado de trabalho e nas

organizações e ainda de perdas substanciais de legitimidade de intervenção),

num campo cheio de constrangimentos e cada vez mais partilhado entre

«interventores voluntários» e «interventores de muitas outras formações».

No caso do Serviço Social Europeu, a sua estratégia de afirmação alia-se à

estratégia de legitimação ideológica do capitalismo, mantendo vestígios do seu

humanitarismo cristão. O exercício profissional situa-se entre as solicitações do

mercado empregador e a gestão do social, ainda muito marcado por um

conjunto de funções que visam, em última análise, neutralizar as tensões

sociais.

É no contexto destas tensões que emergem movimentações internas, quer com

a produção de estratégias alternativas de reconstrução dos espaços de

intervenção profissional, quer com o reconhecimento da necessidade de maior

cientificidade, de que é exemplo o “Movimento de reconceptualização” ou o

“Movimento da Geração 65” - Movimento criado no sul do Brasil que se

destacou pelo debate crítico da Metodologia do Serviço Social, centrando-se na

reconceptualização da profissão, onde para além da análise histórica da

natureza do Serviço Social, eram também discutidas as suas funções no

quadro de um processo de mudança social.

Deste movimento destacam-se participantes como Herman Kruse, José Lucena

Dantas e Maria Lúcia Carvalho da Silva. Na América Latina e, particularmente

no Brasil, entre 1960 e 1964, existiram experiências de pequenos grupos de

Page 108: As formigas e os carreiros

108

assistentes sociais, apoiados pelas Escolas de Serviço Social do Nordeste, que

se envolveram no Movimento de Educação de Base, apresentando uma

postura profissional fundamentada na análise crítica da sociedade,

evidenciando as contradições do sistema capitalista e requerendo mudanças

estruturais. Este Movimento nascido em 1958 teve um crescimento

considerável ao lado dos Centros de Cultura Popular e dos Movimentos de

Cultura Popular, tendo sido iniciada uma campanha de mobilização nacional

contra o analfabetismo (Pinto:1986).

Estes Movimentos nasceram do interesse de intelectuais, políticos e

estudantes em promover o envolvimento do povo no processo de participação

política e na tomada de consciência da problemática brasileira no final da

década de 50. A perspectiva educativa caracterizou-se pela adequação de

métodos pedagógicos e visava um processo de conscientização e participação

política de que Paulo Freire (1980) é um dos autores mais divulgados, na

mudança significativa do homem à condição de «sujeito».

O seminário de Araxá, em 1967, na herança destes movimentos

comprometidos com a actuação sobre as causas dos problemas sociais conduz

ao «Movimento de reconceptualização» que traduzia as preocupações das

próprias ciências sociais nesse momento e a inadequação dos métodos

tradicionais à realidade ‘subdesenvolvida’ do Brasil e da América Latina.

Por seu lado, a grave situação socioeconómica existente na América Latina

facilitou a penetração das ideias socialistas, ampliando a influência das

ciências sociais e mostrando que as mudanças internas no Serviço Social, quer

em termos de metodologia, quer em termos de ideologia, ocorrem a partir de

influências externas.

Este debate encobria um sério impasse com o qual o Serviço Social se via

envolvido, na medida em que as suas práticas restritivas, reducionistas e

micro-sociais não conseguiam responder de forma efectiva aos complexos

problemas que se viviam. Assim, no seu parágrafo 34, o Documento de Araxá

resultante do Seminário de 1967 afirma que: “…impõe-se a reformulação do

Serviço Social em novas linhas de teoria e de acção para melhor servir à

pessoa humana e à sociedade” (1984:13).

Page 109: As formigas e os carreiros

109

Este questionamento sobre a identidade profissional foi fecundo e teve

consequências no alargamento do debate interno sobre os princípios, os

valores e as metodologias do Serviço Social. Porém, não foi hegemónico e

criou várias linhas ou tendências que segundo Helena Mouro (2009), se

manifestaram a partir de diferentes concepções teóricas e algumas cisões

entre o Serviço Social Europeu (tido como mais conservador), o Serviço Social

da América do Norte (mais reformista) e o Serviço Social da América Latina

(mais revolucionário).

A partir dos anos 70 do século passado os processos de reconceptualização de

intervenção profissional ganham visibilidade social, embora de forma

diferenciada, numa nova fase de afirmação. Numa perspectiva abrangente,

passou-se a assistir a um investimento no reforço da sua qualificação

profissional, o que criou rupturas com um “praticismo” de carácter “doméstico”

e “familiar” e contribuiu para um exercício profissional que se expressa numa

mudança de práticas, agora mais voltadas para as alterações dos

comportamentos sociais e para a compreensão das situações de âmbito

conjuntural.

Os Movimentos de reconceptualização do Serviço Social na década de 60 não

foram alheios, como vimos, aos movimentos de contestação da época e

construíram posições críticas sobre as formas como o poder político orientou a

intervenção no campo do social.

Na perspectiva desta trajectória, sumariamente identificada, persiste a reflexão

de que o Serviço Social tem uma identidade histórica atribuída pelo capitalismo

“…e constituída de avessos – coerção, intimidação, repressão - e era, na verdade uma forma mistificada de controlo social (…) onde a função social da assistência era submetida à sua função económica, substituindo o educativo pelo assistencial e transformando a crítica em resignação, em passiva aceitação” (Martinelli, 2006:158).

Contudo, na sequência das alterações contextuais e do insucesso dos métodos

tradicionais de protecção social e de ajuda social, nasce um novo método de

acção que consiste em responder à reivindicação pela oferta de implicação,

num princípio da «contratualidade da acção» (Donzelot, 1994). É então que

surgem os procedimentos operativos baseados nas noções de ‘missão’, de

Page 110: As formigas e os carreiros

110

‘contrato’ e ‘Metodologia de projecto’, dando lugar a políticas sociais

pretensamente transversais. Mas também aí,

“…o certo é que não se encontra, na fundamentação dessas vias, uma problematização e uma configuração do social com base numa noção de social abrangente, que englobe o mundo da vida assim como o mundo da política e o mundo do pensamento de forma articulada “ (Andrade, 2001: 105).

Segundo Illich (1976), para ultrapassar os «mecanismos contra produtivos»

(ou, como outros diriam, para deixar de fazer mais do mesmo) é preciso abrir

crise, querer mudar a sociedade, pensar futuros - o que implica uma alteração

profunda nos comportamentos individuais, sociais e no papel do Estado.

O debate está assim, instituído para além da instrumentalidade do Serviço

Social (e da eficácia, ou ineficácia, dos seus resultados), gerando-se no

questionamento do seu objecto, da direcção social dos resultados, nos

objectivos, nas finalidades, nos princípios ético-políticos e nos fundamentos

teórico-metodológicos, onde as racionalidades se confrontam e articulam.

Mas também será importante reconhecer que o Serviço Social não foi

engendrado por si próprio. Ele surge como parte de uma estratégia de classe,

no momento em que o Estado assume para si o tratamento das questões

sociais e onde as políticas sociais inauguram um mercado de trabalho para os

assistentes sociais, apostados em produzir “reformas na ordem” e em ‘integrar’

as classes mais desfavorecidas.

Estes campos de actuação contribuem para tornar o Assistente Social um

elemento activo de um processo político que começou por pretender elevar o

padrão médio de vida, bem como alargar o consumo de bens e serviços sociais

num clima de baixa tensão social.

Mas se não naturalizarmos a vinculação orgânica do Serviço Social ao

Capitalismo, podemos assumir que a história é essencialmente um movimento

que se constrói a cada momento e nessa construção, traz novas possibilidades

como refere Pinto,

“Uma sociedade em mudança exige de uma profissão uma postura científica de Investigação-Acção críticas e uma renovação da acção profissional, sempre atenta às transformações sociais, estruturais e conjunturais da sociedade onde exerce” (1986: 33).

Page 111: As formigas e os carreiros

111

Hoje, como ontem, são muitas as oportunidades de participação em

movimentos que reivindicam mudanças e co constroem processos de

aprendizagem partilhada para inventar «o novo» e «o diferente», e onde para

além dos resultados que estes caminhos experimentais possam gerar, a

participação dos assistentes sociais em processos participados pode constituir

fonte de aprendizagem e ganho de legitimidade que lhes permitam assumir

posições de paridade e de activismo com outros actores sociais que procuram

reconfigurar a sua cidadania individual e colectiva.

OS DIREITOS HUMANOS E A JUSTIÇA SOCIAL NUMA ÉPOCA DE

GLOBALIZAÇÃO

É frequente associar a globalização à produção de mudanças profundas que

reintroduziram a prioridade das políticas económicas e questionaram a

centralidade do Estado nacional na concepção e sustentação das suas

políticas, nomeadamente as sociais. Segundo a definição do Banco Mundial

(2002), globalização é a crescente integração das economias e das sociedades

do mundo, devida aos fluxos maiores de capital, de mercadorias, de

informação e, embora mais contido, ao fluxo populacional.

A Globalização começa por ser um fenómeno económico, com a abertura de

fronteiras, o recuo do peso do Estado e a organização mundial do comércio e

passa a um fenómeno político, no pressuposto de que o neo-liberalismo

diminuiria a pobreza e de que a abertura de fronteiras para o comércio

internacional, em simultâneo com o recuo do peso do Estado, possibilitariam

aumentar a riqueza e o desenvolvimento para todos os países. Contudo, a

pobreza aumentou de uma forma geral, aumentando sobretudo a discrepância

(de ordem territorial e de grandeza) entre as populações mais ricas e mais

pobres.

As posições e teses desenvolvidas ao longo das últimas décadas têm

desenhado, de formas muito variadas, perfis das actividades estatais no

domínio do bem-estar, defendendo quer a resistência do Estado-providência,

(com mais ou menos renovação e reordenamento), quer a sua extinção, o que

seria o ideal supremo numa sociedade de mercado.

Page 112: As formigas e os carreiros

112

Nos anos 80, nos países com um Estado-providência mais forte dá-se uma

viragem que vai afectar a sua forma organizativa e vai também alterar

estruturalmente a sociedade civil e o mercado, bem como a sua inter-relação e

nos anos 90, o desemprego em massa, atribuído a exigências de

racionalização de efectivos, por via das mutações tecnológicas, e a alteração

da composição social dos grupos excluídos, despoletou a negação das bases

compensatórias do Estado Providência no “modelo fordista-keynesiano-

familiar”, preparando a sua deslegitimação.

Estaríamos então perante uma miríade de modelos de interpretação e

reinvenção societárias que foram reflectindo formas e modelos distintos, entre

eles:

a «sociedade bloqueada» (Crozier, 1983), que foi concebida como uma

sociedade administrada pelo Estado, que apesar de manter os sonhos de

progresso e democracia, não comunicava com os cidadãos, deixando-os

alheados das decisões sobre o futuro da sociedade;

o «capitalismo flexível» (Harvey, 1989) que se manifesta através do

processo de flexibilização do processo produtivo, dos contextos e de toda a

organização do trabalho, enquadrando a transformação do trabalho e da

sua organização;

a «sociedade de risco» (Beck, 1992) que designa um estado de

modernidade no qual as ameaças produzidas começam a predominar até à

«crise ecológica actual»;

a «sociedade em rede» (Castells, 1996) que é uma sociedade de

informação, onde se privilegia o capital informacional e constrói uma nova

relação entre o «mapa» e o território.

No seio de uma sociedade globalizada cabem todas as «diferenças» e todas as

perspectivas, embora a tarefa de escolher, apropriar e dar sentido(s) a essa

informação remeta para processos complexos e difíceis . Por outro lado, a

possibilidade de constituição de uma «sociedade convivencial», no sentido de

Ivan Illich (1976) não poderá descurar aspectos como o direito ao trabalho, o

respeito e a promoção do pluralismo cultural, uma justa redistribuição, o

equilíbrio do sistema económico e do sistema social, o acesso universal à

satisfação das necessidades básicas, o desenvolvimento das formas de

Page 113: As formigas e os carreiros

113

democracia directa e participativa e as políticas activas no sentido da protecção

social e ambiental. Dizia Illich há mais de 30 anos que:

“Os sintomas de uma progressivamente acelerada crise planetária são evidentes. Por todos os lados se procurou o porquê. Antecipo, por meu lado, a seguinte explicação: a crise radica no malogro da empresa moderna, isto é, na substituição do homem pela máquina. O grande projecto metamorfoseou-se num implacável processo de servidão para o produtor e de intoxicação para o consumidor (Illich, 1976:23).

À semelhança desta «explicação», coloco a possibilidade de que também os

assistentes sociais se deixaram subjugar pelas «ferramentas», perdendo de

vista o sentido ético-político da sua intervenção. E eventualmente mais grave

do que se deixarem «funcionalizar», tem sido por um lado a sua «servidão» a

uma matriz moderna de estado e sociedade (com as suas políticas sociais e as

respectivas medidas de implementação) e a modelos de conhecimento que

mimetizam, mas não integram, nem reflectem e que acabam por os colocar

«contra» as pessoas que supostamente seriam o sujeito da intervenção.

Na tentativa de superar o «amadorismo» das práticas anteriores e de obter

reconhecimento científico e tecnológico, o Serviço Social colou-se a uma

concepção de tecnologia social (Ander-Egg, 1996) ou de engenharia social que

o distancia da posição de actor e de autor em defesa dos Direitos Humanos e

da Justiça Social.

Enfrentamos hoje velhos e novos «bloqueios» em que estados

progressivamente mais fracos perdem a sua legitimidade e protagonismo, a

favor de um imperialismo financeiro, numa (des) orientação que alguns autores

introduzem como «pós» qualquer coisa: por exemplo, uma «democracia pós-

industrial» na expressão de Boaventura Sousa Santos (2011) com tradução em

formas de “estado pós-bem-estar” na expressão de Fernanda Rodrigues

(1999).

Da noção de «democracia pós-industrial» saliento as estratégias de uma

«democracia partidocrática» que passam pelo controlo e subversão das

instituições «criadas para obedecer a cidadãos que passam a obedecer a

banqueiros e mercados» mas, onde também se defende que os cidadãos têm

potencial para reconhecer que esta forma de democracia está esgotada, na

medida em que passem da resignação e do choque à indignação e à revolta.

Page 114: As formigas e os carreiros

114

Apesar das novas formas assumidas pelo estado de «pós-bem-estar» com a

substituição parcial da sua obrigação política por relações contratuais com

cidadãos, empresas e organizações não-governamentais, continua a ser

defendido um padrão de estado intervencionista e regulador, numa democracia

que se pretende mais «deliberativa e participativa».

Na Europa, a globalização produziu, entre outros efeitos, uma

desindustrialização acelerada e uma continuada deslocalização das actividades

de produção para outros continentes, com impactos nomeadamente na

quantidade e qualidade do trabalho disponível, nos sistemas fiscais e de

financiamento do Estado e nas políticas sociais.

Neste âmbito, não podemos esquecer que nas décadas de 50, 60 ou 70 do

século XX (dependendo dos países), o Estado educador foi uma bandeira do

Estado desenvolvimentista, em prol da lógica do desenvolvimento económico e

social em que o estado deveria pilotar a economia e fazer uso da Educação

como instrumento de desenvolvimento e coesão social. Este processo de

massificação da escola permitiu que novas camadas sociais tivessem acesso

ao ensino e que camadas mais pobres da população aspirassem a uma vida

melhor.

Em simultâneo, estabeleceu-se uma nova relação com a construção cultural de

alternativas de regulação social e rupturas sociais, onde se inscreve a

intervenção social. Neste debate, o contributo de Robert Castel identifica o

Estado social como um actor central que face a determinadas estratégias

desempenha também o papel de preparar transições. Alertando ainda para a

ideia de que o Estado-providência também é produtor do individualismo, o que

por sua vez também é característica da Globalização e que os efeitos de

democratização e de reprodução social ajudaram a criar as sociedades

contraditórias contemporâneas.

“Quando se proporciona aos indivíduos esse pára-quedas extraordinário que é a garantia da assistência, permite-se que todas as situações da existência se libertem de todas as comunidades, de todos os pertencimentos possíveis, a começar pelas solidariedades elementares de vizinhança” (Castel, 2003:507).

Este autor é particularmente crítico quanto às formas de pensar e intervir na

«exclusão», entendida como um dos fenómenos actuais mais prementes, que

Page 115: As formigas e os carreiros

115

não pode ser visto como arbitrário e acidental. A propósito apresenta como

essencial a perda da identidade pelo trabalho baseada na condição de

assalariado, num clima de precariedade estabelecida e refere que,

“É no centro da questão salarial que aparecem as fissuras que são responsáveis pela «exclusão»; é antes de mais na regulação do trabalho e dos sistemas de protecção que estão ligados ao trabalho que é preciso intervir para «lutar contra a exclusão» ” (Castel, 2003:525).

No contexto de crise da sociedade contemporânea, a cultura de «exclusão»

assumiu uma importância sintomática no quadro da governabilidade da gestão

social, mas o seu significado pluralizou-se, transformando a «exclusão» numa

espécie de «contentor» dos problemas sociais.

É quanto muito estranho que a exclusão surja como norma, como referem

Stoer e Magalhães (2005), numa altura em que se fala tanto de inclusão -

«sociedade inclusiva», «educação inclusiva». Acrescentam estes autores que a

razão para tal reside no facto dos fluxos de capital terem deixado de estar

submetidos às regulações nacionais e, na sua «lógica de casino» (Harvey,

1989) reconfigurarem as relações sociais, deslocando-as intensivamente.

“Se a inclusão for, efectivamente, definida a partir do mercado, pode ser vista como um dos processos que permite a esse mesmo mercado desterritorializar as relações sociais ao nível do estado-nação para as reterritorializar, depois, a um nível supranacional” (Stoer e Magalhães, 2005:11)

Assim, a paradoxalidade do processo de inclusão pelo consumo (onde quem

não é consumidor é excluído) reside no facto de divulgar um mercado global

onde todos os indivíduos, independentemente das suas diferenças, parecem

poder ser incluídos, ao mesmo tempo que erradica essas mesmas diferenças,

excluindo os que não estão aptos para uma «cidadania do consumo». Por

outro lado, o impacto dos processos de produção que estruturam o capitalismo

transnacional na educação/formação revela-se quer na forma como utilizam os

conhecimentos (são «conhecimento-intensivos e não trabalho-intensivos»

como referem Stoer e Magalhães, 2005:12), quer na forte pressão que

exercem sobre os conhecimentos para que se construam sob a forma de

competências. Segundo os mesmos autores, a questão da elaboração das

políticas sociais e educativas, numa época de globalização, quer na

recomposição dos próprios campos social e educativo, quer no que diz respeito

Page 116: As formigas e os carreiros

116

aos actores sociais, faz apelo a uma reconfiguração de triplo mandato,

nomeadamente no que respeita ao desenvolvimento individual, à formação dos

cidadãos e à preparação para o trabalho.

Nas últimas décadas as transformações que se produziram nos mecanismos

de regulação social tiveram consequências não só por relação à crise dos

Estados-nação, mas também nas suas funções sociais. E mais

particularmente, no papel do Trabalho Social face à política social, pois este

está no centro de contradições e de mudanças nas nossas sociedades.

“A par das dificuldades relativas à sua intervenção face à produção e distribuição de recursos para um desenvolvimento apoiado, assiste-se, face à globalização das economias, a um desajuste do estado, que se tornou demasiado pequeno para resolver os grandes problemas da vida e demasiado grande para resolver os pequenos problemas da vida” (Rodrigues, 1999:55).

Prosseguir os objectivos de luta pelos Direitos Humanos e pela Justiça Social é

um campo de possibilidades de desenvolvimento da profissão em múltiplos

formatos que faz dela, agente de escolhas políticas.

Por relação a um passado feito de práticas assistenciais, mais ou menos

filantrópicas, mas também de muitos activismos subscreve-se neste trabalho a

referência de Faleiros (2006): a ideia de colocar a especificidade do Serviço

Social no jogo entre o colectivo e o individual, entre a estrutura e o sujeito.

Para isso, será necessário reflectir que o compromisso estatal com a política

social celebra a orientação para políticas configuradas:

i) numa relação tensional de interesses antagónicos;

ii) numa concepção de desigualdades sociais como problema colectivo

que deverá suprir necessidades sociais;

iii) numa articulação com momentos e contextos específicos

o que coloca os assistentes sociais (e outros trabalhadores sociais) no campo

dessas tensões, concepções e articulações. Por outro lado, o compromisso

com as pessoas coloca os assistentes sociais face a princípios de:

i) estabelecer relações contextualizadas que tenham em conta a

intervenção multinível;

ii) assumir a incerteza e a ambiguidade;

Page 117: As formigas e os carreiros

117

iii) reconhecer a natureza interactiva da relação entre profissional e

«utente»;

iv) assumir como referencial para a acção os Direitos Humanos e a

Cidadania;

v) compreender a multiplicidade e a fluidez da identidade humana;

vi) conhecer e trabalhar no sentido do desmantelamento das dinâmicas de

opressão;

vii) lidar com a complexidade e subtileza das relações de poder;

viii) trabalhar com as forças das pessoas, não esquecendo as suas

fragilidades;

ix) reconhecer as diferenças e celebrar a diversidade como parte do seu

referencial;

x) abordar o outro como sujeito de conhecimento e compreender as

repercussões do trabalho desenvolvido (Dominelli, 2004:252).

As relações, muitas vezes tensionais, entre as «orientações» e os «princípios»

dos quadros de referência e dos contextos de intervenção dos assistentes

sociais colocam dilemas nem sempre fáceis de resolver, sobretudo na condição

de «trabalhador por conta de outrem» com margens limitadas de autonomia.

“Platão dizia que o mau homem de Estado julga poder medir tudo, misturando a consideração do inferior e do superior em busca do que convém mais ao fim pretendido. A nossa atitude para com a produção foi modelada, ao longo de séculos, por uma longa sucessão deste género de homens de estado. Pouco a pouco, as instituições não só se adaptaram à procura, como deram também forma à nossa lógica, isto é, ao nosso sentido da medida. Em primeiro lugar pede-se o que a instituição produz, depois julga-se que não se pode viver sem isso. E quanto menos se pode usufruir do que chegou a tornar-se uma necessidade, mais fortemente se sente a necessidade de o quantificar”(Illich, 1976:34).

No entendimento de que as respostas também induzem a procura, num ciclo

muitas vezes vicioso e «governado» pelo «sentido da medida», trata-se da

possibilidade de utilizar o espaço da profissionalidade para inverter a lógica de

aceleração competitiva e produtivista aplicada ao social.

Se não é possível eliminar os conflitos e os paradoxos, será importante

aprofundar a produção de sentido dos novos movimentos sociais no sentido de

superar o capitalismo - o que implica evitar as armadilhas do neo-liberalismo

mas não recusar aspectos que funcionem.

Page 118: As formigas e os carreiros

118

Bernard Charlot (1997) defende que, apesar dos efeitos negativos, a

globalização também tem potencialidades, nomeadamente com a

mundialização da lógica da solidariedade e afirma que, na medida em que

conseguirmos fazer recuar o capitalismo e a lógica neo-liberal, será possível

fazer ressaltar a perspectiva ecológica, socioeconómica e cultural-educativa.

Quando pensamos na Globalização, sobretudo enquanto fenómeno

socioeconómico de integração das economias, torna-se necessário distinguir

(segundo Charlot, 1997) quatro processos interligados:

i) A mudança estrutural do capitalismo mundial, ocorrida na sequência do

Estado desenvolvimentista da década de 70 do século passado. Nesta

mudança nem tudo pode ser imputado à Globalização, como por

exemplo o facto da Educação e da Acção Social funcionarem numa

lógica económica que precede a Globalização;

ii) As novas lógicas psico-educativas (que tiveram inicio na década de 80)

e impõem padrões de qualidade, eficácia e territorialização e que,

embora possam servir à globalização, não decorrem dela;

iii) Os efeitos da própria globalização em todos os níveis da vida, teve uma

repercussão positiva no acesso à informação e à educação de vários

países, nomeadamente nos países do sul;

iv) A solidarização da espécie humana e a maior conscientização sobre a

sobrevivência do Planeta, de que se destacam marcos importantes

como os Fóruns Sociais Mundiais e o Movimento das Nações Unidas

que defende a «Educação para todos».

Outros Movimentos Internacionais da actualidade questionam a lógica neo-

liberal onde o poder financeiro constitui uma fonte ilegítima e ‘invisível’ de

poder e prosseguem uma alter-mundialização com a bandeira da solidariedade

entre a espécie humana, onde o homem possa assumir uma nova posição em

defesa de sociedades mais justas e sustentáveis.

No relacionamento da globalização com a democracia, Rodrigues diz que:

“A tradução da globalização como forma de «governação sem governo» conota-a com um território onde as orientações assumem um cunho à margem dos mecanismos habituais de decisão, nos quais melhor se identificam os actores e alvos dos processos de negociação e de reivindicação (traço fundamental na dinâmica da política social e do Estado social) ” (1999:42).

Page 119: As formigas e os carreiros

119

Esta posição destaca uma característica de funcionamento da globalização

como estando «fora» de qualquer controlo dos cidadãos e das organizações

que teoricamente os representam, conforme instituído nos Estados de Direito

das democracias ocidentais. Admitindo que um dos efeitos da globalização é a

mudança estrutural do poder e do papel dos Estados nacionais, será que o

estado-social (nas suas diferentes modalidades) tem futuro como espaço de

regulação? E com, ou sem estado-social, que futuro(s) para os direitos

humanos e para o ideal de ‘justiça social’ ? Continuarão relacionados com a

procura de uma maior justiça redistributiva?

Page 120: As formigas e os carreiros

120

2.2. UMA PROFISSÃO A EXPLICITAR

A necessidade de explicitação desta profissão, que tem «produtos» pouco

visíveis, não utiliza «tecnologias» muito específicas e tem um corpo teórico

multireferencial, prende-se fundamentalmente com a importância de nomear os

contextos, os actores, as forças e os fenómenos vividos e experienciados no

decurso da profissão, numa teia de compromissos com os «destinatários» das

intervenções sociais, com as instituições, com a profissão enquanto actividade

ligada à reflexividade, com a produção de conhecimento próprio e específico e,

a um nível macro, com a mudança societal.

Esta necessidade, ou esta exigência de explicitação, não é nova nem exclusiva

dos Assistentes Sociais. No caso dos professores, Rui Canário sublinha a

importância dos processos de explicitação e de fundamentação das práticas,

traduzindo em linguagens simbólicas que tornem possível a produção de um

saber na acção, comunicável a outros. O autor salienta que:

“…estes processos de explicitação são caminhos alternativos para superar uma relação de causalidade linear entre a formação e a mudança em que a prática profissional é encarada como uma modalidade de aplicação do saber transmitido por especialistas (…) a importância de privilegiar estratégias ecológicas e indutivas em que os profissionais e as organizações mudam ao mesmo tempo (…) através de uma acção transformadora que assume a forma de um processo colectivo de aprendizagem” (in Prado e Soligo:2005:12).

Nesta linha dos «processos de explicitação e fundamentação das práticas

comunicáveis a outros», colocam-se questões complexas relativas aos códigos

e aos canais para viabilizar essa comunicação. Colocam-se também questões

«internas», referentes aos valores, ao conhecimento e aos sentidos atribuídos

pelos profissionais aos seus exercícios, onde toma lugar a questão da

especificidade e da complementaridade dos diferentes saberes, e também a

tomada de consciência e o compromisso com a «acção transformadora» que

possibilita, ou não, os referidos processos colectivos de aprendizagem que, em

teoria, facilitam a mudança de profissionais e organizações em simultâneo.

É nossa convicção de que a questão social carece de ser novamente colocada

como uma questão política que liga os problemas das pessoas e as

determinações das sociedades.

Page 121: As formigas e os carreiros

121

Neste entendimento coloca-se a hipótese de que será na medida em que os

Assistentes Sociais puderem tomar consciência que também eles/elas são

actores e vítimas das lógicas impiedosas do mercado (tanto quanto os públicos

que se lhes dirigem), que talvez possam continuar a garantir a construção de

uma profissão que precisa de ser reflectida, contada e relegitimada.

Na medida em que os profissionais conseguirem reconhecer, enquadrar,

apropriar, e dar a conhecer as tensões e lutas políticas, quer seja no

crescimento reivindicativo dos direitos das pessoas, ou nas mudanças

importantes em torno da implementação e avaliação das acções, ou ainda em

volta das competências e da evolução das profissões e dos conhecimentos

próprios construídos ao longo das trajectórias de vida, talvez a profissão possa

conquistar espaços de autonomia e reconhecimento, constituindo-se como um

campo de participação na mudança social e afirmando o seu potencial de

intervenção política e social.

Reafirma-se assim que este debate se situa num campo de batalha ideológico,

onde se activam múltiplos actores e movimentos sociais, em busca de uma

reconfiguração dos limites e das potencialidades do próprio conceito de

«mandato» - o que se apresenta como um campo de possibilidades para o

corpo profissional se pensar e aproveitar mais uma crise na sua construção

profissional, de modo a afirmar identidades, necessariamente múltiplas e

variadas, em novos modelos e formatos que possam permitir uma «acção

crítica no sistema e uma acção crítica fora do sistema» (Stoer e Magalhães,

2005:57).

Para mim, que me defino por uma multiplicidade de vertentes

intercomunicantes e interactivas (que conjugam «papéis», genealogia,

espaços, tempos…), uma miríade de «pertenças» e de «afinidades» mas

também como pessoa activa, trabalhadora e profissional, é relevante a

concepção sistémica de que «o todo é maior do que a soma das partes».

É precisamente com este mote que me debruço sobre uma das ‘partes’, a

profissional, sabendo que só por exercício analítico, esta separação é possível.

Na ‘parte’ que responde pela designação profissional de Assistente Social foi

importante partir de um caminho de reflexão a partir de dentro deste campo

profissional, embora com uma abordagem que procura colocar interrogações e

Page 122: As formigas e os carreiros

122

não se confina a um «espírito de corpo» ou a uma pretendida disciplinaridade,

embora seja participante na vida profissional e na formação continuada de

assistentes sociais.

A herança cultural da profissão admite uma grande pluralidade, cujos traços

são entendidos como marcadores de culturas específicas, muito embora a sua

conotação mais frequente seja acompanhada como tentei abordar, pelas

metamorfoses simbólicas da pobreza.

O discurso histórico sobre o Serviço Social é actualmente um campo de

investigação (nomeadamente os trabalhos de pós-graduação de Maria Isabel

Santos, 2008, 2009) mas não é por aí que pretendo enveredar.

As motivações que me norteiam têm a ver com a convicção de que, mais

importante do que apropriar «o» percurso da profissão, importará que cada

profissional possa constituir a «sua» história sobre a herança do Serviço Social,

conhecendo, divergindo ou confluindo com autores ou referências

(necessariamente parcelares), mas posicionando-se e construindo o seu

‘reportório’ próprio.

Foi o que procurei fazer, utilizando para tal contributos de assistentes sociais

que têm reflectido e produzido sobre estas questões e cruzando

necessariamente com a história de ‘como me tornei assistente social’ num

dado tempo histórico e em determinados contextos.

Esta é uma complexidade que reflecte a complexidade da vida e, neste

pressuposto, faz-me sentido a visão defendida por Payne de que

“…o trabalho social é um discurso entre ideias em acção que nos alerta para a importância de olhar para os padrões de relações entre teorias e os seus apoiantes” (1997:395).

Se entendermos que as teorias são visões do mundo mas não são o mundo,

percebemos a sua importância para nos organizar e orientar mas também as

diferenças entre as teorias – quer as que são mobilizadas de campos de

conhecimento próximos, quer as teorias próprias do Serviço Social construídas

a partir do conhecimento interno do campo profissional – e os problemas e as

«realidades» que as pessoas enfrentam.

As perspectivas teóricas dão-nos referências que nos ajudam nomeadamente,

a entender o alcance macro das questões que temos de enfrentar, a tomar

posição nas opções ideológicas, políticas e sociais e a mobilizar um corpo de

Page 123: As formigas e os carreiros

123

conhecimentos para a acção, mas a maioria de nós combina essas ideias à

medida das circunstâncias e do que vai precisando - como um músico de Jazz

que faz «improvisos» mas para os quais tem de ter profundos conhecimentos

musicais.

As ideias do construtivismo social apontam para um meta-nível sobre a

profissão e o seu objecto, construído na intersecção do social e do individual.

A linguagem e a comunicação pelas quais nos construímos e construímos as

ideias do mundo em que intervimos, as estruturas sociais onde somos agentes

e que nos limitam e nos legitimam, e os modos de pensamento e

comportamento são alguns dos aspectos presentes na diversidade e fluidez do

objecto do Serviço Social. Como refere Payne (1997) é tão difícil ver o trabalho

social em qualquer caso individual como isolado dos seus aspectos sociais,

como é investir na mudança social, sem respondermos às necessidades

individuais.

A perspectiva da crise endémica leva-nos a concluir que a modernidade se

caracteriza pela contingência e instabilidade generalizadas e reposiciona a

crise transformando-a numa «característica» da modernidade e num «campo

minado» de crise dos paradigmas analíticos das ciências sociais, onde a pós-

modernidade questiona as macro-abordagens e valoriza as «micro narrativas».

Eventualmente estas possibilidades de «explicitar a profissão» parecerão a

muitos Assistentes Sociais tão mais distantes quanto nunca terá sido tão difícil

como hoje arranjar e manter trabalho, o que não parece oferecer condições

para dedicar tempo e energia para construir a profissão enquanto «sujeito

colectivo». No entanto, a profissão parece estar tanto mais em risco de

indiferenciação ou de extinção quanto os profissionais se deixarem subjugar às

lógicas instrumentais e se limitarem a uma «luta» individual por obter um posto

de trabalho, reduzido ao mínimo de autonomia ou eliminando a sua

«conscientização» e prática crítica.

REVISITAR A PROFISSÃO

Se tomarmos como referência a abertura da primeira escola com o Curso de

Serviço Social em Portugal (1935, em Lisboa), podemos afirmar que existe

Page 124: As formigas e os carreiros

124

uma história da profissão com quase 80 anos. Ao longo destes anos, foi feito

um caminho de qualificação técnica e académica, de intervenção nas

organizações e junto das populações, de conquista de ‘campo’ e de

reconhecimento social, mas também de reflexividade e de investigação na

procura de conhecimentos próprios como tentativa de consolidar a profissão e

fazer reconhecer a disciplina.

Contudo, é o questionamento como «profissão», sobretudo por autores

externos ao campo profissional, que aqui pretendo equacionar. E na

perspectiva aqui utilizada o debate sobre se, efectivamente, será ou não, uma

profissão não pode ser dissociado da controvérsia sobre a sua legitimidade.

A emergência desta profissão num dado tempo histórico pode ser justificada,

segundo Helena Mouro,

“… no quadro de vários raciocínios como uma profissão que resulta de uma dinâmica histórica do aperfeiçoamento da ‘arte de bem-fazer’; como uma profissão de ‘obreiras’ sociais que se servem de uma ‘química social’ para relativizar o corte epistemológico que a sociedade capitalista fez com o modelo clássico de práticas herméticas de regulação social; ou ainda, como uma sub-profissão ligada ao desenvolvimento das necessidades sentidas pelas ciências sociais em reutilizar as práticas de ajuda social para sufragar as exigências decorrentes do progresso do mercado científico e das mudanças do modelo de gestão política dos problemas sociais” (2001:31).

No entendimento utilizado nesta investigação caracteriza-se o Serviço Social

como uma profissão pós-industrial que ocupa um lugar na divisão sócio-técnica

do trabalho com um mandato que intervém na «questão social» e que ganhou

relevância nas sociedades industrializadas, na sequência de fenómenos sociais

em massa e da assumpção pelo estado de respostas sociais, com

enquadramentos políticos e ideológicos precisos. Esta consideração

fundamenta-se na medida em que:

Se refere a uma prática que exige uma formação especializada e

específica de nível superior, que corresponde a um trabalho reconhecido

e que se distingue dos outros;

Se integra no movimento societário geral de criação de grupos

ocupacionais que têm um papel atribuído e reconhecido publicamente;

Lhe é imputado um sistema de valores aceite e com responsabilidade

moral, que corresponde às expectativas atribuídas e que é

genericamente olhado como competente e eficaz (Payne, 1997).

Page 125: As formigas e os carreiros

125

Enquanto profissão, a trajectória de vida do Serviço Social não pode ser

desligada das diferentes perspectivas que equacionam a sua existência sócio

histórica. Neste suposto, a questão da legitimidade formal da profissão passa

por uma análise sobre a institucionalização, desde as formas de

profissionalismo aos seus jogos político-simbólicos, centrados nas questões do

estatuto social e do mercado, mas também da análise do «uso social da

ciência» e, mais particularmente, do trabalho dos grupos profissionais que

garantem o uso social dos sistemas periciais de conhecimento (Giddens,

1992).

De facto, ao longo da história da profissão verifica-se a influência (mais do que

a capacidade de influenciar) de todas as alterações e mudanças societárias e

de correntes de pensamento, a nível económico, político e social. Ou, como

diria Yolanda Guerra (2001) numa perspectiva mais determinista, a profissão é

«o produto de um arranjo teórico-político-doutrinário».

Na sociedade industrial, a profissionalização tornou-se assim um processo

central pela especialização de funções e também pelo processo de

«assalariazação»; neste entendimento e a título de exemplo, Michel Autés

refere-se às profissões sociais assalariadas como «semi-profissões», com um

estatuto híbrido de não serem nem totalmente assalariadas, nem totalmente

autónomas. Este autor refere que a verdadeira essência do trabalho social

joga-se na dimensão simbólica e caracteriza o trabalho social como um

trabalho da norma e sobre a norma, em que:

«…o seu fazer, o seu gesto, o seu dizer» inscrevem-se nesse espaço onde as técnicas são apenas pretextos e onde o que está verdadeiramente em questão «são as margens do social e, por vezes, a fronteira do humano» (Autés, 2004:233).

Referindo-se à sua posição estatutária (e destacando que os assistentes

sociais são maioritariamente assalariados) Chopart defende que o Serviço

Social é uma «quase profissão», na medida em que não lhes é conferida a

autonomia à qual pode aspirar um verdadeiro grupo profissional, embora

reconheça que:

“…são actividades «nobres» fundamentadas numa ética da ajuda e da compaixão para com o outro; e elas podem reivindicar algumas das características que definem a autonomia dos grupos profissionais: o fechamento através de ‘numerus clausus’, a existência de um código deontológico comum, um certo domínio do aparelho de formação, etc. “ (Chopart, 2003:97).

Page 126: As formigas e os carreiros

126

Por um lado, o Serviço Social materializa-se em narrativas de compromisso

com os direitos humanos, com a justiça social e com a auto-determinação das

pessoas em situação de vulnerabilidade social mas, por outro, a sua

legitimidade continua a advir das instituições onde os profissionais exercem

para operacionalizar medidas, de assistência ou de políticas sociais, redistribuir

recursos e/ou exercer controlo social, ou realizar projectos de desenvolvimento

social ou educacional.

Nesta análise e, já que os conceitos nunca são neutros e ficam ligados à

ancoragem teórica que se faz, parece importante a mobilização dos conceitos

de «profissão» e «campo profissional» para situar historicamente a profissão

de assistente social e compreender as dinâmicas de recomposição do grupo

actualmente designado de «trabalhadores sociais» no qual se inscreve e no

qual se incluem diversas actividades profissionais, diferentes formações e

diferentes qualificações (Ion e Tricart, 1985).

O termo «profissão» começa por ser utilizado nos tempos da Revolução

Industrial, para contrapor à designação de «artesão». Até então, um

determinado trabalho era concebido e realizado por alguém que dominava todo

o processo, o que caracterizava o processo artesanal de produção. Com a

divisão social do trabalho, assiste-se a uma crescente fragmentação e

especialização do trabalho que multiplicou as profissões e as organizações.

Verifica-se que tanto na linguagem científica como na linguagem comum sobre

os grupos profissionais, o conceito de profissão opõe-se à ideia de

amadorismo. E nos processos de afirmação de uma ocupação por oposição

aos modos amadores de desenvolvimento da respectiva actividade, tiveram

influência, designadamente, as mudanças tecnológicas, organizacionais e as

novas técnicas, o aumento dos níveis de qualificação de muitas ocupações, as

mudanças na organização do trabalho das profissões estabelecidas e mais

antigas (como a integração progressiva em organizações) e o aumento de

ocupações que aspiravam ao estatuto de profissão.

No âmbito da Sociologia, a Sociologia das Profissões e a Sociologia das

Organizações, com histórias e enfoques diferentes, têm produzido ampla

evidência científica. Sem pretender fazer uma análise das diferentes teorias

Page 127: As formigas e os carreiros

127

destes campos, situava apenas estes ramos da Sociologia como herdeiros dos

estudos de Durkheim, Weber e Marx, tidos como seus precursores.

O «ramo» da Sociologia das Profissões surge com identidade própria nos anos

30, nos E.U.A. no âmbito das teorias funcionalistas, sendo T. Parsons e, mais

tarde, nos anos 50, Merton, os autores mais identificados. No princípio do

século XX, o corte no mundo do trabalho nos Estados Unidos entre as

«profissões» (médicos, advogados, …) e as «ocupações» era muito vincado e

as teorias funcionalistas, distinguindo profissão de ocupação, defendem o

conceito de profissão quando existe organização de uma comunidade

reconhecida, ocupando uma posição social e/ou organizacional elevada e com

uma formação longa.

Nessa mesma época, também nos E.U.A. emerge uma nova corrente, ligada à

Escola de Chicago, designada de sociologia interaccionista, com E. Hughes

entre os seus principais pensadores. Os defensores das teorias interaccionistas

colocam a socialização no centro da análise das realidades de trabalho e

distinguem-se por caracterizarem as profissões pela valorização das

interacções dinâmicas. Ao considerarem a biografia e a interacção como

elementos importantes, consideram também que as actividades de trabalho

são processos, ao mesmo tempo, de relações dinâmicas com os outros e

subjectivamente significativos.

Os estudos consultados, na perspectiva do interaccionismo simbólico, centram-

se nos processos de profissionalização, da emergência, da consolidação e do

desenvolvimento de cada grupo profissional. Nesta perspectiva são analisadas

as práticas profissionais dos membros desse grupo e as estratégias que

desenvolvem no sentido de construírem uma identidade colectiva, de obterem

o reconhecimento social das suas competências específicas, de conseguirem o

monopólio de um certo domínio do saber e do trabalho, e de terem acesso a

níveis elevados de estatuto social. Assim, os conceitos de profissionalismo e

profissionalização encontram-se em estreita relação e particularmente

articulados com o conceito de profissão defendido pelo interaccionismo

simbólico:

o profissionalismo apela para os processos e estratégias de defesa e

promoção de um grupo profissional (melhoria de capacidades e

Page 128: As formigas e os carreiros

128

racionalização de saberes; estratégias de reivindicação para ascensão na

hierarquia das actividades; adesão às normas do grupo);

a profissionalização diz respeito ao processo a empreender para ascender

ao estatuto de profissão (Araújo, 1985).

No fim dos anos 60 e na década de 70, as teorias funcionalistas e

interaccionistas cedem lugar às teorias «neo» marxistas e «neo» weberianas.

Estas correntes integram os processos subjacentes ao movimento capitalista -

nomeadamente a passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo

monopolista que traz como consequências, entre outras, a concentração do

capital, a burocratização das empresas e o aumento de trabalho qualificado

face à evolução tecnológica e à especialização das funções de gestão.

Estes processos incluem aspectos relativos ao saber, com a institucionalização

do saber formal, e ao poder, através de formas de controlo do/no trabalho.

Apesar de existirem especificidades tipológicas na caracterização do conceito

de profissão, pode identificar-se, segundo Dubar (1997a), como pontos comuns

a existência: i) de princípios éticos e deontológicos para a regulação da

actividade profissional; ii) de saber científico, como garantia da competência e

da especialização de um grupo profissional.

Estes princípios e estes saberes serviriam, em simultâneo, para proteger o

campo, fazendo de barreira à entrada indiscriminada de indivíduos para a

profissão. Nesta abordagem sociológica são utilizados três elementos

fundamentais: a exclusividade profissional, a utilização do conhecimento

abstracto e a autonomia face aos clientes e face ao Estado.

No sentido de construir e fazer reconhecer uma profissão, podem identificar-se

duas vias históricas de relação entre poder e saber, quer através da iniciativa

do Estado que cria os “títulos escolares” e regula o acesso a estatutos sociais

de grupos profissionais em situação de monopólio; quer através da acção

colectiva de elites sociais, que fazem reconhecer uma disciplina dotando-a de

dispositivos cognitivos e práticos e obtendo dos poderes políticos o monopólio

de um mercado para a profissão (Dubar, 1997a)

Para que uma ocupação possa chegar ao estatuto de profissão, existem várias

dimensões a ter em conta designadamente:

Page 129: As formigas e os carreiros

129

“…a sua história, o seu conhecimento teórico e prático transmitido longitudinalmente, a formação de base e especializada ao longo da vida, a sua legitimidade em termos da regulamentação da actividade e aceitação pela sociedade” (Carvalho: 2003: 39).

Claramente, na história da profissão de Serviço Social, se percebe que estas

vias não se excluem mutuamente, quanto muito desencontram-se no tempo.

No caso, e dada a particularidade da situação portuguesa é difícil dizer onde

acaba a acção das elites e começa a do Estado.

Se do ponto de vista histórico, se pode referir que a construção e o

reconhecimento da profissão de Assistente Social processou-se numa primeira

fase pela pressão das elites e só mais tarde o Estado regulou a titulação,

também se verifica (aliás, o que não é um exclusivo do Serviço Social) a

grande importância do Estado como actor preponderante no seu processo de

nascimento e desenvolvimento, designadamente nos aspectos ligados à sua

emergência, reconhecimento, legalidade, mercado de trabalho, poder, prestígio

e às orientações políticas que a podem favorecer ou desqualificar (Negreiros,

1993: 9 – 11).

Por sua vez o conceito de «campo profissional» ainda parece mais difícil de

definir, conforme justifica Chopart (2003) numa publicação que nos dá conta de

um programa de investigação centrado em «Observar os empregos e as

qualificações das profissões de intervenção social». Partindo da constatação

de que neste campo profissional «mais ninguém sabe quem é e quem faz o

quê», o autor identifica alguns factores que contribuíram para esta situação

como:

“…a multiplicação de parceiros de intervenção, as estratégias diferenciadas dos empregadores, as evoluções das práticas e das modalidades da acção social e a rápida obsolescência das categorias tradicionalmente utilizadas para descrever o campo profissional…» (Chopart, 2003:15).

No estudo citado são identificadas duas teses distintas para abordar o «campo

profissional»:

A «tese do núcleo duro e da periferia» em que é defendida uma visão

próxima dos modelos profissionais anglo-saxónicos e onde sobressai a

hipótese de um «mercado interno» regido por lógicas de fechamento (com

um núcleo duro onde os empregos sociais são ocupados na sua maioria por

assistentes sociais diplomados ou reconhecidos pelas autoridades da

Page 130: As formigas e os carreiros

130

tutela) sendo a mudança, com o surgimento de novas especialidades,

entendida como periférica e situada nas margens;

A tese de que «é o conjunto do campo profissional que está em mutação»

em que se coloca a hipótese de que:

“…as categorias utilizadas para descrever este campo profissional (os sectores de intervenção, a denominação dos cargos, a suposta adequação entre os títulos possuídos e as actividades de trabalho) são, talvez dentro de uma certa medida, obsoletas, convindo, portanto, desconfiar de um possível artifício” (Chopart, 2003:16).

Situados os pólos deste debate, esta equipa de investigação adoptou uma

definição muito vasta que me esclarece pouco: o campo profissional é

constituído por “um conjunto de lugares onde exercem funções «trabalhadores

sociais». Em bom rigor, as definições do objecto e do método, respectivamente

como:

“…todas as actividades remuneradas por financiamentos com fins sociais, exercendo-se num quadro organizado, seja público seja privado, e visando pessoas ou públicos com dificuldades de integração social ou profissional numa perspectiva de ajuda, de assistência ou de controlo, de mediação ou de acções de animação ou de coordenação” e o método como “ estritamente indutivo, partindo da recolha de observações empíricas relativas às práticas e aos pontos de vista dos actores” (Chopart, 2003:17)

também não parecem avançar muito para além de uma tentativa de

explicitação. No entanto, esta investigação propõe uma interessante tipologia

de práticas de intervenção social, por referência aos conteúdos da actividade e

desligada das denominações profissionais (Chopart, 2003:41- 49). A saber:

Os trabalhos de «presença social» (trabalhos de acolhimento e trabalhos de

rua);

Os trabalhos de organização social (os quadros gestores de serviços, os

quadros intermédios que combinam a lógica de direcção e a lógica de

intervenção e os coordenadores de programas);

Os trabalhos de intervenção directa (o modelo de intermediação, o modelo

do acompanhamento de base processual, o modelo de acompanhamento

socializante).

Qualquer destas práticas pode, ou não, ser exercida por Assistentes Sociais

sendo que na década em análise (1986-1996) de entre as profissões

consideradas (Assistente Social, Educador Social, Monitor-educador, Educador

de crianças pequenas e Auxiliar Médico-psicológico), apesar de ser a profissão

Page 131: As formigas e os carreiros

131

com maior número de elementos, foi aquela que revelou menor taxa de

crescimento (Chopart, 2003:30).

Se os anos de crescimento económico permitiram às profissões sociais

(nomeadamente aos assistentes sociais) adquirir a sua legitimidade, estender o

seu campo de intervenção e ver o seu número de efectivos crescer

consideravelmente, a partir dos anos 80 nos países da Europa dita

desenvolvida e dos anos 90 em Portugal, assiste-se a uma fase de

estabilização.

Esta tendência que entrará em curva decrescente, associa-se ao crescimento

do número e diversidade de diplomados com formação e apetência para

trabalhar no campo profissional e vai conjugar-se com as restrições

orçamentais que começam a favorecer a opção por contratar pessoal menos

qualificado. Ao conjunto destes factores externos soma-se um movimento de

especialização das profissões sociais, em que aparecem novas funções e se

transformam as próprias profissões instaladas do Trabalho Social, permitindo o

desenvolvimento de outros empregos mais especializados (como por exemplo,

coordenadores de projecto, agente de desenvolvimento, etc.).

Temos assim um quadro em que a regulação dos sistemas de emprego não

parece privilegiar as certificações profissionais,

“…mas antes uma combinação variável de um conjunto de factores: o peso das profissões qualificadas combinado com a abertura do mercado de trabalho à retórica das competências, ao reforço de todos os níveis das exigências de qualificação geral, ao desenvolvimento predominante de profissões com mais fraca qualificação nas situações mais em contacto com o público, à transformação das organizações segundo lógicas gestionárias e, finalmente, segundo a importância dos contextos locais na construção de sistemas de emprego complexos, flexíveis e abertos” (Chopart, 2003: 59,60).

O mercado aberto das competências, neste ponto de vista, remete para um

modelo de profissionalidade gestionária que utiliza as noções de projecto, rede,

território, flexibilidade e avaliação (Demailly, 1998), reinscrevendo as profissões

sociais na Sociologia das Organizações e fazendo-as sair das figuras norte-

americanas da Sociologia das Profissões.

Os modelos de formação contínua de Lise Demailly são tomados como

modelos teóricos de análise das formas de socialização responsável pela

produção da identidade desejada pelas instituições formadoras.

Page 132: As formigas e os carreiros

132

Nóvoa a propósito da formação da profissão docente, observa que a forma

«interactiva-reflexiva» é a melhor forma de conceber uma “formação contínua

que contribua para a mudança educacional e para a redefinição da profissão”

(2002:55). Embora refira que as formações por competências ou os modelos

escolares ou universitários sejam mais eficientes a curto prazo, também

destaca que estes modelos tendem a reproduzir as realidades educacionais

existentes, dificultando o trabalho de invenção (e de produção) de «novos»

profissionais.

Estas mudanças de concepção não são homogéneas, totalitárias nem

consensuais, permanecendo uma auto-representação do Serviço Social como

«profissão» especialmente dotada para algum do trabalho social e continuando

as suas estruturas colectivas (nomeadamente a Associação de Profissionais) a

reivindicar uma protecção de campo e vias de acesso restritas aos seus

diplomados. A reinterpretação destes conceitos e perspectivas fora das lógicas

lineares e sequenciais, ganha proximidade com a análise das práticas

profissionais reais (e não das prescritas) e com as estratégias desenvolvidas

pelos profissionais nas diferentes interacções onde são actores, em posição

claramente divergente com perspectivas como a de Carvalho:

“A profissionalização tende para um sentido sequencial de eventos ou etapas seguidas pelos grupos ocupacionais até ao estádio do profissionalismo, como seja, a passagem da actividade amadora à ocupação a tempo inteiro; a criação de associação profissional; a protecção legal e a definição de um código de ética” (Carvalho: 2003:33 - 34).

A análise e produção de conhecimento sobre os processos de

profissionalização apesar da sua quantidade, diversidade e qualidade, estão

longe de se esgotar, subsistindo as possibilidades de novos entendimentos das

actividades de trabalho. Dubar (2006) neste âmbito, lembra ainda que:

Não existe profissão separada, do sistema profissional ao qual pertence;

Não existe profissão unificada, mas segmentos profissionais variavelmente

identificáveis, organizados ou concorrenciais;

Não existe profissão estabelecida, mas processos de reestruturação e

desestruturação profissionais;

Não existe profissão objectiva, mas relações dinâmicas entre instituições de

formação, de gestão, de trabalho e trajectórias biográficas no âmago das

quais se constroem identidades profissionais.

Page 133: As formigas e os carreiros

133

Na literatura de Serviço Social existe um discurso recorrente sobre a identidade

profissional, sobre a especificidade (ou a falta dela) e/ou sobre as

interrogações sobre o seu futuro que por serem tão constantes, arriscaria a

dizer que já fazem parte integrante da definição da profissão. Veja-se a este

propósito a posição de Lecomte (citado por Amaro, 2009:230) que refere ser o

“permanente debate que existe no Serviço Social a propósito dos seus

fundamentos, missão, limites e especificidades que conferem dinamismo e

força à profissão”.

O Serviço Social possui como já referi, uma história e uma formação

específica, que se veio a qualificar, nomeadamente com a sua graduação

académica. Coloco a hipótese de que este reconhecimento recente de grau

académico esteja ligado a uma certa necessidade de afirmação e conquista de

paridade científica e profissional, agravada na actualidade por uma enorme

disputa de «terreno» entre trabalhadores sociais, de diferentes formações.

Das condições mais problemáticas para o reconhecimento da profissão são a

questão dos seus saberes específicos e da legitimidade do Serviço Social que

continuam longe de consensos, dentro e fora do corpo profissional. Neste

âmbito, é fundamental a detenção de um corpus teórico-conceptual próprio,

reconhecido na comunidade científica e mobilizado pelo campo profissional.

As divergências sobre este último aspecto têm admitido vários cenários que

podem ir desde a «prática profissionalizada» à «quase-profissão» ou à

«profissão», conforme se entenda a existência, ou não existência, de um

‘conjunto articulado de saberes próprios’ e de uma certa autonomia, mas

também conforme o quadro teórico de análise e o entendimento do seu

objecto.

No terreno, a segurança sobre «o que e como se faz» e sobre «o que se sabe»

parecem estar aliadas com a insegurança sobre a validade desse «saber» por

relação aos referentes académicos. O significado e o estatuto «do que se

sabe» continuam a colidir com tensões internas e externas aos próprios

profissionais, num tempo em que os Assistentes Sociais quando encontram

trabalho estão (permanecem) sobre o imperativo de resolver problemas e não

de os colocar. Por outro lado, a diversidade de interpretações disponíveis sobre

Page 134: As formigas e os carreiros

134

os «problemas sociais» e as maneiras de os resolver/minorar e o poder

determinante das instituições sociais sobre as práticas profissionais dos

assistentes sociais, são factores a ter em conta no auto e no

heteroreconhecimento profissional:

“…a abundância de interpretações e de definições dos problemas sociais responde às incertezas ligadas à posição social ocupada e aos objectos da prática: as margens, o sofrimento, o sem nome e o sem lugar, o «problema social», que inquieta a racionalidade do conjunto societal” (Autés, 2004:234).

Por outro lado ainda, os tradicionais empregadores de Assistentes Sociais – o

sector público, as empresas e as instituições privadas sem fins lucrativos –

ampliam os vínculos de trabalho precários, flexibilizando os contratos e

introduzindo os contratos por tempo parcial. Estimula-se assim sobretudo as

actividades de gestão, administração e racionalização dos serviços,

transformando o Assistente Social num trabalhador temporário ou ‘micro

empresário de si’, prestador de consultadoria ou assessoria.

Segundo Faleiros, o contexto de intervenção que o Assistente Social encontra

hoje é o de “prestação individual de serviços e de articulação colectiva dos

sujeitos, de desenvolvimento do terceiro sector e do sector privado” (1996:15).

Esta situação tem consequências na rotatividade dos profissionais, na sua

instabilidade e perda de rendimento, mas também na desqualificação

profissional e numa maior fragmentação – o que reforça a fragilidade teórica e

analítica da profissão. Sendo uma profissão muito permeável, ou camaleónica

como gosto de lhe chamar, os desempenhos profissionais têm sofrido

profundas mudanças, na tentativa de gerar valor (e reproduzir valores) para

cada circunstância e tempo histórico.

Nas últimas décadas no mundo do trabalho, as transformações ocorridas têm

produzido modificações significativas para o Serviço Social, reordenando o

mercado formal de trabalho dos assistentes sociais, quer no âmbito das suas

condições objectivas e subjectivas de trabalho, quer nos seus espaços sócio-

ocupacionais. Destacam-se:

a metamorfose do Estado (historicamente o grande empregador de

Assistentes Sociais), com a consequente alteração de papel das políticas

sociais e o reordenamento e redimensionamento das suas funções;

Page 135: As formigas e os carreiros

135

a “refilantropização” da questão social, onde se esbatem os direitos sociais e

as necessidades das classes mais pobres são remetidas para o mercado e/ou

tornadas objecto de responsabilidade individual, submetidas à benevolência e à

solidariedade;

a transferência de serviços estatais para a sociedade civil, através de

sectores comunitários e organizações não governamentais.

Na tese de Inês Amaro (2009:213) podem verificar-se testemunhos de

profissionais do género: «os assistentes sociais são engolidos pelo dia-a-dia»;

«as instituições trituram-nos», «ficam colados à instituição», etc., o que faz

reflectir sobre os papéis institucionais que lhes são atribuídos na organização

do trabalho e que eles/elas aceitam desempenhar numa classe profissional que

se reconhece como muito individualista e com pouca visibilidade social.

No senso comum e, para grande parte das pessoas, à designação «Assistente

Social» são feitas associações com o apoio à população pobre e

«problemática», distribuição de recursos, atendimento individual de casos e/ou

retirada de crianças (em situação considerada de risco ou de perigo) às

famílias, entre outros componentes do estereótipo. Eu própria, ao longo do meu

percurso profissional e de vida tenho sentido a necessidade de explicitar «o

que faz» um/a Assistente Social, começando na maioria das vezes por tornar

claro «o que não faz» e o que se pretende com um trabalho desta natureza.

Partindo do princípio que, face ao desconhecido ou ao menos conhecido,

temos tendência a utilizar pré-conceitos, recorrer a estereótipos e

representações sociais para enquadrar as «realidades», faz-me sentido uma

constância de explicitação, pela sua função pedagógica e reflexiva, mas

também para multiplicar as narrativas socialmente disponíveis sobre este

trabalho complexo:

O serviço social como herdeiro de uma dupla genealogia entre a acção

tutelar do Estado sobre os indivíduos e o trabalho emancipatório no seio da

sociedade;

O serviço social constituído por diferentes lógicas (de gestão, de controlo,

de projecto, de participação, de investigação…);

O serviço social que se situa nos tais espaços «entre»; por exemplo, entre

práticas multisseculares de assistência e as capacidades da sociedade se

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136

produzir a si própria, através de processos de mudança endógena,

ecológica e participativa.

Nesta perspectiva este questionamento constitui uma oportunidade para o

Serviço Social reavaliar e debater algumas das suas narrativas internas,

reconhecendo que ao mesmo tempo que tem problemas de ancoragem

epistemológica e de delimitação de campo, também tem uma enorme

plasticidade e capacidade de renovação. E sobretudo que, no Serviço Social

como em outras profissões, este debate está em aberto e poderá ser gerador

de evolução positiva.

O QUE SIGNIFICA «SER» PROFISSIONAL?

Neste tempo de mutações nas organizações e na natureza do trabalho, as

identidades ocupacionais parecem ter menor expressão. A identificação pelo

trabalho (no sentido das pessoas se definirem por aquilo que fazem) está para

muitas pessoas, cada vez mais distante, em circunstâncias de grande

heterogeneidade de desempenhos e de trabalho muito volátil marcado pelo

conceito de «performance», mais do que pelo «conhecimento».

Admite-se que as estratégias de classe ligadas a essas identidades

ocupacionais também estejam em mudança, pelo menos com sinais evidentes

nas profissões sociais. As novas classes médias, sentindo o seu estilo de vida

presente e futuro ameaçado pela fragmentação do trabalho e pela

reestruturação das profissões, procuraram tomar a supremacia na ascensão do

desempenho como uma cultura de aprendizagem, sublinhando em simultâneo

o abaixamento dos padrões académicos (Stoer e Magalhães, 2005:86).

Ao ler o livro de Maria Lúcia Martinelli sobre «Serviço Social – Identidade e

alienação» (2006) deparei-me com uma citação de Hegel constante num dos

seus trabalhos da juventude: «Pensar a vida, eis a tarefa». Convergindo com

esta autora sobre o eco que esta frase me provoca, intui que o que

verdadeiramente me mobiliza na análise das múltiplas entradas que poderiam

constituir objecto da presente tese é a tentativa de pensar de forma inteira a

profissão e a vida. O que não aconteceu na maioria do meu percurso de vida,

Page 137: As formigas e os carreiros

137

marcado por muitas dúvidas e interrogações sobre o papel que ocupou (e

ocupa) o trabalho na vida e me remete para a complexidade dos processos de

construção identitária.

Os pensamentos marcantes do nosso século, estão de acordo na crença em

que o trabalho não alienado, pode tornar-se o lugar da plena realização de si,

ao mesmo tempo que da utilidade social (Méda, 1999: 28-30).

Destas correntes de pensamento destaco:

1) o pensamento judaico-cristão que inscreve o trabalho na relação

fundamental com o outro e na ideia de utilidade social;

2) o pensamento humanista e sociológico, que concebe o trabalho como o

verdadeiro lugar da socialização real e da formação da identidade individual e

colectiva;

3) e o pensamento marxista, que defende que o verdadeiro trabalho é

fundamentalmente social uma vez que une, num esforço aceite por todos o

conjunto de produtores, que realizam juntos a produção necessária não só à

satisfação das necessidades humanas, mas também à realização dos desejos,

individuais e colectivos, numa resposta colectiva a necessidades colectivas.

Pensar a profissão em conjunto com a vida significa na terminologia de

Christine Josso (1991) «um caminhar para si» que se impõe para atingir a

pretendida «inteireza». O que pretende dizer que na identidade plural, múltipla

e diversificada com que me identifico, é possível abordar a(s) identidade(s)

profissional(ais). Problematizar o trabalho, a profissão, os futuros das

identidades profissionais é, de certa forma, admitir que na «sociedade do risco»

e de «incerteza» as noções de trabalho e de profissão estão em mudança e

enfrentam novas problematizações.

Neste âmbito, existe um eixo de debate profícuo entre os autores que

preconizam o fim do trabalho e os que continuam a defender a sua

centralidade. Dos primeiros, destaco Dominique Méda (1995) que mostra que

nas diferentes sociedades, em função das exigências económicas, das

condições técnicas e do sistema de valores, o trabalho toma formas e sentidos

diferentes e anuncia o fim do valor do trabalho, defendendo que se poderia

deixar de ter em conta a dupla dimensão, constitutiva das sociedades

Page 138: As formigas e os carreiros

138

modernas, da cidadania e do produtivismo; dos segundos, mobilizo Dominique

Schnapper (1998) que defende «sociedades cívicas», baseadas na criatividade

da economia, no estabelecimento de uma justiça social relativa e numa ordem

política legítima. Nesta abordagem a autora relaciona a desacreditação do mito

do pleno emprego com o enfraquecimento do elo social, e preconiza, num

quadro de contínua organização do trabalho, novas formas de actividade e

utilidade social, mantendo a relação entre trabalho e estatuto social, embora

seja um trabalho que já não é necessariamente sinónimo de emprego.

Neste sentido, acredita-se que a perspectiva de Dubar se encontra questionada

quando refere que:

“O Trabalho está no centro do processo de construção, destruição e reconstrução das formas identitárias, porque é no e pelo trabalho que os indivíduos, nas sociedades salariais, adquirem o reconhecimento financeiro e simbólico da sua actividade. É também apropriando-se do seu trabalho, conferindo-lhe um ‘sentido’, isto é, dando-lhe, ao mesmo tempo, uma significação subjectiva e uma direcção objectiva, que os indivíduos acedem à autonomia e à cidadania” (Dubar, 2003:51).

Com todas as mudanças ocorridas na divisão social do trabalho, nas condições

de trabalho e na própria existência, ou não existência, de empregos e de

trabalho disponível, tornou-se ainda mais complexo pensar o trabalho e a sua

organização, na medida em que a organização (agora eleita como nível de

análise privilegiado) não responde à questão central de saber se o sentido

social a atribuir ao trabalho se deve construir em torno da sua face visível, ou

se, pelo contrário, é o trabalho oculto que estrutura o sentido do trabalho visível

(Correia, 2003).

As Ciências do Trabalho, que tinham adoptado nos seus primórdios uma

atitude crítica relativamente ao Taylorismo realçando, nomeadamente, a

importância da interacção informal nas organizações e apelando para uma

organização de trabalho mais humanizada, viram dificultada a sua análise do

trabalho, numa situação de ruptura com as racionalidades accionadas nas

organizações. E acentuou-se ainda mais a distância entre o trabalho prescrito e

o trabalho real.

As identidades profissionais, por seu lado, constituem-se como zonas de

confluência entre trabalho e formação e para delimitar as formas identitárias

tem de se detectar a relação entre os diversos sentidos do trabalho e as

Page 139: As formigas e os carreiros

139

concepções de formação. Não se trata apenas de identidades no trabalho mas

de formas de identidades profissionais no seio das quais a formação é tão

importante como o trabalho e os saberes incorporados são tão estruturantes

como as posições do actor (Dubar, 1991). Quando se tenta articular as

diferentes formulações sobre a construção de identidades com o trabalho, será

necessário abranger diferentes dimensões macro sociais e ter em conta

também as vivências compartilhadas entre os trabalhadores; nessa esfera da

intersubjectividade produzida pelo trabalho, vivências e aprendizagens

incorporam-se à dimensão identitária dos sujeitos em interacção.

Deste ponto de vista, a socialização profissional nos contextos de trabalho é

central e o seu produto são as identidades profissionais individuais e colectivas,

onde a realização profissional e a criatividade social se constroem

mutuamente.

A questão das socializações e da(s) identidade(s) remete-nos por sua vez para

o conceito de profissionalização (Rodrigues, 1997:22) “é devedor mais da

perspectiva interaccionista do que da perspectiva funcionalista” ) e para as

dinâmicas das profissões.

Na perspectiva interaccionista e relacional, são as experiências que criam a

identidade pessoal e as experiências são necessariamente sociais, na medida

em que acontecem na interacção dos nossos papéis sociais com os dos outros

(Goffman, 2003) – pelo que, nesta lógica, a identidade só pode ser múltipla,

flutuante e situacional.

Para quem está comprometida e implicada, como eu estou, no quotidiano,

muitas vezes apresenta-se difícil mobilizar as concepções disponíveis e reflectir

sobre algo que, arriscaria a dizer, não faz parte da agenda destes profissionais.

Se nas narrativas quotidianas dos assistentes sociais e, de muitos outros

profissionais comprometidos com a prática, o conceito de identidade(s) é

relativamente periférico, foi curiosamente, ao trabalhar com populações pobres

que vivem em territórios social e economicamente estigmatizados que pude

constatar e aprender o quanto este conceito é importante, apesar de não ser,

na maioria das vezes, nomeado como tal.

Mas esta tomada de consciência não me isentou de dificuldades de orientação

na complexidade conceptual da temática. Primeiro, dei conta de uma grande

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140

heterogeneidade, quer do ponto de vista disciplinar, quer metodológico e

teórico (não esquecendo a diversidade terminológica). Segundo, tive

necessidade de me situar num conceito de identidade em que me revisse, pelo

que optei por entende-la como um processo dinâmico, simultaneamente

biográfico e relacional (Dubar, 1997a) que recolhe diferentes usos sociais, tanto

psicológicos como sociológicos.

Esta concepção de identidade (s) distancia-se de oposições simplistas e

normalizadoras que demarcaram identidades fixas no passado e que serviram

para definir qual seria a identidade «válida», «normal», a partir da qual as

outras seriam «diferentes».

No caso dos assistentes sociais, porquê a necessidade (e a dificuldade) de

produzir conhecimento sobre os significados de «ser profissional»?

Situando-me na duplicidade estrutural do trabalho social, e embora sem a

pretensão de ser exaustiva, salientarei algumas ordens de razões:

Frágil debate interno sobre o significado atribuído a ‘ser profissional’;

Relação ainda pouco articulada entre os saberes teóricos e os

conhecimentos da prática;

Persistência de representações «clássicas» da profissão.

Em relação às primeiras, i.e., à insuficienêcia de debate interno sobre o

significado de ‘ser profissional’ diria que existem alguns factores que

contribuem para que estes profissionais ajam, e se sintam, com uma escassa

(quando não inexistente) margem de autonomia: a «centralidade do fazer», a

herança de representações assistêncialistas ou os profissionais vistos como

«técnicos neutros e executores», a progressiva precarização das relações de

trabalho, a efectiva concorrência com outros profissionais sociais, a falta de

profissionais com visibilidade positiva e consensual dentro da profissão que

sirvam de referências, as mudanças nas socializações profissionais e o actual

e dominante modelo da prática ‘evidence-based’, etc.

A esse propósito Sarah Banks, uma autora do Serviço Social, identifica como

perigosas as actuais mudanças dos exercícios profissionais, nomeadamente a

excessiva fragmentação e o trabalho em equipas pluridisciplinares. Sobre a

primeira, refere que:

“Um dos perigos da fragmentação é que as tarefas que os trabalhadores sociais desempenham se tornem tão diversificadas e especializadas que já

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141

não são reconhecíveis como «trabalho social». Sobre o segundo, refere “Os perigos do trabalho multidisciplinar prendem-se com o facto de que as fronteiras entre os papéis e especialidades das profissões diferentes se esbatem não sendo possível definir um conjunto de valores distinto para o Serviço Social” (Banks, 2002:120).

Em boa verdade, não me é fácil identificar valores de referência exclusiva dos

assistentes sociais, sobretudo porque a minha socialização profissional e a

experiência que possuo enquanto interventora social, é a de trabalho em

equipas ‘multi’ e, cada vez mais, transdisciplinares onde partilho valores de

referência com muitos colegas de outras formações; e a expectativa de defesa

de novas fronteiras para um exercício profissional no campo social parece

irrealista em sociedades onde o trabalho técnico-intelectual se apresenta com

grande porosidade em relação às áreas de formação inicial.

Por outro lado, a argumentação que alerta para os «perigos do trabalho

multidisciplinar» acentua o fundamento proteccionista e esquece a tendência

contemporânea para que as organizações desenvolvam regras e

procedimentos para o trabalho, que limitam a autonomia e que substituem

valores profissionais por regras determinadas pelo Estado e pela Organização,

quer para os assistentes sociais, quer para os outros profissionais.

Sabe-se que o campo profissional onde se situa o Serviço Social começou por

ser muito diversificado e pouco especializado e, após um percurso de

tentativas de especialização e diferenciação, assiste-se hoje novamente á

partilha do campo profissional por uma pluralidade de profissionais com

diferentes formações. É assim, que os assistentes sociais tendem a ficar no

centro do debate que, sendo apenas aparentemente corporativo, em muito

ultrapassa de facto estas fronteiras para se situar ao nível das próprias

perspectivas sobre os fundamentos, finalidades e avaliação do trabalho social

no seu todo.

Este debate, apesar dos evidentes contornos ideológicos, abrange também

realidades que têm a ver, por exemplo, com a assunção do exercício de

funções sociais por parte de um vasto conjunto de profissionais, assim como

com a redefinição dos perfis de formação, a reorganização dos serviços e,

aspecto decisivo, com a própria dinâmica das questões sociais em

comunidades que, cada vez mais, recusam as doutrinas assistencialistas em

prol das lógicas de contrato e de autonomização.

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142

Definindo profissional como “um prático que adquiriu, através de longos

estudos, o status e a capacidade para realizar com autonomia e

responsabilidade actos intelectuais não-rotineiros na busca de objectivos

inseridos em situações complexas” (Paquay at al, 2001:11), pode entender-se

quer as dificuldades individuais e colectivas desse exercício com autonomia

(ainda que relativa) em relações de trabalho por conta de outrem, quer a

dificuldade que muitas organizações empregadoras têm na aceitação dos

elementos que caracterizariam um profissional, como o domínio de

conhecimentos diversos, esquemas de percepção, de análise, de decisão, de

planeamento, de avaliação e outros, e as posturas e valores necessárias ao

respectivo ofício.

A questão da «desprofissionalização» não se coloca exclusivamente ou

prioritariamente aos assistentes sociais, embora assuma características

particulares nesta categoria profissional. Na recolha empírica e no contacto

com muitos profissionais, sobretudo os mais jovens, sobressaem relatos de

falta de autonomia profissional e de condicionamento a uma execução acrítica

e procedimental num campo profissional com profundas mutações onde se

assiste à «… simplificação das práticas frente à complexificação das

realidades” (Amaro: 2009:40). Por outro lado, não foram constatadas

evidências de que este debate esteja na agenda, quer dos profissionais, quer

das estruturas representativas da profissão.

A abertura do campo profissional a lógicas mercantis e à perspectiva das

competências (que, entre outros aspectos, relativiza o lugar do diploma

profissional de origem), pode fazer temer uma desqualificação do trabalho

segundo modos de organização que passam de um modelo de tipo «artesanal-

liberal», caracterizado pelo domínio global de cada acto por um profissional

autónomo, a um modelo de tipo mais «industrial», caracterizado por uma maior

divisão do trabalho e segmentação das tarefas que fundamentam esta situação

de «desprofissionalização» no seio dos trabalhadores sociais.

Reconhecendo as pesadas controvérsias presentes no debate sobre a

evolução das profissões sociais, este autor avança com uma tipologia que

cruza uma «organização hierárquica por níveis» (e não por profissões) com

funções ligadas a uma divisão do trabalho taylorista, com «níveis de

intervenção» e «campos de intervenção».

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143

Os três níveis, respectivamente, «profissões de concepção, profissões técnicas

e profissões de execução», cruzariam então com quatro campos de

intervenção «o campo da animação territorial», «o campo da inserção e da

construção de percursos», «o campo do acompanhamento social de acesso

aos direitos» e o «campo do tutorado doméstico».

Esta perspectiva fundamenta a «dessectorialização» do campo, fazendo

convergir dimensões diferentes como se não tivessem colisões de interesses e

tensões entre elas: a reconfiguração das profissões de intervenção social, o

interesse dos profissionais e a garantia da qualidade dos serviços.

Por outro lado, a noção de autonomia profissional organiza-se em torno de uma

associação de senso comum que estabelece uma equivalência entre o uso

profissional do conhecimento abstracto e a técnica. Esta equivalência parece

revelar, por um lado, uma certa eficácia social que começa na identificação

social dos actores sociais com uma cultura profissional particular, mas por

outro, remete para inúmeras críticas ao designado profissionalismo

funcionalista.

Bourdieu referindo-se ao conceito de «autonomia relativa do campo científico»

alerta para o perigo de fechamento corporativista e realça que se trata de uma

forma de capital simbólico cuja utilidade social é revelada quando contribui

criticamente para “dissolver falsos problemas e problemas mal definidos”

(Bourdieu, 1977:71).

Nestes problemas mal definidos incluímos uma suposta neutralidade que tem

prejudicado os Assistentes Sociais enquanto actores sociais e enquanto sujeito

colectivo. No entanto, coloca-se aqui como hipótese a importância de revitalizar

o debate interno sobre «ser profissional» e as suas implicações na actualidade

para fazer emergir a diversidade que se acredita estar subjacente na profissão.

Em relação às segundas ordens de razões, i.e., à relação ainda pouco

articulada entre saberes de diferentes proveniências, os assistentes sociais

tendem a oscilar, entre uma representação pouco afirmativa dos seus saberes

profissionais - «a profissão é uma prática; é o que os profissionais fazem» mas

é como se fosse indizível a verdadeira especificidade do «que» fazem e do

«como» fazem - e uma representação muito afirmativa e proteccionista do

modo e do território de intervenção, mas que, muitas vezes, não ultrapassa as

Page 144: As formigas e os carreiros

144

narrativas tecnicistas e ideológicas. Esta última representação é

particularmente evidente em contextos marcados por pouca diversidade

profissional.

A fluidez do objecto de Serviço Social e o seu posicionamento como mediador

entre diferentes domínios profissionais e organizacionais, também facilita «um

sentimento de inespecificidade epistemológica que acabaria por redundar

numa posição de subalternidade deste campo» (Amaro, 2009:30).

No caso da «acção técnica» dos Assistentes Sociais atrevo-me a dizer que

existem sinais (de herança histórica mas ainda actuais) da referida

«neutralidade axiológica» e uma tensão constante entre um pólo confundido

com o uso instrumental do conhecimento ou com o uso operativo das

tecnologias de intervenção e outro pólo, que tenta preservar a autonomia

profissional, quer face aos ‘clientes’ (organizacionais e individuais), quer no

trabalho de intermediação e negociação com outros profissionais e decisores.

Aproveitando uma hipótese em aberto para estes «profissionais-técnicos»

admite-se a possibilidade de exercer com uma maior autonomia na acção a

partir do conhecimento reflexivo sobre regras e recursos e o exercício de uma

acção que estimule uma «dupla hermenêutica» mais esclarecida por parte do

cidadão comum, porque menos praticista e menos comprometida com o uso

rotineiro e reprodutivo das regras e recursos (Caria at al, 2005: 40).

O conceito de «dupla hermenêutica» associa o saber da experiência com o

conhecimento produzido e formalizado na investigação científica e tecnológica.

Este conceito tem um potencial de capacitação dos actores sociais e resulta,

em grande parte, do facto de ser assumido que os actores têm sempre algum

saber, ainda que tácito e implícito (consciência prática), sobre o funcionamento

regular e institucional do social, fruto da reflexividade social difusa na

sociedade, e desenvolve um potencial de mudança social como variável

relevante (Guiddens, 1996).

Numa profissão que tem culturas profissionais diversas e uma relação

problemática com o funcionamento dos sistemas de conhecimento abstracto,

importa fomentar o debate sobre a legitimidade e autonomia profissionais a

partir da análise da actividade que os profissionais desenvolvem.

A este propósito evidencio o modelo de análise em rede de Bruno Latour que

se centra em dois aspectos determinantes da natureza do trabalho profissional-

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145

técnico e estabelece uma configuração de ligações em rede a partir daí. Esses

aspectos são: i) os actos de fazer e usar a ciência (e não nos seus produtos

pré-construídos) e ii) o hibridismo dos processos e mediações nas actividades

que inscrevem a ciência e que dela dependem (e não na sua pureza). E a

configuração de ligações entre as várias componentes que cria um sistema de

inter-dependências, do qual dependem a direcção e os resultados do trabalho

profissional-técnico nomeadamente: a autonomia profissional e organizacional,

a mobilização, instrumentação e armazenamento de informação e dos

recursos, a aliança e a divulgação social dos produtos científicos e da sua

utilidade e validade social (Latour, 2001: 22-31).

A proposta de Schon (1983) através do paradigma do profissional reflexivo,

capaz de articular um pensamento profissional em situação, concebido como

«uma reflexão dentro da acção», vem abrir possibilidades mas continuam em

aberto muitas outras questões: como se forma um profissional reflexivo? Como

é que as organizações empregadoras vêem a reflexividade dos seus

profissionais? Em que tempos e espaços pode ser fomentada essa atitude

reflexiva? Como é que os profissionais se comprometem com essa

reflexividade e com que objectivos? Porquê e para quê o farão?

No presente trabalho procurarei desbravar estas possibilidades e ponderar a

articulação entre os saberes de diferentes proveniências pelo cruzamento de

dois eixos: um eixo estrutural e funcional, através da descrição das estruturas e

do funcionamento cognitivo dos profissionais e, outro eixo da sua génese, ou

seja, através da descrição dos processos pelos quais se constrói.

Face à exigência que os grupos profissionais têm de utilizar conhecimentos

abstractos adquiridos em formação inicial nos contextos organizacionais

variados e exteriores ao campo científico onde trabalham, Stoer (1994) coloca

a hipótese de uma operação sócio-cognitiva designada «recontextualização

profissional do conhecimento abstracto».

Esta «recontextualização» tem uma dimensão de «transposição» de formas de

conhecimento, predominantemente científico-positivistas e centradas na

explicação e na intervenção com base em regularidades sociais, estruturais,

sistémicas ou estatísticas; e, uma outra dimensão, que advém dos contextos e

solicita os profissionais a construir conhecimentos, convocando-os para o

Page 146: As formigas e os carreiros

146

exercício de uma reflexividade que percepciona a possibilidade de ser criativo

com o uso de regras e recursos (Giddens, 1996).

A recontextualização de formas de conhecimento não se trata de uma

«aplicação» de conhecimentos como por vezes os profissionais sugerem, mas

sim de uma modificação das formas de conhecimento, que passam de uma

lógica informacional, de controlo social e de instrumentalidade no uso do

conhecimento abstracto, para uma lógica de saber (conhecimento enquanto

processo), em que o conhecimento está subordinado a uma epistemologia

prática (Schon, 1992, Caria, 2005).

O debate sobre a reflexividade leva inevitavelmente ao debate sobre a

«sociedade do conhecimento» e sobre as competências supostamente

necessárias ao exercício da cidadania na sociedade contemporânea, pelo que

importa reflectir sobre o que é, ou não, ciência (sem o espartilho positivista) e

sobretudo incentivar a explicitação da profissão e dos profissionais.

Na terceira ordem de razões que levo em conta para ampliar o debate sobre os

significados de «ser» profissional pondero a persistência de representações

«clássicas» da profissão, tanto na formação inicial quanto no exercício

profissional, embora admita que estão mais presentes nas representações

«para si» do que nas representações atribuídas pelos «outros» (pares,

públicos, empregadores e chefias).

Importa precisar que a representação constitui-se como um instrumento de

integração social e de identidade profissional, entendendo-se que as

representações são:

«…instrumentos cognitivos de apreensão da realidade e de orientação de condutas: as representações (…) podem ser consideradas como um dos meios a partir dos quais os profissionais estruturam o seu comportamento de intervenção e aprendizagem» (Charlier, 1989:46).

No caso dos assistentes sociais será também relevante o grau de congruência

ou de ruptura, tanto com as representações socialmente disponíveis, como

com as representações que cada profissional pode construir para si. Neste

âmbito, a recolha empírica e alguma literatura do campo (Restrepo:2003;

Fargion:2008; Amaro, 2009) dão conta da existência de uma tensão entre uma

visão humanitária e uma visão científica do Serviço Social – de que o quadro

de Picasso intitulado «Entre a caridade e a ciência» pode ser uma boa

Page 147: As formigas e os carreiros

147

metáfora simbólica. Enquanto a primeira é conotada com o serviço social

tradicional ou clássico, de cariz mais amador e assistencialista, a segunda

assume-se como «alternativa» e inscreve-se na tentativa de ser aceite e

reconhecida pela ‘família’ das Ciências Sociais, sendo bandeira dos

movimentos de profissionalização do serviço social.

Nesta última visão, as concepções do serviço social como ‘tecnologia social’ ou

como ‘engenharia social’ alinharam a profissão com o paradigma positivista e

advogaram um posicionamento de neutralidade e objectividade da prática, que

ainda hoje agrega muitos profissionais.

Numa incursão pelos estudos clássicos funcionalistas da sociologia das

profissões, guiada pela argumentação de Telmo Caria (2005), recorda-se que

mesmo esses estudos sempre colocaram em evidência que o profissionalismo

nunca partiu do ponto de vista de que a ciência e a técnica poderiam ser

socialmente neutros. Nos contributos incontornáveis de Max Weber e Jurgen

Habermas podemos encontrar um conceito de «acção racional», no caso de

Weber, que não exclui os valores e a subjectividade dos actores sociais e que,

no contexto da preocupação com a autonomia profissional da ciência face à

política, faz alusão à interdependência entre os conhecimentos abstractos e

uma configuração particular de valores.

Para Habermas, que critica a «neutralidade axiológica» da política do

capitalismo organizado, a ciência e a técnica foram transformadas em ideologia

ao associar-se à acção compensatória e proteccionista do Estado-providência

junto do mercado capitalista. Neste entendimento, a legitimação do sistema

capitalista passa a depender de meios técnicos na posse do Estado, capazes

de prevenir e minimizar os problemas sociais, tratando-os como problemas

técnico-administrativos e não como problemas políticos. Este processo remete

para uma acção técnico-instrumental onde os «peritos» e os «profissionais-

técnicos» se transformam em agentes ideológicos de uma racionalização

burocrática, supostamente apolíticos e distantes dos processos de interacção

social.

Estas abordagens clássicas permitem-nos olhar para a questão da autonomia

profissional e da sua relação com a cidadania como um espaço de

problematização constante e partilhado por muitas correntes e corpos

Page 148: As formigas e os carreiros

148

profissionais, com várias possibilidades de intermediação que podem ir do

conflito à complementaridade. Assim, profissionais como os Assistentes Sociais

que não podem ter a sua acção socialmente padronizada mas que não têm

uma grande tradição de autonomia profissional, ficam mais dependentes das

«modas» e «ditames» do mercado empregador (nomeadamente do Estado) e

dos usos dos sistemas de regras e procedimentos organizacionais.

Contudo, autores de Serviço Social, dos quais se destaca as posturas mais

actuais de autores portugueses do campo de Serviço Social (Fernanda

Rodrigues, Francisco Branco, Helena Mouro, Inês Amaro e outros) defendem a

reabilitação da «relação», da «estética» e da «ética» como valores

fundamentais do exercício profissional numa «terceira via» que não esquece o

passado e a vertente assistencialista, e que valoriza a prática em conjunto com

a necessidade de obter reconhecimento na comunidade académica, através de

uma maior produção de conhecimento próprio.

DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DO «SOCIAL»?

Não sendo minha pretensão dar conta da totalidade e da complexidade de

perspectivas sobre esta questão, referenciam-se apenas algumas que, no

momento, se revelaram fecundas para abrir janelas de leitura.

Gostaria de começar por situar a génese da assistência social em Durkheim e

nas influências do alemão Bismark, entre outros, no sentido de que procuraram

encontrar solução para os problemas sociais e políticos que o Estado

republicano enfrentava, reparando as injustiças mas mantendo a estrutura

social - «Agir sobre o indivíduo, ou sobre o meio?» torna-se a polémica

preferencial das correntes de pensamento de então.

Conceitos como «Social», «Solidariedade», «Direito Social» e «Contrato

Social» foram, em simultâneo, produto de um pensar historicamente situado

que deu lugar ao Estado Providência e ao campo profissional onde o Serviço

Social se veio a situar.

O «Social» surge na contradição entre o ideal democrático e os movimentos

reivindicativos dos direitos do homem, ambos de génese republicana.

Page 149: As formigas e os carreiros

149

Entendido genealogicamente como um conceito estratégico, o «social»

contribuiu para a constituição da solidariedade orgânica.

O conceito de «solidariedade» surge no discurso político francês dos anos 80

do século XIX. Para Durkheim, a questão fundamental eram as condições de

coesão social numa sociedade moderna, onde, a partir de uma tipologia de

sociedades, são estruturados os princípios da “solidariedade mecânica”

(resultante da divisão do trabalho e simultaneamente da individualização dos

membros da sociedade) e de “solidariedade orgânica” (entendida como o

aumento de dependência entre os indivíduos), onde estas duas faces da

mesma moeda pretendiam significar que a divisão de trabalho era o próprio

fundamento da coesão social. Ainda segundo este autor, a substituição

progressiva da solidariedade mecânica pela solidariedade orgânica define o

progresso da sociedade (Durkheim, 1998).

Este «social» ao inscrever a sua história, aparece associado ao conceito

Durkheimeano de «solidariedade». A «Solidariedade» foi o princípio de

governo que permitiu fazer convergir as exigências e as crenças contraditórias

da proclamação da República, assente numa crença comum de progresso,

produzindo a figura de Estado como garante do progresso da sociedade.

Enquanto para K. Marx, a divisão social do trabalho na sociedade capitalista é

vista como fonte de conflitos de classe, só superáveis com o derrube do

capitalismo e a implantação do socialismo, para Durkheim, a divisão do

trabalho é a base de coesão social e o fundamento do progresso, onde o

Estado se legitima pelo desenvolvimento da solidariedade orgânica.

Jacques Donzelot (1994) questiona com alguma ironia se a virtude do «social»

não será resultante de uma dupla negação (como nas operações matemáticas,

negativo com negativo, dá positivo) de duas ideias igualmente sedutoras e

enganosas: uma ordem civil naturalizada e uma ordem política que se

cumpriria no sentido histórico?

O «social» aparece como um registo híbrido, na impossibilidade, quer de

obedecer a uma imposição política das massas, quer de acantonar-se na

protecção da sociedade civil.

Por sua vez, o «Direito Social», fundamentado na solidariedade orgânica,

desenvolveu-se no final do século XIX, proporcionando uma intervenção

Page 150: As formigas e os carreiros

150

crescente do poder político nas relações privadas (com leis relativas às

condições de trabalho, à protecção do trabalhador em caso de perda da

capacidade de trabalho, leis protectoras da criança e da mulher na família,

medidas destinadas a zelar pelas condições de saúde, educação e moralidade,

etc.). O «direito social» constitui-se na base da socialização do risco e foi

institucionalizado através das técnicas de seguros sociais (por exemplo, o

seguro de acidentes de trabalho) mas contradiz políticas mais revolucionárias

que visavam alterar as relações sociais capitalistas.

O estatuto de “protegido da sociedade” é formado pelos direitos sociais que, no

fundo, mais não fazem do que proteger das consequências da divisão social do

trabalho, fazendo depender a concretização desses direitos do progresso social

e da intervenção do estado. Ou seja, não foi fazendo valer os seus direitos e

proclamando a injustiça da sua condição que o trabalhador beneficiou dos

direitos sociais, mas sim afirmando e insistindo na sua pertença à sociedade.

Por um lado, os direitos tornam-se iguais para todos, mas a sua realização

passa a ser condicionada por contingências limitadoras; por outro, reconhece-

se o princípio da promoção social ou progresso social, dentro dos atributos e

limites do próprio Estado.

Sobre o plano prático, os seguros sociais foram, sensivelmente até à I Guerra

Mundial, uma técnica capaz de realizar essa solidariedade e de modificar as

relações entre o capital e os assalariados, assegurando uma melhor

moralização do indivíduo pela transformação do meio social e, sobretudo,

concretizando o laço invisível entre os homens (assumindo-se que o Estado

era a expressão visível desse laço).

A fórmula ‘rousseaniana’ do «Contrato Social», na sua génese, pretendia

passar a articular a soberania política e a liberdade civil, configurando um modo

específico de organização da sociedade particularmente atento ao social e

articulando com as noções anteriormente afloradas de «solidariedade», de

«direito social» e de «negociação/contratualização».

No período entre as duas guerras mundiais, o pensamento organizou-se em

torno da oposição de duas abstracções antagónicas: «o social» e o

«económico». Tendo como pano de fundo, a perigosa oscilação do papel do

Estado entre estas duas forças opostas, entende-se o terreno fértil que

Page 151: As formigas e os carreiros

151

encontrou a doutrina Keynesiana, ao permitir ao Estado articular centralmente

o económico e o social, em vez de deixar que prevalecesse uma lógica sobre a

outra. Esta ideia de extensão da democracia, da gestão política da sociedade,

da gestão da vida económica e social recebeu o nome de «democracia

industrial». Mas o ponto de partida desta corrente seria a constatação do

falhanço dos partidos, assumindo que os cidadãos se agrupavam menos nos

partidos, do que nas grandes forças económicas e sociais. A síntese

pretendida defendia que em prol do «interesse geral», o «económico»

constituía um meio e o «social» designava a finalidade do progresso,

nomeadamente no contexto da reconstrução do pós-guerra e no surgimento do

Fordismo ou do «capitalismo organizado». Como Fernanda Rodrigues salienta:

“Em contraposição ao Estado neutro, o Estado interventor propunha-se reduzir a irracionalidade da economia, tendo pois um papel de administrador positivo do progresso. Neste percurso veio não só suscitar o investimento na solidariedade, tendo passado mesmo a ser responsável por ela” (Rodrigues, 1999:35).

Como sabemos o Estado Social surgiu depois da II Guerra Mundial, apesar do

seu embrião ser do século XIX e, nesse sentido, ele é simultaneamente

hegeliano, marxista, weberiano e durkheimiano (Correia, 2003). Passarei por

alguns dos contributos que destaco nestes autores:

Hegel teorizou o Estado como realização unificadora da Razão que ultrapassa

a conflitualidade existente na sociedade civil, cabendo a este o papel da

relação objectiva. Na sociedade civil, os indivíduos eram entendidos como

prosseguindo os seus próprios interesses, num misto de apetite natural e de

arbítrio.

Para que fosse possível lutar contra a arbitrariedade e o particularismo

vigentes, Hegel definiu estratégias que visavam a integração social, segundo

duas lógicas: uma, que exprime a linha de intervenção estatal e que aponta

alguns dos futuros traços do Estado Providência e uma outra, que segue a

linha da geração autónoma da solidariedade e da identidade e antecipa uma

forma pós-liberal de integração social, onde a corporação é o ponto de partida

da integração social. Esta desempenha como funções primárias a prestação de

assistência, a socialização e a educação, proporcionando aos indivíduos os

conhecimentos que lhes permitam interiorizar a noção de «bem comum» e de

«virtude cívica».

Page 152: As formigas e os carreiros

152

Para Marx, a irracionalidade da sociedade civil só poderá ser ultrapassada pela

realização histórica da Razão e consequentemente por uma nova organização

da comunidade política que impulsione os homens no sentido de uma

cooperação racional. O Estado Social é o produto da luta de classes que impõe

uma valorização crescente de novos direitos sociais, produto também de um

compromisso que tem subjacente uma dimensão conflitual. O Marxismo foi a

primeira ferida no universalismo burguês, o qual era fortemente limitado por

uma visão da cidadania restringida às suas dimensões civil e política e

fortemente ignorante quanto à sua dimensão económica e social.

Durkheim defende que a partir do momento em que as sociedades atingem

determinada complexidade, existe necessidade de uma forte intervenção

pública, sendo o Estado, o órgão da justiça social por excelência, através da

força reguladora do Direito. Assistia-se assim, na sua perspectiva a uma

actividade crescente de regulamentação jurídica no plano doméstico,

comercial, contratual e de uma forma generalizada nas relações sociais e

económicas.

Weber será um dos teóricos que primeiramente se debruçou sobre a «função

pública», no sentido em que advogou o aparecimento da burocracia como um

dos traços distintivos do estado moderno. A associação política não é definida

pelos seus fins mas pela escolha de meios mais eficazes para a obtenção de

determinados fins. A administração passa a ser um trabalho profissional levado

a cabo por funcionários contratados, em função de uma competência,

configurada em face da sua utilidade e das exigências colocadas à sua

actividade. Weber não deixará contudo, de alertar para os riscos de uma

tecnocratização generalizada da sociedade, resultante do risco da sociedade

se tornar «fria e desumanizada».

Por seu lado, a ligação entre o Estado social e a necessidade de gestão de

várias contradições resultantes do modo de desenvolvimento da sociedade

capitalista encontra expressão entre diversos teóricos que, na base dessa

relação, projectam a leitura do percurso e evolução do Estado de bem-estar.

Mas será sobretudo a partir de 1945 que, na economia, as ideias de Keynes se

generalizam, passando a ser aceite que o bom funcionamento da sociedade

exigia uma intervenção reguladora. Como refere Rosanvallon, Keynes está na

Page 153: As formigas e os carreiros

153

origem daquilo que poderíamos chamar a “revolução de Copérnico na

economia: esta deixa de ser considerada como um dado para ser apreendida

como uma construção” (1981:36). E esta mudança central que permite a

combinação de uma economia Keynesiana com as preocupações sociais de

Beveridge, suscita uma forte legitimidade política e implantação popular, onde

é assumido o papel «modernizador» do Estado na criação de condições para o

crescimento económico e para o pleno emprego.

O século XX foi o século do emprego, competindo ao Estado garantir a cada

um o posto de trabalho, por meio do qual o trabalhador teria acesso às

riquezas e a um lugar na vida social (Méda, 1999: 141). O lugar do trabalho nas

sociedades é um dos elementos de explicação da situação actual, cujas

características são, segundo Dominique Méda, o primado da abordagem

económica e a perspectiva de uma regulação cada vez mais automática dos

fenómenos sociais.

Nesta perspectiva, o estado social conseguiu substituir a utopia socialista de

um trabalho libertado por um objectivo aparentemente mais simples, que

consiste em fornecer aos trabalhadores, em troca do seu esforço, uma soma

crescente de bem-estar e a garantia do pleno emprego. Mas as sociedades

baseadas no trabalho são atravessadas por uma dupla lógica bastante

explosiva: por um lado, persistem em viver segundo o imperativo de

desenvolvimento/crescimento que assenta em aumentos cada vez maiores de

produtividade e consumo; por outro lado, devem garantir o pleno emprego a

todos, uma vez que são estruturadas pelo trabalho.

Esta contradição não explodiu mais cedo porque os países desenvolvidos

conheceram um crescimento da sua produção que lhes permitiu fazer intervir o

mecanismo da redistribuição, da integração e da distribuição de

compensações. Mas a partir do momento em que as taxas de crescimento são

menos elevadas ou em que as pessoas deixam de ter acesso ao sistema de

distribuição da riqueza, o sistema perde legitimidade.

O choque petrolífero, o fim do crescimento económico, o final do pleno

emprego associado ao crescimento do desemprego em larga escala, a crise

fiscal do estado e o consequente declínio dos financiamentos “sociais”

sobressaem, segundo Fernanda Rodrigues (1999), como os motivos de perda

Page 154: As formigas e os carreiros

154

de confiança no sistema, passando o intervencionismo estatal a ser

considerado como bloqueio para a resolução de problemas.

Desde logo é possível identificar dois eixos de interpretação para a crise do

Estado-providência: um, defendido pelas correntes conservadoras, que

retomam as teses liberais e assumem que o Estado é um mau administrador

dos recursos públicos e, outro, que radica a sua crítica na incapacidade do

Estado-providência se ajustar às mudanças na sua própria estrutura,

preconizando a tese da reorientação para fazer face às mudanças. Assim, as

dúvidas surgidas na década de 70 do século passado, sobre a viabilidade

económica do Estado de bem-estar universalista, deram lugar na década de 80

a profundas alterações nas despesas sociais dos orçamentos públicos, nos

novos métodos de prover e administrar os serviços, na adopção de esquemas

de privatização e subcontratação, que visavam retrair o Estado (Rodrigues,

1999). Até aí, no Estado-providência corporativo dos países da Europa

continental, os direitos estavam ligados ao desempenho no mercado de

trabalho e prevaleciam fortes mecanismos de controlo social.

A estratégia de adaptação seguida em países como a Alemanha, França e

Itália, foi a de subsidiar a saída do mercado de trabalho e de manutenção de

altos padrões de protecção social na área do seguro social.

Isto deu origem a uma dualização entre os trabalhadores com segurança no

emprego e aqueles que estão fora do mercado de trabalho, dependendo de

redistribuições sociais e a persistência de fenómenos de pobreza (em grande

escala decorrente da marginalização em relação ao trabalho disponível em

cada sociedade) que atinge significativamente segmentos da população e é,

sem dúvida, um dos problemas mais sérios que afecta o desenvolvimento

humano.

O desemprego, a pobreza e a exclusão social, nas últimas décadas, passaram

a integrar o discurso oficial e as agendas políticas e tornaram-se, dos temas

mais mediáticos, embora isso pouco se tenha traduzido nas actuações quer

dos responsáveis dos organismos internacionais, quer dos governantes de

diversos países. A pobreza aparece assim, como «avaliador de um padrão

civilizatório», elucidando também sobre o papel do Estado enquanto acolhedor

de desigualdades (Rodrigues, 1999).

Page 155: As formigas e os carreiros

155

Por outro lado, a experiência também nos mostra que o «social» pode significar

a um nível micro, mais do que as políticas e as respostas que as sociedades

entendem promover em cada tempo histórico e pode ter sobretudo a ver com

as pessoas e com as suas interacções, consideradas individual ou

colectivamente, nos diferentes tempos e espaços de vida. Nesta acepção

complementar será um «social» abrangente que tem a ver com a vida das

pessoas, marcadas por uma «totalidade» onde não se podem excluir as formas

de organizar o trabalho, a produção e a economia, entre outras dimensões

relevantes.

Recordo que nos primeiros tempos da minha trajectória profissional a

representação empírica de «social» era marcada por «espaços de ninguém»

que sobravam de segmentações disciplinares e profissionais mais consistentes

e radicadas, o que dava a ideia de que quando não se sabia o que fazer com

uma situação complexa, ela era seguramente uma «situação social».

Também do ponto de vista das representações e da linguagem, os

«habitantes» deste «social» eram sobretudo os pobres, os «sem recursos», os

«com problemas», assumindo muitas vezes, o assistente social o papel de uma

espécie de intérprete do «pobrez» (uma espécie de ‘língua’ oficial dos pobres)

na relação entre estes cidadãos estigmatizados e pouco escolarizados e os

outros técnicos ou serviços menos habituados (e preparados) para se

relacionarem com estas pessoas.

Nos vinte e cinco anos do meu percurso profissional quase tudo mudou, mas

ainda se mantém representações rígidas, híbridas e/ou fluidas de um campo

«social» com muitas variáveis, muitos poderes, muitos especialistas, muitas

fronteiras, muita competição e pouco esforço de explicitação sobre o que, em

cada momento e circunstância se entende por esta designação de «social».

Entendo que mais do acordar sobre uma designação comum, importa meta-

comunicar sobre ela, ou seja, ter a prática de clarificar em cada contexto e com

os agentes envolvidos, quais são as fronteiras do «social» que se acordam

para a finalidade do trabalho que se está a prosseguir.

AMBIGUIDADES DE UMA PROFISSÃO QUE SE ADAPTA

Page 156: As formigas e os carreiros

156

Interrogar a profissão de assistente social passa inevitavelmente por retornar à

sua formação, enquanto responsabilização por parte do grupo profissional pelo

controle das fileiras de formação inicial e contínua, pelo desenvolvimento do

saber e da ética na qual se baseia e finalmente pelo controle das condições de

admissão ao exercício profissional.

Neste olhar retrospectivo pela formação, salienta-se como um dos

componentes transversais a sua «adaptabilidade», o que pretende significar

uma conformidade em relação ao estabelecido em cada época e contexto mas

em simultâneo, uma capacidade de sobrevivência que revela a existência de

forças anímicas endógenas.

Entende-se que em Portugal a formação em Serviço Social tem uma tradição

de dependência ideológica, que é necessário contextualizar historicamente.

A sua génese, antecedendo o fim da I Republica, ocorre no contexto da

Ditadura Nacional (1926-1933), com origem nas preocupações e iniciativas dos

movimentos higienistas da Medicina Social e de protecção da Infância.

Com a 1ª Guerra Mundial, e por força das circunstâncias, as mulheres,

sobretudo das classes mais pobres, começaram a trabalhar em certas

indústrias fabris e noutros trabalhos reservados aos homens. Anteriormente à

implantação da República, a admissão das mulheres em empregos públicos só

era possível nos correios e no ensino primário. Mas foi sobretudo com a

criação do sistema de ensino republicano que a mulher começou a escolarizar-

se e a aspirar ao seu auto-sustento, conseguindo um aumento de participação

no mercado de trabalho e nas actividades económicas, sociais e culturais.

Como se sabe, a «Ditadura nacional» suspendeu a constituição anterior e

«legitimou» o golpe de Estado na eleição directa do Presidente da República,

encontrando dessa forma um subterfúgio para elaborar a nova constituição que

foi submetida a referendo em 1933 e levou à constituição do Estado Novo que

permaneceu até 1974.

O facto de a sociedade portuguesa ter vivido até ao 25 de Abril de 1974 sob um

regime autoritário, marca toda a trajectória do Serviço Social português

(Martins, 1999). É então no contexto ideológico e cultural do Estado Novo que

vai movimentar-se a formação e o exercício profissional dos Assistentes

Page 157: As formigas e os carreiros

157

Sociais que aconteceria em 1935 – sendo que logo em 1934 no I Congresso da

União Nacional foi proposta a criação do Instituto Superior de Serviço Social.

A formação em Serviço Social só é regulada pelo Estado em 1939 com um

plano de formação de 3 anos e um certificado que conferia o título profissional

de Assistente Social.

No contexto português, e segundo Alcina Martins (1999), nem a Igreja nem o

Estado assumem claramente as primeiras escolas (recorrendo a uma

associação de leigos e elementos da congregação francesa das Franciscanas

Missionárias de Maria), embora ambos se assegurem de que a formação se

enquadre nos princípios da doutrina social da Igreja e nos valores do Estado

Novo. Em Portugal, as políticas sociais têm sido um campo fragmentado, com

uma relação ambivalente com os direitos sociais e de compromisso público

fraco e intermitente, o que também não facilitou ao Serviço Social uma

trajectória em direcção aos direitos sociais numa lógica de política social.

“Todos os processos que poderiam adulterar a racionalidade estética da imagem social da sociedade passaram a ser reconhecidos como formas convergentes de desconstrução de uma ideia de pluralidade que não assentava numa razão crítica, mas sim numa razão ideológica que se servia da instrumentalização da pluralidade para sublimar os paradoxos existentes no seu desenvolvimento” (Mouro, 2009: p.81).

Em 1961, o curso de Serviço Social é reconhecido como curso superior e este

marco corresponde também a uma reorientação da formação com uma

progressiva introdução no ‘curricula’ das disciplinas das ciências sociais e dos

métodos em Serviço Social, sob influência do Serviço Social norte-americano e

de uma orientação do desenvolvimento humano e social adoptado no período

pós-guerra sob a égide dos vários organismos internacionais.

Esta orientação inovadora, coexistia com a vertente mais tradicional do

exercício dos assistentes sociais, entre outras com o Serviço Social corporativo

e do trabalho que consubstancia uma orientação doutrinária e conservadora.

Este período foi muito importante para o desenvolvimento da profissão, quer no

plano da expansão do corpo profissional (são registados mais de 1000

Assistentes sociais na década de 60 e apenas algumas dezenas nos anos 40),

quer no plano científico e técnico.

Em 1974, com as transformações institucionais, culturais e ideológicas

subsequentes à revolução de Abril, inicia-se uma nova fase marcada quer pela

Page 158: As formigas e os carreiros

158

dinâmica revolucionária e democrática, quer pelo clima de liberdade ideológica

e cultural. O movimento que associou os vários agentes a nível nacional

constituiu uma das dinâmicas mais significativas e culminou com o

reconhecimento do grau de licenciatura em 1989 e a consagração de uma

carreira específica de Serviço Social na administração pública em 1990

(Negreiros, 1999).

No domínio profissional assiste-se ao questionamento dos campos tradicionais

de intervenção (Assistência, Previdência, Trabalho e Saúde) e à emergência de

novas áreas de intervenção – numa primeira fase, acompanhando o período

revolucionário 74/75 através de alianças de sectores profissionais aos

movimentos populares (por exemplo, o movimento CERCI, estudado por

Negreiros: 1993) e, numa segunda fase, por via do alargamento das funções

sociais do estado e da descentralização político-administrativa (por exemplo,

na área das autarquias locais, o livro de F.Branco: 1998).

No plano da formação aprofunda-se a influência das correntes do Serviço

Social Crítico e Radical e, mais particularmente, do Movimento de

reconceptualização do Serviço Social de origem latino-americana, que

conduziria a um questionamento do seu objecto e da sua metodologia,

advogando um comprometimento profissional com os interesses das classes

mais pobres e um papel de agente de mudança institucional.

Após a adesão europeia, a configuração da assistência social teve estratégias

de duplo sentido: não se reconfigurou ainda como política de direitos, passou

muita da intervenção para o sector privado subvencionado pelo Estado e

introduziu comportamentos cívico-políticos marcados pela desconfiança do

sector público e pelo receio de fraude dos destinatários.

“A relativa progressão registada no financiamento da acção social tem de ser lida numa dupla vertente: reconhecimento da acção social como área crescente de investimento e, ao mesmo tempo, orientação restritiva de outras áreas sociais” (Rodrigues, 2002:293).

Acrescentando a mesma autora que a década de 80 introduziu na assistência

social um duplo movimento oscilando entre iniciativas de alargamento e de

restrição da provisão social.

Com a adesão à Comunidade Europeia saliento dois aspectos, a título de

exemplo, que tiveram grandes repercussões no Trabalho Social:

Page 159: As formigas e os carreiros

159

1) o financiamento através dos Quadros Comunitários de Apoio e Subvenções

Comunitárias e 2) a Internacionalização dos processos de trabalho e dos

«produtos» da intervenção social.

Em Portugal, apesar das grandes diferenças que marcaram as últimas décadas

do século passado, podem reconhecer-se períodos marcados:

- Por um aumento significativo das políticas distributivas, quer em termos de

medidas laborais ou salários directos, quer como relativas a políticas sociais ou

salários indirectos;

- Pela tendência de desvalorização progressiva dos direitos sociais, bem como

a emergência da lógica de mercantilização de bens e serviços (sobretudo, no

início da década de 80, época marcada pela preparação da integração no

espaço comunitário europeu);

- Pela adesão de Portugal à então Comissão Económica Europeia, o que inicia

um momento de avaliação e reequacionamento da provisão social existente,

relançando com o acesso aos fundos estruturais, dinâmicas e processos, com

a emergência de um número significativo de iniciativas e projectos locais.

No entanto, nos anos 80 e 90 do século passado o Serviço Social estava

centrado num movimento e numa luta pela qualificação académica e pela

licenciatura que congregou escolas, estudantes, professores e profissionais,

bem como as respectivas organizações e que não deixou espaço para outras

abordagens mais substantivas de questionamento da profissionalização. Mas

como refere Alcina Martins:

“Nesta conjuntura sócio-histórica, o projecto profissional incorpora as exigências de qualificação de quem trabalha com as expressões da Questão Social, os Direitos Humanos e Direitos Sociais, as Políticas Sociais, promovendo o desenvolvimento académico e a construção da área disciplinar de Serviço Social, inserindo-se então a investigação no elenco dos avanços significativos do Serviço Social em Portugal” (2008:33).

Este processo tem marcos em 1989 com a atribuição do grau académico à

formação nos Institutos Superiores de Serviço Social de Lisboa e do Porto, em

1990 com a mesma atribuição ao Instituto Superior Miguel Torga em Coimbra,

em 1991, com a criação da carreira de Técnico Superior de Serviço Social na

Administração Pública, em 1995 com a atribuição do grau de mestre e em 1997

com o início dos primeiros cursos de doutoramento em Serviço Social em

Portugal.

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160

Apesar de a formação estar instituída desde os finais dos anos 30 do século

passado, apenas em 1987 tiveram inicio no Brasil os cursos de Mestrado em

Serviço Social, ao abrigo de um Protocolo de Intercâmbio entre a Pontífica

Universidade Católica de S. Paulo e o ISSSL, passando-se quase uma década

até que fosse possível realizar a formação pós-graduada em Portugal.

A partir de meados da década de 90 pode delimitar-se uma nova fase com uma

profunda transformação da formação em Serviço Social, com a mutação da

estrutura do mercado de trabalho e com o sector privado a tornar-se o sector

predominante de emprego dos profissionais em detrimento do sector público.

Tendo passado mais de 20 anos sobre o primeiro dos marcos referidos, parece

que os novos modelos de formação (a oferta de cursos passa de 3 para cerca

de 20, como refere Ernesto Fernandes em documento da APSS, 2007) ainda

não se têm traduzido numa incorporação mais efectiva dos dispositivos de

investigação e produção de conhecimento. Francisco Branco, que se tem

dedicado ao estudo desta «dissonância entre a formação para a investigação e

práticas não suportadas na pesquisa» coloca como hipótese explicativa que os

modelos de investigação «ensinados» na formação inicial promovam uma fraca

articulação com as experiências dos estágios curriculares, não favorecendo

uma socialização formativa na articulação entre conhecimento e acção

(Branco, 2008).

Entre um conhecimento próprio que se procura afirmar, um dualismo entre o

humanismo e o tecnicismo nas concepções da profissão, uma profusão de

teorias num quadro teórico que se procura que seja específico (mas que por

vezes aparenta ser um «puzzle desmanchado»2) e um espaço cada vez mais

estreito e disputado para o exercício profissional será forçoso que os

profissionais, os docentes e as instituições de ensino, investigação e

representação da profissão, encontrem pontes de convergência para

‘prospectivar’ a profissão. A título de exemplo da formatação existente nesta

profissão refere-se o documento realizado por solicitação do Instituto de

Emprego e Formação Profissional/IEFP à Associação de Profissionais de

Serviço Social (2005) e em que são descritas a natureza do trabalho, as

2 Alusão ao título do livro da Assistente Social Isabel Fazenda (2006).

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161

possibilidades de emprego, a formação e evolução na carreira, as condições de

trabalho e as perspectivas futuras. No que respeita à natureza do trabalho é

salientado que:

“A identidade do Serviço Social na divisão social e técnica do trabalho reporta à administração e execução de serviços sociais através de uma prática de cunho educativo. (…) O serviço social visa a mudança societária, em particular face aos que sofrem as consequências de quaisquer formas de exclusão e injustiça social, nomeadamente por pobreza, desemprego, doença, cumprimento de pena ou violação dos Direitos Humanos. O assistente social vincula o seu projecto profissional ao processo de construção de uma ordem societária que permita o desenvolvimento dos seres humanos, salvaguardando o equilíbrio ecológico e os direitos das gerações vindouras. (…) A intervenção destes profissionais tem como objectivo fundamental promover o desenvolvimento de capacidades e competências sociais – sejam elas colectivas ou individuais – a três níveis: cognitivo (…); relacional (…) e organizativo”.

Esta narrativa denuncia um dos paradoxos fundadores do seu objecto, situando

os profissionais entre a «mudança societária que permita o desenvolvimento

dos seres humanos» (?) e «o objectivo fundamental de promover o

desenvolvimento de capacidades e competências sociais» dos seus elementos

mais fragilizados. A crença de que através desta «prática de cunho educativo»

se alcançaria linearmente a tal ordem societária idealizada, tem promovido a

«adaptabilidade» dos profissionais e a sua actuação reprodutiva junto das

populações.

Quanto às possibilidades de Emprego, o documento fundamenta a profissão na

“Classificação Nacional das Profissões (IEFP, 1994), enquadrando-a no sub-

grupo ‘Especialistas das Ciências Sociais e Humanas’.

Podemos ler neste documento que os licenciados em Serviço Social

desenvolvem a sua actividade profissional numa grande diversidade de

instituições: “nos serviços do Estado (…), nas Autarquias Locais (…), nas

Organizações Sociais não Lucrativas, Associações, Cooperativas e Sindicatos

(…) e nas Empresas (…)”.

No que se refere ao sector público, os últimos dados disponíveis, relativos a

1996 permitem constatar que as áreas de maior relevância para o trabalho dos

assistentes sociais eram no domínio da Justiça (25,4%), Segurança Social

(24,4%) e Saúde (21,7%), assumindo igualmente uma significativa expressão o

campo do trabalho nas Câmaras Municipais (13,8%), num domínio que

conheceu o seu grande desenvolvimento depois da restauração da democracia

Page 162: As formigas e os carreiros

162

em Portugal e particularmente depois de 1980. No entanto, é importante

salientar que estes dados são anteriores à implementação de políticas sociais

em Portugal com um significativo impacto no recrutamento de assistentes

sociais, como o Rendimento Mínimo Garantido (RMG) em 1996 e o Programa

Rede Social (1997). Após a grande oferta de emprego que estas medidas

proporcionaram, assiste-se a uma menor absorção pelo mercado, quer no

sector publico quer no sector privado, destes profissionais, em simultâneo com

o aumento do número de pessoas formadas na área específica e em áreas que

concorrem directamente para o mesmo campo de intervenção.

As Organizações Sociais não lucrativas já constituem actualmente o maior

empregador de assistentes sociais, sendo o campo de trabalho nestas

instituições relativamente protegido pelos acordos de cooperação que têm com

o Estado (mediante os quais estão obrigadas na sua grande maioria, a confiar

a direcção técnica ou, pelo menos, a ter no seu quadro de pessoal estes

profissionais). Segundo a Carta Social de 2001 publicada pelo MSST, 71% dos

equipamentos sociais existentes em Portugal eram propriedade de IPSS,

constituindo 87% das respostas sociais no domínio do apoio à população idosa

e infantil.

O Sector privado empresarial que, antes do 25 de Abril, concentrava o maior

número de serviços empregadores destes profissionais, tem vindo a perder

importância relativa, estimando-se segundo um estudo da APSS (2009), um

número residual de oito mil profissionais no activo.

Esta distribuição dos profissionais por sectores de actividade, se bem que com

alguma lacuna de números mais precisos e actuais, espelha a tendência de

diminuição do emprego no sector público e o aumento no sector privado de

organizações de solidariedade social. Embora exista ainda um núcleo de

profissionais do sector público relativamente protegido, esta tendência cruza-se

com a precarização da relação laboral que é transversal aos empregos em

qualquer um dos sectores.

No que respeita à formação e evolução na «carreira», começo por salientar a

associação ‘formação-carreira’ e a utilização do termo «carreira» como se

ainda existissem condições weberianas de fazer «carreiras» em burocracias

meritocráticas; após breve descrição da formação de base e pós-graduada, é

referido em relação à evolução profissional, uma distinção entre o sector

Page 163: As formigas e os carreiros

163

privado (explicitando a dependência das políticas internas da organização ou

as determinações nas convenções colectivas de trabalho) e o sector público,

onde é mais pormenorizado um percurso linear e ascendente e onde se pode

ler que:

“A evolução processa-se de acordo com o mérito evidenciado, o tempo mínimo de serviço na categoria e a abertura de vagas. No princípio da carreira, desempenham normalmente funções de intervenção directa com populações. No topo da carreira, assumem tarefas de planeamento, coordenação e avaliação de políticas (…).”

O assumir desta narrativa por profissionais com responsabilidade de

representação colectiva (mesmo sendo esta uma prática ainda corrente,

sobretudo no sector público) parece evidenciar a inspiração taylorista, tornando

bastante claro o paradoxo de que a intervenção directa com as populações

(que seria o seu objecto profissional) fica a cargo apenas dos profissionais

mais novos e inexperientes. Aliás, podemos assistir a este mesmo processo

com outras profissões, nomeadamente com os professores, para quem deixar

de dar aulas para exercer cargos dirigentes e/ou de planeamento é muitas

vezes, entendido como uma «subida» na carreira, especialmente disponível

para os profissionais mais experientes.

No que respeita às condições de trabalho e, após ser explicitado que:

“Estes profissionais desenvolvem trabalho, quer na sede dos serviços quer em contextos locais e comunitários (…) com um horário de trabalho semanal de 35 horas no sector público, vem o aviso de que “quando estão a desenvolver trabalho de campo não existe normalmente limite de horário, pelo que muitas vezes podem ter de trabalhar mais horas. No sector privado, especialmente no caso das IPSS, é comum estes profissionais terem flexibilidade de horário”.

Sendo corrente que os profissionais, tanto do sector público como privado,

trabalham bastante mais horas do que as que lhes são pagas e que a

apregoada «flexibilidade» queira significar na prática que não se tem horário de

saída, o que incomoda na mensagem é o que entendo como uma espécie de

naturalização da dilatação de horário, evocando um «espírito de sacrifício» ou

«missões de bem-fazer» de outras eras.

Esta é uma questão complexa e que me divide a título pessoal, porque eu

sempre trabalhei mais horas do que as que me eram pagas a pretexto de uma

responsabilidade e uma entrega à «causa pública» que fui assumindo nos

Page 164: As formigas e os carreiros

164

serviços e projectos onde trabalhei. E, de facto, este trabalho não é como

outros que podem ter horários rígidos mas é, como muitos outros que também

têm profissionais de fortes compromissos com os seus contextos e actores de

intervenção (médicos, professores, psicólogos…). No entanto, a partir da

constatação empírica, coloco a hipótese de que a prossecução destes

compromissos seja menos dependente de uma componente formativa ou

profissional e mais dependente do quadro de referência e das características

de cada pessoa. Durante o meu percurso profissional encontrei este forte

compromisso com o que se está a fazer nos mais variados profissionais e

contextos. Por último, sobre as perspectivas da profissão, o documento refere

que:

“Apesar da situação actual do mercado de trabalho não ser muito favorável à inserção profissional dos assistentes sociais devido designadamente às restrições que no actual contexto se registam na admissão destes técnicos na Administração Pública, é provável que a médio/longo prazo esta situação se venha a alterar. É possível que se observe um aumento da procura nas IPSS…”.

Estas palavras parecem evocar perspectivas de adaptação e de expectativa

que os cenários mudem o menos possível…

Sob o ponto de vista do «emprego» tenho a convicção (firmada nos exemplos

de muitas outras profissões extintas) que os assistentes sociais serão tão mais

dispensáveis para as organizações, quanto o que eles fazem, possa ser

traduzido numa qualquer check-list e feito por outros, menos diferenciados e a

um preço mais baixo.

Dar a conhecer os fenómenos com que trabalham, diversificar as formas de

intervenção e divulgar os resultados, fazer narrativas públicas que explicitem as

práticas e os problemas com que trabalham, podem ser contributos para

religitimar a profissão - quer dos que têm trabalho por conta de outrem, numa

perspectiva de auto-qualificação, de aprendizagem contínua e de formação em

exercício com os outros actores que se cruzam no campo profissional, quer dos

que estão fora do mercado de trabalho ou sem exercer a profissão. Para todos

fica a possibilidade da já referida «acção crítica», fora e/ou dentro do sistema.

(RE) SITUAR VELHOS E NOVOS PROBLEMAS

Page 165: As formigas e os carreiros

165

Na narrativa profissional as práticas dos assistentes sociais eram consideradas

como sendo uma ‘matéria-prima’ a que dificilmente as outras profissões sociais

tinham acesso. Eram práticas que se queriam marcadas por uma cultura de

proximidade com as realidades sociais e com as pessoas, o que permitia

acesso a um conhecimento «in locco» dos problemas sociais e dos seus

contextos. Como refere uma das assistentes sociais entrevistada:

“Os problemas que se colocam no dia-a-dia hoje, nos bairros, nas famílias, nas pessoas... não é o informático, não é o sociólogo, não é o psicólogo, que lá vão. Porque não se misturam com as pessoas. Eu acho que se há coisa que define o nosso campo é a mistura, é o estar por dentro. Se a gente não conseguir estar por dentro, estar próximo, não agarra nada. Porque é quando a gente está por dentro das situações, e se senta ao lado, e é igual, que nos passam as coisas, como que por osmose“ Maria (E RA2).

Admite-se que a situação actual desta cultura de proximidade estará diferente

na medida em que, por um lado, muitos outros trabalhadores sociais se

aproximaram das realidades quotidianas da vida das pessoas e dos fenómenos

sociais e, por outro lado, existiu um distanciamento dos assistentes sociais que,

a propósito do seu processo de reconhecimento académico, confundiram a

validade técnico-científica com uma «engenharia social» protegida em

gabinetes. Mas voltando à citação da entrevista de Maria (RA2), gostaria de

salientar a metáfora utilizada do ‘processo de osmose’, para referir que, por

vezes, os profissionais tendem a confundir os seus problemas com os

problemas sociais das pessoas que os procuram ou que eles procuram.

Na minha experiência como formadora, este é um assunto muito abordado em

grupos de profissionais que estão em formação contínua ou em supervisão e,

regra geral, carece de uma clarificação para que consiga ser feita uma

distinção entre os problemas que lhes são colocados (e que, por vezes, eles

acolhem como seus) e os problemas que, enquanto profissionais, eles

colocam. Por isso a clarificação de que os problemas que aqui pretendo

identificar são os problemas que, na perspectiva utilizada, são os dos

assistentes sociais.

Num processo contínuo, aos velhos problemas que o Serviço Social ainda tinha

por resolver - como, por exemplo, o aumento de produção e divulgação de

conhecimento próprio, o aumento da autonomia profissional, a diversificação

Page 166: As formigas e os carreiros

166

dos modos de exercício e a necessidade de trabalhar a visibilidade positiva da

sua intervenção profissional, somam-se novos problemas, como, por exemplo,

as perdas de legitimidade e uma enorme mutação e partilha do campo

profissional, no quadro de uma tendência para uma «desprofissionalização»

crescente.

Por um lado, ainda persiste a ideia da inespecificidade do Trabalho Social, de

que do «social» todos sabem e qualquer um que o deseje (e que o consiga)

pode tomar parte interventiva no campo, em posição profissional; por outro

lado, persiste a dificuldade em explicitar as Profissões Sociais e, neste caso

particular, o Serviço Social, pela dificuldade de nomear as dinâmicas e

interacções em que é actor, mas também pela dificuldade em reservar tempo

para ‘ganhar distância’ e amadurecer a reflexão – o que, na perspectiva

utilizada, está longe de ser uma fragilidade individual ou apenas deste grupo

profissional.

Outro dos ‘velhos’ problemas do Trabalho Social (e também não exclusivo dos

assistentes sociais) situa-se precisamente na característica que lhe é atribuída

de «apaziguador político» em sociedades onde está ‘apregoada’ uma cultura

de afirmação da livre escolha e da responsabilidade individual (Autès, 2004).

O Trabalho Social tem um mandato cada vez mais reduzido à sua expressão

mínima e centrado na gestão de dispositivos, com uma lógica de construção da

oferta que domina sobre uma lógica de respostas à procura, passando-se tudo

como se as instituições e os interventores soubessem o que é bom para os

outros e conhecessem antecipadamente a resposta às suas necessidades; por

outro lado, em nome de uma sociedade de indivíduos livres e autónomos,

provavelmente nunca existiram tantos meios de controlo (nos contextos da vida

pública e privada) como hoje, em que através das mais diversas tecnologias

parecemos estar todos num gigantesco Big Brother.

Na perspectiva de Autés (2004) a função simbólica de «laço social» está no

centro do trabalho social (ou da intervenção social) embora confrontado com

todas as alterações societais, com a turbulência da actualidade e com ligações

sociais enfraquecidas.

Elegendo a análise que Malcolm Payne (1997) faz do Serviço Social “como um

discurso que se situa entre três visões” - reflexiva-terapêutica, socialista-

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167

colectivista e individualista-reformista (visões essas que, simultaneamente, se

criticam e se incorporam) terá de se admitir a pouca clareza deste objecto.

Contudo, a perspectiva deste autor dá um grande contributo para tipificar o

Serviço Social, conforme o papel e as funções que desempenha.

As perspectivas identificadas elegem três elementos do Serviço Social: i) a

mudança social (perspectivas transformacionais); ii) a resolução de problemas

individuais (perspectivas de ordem social); iii) e a autonomização das pessoas

para alcançarem maior bem-estar (perspectivas terapêuticas). São elementos

inseparáveis, uns dos outros e fazem apelo à integração articulada da

compreensão psicológica e sociológica, em compromisso com os valores da

Justiça Social e dos Direitos Humanos:

i) a Perspectiva Transformacional - de cariz “socialista-colectivista” - aparece

comprometida com a mudança social e com os mais oprimidos e vulneráveis

de cada sociedade, no sentido de os capacitar para que ganhem poder sobre

as suas próprias vidas;

ii) a Perspectiva da Ordem Social – de cariz “individualista-reformista”- está

comprometida com a resolução de problemas individuais e com uma lógica de

manutenção e reequilíbrio das pessoas mais vulneráveis, através de serviços;

iii) a Perspectiva Terapêutica - de cariz “reflexivo-terapêutico”- compromete-se

com o ‘empowerment’ e autonomização de indivíduos, grupos e comunidades

para alcançar o seu Desenvolvimento e Bem-estar.

As profissões sociais em nome da «coesão social» participam de uma política

de reconhecimento que faz apelo à construção de um mundo comum ou de um

«estar» em conjunto, mesmo para as pessoas que não têm assegurado o seu

nome, a sua identidade e o seu lugar nas sociedades de produção e consumo.

Se a génese do trabalho social está ligada a Bismark, na linha dos seguros

sociais da Alemanha dos anos de 1880, ao começo da segurança social que

pretendia partilhar rendimentos entre os trabalhadores e os que se

encontravam incapacitados para o trabalho e ao alastramento do Estado-

providência, hoje a impossibilidade de trabalhar - num mundo que não tem

emprego para todos – sobressai sobre as ‘incapacidades’ de outros tempos.

Page 168: As formigas e os carreiros

168

E será precisamente quando falta o emprego que o Trabalho Social se torna

um dos principais indicadores da inserção social, tornando-se num ponto

central para a nova «questão social».

Neste âmbito, acentuam-se dois fenómenos: i) o crescimento de um

assalariado pobre e o crescimento da insegurança social, no sentido atribuído

por Castel (2003) e ii) o aparecimento de novas categorias de pensamento e de

formas de relação dos sujeitos com a questão social em que se aprofunda a

noção de «exclusão» pelo trabalho e se amplia e a noção de «sofrimento

social» ou de «vulnerabilidade».

Recordo que já na minha formação inicial (1984-88) a questão do objecto de

Serviço Social era assumidamente problemática, sendo frequente que as/os

alunas/os saíssem do curso sem ter claro do que se tratava, o que aliás é

reforçado pelos testemunhos de algumas colegas entrevistadas na recolha

empírica.Bom, falava-se muito da «Questão social», da influência da doutrina

social da Igreja, de autores e teorias dos campos da Sociologia, da Psicologia,

da Antropologia, da Economia e do Direito, da história do Serviço Social e do

Movimento de Reconceptualização Brasileiro, do Estado-providência e das

suas políticas sociais e da «Mudança» como algo com que os assistentes

sociais ficavam comprometidos mas, para muitas pessoas, permanecia difuso

qual o objecto de Serviço Social.

Lembro-me que nessa época tinha o desejo intenso de conseguir explicar (e a

frustração de não o conseguir fazer) a pessoas comuns e com palavras simples

«o que era o Serviço Social» e «ao que se propunha».

Uma das dificuldades era ter de contar uma grande «história» que arriscava a

perder a atenção do interlocutor e não alcançava a simplicidade pretendida.

Ainda hoje, muitas vezes temos que começar pelos estereótipos (da «pessoa

que ajuda» ou da «pessoa que retira as crianças» e tem o poder de «dar, ou

não, subsídios») para chegar ao que fazemos e ao que pode ser feito. Mas é

neste campo profundamente paradoxal que se continua a realizar a sua

construção profissional.

Também a crónica da morte anunciada do social (na linha de um modelo

cultural dominante que procura responsabilizar os indivíduos por todos os

«males» que os oprimem e os atingem) é, segundo Michel Autès, marcada por

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169

três grandes tendências: o enfraquecimento da lógica da dívida, a

individualização do Direito e as incertezas crescentes em torno dos

«mandatos» politicamente consignados ao trabalho social (Autés, 2004).

“O novo paradoxo do social é produzir respostas cada vez mais individualizadas, cujo modelo é o do percurso individual de inserção construído em torno de uma larga gama de ofertas de serviços alternativos do emprego, no quadro de uma retórica da resposta global e regional à questão social em lugar das estratégias já desvalorizadas da assistência” (Autés, 2000: 265).

Através de memórias, tensões e paradoxos, assumo hoje que cada profissão

cria os seus próprios investimentos e interpretações dos corpos de

conhecimento e que o Serviço Social, enquanto profissão plural e diversa tem

criado alguns «objectos» a partir de um vasto reportório de teorias diferentes

para as «recontextualizar» na prática e situar/conquistar a sua legitimidade em

cada contexto histórico. Em vez de uma definição de si próprio, o Serviço

Social redefine-se constantemente na medida em que é influenciado por outros

campos do conhecimento, pelas necessidades sociais e pela mudança social e

ainda pelo próprio discurso interno acerca da sua natureza.

DA «DESCOLONIZAÇÃO DISCIPLINAR» À TRANSDISCIPLINARIDADE

Na perspectiva transdisciplinar que tentei adoptar neste trabalho fiz a revisão

da literatura de Serviço Social mas também me apoiei numa vasta literatura

científica disponível sobre a profissionalização de outras profissões sociais,

nomeadamente de professores por a considerar inspiradora e útil para pensar

sobre os assistentes sociais.

Neste percurso não pude deixar de me confrontar com vários dilemas e com a

própria ambivalência do processo de profissionalização, nomeadamente nos

dois aspectos que lhe são indissociáveis: 1) a existência de profissionais para

quem a definição, o acesso e o exercício são objecto duma codificação

elaborada, e onde emergem organizações profissionais que pretendem ganhar

controlo sobre o conteúdo e o bom uso desses códigos; 2) e a acentuação do

valor acordado para a competência no exercício profissional num ‘corpus’ de

saber, saber-fazer e saber-ser que comporta ele mesmo poderosos factores de

institucionalização. Importante também será não esquecer o alerta das visões

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radicais de Serviço Social que questionam a profissionalização, interrogando

até que ponto ela é favorecida pelo sistema educativo do trabalho social, em

detrimento dos interesses das comunidades oprimidas e dos clientes

individuais (Payne, 1997:301).

Neste entendimento, torna-se importante conhecer as formas como o Serviço

Social tem sido institucionalizado e controlado (e quais os papeis que

desempenhou nestes processos) e as formas como se tem relacionado com a

rede de ocupações e profissões com quem partilha o campo de intervenção – o

que remete necessariamente para equacionar também a sua profissionalidade,

enquanto conjunto articulado de saberes e atitudes requeridas pelo exercício

profissional e o seu profissionalismo, enquanto conjunto de princípios éticos e

valores orientadores do trabalho profissional. Payne a este propósito identifica

três conjuntos de forças que constroem o trabalho social:

“…aquelas que criam e controlam o trabalho social como uma ocupação; aquelas que criam clientela entre pessoas que procuram ou são enviadas para receber assistência do trabalho social e aquelas que criam o contexto social no qual o trabalho social é praticado” (1997:33).

Reconhecendo a existência de fragilidades no Serviço Social, admite-se que

essas fragilidades também lhe conferem especificidade na abordagem holística

das «situações-problema» e na hipótese de recurso ao pensamento complexo.

A complexidade do seu objecto e o seu lugar particular no cruzamento entre o

social, o político, o jurídico e o psicológico são encaradas como características,

ou seja, simultaneamente fragilidades e potencialidades.

Contudo, estas características podem também ter tradução na dificuldade em

“…definir uma identidade profissional que é por essência flutuante, pela perda de referenciais e pela dificuldade em se tornar explicitável, para o exterior e para os próprios, o que os trabalhadores sociais são e o que fazem, porque fazem de determinada maneira e não de outra, o que eles esperam dessa acção e que sentido tem ela, para eles próprios mas também, ou sobretudo, para as pessoas com quem trabalham» (Riffault, 2007:3).

Apesar das fragilidades mencionadas sobre o conhecimento próprio de Serviço

Social existem posições contemporâneas, como a de Malcolm Payne

(1997:23), que defendem que existe “…um paradigma do trabalho social, que é

socialmente construído e no qual todas as ‘teorias’ e práticas correntes podem

ser encaixadas.” Esta posição pode ser particularmente relevante se em vez de

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171

procurarmos uma «teoria» de conjunto para toda a nossa prática, utilizarmos

misturas de ideias de diferentes fontes.

Esta hipótese de «misturar ideias» traz por um lado, desafios complexos e

aconselha a um bom entendimento sobre a proveniência dessas «ideias» mas,

por outro, abre um caminho de especificidade que é, em parte, semelhante ao

que os profissionais mobilizam na prática e, onde a explicitação é, de facto,

fundamental para dar inteligibilidade e validade a essas «misturas». Na

terminologia do Serviço Social a esta «mistura» chama-se «sincretismo». Este

é um termo de origem grega que significa a tentativa de conciliar doutrinas de

diversas origens, utilizado particularmente na Teleologia e na Mitologia da

Religião e que afirma uma unidade subjacente ou a influência exercida por uma

religião nas práticas de outra. O termo que faz parte do léxico profissional é

conceptualizado por José Paulo Netto (2001) que, entre outros autores, o

aborda como «um princípio constitutivo do Serviço Social» que traz uma marca

identitária mas que é simultaneamente «um problema a ultrapassar» e uma

«virtude» que lhe confere plasticidade.

Uma das características, muito difundida na literatura do Serviço Social sobre a

profissão é de que esta não construiu uma teoria própria, dispõe sim de uma

história. E é essa história que a particulariza enquanto tipo de especialização

de trabalho colectivo, gestada nos cruzamentos da intervenção do Estado na

sociedade civil, como resposta às exigências da expansão monopolista do

capital, através do recorte das políticas sociais (Iamamoto, 1992).

A propósito da inexistência de uma teoria própria, revela-se a importância de

explicitar o Serviço Social nos seus diferentes «fazeres», «dizeres» e

«pensares» e será bom lembrar, nas palavras de Jacques Riffault (2007) que:

“Trabalho Social construiu-se como um universo multireferencial em que a quase-saturação deste ponto de vista testemunha a riqueza e a vivacidade das práticas sobre a complexidade do real, mas também, e é um dos seus paradoxos, a fragilidade das suas bases teóricas e conceptuais” (Riffault 2007:2).

Como refere um dos assistentes sociais entrevistados:

“O Serviço Social é uma coisa tão aberta, tão humanista que acaba por se esboroar. Não tens suporte nenhum, o pessoal agarra-se aonde? Não consegue. E perante outras profissões tu não te consegues implantar, tu

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não consegues arranjar nada muito parecido ao projecto de Arquitectura, que seja o teu projecto de Serviço Social “ e continua dizendo, “Às vezes sinto-me como os tocadores de ouvido, como aqueles tipos que nunca foram para a escola e que não sabem ler uma pauta. Os tipos tocam música tão bem como os outros. Mas são uma espécie de músicos analfabetos. Nós como andamos muito atrás das modas, é o seguinte, andamos ainda a estruturar o que os outros andam a desestruturar” António (AF1).

Quer na voz do paradoxo nomeado por Riffault, quer na voz deste assistente

social contemporâneo, a «colonização» do Serviço Social pelas «modas» de

outras fontes disciplinares, faz lembrar as culturas de transmissão

essencialmente oral (como, por exemplo, a cultura cigana) em que ao orgulho

da pertença, se misturam sentimentos de inferioridade em relação à «cultura-

norma» e de receio de explicitação e divulgação dos seus códigos e normas

culturais, como se ao fazê-lo pudessem trair os seus traços identitários mais

profundos. Esta analogia com uma etnia que tradicionalmente recorre aos

serviços onde trabalham assistentes sociais e com quem muitas vezes, estes

profissionais, têm relações tensas, contribui para colocar a questão da

importância socialmente atribuída às profissões estar em relação com os

«públicos» que abrange. E, nesta linha, não será de excluir a perspectiva de

que, como que por osmose, os assistentes sociais fiquem em posição tão mais

vulnerável e «excluída» quanto a sua «clientela» o for – uma profissão de

«pobres» e «excluídos» numa visão linear e redutora, mas que existe na

contemporaneidade e que privilegia a importância dicotómica dos profissionais

que trabalham «para, ou com, os sectores mais abastados das sociedades» e

os que trabalham «nos contextos de discriminação, pobreza e exclusão social».

A visão do Assistente Social confinado ao domínio exclusivo da pobreza e da

«disfunção social», ocupado prioritariamente com a redistribuição de recursos,

a normatividade e o controle social, comprometido com as respostas e

procedimentos organizacionais, é limitativa mas destaca vertentes da profissão

como «agente de adaptação» que privilegiam um efeito paliativo centrado nas

pessoas e nos seus problemas, em detrimento de uma intervenção preventiva

e estrutural nas sociedades.

Em concomitância, existem muitas outras vertentes e formas de exercício que

nos levam a defender para esta profissão uma plasticidade cultural onde as

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173

transformações que foram ocorrendo ao longo do tempo resultaram mais de

“um processo contínuo de decomposição e recomposição ideológica e cultural

que se desenvolveu ao longo da sua trajectória de vida social” (Mouro,

2009:123), do que de profundas rupturas identitárias. Por exemplo e, ao longo

da sociedade industrial, a sua função na intervenção comunitária foi

condicionada essencialmente pela filosofia institucional do projecto de

intervenção e pelas características ideológicas do processo de gestão do social

- até então com a orientação Franco-belga sob influência da doutrina social da

Igreja católica (encíclica Rerum Novarum, 1891entre outras), e depois com o

desenvolvimento metodológico do «modelo funcional» de origem positivista.

Neste âmbito, será importante recordar a importância de duas fortes influências

que também marcaram as dinâmicas e a herança do percurso histórico do

Serviço Social: o Positivismo e o Funcionalismo.

Augusto Compte, considerado o «pai» do Positivismo, surge como filósofo na

primeira metade do século XIX, em França, e empenha-se numa filosofia com 3

temas básicos: i) a filosofia da história, visando mostrar como uma certa

maneira de pensar (filosofia positivista) devia imperar para que a sociedade

pudesse ser reconstruída através de uma reforma intelectual do homem; ii) a

fundamentação e classificação das ciências segundo a filosofia positiva; iii) a

sociologia, responsável pelos processos de modificação da sociedade, através

da reforma das instituições.

Compte defende também (entre muitos outros aspectos de uma vasta

produção não abordada) o conceito de grupo social, combatendo o

individualismo inspirado em Rousseau e fornecendo uma concepção de

sociedade como um organismo biológico, onde o conjunto de órgãos funciona

em perfeito equilíbrio. Nesta explicação a «ordem social» ganha um papel

relevante como garante do tal equilíbrio e regularidade, que são aspectos

importantes e fundamentais para mostrar a influência positivista no Serviço

Social. Segundo este paradigma o que é normal é o que está em equilíbrio e

mantém a regularidade do sistema, sendo essa regularidade que lhe confere a

noção de normalidade. O que ocorre fora dos padrões da normalidade é

considerado desvio e torna-se patológico no sistema social.

Page 174: As formigas e os carreiros

174

O funcionalismo social, por sua vez, parte do princípio de que a sociedade é

um todo orgânico e que cada parte tem uma função específica para a

manutenção equilibrada do todo e que o funcionamento social será definido e

controlado a partir do estabelecimento de regras e normas que estarão

fundamentadas pela consciência colectiva.

Vários aspectos do funcionalismo influenciam o Serviço Social, entre eles, o

objectivo de procurar a adaptação e integração do homem no meio social em

que vive (pois o indivíduo não ajustado corresponde a uma disfunção do

sistema social), o pressuposto da neutralidade, a dicotomia teoria-prática e a

própria metodologia do Serviço Social, expressa na tríade Serviço Social de

Casos, de Grupos e de Comunidade (Pinto, 1986).

Durkheim protagoniza uma influência marcante com questões como, por

exemplo, «a coesão e o equilíbrio através do princípio da integração», o

conceito de «solidariedade social», o conceito de «consciência colectiva» e a

noção de que os factos sociais devem ser tratados como exteriores ao

interventor. Posteriormente o modelo funcionalista de Émile Durkheim foi

aperfeiçoado por antropólogos e sociólogos como o britânico R. Radcliffe-

Brown, com os conceitos de «processo», «estrutura» e «função».

A partir de 1950, a sociologia americana, principalmente através de Talcot

Parsons e Robert Merton, vai detalhar o conceito de estrutura social e definir os

conceitos de «status» e «papel» para explicar as desigualdades sociais.

A influência do funcionalismo no Serviço Social faz-se notar através do

tecnicismo expresso no agir profissional e na prática asséptica e

descomprometida que, segundo Vicente Paula Faleiros (1981), revela na sua

suposta neutralidade um compromisso com a estrutura social vigente.

A relação muitas vezes ambígua estabelecida entre o Serviço Social e as

correntes de pensamento em voga (sejam a título do exemplo utilizado, o

Positivismo ou o Funcionalismo ou, mais recentemente as abordagens

Sistémicas, Criticas e Ecológicas) recoloca-se a questão da importância dos

profissionais reflectirem e se posicionarem sobre «em que medida» aderem à

«reprodução» das correntes de pensamento em voga e «em que medida»

podem contribuir para a produção de conhecimento.

A NEUTRALIDADE TÉCNICA EM DEBATE

Page 175: As formigas e os carreiros

175

Ao percorrer os processos de emergência, institucionalização e de

profissionalização do Serviço Social, dá-se conta da diversidade de formas que

podem tomar as teses sobre o Estado e as suas políticas sociais e pretende-se

evitar a conotação de neutralidade que, por vezes, lhe é atribuída.

Actualmente com uma crise estrutural do Capitalismo e sobretudo com a crise

da sua relação com os Estados, aumenta a complexidade e a diversidade de

análises e a necessidade de um contínuo aprofundamento, quer sobre o papel

dos Estados providência, quer sobre a própria natureza do Estado, quer sobre

os posicionamentos dos técnicos que nele (e/ou em nome dele) intervêm -

algures entre a influência weberiana de uma autonomia técnica e as influências

de paradigmas científicos que concebem o técnico como estando fora ou

dentro, dos sistemas em que intervém.

Sobre a concepção de Estado, opõem-se várias perspectivas, nomeadamente

as pluralistas e marxistas, divergindo fundamentalmente nas suas concepções

sobre a relação do Estado com a Sociedade. As teorias pluralistas, resultantes

da emergência e desenvolvimento da teoria política pluralista, no âmbito da

teoria liberal, apresentam o pluralismo como a reinterpretação do «bem

comum», assumindo o Estado uma posição de árbitro neutro e tendem a supor

que o Estado é bastante autónomo em relação à sociedade - o que tem

justificado uma posição de aparente neutralidade perante os diferentes grupos

de interesse, na tentativa de colocar o Estado e os seus agentes fora dos

conflitos sociais. As teorias marxistas, ao invés, definem o Estado pelo seu

compromisso com a classe dominante, atribuindo-lhe um papel de mediador de

conflitos no interior dessa mesma classe.

Quer numa, quer noutra perspectiva são grandes as influências para os

assistentes sociais que se tendem a posicionar entre estes dois extremos,

como estando fora dos conflitos sociais e/ou como tendo neles um papel

mediador, o que de certa maneira implica uma equidistância neutral.

Gosta Esping-Anderson (1999) referia que o Estado se proclamava então (e,

alguns ainda se proclamam) como «regulador», «animador», «supervisor» e

«mediador», renunciando tendencialmente ao uso da noção de «controlo» e

utilizando um novo léxico com termos como «monitorização», tornando

necessário que a análise se interesse por estas estratégias de acção estatal,

Page 176: As formigas e os carreiros

176

designadamente pelas que têm vindo a fazer apelo à «descentralização», à

«territorialização» e à «contratualização» das políticas sociais públicas.

Associadas a estas estratégias, diversas noções como «autonomia»,

«participação», «projecto», «contrato», «parceria», «partenariado», «território»

e «comunidade», só para referir alguns exemplos, têm sido abundantemente

utilizadas, quer no plano da acção local quotidiana, quer ao nível das políticas

públicas que se têm voltado para o local como forma de relegitimação da acção

estatal. O seu uso tem-se generalizado de tal forma que parece ter-se tornado

um vocabulário obrigatório para formular, descrever e analisar os problemas

sociais e educativos contemporâneos.

Uma das tendências actuais do Serviço Social aponta para formatos como o

«managerialismo», entendido como a aplicação dos princípios de gestão ao

campo da intervenção social (Dominelli, 2004:284) onde prevalece uma hiper

racionalidade instrumental. Neste domínio salientam-se como duas fortes

tendências contemporâneas da prática profissional a «Evidence-based

practice» e a «Competence-based pratice».

A primeira, de inspiração positivista, prossegue um objectivo de rigor e

cientifização da prática, com uma aposta na objectividade e planificação das

práticas (elaborando guias de procedimentos) de forma prévia e generalizada a

diversas situações (Webb, 2006:14), com o fim de maximizar a racionalização e

a eficiência dos serviços; a segunda, é de inspiração Fordista, propondo uma

padronização da intervenção através de uma decomposição da prática

profissional em procedimentos e permitindo assim uma maior monitorização do

desempenho dos profissionais e, supostamente, dos resultados atingidos

(Dominelli, 2004).

Estas tendências, apesar de constituírem fonte de tensão entre os

profissionais, parecem recolher a adesão de uma grande parte das

organizações sociais mas também de alguns trabalhadores sociais

(nomeadamente assistentes sociais) que entendem como ‘securizante’ ter

‘guide lines’ que prescrevam e balizem a sua intervenção. Por outro lado,

acentua-se o dilema para outros profissionais entre «o que os serviços nos

pedem que façamos» e «o que achamos que devemos fazer».

Page 177: As formigas e os carreiros

177

Neste domínio arrisco a convicção de que todos os profissionais que têm uma

vertente de trabalho com o comportamento humano, lidam com domínios

consideráveis de incerteza e imprevisibilidade e que se situam em campos de

intervenção onde as ‘guide lines’ poderão ter importância como horizonte e

referência, mas não podem ser entendidas como «receitas».

A ideia de ‘neutralidade’ que pretendo questionar também tem muito de um

sentimento de omnipotência sobre o outro (quer na vertente de diagnóstico dos

seus ‘males’, quer nas ‘boas soluções’ que se prende que ele/a implemente) e

onde o «paradoxo da ajuda» constitui um dos quadros de referência –

separando os contextos entre «ajudados» e providenciadores de «ajuda»,

estabelece uma relação dinâmica que reproduz o estatuto e a condição de

‘menoridade’ e ‘incapacidade’ dos «ajudados» em relação com a medida de

pressão e controlo que os «providenciadores de ajuda» exercem. E apesar dos

trabalhadores sociais, e no caso os assistentes sociais, terem realizado

abundantes tentativas de se reinventarem, adoptando novos quadros de

referência teórico-metodológicos e novos léxicos, muitas vezes, não chegam a

questionar «para que serve tudo isto?» num debate que se entende necessário

sobre as finalidades das intervenções e sobre as perspectivas e as

metodologias que em cada tempo e contexto histórico se tornam moda.

Uma intervenção ‘técnica’, ‘neutra’ e ‘exterior’ ao sistema em que intervém é

muitas vezes realizada com uma visão humanista centrada na adaptação da

pessoa «assistida» e no seu papel de «utente» de serviços e respostas sociais,

realizada simultaneamente nas estruturas institucionais e à margem delas - em

redes informais que estes técnicos são peritos em construir. Também, coloco a

possibilidade de que ao acolher e tentar «resolver» os pedidos que lhe são

colocados, estes profissionais dão uma ilusão de resposta institucional e de

justiça social que contribui para manter o «status quo» e as desigualdades de

origem.

Num outro posicionamento epistemológico que me é mais próximo (embora

seja respeitante a um nível micro de intervenção) e de acordo com a Teoria dos

Sistemas Observantes (Pakman, 1991), o interventor é encarado como

observador-participante na realidade em construção, implicando o processo de

intervenção uma «acoplagem» de dois sistemas (técnico e unidade de

Page 178: As formigas e os carreiros

178

intervenção: família/rede/organização,…) que se perturbam mutuamente e de

que resulta uma co-evolução.

Aceitando estas premissas, dá-se relevo à dimensão temporal e histórica dos

sistemas com que se intervém e, o Assistente Social não tendo capacidade de

controlo e previsão, posiciona-se como catalisador da mudança, privilegiando

na intervenção uma vertente estética e semântica, em detrimento de uma

vertente pragmática. Reencontra-se deste modo, a noção de capacidade auto-

curativa do sistema, de que falava Bateson onde o próprio «sistema-cliente»

participa como actor. Esta migração de conceitos de outras áreas do

conhecimento, concretamente da teoria geral dos sistemas (L. Von Bertalanffy),

da Cibernética (N. Wiener; H. Von Foester) e da Teoria da comunicação

humana (G. Bateson e Grupo de Palo Alto) chegou-me através da formação

em Terapia Familiar e pertence a um movimento científico e psicoterapêutico

global composto pelas vertentes epistemológica, teórica e prática, com o qual o

Serviço Social poderia «trocar» bastante conhecimento.

Ao entendermos a história da formação em Serviço Social como um percurso

contínuo, embora não linear, podemos identificar em extremidades opostas

duas ideias de formação com possibilidade de várias soluções intermédias e

combinadas entre elas: por um lado, a ideia de formar agentes de controlo

«meninas de boas famílias» para responder a uma «vocação» e cumprir a

«missão» de «reeducar» os pobres e prevenir a conflitualidade social e, por

outro, a ideia de formar agentes de mudança interventores sociais, mobilizados

por um ideal de mudança social, capazes de equacionar as variáveis

societárias e de participar na definição e gestão das medidas de política e

também de continuar a participar nos mecanismos de redistribuição nos

diferentes sectores sociais, contribuindo para montar mecanismos de apoio e

compensação à vulnerabilidade social.

Apesar desta caricaturização e da dicotomia estigmatizada mantém-se um foco

que tem prevalecido ao longo dos tempos, na mudança dos «pobres, excluídos

ou não-integrados», em detrimento de uma actuação mais abrangente nas

organizações e instituições ou de um questionamento sobre o próprio objecto

do Serviço Social e dos modelos de Estado e Sociedade. Até porque sendo os

assistentes sociais, na sua grande maioria, trabalhadores por conta de outrem,

Page 179: As formigas e os carreiros

179

com estatuto e reconhecimento públicos, a expectativa é de que resolvam

problemas, façam uma gestão eficaz e eficiente de dispositivos de apoio e não

que coloquem problemas.

Assumo como hipótese que os assistentes sociais encontram dificuldades

acrescidas quando pretendem investir numa actuação mais política e ético-

deontológica e, que sejam sobretudo docentes e/ou profissionais -

investigadores que, nessas qualidades, se encontram prioritária ou

temporariamente fora do campo organizacional da intervenção directa e sem

sujeição hierárquica ao nível da avaliação do «fazer».

Com ciclos de compromisso com a Questão Social, no seu enunciado «velho»

e «novo», com as Políticas Sociais do Estado-providência e com os Direitos

Humanos, os assistentes sociais têm sido formados para «humanizar» um

determinado modelo de desenvolvimento que naturaliza as categorias

dicotómicas de ricos e pobres, de incluídos e excluídos, de problemáticos e não

problemáticos e de funcionais e disfuncionais. Não se trata, como bem referem

Stoer e Magalhães, de dizer que:

“…estão esgotadas as tradicionais políticas sociais fundadas na consecução dos objectivos de igualdade, mas de enfatizar que essa perspectiva tem de abarcar outros aspectos que estão para além, e para aquém, da igualdade económica.” (2000:164)

Trata-se seguramente de encontrar saídas que não se inscrevam nas correntes

de pensamento que se encontram esgotadas.

A reinvenção da profissão passará pela humildade de interrogar a disciplina e a

«praxis», num debate onde o rigor se fará quotidianamente pela reflexão

contínua sobre as crenças, os preconceitos e as ideologias, mas também pela

interrogação da investigação científica que em dado momento se torna

pertinente e mobilizável, permitindo debater ‘o que se sabe’, ‘o que não sabe’ e

‘o saber dos outros’.

Page 180: As formigas e os carreiros

180

CAPÍTULO 3 – O LUGAR DO «NÃO-SABER» FACE AO

SABER DOS OUTROS

“Conhecer o mundo – o próximo e o distante – é o impulso central do espírito humano. Somos seres epistemofílicos – um desejo imenso e permanente de conhecimento, uma curiosidade infindável. Então, a forma como as coisas nos são apresentadas e o modo como as pessoas se nos dão a conhecer constituem factores essenciais na facilitação dos processos de aprendizagem, adaptação e transformação do real, seja, no acesso ao conhecimento e à acção”, é assim que o Professor Coimbra de Matos começa o capítulo “João dos Santos – O Mestre da relação”, no seu livro «Vária. Existo porque fui amado» (Matos, 2007:167).

Este tipo de narrativa que mobiliza uma ideia de «conhecimento» e «acção»

num jogo interactuante entre a «curiosidade» das pessoas por conhecer e os

«processos de aprendizagem, adaptação e transformação do real», sublinha

uma perspectiva em que o «saber» e o «não-saber» fazem parte de uma

condição humana para «conhecer o mundo», transformando-o em «realidades»

co-contruidas socialmente. Na sequência desta homenagem a João dos

Santos, que foi um homem de tanto e tantos saberes (designado nesta fonte

como «mestre-aprendiz»), continua dizendo:

“Investigar é fazer perguntas à realidade; mas ela só responde à nossa indagação se a pergunta for divertida, diversa da ritual. «Se não sabe porque é que pergunta?» interrogava/interrogava-se João dos Santos. Se não sabe, investigue! Contudo, se você não tem graça e espírito de aventura – propriedades do jogo -, a investigação será maçuda, desgastante e pouco pertinente; quanto muito, acrescentará minúcias ao já sabido; é a triste e tristonha evolução na continuidade. Queremos novidade, ideias fracturantes; e não ideias aconchegadas. O verdadeiro fruto da investigação é a revolução do conhecimento. A melhor resposta, diz quem sabe, é outra pergunta. «Não sabes? Eu também não. Vamos ver» - é um pequeno trecho de uma sessão de psicanálise de João dos Santos com uma criança. (…) O saber feito vem nos livros. Como produzir conhecimento, isso aprende-se com mestres de carne e osso, alma e coragem, abertos à experiência, tolerantes à dúvida e sempre em busca de evidências ainda ocultas” (Matos, 2007:168).

A longa citação serve de mote a este capítulo e diz melhor do que eu diria da

dificuldade de nos despirmos da omnipotência técnica para admitirmos uma

posição de humildade que sabe do que não sabe, e sabe que precisa dos

saberes dos outros para procurar conhecer. E não me refiro apenas aos

saberes académicos de outras ciências, refiro-me também aos saberes

Page 181: As formigas e os carreiros

181

(experienciais, tácticos, transversais…) com que contactamos diariamente no

exercício da nossa actividade e que construímos para agir.

Eu posso ter lido muitos livros sobre «toxicodependências» e, por exemplo,

saber o que a evidência científica refere sobre o fenómeno, até posso ter

bastante experiência no trabalho com pessoas com dependências de

substâncias, mas quando estou com determinada pessoa que tem uma

dependência e para quem isso constitui um problema que precisa resolver, eu

assumo que quem sabe do seu problema é ela. Neste entendimento, a

informação pertinente é aquela que vem do sistema e que volta a ele para

produzir «tomada de consciência» e provocar possibilidades de mudança

endógena.

No meio académico, esta posição de «curiosidade» e de «não-saber» de

autores de variados campos do conhecimento que reconhecimente sabem

muito, sempre me fascinou, em contraste com outros posicionamentos de

sapiência de conhecimentos ou procedimentos, que pareceram inflacionados e

pouco úteis. Em relação aos contextos não académicos e próximos da vida das

pessoas, abundam actores e autores que, independentemente da sua

instrução, e dos papéis que desempenham também são «mestres de carne e

osso» com quem podemos aprender muito e construir novos conhecimentos.

No entendimento de Barbier sobre a formação de adultos como “laboratório de

práticas novas” (Barbier at al 1991:135), partilho uma concepção de fundo que

tem percorrido a experiência deste processo de investigação, ao procurar

entender como os adultos se formam. Um dos princípios definidos, nesta nova

epistemologia da formação, é o de que se aprende em todos os lugares e

circunstâncias da vida, intencionalmente ou não, sendo as aquisições

escolares formais (que continuam a validar os conhecimentos) apenas uma

parte reduzida do saber global (ser, pensar, fazer, sentir) que cada adulto

possui, desenvolve e constrói. Esta concepção é sobretudo uma crítica a uma

concepção de formação como «acumulação» de conhecimentos.

Atendendo ao significado da experiência na história pessoal e aos seus efeitos

motivadores e desencadeadores de novas aprendizagens num percurso de

construção de saberes (Dominicé, 1984), trata-se essencialmente de mobilizar

essa experiência num quadro conceptual de produção de saberes. Assim,

Page 182: As formigas e os carreiros

182

parte-se do conceito de que a produção da vida, através da apropriação dos

processos de formação, acompanha as mudanças e a produção da profissão

de assistente social.

Neste processo assumidamente complexo, utilizei a referência de um dos

autores contemporâneos que propõe uma transformação epistemológica para

questionar o fechamento ideológico e paradigmático das ciências – Edgar

Morin. Este capítulo, inspirado no seu livro “Os sete saberes necessários à

educação do futuro” (2000) está estruturado em três pontos: no primeiro tento

reflectir sobre o «conhecimento pertinente», abordando a formação dos

assistentes sociais, as competências e a articulação e produção de saberes.

No segundo, reflecte-se sobre os processos de construção identitária que estão

em relação com os percursos formativos e de aprendizagens nos contextos. No

terceiro, tento mobilizar, através do conceito de autoformação, algumas formas

de formação não formal para reflectir sobre as potencialidades de relação com

as aprendizagens dos assistentes sociais ao longo da vida.

Page 183: As formigas e os carreiros

183

3.1. O CONHECIMENTO PERTINENTE

Parto do pressuposto de que para enfrentar os problemas complexos com que

trabalhamos é necessário fazer recurso ao pensamento complexo, ao invés de

simplificar e tipificar as respostas, como parece ser uma das tendências actuais

que afectam o exercício profissional dos assistentes sociais.

Na etimologia da palavra «complexo» que vem do latim, temos o significado de

«aquilo que é tecido em conjunto», e esta perspectiva propõe-nos que (re)

comecemos a estabelecer as ligações que a ciência cartesiana separou.

Entendendo que as pessoas são seres que se expressam, que podem ‘fabricar’

os seus próprios pensamentos e que criam os seus próprios símbolos,

entende-se que no pensamento complexo, a totalidade é maior do que a soma

das partes. Pascal dizia, já no século XVII “Não se pode conhecer as partes

sem conhecer o todo, nem conhecer o todo sem conhecer as partes”. Esta

citação recorda-nos que é importante valorizar o avanço das ciências e do

conhecimento (em especial na linha do contributo de Thomas Kuhn) no modelo

formado pelo ensino disciplinar e ter a noção de que as diferentes «disciplinas»

científicas continuam a ter a sua pertinência em domínios do conhecimento

analítico e especializado. Contudo, a atenção de alguns cientistas para o que

existe «entre» as várias disciplinas e para as conexões entre as «partes»

começou a revelar que apesar da invisibilidade destes aspectos, seria

interessante constituir um outro movimento que evitasse a fragmentação e

juntasse, interligasse e contextualizasse os dados para construir concepções

da «realidade», enquanto olhares multidimensionais, interactivos e provisórios.

Assim, o «conhecimento pertinente» que me serviu de inspiração, é um

conhecimento que não mutila o objecto (Morin, 2000).

Apesar da valorização dos saberes experienciais e tácitos, reconheço que têm

sido essenciais as fontes de conhecimento científico que o Serviço Social tem

mobilizado e produzido. De acordo com o Collins Dictionary of Social Work

(Pierson e Thomas, 2010) distinguem-se três níveis de teoria no Serviço Social:

as teorias tomadas de «empréstimo» das Ciências Sociais; as teorias sobre os

sistemas de bem-estar e as teorias desenvolvidas pelos que trabalham em

Serviço Social e campos afins.

Page 184: As formigas e os carreiros

184

Tentei que neste processo de investigação o ensaio desta abordagem

multinível levasse em conta estas diferentes «camadas» de conhecimento.

Segundo esta fonte, é feita a distinção entre os campos de pensamento mais

clássico de Serviço Social e os campos de pensamento mais renovadores: os

primeiros (A e B) que enfatizam o poder do sujeito como variável determinante

para a acção e o Assistente Social como um agente neutro, com competência

técnica para fazer o controlo social, para redistribuir recursos, «reeducar» e pôr

os sujeitos a cooperarem com o sistema, preservando a sociedade, numa

intervenção fundamentalmente a nível micro; e os segundos (C e D) que

enfatizam o poder da estrutura como variável determinante da acção, numa

intervenção fundamentalmente a nível macro.

A - Teoria Psicanalítica e Behavorismo (Howe, 1996:52-53)

Acção centrada no método e na situação. O indivíduo deve adaptar-se ao meio. Prática profissional (sobretudo de caso e no modelo clínico) voltada para procurar a estabilidade.

B – Teoria dos Sistemas e abordagens centradas no cliente.

Acção centrada na pessoa como um todo e como meio para a dotar de competências que lhe permitam melhor

adaptação ao contexto. Prática voltada para a procura de sentidos. Abordagem psicologizante dos problemas

sociais.

C – Humanismo (no conceito de Ander-Egg, 1996:249 que o denomina «novo humanismo» e o opõe ao

humanismo clássico»).

Enfatiza a centralidade e capacidade de acção do homem sobre o mundo. Prática comprometida na

consciencialização.

D - Serviço Social Estrutural e Serviço Social Crítico

Enfatiza as instituições como contexto de trabalho do AS e focaliza a totalidade social. Serviço Social com

projecto colectivista de mudança inspirado na escola marxista. Idealmente, nesta perspectiva o Serviço Social

só poderia actuar de fora das instituições para não favorecer e reprodução da ordem existente.

Page 185: As formigas e os carreiros

185

Esta «arrumação» conceptual tem as suas virtualidades, embora seja

importante fazer notar que, nem do ponto de vista teórico nem do ponto de

vista das práticas profissionais, existe unanimidade sobre ela.

Eventualmente as suas maiores vantagens situam-se na clarificação das

velhas dicotomias e tensões entre o foco no indivíduo e o foco na estrutura,

entre o compromisso com a estabilidade e a conformidade social e o

compromisso com a mudança; e também, na acepção de que os modelos e as

realidades são «coisas» bem distintas e as práticas são bastante mais

complexas e nelas se misturam, seguramente, algumas destas perspectivas.

Mas centrando na formação dos assistentes sociais, será importante evidenciar

também algumas destas tensões e as relações entre uma abordagem mais

centrada no indivíduo e na sua capacidade de desenvolvimento e adaptação (a

aprendizagem) e uma abordagem mais societal, mais política, centrada nas

estruturas e instituições sociais (mudança social), sabendo que me importa

criar pontes que permitam ultrapassar estas dicotomias. Segundo esta

perspectiva, é possível ultrapassar as restrições das concepções baseadas

numa abordagem racional da ciência, ou seja, no paradigma positivista que

considera que o conhecimento se baseia em certezas, e em referências fixas e

universais, procurando o conhecimento «objectivo» e o «domínio do mundo ao

serviço do desenvolvimento do homem».

Nesta linha, saliento quatro correntes de pensamento transversais às ciências

sociais com grande influência no Serviço Social – o Funcionalismo, o

Estruturalismo, o Construtivismo e o Interpretativismo. Segundo a

categorização mencionada por Amaro (2009) do cruzamento entre estas

correntes de pensamento e os dois eixos herdados da Teoria Social (o que vai

da «acção/subjectivo» à «estrutura/objectivo» e o que vai do

«conflito/mudança» à «ordem/regulação»), emergem quatro campos teóricos

onde se podem inscrever as diferentes teorias do Serviço Social, como se pode

visualizar na figura seguinte.

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Figura 1 - Campos paradigmáticos das teorias do Serviço Social

Fonte: com base em Howe - David Howe, num artigo sobre a evolução da prática do Serviço Social da

modernidade à pós-modernidade, aponta que a emergência do serviço social como profissão vem

responder a um dos projectos da modernidade: inscrever disciplina e ordem, progresso e crescimento à

condição humana (1996:81).

O conjunto de problemas que enfrentam hoje as nossas sociedades cria a

oportunidade para reflectir e clarificar não só as teorias e os modelos, mas

também a perspectiva da mudança social e, por maioria de razão, o processo

de aprendizagem para chegarmos lá.

“A prática da aprendizagem da nossa saída está dependente da capacidade de relacionar a aprendizagem individual e colectiva, com a transformação institucional e organizacional, enquanto o futuro da educação de adultos está dependente da sua capacidade de estabelecer esta relação de nível teórico e conceptual” (Finger e Assún: 2003, p.150).

Paradigma

Alternativo

Conflito/Mudança

Estruturalismo

D Humanismo

C

Acção/

Subjectivo

Estrutura/

Objectivo

B A

Funcionalismo

Interpretativismo

Paradigma

Vigente

Ordem/regulação

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187

Mesmo que de uma forma sumária pode-se, assim, constatar complexos

movimentos de ideias e construções conceptuais, em torno de eixos (Norte

versus Sul), de tendências (Utilitaristas versus Políticas), de modelos

(centrados no desenvolvimento individual ou na mudança social), de conceitos,

de níveis e de prioridades, só para evidenciar alguns dos aspectos sobre que

convergem ou divergem os diferentes autores e abordagens.

No entendimento de que o conhecimento não é um espelho da ‘realidade’, mas

sim uma espécie de tradução seguida de reconstruções, torna-se

particularmente importante uma «ética do género humano» que ligue as

pessoas como indivíduos com as sociedades e com a espécie humana. Edgar

Morin defende a interligação destes três elementos desde a publicação da sua

obra «O paradigma perdido: a natureza humana» (1973).

A concepção complexa do género humano comporta esta tríade, num ideal de

desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações

comunitárias e do sentimento de pertença à espécie humana. No pensamento

de Morin (1973) é articulado o lado biológico e natural do homem com o seu

lado cultural, definindo uma natureza que não se esgota nele, que é

simultaneamente singular e universal, e que também se pode encontrar em

múltiplas dimensionalidades que se interconectam. Assim, a concepção de

homem que se adopta parece ser fundamental para o desenvolvimento das

formas de interacção e de co construção das diferentes leituras sobre o que se

vive e o que se pensa.

Nesta perspectiva, a capacidade do ser humano de se regenerar

constantemente a partir da sua organização (auto-eco-organização) é uma das

facetas da natureza humana que Morin salienta, a par com a sua

multidimensionalidade e o entendimento de que a humanidade é uma

«reinvenção contínua» e dependente da interacção do homem com o mundo.

Page 188: As formigas e os carreiros

188

- FORMAR ASSISTENTES SOCIAIS

Formar assistentes sociais parece ter estado historicamente no centro de

tensões a que não foi alheio o facto de o Estado não ter incluído esta formação

na oferta formativa pública de nível superior, deixando a determinadas

entidades privadas (mais ou menos ligadas à Igreja) essa responsabilidade. A

constituição de uma formação composta por abordagens de vários campos

científicos que parecia uma desvantagem, pode constituir, na perspectiva

utilizada nesta investigação uma vantagem de posicionamento a partir das

zonas fluidas e «entre» as várias ciências.

O que será curioso verificar, para além das expectativas sociais existentes na

profissão e do seu mandato e legitimidade de intervenção, são as múltiplas

formas como os profissionais «deram a volta» a esse mandato e construíram

trajectórias profissionais em busca de significado para a sua «praxis».

Fazendo, muitas vezes, aprendizagens que o ensino não propunha, em

contextos e com interlocutores novos e não valorizados pelo conhecimento

académico, como refere o entrevistado Jaime (E JF7):

“A outra dimensão importante é que nós consigamos desenvolver equipas que tenham uma perspectiva reflexiva, ou seja, que se faça reflexão sobre aquilo que fazemos na prática. E para isso temos de fazer o exercício de escrever sobre a nossa prática. Quando pensamos em sistematizar, a nossa prática leva-nos a reflectir sobre ela e ao reflectir sobre ela, envolvemos os outros que estão à nossa volta, nessa reflexão, porque nós próprios pomos questões ou levantamos questões para as quais não conseguimos explicações... e aí também quando me envolvi na escrita de alguns artigos, escrevendo sobre várias perspectivas, levaram-me também a esse desenvolvimento e isso foi enriquecedor do ponto de vista da formação, do conhecimento. Porque também temos que integrar outras fontes, temos que ver outros métodos, outras formas de fazer...” Jaime (E JF7)

Contudo, o mesmo colaborador desta investigação, valoriza o ensino formal:

“Eu penso que a formação curricular, pós-graduada, da qualificação, toda ela é importante, do ponto de vista de nos dar um método, uma disciplina, um rigor, e uma coerência científica dentro da área em que estamos a trabalhar e a intervir; e dá-nos uma terminologia de linguagem comum para trabalharmos dentro daquela temática e daquele problema. Acho que aí sou defensor dessa formação estruturada, pensada, fundamentada e que seja de qualificação, que qualifica para, para ir mais longe – dá elementos para que, o profissional, se quiser, pode avançar muito mais para além daquilo que está a fazer. “Jaime (E JF7)

Page 189: As formigas e os carreiros

189

Reflectir sobre a formação dos assistentes sociais passará necessariamente

por pontuar a institucionalização dessa formação e para tal, em complemento

aos conteúdos já abordados no capítulo II deste trabalho, explicitar que segui a

genealogia da Professora Doutora Maria Augusta Negreiros (1998). Segundo

esta autora, o Serviço Social em Portugal surge enquanto área da formação

académica, em 1935, após as tentativas ligadas à Saúde e à Educação nos

anos 30 do século passado atrás mencionadas, com a criação da 1ª Escola –

Instituto de Serviço Social de Lisboa, tendo por suporte jurídico a Associação

de Serviço Social, sob tutela do Patriarcado de Lisboa. Posteriormente, são

criadas a Escola Normal Social de Coimbra, em 1937, pela Junta da Província

da Beira Litoral e, o Instituto de Serviço Social do Porto, em 1956, pela

Associação de Cultura e Serviço Social, sob tutela da Diocese do Porto.

O ensino de Serviço Social parece ter vivido uma tensão recorrente entre as

ideologias vigentes e as correntes científicas em presença, mas onde

prevaleceu por várias épocas e circunstâncias o compromisso com as

ideologias. As três Escolas existentes (Institutos Superiores de Lisboa, Porto e

Coimbra) são de natureza privada, o ensino nelas ministrado só em 1961 é

considerado superior e passarão quase três décadas até ser reconhecido o

grau de licenciatura para essas formações.

Em 1974, num quadro pós-revolucionário, os três Institutos exigem a sua

integração nas estruturas universitárias públicas; mas este processo de luta

pela “integração nas universidades” e pela “Equiparação a Licenciatura para

efeitos profissionais”, desenvolve-se ao longo de mais de uma década, sem

atingir o objectivo pretendido. Em 1985, o Instituto Superior de Serviço Social

de Lisboa complementa esta estratégia decidindo assumir-se como Instituição

de Ensino Superior Privada e vindo a constituir-se em Cooperativa de Ensino

Superior, um ano depois. O Instituto do Porto desenvolve um processo

semelhante - significando esta estratégia que só então a formação em Serviço

Social se desvincula formalmente das antigas estruturas de suporte jurídico-

legal que lhe deram origem, o que revela uma pertença de cerca de 50 anos

que não pode deixar de ter as suas marcas.

Sob o ponto de vista do nível académico da formação, os Cursos Superiores de

Serviço Social tiveram Planos Curriculares de quatro anos até 1985/86. Apesar

do seu nível de formação superior, do seu tempo de duração curricular e, de

Page 190: As formigas e os carreiros

190

terem os mesmos requisitos de acesso que o ensino universitário, até 1989

apenas conferiam um diploma profissional.

A partir de 1985, os Institutos de Lisboa e Porto, encetam uma estratégia no

terreno académico – científico, no sentido da obtenção do grau de Licenciatura,

propondo-se prolongar para cinco anos o plano curricular e qualificar

cientificamente o corpo docente de Serviço Social, através de Pós-Graduação

– Mestrados e Doutoramentos (na ausência de docentes com estas

habilitações e de formações pós-graduadas em Serviço Social nas

Universidades Portuguesas foi realizado um protocolo de intercâmbio com a

Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo, no Brasil).

Os Institutos de Lisboa e Porto propõem, dada a não existência de peritos de

Serviço Social na “Comissão de Especialistas” submeter os Planos de Estudos

Curriculares a diversas Universidades Internacionais - Michigan State

University, University College Dublin, University Minnesota, Fachochschule

Munchen, Pontifícia Universiadde Católica de S. Paulo, com o objectivo de que

estas se pudessem pronunciar quanto ao nível académico e científico da

formação. Todos os pareceres foram inequívocos quanto à qualificação

científica dos Planos de Estudos. Contudo, as dificuldades deste processo

foram muitas, e apesar da avaliação científica dos Planos de Estudos por

Universidades Internacionais e do desenvolvimento de uma estratégia de

natureza política, foi necessário mobilizar o meio académico, o corpo

profissional e sensibilizar a opinião pública para atingir a meta de obter a

atribuição do grau de licenciatura.

Esta alteração teve repercussões na estrutura e reconhecimento da formação,

mas também na estrutura orgânica das instituições que separaram os três

poderes académicos (administração, pedagógico e científico) com a respectiva

divisão de competências; no reconhecimento da autonomia científica da

Instituição académica e na exigência de qualificação dos docentes com os

graus académicos universitários, o que veio a constituir recentemente uma

“massa crítica”, qualificadora da formação e das instituições académicas.

O Curso de Licenciatura em Serviço Social, iniciado em 1985/86, tem até

2001/02 uma duração de cinco anos. A partir desta data e, seguindo as

orientações de Bolonha impostas pelo Ministério da Educação, a Licenciatura

Page 191: As formigas e os carreiros

191

voltou a ficar com quatro anos, a partir do ano lectivo 2002/03. Mas a

concepção do perfil do Assistente Social a formar pelos Institutos Superiores de

Serviço Social matem-se sem alterações e define este profissional como

aquele que intervém no sentido de facilitar/ produzir mudanças sociais,

actuando especialmente nas inter-relações Homem – Sociedade, em ordem a

que possam ser alterados / melhorados determinados problemas,

necessidades e situações sociais.

Da análise do plano de estudos de cinco anos do ISSSL, pode constatar-se a

concepção de que a intervenção dos futuros profissionais consiste em

desenvolver capacidades sociais, individuais e colectivas, a nível cognitivo,

relacional e organizativo, sendo reforçada a componente teórica em três níveis:

i) nuclear, incluindo todas as disciplinas da área de Serviço Social; ii)

estruturante, integrando as áreas de Sociologia, Economia e Psicologia; iii)

funcional ou operativo, constituído pelas disciplinas de carácter instrumental,

para a intervenção no âmbito do Serviço Social.

“A formação estrutura-se nos 2 primeiros anos com uma forte componente teórica. Nos 3º e 4º anos, a par de uma componente teórica, introduz-se a componente teórico-prática a partir do treinamento e análise da intervenção profissional, através de estágios curriculares e seminários e, no 5º ano, aprofunda-se a componente teórico – analítica da intervenção” (Negreiros, 1998: 28).

Assim, a Investigação em Serviço Social (com relevo em termos curriculares)

tem pouco mais de uma década e só então é introduzido o ensino da

Administração, da Supervisão e da Filosofia e Deontologia em Serviço Social.

Este plano de estudos revela também uma abertura formativa ao espaço da

Comunidade Europeia e à Interacção Cultural nas Sociedades Complexas.

A componente experiencial e a «imersão» em vários contextos sociais e

organizacionais através de estágios durante quase toda a formação dos

assistentes sociais têm constituído um eixo marcante da formação, não só nos

respectivos processos de aprendizagem, como também na socialização com

profissionais seniores e na capacidade de estabelecer contactos e redes

relacionais, que tinham um importante papel na colocação profissional dos

profissionais recém-formados. Sobre esta componente diz Augusta Negreiros,

Page 192: As formigas e os carreiros

192

“Da componente teórico-prática da formação fazem parte os estágios curriculares, enquanto instâncias privilegiadas para a intervenção profissional com a qual se visa promover o desenvolvimento de estratégias de acção, apropriação e utilização integrada dos conteúdos teórico-operativos das diferentes áreas” (Negreiros, 1998: 29).

Esta foi claramente uma vantagem distintiva da formação se entendermos

como refere Josso que:

“…o que faz a experiência formadora é uma aprendizagem que articula, hierarquicamente, saber-fazer e conhecimentos, funcionalidade e significação, técnicas e valores num espaço-tempo que oferece a cada um a oportunidade de uma presença para si e para a situação pela mobilização de uma pluralidade de registos” (Josso, 2002: 28).

Esta «pluralidade de registos» tem sido outra das características encontradas

quer na análise bibliográfica e documental realizada, quer ainda no testemunho

dos assistentes sociais colaborantes desta investigação.

Se atendermos ao Guia oficial de Caracterização Profissional

(DGERT/MSST/GOV, 2004-05) podemos ler que:

“Aqueles que estiverem interessados em enveredar por esta área profissional podem optar pela licenciatura em Serviço Social, que forma os assistentes sociais, (...). A formação base assenta num conjunto de disciplinas da área científica de Serviço Social: Teoria do Serviço Social, Métodos e Técnicas de Investigação Social, Política Social, Serviço Social de Grupos ou Serviço Social de Comunidades ou, ainda, Desenvolvimento Comunitário. A sua formação inclui também disciplinas das ciências sociais e humanas como a sociologia, a psicologia, a antropologia, a economia ou o direito.”

Pode verificar-se na divulgação oficial de alguns cursos (por exemplo, o da

Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra,

criado em 2005) a expressão dos seguintes princípios orientadores:

“…interdisciplinaridade científica; autonomia do estudante na construção do seu plano formativo; articulação coerente entre unidades curriculares e entre semestres (progressivamente mais práticos e orientados para conhecimentos específicos do domínio do Serviço Social); incremento de estratégias e metodologias orientadas para a aprendizagem prática e reflexão crítica; avaliação ‘on going’ ao plano de estudos e aos processos formativos.”

Quanto às competências chave a adquirir neste 1º ciclo de formação em

Serviço Social, aparecem identificadas como transversais (cognitivo-culturais,

prático-instrumentais e interpessoais) e específicas (planeamento e avaliação,

acompanhamento e orientação, mediação social, comunicacionais e

gestionárias).

Page 193: As formigas e os carreiros

193

No quadro da actual recomposição dos sistemas educativos, onde esta

formação é ministrada em mais de vinte instituições de ensino superior e

politécnico, torna-se particularmente difícil fazer a análise da situação

contemporânea da formação inicial dos assistentes sociais, pelo que recorri a

algumas fontes indirectas de estudos realizados por outros colegas.

É interessante verificar, fazendo recurso ao trabalho da tese de doutoramento

de Inês Amaro (2009), que o «modelo formativo» que emergiu da evidência

empírica trabalhada por esta colega foi o de “formações demasiado tecnicistas

e pouco reflexivas, tanto teórica como eticamente” (2009:375).

Na sua parte conclusiva, a autora identifica nove desafios que se colocam aos

profissionais, respectivamente: «Desafio da reflexividade e reprocessamento»,

«Desafio da singularidade versus atomismo social», «Desafio da resposta às

necessidades de segurança», «Desafio da prevenção e da proactividade»,

«Desafio do empreendedorismo», «Desafio da humanização», «Desafio da

instabilidade dos actores e da intervenção territorial», «Desafio do modelo

formativo». Em relação a este último desafio «do modelo formativo», são

salientadas algumas preocupações, nomeadamente com o aumento

exponencial da oferta formativa, com a diversidade de perfis, com o não

controle sobre a qualidade da formação e com a perda de características

identitárias – relacionada com a reestruturação dos currículos formativos ao

abrigo do processo de Bolonha, e com a consequente diminuição de tempo de

formação e maior fragilidade da formação inicial.

No entanto, e apesar da existência de um risco de que o Serviço Social se

torne numa ‘engenharia social’ e/ou deixe que se acentue um processo de

desprofissionalização, o que pretendo salientar sobre o processo de

institucionalização da formação (não obstante as suas tensões, paradoxos e

fragilidades) são aspectos como:

a importância da qualidade da formação para o reconhecimento da

atribuição do grau de licenciatura (anos 70/80/90) versus a actual

pulverização de formações e entidades formadoras sem «guide lines» de

garantia e controlo de qualidade formativa – conforme tem sido discutido na

Associação de Profissionais de Serviço Social e em artigos de vários

autores contemporâneos – ver Revista «Locus Soci@l» (2009)

Page 194: As formigas e os carreiros

194

a importância da componente teórico-prática e humanista nos processos de

ensino/aprendizagem dos assistentes sociais com um grande peso na

construção identitária versus uma tendência de academização com

incidência prioritária nas medidas de política social e respectivos contextos

de intervenção, que faz apelo a uma maior funcionalização;

as formas como a recente qualificação académica da profissão tiveram

impacto nos profissionais e no mercado de trabalho, interferindo na

legitimidade e no estatuto da profissão, na definição de competências para

o exercício profissional, na estruturação das «carreiras» profissionais e na

grelha salarial;

a constituição em curso de um campo científico próprio que produz

conhecimento sobre a profissão, os profissionais, os campos de intervenção

e o «mundo» na recente (e crescente) produção pós-graduada em/de

Serviço Social.

Neste âmbito, a formação contínua, recentemente academizada, tem assumido

particular relevância aproveitando da dinâmica criada primeiro, em torno dos

Institutos de Serviço Social e actualmente, em torno de várias faculdades e

institutos politécnicos espalhados pelo país, onde é leccionado Serviço Social.

Coloco a hipótese de que esta nova fase de ampliação, diversificação e

miscigenação dos contextos da formação inicial por várias Faculdades e

Institutos Politécnicos, apesar de colocar problemas importantes à construção

identitária, também pode constituir oportunidades – como, por exemplo, a de

colocar esta área de formação em contextos de interacção formativa com

muitas outras áreas, o que pode contribuir para um pensamento crítico e

renovado sobre a profissionalidade, sobre a qualidade da formação inicial e

contínua e sobre os desempenhos profissionais.

Volto novamente a Augusta Negreiros para lembrar que o Serviço Social,

enquanto categoria social que é, precisa de “tornar-se também ‘sujeito’ da sua

própria trajectória (…) através das articulações que estabelece, da mobilização

e luta que desenvolve nesse campo, e da construção e análise que elabora

através da explicitação dos saberes e das práticas” (Negreiros, 1998: 32).

Esta atenção a si próprio como «sujeito da sua trajectória» pode permitir aos

assistentes sociais ir construindo objectos de conhecimento cada vez mais

complexos e continuar a produzir o «conhecimento pertinente» onde a unidade

Page 195: As formigas e os carreiros

195

e a multiplicidade, o individual e o social, sejam possíveis de ser abordados nas

suas multidimensionalidades e interacções. E a pertinência deste

conhecimento explicitado tem razões que ultrapassam a sua profissionalidade

e que se prendem com o compromisso ético-político que estabelece com as

pessoas com quem trabalha e com as instituições em que intervém.

- AS COMPETÊNCIAS

Uma possibilidade complementar de entendimento sobre a formação diz

respeito à implicação do modelo da competência face à profissão. Este domínio

do conhecimento, tem um vasto conjunto de autores na área das Ciências da

Educação, que constituiu parte do meu referencial e que tentei mobilizar para o

Serviço Social, de forma crítica e enquanto possibilidade de fortificar a relação

entre os saberes de diferentes proveniências, bem como o seu processo de

mobilização nas situações concretas.

Defende-se neste trabalho que a abordagem das competências “pode

contribuir para melhores posicionamentos na sociedade e na vida, para uma

maior participação nos processos de decisão e para a decisão fundamentada

nos processos de mudança” (Pires, 2004: 437), mas sem com isso pretender

defender uma das tendências em voga que preconiza a redução do papel da

educação/formação à aquisição de competências orientadas para o mundo do

trabalho.

As competências remetem-nos para um conjunto dinâmico de saberes (saber

cognitivo, saber operacional e saber relacional) e capacidades (cognitivas,

sociais e físicas), mobilizáveis no exercício concreto da actividade profissional.

Esta perspectiva do conceito de competência integra aspectos cognitivos,

relacionais, interpretativos, intencionais e é uma visão contextualizada e

processual, que só pode ser compreendida a partir da relação estabelecida

com o meio envolvente. Numa abordagem holística, o conceito de competência

apesar de polissémico, ”integra o ponto de vista pessoal, a perspectiva pessoal

do papel profissional que desempenha, da sua capacidade de o desenvolver, e

os conhecimentos nos quais se alicerçam a sua identidade profissional e o

desempenho” (Pires, 2004: 435).

Page 196: As formigas e os carreiros

196

Para que se tenha competência (entendida como um processo e não como um

estado) é necessário que se disponha de um repertório de recursos, sendo

necessário que estas capacidades estejam em acção e em transformação.

Nesta perspectiva, a profissão é (conceptualmente e numa dada realidade),

associada à especialização para um trabalho num contexto durável. Mas esta

«especialização» quando se trata de trabalho social é algo que faz apelo à

natureza interactiva e composta dos saberes, das competências e do

conhecimento que vai sendo construído ao longo da vida.

Malcolm Payne distingue com aparente simplicidade que “o conhecimento é

sobre compreender uma situação e as competências, são sobre fazer algo com

ela” (Payne, 2006:70) e dá contributos importantes não só para problematizar

os conceitos, como para identificar algumas tipologias. A título ilustrativo

referem-se cinco potenciais fontes de conhecimento no Serviço Social que este

autor identifica: 1) conhecimento organizacional; 2) conhecimento prático; 3)

conhecimento da(s) politica(s) comunitária(s); 4) conhecimento de pesquisa; 5)

conhecimento de utilizador e de percurso, ganho com a experiência de utilizar

serviços e reflectir sobre eles.

Seja qual for o ângulo privilegiado, as «formas» de entender as competências

podem assumir vertentes complementares que compõem o perfil profissional

do assistente social, com todas as variáveis individuais que se possam

conjugar. Sobre as competências de Serviço Social, Payne (2006) descreve

três formas pelas quais podem ser vistas:

como actividades realizadas pelos profissionais, referindo-se tanto às

‘ferramentas para decidir o que fazer’ como ‘às capacidades para entender

diferentes aspectos de uma situação e reflectir criticamente’, passando pela

‘gestão da ajuda, trabalho comunitário, aconselhamento, competências

interpessoais e de negociação’;

como capacidades pessoais dos assistentes sociais, incluindo aspectos

como as competências nas relações humanas, na análise e na realização

do planeado, na comunicação, na liderança e na coordenação, na resolução

de problemas, no trabalho com outros e no desenvolvimento pessoal e

profissional;

Page 197: As formigas e os carreiros

197

como competências envolvidas nas tarefas do trabalho social, quer as mais

especializadas (levadas a cabo na protecção de menores ou na saúde

mental) quer as mais genéricas, como o controlo social, o aconselhamento

ou a protecção de pessoas em situação de fragilidade.

Não obstante a diversidade de autores que na literatura de Serviço Social

(sobretudo anglo-saxónica e norte-americana) abordam as competências

necessárias ao exercício profissional, também existe uma perspectiva crítica

que argumenta que este modelo se focaliza mais em áreas de especialidade

apropriadas sobretudo para os contextos de trabalho burocrático (e menos em

desenvolver vias criativas para os futuros requisitos de trabalho); que encoraja

a fragmentação em vez da integração; que pensa em formas convergentes de

exercer focadas nos resultados (em vez de promover a criatividade nos

processos); que se foca nos aspectos mensuráveis do desempenho; que ao

focar-se em técnicas e instrumentos dá menos importância aos valores, à

avaliação crítica e ao pensamento complexo; e que coloca a ênfase em adquirir

técnicas específicas, em vez de desenvolver capacidades para uma reflexão

crítica. Esta perspectiva crítica inscreve-se também na prudência com que

alguns autores de outras áreas científicas abordam os modelos das

competências.

Wittorsky (1998) por exemplo, refere que sabendo que os modelos de

organização do trabalho condicionam o tipo de competências desenvolvidas

para determinado trabalho, as competências produzidas e necessárias (aos

modelos prescritivos) são geralmente utilizadas em situações rotineiras e

tendem a tornar-se específicas dos contextos onde são mobilizadas. Deste

modo, dimensões fundamentais como a autonomia, a reflexividade, o

pensamento crítico e a abertura, são excluídas dos modelos de competências,

adjectivados de ‘instrumentais’ e ‘pragmáticos’.

Por outro lado, estando o trabalho em mudança tanto nas formas de que se

reveste (tipo de contrato, sistema hierárquico, espaço-tempo), como nos seus

conteúdos (complexificação dos sistemas, actividades de controle, gestão da

incerteza) qualquer que seja o emprego ou campo de actividade, a

educação/formação não se pode continuar a alhear da mutabilidade dos

contextos.

Page 198: As formigas e os carreiros

198

No paradigma da pós-modernidade é atribuído grande peso à

responsabilização individual, remetendo a educação/formação para uma

missão de preparar os futuros profissionais para se posicionarem, face a

lógicas de emprego, mutantes, incertas e competitivas e relaciona-se as

condições de vida das pessoas com as ‘competências’ que foram, ou não,

capazes de desenvolver para se tornarem social e economicamente ‘incluídas’.

A propósito lembra-se a noção de «falsa racionalidade» que Morin (2000)

identifica como um dos problemas mais graves do século XX pois não só se

revelou incapaz de travar os problemas mais graves da humanidade, como

restringiu a compreensão, a reflexão e a visão de longo prazo. Assiste-se, por

outro lado, às transformações de modos de vida e de produção e a mudanças

profundas dos quotidianos que re-colocam a necessidade de responder (ou

antecipar) às exigências dos processos de transformação social.

Autores tão diferentes como Pagès (1967), Sainsaulieu (1988, 1997) ou Dubar

(1997a) salientam a importância das aprendizagens culturais produzidas no

seio das organizações, no contexto de trabalho e no interior dos grupos a ele

ligados, para a formação de identidades no trabalho.

O contexto de trabalho constitui assim um importante espaço-tempo de

produção e de recomposição de saberes que, no entanto, tende a não ser

valorizado como recurso pelas próprias organizações.

Já Lévi-Strauss (1962) se referia a saberes que se transfiguram em actuações,

mais ou menos originais, contingentes, que resultam de um trabalho «de

bricolage» e exigem uma centralidade que se exprime na sua capacidade de

estabelecer relações entre saberes dispersos. E Bernard Charlot (2002)

entende que os saberes pertinentes para o trabalho resultam de aproximações

epistémicas, identitárias e sociais onde se evidencia o significado construído e

o sentido atribuído, emergentes da aproximação ao mundo, aos outros e a si

próprios.

As competências ficam, então, neste território do «saber como se faz» sendo

que a questão mais complexa se coloca neste «saber» que não é linear nem

listavel, e que mais do que transmitido é aprendido, experimentado e reflectido

e se operacionaliza através da mobilização de saberes e experiências de

muitos tipos para responder a situações complexas e contextualizadas. Na

expressão de Dodier (1995), os contextos de trabalho são «arenas de

Page 199: As formigas e os carreiros

199

habilidades» nas quais os actores se colocam à prova e se revelam, remetendo

para um lugar importante a produção e o reconhecimento de saberes. Contudo,

também a competência colectiva, noção esta que “reenvia à possibilidade de

construir modos operatórios e modos de acção colectiva inéditos que tendem a

rearticular as posições dos diferentes actores que fazem parte dos grupos”

(Courtois at al, 1996: 177) é actualmente valorizada sobretudo através das

sinergias criadas pelo trabalho em grupo e/ou em equipa.

Distinguindo os saberes individuais (como aqueles que são requeridos para o

lugar, reconhecidos por diploma, que permitem determinada codificação social

e que representam saberes potenciais para um trabalho prescrito) dos saberes

colectivos (como aqueles que são organizados e coordenados para agir em

função de um objectivo, que corresponde muitas vezes à resolução de

situações novas num dado tempo e lugar) esta ‘competência colectiva’ aparece

intimamente ligada a uma ‘identidade colectiva’ que permite que os grupos se

caracterizem por valores e afectos comuns, produzidos na acção colectiva –

entendida esta ‘acção-colectiva’ como a concretização “de uma lógica

interactiva de construção de saberes e de mobilização desses saberes nas

práticas” (Courtois at al, 1996: 180), onde se tende a integrar o espaço da

formação e do trabalho. A dimensão comunicativa e a valorização que os

actores atribuem à partilha de saberes e de dúvidas, reforçam esta dinâmica

entre trabalho e formação.

- A ARTICULAÇÃO E A PRODUÇÃO DE SABERES

Adoptei como um dos eixos central desta pesquisa, as questões relativas à

produção e reconhecimento de saberes de diferentes proveniências

(nomeadamente os teóricos e práticos) no exercício profissional dos

Assistentes Sociais. E, se na generalidade é bastante tensional a teia de

concepções e relações entre formação inicial, trabalho, formação ao longo da

vida, aprendizagens e produção de conhecimento, no caso particular do

Serviço Social essa teia parece ainda mais tensa, no suposto de a produção de

conhecimento ter sido uma constante problemática; muito embora tenha sido

Page 200: As formigas e os carreiros

200

esse mesmo conhecimento específico que contribuiu para a sua distinção e lhe

permitiu ganhar poder sobre o território social da sua ocupação.

Ao reflectir sobre essas relações, tensas e eivadas de contradições e tentativas

de domínio, entre saberes provenientes das teorias e saberes situados na

prática profissional confrontei-me com a necessidade de distinguir «prática» de

«acção». Entendendo a acção como o conjunto de comportamentos

observáveis que emergem da prática (Jarvis, 1987) entende-se, por sua vez, a

prática como um sistema complexo de interacções, ocorridas num dado meio,

que por sua vez enquadra a acção e a contextualiza com um conjunto de

símbolos, através dos quais lhe confere uma significação.

A prática implica a ocorrência de uma experiência e apela à produção de novos

saberes, na medida em que é um campo de interacções, de conflitos, de juízos

de valor, de jogos de poder e de transformações pessoais e colectivas. Como

refere Schon (1996) existe um saber oculto no agir profissional que só a prática

permite formalizar.

A reflexão na acção e sobre a acção, a que se refere Schon (1996) apela a

uma relação dialéctica entre saberes teóricos e saberes adquiridos na acção.

Esta tensão entre uma «lógica de continuidade» e uma «lógica de ruptura» é

algo que muitos assistentes sociais conhecem bem, com tentativas mais ou

menos bem resolvidas, de as articular. A este respeito, Canário refere que:

“A ideia que hoje tende a ser prevalecente, no campo das teorias da formação, nomeadamente da formação de adultos, conferindo uma importância decisiva aos saberes adquiridos por via experiencial, e ao seu papel de ‘âncora’ na produção de saberes novos, procura articular uma lógica de continuidade (sem referência à experiência anterior não há aprendizagem), com uma lógica de ruptura (a experiência só é formadora se passar pelo crivo da reflexão crítica) ” (1999:111).

Malcolm Payne no seu pragmatismo anglo-saxónico refere que o Serviço

Social descreve-se na sua narrativa interna, como um trabalho interpessoal,

uma prática. E ‘prática’ para este autor quer dizer, pelo menos, duas coisas: é

uma convenção, um padrão ou uma aproximação às coisas que o Serviço

Social faz e simultaneamente é uma ‘prática’, é algo provisório, é como a

pesquisa de um músico ou um improviso de um músico de jazz.

Esta ‘fluidez’ do Serviço Social articulada entre a continuidade e a ruptura,

entre a resposta às convenções e o improviso, é uma especificidade mas

Page 201: As formigas e os carreiros

201

simultaneamente produz incómodo nos profissionais na medida em que, por

um lado, têm maior reconhecimento nas suas práticas mais tradicionais e, por

outro, têm maior flexibilidade e incerteza na intervenção interpessoal e

simbólica, onde a utilização de si, do (s) outro (s) e do contexto são

ferramentas a ter em conta num trabalho com um grande peso simbólico.

Contudo, Payne clarifica que:

“O que os Assistentes Sociais fazem e, como eles interagem com outros, é flexível e variado, porque reflecte a variabilidade social e humana. Mas os seus instrumentos da prática – conhecimento, competências, objectivos de compreensão e valores – são passíveis de clarificação, coerência e consistência “ (Payne, 2006: 56).

Este posicionamento de «clarificação, coerência e consistência» dos

instrumentos da prática do Serviço Social pode colidir como uma tendência

organizacional contemporânea em que vários actores prefeririam aumentar a

previsibilidade (nomeadamente os gestores), numa meta neo-taylorista de

previsão e descrição de procedimentos a seguir pelos trabalhadores sociais.

Este modo de intervenção social prescrita (designada em muitas organizações

como «processos de qualidade») prossegue evidências de resultados,

sobretudo quantitativos e tem adeptos nos serviços comprometidos com

determinados modelos de gestão organizacional. Mas podem encontrar-se

adeptos tanto no meio académico como nos profissionais interventores: os

primeiros porque, por vezes, formulam as concepções teóricas em voga para

«aplicação» no terreno e retiram benefícios, entre outros, da facilidade de

acesso a dados de intervenção e caracterização de populações e fenómenos

sociais e, os segundos, porque se sentem mais seguros com a orientação de

‘guiões de práticas’ e aumentam o sentimento de controlo sobre os processos

de intervenção, diminuindo a incerteza e aumentado a noção de rigor.

Por outro lado e, com alguma frequência, a prática quotidiana não requer dos

próprios assistentes sociais que pensem e/ou definam os seus saberes

próprios, o que tem contribuído para tomar por garantido um conhecimento

‘não-dito’. Alguns profissionais também agem como se a prática se reduzisse

aos desempenhos observáveis e como se o conhecimento adquirido em

formação fosse «aplicável» ou «transferido» para essa mesma prática.

Page 202: As formigas e os carreiros

202

Os saberes práticos não podem ser entendidos como um simples meio de

adaptação dos conhecimentos às realidades e aos contextos, mas sim como

um meio de reaprender de outra forma e de assimilar os conhecimentos

anteriores através da sua mobilização na acção (Barbier, 1996). Este autor

refere ainda a coexistência de dois saberes teóricos: um saber normativo e um

saber epistemológico. E se as relações entre os saberes da acção, aqueles

que os interventores fazem nascer no dia-a-dia, e os saberes pedagógicos e

normativos são relativamente fortes, pelo contrário as relações com o saber

científico são muito mais ténues, ou inexistentes.

Por sua vez, o saber pedagógico ao visar a transmissão e ao fazer abstracção

de numerosos aspectos da prática, em particular do que ela tem de táctica,

constitui como que uma ilustração do saber prático e, deste ponto de vista, é

um saber teórico. O saber normativo, nas suas formas mais elaboradas,

propõe-se como um quadro teórico (no sentido doutrinal) para a prática, pelo

que ambiciona canalizar e antecipar os desenvolvimentos futuros; mas está

integrado nos numerosos elementos do saber prático com o qual, para ser

eficaz, tem de se compatibilizar. No limite, pode considerar-se que os saberes

práticos, os saberes pedagógicos e os saberes normativos formam um só e

mesmo saber, nutrido pelas experiências dos interventores. Mas este saber

composto, altamente contingente e em parte táctico, tem finalidades

operacionais e assemelha-se pouco ao saber científico, sobretudo na medida

em que este pretende ser um saber explicativo sobre o mundo ‘contabilizável’.

Neste campo, como em outros, existem diferentes lógicas em presença e

conflitualidades e tensões entre as diferentes lógicas. E se, na maioria das

vezes, estas tensões e contradições são apresentadas de uma forma muito

dicotómica, o que parece acontecer no quotidiano contextualizado é a

coexistência dessas lógicas, e o seu movimento dinâmico que ora faz

sobressair uma lógica em relação a outras, ora muda a distância relativa e a

dominância de algumas das lógicas em presença em função do contexto, do

território, das especificidades, da época ou das políticas que são privilegiadas –

como, por exemplo, as tensões (já clássicas) entre a lógica dos saberes

académicos, científicos e a lógica dos saberes profissionais, experienciais, ou a

lógica da racionalidade instrumental e a lógica emancipatória. As primeiras,

Page 203: As formigas e os carreiros

203

confrontam e interpelam-se mutuamente na dinâmica entre uma orientação

para a especialização e a fragmentação do saber e uma óptica de saberes

integrados e contextualizados e, as segundas, oscilam entre uma lógica

utilitarista que privilegia o pragmatismo e o instituído e uma lógica

antropocêntrica, centrada na pessoa em contexto e na descoberta e

desenvolvimento das suas potencialidades.

Isto reforça o grande número de variáveis em presença e a falta de consensos

sobre estas matérias dentro do próprio corpo profissional. Embora seja

importante problematizar a ideia de que na divisão social do trabalho (com

implicações na sua legitimidade e no mandato social que têm tido) estes

profissionais não foram formados para produzir conhecimento (entendendo

como tal um saber académico, disciplinar e científico), se atendermos a uma

reflexão sobre a sua cultura profissional pode verificar-se que a generalidade

dos profissionais realizou, ou participou, desde os finais do século XIX, em

estudos sobre as condições de vida de populações pobres, fazendo o

levantamento de necessidades locais e a organização de ficheiros sociais,

tendo em vista um processo de ajuda organizado (Mouro: 2009).

Desde as autoras clássicas do Serviço Social que existe um forte compromisso

com a pesquisa, se bem que numa vincada especificidade de encarar a teoria

como uma «orientação para a acção» (Vieira, 1981:90). Apesar das tensões

presentes em cada época e momento histórico, a produção teórica e reflexiva

dos profissionais de Serviço Social constituiu uma referência para a promoção

da sua imagem académica e desempenhou um papel na «capitalização» das

suas experiências profissionais. Contudo, a partilha de conhecimentos com as

Ciências Sociais e Humanas, a orientação analítica da ciência na sociedade

industrial e a dificuldade em constituir um saber declarativo que possa ser

exposto por escrito constituíram alguns dos constrangimentos que estiveram

presentes na produção desse conhecimento ao longo do tempo.

Ainda mais importante será inscrever diferentes perfis, como expressões das

tensões em presença que têm prevalecido desde a emergência desta profissão

(que está associada aos processos de industrialização, urbanização e

individualização dos meados do século XIX, bem como às subsequentes

Page 204: As formigas e os carreiros

204

transformações económicas, sociais, políticas e ideológicas) até à

transformação do seu objecto, reconhecendo e integrando as suas

ambiguidades iniciais e históricas - ambiguidades como as que a situam entre o

indivíduo e as estruturas sociais, entre a ciência e a técnica, entre o controlo e

a autonomia, entre a conformidade e a inovação … Assim, na actuação dos

assistentes sociais os saberes científicos, com as suas lógicas de divisão e de

especialização chocam-se e confrontam-se com os saberes, mais ou menos

ocultos e não nomeados, que circulam na acção quotidiana, apelando à

mobilização de categorias que se constituem numa lógica de recomposição e

complexidade. Esta acção quotidiana

“ (…) apela a saberes emergentes, e não meramente antecedentes, que lhe assegurem a viabilidade e o sentido, a pertinência e a relevância. (…) Trata-se de saberes indisciplinares e criativos, interpelantes e interpretativos gerados na (inter) acção e na experiência que ela proporciona” (Costa e Silva, 2007: 223).

Na actual complexidade, e não obstante alguns constrangimentos, existem

condições para aumentar a produção, a interacção e a divulgação dos saberes

teóricos - práticos do/no exercício profissional. Eventualmente, o maior desafio

será o de não enformar os saberes provenientes do exercício profissional,

deixando que expressem formas integradas de aprendizagem, formação e

experiencialidade e possam encontrar modos alternativos de se explicitar e de

constituir teoria, sem a dissociar do sentido e do local da sua produção e da

sua apropriação.

Formação e trabalho têm sido frequentemente pensados como valor de troca e

como objectos que circulam no mercado de consumo, estando por isso sujeitos

à respectiva flutuação de valor e ao não reconhecimento da actividade e da

autoria dos sujeitos implicados na produção de sentido. No entanto, a

perspectiva aqui utilizada constitui-se como alternativa ao modo tradicional

como formação e trabalho têm sido pensados, no entendimento de que têm

sido ignorados como realidade (s) habitadas por sujeitos que produzem sentido

(s) - ou seja, como objectos antecipáveis aos espaços-tempo da sua realização

(Charlot, 2004).

Page 205: As formigas e os carreiros

205

3.2. OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

Pretendo dar conta de uma concepção de identidade plural, múltipla e

diversificada que seja útil para os processos de configuração e reconfiguração

identitária dos assistentes sociais.

Se nas narrativas quotidianas dos assistentes sociais e, de muitos outros

profissionais comprometidos com a prática, o conceito de identidade(s) é

relativamente periférico, foi curiosamente, ao trabalhar com populações pobres

que vivem em territórios social e economicamente estigmatizados que pude

constatar e aprender o quanto este conceito é importante, apesar de não ser,

na maioria das vezes, nomeado como tal. Para quem está comprometida e

implicada, como eu estou, no quotidiano, muitas vezes apresenta-se difícil

mobilizar as concepções disponíveis e reflectir sobre algo que, arriscaria a

dizer, não faz parte da agenda destes profissionais.

Esta tomada de consciência não me isentou de dificuldades de orientação na

complexidade conceptual da temática. Primeiro, dei conta de uma grande

heterogeneidade, quer do ponto de vista disciplinar, quer metodológico e

teórico (não esquecendo a diversidade terminológica); segundo, tive

necessidade de me situar num conceito de identidade em que me revisse, pelo

que optei por entende-la como um processo dinâmico, simultaneamente

biográfico e relacional (Dubar, 1997a) que recolhe diferentes usos sociais, tanto

psicológicos como sociológicos.

Esta concepção de identidade (s) distancia-se de oposições simplistas e

normalizadoras que demarcaram identidades fixas no passado e que serviram

para definir qual seria a identidade «válida», «normal», a partir da qual as

outras seriam «diferentes». Mas por se tratar de um conceito complexo e

multifacetado, o debate sobre ele divide-se entre várias perspectivas das quais

destaco:

As correntes filosóficas «essencialista» e «nominalista», em que a primeira

defende uma singularidade essencial do ser humano, um ‘a priori’ herdado

à nascença e uma pertença que não dependem do tempo e a segunda, que

defende a existência de modos de identificação, variáveis e dependentes do

contexto, ao longo da história colectiva e da vida pessoal. Esta última

Page 206: As formigas e os carreiros

206

corrente distingue dois tipos de formas de identificação: as «identificações

para o outro» e as «identificações para si», podendo coincidir ou divergir

nas diferentes modalidades de identificação.

A vertente psicodinâmica (com origem na teoria freudiana da identificação,

processo pelo qual a criança internaliza aspectos do mundo externo e

produz uma estrutura psíquica, expressa numa identidade contínua, embora

conflituosa) e a vertente sociológica (mais recente); sendo que a primeira

enfatiza a constituição de uma estrutura psíquica mais ou menos estável,

mantendo a sua personalidade como um todo coerente (recorda-se a

propósito termos de utilização corrente como «crise de identidade» de

Erikson (1968) para descrever fenómenos de desajustamento social na

adolescência, ou «auto-imagem» e «auto-estima») e a segunda, trata as

identidades como instâncias constituídas em relação dialéctica com a

sociedade, sendo formada por processos e relações sociais, que as

mantém, remodelam ou transformam. Neste âmbito o ‘self’, como uma

estrutura social, só é concebido mediante as interacções a partir da

linguagem e da comunicação. Salienta-se neste campo o contributo de

George Herbert Mead (1963) com o «interaccionismo simbólico», pelo qual

a identidade seria sujeita às transformações ocorridas ao longo da

interacção do indivíduo com os grupos sociais. Na vertente Sociológica, a

individuação dá-se através da socialização, ou seja, são os outros que

tornam possível a singularidade (Veronese e Esteves, 2009:219).

As formas identitárias «comunitárias» e «societárias». As primeiras, mais

antigas e próximas do ideal tipo weberiano, salientam a importância do

grupo de pertença como fontes fundamentais de identidade, quer se trate

de «culturas», de «nações», de «etnias» ou de «corporações». As

segundas, supõem a existência de “colectivos múltiplos, variáveis,

efémeros, aos quais os indivíduos aderem por períodos limitados e que lhes

fornecem fontes de identificação que eles gerem de maneira diversa e

provisória” (Dubar, 2006:10), permitindo ter múltiplas pertenças e com

possibilidade de mudarem ao longo da vida.

As diferenças e tensões entre as diferentes perspectivas aconselham um

posicionamento pelo que, privilegio para este trabalho um ponto de vista mais

sociológico que defende que toda a identidade é construída e que a sua co-

Page 207: As formigas e os carreiros

207

construção ocorre em determinados contextos. A nível mais individual e, como

atrás já referi, escolhi a concepção de identidade (s) filiada na perspectiva

interaccionista onde se perspectiva a acção humana como algo que se constrói

na comunicação frente a frente, com os outros, e não estritamente comandada

pelas normas e valores sociais impostos, reconhecendo a participação activa

dos sujeitos na construção da sua identidade.

Recordo que o interaccionismo simbólico teve origem nos E.U.A., surgindo

ligado aos princípios filosóficos do pragmatismo defendidos, entre outros, por

autores como William James, George Mead e John Dewey que consideravam

que a pessoa humana é o produto das interacções sociais, nomeadamente das

que se produzem a partir da linguagem e do jogo.

Esta opção assume a desconstrução de uma noção de identidade una e

integral e que tenta ultrapassar a dicotomia entre identidade pessoal e

identidades sociais. Nesta perspectiva, as identidades serão assim,

construções relativamente estáveis num processo contínuo de actividade

social, baseadas no reconhecimento por outros actores sociais e na

diferenciação, assumindo a interacção um papel crucial neste processo e onde

a sua descontextualização e a recontextualização é um processo permanente

derivado das relações sociais conflituais entre os indivíduos e os grupos.

Então, o conceito de Identidade (s) remete-nos simultaneamente para o que é

igual (como por exemplo, a singularidade de uma pessoa, ou fazer parte de

uma família ou comunidade) e para o que é diferente (como as características

de género, etnicidade ou nacionalidade) e é objecto de vários usos, desde a

identidade individual (como na abordagem psicanalítica), a identidade colectiva

e social (de grupos sociais, étnicos, profissionais), passando pela identidade

vivida e atribuída, particularmente abordada nos estudos da Psicossociologia e

da Sociologia Compreensiva (Sainsaulieu, 1988; 1997; Dubar, 1997a; 1998;

2006; Dejours, 1993). Nestas formas múltiplas e compostas de identidade (s)

sobressai a possibilidade de procurar entender a construção identitária como o

resultado de «uma identificação contingente», marcada pela dinâmica entre

diferenciação (o que é diferente) e generalização (o que é comum).

Esta dinâmica, segundo Dubar (2006), também está na origem do «paradoxo

da identidade», sendo que este paradoxo só pode ser resolvido se se tiver em

Page 208: As formigas e os carreiros

208

conta o elemento comum a estas duas operações, ou seja, a identificação de e,

pelo, outro. Por exemplo, na população imigrante estas dinâmicas podem ter

especial visibilidade no processo de integração, ou não integração, de múltiplas

pertenças às culturas de origem e às culturas de acolhimento.

O uso do termo ‘Identidade’ implica assim, cada vez mais, um trabalho de

elaboração problemática que necessita de tomar em consideração as duas

pontas da corrente que vai dos factos macro-sociais marcados por

transformações maiores nas políticas económicas e nas relações de força entre

classes aos processos micro-sociais através dos quais os indivíduos acedem a

formas, cada vez mais, diversificadas de pertença subjectiva e de definição de

si mesmo e dos outros. Quantos aos primeiros, parece imprescindível

relacionar com a globalização, ou seja, com a intensificação dos fluxos

económicos, políticos, culturais e simbólicos a nível mundial, onde as pessoas

vêm teoricamente alargadas as possibilidades e os recursos disponíveis para a

elaboração de argumentos que justificam as suas identidades e os seus

processos de identificação. Quanto aos segundos, e apesar dos processos de

identificação serem, na perspectiva utilizada, sempre situacionais e históricos,

realça-se a necessidade de um sentimento individual de permanência

identitária elaborado narrativamente.

“As identidades emergem da narrativização do sujeito e das suas vivências sociais, e a natureza necessariamente ficcional deste processo não afecta a eficácia discursiva, material ou política das mesmas. As identidades constroem-se no e pelo discurso, em lugares históricos e institucionais específicos, em formações prático-discursivas específicas e por estratégias enunciativas precisas” (Mendes, 2005:491).

A identidade narrativa requer um trabalho biográfico constante que é

simultaneamente um processo de autoprodução biográfica, uma tentativa de

fixação identitária e uma produção constante de novas realidades, onde as

contradições e dissonâncias da vivência experiencial, requerem um diálogo

consigo, com o mundo e com os outros, não esquecendo a questão do poder e

das desigualdades no processo identitário. Também a relação da identidade

pessoal com o tempo institui nos relatos a construção não linear, o provisório, a

reelaboração e a ficção.

Page 209: As formigas e os carreiros

209

A definição de identidades como “negociações de sentido, como jogos de

polissemia, como identificações em curso” (Sousa Santos, 1994:119) e a

possibilidade dessas «negociações de sentido» serem contextualizadas e

multiculturais (sendo a subjectividade entendida como auto-reflexividade e

auto-responsabilidade) mostra-nos a multiplicidade do ser humano, na

concepção de que vemos a unidade e a diversidade em cada um de nós, ao

mesmo tempo que damos conta das diversidades culturais que nos tornam

simultaneamente, iguais e diferentes (Sousa Santos, 1994:207).

Nesta época de globalizações, a ‘identidade’

“…apresenta-se como um conceito crucial, porque funciona como articulador, como ponto de ligação, entre os discursos e as práticas que procuram interpelar-nos, falar-nos ou colocar-nos no nosso lugar enquanto sujeitos sociais de discursos particulares por um lado, e, por outro, entre os processos que produzem a subjectividade e que nos constroem como sujeitos que podem falar e ser falados” (Mendes, 2005:489).

Na concepção de que somos indivíduos interactuantes nas sociedades e

fazemos parte de uma espécie (que nos marca e que nós marcamos) que vive

num pequeno planeta perdido no cosmos, a ideia de «conquistar o mundo»

(como acreditavam Descartes, Bacon ou Marx) está em colisão com a

necessidade de preservar a sustentabilidade de um planeta e com ela, a

sobrevivência dos habitat e das espécies que partilham connosco esta

condição.

Neste âmbito, será necessário reconhecer o papel que teve o reagrupamento

de disciplinas em ciências pluridisciplinares na segunda metade do século XX

tornando a compreensão dos fenómenos tendencialmente mais global e

complexa - como por exemplo, na cosmologia que, efectivamente utiliza a

microfísica e os aceleradores de partículas, mas também uma reflexão

filosófica sobre o mundo, para tentar compreender os primeiros segundos do

universo; bem como a abordagem à complexidade e ao «grande paradoxo»

Unidade – Diversidade, explicitado por E. Morin (2003), numa concepção de

homem que não se reduz ao indivíduo isolado. Aliás, foi particularmente

evidente na recolha do material empírico as tensões entre a definição de si pela

pertença ao grupo estatutário dizendo «eu sou assistente social» ou

inversamente, «as pessoas não sabem que eu sou assistente social» e as

definições de «herança cultural», de «narração pessoal de uma história» e de

Page 210: As formigas e os carreiros

210

uma «reflexividade subjectiva» que muitas vezes não encontra espaço para

articulações entre os diferentes níveis de abordagem.

Se os assistentes sociais não têm facilidade em dizer de si e da sua profissão,

importará pôr em evidência as suas «formas identitárias» que

simultaneamente, constituem formas de viver o trabalho e de lhe dar sentido e

de conceber a vida profissional no tempo biográfico, através da sua trajectória

subjectiva. Nesta perspectiva, os processos de economia e cultura

desterritorializadas da globalização (com as respectivas práticas sociais e

culturais que assentam em formas de poder caracterizadas pelas trocas

desiguais de identidades e de culturas) são associados aos processos de

«reterritorialização», na redescoberta de sentido de si, do lugar e da

comunidade.

- FORMAS IDENTITÁRIAS

A tarefa principal e mais difícil para cada pessoa é a de integrar as suas

diferentes subjectividades, face ao risco de fragmentação das perspectivas em

presença, como já tinha sido analisado por Michel Foucault (1994 a). A noção

de «sujeito moral da acção» institui neste autor clássico a margem de variação

e transgressão do comportamento de indivíduos e grupos em relação aos

códigos morais em vigor, concluindo que os indivíduos procuram construir-se

como sujeitos morais por um trabalho de produção de uma ontologia histórica

de si mesmos. O importante seria precisar os acontecimentos que nos levaram

a constituir-nos como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos através

de discursos, entendidos como acontecimentos históricos (Foucault, 1994 a).

Sensível a esta procura de «integração», fui procurando em vários autores

perspectivas que fossem iluminando diferentes aspectos do «jogo de

espelhos» e tornando possível ir compreendendo as formas de construção

identitária e os processos através dos quais elas se constroem.

Na análise de Manuel Castells são distinguidas três formas e origens de

construções de identidades: a) a «identidade legitimadora», instituída pelas

instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar a sua

dominação sobre os actores sociais e que produz uma «sociedade civil»; b) a

Page 211: As formigas e os carreiros

211

«identidade de resistência», criada pelos actores que se encontram em

posições desvalorizadas leva à formação de «comunas» ou «comunidades»; c)

e a «identidade de projecto», quando os actores sociais constroem uma nova

identidade capaz de redefinir a sua posição na sociedade e, ao fazê-lo,

procurar a transformação da estrutura social produz «sujeitos», na concepção

de Touraine, entendidos como «actor social colectivo» (2007: 2-4).

Este posicionamento de «sujeitos» na qualidade de «actores sociais

colectivos» contrasta mas coexiste com muitos outros posicionamentos e

enfoques, dos quais se destacam:

Goffman é um dos autores que explorou as múltiplas pertenças dos

indivíduos, sendo sua preocupação a estrutura dos encontros sociais e a

manutenção de uma definição da situação durante a interacção. Os seus

conceitos de «face» (entendido como o valor social positivo que um

indivíduo reivindica; é uma construção social, derivada das regras do

grupo e da definição da situação, em que o acto de manter «a face»

numa dada actividade implica uma atenção ao lugar que o indivíduo

ocupa na ordem social, aos constrangimentos exteriores e à interacção

imediata), «linha», «tacto», «ritual» compõem um sujeito, definido quer

como uma imagem composta a partir das implicações expressivas dos

acontecimentos em que participa, quer como uma espécie de jogador

num jogo de ritual em que se procura adaptar às contingências da

situação (Goffman, 1993).

A ambiguidade da análise deste autor quanto aos sujeitos e à subjectividade,

diz respeito à incontornável pressão socializadora dos grupos e dos rituais de

interacção quotidiana, como se o indivíduo só pudesse alcançar dignidade e

respeito na medida em que se adaptasse à linha proposta pelos grupos a que

pertence e se aderisse aos seus rituais. A visão do processo identitário como

«sobre-socializado» pode ser relativizada, na medida em que se reconhece

que a subjectividade se constrói socialmente, o que implica variadas

possibilidades, entre as quais a análise crítica, a resistência, o abandono ou a

autonomia, permitindo assim, colocar em perspectiva não determinística as

contingências que as pessoas encontram na interacção face-a-face e o

desenvolvimento político e as políticas actuais dos grupos a que os indivíduos

pertencem. Por outro lado, a distinção tipológica de Goffman permite explicitar

Page 212: As formigas e os carreiros

212

o vaivém permanente no processo de construção, reconstrução e

reconfiguração identitária, entre três tipos de identidade - Social, Pessoal e de

Ego.

Na obra de Bruno Latour surge o conceito de movimento entendido

como um alinhamento de traços (1997 a), em que há que atender ao

que está ligado, ao que se constitui em rede e ultrapassar os conceitos

tradicionais de actor e de contexto social. Para a questão das

identidades, o autor propõe a metáfora da «assinatura», afirmando que

cada pessoa tem múltiplas assinaturas, com histórias e inscrições

distintas, que obrigam a escolhas. A identidade (ou o eu) é algo que

circula entre diferentes cenários e figurações, como um fio que liga as

múltiplas camadas que envolvem a pessoa, camadas que foram

antecipadas e formatadas pelos outros.

Da perspectiva de Sousa Santos (1998) destaco a concepção de uma

equação permanente entre «raízes» e «opções» no processo de

construção identitária. Enquanto o pensamento das «raízes» é o

pensamento de tudo o que é profundo, permanente, único e singular,

que dá segurança e consistência, o pensamento das «opções» é de

tudo o que é variável, efémero, substituível, possível e indeterminado a

partir das «raízes». Quanto à temporalidade, as «raízes» são entidades

de grande escala marcadas pelo tempo glacial, enquanto as «opções»

são entidades de pequena escala, marcadas pelo tempo instantâneo.

Segundo o autor, a turbulência actual das escalas e a aceleração do

tempo desestabilizaram a equação entre «raízes» e «opções», sendo

que a multiplicação das «opções», em tempo de globalizações, concorre

em simultâneo, e em aparente contradição, com um tempo de

localismos, territorializações de identidades, de singularidades, de

genealogias e de memórias.

No trabalho de Paul Ricour (1995, 1990) encontra-se uma elaboração

teórica complexa da relação entre identidade e narrativa,

nomeadamente a narrativa ontológica que permite ver como os actores

produzem sentido e agem no quotidiano, como constroem as suas

múltiplas identidades num processo contínuo e, por vezes, contraditório.

Para este autor, a identidade pessoal articula-se num projecto de vida,

Page 213: As formigas e os carreiros

213

com grande importância atribuída à dimensão temporal que contempla

uma tensão entre o pólo da estabilidade e a alteridade. Esta identidade

que integra a alteridade, onde o indivíduo só se consegue pensar com o

outro, pode ser definida como o pólo ético do contínuo da identidade

pessoal – o que parece um conceito próximo da teoria do «habitus» de

Bourdieu.

A articulação entre estes diferentes pólos pode ser conseguida, segundo

Ricour, pela identidade narrativa. A narrativa reconfigura o tempo e, partindo de

uma memória construída na continuidade da vida, procura dar-lhe a forma de

uma experiência humana. Para este autor, a memória está subconsciente e é

pré-discursiva, articulada antes da verbalização e do aparecimento da

narrativização. E a identidade narrativa define-se como «o colocar em intriga

uma personagem», o que permite integrar na permanência, no tempo, a

variabilidade, a descontinuidade e a instabilidade – a configuração e

reconfiguração narrativas podem ser apreendidas pela noção de síntese do

heterogéneo, instituindo que a linearidade dos relatos é um facto provisório,

construído e em constante reelaboração que se caracteriza pela diversidade e

permite uma concepção dinâmica de identidade (Ricour, 1990:169).

Neste campo, pareceu particularmente útil mobilizar também as quatro formas

identitárias identificadas por Dubar (cultural, narrativa, reflexiva e estatutária),

lembrando que elas pretendem nomear uma combinação de transacções

relacionais (comunitárias e societárias) e biográficas (para si próprio e para os

outros) que consideram as análises históricas e que se revelaram um referente

adequado para fazer a análise das narrativas dos assistentes sociais que

participaram no trabalho empírico.

“Estas quatro formas de identificação são tipos de designação que cada um gere, combina, planeia na sua vida quotidiana. (…) Estas formas de identidade constituem maneiras de identificar os indivíduos e a sua combinação pode, teoricamente, permitir a caracterização de configurações históricas mais ou menos típicas. Mas elas coexistem na vida social. Cada um pode identificar os outros ou identificar-se a si mesmo, seja através de um nome próprio que remete para uma linhagem, uma etnia ou um «grupo cultural», seja através dum nome de função que depende de categorias oficiais de «grupos estatutários», seja através dum nomes íntimos que traduzem uma reflexividade subjectiva («si próprio»), seja através de nomes designando intrigas que resumem uma história,

Page 214: As formigas e os carreiros

214

projectos, um percurso de vida, em suma, uma narração pessoal («o para si»)” (Dubar, 2006:50).

O diagrama que se segue pretende fazer a ilustração gráfica deste campo de

possibilidades combinadas. “…estas quatro apelações constituem tentativas de

nomeação da combinação de transacções relacionais e de transacções

biográficas que tomam em consideração análises históricas” (Dubar, 2006: 48).

Figura 2 – Construção Identitária

Estas formas podem variar conforme os momentos históricos, variando

sobretudo os processos de identificação e as formas históricas do laço social,

mas nenhuma forma é considerada como dominante sobre as outras.

Os três processos históricos abordados são,

I) O «processo de civilização» - expressão de Norbert Elias que remete para

uma noção mais abstracta de identidade e para a passagem das formas

Forma Cultural

Identidade biográfica para outrem

De tipo comunitário, inscrição numa genealogia, numa cultura herdada e num grupo local. Supremacia do «Nós» sobre o «Eu».

Esta forma, dominante nas «comunidades tradicionais» está sujeita à dominação de género.

Forma Narrativa

Forma Narrativa

Identidade biográfica para si

De tipo societário, implica o questionamento das identidades atribuídas e um projecto de vida com longevidade, uma busca de autenticidade num processo biográfico e numa procura de sentido para a existência. Individualista e empresaria, implica a primazia da acção no mundo.

Sujeita á dominação de classe.

Forma Estatutária Forma relacional para outrem

Implica um «eu» plural, socializado pelo desempenho de papeís, constroi-se sob pressões de integração às instituições (família, escola, grupos sociais, Estado) e defini-se através de «categorias de identificação» nas diversas esferas da vida social.

Sujeita à dominação burocrática.

Forma Reflexiva

Forma relacional para si

Provém de uma «consciência reflexiva» (Giddens, 1987) em que o «eu» procura uma reflexão interior sobre si próprio e ser reconhecido pelos «outros significativos». Compromisso moral e convicções fortes, com eventual associação de pares que partilhem o mesmo projecto.

Sujeita à dominação simbólica.

Construção identitária

Page 215: As formigas e os carreiros

215

colectivas a formas individualizadas de identificação do tipo «Nós-Eu», que dão

origem à forma estatutária. Apesar de este processo político não evitar as

armadilhas do evolucionismo e ter actualmente um sentido diferente, destaca-

se a teorização de uma forma identitária dominante, societária e «orientada

para o acesso a uma posição estatutária, em função da aprendizagem (já não

da nascença) de um novo código simbólico e de interiorização de novas

maneiras de dizer, de fazer e de pensar valorizadas pelo Poder» (Dubar,

2006:28). Em paralelo Dubar refere formas de legitimar identidades nacionais,

como formas de identidade dominante, nomeadamente através dos Estados –

nação, do nacionalismo (com todos os revezes deste movimento que leva a

duas guerras mundiais) e da «comunidade cultural»;

II) O «processo de racionalização» que respeita à relação histórica entre as

relações comunitária e societária e que dá origem à forma narrativa.

Weber parte do interesse pelo significado subjectivo da análise da acção

humana (não usa o termo «identidade») e identifica dois tipos de acção que

implicam duas formas de relação social: 1) a forma comunitária, que vem da

tradição, dos laços familiares e das heranças culturais, com uma identificação

colectiva e emocional a um «líder» carismático; 2) a forma societária, que

designa relações sociais motivadas por racionalidades (axiológica, por relação

aos valores e económica, por relação à relação instrumental dos meios para

atingir os fins). Na tese de Max Weber, é defendida a existência de um

processo de racionalização que assegure a predominância da segunda sobre a

primeira, com um ideal-tipo marcado por uma «identidade empresarial

puritana». Este processo simbólico transforma as formas comunitárias

tradicionais em formas societárias, comprometidas com a transformação do

mundo pelo trabalho – «trabalho» esse que é visto como «vocação» e

«caminho da salvação».

III) E o «processo de libertação» de Marx e Engels que, na sua análise do

capitalismo do século XIX, defendem um processo revolucionário de libertação

do domínio de uma classe por outra, identificando «tipos de formação social».

As preocupações destes autores estavam longe do(s) conceito(s) de identidade

e passam, entre muitos outros conceitos, pela «consciência de classe», pela

«libertação e desenvolvimento dos indivíduos», pela sua «associação livre»,

pelo «fim da divisão do trabalho» e pelo «derrubamento do Estado» opressor.

Page 216: As formigas e os carreiros

216

O conceito de «configuração identitária» de Dubar, utilizado para designar as

modalidades de actualização das formas identitárias nas identidades

individuais, revela-se útil na análise da problemática da identidade num

contexto de crise da modernidade e na medida em que permite uma maior

plasticidade. As formas identitárias nominais (ou culturais), estatutárias (ou

profissionais), reflexivas (ou ideológicas) e narrativas (ou singulares) são

assim, combinadas de forma diferente, conforme os contextos ou as épocas e

constituem «formas discursivas», formas de falar da construção de si, em

interacção com os outros e com o mundo.

- IDENTIDADES PROFISSIONAIS EM TEMPOS DE INCERTEZA

Clarificando as identidades profissionais como “maneiras socialmente

reconhecidas para os indivíduos se identificarem uns aos outros, no campo do

trabalho e do emprego” (Dubar, 2006:85), arriscaria a dizer que genericamente

os assistentes sociais se reconhecem enquanto tal, mesmo que as suas

práticas e os seus quadros teóricos de referência sejam diferentes, admitindo

assim que existe «algo» que os une.

Pensar e nomear o que une e/ou separa os assistentes sociais, ou quaisquer

outros trabalhadores sociais é difícil e, fazendo eu parte do campo que procuro

reflectir, não escondo que parto com um pré-conceito de que nos separam

muito mais aspectos do que aqueles que nos unem e que os que nos unem

não têm sido suficientemente fortes para que a profissão tenha um percurso

mais afirmativo enquanto «sujeito colectivo» que procura actualizar as suas

legitimidades.

A formação inicial nos três Institutos Superiores existentes era algo que fazia

parte desse «mínimo denominador comum» mas, para além das constâncias

na formação inicial (que hoje em dia se perdem, na diversidade de propostas

de formação e de entidades formadoras), de uma inscrição na genealogia da

profissão e do domínio de um quadro de referência teórico e metodológico

traduzido na gíria profissional, os assistentes sociais enfrentam para além das

suas diversidades pessoais e sociais, várias dinâmicas, crises e tensões no

Page 217: As formigas e os carreiros

217

campo profissional que já abordei com algum pormenor, e que contribuem para

os distinguir.

Assumindo a importância da formação inicial para a construção da identidade

profissional dos assistentes sociais entende-se no entanto, que é no exercício

da profissão e a partir da reflexão das suas próprias experiências, que os

profissionais integram conhecimentos, constroem saberes, desenvolvem novas

práticas, competências e conhecimentos, reconstruindo em permanência as

suas formas identitárias.

Admite-se problematizar o conceito de identidade (s) profissional (ais), na

medida em que se admite que, na linha de Beck (2010) na «sociedade do

risco» e de «incerteza» as noções de trabalho e de profissão enfrentam novas

problematizações.

“O Trabalho está no centro do processo de construção, destruição e reconstrução das formas identitárias, porque é no e pelo trabalho que os indivíduos, nas sociedades salariais, adquirem o reconhecimento financeiro e simbólico da sua actividade. É também apropriando-se do seu trabalho, conferindo-lhe um ‘sentido’, isto é, dando-lhe, ao mesmo tempo, uma significação subjectiva e uma direcção objectiva, que os indivíduos acedem à autonomia e à cidadania” (Dubar, 2003:51).

Com todas as mudanças ocorridas na divisão social do trabalho, nas condições

de trabalho e na própria existência, ou não existência, de empregos e de

trabalho disponível, tornou-se ainda mais complexo pensar o trabalho e a sua

organização, na medida em que a organização (agora eleita como nível de

análise privilegiado) não responde “à questão central de saber se o sentido

social a atribuir ao trabalho se deve construir em torno da sua face visível, ou

se, pelo contrário, é o trabalho oculto que estrutura o sentido do trabalho

visível” (Correia, 2003:30).

As Ciências do Trabalho, que tinham adoptado nos seus primórdios uma

atitude crítica relativamente ao Taylorismo realçando nomeadamente, a

importância da interacção informal nas organizações e apelando para uma

organização de trabalho mais humanizada, viram dificultada a sua análise do

trabalho, numa situação de ruptura com as racionalidades accionadas nas

organizações. E acentuou-se ainda mais a distância entre o trabalho prescrito e

o trabalho real.

Page 218: As formigas e os carreiros

218

Neste âmbito, existe um eixo de debate que me pareceu interessante entre os

autores que preconizam o fim do trabalho (entendido simultaneamente como

forma de obter o reconhecimento financeiro e simbólico e como forma de

aceder à autonomia e à cidadania) e os que continuam a defender a sua

centralidade. Dos primeiros, destaco Dominique Méda (1999) que mostra que

nas diferentes sociedades, em função das exigências económicas, das

condições técnicas e do sistema de valores, o trabalho toma formas e sentidos

diferentes e anuncia o fim do valor do trabalho, defendendo que se poderia

deixar de ter em conta a dupla dimensão da cidadania e do produtivismo,

constitutiva das sociedades modernas; dos segundos, mobilizo Dominique

Schnapper (1998) que defende «sociedades cívicas», baseadas na criatividade

da economia, no estabelecimento de uma justiça social relativa e numa ordem

política legítima. Nesta abordagem a autora relaciona a desacreditação do mito

do pleno emprego com o enfraquecimento do elo social e preconiza, num

quadro de contínua organização do trabalho, novas formas de actividade e

utilidade social, mantendo a relação entre trabalho e estatuto social, embora

seja um trabalho que já não é necessariamente sinónimo de emprego.

Considera um autor de referência norte-americano, Nigel Parton, que apesar

da “teoria de Melano defender que a identidade profissional está

essencialmente associada às funções que o assistente social realiza será

contudo, importante lembrar que o desenvolvimento da legitimidade do Serviço

Social (…) deu-se, no seio de um híbrido, o ‘social’, situado entre as esferas

pública e privada, e produzido pelas novas relações estabelecidas entre a lei, a

administração, a medicina, a escola e a família” pelo que se tornaria muito

redutor resumir a profissão ao que os profissionais fazem em cada contexto e

época histórica (Parton, 2000:5).

Segundo esta perspectiva, talvez fosse mais gerador assumir a diversidade da

profissão de assistente social. E, como defende um outro autor inglês “ … não

nos deixarmos absorver pela procura da definição de Serviço Social, se isso

nos fizer perder de vista a variabilidade, a complexidade, ou o status polémico

que caracterizam a profissão” (Thompson, 2005:13).

Page 219: As formigas e os carreiros

219

Neste ponto a recolha e a articulação das identidades narrativas pode constituir

um campo de reflexão, investigação e aprendizagem muito promissor. Foram

destacadas as narrativas de quatro autores (uma autora brasileira, um autor

inglês e duas autoras portuguesas) com produção recente no campo do

Serviço Social e que abordam diferentes perspectivas e enfoques da identidade

profissional:

Maria Lúcia Martinelli (2006) uma autora brasileira comprometida com a

mudança social, coloca a hipótese de que a “ausência de identidade

profissional fragiliza a consciência social da categoria profissional,

determinando um percurso alienado, alienante e alienador da prática

profissional” (2006:17). A autora, no seu posicionamento crítico, defende

que:

“Os modos de produção da identidade, como categoria histórica, social e política, estão profundamente relacionados com o movimento da história, o que torna impossível estudar a identidade do Serviço Social sem estabelecer nexos de articulação com as revoluções burguesas, com o surgimento e ascensão do capitalismo e, em especial, com a luta de classes, expressão contundente das contradições e antagonismos que marcaram este modo de produção” (2006:18).

A análise desta inscrição histórica da profissão daria o mote para o fomento da

«consciência social» e para a libertação dos profissionais das suas práticas

«alienantes».

Malcom Payne (2006) na sua publicação intitulada precisamente ‘What is

Professional Social Work?’ defende a existência de diferentes identidades,

referindo nomeadamente que no percurso da profissão, o Serviço Social

tornou-se menos um movimento social e mais um emprego; menos uma

causa activista e mais uma ‘função’ de um Estado e de uma Sociedade

cada vez mais organizada.

Este autor situa a identidade dos assistentes sociais na luta dinâmica entre as

três perspectivas do trabalho social (transformacional, de ordem social e/ou

terapêutica) e a procura de encontrar um tempo e um espaço particular entre

os objectivos de interacção interpessoal e de mudança social.

Helena Mouro (2009), apesar de assumir que se desviou deliberadamente

da questão da identidade do Serviço Social dedica-se ao tema na obra

citada e refere que:

Page 220: As formigas e os carreiros

220

“…para se poder definir a moldura universal da identidade do serviço social de forma abrangente, e evitando uma leitura simplesmente segmentada, é essencial (…) que sejam ‘filtrados’ os grandes propósitos profissionais que, além de terem interferido sobre o processo de representação profissional, serviram também de meios de credibilizar as acções e definir a forma como estas se legitimaram. E, como a principal função que tem iconografado o trajecto de vida social e profissional do serviço social tem sido a humanização social e a gestão da pobreza, os seus traços identitários retratam a forma como a profissão tem agilizado a intervenção profissional de acordo com os conceitos de justiça social e de desenvolvimento social” (2009:174).

Segundo esta assistente social, docente e investigadora, a «identidade»

transformou-se no grande problema nuclear da profissão e, nessa medida,

gerou não só insegurança nos profissionais, mas também uma relativa paralisia

face à reorganização das competências profissionais e uma resistência passiva

ao desenvolvimento das novas profissões sociais,

Inês Amaro que na sua tese de doutoramento (2009) e em artigo

publicado na Revista «Locus Soci@l» (2009) identifica três grandes

momentos agregadores na construção identitária do Serviço Social: a

institucionalização da profissão, a academização que culmina com o

reconhecimento do grau de licenciatura em 1989 e a necessidade de

afirmação profissional no domínio público e a premência da regulação

do exercício e formação profissionais. Esta autora faz referência a uma

«dicotomização» presente na construção identitária do Serviço Social

contemporâneo que reflecte e traduz as tensões existentes e que

encontra reflexo na recolha empírica ao nível da forma como os

profissionais se designam - como «Técnico Superior de Serviço Social»

quando preconizam uma prática mais baseada em «critérios de

evidência» e como «Assistentes Sociais» quando apontam para uma

prática mais baseada na relação. Identifica ainda «uma identidade

incerta», «híbrida» e “um obscurantismo identitário, que é também

necessariamente conceptual, teórico e científico no Serviço Social. Esta

característica tem um efeito multiplicador/propagador na profissão, dado

que tem o seu âmago nas escolas, repercutindo-se, através da

formação, por toda a classe profissional” (2009:36). No entanto, aborda

algumas marcas identitárias da profissão, como sejam, por exemplo: o

«sincretismo», a tal «mistura» de concepções de que atrás falámos; a

«mediação», que coloca o profissional como agente de ligação entre os

Page 221: As formigas e os carreiros

221

indivíduos, grupos e comunidades e as estruturas sociais; a excessiva

individualidade dos percursos intelectuais no Serviço Social Português;

a insipiência teórico-científica deste campo e a existência de uma

comunidade científica em embrião com características de grande

fechamento e endogenia.

Nestes autores, que constituem inspirações e referências utilizadas neste

trabalho, aparecem muitos marcos do que pode «unir» e/ou «separar» os

assistentes sociais, dos quais saliento apenas três por me parecerem

consensuais e poderem constituir âncoras nas construções identitárias - um

«corpo de saberes», «um saber de fazeres» e a presença de «actores

referenciais».

Considerar o Serviço Social no seu quadro de profissionalidade, conducente a

uma identidade profissional, implica saber como se pode operacionalizar a sua

actividade nestes domínios, em torno de eixos. Recordo Musgrave (1979) que

ao estudar a profissionalidade docente, entendida como aquilo que caracteriza

determinado profissional e o distingue de outro, do técnico, ou do funcionário,

identifica quatro eixos estruturantes: a) A natureza específica da actividade; b)

O saber necessário para exercer a actividade; c) O poder de decisão sobre a

sua acção; d) O nível de reflexividade sobre a acção que vai permitir modificá-

la.

A dificuldade destes processos de estudo da profissionalidade faz com que, por

vezes, se consolidem alguns padrões identitários mais arcaicos ao mesmo

tempo que emergem novos padrões que reflectem a posição da profissão no

quadro dos dispositivos sociais instalados e o investimento na área do

conhecimento e na relação com outras profissões sociais e com a estrutura

organizacional e política das entidades condutoras dos programas de

intervenção social. Contudo, hoje parece cada vez mais difícil dizer «eu sou»

seguido da profissão, no sentido em que a actividade profissional, por ser muito

mais fluida, variável e incerta passou a ocupar um espaço menor na identidade

pessoal.

Dubar utiliza a noção de «crise das identidades profissionais» distinguindo

«três significados da palavra ‘crise’ consoante ela se aplica ao emprego (o mais

Page 222: As formigas e os carreiros

222

corrente), ao trabalho (o mais complexo) ou às relações de classe (o mais

escondido) ” (Dubar, 2006: 86). Estes diferentes significados servem para o

autor elaborar sobre as evoluções do emprego e as transformações do

trabalho, do ponto de vista do seu significado e das relações sociais que elas

põem em jogo. No entanto, a «crise identitária» que este autor analisa combina

«uma relação de exterioridade em relação ao emprego e uma relação

instrumental ao trabalho que torna delicada a reconversão nos outros papéis,

em particular familiares” (2006:109).

Retomando as categorias de Sainsaulieu de «identidade incerta» ou de

«identidade em rede», a narrativa hoje em voga atribui aos indivíduos a

responsabilidade de serem preparados, competitivos e capazes de enfrentar a

incerteza e a precariedade, descobrindo a(s) forma(s) de lhe dar sentido.

“Todas as formas anteriores de identificação a colectivos ou a papéis estabelecidos tornaram-se problemáticos. As identidades «taylorianas», «de ofício», de «classe», de «empresa», estão desvalorizadas, desestabilizadas, em crise de não-reconhecimento. Todos os «nós anteriores, marcados pelo «comunitário» e que tinham permitido identificações colectivas, modos de socialização do «eu» pela integração definitiva a estes colectivos são suspeitos, desvalorizados, desestruturados. O último grito do modelo da competência supõe um indivíduo racional e autónomo que gere as suas formações e os seus períodos de trabalho segundo uma lógica empresarial de «maximização de si» “ (Dubar, 2006:111).

Dubar também refere que atravessamos tempos de «crise identitária

permanente» e que cada vez mais temos «nichos identitários» que cultivam

identidades pessoais em detrimento das identidades a colectivos.

Mas esta oposição indivíduo/colectivo não permite compreender os processos

em curso, nem as crises que eles suscitam. E se no Serviço Social aliarmos os

sentimentos de alguma insegurança e baixa auto-estima profissional e a

escassez de consciência colectiva da profissão, com a proliferação da oferta

formativa e a competição no mercado de trabalho com outras formações que

também procuram trabalho no mesmo campo, temos alguns dos ingredientes

que nos «unem» pela negativa, embora também seja possível encontrar uma

versão inversa e positiva, quer para os próprios profissionais, quer para as

suas representações sociais.

Recorda-se que a recolha empírica partiu da concepção de que são os

«modelos culturais» ou as «lógicas de actores em organização» que permitem

Page 223: As formigas e os carreiros

223

articular as formas relacionais (a identidade de actores num sistema de acção)

e as formas biográficas (tipos de trajectórias ao longo da vida de trabalho).

3.3. AUTOFORMAÇÃO

Antes de explicitar o que pretendo nomear com este conceito de

«autoformação» recordo que a formação é entendida aqui, na concepção de

Gaston Pineau (2005) como um processo vital e permanente de morfogénese e

de metamorfoses emergente das interacções entre as pessoas e os contextos

psíquicos e sociais. Nesta óptica o processo de formação, inscreve-se num

paradigma da autonomia do ser humano, fundado numa teoria tripolar da

formação, cuja primeira formulação aparece no primeiro número da Revista

‘Education Permanente’ sobre Auto formação (nº78 – 79, 1985) com o título ‘A

autoformação no decurso da vida: entre a hetero e a eco formação’. Nos anos

subsequentes, foi feita a exploração por vários autores de cada um dos três

pólos (auto formação, no pólo psicopedagógico do sujeito ao nível micro;

hetero formação, no pólo dispositivo de formação técnico-pedagógico do nível

meso; e a eco formação, no pólo do contexto/meio ambiente sociopedagógico

do nível macro) numa figura piramidal, que ora revelava focos no pólo ‘auto’ ora

revelava a exploração do pólo ‘social e que relaciona os pólos dialecticamente

(G.Pineau, 2002).

A formação, no seu pólo ‘hetero’ é definida e hierarquizada pelo ambiente

cultural, que inclui a educação, as influências sociais as influências herdades

da família, do meio social e da cultura, das acções de formação inicial e

contínua, …. No pólo ‘eco’, a formação compõe-se de influências psíquicas,

climáticas e de interacções físico-corporais que dão forma à pessoa – no

entendimento de que o ambiente físico em todas as suas variáveis produz uma

forte influência sobre as culturas humanas, bem como sobre o imaginário

pessoal que organiza os significados dados às experiências vividas. Neste

esquema, a autoformação é concebida como uma componente da formação e

perspectivada como um processo tripartido entre a autoformação propriamente

dita (de si), a heteroformação (dos outros) e a eco formação (das coisas) e, por

Page 224: As formigas e os carreiros

224

outro lado, é composta por diferentes níveis de interacção entre a pessoa e

o(s) contexto(s): prático, simbólico e epistémico.

Figura 3 – Aproximação ternária da formação (Carré, 1995)

A autoformação, na perspectiva de Varela (1989), simboliza a tomada de

consciência e as retroacções das pessoas sobre as influências físicas e sociais

recebidas – sendo que essas tomadas de consciência e retroacções são

indissociáveis das interacções que lhes deram origem, o que torna claro a

paradoxalidade do processo de autoformação (que simultaneamente se nutre

das suas dependências). A autoformação ultrapassa assim os limites da

educação, entendida como uma transmissão - aquisição de saberes e de

comportamentos, integrando as tomadas de consciência e as retroacções

sobre as influências heteroformativas e eco formativas.

Esta abordagem ternária permite distinguir três níveis complementares de

análise e de acção que intervêm nos comportamentos de formação dos sujeitos

sociais, articulando os três níveis de organização (micro, meso e macro) numa

aproximação pluridisciplinar e «aberta» que permite o estudo da noção de

Sujeito

Nivel Micro - Psicopedagógico

(Auto)

Dispositivo de Formação

Nível Meso - Tecnopedagógico

(Hetero)

Contexto/Meio Ambiente

Nível Macro - Sociopedagógico

(Eco)

Page 225: As formigas e os carreiros

225

‘autoformação’ do ponto de vista da actividade formativa do sujeito, da

mediação educativa e das condições sociais nas quais se inscreve, conjugando

três aproximações disciplinares.

A formação nesta perspectiva de processo é então entendida como formar

alguém ‘em’ qualquer coisa, ‘para’ qualquer coisa e ‘por’ qualquer coisa (M.

Fabre, 1994). Este autor concebeu o «triângulo da formação» com os vértices

do ‘desenvolvimento pessoal’, da ‘situação socioprofissional’ e do ‘conteúdo e

método’, onde a interacção entre os três vértices constitui a dinâmica do campo

pedagógico.

Figura 4 - Dinâmica do campo pedagógico (M. Fabre, 1994)

Do ponto de vista reflexivo a exploração deste tipo de figuras oferece uma

estrutura de pensamento que permite sair do pensamento dicotómico e binário

e, por outro lado, permite abrir a pesquisa às interacções, às transacções e às

retroacções entre os diferentes elementos.

De facto, não parece possível pensar a autoformação e a autonomização do

sujeito sem articular a acoplagem interactiva pessoa/ambiente e a tomada de

consciência reflexiva (Galvani, 1997). A autoformação pode declinar-se em três

processos de retroacção: a retroacção de si sobre si (através dos processos de

subjectivização), a retroacção do ambiente social (através dos processos de

Lógica Social

(Situação socio-profissional)

Lógica Didática

(conteúdos e métodos)

Lógica Psicologica

(Desenvolvimento Social) INSTRUÇÃO - Formação didática

Page 226: As formigas e os carreiros

226

socialização) e a retroacção sobre o ambiente físico (através dos processos de

‘ecologisação’3).

Estas perspectivas do processo de formação e de auto formação apresentam

potencialidades para reflectir sobre o Serviço Social enquanto disciplina e

prática e para promover a consciência reflexiva dos seus profissionais.

- AS ABORDAGENS BIOGRÁFICAS

As abordagens biográficas e, sobretudo, a visão da formação permanente de

que são portadoras, abrem importantes perspectivas de mudança e ruptura

com o paradigma positivista que diminuiu as ciências sociais enformando-as

em lógicas que lhe eram estranhas.

Do ponto de vista das Ciências da Educação e, segundo Canário (2005) este

confronto com o paradigma positivista está associado a três movimentos ou

tendências que marcaram o último quartel do século XX:

o movimento da “Educação Permanente” que, sob a égide da Unesco,

procurou promover, na década de 70, a ‘humanização do

desenvolvimento’, afirmando o primado da pessoa e do aprender a ser,

encarando a aprendizagem como algo global e contínuo que ocorre em

todos os tempos e espaços;

o movimento das “Histórias de Vida” que ao adoptar a pergunta ‘Como

se formam os adultos?’ como questão fundadora, operou uma revolução

de paradigma na perspectiva de abordar os problemas da educação;

o movimento de valorização da educação não formal (a parte submersa

do iceberg educativo), traduzido na teorização e prática da animação

cultural.

Estes movimentos ou tendências, partindo do princípio que o saber é

construído inter – subjectivamente ao longo do processo de formação e

aprendizagem através de sínteses sucessivas, pressupõem não só uma nova

postura do investigador, como desafiam a que os sujeitos participem da

investigação e da produção de saber.

3 Este termo resulta da tradução directa do francês ‘ecologisation’ mencionado em Pineau, 2005:146.

Page 227: As formigas e os carreiros

227

“…a qualidade essencial de um sujeito em formação está então na sua capacidade de integrar todas as dimensões do seu ser: o conhecimento dos seus atributos de ser psicossomático e de saber-fazer consigo próprio; o conhecimento das suas competências instrumentais e relacionais e de saber-fazer com elas, o conhecimento das suas competências de compreensão e de explicação e do saber-pensar. O tema da procura da identidade que perpassa as narrativas de formação leva a pensar que um dos desafios da formação é pôr em prática a criatividade em todas estas dimensões ao longo de um processo de individuação” (Josso, 2002: 33).

O que está em jogo neste conhecimento de si próprio não é apenas,

compreender como é que nos formamos ao longo da nossa vida mas também

tomar consciência de que este reconhecimento de nós próprios como sujeitos,

permite delinear um itinerário de vida onde os investimentos e objectivos se

vão «encaixando», na base da auto-orientação possível que articule mais

conscientemente as heranças, as experiências formadoras, as pertenças, as

valorizações, os desejos e o imaginário com as oportunidades socioculturais

que soubermos agarrar, criar e explorar.

“Transformar a vida socioculturalmente programada numa obra inédita a construir, sendo guiado por um aumento de lucidez, tal é o objectivo central de transformação que oferece a abordagem História de Vida” (Couceiro, 1992).

O trabalho desenvolvido nomeadamente por Christine Josso oferece uma visão

geral das perspectivas teóricas desenvolvidas nas últimas décadas para a

construção de um novo conceito de formação. É assim que esta autora propõe

um percurso por disciplinas como a sociologia, a psicologia social e a

antropologia à procura dos seus contributos para a ideia de formação e que

veio a desembocar num campo teórico integrado (mas não consensual) nas

ciências da educação. Para Josso a ideia básica é a de ultrapassar o conceito

da formação como transmissão e reprodução de informações, no pressuposto

que assim ficam de fora muitas contribuições de diferentes áreas disciplinares

que alargam o conceito de formação. Reporta-se nomeadamente a duas

correntes: «a formação como processo de mudança e a formação como

projecto, produção da sua vida e do seu sentido» (Josso, 1991: 47).

Inspira-se também em vários autores, para quem a formação é considerada um

processo global e que implica as diferentes dimensões da vida, acompanhando

todo o seu decurso. Paulo Freire, de cuja obra a autora retira a ideia de que a

formação pertence sempre àquele que se forma, embora ninguém se

Page 228: As formigas e os carreiros

228

forme/eduque sozinho; B. Honoré, donde se salienta a «teoria da criação e da

elaboração do projecto» (1977) em que as experiências de formação ganham

sentido na história pessoal de cada um, articulando-se com outras e

preparando experiências futuras, numa perspectiva de educação regida por

princípios de desenvolvimento dos sujeitos; P. Dominicé (1984), de quem

integra uma ideia de formação como articulação entre experiência e

aprendizagem. Para este autor, o percurso individual de formação decorre num

processo global de socialização, onde se articulam inserção profissional e

institucional, contextos socioculturais e económicos, e em que a história

individual e os acontecimentos históricos que modelam uma sociedade estão

em interacção constante; G. Pineau (2002), que propõe uma revolução

paradigmática baseada numa dialéctica entre autoformação e heteroformação.

Heteroformação, identificada como uma educação pelos outros (através de

processos diversificados como a formação escolar, profissional e sociocultural)

e Autoformação, entendida como uma apropriação do poder de formação por

parte dos indivíduos. Mais recentemente, desenvolveu o conceito de Eco

formação, concebido como um processo de autoformação que decorre na

ausência dos outros, que reenvia o sujeito a si mesmo e às coisas do seu

habitat físico elementar e de coformação, pela abertura a uma comunicação

social mais profunda.

A história de vida de uma pessoa, para além de todas as subjectividades,

acontece num contexto espácio-temporal e a tecnologia, a conjuntura e a

mentalidade vigentes acabam por constranger, marcar ou influenciar de modo

semelhante toda a geração de determinado contexto – o que acaba por ser

social e não apenas singular. Para Josso (2002) a procura de compreensão

dos processos de formação de adultos é indissociável da globalidade da

pessoa no seu continuum de vida e o trabalho biográfico é, nesta perspectiva,

um dos meios para nos manter em contacto com a nossa totalidade e para

evitar ser agitado pelas prioridades estabelecidas pelos outros, encorajar uma

presença reflexiva nas actividades que fazemos e desenvolver uma

distanciação critica em relação a convicções que nos servem de referências

nas nossas maneiras de pensar e de trabalhar. Refere a propósito que:

Page 229: As formigas e os carreiros

229

“Se aprender a aprender parece ter-se tornado um dos objectivos da educação primária e secundária, não parece evidente para toda agente que aprender a aprender é estar consciente de como se faz para aprender, a fim de poder melhorar as suas competências na gestão da sua aprendizagem e de auto facilitar a tarefa nas aprendizagens novas.” (Josso:2002:108)

Assim e em particular, a abordagem das histórias de vida enquadra-se nas

actuais correntes epistemológicas das ciências sociais e humanas,

transportando-nos para um novo paradigma da formação e da investigação,

que revaloriza o papel do sujeito na investigação, atribuindo à subjectividade

um estatuto e ‘um valor de conhecimento’. As narrativas construídas sob esta

perspectiva são, desde logo, subjectivas na medida em que são narradas no

quadro de uma relação e interacção pessoal complexa e recíproca entre o

narrador e o observador - importa restituir à narrativa biográfica a plenitude da

sua natureza relacional e da sua intencionalidade comunicativa (Couceiro,

1992:45).

Ao contrário de uma lei geral, as histórias de vida afirmam o “paradoxo

fundamental do universal no singular” considerando que “se todo o indivíduo é

a reapropriação singular do universo social e histórico que o rodeia, podemos

conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma praxis individual”

(Ferraroti, citado em Couceiro, 1992: 45). Por outro lado, evidencia-se o

estatuto que se atribui à experiência no processo de aprendizagem e formação,

já não como mero lugar de aplicação de saberes teoricamente adquiridos ou

como material facilitador da codificação de saberes disciplinares, mas sim por a

considerar, quando reflectida, como fonte e produtora de aprendizagens, na

medida em que ao reconhecer-se e ao valorizar-se o que a experiência ensina,

se lhe atribui valor de conhecimento e produção de saber (es).

A originalidade do método de investigação-formação em Histórias de Vida

situa-se, em primeiro lugar, na constante preocupação de que os autores das

narrativas consigam atingir uma produção de conhecimentos que tenha sentido

para eles, que eles próprios se inscrevam num projecto de conhecimento que

os institua como sujeitos, numa exploração transdisciplinar.

As histórias de vida são, assim, um conceito que fornece instrumento/método

para investigar sobre os processos auto formativos e, simultaneamente, para

reforçar, em formação, os próprios fundamentos socio-pessoais da

Page 230: As formigas e os carreiros

230

autoformação (Couceiro, 1992: 49). Contudo, as nossas respectivas origens

disciplinares, dificultam a assunção do risco de uma posição transdisciplinar

que coloca em causa os territórios disciplinares e nos leva a mobilizar

referenciais teóricos disciplinares, em detrimento de um diálogo teórico com

produções dos investigadores em rede.

Para os assistentes sociais que ainda demonstram algumas inseguranças nas

intervenções multidisciplinares, o desafio desta posição transdisciplinar,

constitui uma possibilidade de constituir novos territórios de construção de

conhecimento e de explicitação das suas especificidades.

- A DIALÉCTICA ENTRE EXPLICAÇÃO E COMPREENSÃO

Os assistentes sociais têm-se mobilizado muito mais para produzir explicações

e formas de intervir sobre e com os fenómenos e as populações com que/quem

interagem, do que para produzir narrativas compreensivas sobre «como» e

«porque» intervêm e «como» atribuem significado às realidades que constroem

em conjunto com outros.

No desempenho da profissão de assistente social, a praxis inicial apoiava-se

na teoria produzida pelas Ciências Hermenêuticas como forma de

compreender os fenómenos sociais existentes e, a partir daí, formar «um

esquema operativo/funcional que foi dominante na actuação profissional dos

assistentes sociais» (Mouro, 2009:223).

A palavra hermenêutica tem origem no verbo grego ‘hermeneuin’ que significa

interpretar e está ligada à mitologia grega do deus Hermes (mensageiro-alado)

mas também existe outro sentido que se refere ao ‘explicar’, entendido por isso

a clarificação de algo mas também o significado atribuído a essa clarificação,

que compreende quem tenta explicar e o respectivo contexto.

Paul Ricoeur mostra-nos nas contribuições do seu pensamento (1976, 1986,

1990, 1995) algumas considerações sobre a hermenêutica que pareceram

importantes ser mobilizadas para este trabalho:

na primeira, refere-se à hermenêutica como um «enxerto», já que surgiu

numa disciplina que tinha por finalidade compreender os textos

sagrados;

Page 231: As formigas e os carreiros

231

na segunda consideração, a hermenêutica é definida como uma ciência

da compreensão linguística que serve de base para a concepção de

todos os tipos de interpretação de textos, definindo-se a si própria como

não disciplinar e propondo-se à sua própria compreensão;

na terceira, é considerada como base metodológica humanística para

as disciplinas que estivessem centradas na compreensão da arte, do

comportamento e da escrita do homem;

na quarta refere-se à compreensão existencial e fornece uma

explicação fenomenológica da existência humana (nomeadamente em

Heidegger) numa linha em que a compreensão é relacionada à

experiência estética e ao conhecimento histórico, significando que a

compreensão precisa de estar inserida num contexto no qual haja uma

fusão constante do passado e do presente por meio da linguagem;

na quinta consideração, a hermenêutica é tida como um sistema de

interpretação, como um processo que interpreta um conteúdo e um

significado manifesto ou escondido.

Ricoeur aponta como desmistificadores da hermenêutica autores como Marx,

Nietzsche e Freud, referindo que cada um deles interpretou a superfície da

realidade como falsa ao condenarem a religião e ao colocarem sob suspeita o

pensamento que o ser humano assentava na realidade, nas suas crenças e

motivações. Este autor traz um pensamento novo e contribuiu

significativamente com uma teoria da interpretação alicerçada na dialéctica

entre explicação e compreensão, mediada pela interpretação e seguindo um

método reflexivo que faz aliança com o vivido.

Na necessária mudança de representações e modos de relação aparece com

particular importância a problematização para fazer surgir necessidades de

reflexão e de formação, desassociando a formação do modelo de resolução de

problemas.

A formação como processo de desenvolvimento pessoal tem necessariamente

um carácter reflexivo e de apropriação dos recursos em presença, assumindo o

profissional a capacitação pela sua própria aprendizagem e pelo significado

que lhe atribui, na diversidade cada vez maior de práticas e de interacção com

muitos outros. E promover a diversidade significa “aceitar a formação como um

Page 232: As formigas e os carreiros

232

processo de pesquisa, em que o erro desempenha um papel importante no

processo colectivo de aprendizagem”, aceitando igualmente que “a acção

educativa não é redutível a ‘receitas’, qualquer que seja o seu grau de

elaboração, nem a modelos acabados, universalmente válidos” (Canário, 1994:

67). Neste sentido, importa aos assistentes sociais não esquecer o domínio da

aprendizagem experiencial - que é perspectivada no sentido “de uma

capacidade para resolver problemas, mas acompanhada por uma formação

teórica e/ou de uma simbolização” (Josso, 1989) - e a sua importância como

domínio de saber específico da profissão.

Apesar da experiência ser considerada como um elemento central nos

processos de aprendizagem contínua dos adultos, esta tem ainda uma

valorização ambivalente, quer no domínio restrito do campo dos profissionais

de Serviço Social, quer no âmbito, mais global, de uma concepção educativa

que privilegia a aprendizagem do conhecimento científico tradicional em

detrimento da aprendizagem reflectida da experiência. E ambivalente, porque

também serve a muitos profissionais para justificar a protecção do seu campo

de intervenção e do valor da «tutoria» que aceitem fazer para introduzir os

novos profissionais no terreno pantanoso do «conhecimento da realidade»,

furtando-se ao esforço de explicitar e comunicar em que consiste esse

conhecimento.

Como refere Josso (1991) a transformação do vivido para a experiência implica

a utilização de um mediador que é a linguagem, e a utilização de competências

culturalmente adquiridas. As experiências são objectivadas a partir do trabalho

consciente, e são descritas em diferentes registos de expressão de dimensões

diferentes (psicológico, cultural, sociológico, psicossociológico, político e

económico), que constituem a sua riqueza. Nesta linha, os saberes (que por

convenção, resultam da experiência) para que possam ser socialmente

valorizados carecem de elaboração de acordo com modalidades socioculturais

precisas (atendendo aos contextos socioculturais nos quais os acontecimentos

se produzem) e com a diversidade de lógicas individuais. A experiência só é

formadora na medida em que é possível explicitar (a priori ou a posteriori) as

aprendizagens, em “termos de capacidade, de saber-fazer, de saber-pensar e

de saber situar-se” (Josso, 2002).

Page 233: As formigas e os carreiros

233

Em profissões, como a dos assistentes sociais, com vertentes relacional e

simbólica muito fortes, esta questão carece de grande aprofundamento. Por

maioria de razão, quando as socializações e os desempenhos profissionais são

realizados em contexto organizacional, e esses próprios contextos são

promotores quer de aprendizagens (nem todas positivas), quer de instalações

em zonas de conforto.

Segundo Argyris e Schon (1978), a aprendizagem organizacional ocorre

quando os indivíduos de uma organização, agindo a partir das suas

representações, detectam convergências ou desvios entre os resultados

esperados e os resultados obtidos; quando se constata a existência de desvios,

os indivíduos procuram a sua correcção, formulando novas hipóteses e criando

novas estratégias. Mas para que exista aprendizagem organizacional, estas

‘descobertas’ têm de ser codificadas nas representações partilhadas pelos

indivíduos, ou nos elementos das “teorias em uso” na organização. Se esta

codificação não ocorrer, os indivíduos terão aprendido, mas as organizações

não o terão feito.

Esta dimensão parece de grande importância, quanto a constatação empírica

nos remete para organizações cristalizadas, apesar de nelas intervirem

profissionais qualificados e reflexivos que, em dado tempo e contexto favorável,

promovem intervenções não rotineiras, que introduziram mudanças

significativas mas que não conseguem alterar as “teorias em uso”.

Apresenta-se em consonância com a abordagem da aprendizagem

experiencial atrás referida, que é uma fonte legítima, a partir da qual, através

de uma dinâmica reflexiva, é possível dar forma ao ‘vivido’ e transformá-lo em

conhecimento. Por outro lado, aguça a curiosidade científica para investigar a

perspectiva das “organizações qualificantes” que se podem constituir como

relevantes contributos, nomeadamente para a democratização do trabalho, a

valorização das suas valências qualificantes, a articulação entre saberes

formais e informais, entre outros (Correia, 1997).

Esta perspectiva abre enormes potencialidades, nomeadamente no que

respeita, a um recente campo de pesquisa que procura entender os saberes

adquiridos pelos adultos à margem dos sistemas formais de

educação/formação, em contexto de trabalho, ou em contextos não-formais ou

Page 234: As formigas e os carreiros

234

informais, com uma especial atenção ao papel da experiência reflectida e ao

papel do sujeito no ‘controle’ do seu próprio processo de formação. Por outro

lado, o trajecto do Serviço Social no campo da investigação passou por uma

«relação de conveniência»,

“…que se traduziu num investimento relativamente à produção teórica disciplinar que tinha por objectivo (…) a construção de uma metodologia pragmática que reflectia as ressonâncias das ciências modernas e da democratização da ciência e que, ao mesmo tempo, produzia intervenções de ordem reparadora ou compensadora, mas não transformadora” (Mouro, 2009:224).

Esta forma de leitura pode justificar o aparecimento de uma produção teórica

essencialmente focada nos aspectos processuais de definição e organização

das metodologias da intervenção profissional e nos problemas de ordem social

dentro de um modelo de Estado ‘protector’.

- REFLEXÕES SOBRE «COMPROMISSOS»

Por «compromissos» pretendo significar o empenho e o envolvimento que

muitos assistentes sociais colocam no que fazem e na maneira como fazem.

Tidos por alguns por «formigas obreiras» são muitas vezes agentes pouco

visíveis mas muito «comprometidos» e «militantes» com causas, públicos,

projectos e/ou organizações. Segundo Bourdieu (2004) «Compreender» é, em

primeiro lugar, compreender o campo em que nos fizemos e contra o qual nos

fizemos, e esse tem sido um compromisso transversal no meu percurso

profissional. Escolhi o termo «compromissos» porque me parece

suficientemente abrangente para incluir diferentes possibilidades, mas também

com a necessidade de afastar a ideia tradicional de «vocação» para as

escolhas e exercícios destes profissionais. Continuo a pensar que escolher

tornar-se Assistente Social é uma escolha profissional exigente e corajosa (que

não termina no final da licenciatura) porque este tipo de trabalho coloca quem o

exerce em contacto directo com o sofrimento e a miséria humana, com as

injustiças e as desigualdades, mas também com as inúmeras questões

organizacionais que produzem frequentes dilemas e com as grandes correntes

e domínios da política, da ciência e da ideologia.

Page 235: As formigas e os carreiros

235

Jacques Riffault (2007) no seu livro «20 questões para pensar o trabalho

social» (que subdivide em três partes, designadas respectivamente «valor»,

«conhecimento» e «sentido» refere que estas profissões pouco valorizadas e

mal reconhecidas socialmente, assentam num compromisso individual forte e

que podem ser caracterizadas em quatro dimensões que parecem alimentar

esse compromisso:

Só se pode exercer de forma durável este tipo de profissão com um quadro

de leitura das injustiças sociais e uma crença na possibilidade de um

progresso social e humano. É a dimensão de «querer mudar o mundo» que

compromete muitos profissionais e, sem a qual, correm o risco de não

entenderem as situações das pessoas e de nada fazerem para que elas se

modifiquem;

Este compromisso deve nutrir-se de uma referência aos valores fundadores

do Serviço Social e da Democracia e só para citar alguns: o respeito

absoluto pela dignidade humana e pela liberdade das pessoas, a defesa e a

promoção dos seus direitos, a solidariedade e o desenvolvimento. Esta é

uma dimensão explicitamente política deste envolvimento;

A dimensão ética do compromisso aponta para a expectativa de que

existam em cada pessoa e em cada sociedade os recursos para poderem

modificar-se para melhor. A crença na reversibilidade das situações

problema é particularmente importante nas situações mais «obscuras» ou

«desesperadas»;

Este tipo de profissões implica uma racionalidade nunca alcançada, mas

sempre em construção, no esforço quotidiano de compreender e de se

compreender, de reflectir e de nomear o que se pensa, de se perguntar

porque pensa daquela maneira o que se está a tentar fazer e porque se faz

de determinada maneira e não de outra, e prestar contas a si mesmo, aos

outros e à sociedade.

Esta «ética do compromisso» necessita de ser reflectiva e reassumida, em prol

de desempenhos profissionais que não sejam simples trocas directas de

afectação de tempo por retribuição de um pagamento (que, de um modo geral,

é cada vez menos significativo e descondicente com o investimento na

formação). E, como referem ainda Bogdan e Bilklen (1994: 55),

Page 236: As formigas e os carreiros

236

“o significado que as pessoas atribuem às suas experiências, bem como o processo de interpretação, são elementos essenciais e constitutivos, não acidentais ou secundários àquilo que é a experiência. Para compreender o comportamento é necessário compreender as definições e o processo que está subjacente à construção destas. Os seres humanos criam activamente o seu mundo”.

Destas questões que alimentam, ou não, um leque variado de compromissos

possíveis, decorre a importância da formação inicial e contínua, formal, não

formal e informal para alargar a consciência e o poder de enunciação sobre os

dilemas, os constrangimentos e os paradoxos de um trabalho que implica muito

mais do que a aplicação de uma «tecnologia».

A análise de Boaventura Sousa Santos considera que a fase de transição do

Estado de bem-estar contém elementos novos e contraditórios por relação ao

que foi o paradigma dominante. Na concepção de Sousa Santos a transição

paradigmática do Estado de «wellfare» para «workfare» “... preenche em parte

a sua dimensão de bem-estar transferindo prerrogativas estatais para

instituições e associações não estatais, sempre que é necessário concretizar

inovações sociais” (1990:258)

Os trabalhadores sociais que se encontram no campo de muitas contradições e

paradoxos que os ultrapassam (mas que também os incluem), quer no âmbito

político ideológico, quer no domínio organizacional, precisam cada vez mais de

se posicionar para não ficarem reduzidos ao papel de meros executores dos

sistemas de redistribuição e controlo vigentes e perderem assim a

oportunidade de inovar quer nos seus modos de fazer, quer nas formas de

produzir formas de compreensão sobre os fenómenos sociais, tornando-as

socialmente disponíveis.

Page 237: As formigas e os carreiros

237

CAPÍTULO 4 - METODOLOGIA - PERCURSO DE

INVESTIGAÇÃO

Fui expressando a opção pelo tipo de investigação no referencial conceptual

«mestiço» que tenho vindo a mobilizar neste processo de pesquisa.

O enunciado teórico que pretende suportar e dar inteligibilidade ao projecto de

investigação, na tentativa de compreender o objecto de estudo e formular as

questões de pesquisa, foi radicado sobretudo num movimento conceptual de

uma «prática-investigadora» que experienciou uma aproximação entre o

conhecimento dos actores e o processo de produção de conhecimento

considerado científico.

A imersão no «objecto social» é uma particularidade de posicionamento que

mais do que assegurar uma dialéctica entre a autora e os actores, parte da sua

experiência reflectida num percurso profissional e académico e, num processo

cumulativo de alargamento de concepções e de visões que procura junto de

outros actores informação que pode ser convergente. Este processo de

«bricolage» (Lévi-Strauss, 1962) procurou sobretudo explicitar a matriz de

pensamento e encontrar significados que ajudassem a compreender e

identificar as unidades macro de análise do projecto de estudo. Pretendeu-se

assim: i) Construir uma narrativa da problemática da formação de Assistentes

Sociais ao longo da sua vida; ii) Centrar-se numa atitude crítica face a

concepções de cariz dualista que historicamente determinaram racionalidades

epistemológicas que conduziram os profissionais de Serviço Social a um tipo

de conhecimento teórico fragmentado e de tipo prescritivo; iii) Realizar um

movimento de natureza construtiva na busca de alternativas conceptuais que

visam fundamentar as possibilidades de integração dos saberes da teoria e da

prática numa perspectiva epistemológica da «praxis».

Este capítulo encontra-se estruturado em quatro pontos: no primeiro é

identificada a questão de partida e as questões orientadoras; no segundo

clarificam-se as opções e a estratégia metodológica definida; no terceiro, é

explicitado o desenho da investigação numa abordagem de inspiração

biográfica e no quarto, identifica-se o processo de análise efectuado.

Page 238: As formigas e os carreiros

238

4.1. Questão de partida e questões orientadoras

A questão central de partida consistiu em:

Compreender como se formam os assistentes sociais e como constroem

as suas formas identitárias ao longo da vida.

Com esta questão pretendia aprofundar a reflexão sobre a profissão de

Assistente Social numa perspectiva a partir de dentro do campo e no

entendimento de que a profissão se constrói e se aprende, no diálogo entre o

exercício e a reflexão sobre si própria, sobre os outros e o mundo. A escassez

de investigação neste «campo» específico, no sentido atribuído por Canário

(2000) o qual nos remete para diferentes práticas – práticas sociais de acção,

de reflexão e de (re) produção social, a fluidez da delimitação do campo

profissional e a consciência das tensões e paradoxos que o atravessam foram

conduzindo o projecto de investigação para caminhos que a questão central de

partida abriu, partindo de uma base teórica plural e «mestiça», embora com um

posicionamento na Educação.

Considerei a questão de partida como uma possibilidade de tentar produzir

entendimento sobre o(s) modo(s) como se cruzam os percursos de formação e

as trajectórias profissionais dos assistentes sociais e o(s) modo(s) como as

suas representações da profissão, do contexto de trabalho e da formação se

manifestam como «ideais-tipo» de uma profissão em debate.

A partir da exploração das suas singularidades por relação às profissões

sociais, interroga-se o saber profissional, as suas construções identitárias, os

processos de formação inicial e ao longo da vida, a permeabilidade ao poder e

às ideologias e a produção de conhecimento próprio. Contudo, como refere

Guess (1988) citado em Sousa Almeida (2011)

“…a amplitude do questionamento também encerra uma opção deliberada face

ao pressuposto epistemológico de que os fenómenos sociais são fenómenos sociais totais cuja compreensão implica a disponibilidade do investigador para os olhar a partir da sua multi-dimensionalidade, estando desperto para captar não só a homogeneidade mas também a variedade, a diversidade e o conflito que qualquer grupo humano encerra”.

Enquanto prática simbólica o trabalho social encontra-se com diferentes

domínios no seu limite, pelo que a acção inscreve-se na articulação de quatro

Page 239: As formigas e os carreiros

239

desses domínios: subjectividade, identidade, palavra e vínculo social (Autés,

1999). As características do trabalho social explicam, em parte, a dificuldade

estrutural que os assistentes sociais têm em descrever o que fazem,

dificuldade que se relaciona com a construção das práticas, nas quais a

construção do objecto se encontra profundamente ligada às estratégias de

acção – e as actividades do Serviço Social desenvolvem-se no registo da

relação e da linguagem (Dubet, 2002). Assim, no presente trabalho é central o

conceito de identidade, articulado com o campo da educação e formação de

adultos e o campo do trabalho. Esta questão centra o objecto de pesquisa na

reflexão sobre as pessoas e os seus contextos, assumindo-se “… a perspectiva

de recolocar o sujeito no lugar de destaque que lhe pertence quando desejar

tornar-se actor que se autonomiza e que assume as suas responsabilidades

nas aprendizagens e no horizonte que elas abrem” (Josso: 1989, pp.49).

Assim, foram identificadas as seguintes questões orientadoras:

• Que ligações estabelecem os Assistentes Sociais entre os saberes teóricos

e os saberes da prática?

• Qual a relação com o saber académico? Que perspectivas sobre a

interacção entre a formação inicial, a formação contínua formal e as

aprendizagens experienciais e organizacionais?

• Como e se constrói uma «reflexividade crítica» (na acepção da

«aprendizagem crítica» de Mezirow e Brookfield) no profissional e na

profissão?

• Como se forma a profissionalidade e a identidade profissional destes

profissionais? Quais as competências construídas - em que tempos,

processos e contextos? Qual a relação do domínio profissional com o

domínio familiar? E no ‘fim’ do seu ciclo de vida profissional – que balanços,

que crises e que projectos?

• Como se processa a «conquista do tempo pessoal» e a «transformação de

perspectivas»?

Neste âmbito, será importante explicitar que fui buscar o conceito de

«transformação de perspectivas» aos autores Brookfield (1995) e Mezirow

(1991) - este conceito pretende atribuir significado a dois processos

complementares, o processo emancipatório de conhecimento crítico que dá

conta de «como» e «porquê» a estrutura psico-cultural constrange as nossas

Page 240: As formigas e os carreiros

240

relações, e o processo de reconstrução dessa estrutura para permitir uma

integração mais inclusiva da experiência sobre novos entendimentos. O

conceito de «conquista do tempo pessoal» é um conceito de Josso (2002) que

refere a esse propósito que:

“A temporalidade da formação, tal como pode ser verbalizada e socializada numa narrativa de vida, é excepcionalmente contada como um milagre de instantaneidade. É o tempo de realizar uma tomada de consciência e de fazer um trabalho de integração e de subordinação...: fazer com...para se dar forma, fazer com...no tempo de transformar o meu tempo em experiências formadoras de competências e de qualidades» (Josso, 2002: 156).

Segundo esta autora, a aproximação à temporalidade biográfica faz-se tal

como a vida se deixa ver nas histórias de vida contadas sobre o ângulo das

questões: i) «como me tornei no que sou?»; ii) «Como acontece que penso o

que penso?»; iii) «Como aprendi o que creio saber, saber-fazer e saber-

pensar?».

Sem pretender ser exaustiva, diria que foram estas questões no seu conjunto

que orientaram a pesquisa.

Tomando o percurso (e os processos) formativo e de construção profissional

dos Assistentes Sociais como objecto de análise, procurei perceber, na

perspectiva dos profissionais entrevistados, quais os acontecimentos

marcantes, quais as suas circunstâncias e contextos, mas mais do que isso,

quais os significados atribuídos pelos próprios sujeitos da investigação à sua

construção identitária.

Para tanto e recorrendo a alguns aspectos dos tópicos anteriores, utilizei quatro

eixos da análise:

- O domínio da autoformação na relação com os saberes

- O processo de construção pessoal e a identidade profissional

- O «empowerment» na profissão e na vida

- As crises como oportunidades de mudança

As opções metodológicas enunciadas foram sobretudo, formas de tactear o

caminho da procura de desocultação e compreensão das lógicas subjacentes

aos processos de formação dos actores aqui considerados. Procurei ensaiar

uma postura dialógica, em que a construção do conhecimento pretende ser

feita por investigadora e investigados, através da intersubjectividade.

Page 241: As formigas e os carreiros

241

Esta pesquisa permitiu realizar um projecto de investigação (com tudo o que

esse processo tem de planificado e de caótico) mas simultaneamente permitiu

detectar dificuldades e aprendizagens realizadas e a realizar; colocando-me em

confronto quase permanente comigo, com as fontes, com as complexidades do

objecto de estudo e com as várias tensões produzidas pelo confronto dos

referenciais (conceptuais, metodológicos, técnicos e instrumentais) com os

limites dos meus próprios recursos.

O exercício de escuta, a leitura repetida e atenta das narrativas e a

interpretação realizada à luz das entradas escolhidas permitiu realizar o ponto

seguinte, precisamente sobre o trabalho empírico realizado.

Paralelamente fiz um «mergulho» no campo de Serviço Social traduzido em

duas estratégias paralelas: uma aproximação ao debate académico do campo

de Serviço Social e a intensificação do diálogo próximo com assistentes sociais

(e outros trabalhadores sociais) através de um ciclo de formação que desenhei

e desenvolvi para uma grande instituição do concelho de Lisboa, que possui

um elevado número de assistentes sociais nos seus quadros de pessoal

(2007/2008/2009).

Privilegiar a metodologia qualitativa, sobretudo de um ponto de vista

epistemológico e ontológico, pretende significar que o sentido destas

abordagens situa-se no próprio objecto de análise e no dos postulados a ele

ligados, e não apenas, ou fundamentalmente, no plano dos procedimentos e

técnicas. Mais do que situar-me na distinção dicotómica entre metodologias

quantitativas e metodologias qualitativas, preferi adoptar a noção de continuum

entre qualitativo e quantitativo, recrutando para já a «investigação

interpretativa», inspirada numa abordagem sistémica.

Será oportuno mobilizar Kuhn (1994) para afirmar que nenhum paradigma

pode, por si só, explicar todos os factos e facetas dos fenómenos que se

confrontam numa dada situação, sendo necessário continuar a procurar

alternativas. Em vez de uma opção metodológica inequívoca, preferi arriscar na

especificação do quadro conceptual e ir ensaiando para cada nível de

complexidade uma proposta metodológica que considerei adequada.

No contexto do paradigma interpretativo, o objecto de análise é formulado em

termos de acção – uma acção que abrange o comportamento físico e os

Page 242: As formigas e os carreiros

242

significados que lhe atribuem o(s) actor(es), centrando-se o trabalho do

investigador na variabilidade das relações comportamento/significado e

visando, ao nível do pólo teórico, a descoberta de «esquemas específicos de

identidade social de um dado grupo» (Erickson, 1986:132).

A investigação interpretativa sublinha assim, uma família de abordagens que

partilha um interesse fulcral pelo «significado» conferido pelo (s) actor (es),

entendendo-se esse significado como o produto de interpretação que

desempenha um papel chave na vida social. Assim, o principal interesse desta

investigação não poderia ser o de efectuar generalizações, descobrir leis ou

frequências dos fenómenos, mas antes particularizar e compreender os

sujeitos e os fenómenos ou experiências, como sendo únicos e singulares.

Para tal, contribuem algumas características da investigação em Educação:

• o objecto, o sistema de pertença e o sistema de finalidades, constituem um

universo interatuante, que se interliga também com o contexto, ou seja, a

instituição. O objecto é assim definido a partir do conjunto de práticas que

dizem respeito ao acto educativo;

• o problema da definição do estatuto dos conhecimentos produzidos em que

se entende que os conhecimentos são sempre situados, fazendo parte de

paradigmas. Esta característica, tão mais importante quanto se sabe que

estes conhecimentos não se assemelham aos conhecimentos científicos de

cariz cumulativo faz com que a confrontação dos resultados da pesquisa

seja, muitas vezes, uma confrontação de visões do mundo e de concepções

de educação, e não um confronto de resultados;

• a implicação do investigador, que é simultaneamente ‘libidinal’, institucional

e das próprias metodologias utilizadas;

• o objecto da investigação em Educação inscreve-se sempre numa «ordem

temporal» que nos permite evidenciar que estamos perante um tipo de

‘Epistemologia da escuta’. Diz Berger que, quando nos colocamos numa

posição de escuta envolvemo-nos na temporalidade dos fenómenos e que

nos tornamos sensíveis: “Trata-se de uma ordem que não é produzida por

aquele que escuta, que ele não domina, de uma ordem irreversível que o

Page 243: As formigas e os carreiros

243

faz assistir ao desenvolvimento progressivo de um conjunto de

acontecimentos” (1992: 34);

• a noção de sentido. Se uma dada situação educativa se desenvolve no

tempo e no espaço e se, simultaneamente, o que a caracteriza é o facto de

ela não ser apenas aquilo que se dá a entender ao investigador, mas

também um conjunto de sentidos que tem para aqueles que nela estão

envolvidos, então, o sentido da situação é um dos elementos que deve ser

apreendido para que o próprio investigador possa dar-lhe sentido.

Estas características não invalidam a cientificidade da investigação em

educação; pelo contrário, apenas aconselham uma prudência e um rigor

especiais, até por estar em presença de um objecto pleno de complexidade e

multidimensionalidade, não abordável de forma desdobrada ou parcelar.

Alguns autores, podem utilizar definições muito estritas de ciência,

considerando apenas como científica a investigação dedutiva e de teste de

hipóteses. Contudo, hoje em dia, uma parte significativa da atitude científica

passa por “uma mente aberta no respeitante ao método e às provas” (Bogdan e

Biklen, 1994: 64).

Do ponto de vista conceptual ainda tenho presente a dicotomia entre uma

posição mais tradicional (na qual me formei) que defende que uma das funções

desempenhadas pelas metodologias é a de construir uma aparelhagem que

vai, em simultâneo, proteger o investigador do ‘transfert’ que o outro faz sobre

ele e protegê-lo do ‘contra-transfert’ (isto é, da forma como ele reage à

interpelação do objecto de investigação) e uma outra posição que defende, no

quadro do método biográfico e do seu paradoxo epistemológico, a

subjectividade como uma legítima via de acesso ao conhecimento científico de

um sistema social, partindo da interacção social ocorrida nas entrevistas.

Ferrarotti defende, sobre esta questão que:

“… uma narrativa biográfica é uma acção social pela qual um indivíduo retotaliza sinteticamente a sua vida (a biografia) e a interacção social em curso (a entrevista), por meio de uma narrativa-interacção… A narrativa biográfica narra uma interacção presente por intermédio de uma vida” (1979:54).

Será ainda necessário aprofundar as diferenças entre os paradigmas

interpretativo e compreensivo, sobretudo na tentativa deste último privilegiar

Page 244: As formigas e os carreiros

244

linguagens que se afastam da «importação» dos métodos das ciências naturais

para as ciências humanas.

Tendo em vista a validade alargada às diversas fases da investigação,

considera-se que a proximidade entre o investigador e o meio em estudo

deverá ser estabelecida logo na fase de determinação da problemática da

investigação, assegurando uma adequada «triangulação». Entendo por

«triangulação», o processo de «validação instrumental» efectuado por meio de

uma confrontação de dados obtidos a partir de várias técnicas e por «validação

teórica» o confronto das inferências feitas relativamente a um mesmo

problema, quer entre os vários investigadores, quer entre o investigador e os

indivíduos entrevistados (Gaultier, citado em Ledssard-Hébert at al, 2005).

Num quadro conceptual multirreferenciado, procurei englobar os conceitos

teóricos de partida numa filiação em conjuntos teóricos que fossem permitindo,

à medida que se vai processando a análise de dados (referentes ao objecto

num «contexto de descoberta»), fazer escolhas e construir um quadro de

análise progressivamente elaborado através de um incessante questionamento

de dados e de referências.

A propósito da distinção entre abordagens que privilegiam o contexto de

descoberta e abordagens que privilegiam o contexto de verificação de

hipóteses, há a ideia por parte de posições críticas da perspectiva da

descoberta de que pelo menos algumas das descobertas das ciências sociais

são ilusórias e que as conclusões baseadas nelas são uma mera reafirmação

dos compromissos ideológicos dos investigadores; mas também existe a

perspectiva de que estes métodos permitem ao investigador fazer perguntas

que se baseiam nos factos estudados, e não nos pré-conceitos do investigador.

Como «práctica-investigadora» não posso deixar de referir que este processo

de investigação tem sido um processo de uma contínua resolução de

problemas, onde se põe continuamente à prova o referencial de partida, bem

como as estratégias metodológicas e o processo sobre o «como se faz» e o

«como se diz o que se faz» da investigação.

Page 245: As formigas e os carreiros

245

4.2.OPÇÕES E ESTRATÉGIA METODOLÓGICA

A ciência moderna tornou possível a primeira ruptura epistemológica e com

base nela separou-se do senso comum existente – o que constituiu uma matriz

racional-científica que se tornou dominante como modo de explicação do

mundo, da vida e das sociedades.

No entanto, uma vez realizada essa ruptura, diz-nos Sousa Santos, o acto

epistemológico mais importante é romper com ela e fazer com que o

conhecimento científico se transforme num «novo senso comum». Para isso é

preciso, contra o «saber», criar «saberes» e, contra os saberes, «contra-

saberes» (2002:93).

Esta noção dialéctica de «saber (es)» que se renova numa dinâmica a favor da

multiplicidade de «saberes» e «contra-saberes» é algo que marca

profundamente este processo de aprendizagem e explicitação, na linha do que

Stoer e Magalhães (2005) defendem como a existência de uma estreita

consonância paradigmática entre o saber científico acerca das coisas e a

necessidade de as governar.

A partir de um conjunto de autores que reflectem sobre a transição entre

paradigmas, seleccionei a distinção que Boaventura Sousa Santos (2002) faz

entre a “transição epistemológica” e a “transição societal”, assumindo que esta

última é bastante mais recente e complexa e entendendo por paradigma

«maneiras de pensar ou pautas» para a investigação que, quando utilizadas,

podem conduzir ao desenvolvimento de uma teoria. É nesta transição societal

e paradigmática que me mobilizo para a investigação e para o agir, como

profissional e como cidadã, situando-me num território conflitual entre

diferentes «pautas» para a investigação e diferentes modos de pensar o

desenvolvimento social.

Apesar da grande diferenciação interna de cada um dos paradigmas e da

existência de um conflito social e político sustentado por grupos e interesses

organizados, ainda que com poder e organização muito desiguais, situo-me na

linha do pensamento emergente, querendo com isso significar que:

“…para o paradigma emergente o objectivo central é lutar contra o apartheid identitário e cultural que o paradigma dominante pressupõe e tem vindo a

Page 246: As formigas e os carreiros

246

desenvolver constantemente. (...) no espaço-tempo mundial o conflito paradigmático é entre o paradigma do desenvolvimento desigual e da soberania excludente e o paradigma do desenvolvimento democraticamente sustentável e da soberania reciprocamente permeável” (Santos, 2004:293)

Em concomitância, o paradigma da complexidade (cf. Morin, 1991 [1973])

permitiu-me respondeu ao desafio de integrar diferentes perspectivas,

albergando a importância da compreensão dos fenómenos no seu contexto e

na ligação à vida, a partir da tecelagem de uma família de abordagens.

A abordagem fenomenológica, através da qual se tenta compreender o

significado que os acontecimentos e interacções têm para pessoas vulgares,

em situações particulares, acreditando que temos à disposição múltiplas

formas de interpretar as experiências, em função das interacções com os

outros e que a realidade não é mais do que o significado das nossas

experiências (Bogdan e Bilklen, 1994). Numa abordagem como esta são

privilegiados os dados experienciais, por serem eles que fornecem as

informações mais complexas relativamente aos significados próprios dos

indivíduos – e é entendido «indivíduo» como um «universo singular», um

homem «totalizado» e «universalizado» pela sua época, que e retotaliza,

reproduzindo-se nela enquanto singularidade.

A abordagem da interacção simbólica confere primazia às interacções

indivíduos – mundo, encontrando-se também a asserção de que a experiência

humana é mediada pela interpretação, sendo todo o significado atribuído,

pressupondo que o indivíduo possui uma certa liberdade de acção que o

distancia do determinismo social. Esta abordagem, da qual Margeret Mead é

uma autora de referência (também ligada à Escola de Chicago, onde leccionou

até ao início dos anos 30 e autora do primeiro trabalho de etnografia da

educação que põe a tónica no ensino e na aprendizagem fora da escola)

aborda a educação como processo social.

O construtivismo social, na linha de Vygottsky, L. (1978) estabelece que todos

somos participantes naquilo que observamos e aprendemos, tomando o que

cada um observa como parcial, subjectivo e participativo. A epistemologia

construtivista de Piaget (na sequencia da qual surge o construtivismo social)

questionou os conceitos de verdade, objectividade e realidade como

Page 247: As formigas e os carreiros

247

fundamento das visões e do conhecimento do mundo, privilegiando um

entendimento oposto ao behavorismo, em que o desenvolvimento das pessoas

é realizado por processos de aprendizagem activos. A «verdade» e a

«realidade», nesta perspectiva, estão relacionadas com uma construção social

e consensual que resultam viáveis para as práticas que orientam ou guiam

essas «construções». O papel da «cultura» e do «pensamento crítico» no

desenvolvimento das pessoas são dois factores explorados nesta abordagem,

que é muito próxima da Teoria da Aprendizagem Social.

Nesta tentativa de explicitação e posicionamento será ainda importante

diferenciar construtivismo social de construcionismo social (na linha do

precursor da Psicologia Social, Kenneth Gergen), salientando que o primeiro se

foca na aprendizagem individual entendida como processo resultante da

interacção com o grupo e o segundo se foca nas aprendizagens colectivas.

A propósito das contribuições do construcionismo social para a Psicologia e,

nomeadamente para o estudo do género fiz, a título de exemplo, uma relação

com o trabalho de Conceição Nogueira (2001, 2005) e achei interessante a

forma como esta autora questiona a cientificidade da Psicologia. Utilizando

uma perspectiva pós-modernista e afirmando que o construcionismo social se

alimenta de um conjunto amplo de influências e de disciplinas científicas, a

autora critica a neutralidade política da Psicologia e assume que a construção

social dos factos psicológicos através de meios humanos torna possível

imaginar a sua reconstrução de formas mais libertadoras e a um nível social

mais amplo.

O pós-modernismo permite, na sua «leitura» uma atitude de compreensão em

relação às grandes teorias ou meta-narrativas e, em simultâneo, questionar e

rejeitar a ideia de verdade última e enfatizar o pluralismo e a coexistência de

uma multiplicidade e variedade de formas de vida dependentes das situações.

De facto, esta posição crítica que nos dá conta do fim das grandes narrativas e

do conhecimento fornecido como «verdade», sugere que as categorias com

que se apreende o mundo não se referem necessariamente a divisões «reais»

e permite «misturar» autores e disciplinas, ligando-os numa espécie de

«parecença familiar» (Burr, 1995), por mais que a sua origem seja distinta.

Page 248: As formigas e os carreiros

248

Desenham-se assim, compreensões do mundo e de cada pessoa no singular

como artefactos sociais, produtos de inter - relações entre as pessoas, com a

sua especificidade histórica e cultural. Embora sinta falta da análise das

estruturas sociais, mesmo que consideradas como «artefactos», é muito

sedutora a análise que esta abordagem faz, entre outros aspectos, da

«linguagem», das «construções do mundo», das «relações de poder» e do

«pluralismo».

Da pertença às Ciências da Educação

No campo das Ciências da Educação, constrói-se hoje a articulação entre o

social e o psicológico, através da apreensão de trajectórias individuais e

colectivas, encaradas simultaneamente como uma história colectiva e como

uma história individual (Berger, 1992: 36) – o que foi desde cedo neste

percurso, uma perspectiva de entrada, quer para colocar a questão de partida,

quer para interpretar o material empírico recolhido.

As diferentes pertenças compõem um puzzle onde, como refere E. Morin

(2003), a «consciência do multidimensional» conduz-nos à ideia de que

qualquer visão parcelar e unidimensional, é pobre.

“Num sentido, diria que a aspiração à complexidade traz nela a aspiração à completude, uma vez que se sabe que tudo é solitário e tudo é multidimensional. Mas, num outro sentido, a consciência da complexidade faz-nos compreender que não poderemos nunca escapar à incerteza e que não podemos nunca ter um saber total” (Morin, 2003:100).

Bourdieu (1992) por sua vez, entendia que o objecto próprio das ciências

sociais não é nem o indivíduo nem os grupos sociais enquanto conjuntos

concretos de indivíduos, mas antes a relação entre os dois no processo

histórico. E fala até de um «politeísmo metodológico» para contrapor à

sofisticação técnica dos usos metodológicos, mas também ao seu uso

irreflectido, destinado a camuflar o vazio criado pela ausência duma visão

teórica.

“Com efeito, as escolhas técnicas, as mais “empíricas”, são inseparáveis das escolhas de construção do objecto, as mais “teóricas”. É em função duma certa construção do objecto que tal método de aferição, tal técnica de recolha ou de análise de dados, etc., se impõe” (Bourdieu, 1992: 197).

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249

Esta opção metodológica «composta» segue assim «entre» as abordagens

micro e macro sociológicas: a primeira, inspirada no «fenómeno social total» de

Marcel Mauss que enfatiza a nossa vida quotidiana e o «acontecimento que

nos toca» e a segunda, onde o Movimento da Educação Permanente e os

conceitos de Autoformação e Competência fazem um cruzamento de

perspectivas (com muitas outras já descritas).

A separação fundadora do olhar científico entre sujeito e objecto está

contextualizada como condição da ciência mas, é também condição política

que atribui lugares, quer ao objecto, quer ao sujeito do conhecimento. Neste

ponto mobilizo a perspectiva de Stoer e Magalhães para referir a necessidade

de “uma humildade epistemológica e política mais consentâneas com aquilo

que reflexivamente vamos sabendo acerca de nós e dos outros” (2005:10).

Estas possibilidades de entendimento sobre outras formas de conceber o

conhecimento (diferentes na sua «apropriação», «aquisição», «aplicação» …) e

a sua relação com aqueles que o constroem, constituiu neste processo um

perigo e uma sedução – uma sedução pela inovação (pelo menos para mim) da

possibilidade de sair da «fôrma» positivista e tentar construir um percurso

metodológico próprio; e perigo, porque o receio do desconhecido é grande e

existem riscos acrescidos de perda de rigor e de queda no senso-comum, a

que é preciso estar sempre vigilante. Por outro lado, o percurso por este

caminho desconhecido tinha/teve/tem tantos cruzamentos, troços com muitos

sinais e outros sem sinal nenhum, atalhos, acidentes, referências que ajudam e

outras que distraem e enganam, que torna muito difícil seguir o rumo, chegar a

algum lado e, sobretudo contar como foi o percurso.

Mas neste caminho e neste cruzamento de perspectivas pode admitir-se que a

investigação em Ciências Sociais tende a ser um trabalho de reelaboração, de

reinterpretação de um conjunto de fenómenos que todos nós experienciámos,

se não no modelo tributário do modelo dominante das Ciências ditas Naturais,

pelo menos no modelo que, admite ser a tarefa do investigador (como a tarefa

de construção do saber) a de ir buscar junto daqueles que sabem, o discurso

de que são portadores (Berger, 1992). O papel das Ciências Sociais e, em

particular, o das Ciências da Educação, diz-nos este autor seria, em última

Page 250: As formigas e os carreiros

250

análise, trabalhar o saber de que as pessoas são portadoras, e não, o de

produzir saberes sobre as pessoas «coisificadas» que elas não seriam capazes

de saber.

Sobre a cientificidade da metodologia utilizada, recorro mais uma vez ao

trabalho de Rui Canário (2003), que identifica três questões fundamentais: i) a

questão das fronteiras - a especificidade do conhecimento científico? ii) a

questão da identidade - a fronteira entre o natural e o social?; iii) e a questão

da pertinência - a diferenciação das ciências da educação das ciências sociais.

Quanto à primeira, é assumido pelo autor que são duas as características que

permitem distinguir o conhecimento científico de outras formas de

conhecimento: o primado da teoria e a existência de um método consistente,

explicitado e permanentemente sujeito a revisão crítica. E como não existe um

critério único de cientificidade, fica ao critério de cada domínio disciplinar

elaborar os seus próprios critérios de cientificidade, embora com o respeito

pela permanente e rigorosa explicitação, por parte dos investigadores do que

fazem, como o fazem e por que o fazem.

Neste âmbito, as ciências da educação, o serviço social, ou a ciência em geral,

apresentam-se como variáveis históricas, onde através de um processo

histórico se deu origem às respectivas comunidades científicas, com os seus

mecanismos de regulação interna.

Quanto à segunda, a questão da identidade, permite-nos explicitar a existência

de vários critérios de cientificidade. A partir deste pressuposto deixa de fazer

sentido o debate sobre a cientificidade das ciências sociais e sobre o estatuto

epistemológico das ciências da educação (ou do serviço social), pois ele

decorre do pressuposto da superioridade do modelo positivista, da existência

de um critério único de cientificidade e da hierarquização das várias disciplinas

em função do seu hipotético ‘atraso’. Como refere Boaventura Sousa Santos

(2003), a distinção dicotómica entre ciências da natureza e ciências sociais

deixou de ter sentido e utilidade; a ciência pós-moderna é uma ciência

assumidamente analógica.

“Já mencionei a analogia textual e julgo que tanto a analogia lúdica como a analogia dramática, como ainda a analogia biográfica, figurarão entre as características matriciais do paradigma emergente: o mundo, que hoje é natural ou social e amanhã será ambos, visto como um texto, como um jogo, como um palco ou ainda como uma autobiografia. (...) Jogo, palco, texto ou biografia, o mundo é

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251

comunicação e por isso a lógica existencial da ciência pós-moderna é promover a ‘situação comunicativa’ tal como Habermas a concebe” (Santos, 2003: 37 - 53)

No que respeita à terceira, a questão da pertinência da diferenciação das

ciências da educação (e/ou do serviço social) das ciências sociais, ela é

marcada por uma «ambiguidade epistemológica». Por um lado, inscreve-se no

movimento de traçar fronteiras entre as várias ciências sociais e, por outro, na

dificuldade em manter a suposição de que os objectos preexistem às

disciplinas e podem ser compartimentados e constituídos para a pesquisa.

“Esta tensão interna supõe a compreensão dos fenómenos sociais como totalidades e a aceitação de que as ciências sociais não estudam a realidade em si, ou fragmentos dela, mas sim objectos científicos, construídos pela própria actividade investigativa, na tentativa de reconhecer que o conhecimento fecundo de uma realidade social una apela a uma diversidade de abordagens, ou seja, de pontos de vista, na qual as ciências da educação participam” (Canário, 2003: 7).

Na perspectiva deste autor, e na medida em que a exaustividade está excluída,

o estabelecimento de fronteiras entre as disciplinas passa a ser um problema

menor relativamente ao problema da realização de «cortes» que podem ser

mais ou menos pertinentes e fecundos; sendo defendido que estes «cortes»

ganharão em ser feitos por referência ao problema a estudar e menos por

respeito às fronteiras estabelecidas.

Esta óptica institui a oportunidade de “reconceptualizar a abordagem do social

multiplicando a possibilidade de olhares multireferenciais” (Canário, 2003: 14) e

coloca as ciências da educação (e porque não o Serviço Social?) como

campos disciplinares que podem ser definidos como situando-se na «interface

de imperativos de ordem profissional e de ordem científica».

Este «interface» que, arriscaria a dizer, já é um território conhecido dos

assistentes sociais na mobilização para a acção, ainda não tem «nomes» ou

ainda tem poucos «nomes» quando se trata de explicitar percursos de

investigação. Coloco a hipótese de que radique aí uma das maiores

dificuldades de afirmação científica e de legitimidade desta profissão. Como

dizia uma colega que entrevistei neste processo, a propósito do trabalho que

desenvolvia com idosos numa determinada etapa do seu percurso profissional:

“Ainda hoje estava a falar com as minhas colegas ao almoço e elas diziam que as pessoas portuguesas não tinham consciência do que era o fascismo e do que era a ditadura, porque as minhas colegas nasceram em liberdade, depois do 25 de Abril e eu disse: - Sim, as pessoas portuguesas tinham total consciência do que

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era o fascismo e do que era a ditadura, porque eu trabalhei em Samora Correia e eu tinha 60 «livros», que eram enciclopédias. Eu sentava-me ao lado dos idosos, com um caderno a escrever tudo, tudo, tudo, o que eles me diziam. E cada dia, ou ia para o chão, para o pé dos joelhos de um, ou ia para o braço da poltrona para o pé de outra (não era comum os assistentes sociais abraçarem e beijarem as pessoas), e eu adorava abraçar e beijar aquela gente, fazer-lhes festinhas e dizer-lhes: - Vocês são heróis! E eles diziam: - Coitadinha dela... Oh, filha, toda a gente sabe isto. Porquê que escreve? E eu dizia: - Não, não sabe. A vossa história está para fazer. Porque eu vim do País que diziam que era colonial e que escravizava as pessoas (é verdade que eu vim de um País colonial, é verdade que havia escravatura) mas aqui a escravatura era muito pior e vocês não tinham nomes para as coisas. Não davam nomes às coisas. Eu escrevi vidas dos idosos que trabalhavam nos arrozais das 6 da manhã às 7 da tarde, que trabalhavam na apanha da azeitona e que ficavam 4 e 5 meses longe da família, que iam para o sobreiro, que iam para a cortiça, que iam para o castanheiro, que iam para a ceifa. As pessoas eram arrematadas ao sábado de manhã, na praça pública. E quem não se apresentasse na praça pública, a polícia ia buscá-lo a casa e ia preso. As mulheres eram separadas para um pavilhão e dormiam no chão e os homens ficavam noutro pavilhão e dormiam no chão; e comiam meia fatia de broa e uma azeitona. Isto é anos 70, não é século XIX!” (Isaura/IV6)

Esta citação pretende ajudar a clarificar esta analogia de que «nós» (os

assistentes sociais) como «eles» (as pessoas com quem trabalhamos)

partilhamos a dificuldade de nomear e de valorizar o que experienciámos, o

que aprendemos com essas experiências e qual o contributo que a explicitação

dessas experiências pode ter para os outros e para a sociedade em geral. Este

excerto revela também como esta questão de «nomear» o nosso conhecimento

se relaciona com a percepção do poder que achamos que temos ou que não

temos.

Não gostaria de terminar este ponto sem falar do conceito de «ontologia social»

que aprofundei em Stoer e Magalhães (2005) e que nos remete para o modo

como, em diferentes contextos temporais, as relações sociais são vividas,

concebidas e explicadas/compreendidas no sentido de entendermos o que é

uma relação social e a sua legitimidade.

Para estes autores, desde o senso comum às ciências sociais que um dado

tipo de ontologia social está presente na organização dessas relações, ora

como «facto social» ora como «ordem social desejável». Neste percurso a

tentativa de desconstrução e co-construção dos vários tipos de ontologia social

que fui percebendo, foram absolutamente marcantes no meu percurso de

aprendizagem e na abertura de possibilidades reflexivas.

Page 253: As formigas e os carreiros

253

4.3 Desenho da investigação de inspiração

biográfica

Reconhece-se hoje que pode haver ciência do particular e do subjectivo, por

vias não positivistas e muitas vezes, paradoxais e crípticas, que resultem num

conhecimento que faz parte de um conhecimento científico geral. A propósito

da inspiração biográfica utilizada, identifico o que Ferrarotti refere sobre o

método biográfico:

“Subjectivo, qualitativo, alheio a todo o esquema hipótese - verificação, o método biográfico projecta-se à partida fora do quadro epistemológico estabelecido das ciências sociais. A sociologia não aceitou o desafio que lhe era lançado por esta diversidade epistemológica, e fez tudo para reconduzir o método biográfico para o interior do quadro tradicional. (...) por meio de um duplo desvio epistemológico e metodológico, procurou-se utilizar o método biográfico, anulando completamente a sua especificidade heurística” (1979:67).

O modelo de racionalidade positivista que ainda preside à Ciência convive com

um paradigma emergente, no sentido que Boaventura Sousa Santos (2002) lhe

atribuiu, que permite acolher numa outra concepção epistemológica a

autoformação, as histórias de vida e o método biográfico. Ainda segundo este

autor, o paradigma emergente que denomina “paradigma de um conhecimento

prudente para uma vida decente” utiliza quatro princípios sobre o

conhecimento: i) o conhecimento científico-natural é científico-social; ii) o

conhecimento é local e total; iii) o conhecimento é auto-conhecimento; iv) o

conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.

Nesta perspectiva, a «crise do paradigma dominante» propicia uma reflexão

epistemológica sobre o conhecimento científico assente no questionamento do

conceito de lei e causalidade e na supremacia da forma (o conteúdo do

conhecimento assume maior relevância), o que revela uma atitude crítica

quanto à epistemologia sociológica marcada por características como: a

objectividade - recorda-se que os sectores mais críticos da sociologia põem em

causa a separação sujeito-objecto, desenvolvendo esforços para reintegrar o

observador no ‘framework’ epistemológico da sociologia, negando a

passividade «coisificada» que o método atribui à «coisa social»; e a

intencionalidade nomotética - a pesquisa das ‘leis sociais’ confrontou-se com

críticas crescentes que sublinham a inutilidade heurística e o formalismo

Page 254: As formigas e os carreiros

254

dessas leis, afirmando a historicidade imanente a todo o facto social e a sua

especificidade irredutível.

Esta posição crítica constitui uma oportunidade de (re) valorização do método

biográfico. Segundo Ferrarotti (1979), a especificidade deste método implica

ultrapassar o trabalho lógico-formal e o modelo mecanicista que caracteriza a

epistemologia científica estabelecida; e acrescenta se devem procurar os

fundamentos epistemológicos na razão dialéctica capaz de compreender a

«praxis» que governa a interacção entre o indivíduo e o sistema social, e

construir modelos caracterizados por um permanente ‘feedback’ entre todos os

elementos, modelos «antropomórficos» que não podem ser conceptualizados

pelo tipo de razão analítica ou formal.

Apesar do método já não ser novo (teve grande desenvolvimento nos trabalhos

da Escola de Chicago), situa-se numa encruzilhada da investigação teórico-

metodológica das ciências do homem e ainda subsiste o argumento de que os

trabalhos de investigação que o utilizam revelam por vezes, um

empobrecimento da biografia, traduzido frequentemente na sua redução a um

conjunto de materiais biográficos sobrepostos, a uma justaposição de

informações, a uma «fatia de vida» social utilizável como exemplo, caso ou

ilustração, num quadro interpretativo situado a um nível mais elevado de

abstracção e, mais do que isso, a uma «presença ausente» do observador.

Contudo, o novo paradigma que emerge da prática das histórias de vida em

formação, como refere Josso, apresenta-se como o deslocamento para uma

posição meta disciplinar na qual a busca de um «saber-viver» ou a procura de

uma sabedoria tenta uma reintegração operante dos conhecimentos no seio da

nossa existencialidade. “Esta arte de viver em ligação e partilha (…), consigo

mesmo, com os outros e o nosso universo, pode ser encontrada de muitas

maneiras” (Josso, 2002:119).

Apesar da pluralidade de possibilidades, faz muito sentido a formação como

processo de mudança que está, segundo esta autora, intimamente ligada:

“… à arte do tempo: arte de viver o seu tempo, arte de utilizar o seu tempo de vida a realizar com as experiências que nos demos a viver ou que nos foi dado viver, com ou sem o nosso conhecimento das temporalidades específicas, singulares, convencionais” (Josso:2002:119).

Com estes pressupostos, o projecto de investigação foi desenhado desde o

início para poder contar com a análise das narrativas produzidas pelos próprios

Page 255: As formigas e os carreiros

255

assistentes sociais como principal fonte de dados a privilegiar na co-construção

de conhecimento.

O pólo técnico de um processo de investigação corresponde à instância

metodológica segundo a qual se recolhem dados sobre o mundo ‘real’ e para

estabelecer uma articulação entre o mundo empírico e o quadro teórico de

referência. A recolha de dados implicou opções teóricas e selecções

inevitáveis, onde a observação nunca foi neutra e implicou uma mediação por

parte da investigadora e dos instrumentos e ferramentas usados para recolher

e registar os dados.

A eleição da narrativa biográfica, produzida numa situação dialógica,

pressupõe um trabalho de explicitação, constituindo:

“…uma ocasião de se explicar, no sentido mais completo do termo, quer dizer, de construir o seu próprio ponto de vista sobre si-mesmo e sobre o mundo e de tornar manifesto o ponto, no interior deste mundo, a partir do qual se vê a si mesmo e ao mundo, tornando-os compreensíveis, justificados, e antes de mais para si mesmos” (Bourdieu, 1993: 1408).

Uma acepção que considerei relevante, foi a de que as entrevistas pudessem

ser de utilidade mútua (para mim e para as pessoas entrevistadas) e só

lamento que o tempo possível para dedicar a esta investigação não tenha

permitido uma proximidade e troca mais continuadas, após o processo de

«marcação/recolha/devolução da transcrição/aprovação» das narrativas a

utilizar. Neste âmbito, é necessário mencionar alguns aspectos dos

procedimentos de recolha e tratamento das entrevistas de inspiração

biográfica. A entrevista é/foi assumida como uma interacção que produz

conhecimento a dois, na medida em que privilegia a intersubjectividade entre

entrevistadora e entrevistados. Durante a realização da entrevista

ocorrem/ocorreram relações sociais onde se denotaram papéis, expectativas,

normas e valores, ainda que, por vezes, apenas implícitos. Deste modo,

estiveram subjacentes tensões, conflitos, hierarquias de poder e reacções de

defesa. As formas e conteúdos da narrativa do entrevistado “variam consoante

o interlocutor e dependem do tipo de interacção que se estabelece entre

ambos” (Ferrarotti, 1979: 29) e como refere a entrevistada Maria/RA 2:

“Para mim foi muito bom ter feito este percurso para trás contigo, porque se fosse com outra pessoa, não teria feito tão bem. Não sei se fiz bem. Mas pelo menos, a mim soube-me muito bem. Mas tenho a certeza que se fosse com outra pessoa que não tu, não seria da mesma maneira”.

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256

Na entrevista biográfica é/foi possível identificar ‘momentos charneira’, ou

momentos de viragem e a partir desses momentos tentar determinar o que foi

formador para os indivíduos (Josso, 1989). Quanto às entrevistas realizadas

cumpriram a função de revelar determinados aspectos do fenómeno estudado

e completar as pistas de trabalho sugeridas pelas leituras, por isso foi

importante que decorressem de forma aberta e flexível, com hipótese de

descobrir novas maneiras de colocar as questões (os guiões das entrevistas

encontram-se em anexo) e de ensaiar ideias e procedimentos, num contexto

muito rico de interacção humana.

O guião (A) utilizado para realizar as primeiras entrevistas estruturou-se com

uma questão de partida - Como foi o seu percurso profissional e o que nele foi

mais significativo/formador para si? Entendida como geradora da conversação

e algumas questões que pretendiam orientar para sub-questões que me

interessava abordar (formação inicial, formas identitárias, representação de

futuro (s) profissional, conciliação família/trabalho e projectos de futuro

pessoal/profissional).

No segundo guião (B) utilizado em seis entrevistas, mantive a questão de

partida para lançar a orientação da entrevista mas incluí outras questões que

com aquele «sub-grupo» e, na etapa em que me encontrava, fazia sentido

acrescentar, tal como, a história da escolha da formação, a produção escrita

dos assistentes sociais, a relação entre a academia e o campo profissional ou a

«feminização» da profissão). Estas questões foram abordadas de diferentes

maneiras e introduzidas na conversa quando o diálogo o permitiu, tentando não

cortar o fio condutor do raciocínio do entrevistado. Por último, senti a

necessidade de inserir, sobretudo com as pessoas com quem estava menos

familiarizada, uma questão final que pretendia dar espaço para abordarem algo

a que dessem importância e que não tivesse surgido no decurso da entrevista.

No terceiro e último instrumento utilizado junto de cinco pessoas – Questionário

(C) (ver anexo), as questões foram colocadas em forma de pergunta aberta,

porque apesar de ter um conhecimento prévio dos sujeitos envolvidos, não

existiu interacção face-a-face. Também senti necessidade de realizar

previamente com cada participante um enquadramento que contextualizasse

do ponto de vista epistemológico este processo de investigação e o

questionário enviado.

Page 257: As formigas e os carreiros

257

Tenho consciência que a utilização deste instrumento, de uma forma e num

contexto de pesquisa que não são os seus, foi um risco. Mas a decisão de

assumir este risco, mobilizando um instrumento de outro quadro epistemológico

e de o utilizar de forma não convencional foi pesada entre argumentos de

«utilidade» (apresentou-se como uma forma útil para recolher narrativas de

assistentes sociais que estavam fora do meu alcance geográfico e/ou temporal)

e «pertinência» (na mesma linha das entrevistas, apresentou-se como uma

outra forma possível de colocar aos actores um desafio reflexivo que

contribuísse em simultâneo para a pesquisa e para a sua própria reflexividade

– aliás, o que foi mencionado por alguns daqueles que responderam ao

questionário).

Apesar do peso estrutural das catorze entrevistas e dos cinco questionários na

pesquisa empírica, foi realizada sempre que necessário uma pesquisa

documental e estatística nos dispositivos acessíveis através das tecnologias de

informação, em consultas tradicionais em variadas bibliotecas e nas fontes

documentais das instituições colectivas da profissão.

No processo de recolha empírica, a utilização de diário de campo também foi

um instrumento que permitiu, através do registo, ‘não esquecer’ e constituir um

material de abertura reflexiva e de auto - consciencialização.

A opção pelo uso de diário de campo durante este processo de investigação

constitui um meio de registo que considerei importante e onde incluí o registo

de factos, acontecimentos, reflexões e interpretações decorrentes da

interacção com os sujeitos entrevistados.

Assumindo todas as margens de subjectividade, e dado o objecto que me

proponho investigar, pareceu-me um instrumento adequado para captar a

dimensão auto-biográfica e auto-formativa deste processo de investigação,

embora reconheça a impossibilidade de realizar uma adequada análise de

conteúdo.

“O conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade. As condições de possibilidade da acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo local” (Sousa Santos, 2003:48).

Esta citação foi inspiradora para me ajudar a assumir que no decurso da

investigação, a dimensão de auto-conhecimento também esteve/está presente,

e a perspectiva que tenho procurado construir tem a ver com a pessoa que

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258

sou, na intersecção do meu espaço-tempo psicológico, familiar, profissional,

histórico e social. E a inspiração no trabalho biográfico permitiu uma mediação

que me levou a trabalhar com narrativas, constituídas por recordações de

experiências tidas como significativas nos processos de aprendizagem, com a

evolução nos percursos socioculturais e das representações que construímos

de nós próprios e do meio envolvente (Josso, 2002).

Os tempos e as «fases» das diferentes «conversas»

Foram dezanove os/as assistentes sociais, actores «do» e/ou «no» campo

profissional, que colaboraram nesta investigação, mas foram muito mais as

«conversas» partilhadas em torno do objecto de investigação.

A entrevista de inspiração biográfica processou-se, como já referi, num quadro

dialógico que exigiu uma escuta activa e respeitadora da argumentação e da

sequência narrativa do entrevistado e exigiu também “…a formulação de um

contrato de confiança, no momento em que se pede a uma pessoa para nos

contar aspectos da sua vida” (Cavaco, 2002: 50), pelo que se tornou imperioso

respeitar preceitos ontológicos e metodológicos. Não obstante, enquanto

interacção e troca verbal, as entrevistas foram sobretudo «conversas»

(Demazière, Dubar, 1999: 227).

Os tempos e as «fases» que marcaram estas conversas e as interacções que

permitiram recolher as narrativas não foram lineares: as entrevistas aos

diferentes assistentes sociais (identificados com nomes fictícios) deste

processo de investigação foram marcadas por quatro «fases», distinguidas

sobretudo (e à posteriori) pela segmentação de critérios e tempos de recolha:

• uma «fase» exploratória, que decorreu de Março de 2006 a Janeiro de

2007, marcada por várias entrevistas a três actores – António (AF1), Maria

(RA2) e Helena (HS3), escolhidos por critérios de tipicidade;

• uma «fase» subsequente, que decorreu de Fevereiro de 2007 a Junho de

2009, foi marcada pelo mesmo conjunto de critérios de tipicidade,

beneficiando e aprofundando a experiência adquirida na «fase»

exploratória, e permitiu recolher entrevistas de mais seis trabalhadoras

sociais – Sofia (ZC4), Fernanda (FCR5), Inês (IV6), Filomena (FA7), Ana

Page 259: As formigas e os carreiros

259

(TA8) e Isaura (IC9). Destes actores, resultaram apenas cinco narrativas

disponíveis, já que Isaura não consentiu a utilização do material recolhido.

As duas primeiras fases tiveram como critérios de tipicidade na selecção dos

assistentes sociais a entrevistar: i) a longevidade do percurso profissional (de

vinte ou mais anos); ii) a variedade de contextos/públicos da actividade

profissional; iii) a relação de proximidade e conhecimento prévio de parte do

percurso profissional que facilitasse o «contrato de confiança» com a

investigadora.

• uma «fase» marcada pelo interesse em «ouvir» assistentes sociais que

tinham em comum o curso de formação inicial e que decorreu de Janeiro a

Julho de 2009. Nesta «fase» entrevistei seis assistentes sociais – Jaime

(JF10), Irene (IS11), Filipa (AR12), Paulina (PS13), Cristina (TS14), Diana

(AF15). Na selecção do curso de formação, optei pelo curso de 1985/90,

porque foi o primeiro curso de cinco anos de formação que produziu

«doutores», ou seja, licenciados reconhecidos, que tem peso em termos

simbólicos. Todavia, foram encontradas algumas dificuldades: i) a obtenção

da listagem de alunos do curso de formação seleccionado (processo muito

demorado por dificuldades de acesso ao arquivo do ISSSL que entretanto

foi «comprado» pela Universidade Lusíada); ii) a obtenção dos contactos

para marcação de entrevista (que acabaram por ser obtidos numa

estratégia de rede, por «uns que conheciam e mantinham contacto com

outros»); iii) o domínio das técnicas de entrevista, de dificuldades de

«contra-transferência» e de análise de conteúdo e categorização. Após seis

entrevistas esta segmentação de profissionais já estava saturada e já tinha

uma razoável quantidade de material empírico, recolhido num total de

catorze entrevistas transcritas e aprovadas pelos entrevistados.

• uma «fase» marcada pelo interesse em recolher as representações de

assistentes sociais mais jovens e com outras inserções geográficas, quer

nacionais (Coimbra, Lagos e Leiria), quer internacionais (Itália e Coreia do

Sul), que decorreu de Janeiro a Setembro de 2010 e onde pude recolher

mais cinco narrativas através das respostas ao questionário enviado aos

assistentes sociais: Madalena (MM16), Mafalda (MV17), Sílvia (SG18),

Armando (AP19) e Américo (AD20).

Page 260: As formigas e os carreiros

260

As catorze entrevistas realizadas foram inspiradas na não directividade: poucas

perguntas, questões colocadas de forma o mais aberta possível, respeito pelas

pausas e silêncios, abstenção de implicar o entrevistador no conteúdo (nem

sempre conseguida e, algumas vezes, assumidamente contrariada), gravação

e transcrição integral das entrevistas, devolução da transcrição aos

entrevistados para validação e análise do material recolhido só após a

validação.

A restante recolha, feita a cinco assistentes sociais, foi realizada com recurso a

um questionário com perguntas abertas; nesta última situação metodológica, o

meio utilizado foi a internet e as respostas chegaram por escrito (4) e em

gravação áudio (1).

Uma das características que considero estruturante neste trabalho de recolha

empírica foi a aposta em privilegiar as pessoas e os contextos relacionais em

que decorreram as entrevistas e, que se verificou mesmo nas situações em

que foi utilizado o questionário, tentando em simultâneo, que elas fossem

momentos significativos para os entrevistados e que eles e elas «brilhassem»

como actores sociais que são. Embora sabendo que as entrevistas são

marcadas pela ocorrência de relações sociais que condicionam e

contextualizam a narrativa, constatei que os entrevistados falaram mais das

suas vivências e dos respectivos contextos político - institucionais (assumindo,

por vezes, posições muito críticas em relação ao regular funcionamento das

instituições e até aos seus próprios exercícios profissionais) e menos dos

significados que essas experiências tiveram para si, enquanto pessoas e

profissionais.

Todos os entrevistados referiram ter gostado de realizar estas entrevistas pelo

contributo que deram para um trabalho que os inclui e, por outro lado,

expressaram que estas conversas foram agradavelmente reflexivas. Todos se

prontificaram para voltar a colaborar, se voltasse a ser preciso.Pelo meu lado,

foram momentos muito marcantes: pelas próprias conversas, por aquilo que

cada um/a falou de si, dos percursos e representações profissionais, mas

também por tudo aquilo que me permitiram reflectir sobre as aprendizagens

pontuadas nas trajectórias profissionais e as significações de «estar» na

profissão.

Page 261: As formigas e os carreiros

261

4.4. A ANÁLISE DOS DADOS

No registo da investigação qualitativa, o plano de análise não pode ser

previamente traçado e os dados surgem à medida que a análise se processa,

sobressaindo a tentativa de formalizar microestruturas generativas das

narrativas e construir categorias susceptíveis de evidenciar as «lógicas» dos

vários interlocutores e das situações comunicacionais.

A técnica utilizada para proceder à leitura dos dados foi a da análise de

conteúdo entendida nas dimensões descritiva e interpretativa, na tentativa de ir

sempre confrontando com o quadro teórico e de produzir novo conhecimento.

As direcções da pesquisa foram emergindo no decurso da recolha empírica e

da análise e interpretação do «corpus», de modo indutivo e tentando não deixar

que a pré-construção teórica da análise criasse uma «fôrma».

«Por onde começar?» era a pergunta recorrente, sendo que evidencio o papel

do estudo de muitos autores, desde o «Método» (Morin, 1980), passando pela

análise estrutural da narrativa de Dubar e Demazière (1999) até aos ‘manuais’

de análise de conteúdo (Bardin, 1977), embora só tenha encontrado resposta

«começando», por tentativa e erro, e realizando simultaneamente uma reflexão

sistemática sobre a minha práctica como investigadora.

O trabalho de análise de conteúdo evocou velhos fantasmas de «menoridade

científica» do serviço social por relação ao referente positivista e fez apelo a

técnicas com que não estava familiarizada.

Page 262: As formigas e os carreiros

262

CAPÍTULO 5 - A (S) VOZ (ES) DOS ACTORES DA

PROFISSÃO

Neste capítulo, pretendo dar protagonismo à voz dos dezanove sujeitos da

investigação, na valorização da sua qualidade de atores sociais,

simultaneamente como «especialistas de si» e parte de um coletivo profissional

que co constroem. Aliás, como dita a inspiração do método de investigação-

formação em Histórias de Vida é importante situar a constante preocupação de

que os autores das narrativas alcancem uma produção de conhecimentos que

tenha sentido para eles e que eles próprios se inscrevam numa exploração

transdisciplinar que os institua como sujeitos (Josso, 2002).

Foi com esta intencionalidade e com o quadro teórico e metodológico já

explicitado que parti para a primeira tentativa de compreensão de como se vive

e se faz a representação profissional a partir de uma análise das narrativas dos

próprios assistentes sociais com base em critérios cronológicos.

Fui interpretando e tentando desvendar os fios condutores das suas trajetórias

profissionais e dos seus percursos de aprendizagem a partir das conceções e

representações expressas nos espaços de «praxis», de ideologia e de ciência

que constituem as narrativas da profissão, como uma primeira «viagem»

descritiva pelo «corpus» e pela argumentação dos atores profissionais.

Este capítulo é constituído por uma primeira abordagem exploratória e

descritiva do material empírico e estrutura-se em dois pontos separados por um

«corte» artificial, já que foi adotado como eixo central da análise as questões

relativas à formação (inicial e contínua) em articulação com o campo do

trabalho e da sua incidência na construção de identidade (s): no primeiro

abordam-se as trajetórias profissionais e as representações da

profissionalidade expressas nas narrativas biográficas e no segundo, os

percursos de aprendizagem da profissão. Acresce uma síntese explicativa

sobre a importância de prosseguir com uma análise temática, face à

insuficiência dos critérios cronológicos para construir tipologias.

Page 263: As formigas e os carreiros

263

5.1. Trajetórias profissionais e biográficas

O conceito de «trajetória» é frequentemente utilizado como sinónimo de

‘carreira’ profissional e embora tenha o potencial de dar conta das alterações

que ocorrem ao longo do percurso profissional, onde a pluridimensionalidade

e a complexidade aparecem em relação (Almeida, Alves e Marques, 2000),

ainda tem uma conotação com um trajeto pré-definido que se coaduna pouco

com os «carreiros» de que as narrativas dão conta. No entanto, foi assim

utilizado o conceito de trajetória ao longo deste texto interpretativo, no sentido

em que esta opção procura dar visibilidade ao distanciamento que existe

entre as narrativas dos sujeitos e os discursos que insistem em fazer acreditar

na previsibilidade dos percursos que começam na escola e continuam no

mundo do trabalho.

Entendendo trajetória como uma “linha descrita por qualquer ponto de um

corpo em movimento” (Dicionário de Língua Portuguesa, Porto Editora, 7ª Ed),

assume-se que este conceito é útil para colocar em perspetiva os

acontecimentos, os sentidos e os significados da trama narrativa (Ricouer,

1985) dos sujeitos que colaboraram nesta investigação. De uma forma não

linear, as trajetórias individuais são assim marcadas por temporalidades

biográficas que se inscrevem no “tempo histórico” (Bertaux, 1997): o tempo

revelador e transformador dos percursos previsíveis em trajetórias erráticas,

uma temporalidade social que é um marcador importante na diacronia das

biografias experienciadas (Costa e Silva, 2007).

Procura-se, assim, identificar os sentidos expressos nas narrativas biográficas

dos sujeitos que integraram este estudo, interpretando o impacto dos

fenómenos históricos e macroestruturais a nível individual e o leque de

possibilidades educativas. Como salienta Bertaux:

“…trabalhar na reconstrução das estruturas diacrónicas de percursos biográficos e na sua inscrição no tempo histórico, é tomar progressivamente consciência do impacto dos fenómenos históricos coletivos e dos processos de mudança social nos percursos biográficos” (1997:78).

Page 264: As formigas e os carreiros

264

Na apresentação das trajetórias profissionais tenta-se explicitar a coerência

individual de cada narrativa com os elementos considerados fundamentais e

que permitiram agregar os sujeitos nos diferentes perfis. Contudo admite-se,

como Bertaux que “existe também um caminho feito de tateamento, que leva

da ignorância e dos pressupostos a um certo grau de saber e de lucidez”

(1997:86). Esse «tateamento» também está relacionado com a ideia expressa

por Dubar e Demaziére (1997) de que as narrativas não nos dão acesso a

factos mas sim a palavras, Assim, a palavra e a linguagem adquiram um

estatuto singular como processo pelo qual o ‘real’ se constitui em nós como

‘meio’ na unidade e na pluralidade da sua atividade significante e como matriz

de conceções dos sujeitos, dos outros e do mundo.

Nesta tentativa de uma descrição compreensiva das tramas narrativas são

identificadas trajetórias profissionais e de aprendizagem marcadas por muitos

acontecimentos sócio históricos nas seis décadas (de 1950 a 2000) em que

decorreram e por uma razoável mobilidade profissional em diferentes

geografias e contextos organizacionais, onde a mudança aparece narrada, na

maioria das vezes, como sendo acionada por iniciativa dos próprias

assistentes sociais, mobilizada por uma realização profissional que identificam

mais com o «tipo» de trabalho desenvolvido do que com eventuais

oportunidades de «carreira».

A profissão de assistente social, pese embora a sua tradição relativamente

recente, conseguiu consolidar um processo de profissionalização assente na

formação e na «oferta» de serviços que impõem níveis de organização, de

conhecimento e de sensibilidade social apurados (Negreiros, 1998).

As profissões socialmente menos valorizadas ou, que se pretendem em

ascensão após um processo de valorização por via académica, procuram

atingir um patamar de paridade com as profissões «tradicionais». Estes

processos acontecem atualmente num quadro tensional tanto na variedade de

formas de luta pela revalorização profissional e pela manutenção do «status

quo», quanto nas conceções disponíveis que vão de posicionamentos que

evidenciam as profundas mudanças e o abalo dos alicerces identificáveis das

profissões, numa «crise» sem precedentes que conduz a um «pós

profissionalismo» até posicionamentos que sustentam um renascimento do

Page 265: As formigas e os carreiros

265

profissionalismo, com novas características. O que parece certo é que a atual

transformação das profissões e, desta em particular, está interligada com as

transformações da sociedade.

@s seniores: Ana, Helena, Filomena, Fernanda e Maria

A descrição das trajetórias profissionais e da mobilidade de emprego destas

assistentes sociais pretende incorporar as questões relativas à identificação e

análise do trabalho e da profissão, dos contextos sociopolíticos e históricos

mas também à análise dos mercados de trabalho e das lógicas subjacentes

ao seu funcionamento (Dubar, 1997 a).

Neste perfil estão «agrupadas» cinco mulheres - Maria (E RA2), Helena (E

HS3), Fernanda (E FCR5), Filomena (E FA7) e Ana (E TA8) – que têm

percursos profissionais de mais de trinta anos e cujos tempos de trajetória

profissional tentei representar no quadro abaixo (sinalizado a azul mais forte

as décadas em que foram profissionais ativas). Ana e Helena nasceram no

mesmo ano (1938) e fazem a formação no mesmo local e data, Fernanda e

Maria também partilham o ano de nascimento (1949), embora a formação

inicial seja partilhada entre Fernanda e Filomena (que tem mais cinco anos).

Maria tem um percurso formativo iniciado pelo Curso de Auxiliar Social (o

equivalente ao ensino secundário profissional de hoje) e só mais tarde faz o

complemento da sua formação superior em Serviço Social.

Tabela nº 1 - Calendarização dos tempos das trajetórias profissionais das entrevistadas

1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

Ana Nasceu 1938

Curso 1956/60

Ref2004 42 TP

Entrev. 2009

Helena Nasceu 1938

Curso 1956/60

Ref2006 44 TP

Entrev. 2006

Filomena

Nasceu

1944

Curso

1969/74

Ref2009

35TP

Entrev.

2009

Fernanda

Nasceu

1949

Curso

1969/74

Entrev.

Ref/08

34TP

Maria

Nasceu

1949

Curso

Aux Soc

1962/64

Curso

1979/81

Ref

2005

37TP

Entrev.

2006

Page 266: As formigas e os carreiros

266

Notas: TP – anos de trajetória Profissional; Ref – Reforma; Ent – Entrevista

Nas décadas abrangidas pelas suas narrativas, as mudanças introduzidas

pelo capitalismo nos modos de gestão económica e social tiveram

subjacentes racionalidades instrumentais com vista à otimização de

resultados, que se objetiva também na lógica do mercado, da concorrência e

do mandato das profissões. Contudo, estas assistentes sociais beneficiaram

ainda de um mercado de trabalho relativamente «protegido», da escassez de

candidatos formados para exercer a profissão e de um «boom» de procura

após a revolução que se consolidou na edificação do nosso «quase Estado

Providência».

Ana, uma mulher sem «papas na língua» como se define, atribui a esta

característica a facilidade de travar conhecimento com os muitos

interlocutores que teve ao longo da vida, desde os diferentes públicos e

atores dos contextos em que interveio até aos «doutores» estrangeiros que

mobilizou para trabalhar em cooperação com a formação inicial e contínua

dos assistentes sociais portugueses. Refere que gostou imenso da profissão.

Encontra-se atualmente na situação de reforma e afastada de qualquer

envolvimento profissional; com a saúde e a memória a darem sinais de

fragilidade, diz sobre «estar reformada»:

“Há muita coisa que me chateia: detesto fazer comida, detesto muita coisa da vida doméstica…mas faço os possíveis. Tem de se reinventar tudo”.

Após ter colaborado num projeto de trabalho com Timor, o último que a

apaixonou, diz que, após quarenta e dois anos a trabalhar, está cansada da

profissão e nas perspetivas do seu futuro não coloca nada que tenha a ver

com a profissão. Mas ao fazer a apreciação do que foi mais importante na

sua trajetória profissional, Ana destaca as aprendizagens que cada

experiência lhe possibilitou e diz que: “Eu acho que foi tudo [importante],

cada experiência trouxe um conjunto de aprendizagens muito importante”.

Na dimensão dos contextos organizacionais e «áreas» de intervenção em

Page 267: As formigas e os carreiros

267

que se situou, a narrativa de Ana torna claro que naquelas épocas (décadas

de 60 e 70) era fácil ter trabalho e fazer mobilidades por várias «áreas» de

intervenção e contextos organizacionais, na procura de maiores desafios

profissionais, quer no continente (fez trabalho comunitário a partir de várias

Instituições de Solidariedade Social em Lisboa) e ilhas (exerceu em projetos

comunitários a partir da segurança social nos Açores), quer no estrangeiro

(exerceu em Paris com as comunidades emigrantes e esteve no Brasil, um

período longo em formação).

“O primeiro sítio onde estive a trabalhar foi o Centro Paroquial de Stª Eugénia no bairro da Encarnação, fui montar os serviços do Centro, não estava nada organizado, nada coordenado, mas foi sobretudo com jovens e com crianças que eu trabalhei. Foi interessante, mas estive lá pouco tempo, uns dois anos. Depois estive no Centro Social da Bempostinha, onde também fiz trabalho com jovens, com pais e professores das escolas locais, mas senti-me um bocado «arrumada» de mais e saí. Depois passei para Alfama (onde estive também dois anos), para o Centro Social Paroquial de S. Estevão e aqui fiz muita coisa: lá tinha imensa gente velha e imensa gente jovem e foi muito engraçado o trabalho que se fez. Havia um padre completamente ‘louco’ e dávamo-nos muito bem. O Centro desenvolvia imensas atividades: teatro, música, desporto, biblioteca, etc., era lá numa casa velha, num sótão... Também tinha uma escola paroquial (…) com mais de 120 crianças que nós apoiávamos em diversos aspetos da vida escolar e familiar, quer durante o período escolar, quer nas férias e também fazíamos colónias de férias...Depois sai de Alfama porque estava muito cansada e fui para Paris (68-69) e fui trabalhar para o consolado de Portugal. (…) Foi uma experiência diferente, interessante. Trabalhámos com a população portuguesa emigrada, se bem que também fizemos trabalho com as entidades francesas. Fizemos muito trabalho de colaboração uns com os outros. (…) De 70 a 72 fui técnica de formação de professores e educadores de crianças deficientes visuais e estive no sindicato de Serviço Social também muito ligada à formação. Nessa época fui vice-presidente da direção do Sindicato e responsável pelo programa de regionalização e pelo serviço internacional, ainda fui a Genebra com a Manuela Silva, à Direção geral de Assuntos Sociais das Nações Unidas - isto era assim um subterfúgio porque nessa altura o governo não queria que a gente saísse lá para fora e era esta a forma que tínhamos de ir a formações no exterior. Depois ainda trabalhei no Ministério da Educação como técnica de educação em cursos de especialização para professores de deficientes visuais, mas foi por muito pouco tempo, foram 6 meses. (…) Houve coisas de que eu gostei e coisas de que não gostei muito. Depois em 74-75 foi quando casei e fui para Ponta Delgada porque o meu marido é açoriano e estava lá, também gostei muito porque a gente fez imensa coisa, trabalho interserviços, com a junta distrital autónoma de Ponta Delgada, com as enfermeiras, com o magistério primário, com a casa dos pescadores, pôs-se aquilo tudo a funcionar. (…) Foi na altura da grande confusão do PREC mas foi muito giro.”

Page 268: As formigas e os carreiros

268

Na primeira década e meia da sua trajetória, estas diferentes experiências

profissionais tiveram durações relativamente curtas (cerca de dois anos

cada) e, na narrativa de Ana, aparecem pontuadas sempre pelo «desafio» e

pela «paixão», da mesma forma que as saídas correspondem a períodos de

estagnação, aliados a uma «inquietação» pessoal por novas experiências e

desafios. Também é a essa «inquietação» e a essa «procura» que Ana

atribui a intensa dedicação feita neste período à sua formação contínua (em

Lisboa e no Brasil) e ao seu contributo para a organização coletiva da

profissão e do seu ensino.

A sua experiência de trabalho mais longa (11 anos) foi no Concelho de

Cascais, onde também residia. Durante os anos que se seguiram à

revolução de Abril de 74, a partir do serviço local de Segurança Social e da

Autarquia (na época não existiam assistentes sociais nas autarquias) ajudou

a mediar as reivindicações da população com a criação de respostas

institucionais, passando pela articulação dos assistentes sociais em redes

territoriais.

“Apesar de pertencer aos serviços da Segurança Social, trabalhei muito com a câmara municipal de Cascais porque lá não havia assistente social e então, o presidente da câmara, que era um tipo interessantíssimo, nomeou-me assistente social ‘do sítio’, como se eu pudesse fazer tudo... mas eu lá consegui. No começo (em 75-77) foi difícil porque a freguesia onde eu fui parar não tinha nada e, como eu já era uma senhora ‘veneranda’ (só porque já tinha feito todos estes percursos) as colegas que já lá estavam não me ligavam nenhuma (…). E fui, e começamos a fazer intervenção na freguesia de Alcabideche (que tinha muitas características rurais e não tinha nada organizado do ponto de vista das respostas sociais), fizemos um trabalho com a Junta Distrital de Lisboa – porque, entretanto, nós, o serviço de ação direta do IFAS em Cascais também tínhamos um trabalho inter serviços (eu sofri muito, porque as senhoras assistentes sociais ‘venerandas’ não gostavam que eu existisse e eu trabalhava de uma forma que elas não gostavam). Era uma altura revolucionária em que estava tudo a ‘mexer’, todos os movimentos de cidadãos e todas as forças vivas da sociedade, foi interessante o que nós conseguimos fazer. Fizemos imensos equipamentos – eu nunca imaginei que se pudesse fazer tanto - creches, jardins-de-infância, centros de dia, lares! Era a Junta Distrital, os dois Centros de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, a Delegação de Saúde, a Junta de Freguesia, o IARN, as Escolas Primárias, a Santa Casa da Misericórdia, fazíamos imenso trabalho com as enfermeiras e com as educadoras e criaram-se comissões de pais e de moradores. Foi muito giro, porque gerou-se uma certa dinâmica para que as pessoas também pudessem participar nestes processos de melhoria de vida e de apoio aos seus problemas”.

Page 269: As formigas e os carreiros

269

Ana refere na sua narrativa que esta dinâmica que começou numa freguesia,

acabou por se generalizar ao concelho e que, mais tarde, também envolveu

as comissões de moradores, os professores e a saúde escolar; e o próprio

serviço da Segurança Social também se modificou.

“Na Segurança Social, as coisas também ficaram diferentes, as mais velhas saíram e as outras assistentes sociais puderam também ir trabalhar para as freguesias e fazer coisas diferentes. Foi feito um levantamento exaustivo de todos os equipamentos coletivos, sociais, religiosos, civis, culturais, recreativos, com a respetiva caracterização e identificação das pessoas responsáveis. Isto foi importante porque as próprias técnicas de serviço social não tinham a noção destas coisas. E isto fez-se a pulso, não é?! (…) Foi feito um trabalho de base muito interessante com as escolas e as equipas de saúde escolar, fez-se a vacinação de todas as crianças (de 75 a 77), trabalhámos muito na prevenção. Em 78 fui nomeada como responsável do serviço de ação direta do IFAS de Cascais e passei a ter funções um bocado diferentes – planeamento, administração e avaliação mas como eu já conhecia aquilo tudo foi muito fácil. E, por outro lado, a equipa técnica que lá estava tinha começado a achar piada àquela forma de trabalhar e também ajudava a segurar um bocado a intervenção, de maneira, que foi bom. Eu nunca tinha visto isto nesta perspetiva, mas é verdade (…)”.

Sobre o significado deste período de trabalho, Ana refere: “Foi trabalhar muito, com todos os atores sociais, com as juntas de freguesia, com os senhores padres, com a câmara municipal, com o presidente e os vereadores...Primeiro as juntas de freguesia começaram logo a pedir assistentes sociais para apoiar e continuar o trabalho... (...) Nos projetos de Luta contra a Pobreza, nos bairros da Torre e na Galiza, também houve um grande envolvimento de todas as instituições e das populações”.

Nos últimos anos da sua trajetória profissional, Ana intercalou a atividade

profissional (que se foi tornando menos absorvente) com a atividade

associativa e de representação da profissão: destaca a colaboração no Plano

Estratégico de Lisboa (1992), o trabalho com os Timorenses (de 1996 a

2004) no grupo de apoio técnico à Comissão Interministerial de Acolhimento

e Inserção Social da Comunidade Timorense e a representação dos

assistentes sociais portugueses no Comité de Liaison da FIAS (Federação

Internacional de Serviço Social) e no Comité executivo da região da Europa

da FIAS onde teve oportunidade de conhecer profissionais de vários países

do mundo (Bélgica, Hungria, Nova Zelândia, Polónia, Hong-Kong, Sri-Lanka,

EUA e Irlanda).

Na dimensão das Políticas é expresso na sua narrativa o compromisso com

Page 270: As formigas e os carreiros

270

o Estado Social, promotor de direitos, de igualdade de oportunidades e de

justiça social, bem como com a participação dos cidadãos na criação de

«respostas» que lhes diziam respeito; a sua narrativa incide «no que fez»,

não no sentido executante do termo, mas enquanto agente mobilizador de

dinâmicas coletivas, experiências, vontades e criação de respostas sociais

para e, com os atores locais e de dinâmicas formativas e associativas para a

profissão.

Já numa fase madura da sua vida profissional a divergência com uma chefia

levou-a para um serviço central em Lisboa, onde lhe foi assegurado um

cargo de chefe sem conteúdo funcional, medida expressa na sua narrativa

como uma represália:

“Chateou-nos [o diretor] a vida enquanto lá esteve de uma forma impossível, por exemplo, mandava-me ir para o serviço dele às 9h da manhã e eu estava lá até às 4h da tarde à espera e só me atendia quando lhe apetecia. Foi o tal que me mandou para Oeiras (1989), onde estive só 4 meses e depois mandou-me para Lisboa (1990). (…) depois da época difícil do Dr. P, mandaram-me para Lisboa para chefe de divisão do serviço da Almirante Reis, onde fiquei sem fazer nada, depois lá fiz ‘umas coisinhas’ para melhorar os lares que estavam numa situação de desgraça. A Associação de Profissionais de Serviço Social foi, nessa altura, um escape de realização profissional para mim (…) gostei imenso de trabalhar com aquelas pessoas e fizemos imenso trabalho pela classe profissional.”

Precisamente na dimensão do Associativismo Profissional, a sua narrativa

identifica a ligação e participação nas estruturas coletivas da profissão,

nomeadamente no Sindicato e na Associação de Profissionais onde

desempenhou cargos dirigentes e papéis ativos e comprometidos com um

projeto profissional coletivo.

Falando da conciliação da atividade profissional com a sua vida familiar e

privada, dá testemunho de dificuldades em conciliar estas esferas, sobretudo

os cuidados aos seus dois filhos e refere a importância de uma pessoa no

apoio familiar.

“Foi uma época e um trabalho muito giros. Aliás, nessa altura eu tinha os meus filhos pequenos e passava a vida a correr: ia para o serviço, ia buscar os ‘putos’, punha-os no judo, na natação, muitas vezes ia no carro com os papéis para trabalhar enquanto esperava pelas aulas deles e, às vezes, ainda voltava ao serviço. Era um desgaste imenso! O que me valia era que tinha uma funcionária cá em casa que era um espanto, a minha Jó, a «avó» dos meus filhos, adorava os miúdos”.

Page 271: As formigas e os carreiros

271

Resumindo a sua trajetória profissional Ana diz que:

“Entre o exercício profissional, a docência, os cargos que desempenhei em prol da profissão e os trabalhos que realizei, fiz imensa coisa, é verdade”.

Sobre a possibilidade de testemunhar e deixar registo escrito da sua

experiência profissional e dos contributos para a profissão Ana refere:

“Não me passou pela cabeça deixar esse testemunho. Quer dizer, escrevia umas comunicações quando ia a congressos ou a reuniões internacionais, mas depois…depois, não fiz mais histórias”.

Helena é uma mulher voluntariosa, entusiasta e apaixonada: pelo curso de

formação inicial “entusiasmei-me muito e fui muito boa aluna”, pelas

pessoas, por começar de novo, por inventar tudo e sobretudo por uma

profissão que entende “como uma forma de expressão de si”. Refere que,

não tendo a sorte de se saber expressar através de uma área artística, foi

através da profissão que foi «dizendo quem era».

“Apesar de tudo, nestes últimos anos, foi a situação [a formação] onde eu me senti mais útil. Não só mais útil, mas contente comigo própria, com a sensação de que vale a pena. E que me diverte imenso, o que eu acho que é uma coisa que também é essencial. Preciso de me divertir, preciso de trabalhar, divertindo-me. Aquela coisa que o trabalho é uma canga, não gosto. (…) Mas para mim o trabalho teve sempre este sentido. No princípio, de missão, não digo que não: fui para o Serviço Social, claramente porque as outras pessoas me interessavam e queria ser útil às outras pessoas. Depois ao longo da vida profissional, naturalmente que este sentido de missão mantém-se mas de uma forma mais consciente, mais profissionalizada, mais organizada, menos utópica, às vezes. Portanto, eu não sei se consigo resistir a este ‘canto de sereia’”.

Na altura da entrevista está recém reformada, após quarenta e seis anos de

trabalho e refere que “…foi um privilégio nestes 20 últimos anos de carreira

fazer exatamente o que queria fazer” (E HS3).

Sobre os projetos de futuro diz que “ainda não está segura” do que quer fazer,

vê-se a fazer coisas até ao fim, mas ainda não sabe o quê. Situa-se entre

diferentes tentações: de “apetece-o-terapia”, de se “orientar para qualquer

coisa completamente diferente, como por exemplo, fazer joias” ou de continuar

com a formação e o apelo para as pessoas, que é expresso “quase como uma

Page 272: As formigas e os carreiros

272

condenação”. O que sabe é que não quer parar de trabalhar “seja o que for

que isso quer dizer”.

Na dimensão dos contextos organizacionais e das «áreas» de intervenção e, à

semelhança de Ana com quem partilha uma mesma geração e a condição

sociofamiliar de origem, Helena diz que “durante este percurso (…) nunca

procurei trabalho, aconteceu-me sempre; nós não procurávamos trabalho,

acontecia”.

A sua trajetória profissional está marcada por dois períodos distintos, de cerca

de 20 anos cada: o primeiro, ligeiramente maior, com experiências laborais em

empresas (fábricas, empresa de caminho-de-ferro), por vários locais do país e

por África (na época, os países africanos colonizados eram divulgados pelo

regime como «províncias» de um «Portugal ultramarino»), para onde vai viver

e trabalhar em períodos distintos (primeiro para Angola e depois para

Moçambique), pelo regresso a Portugal após a independência de Moçambique

e depois pela passagem por vários serviços públicos onde aprofundou a sua

paixão pela formação; no segundo período exerceu exclusivamente como

formadora em situação de profissional liberal (saiu voluntariamente da função

pública com quarenta e quatro anos).

“Eu entrecortei a permanência nesta organização com muitas licenças sem vencimento, alterações do horário de trabalho, estive a meio tempo, para puder precisamente fazer formação. Foi aqui que eu comecei intensamente a fazer formação, tive imensas solicitações, quer da função pública onde eu tinha estado, quer de empresas. No fim deste tempo entendi que podia voar com as minhas próprias asas e resolvi sair do Instituto e atirar-me exclusivamente à formação, como profissional liberal. Entretanto comecei também a dar aulas no Instituto Superior de Serviço Social (…)”

A sua relação profissional com a formação, também na qualidade de docente

na formação inicial de assistentes sociais, foi recorrente na sua trajetória:

“Havia uma escola de Serviço Social em Lourenço Marques, onde eu dei aulas também. Dei aulas no Porto, quando fui trabalhar para o Porto, depois dei aulas em Lourenço Marques e só recentemente é que dei aulas em Lisboa nos últimos 14 anos”.

Na narrativa da sua trajetória profissional cada experiência é contextualizada

na vida familiar, nas opções que tomou e nas representações da profissão que

foi construindo em cada tempo e circunstância. Com maior detalhe, podemos

verificar que após o curso, recusou algumas propostas com cujas condições

Page 273: As formigas e os carreiros

273

não concordou e acabou por aceitar um primeiro trabalho numa empresa no

Porto, que em simultâneo lhe permitiu autonomizar-se da família.

“Aproveitei a oportunidade e fui para o Porto sozinha. (…) Foi a minha primeira experiência na fábrica, era uma fábrica de cervejas. (…) Estava-se em plena época das Relações Humanas e as empresas que estavam financeiramente bem entendiam que era preciso apoiar os operários – apoiar de uma maneira muito paternalista. (…) Entretanto, eu já tinha lido umas coisas, estava razoavelmente informada e comecei a tentar passar o Serviço Social para dentro da própria empresa (…) o que era necessário era debruçar-me sobre o que se passava lá dentro. E dentro passavam-se imensas coisas: a nível da liderança muito autoritária, a nível da adaptação ao trabalho, a nível da prevenção de acidentes…”.

Esta experiência dura cerca de quatro anos e é recordada como muito

positiva. Neste período casa e tem a primeira filha; mais tarde mudou para

Lisboa por razões familiares e foi trabalhar numa fábrica de tabacos.

“Aí havia muito trabalho feminino, havia imensos problemas (…). A passagem pela ‘Intar’ acordou-me para aquilo que era a condição dramática da mulher em Portugal. Elas trabalhavam ali 8, 9, 10 horas e depois iam para casa e tratavam da casa, do marido e dos filhos e dormiam 2 ou 3 horas por noite – era um fardo muito, muito pesado”.

Durante esta fase do ciclo profissional que durou cerca de cinco anos tem

mais dois filhos (um deles com deficiência) e volta a estudar para fazer a

licenciatura em Ciências Políticas – esta é uma época que recorda como muito

«complicada».

“Com três filhos... foi na altura do nascimento do terceiro, lembro-me que preparei as frequências no Hospital D. Estefânia, no quarto onde eu estava, cheia de tubos, com o meu filho acabado de nascer e tive as melhores notas da frequência - uma pessoa faz coisas na vida que não imagina. Entretanto, quando a criança estava mais ou menos encaminhada, ou seja, não morria (as hipóteses, eram 90% de morrer) no dia seguinte a terem-me levado para casa, o meu marido recebe uma intimação para se apresentar no quartel, para entrar para tropa, para ir para a guerra.”

Na sua narrativa, África aparece na altura em que o marido é mobilizado para

a guerra colonial e, apesar das suas permanências, quer em Angola quer em

Moçambique, estarem associadas a circunstâncias da vida familiar, Helena

atribui-lhes um significado muito positivo, descrevendo as experiências que lá

viveu como as mais marcantes da sua trajetória profissional:

“…pela diferença, pela situação complexa que se vivia na altura mas, fundamentalmente, porque foi em África que aprendi a fazer omeletas sem ovos. Não havia nada, não havia recursos, não havia informação,

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não havia nada. Nós tínhamos de inventar tudo – foi um apelo decisivo à criatividade. (…) a pessoa ter contato consigo própria, não há mais nada, não há livros, não há bibliotecas, não há pessoas com mais experiência…”

Da ida e da primeira permanência em Angola conta, do ponto de vista

profissional que foi um ano em que desenvolveu um “trabalho espetacular,

espantoso, duro, difícil, um calor tórrido, condições infra - humanas...”, numa

narrativa com pormenores, muito adjetivada e com muito discurso direto.

“Tive uma experiência profissional espantosa em S. Salvador do Congo. S. Salvador era a norte dos Dembos, que era uma zona de café, onde as populações viviam razoavelmente bem porque o café dava muito dinheiro na altura. Viviam bem mas eram perfeitamente martirizados pela nossa tropa durante o dia e pelos então ‘terroristas’ durante a noite (…) Então a nossa tropa decidiu por uma solução radical, foi por aquelas aldeias com camiões, pôs toda a gente à balda em cima dos camiões (homens, velhos, mulheres, crianças) e levou toda aquela gente, sem saberem porquê nem a que propósito, para a zona onde eu estava. E o governador que sabia que eu era assistente social, pediu-me para eu fazer um trabalho junto dessas populações, porque as pessoas estavam todas dispersas, sem famílias (…) Durante um ano fiz um trabalho que foi ajudar a reunião das famílias nos 5 aldeamentos e conseguiram reunir-se, a maior parte delas.(…) As instruções que eu tinha eram as seguintes: - não entre em nenhuma casa sozinha, fale com eles cá fora. É gente muito perigosa. E o meu transporte era um jipe militar com três soldados de metralhadora. E eu comecei a pensar: - não entro nos aldeamentos com este aparato. De maneira que dizia aos soldados quando faltavam uns 500 metros: - Vocês vão dar uma voltinha, que eu já volto. Nunca me aconteceu nada. Nem sequer uma ameaça, nada! ”

Apesar da situação política e militar da época (das quais Helena tem perfeita

noção), adota estratégias que contornam as situações que o regime e o

contexto de guerra colocavam e consegue criar laços de respeito e confiança

com a população local:

“Eles tinham os seus chefes tradicionais, que mantiveram. Aliás, (…), na

senzala de S. Salvador, a população local tinha uma rainha, que era uma mulher com um ascendente enorme sobre toda aquela população do Congo. E então a rainha recebia nas quartas-feiras à tarde, não me esqueço. Tinha a sua casinha, que não era de colmo (já era de tijolos), nesse dia punha chinelos e um lenço na cabeça. No Natal mandou-me um cartão, um cartão impresso, a desejar as boas-festas (eu ia visitar a rainha, frequentemente, para conversar com ela)... um cartão impresso que dizia assim “D. Isabel Quengo Martins da Gama, Sua Majestade e Rainha viúva de D. António III”. Quando havia avião (havia avião uma vez por semana, era avião da tropa evidentemente), ela ia à pista e calçava luvas. Só cumprimentava de tenente para cima, soldado não tinha direito a aperto de mão. Um espanto!

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Uma mulher poderosa, enorme, e era ela que dirimia todas aquelas questões dos gados e das terras e não sei quê. E aquilo corria bem.”

Após esta comissão de serviço do marido regressam a Portugal em finais de

60, mas a situação política e a escassez de trabalho contribuem para que

aceitem oportunidades de trabalho para os dois membros do casal em

Moçambique.

“Eu fui trabalhar para os Caminhos-de-ferro de Moçambique, que era então uma empresa do Estado e que abrangia toda a ‘província’…eram cerca de 40 mil trabalhadores (...) E aí criei uma equipa de 12 assistentes sociais (...) foi a primeira vez que eu tive que liderar uma equipa (…) …em Lourenço Marques as coisas estavam bastante calmas, fazia-se trabalho normal de empresa (embora ali fosse muito variado porque tínhamos desde estivadores, a maquinistas de comboios e senhores pilotos de aviação) …”.

A sua narrativa sobre este período, oscila entre a descrição da sua vida

profissional muito intensa e absorvente e a descrição de uma vida social

agradável e ‘perfeitamente pacífica’ que tinha em Lourenço Marques:

“Uma cidade linda, um clima muito razoável... Uma vida... era festas e danças...vivia-se muito bem. Havia um convívio entre a população portuguesa e os outros europeus, muito agradável. Havia evidentemente uma autêntica segregação racial. Na zona de residência dos brancos, os pretos eram os criados, não havia outros. Mas o convívio era muito agradável, não havia conflitualidade... “.

Profissionalmente Helena descreve com intensidade vários episódios que

implicavam fazer uma intervenção direta com os funcionários dos caminhos-

de-ferro nos cenários de guerra:

“… mas onde havia problemas sérios era no norte, onde havia guerra. E então eu ia com muita frequência ao norte, precisamente para estar com aqueles que estavam a viver situações mais difíceis. E fazia aquelas linhas... a zona de Téte, onde se estava a construir a barragem de Cabora Baça era a mais atacada, a Ilha de Téte, porque os materiais passavam por ali, portanto, era muito atacada. E ia da Beira até Matize. E eu fazia aquela linha muitas vezes. Normalmente ia sozinha... e ia de ‘zorra’ blindada, que é uma caixa blindada com uma metralhadora ao pé (era uma zona de guerra mesmo) mas, de facto, nunca me atacaram. Eu dormia nas estações por ali a fora mas, aconteceu-me com muita frequência, no regresso ir ao enterro das pessoas com quem tinha estado a falar. Eles deixavam-me passar, e depois atacavam e muitos dos maquinistas morreram lá. As locomotivas eram alimentadas por lenha e portanto, as minas estavam no meio da linha e a primeira coisa que explodia era de facto a locomotiva e eles ficavam perfeitamente calcinados. Muitas vezes estando eu sossegada na minha cama em Lourenço Marques, telefonavam-me durante a noite: - Estamos à tua espera, é preciso ires, houve um ataque.

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Eu ia, ia para apoiar as famílias, ajudar ao reconhecimento dos cadáveres - o que era muito difícil porque eles ficavam reduzidos a meio metro e... pronto. Só que as viagens eram muito longas e então eu tive que arranjar um estratagema para puder trabalhar e ir acompanhando as pessoas que estavam em Lourenço Marques. Atrelava uma carruagem-cama ao comboio (as linhas em Moçambique são todas paralelas, não há uma linha que atravesse a província de alto a baixo) portanto atrelava uma carruagem-cama a um comboio qualquer e a carruagem ficava estacionada no local onde eu pretendia, ficava lá, trabalhava, estava com as pessoas e, no próximo comboio, amarrava outra vez a minha carruagem… “

Com as alterações políticas no 25 de Abril, enviou os filhos para Portugal mas

manteve-se em Moçambique com o marido. Ainda vivem lá na altura do

movimento que ficou conhecido pelo «canto dos cisnes» (“eram uns brancos

que queriam fazer uma coisa parecida com a África do Sul, ia dando uma

enormíssima guerra”) mas depois entende que a insegurança é muita e

regressa a Portugal com uma licença sem vencimento. No entanto, em Abril

de 75 regressa sozinha a Moçambique, arrependida de ter deixado para trás

toda uma equipa e de “virar as costas num momento em que provavelmente

se podem fazer montes de coisas que temos na gaveta”; mas esteve apenas

dois meses porque chegou à conclusão “que aquilo já não tinha nada a ver”

consigo:

“Tinha havido uma alteração completa: o contínuo era diretor da empresa, as reuniões eram feitas de braços no ar com cânticos pelo meio, enfim, uma experiência interessante, mas onde, de facto, não havia lugar a trabalhar-se com alguma coerência”.

Regressada definitivamente a Portugal, recorda os tempos difíceis dos

«retornados» mas, como tinha vínculo laboral com o Estado fica no «quadro

geral de adidos» e após uma passagem de má memória pelo Instituto de

Apoio ao Retorno de Nacionais /IARN, que Helena descreve como “a

experiência mais dolorosa e infrutífera” da sua vida, transita para a Direcção-

Geral da Administração Pública, onde estavam a ensaiar os primeiros passos

da formação profissional e de onde refere: “aí sim, aprendi alguma coisa sobre

formação – os conteúdos, os aspetos pedagógicos…”.

Helena já tinha começado a dar formação em Moçambique e era algo que a

apaixonava, na perspetiva de que a formação seria em relação ao Serviço

Social “uma continuidade, uma especificidade e a sensação de uma maior

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277

eficácia”.

“…aquilo que hoje chamamos «empowerment» (na altura não sabíamos dizer isso) talvez fosse mais eficaz através da formação. Porque havia um suporte diferente e, sobretudo havia o grupo, que funcionava de uma forma interativa para que as pessoas pudessem aperceber-se de quem eram, o que é que queriam da vida e fundamentalmente pudessem encontrar uma postura mais satisfatória na sua vida profissional e pessoal. (…) Ou seja, quando opto pela formação comportamental eu estou claramente na mesma linha que me fez optar pelo Serviço Social: provocar que as pessoas sejam donas de si próprias, provocar que as pessoas tenham direito ao seu projeto de vida, provocar que as pessoas sintam as contrariedades como provisórias e não definitivas”.

Na dimensão da relação com as Políticas e os Públicos destacam-se

sobretudo os compromissos que foi construindo com vários ‘públicos’, numa

visão humanista e de valores morais. Apesar da análise da situação política

em cada tempo e em cada espaço, o que transparece na narrativa de Helena

é a mobilização para facilitar o processo de mudança das pessoas.

Reconhecendo a importância da dimensão institucional no trabalho dos

assistentes sociais, Helena acrescenta logo de seguida que naquela altura

[período de vida em África] apesar das restrições políticas, existia uma grande

abertura institucional:

“Nunca trabalhei tanto, nem com tanto entusiasmo, como em África! Estava

tudo por fazer. “

Quando se refere à sua atividade enquanto formadora, diz que a sente como

uma intervenção do Serviço Social. Em toda a sua narrativa atribui grande

importância à aprendizagem contínua, mas sobretudo à capacidade de inovar,

de inventar e de perceber «para quê» se trabalha.

Sobre o projeto coletivo da profissão, aponta a importância da qualidade da

formação e de uma atuação profissional que o faça diferente, reforçando que

isso exige um esforço muito grande, sobretudo a nível das escolas e das

Associações de Profissionais. Para Helena, a orientação dos assistentes

sociais exclusivamente para quem não pode pagar os seus serviços tem

prejudicado a profissão, bem como a apropriação que o Estado fez dos

profissionais, tornando-os funcionários e empobrecendo o seu conteúdo

funcional e refere que sempre teve a noção de que a profissão de Serviço

Social estava, por uma ou outra razão, muito fragilizada.

“No início a sensação que eu tinha, e tive essa experiência nas empresas onde nós tínhamos que ‘bulhar’ pelo nosso lugar, pelo nosso estatuto

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profissional, era preciso explicar sempre, passar a vida a explicar o que fazíamos e a discutir umas com as outras sobre o que é que fazíamos (eu digo umas porque na altura não havia homens Assistentes Sociais). Por exemplo, no Porto, logo que iniciei o trabalho, havia muitas Assistentes Sociais em empresas e nós juntávamo-nos todas as semanas para refletir, para ponderar, para escrever coisas, para partilhar dúvidas. Eu penso que há duas características que se mantém (eu vejo da mesma maneira que via há quase 50 anos): um empenho muito sério dos profissionais em trabalharem bem, em fazerem as coisas como devem ser feitas mas, por outro lado, uma terrível dificuldade na sua própria afirmação”.

Falando da conciliação da sua vida profissional com a esfera familiar Helena

lembra que é uma profissão muito desgastante do ponto de vista emocional e

que não é fácil, mas que é possível.

“Foi muito complicado, enquanto os filhos eram pequenos, sobretudo com o meu filho mais novo que precisava de muita atenção e... não foi fácil. Eu lembro-me por exemplo, quando fiz a segunda licenciatura, o meu marido estava em África e eu estava sozinha com eles, eu trabalhava, chegava a casa tratava das crianças, jantava, meti-os na cama e estudava durante a noite. Ou seja, não sei quantos meses durei assim, mas durei. Arranjava umas almofadas para pôr na cama, tinha uma mesa ao lado, ia estudando e dormindo. (risos) Foi difícil, foi duro. (…) a conciliação é uma ‘guerra’, eu diria que foi uma ‘guerra’ toda a vida”.

Mas a avaliar pelos resultados, como refere que gosta de fazer, o balanço é positivo, e diz que se saiu bem.

“Portanto, eu penso que não é fácil, não é fácil lidar com uma vida intensa e muito desgastante do ponto de vista emocional sobretudo, como é a nossa, com uma vida de família, que se pretende tranquila e equilibrada (…) Eu pensei que nós tínhamos que encontrar, momento a momento, os equilíbrios possíveis, e às vezes, os desequilíbrios... aceites”.

Filomena, é uma assistente social que afirma dizer o que pensa mas que

não gosta de falar de si, tem um discurso convicto mas discreto e um lema

de vida que é o de «praticar uma cidadania amigável».

À semelhança das colegas anteriores, e apesar de iniciar a sua trajetória

profissional uma década e meia depois de Ana e Helena, refere que não era

difícil encontrar trabalho e teve oportunidade de escolher a proposta que

mais a mobilizou (lembra que não quis trabalho na sua terra de origem no

Alentejo e que fez voluntariado num gabinete ministerial). Recordando que

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arranjou emprego no ano da revolução, explicita que:

“…era giro porque era a época de pôr tudo em causa. E estavam pessoas como a Joana – a Joana era uma figura fantástica, uma senhora já de idade (já faleceu há muitos anos, mas tinha uma juventude de espírito fantástica) e gente nova que questionava muito as coisas. A par com todos os outros acontecimentos porque eu sempre fui de achar que todos os aspetos do social têm que ver com uma série de outras coisas”.

Tem uma trajetória profissional feita numa única organização, dentro do

Ministério da Segurança Social, mas com experiências de trabalho muito

diversificadas: fez trabalho no direto em equipas de saúde mental infantil,

deu contributos para a elaboração de legislação e de medidas de política,

colaborou na Associação de Profissionais e dá testemunho das suas

reflexões e aprendizagens, conjugando-as com modéstia relativamente ao

conhecimento em geral e, em particular, ao conhecimento académico.

“ Qualquer coisa que eu tenha que estudar, que analisar, a primeira proposta que faço a mim mesma é verificar o que é que mexe à volta daquilo, vamos lá ver como é…mas para mim foi sempre …um bocado intuitivo. É só para dizer que isto não tem base científica, eu nunca vou referir o nome de nenhum autor que eu li (até porque me esqueço), de nenhum modelo que eu utilizei…”.

Na altura da entrevista, encontrava-se no Instituto de Solidariedade e

Segurança Social (ISSS) e aguardava a reforma já solicitada.

Na dimensão dos contextos organizacionais e «áreas» de intervenção e,

apesar da sua trajetória profissional ter sido feita num único Ministério,

exerceu em projetos e contextos diferentes, mas identificou uma preferência

pela «área» da Infância.

Sobre esta mobilidade profissional interna a um Ministério, Filomena

identifica que algumas mudanças foram por sua iniciativa e gosto (no serviço

de colocações familiares, no serviço de adoções, no serviço de planeamento)

e outras por iniciativa das hierarquias e assumidas como «castigo» por

dissidências em relação aos poderes instituídos (no serviço de relações

públicas ou na ‘secção de contas correntes’). Sobre estas últimas diz

claramente que “Fui de castigo por ter dito o que queria dizer”.

Uma das atuais vertentes do seu trabalho num serviço que concentra os

dados para a estatística da Segurança Social é de mediar a comunicação

entre os especialistas das «aplicações informáticas» e os trabalhadores

sociais (maioritariamente assistentes sociais) dos serviços locais da

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segurança social.

Em jeito de balanço sobre a sua trajetória profissional, refere:

“Eu estive na Direcção-Geral para aí até aos anos 80 e no início dos anos 80 passei para aquilo que começou a ser o Centro Distrital e dentro do Centro Distrital já fiz muitas coisas e estou aqui há 37 anos. (…) Ao longo destes anos experimentaram-se tantos modelos (chamem-se lá e enquadrem-se lá mas teorias que quiserem), mas tentaram de todas as formas organizar os serviços: concentra, desconcentra, volta a concentrar mais, dá maior autonomia, volta a concentrar tudo… e tudo isto se passa sem haver avaliação nenhuma dos impatos de cada mudança”.

A sua narrativa, em que afirma não aludir a autores, está cheia de

referências a colegas/atores e autores que, na sua perspetiva, foram

exemplares e/ou extraordinários na sistematização e qualificação dos

serviços e mesmo na influência de medidas legislativas e de política:

“Acabei [a formação] em 73 e comecei a trabalhar no dia um de Abril de 74, eu acho que nunca apanhei grande coisa do sistema político anterior. Quer dizer, apanhei aquilo que naturalmente se apanha, porque não se muda um sistema de um dia para o outro, nem se mudam as mentalidades de um dia para o outro. Mas como entrei para o Serviço de Proteção à Infância e Juventude, que se situava na Direcção-Geral da Ação Social (que era da Assistência e passou para a Ação Social da época), tinha o...Antonino do Amaral, como diretor, e tinha pessoas como a Teresa Penha, a Rosário Onofre, a Margarida Moita, a Otília Castro, a Madalena Almeida, sei lá, uma série de gente com muita qualidade. (…) Eu fui aprendendo sempre coisas ao longo da vida com as pessoas com quem me cruzei.”

Voltando à sua modéstia que pode ser interpretada como “uma certa maneira

de tratar o outro”, Filomena refere que aprendeu também pela qualidade das

relações que desenvolveu com profissionais mais experientes e

conhecedores:

“…não tenho grandes saberes, estou farta de dizer isso. A única mais-valia que eu acho que tenho, é que conheço muito bem a estrutura «da casa» [do centro distrital] (…) depois eu estive em coisas tão diferentes (…) e eu, que tinha acabado de chegar (não ia bem de soquetes, mas quase) sentia-me assim tratada de igual para igual por aquela gente que sabia muito [referindo-se a pessoas muito credenciadas e experientes com quem trabalhou]. Foi todo este tipo de vivências que eu fui interiorizando numa maneira de estar e de fazer, de respeitar o outro e de dar espaço mas, que me veio deste convívio, destes contactos”.

Filomena durante a sua trajetória, tem estado muito próxima dos centros de

poder, onde a dimensão das políticas è central. Na sua narrativa é também

evidente a oportunidade e a capacidade de influenciar algumas medidas de

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política social.

“Nessa época também recebemos os retornados, e entre os retornados apareceram-nos lá vários assistentes sociais, apareceu uma colega que estava no Tribunal Tutelar de Menores, com a qual estabelecemos uma excelente ligação. E a partir dela chegámos ao atual presidente da Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens, a um outro juiz de Direito que lá estava e começamos a trabalhar aos fins de tarde, depois do expediente, no gabinete deles para fazer a legislação para as colocações familiares, o primeiro projeto-lei para as colocações familiares e o primeiro projeto-lei de intervenção dos serviços da segurança social na área da adoção. Lembro-me, quando foi a revisão do Código Civil em que esteve a Leonor Beleza e mais um outro senhor de Direito que trabalhou no código civil de então, e já não sei bem porquê eles ouviram-nos a nós... E aqui entra também uma pessoa que ao longo dos anos foi uma figura apagada, mas que no âmbito da adoção teve uma importância significativa, que era a Maria Graciete Palma da Silva que ainda está hoje ligada à adoção internacional e... lá não sei porque vias, nós começámos a sistematizar o que seriam as ações relativas aos serviços da Segurança Social, no âmbito das colocações familiares de crianças e da adoção. E a partir daí é que se retirou a competência da intervenção com crianças à GNR.”

No que respeita à relação com os públicos, tem sido muito diversificada ao

longo da sua trajetória porque os seus interlocutores têm sido

maioritariamente outros profissionais dentro dos serviços da administração.

Para Filomena não parece seguro que o seu exercício em muitas das etapas

da sua trajetória profissional fosse de Serviço Social:

“No fim disto tudo, quando me perguntares qualquer coisa sobre Serviço Social, não sei bem o que é que te posso dizer sobre isso, percebes? Mas, logo se vê.”

No entanto, entende-se e diz-se assistente social, apesar de ter outra

licenciatura em sociologia e de defender uma posição crítica em relação a

perspetivas de intervenção mais tradicionais ou assistencialistas. Entende o

Serviço Social como “uma voz entre pares”, como “a vida que aí está, é um

olhar sobre a mesma, é sobretudo o exigir oportunidades para todos”.

A sua relação com o Associativismo profissional é ‘naturalizada’ como um

dever cívico inerente ao ser profissional e mobiliza-se fundamentalmente pela

formação continuada dos assistentes sociais e pela visibilidade positiva do que

de bom se faz e se pensa na profissão.

“Entrei para a Associação por considerar que se a Associação pretendia defender os assistentes sociais, tinha que apostar fundamentalmente na formação. E tinha que ser por aí que a gente tinha que ir. E, por outro lado, tínhamos que mostrar, tentar saber mostrar as coisas que as pessoas faziam, que tinham qualidade e deviam ser mostradas. Eram

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estes dois objetivos que me mobilizavam, não sei se era muito consciente... “

Neste âmbito, a sua narrativa revela preocupação pela situação dos

profissionais mais novos e pela falta de atuação da Associação em sua

defesa:

“Eu acho que estamos a atravessar um momento muito difícil (já vem

desde há alguns anos mas nesta altura está demasiado crítico) para que uma Associação de Profissionais não olhe para a forma como, do ponto de vista profissional, são feitos os contratos, como é que as pessoas são avaliadas... não pode ficar de fora, acho eu. Tem de olhar para ali e tem de verificar o que é que ali se passa”.

Esta posição crítica sobre o papel pouco ativo da associação de profissionais evidencia a falta de promoção de uma visibilidade positiva da profissão e da capacidade de influenciar a opinião pública:

“…à imensa gente a fazer trabalhos excelentes, e que não é reconhecida. E não vejo nenhuma forma de avaliação que permita alterar isso. Era aqui, que eu acho, mais uma vez, que a Associação dos Profissionais de Serviço Social e as pessoas que estão neste momento na associação e que têm conhecimentos no plano teórico e no plano prático, deviam influenciar a opinião pública e atuar.”

E acrescenta: “Porque há gente muito boa, mas muito nova, que se perde porque a vida delas, um dia, fica muito parecida com a dos utentes que têm de atender. E a cabeça delas baralha-se um bocado. Algumas ficam muito deprimidas. Se não encontrarem alguém que tenha alguma capacidade de ser firme e de ajudar no caminho, o percurso profissional perde-se. “

Refere também algum desencanto, a título pessoal, por as Associações

Profissionais que contactou para ceder o seu espólio de livros e documentos

de trabalho, não lhe terem sequer dado resposta à proposta de doação.

“Porque na época havia coisas fantásticas: o C. foi quem começou a

fazer levantamentos sistemáticos da orgânica dos serviços e tínhamos os levantamentos da orgânica destes nossos serviços desde... sei lá, eu comecei a fazer desde os anos 80, a partir de uma coisa que se chamava «O centro Regional em números» e antes disso já ele fazia. Íamos à lei, púnhamos as funções, púnhamos os fluxogramas, fazíamos aquelas coisas todas - Há tempos joguei todos esses trabalhos fora. Por exemplo, os levantamentos, a forma como fazíamos os fluxogramas na época com aquelas listas de papel quadriculado enormes e com uma letrinha impecável... ainda tenho aí muitas coisas e dou aquilo de boa vontade para quem quiser utilizar.”

Sobre a conciliação da sua trajetória profissional com a sua vida familiar e

privada, Filomena expressa que houve uma época longa da sua vida (durante

uns 13 ou 14 anos) em que só fez parte das coisas do serviço que eram

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estritamente necessárias, porque ia quase todos os dias para Sines. Tinha a

vida mais preenchida pelas questões familiares e não tinha disponibilidade de

tempo; e, para o fim, nem disponibilidade física, nem mental, para fazer outras

coisas.

Como fio condutor da sua trajetória, Filomena diz que acha que o que tem

tentado ao longo da vida “foi reproduzir” o que recebeu (correndo o risco de

ser vaidosa):

”… eu tive gente que me apoiou, que foi excelente para comigo em termos de relação e que tentou ter sempre uma atitude pedagógica mesmo quando as coisas não corriam bem. E eu acho que fiz disso o meu lema, sem nunca o verbalizar (…). Eu acho que isto foi o melhor que me pode ter acontecido nesta aprendizagem pessoal, assim ao longo destes anos, foi tentar praticar uma cidadania amigável, sem fazer muita destruição e tentando salvaguardar-me. Não sei se se pode dizer isto assim. E pronto!”

Fernanda é uma mulher afirmativa, com um olhar vivo e rebelde, que diz que

o seu percurso profissional foi acompanhado quase sempre por duas

referências marcantes: «a mudança» e o «abrir caminhos».

De origem açoriana, cresceu no Brasil, tirou o curso em Lisboa e fez a sua

trajetória profissional no campo da saúde e de «cima para baixo», ou seja e,

nas suas palavras “Comecei no topo e acabei na base, fiz um percurso ao

contrário. Mas aprendi muito”.

Na altura da entrevista está em situação de reforma recente. Menciona que

“pagou para sair”, referindo-se a um acerto de descontos com a Segurança

Social que lhe permitiu a reforma antecipada, com a respetiva penalização.

Sobre os planos para o futuro diz que ainda está em «estado de graça»,

sabe que não quer fazer planos, mas ainda não sabe o que vai fazer – «o

que acontecer, acontecerá», referindo que «…estou a admirar-me, estou a

achar coisas bonitas que não achava».

Diferente de Filomena, com quem partilhou o mesmo curso, o início da sua

trajetória profissional não foi com o exercício de Serviço Social.

Acaba de se formar em 1974 e refere que já então não era fácil arranjar

trabalho, tinha planos para ir para fora de Lisboa, mas os seus pais tentaram

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evitá-lo e através de conhecimentos de um amigo da família que era militar,

fez um curso de formação em processamento de vencimentos (foi no início

dos cartões perfurados que antecederam os computadores atuais) com a

intenção de concorrer a um trabalho no Estado para “preparadoras” de

vencimentos.

Com a Revolução de 1974 abandona esse projeto que não assumia como

seu e ‘regressa’ ao sentimento de ‘ser’ assistente social:

“Havia umas instalações militares na Rua D. Estefânia e nesse dia íamos ter um teste. Saí de casa toda ‘lampeira’ (sabia lá o que estava a acontecer!), encontrei as portas fechadas, não havia exame e voltei para casa, sem perceber o que se estava a passar. Na televisão fiquei a saber que estava a dar-se o 25 de Abril! Aí fiquei toda contente: agora é que a gente vai poder trabalhar! Claro que comecei a participar das reuniões do sindicato de serviço social, havia grande rebuliço e entusiasmo na classe profissional”.

Entretanto, decide procurar trabalho mais próximo da profissão e “vai bater à

porta do Ministério dos Assuntos Sociais”, oferecendo-se para trabalhar em

voluntariado e ficou a colaborar num estudo sobre a caracterização dos

pedidos que chegavam àquele organismo.

“Toda a gente achava nessa altura que os seus direitos seriam finalmente

garantidos e que teriam tudo a que sempre aspiraram e as pessoas faziam pedidos diretamente ao governo. Quem fazia o trabalho de triagem dos pedidos era uma colega Assistente Social que nós conhecíamos e que estava lá com duas estagiárias, tinham imenso trabalho, pois chegavam milhares de cartas e pedidos de audiência em “catadupa”. Como eu morava ali nas proximidades, disse: - Olhe, não tenho nada para fazer, não tenho emprego, então venho ajudar gratuitamente. Voluntariei-me, e como ela tinha sido minha professora da cadeira de Serviço Social de Grupo, aceitou a colaboração. O Ministro do então 1º Governo Provisório foi o Dr. Mário Murteira, sendo o chefe de gabinete o Dr. Acácio Catarino e eu ganhei o meu primeiro ordenado devido a ele; porque não achava justo que estivesse a trabalhar sem ser remunerada.”

Sobre esses tempos e aqueles contextos, esclarece que:

“…nos gabinetes era assim: o pessoal é da confiança do membro do governo por isso quando ele muda, o pessoal também é mudado. Era uma situação em que eles pagavam o vencimento (ainda não era a época dos recibos verdes) mas era um tipo de prestação de serviço que não dava qualquer estabilidade”.

Na dimensão dos contextos organizacionais acabou por vivenciar uma

grande variedade de serviços na administração central, maioritariamente na

«área» da saúde».

A sua trajetória profissional começa assim, com funções mais ou menos

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administrativas e de apoio ‘técnico’ à gestão, passando por vários gabinetes

ministeriais de vários governos. Transita de Ministério dos Assuntos Sociais

para a Secretaria de Estado da Saúde e continua a fazer o seu trajeto por

gabinetes e serviços centrais e, só mais tarde, entrou na ‘carreira’ de Serviço

Social.

Esteve na ‘carreira técnica’ no Serviço Nacional de Ambulâncias (organismo

precursor do INEM) dependente do Ministério da Defesa Nacional e depois

voltou para o Ministério da Saúde, para os serviços sociais dos funcionários

desse ministério. Sobre a proximidade com atores políticos centrais refere as

pressões para aderir a partidos políticos e o preço que pagou por não o ter

feito:

“Naquele tempo havia a formação dos partidos que se constituíram a formalizaram naquela altura. Eu não tinha aspirações a uma carreira política, nem fui pressionada nesse tempo para aderir … mas mais tarde (em 1983) fui pressionada, por várias vezes, quando estive nos Serviços Sociais da Saúde. (…) A gente paga um preço pelas coisas, quer por aderir, quer por não aderir. E como eu mantive a minha independência, tive de pagar o preço.”

Refere que o seu ‘partido’ é o trabalho e que teve oportunidade durante a

trajetória profissional de iniciar “uma série de coisas”. Por outro lado, na

dimensão das políticas, e descrevendo-se Fernanda sobretudo como uma

«organizadora» vocacionada para o «apoio psicossocial», deixa bem vincada

a sua posição crítica com alguns atores políticos e com a administração

pública central, reproduzindo em discurso direto parte de uma conversa com

um ex-chefe que lhe fez cair o «pano dos olhos»:

“-Fernanda, você não se mexa tanto, porque na função pública você não pode trabalhar assim. Se não fizer nada, tem melhor resultado; se você fizer, vai dar-se mal. Eh pá, aquilo caiu-me tão mal. Só mais tarde é que vim a descobrir que era um conselho verdadeiro. Lamentavelmente é mau, mas a função pública é assim”.

Nos anos 80 situa episódios marcantes, em que se sentiu discriminada na

progressão de ‘carreira’ e nas funções que lhe foram atribuídas ou retiradas -

e imputa estas dificuldades a “perseguições” de natureza partidária.

A mobilidade dentro da administração pública nem sempre foi fácil, embora

Fernanda argumente com assertividade:

“Estavam a precisar de uma técnica e eu respondi, e contei-lhe a história

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da minha vida e ele simpatizou comigo. E então acabei por ir para lá. Depois passei 10 anos nos Serviços Sociais, a trabalhar na ação social dos funcionários do Ministério da Saúde, onde também se deram várias mudanças de instalações (...), de poderes e de formas de trabalhar. Organizei, com outra assistente social que lá estava, as colónias de férias e fizemos tudo sozinhas. Fomos para Bragança numa camioneta velha, tivemos de arranjar transportes, monitores, as instalações eram emprestadas, os autocarros eram muito velhinhos. Fomos para Bragança, porque nos tinham emprestado durante as férias instalações de uma instituição de apoio a deficientes, aproveitamos o espaço e levamos para lá as crianças. Foram 10 anos neste serviço e a mudança foi pelas razões já mencionadas. Passei um ano difícil a aguardar autorização para o pedido de destacamento para o Hospital”.

Fernanda menciona que neste serviço esteve um ano «de castigo», sem nada para fazer.

“Se ela [a chefe] modificou a lei dos serviços para me tirar a nomeação de chefia, tinha que me dar orientações de trabalho. Fui chefe de Divisão, sem ninguém para chefiar, era chefe de mim própria. E começou a estar um clima muito mau, não é?! E tive que sair. Estive quase a ficar “xexé”, antes da minha ida para o serviço social do hospital. A gente pensa que vai aguentando, mas... sozinha, foi muito difícil”.

O último período de trabalho passa-o num Hospital Central de Lisboa, a

constituir e a coordenar uma equipa de assistentes sociais num percurso onde

também identifica algumas dificuldades:

“Fui para o Hospital com a função de coordenar as colegas dos dois hospitais: Capuchos e Desterro. Só que a sede do Serviço Social ficaria junto do conselho de administração que era nos Capuchos. A colega do Desterro estava toda contente, mas as dos Capuchos ficaram todas zangadas. Até porque a administração não as avisou e uma até fez um comentário infeliz quando um administrador me foi lá apresentar (…) E depois elas começaram a reagir mal, e eu quase ‘pirei’, tive uma depressão! De manhã chorava e dizia: “- Não quero ir trabalhar! Eu não vou trabalhar!” Estive no limiar. Mas dei a volta e consegui. Porque eu estava mesmo mal... Mas depois elas foram todas embora, e eu fiquei apenas com duas colegas do Desterro. As outras que se aposentaram, foram dando lugar a pessoal novo.”

Sobre as dificuldades inesperadas que encontrou na relação com as colegas

mais novas, que coordenava, refere:

“Aquelas meninas que entraram em 1988 ou 89 (o segundo grupo do plano curricular dos 5 anos) estavam todas acabadinhas de formar, no primeiro emprego. Podiam vir com força e novidade, com outras noções de trabalho. Apanhei ali gente muito diferente. Teoricamente, tinha 3 muito boas, com bons percursos académicos, mas que na parte informática bloquearam-me completamente. Podíamos ter tido o primeiro Serviço Social Hospitalar informatizado de Lisboa. Consegui convencer o meu marido a fazer uma base de dados à

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medida. Foi antes de tempo e ainda era uma época distante para essa aceitação! Não dominavam nada. Eu sei trabalhar melhor no computador do que elas. Fiquei espantada e muito triste porque elas não conseguiram aderir a uma coisa que hoje é corrente e obrigatória. Tinha conseguido um programa informático à medida (o meu marido é programador de informática) mas depois, coincidiu também com a ida dele para Paris em comissão de serviço, e quando ele regressou não havia dados registados. Ele disse-me: - Vocês não estão na altura de puder perceber que isto é um benefício”.

Ainda sobre este período de trabalho, refere que entrou em choque com as

colegas mais novas, de quem esperava mais inovação:

“E dizia para elas [as colegas]: - “Olhem, cá está! Está aqui debaixo do

vosso nariz”. E isso é a teoria a funcionar nos espaços práticos. E uma das coisas que eu acho que está mal é a Escola estar agora muito voltada para a Política Social. Essa geração com formação de 5 anos, saiu muito voltada para a Política Social. Eles quiseram virar isto para as Políticas Sociais. Foram inspirar-se no modelo brasileiro e não dá, aqui neste país não dá! Não é o nosso caminho, porque toda a gente é agente do social e faz o «social».”

Assume, no entanto, que fizeram bastante trabalho (chegaram a ser vinte

pessoas no Serviço) e que deram destaque ao Serviço Social no meio da

saúde mas que com as mudanças de administração e a contenção

financeira, o serviço foi «descaindo».

“A gente até fez um trabalho para o Departamento de Recursos Humanos da Saúde, sobre as funções do Serviço Social da Saúde. Eu mandei para o diretor do Instituto para dar a base científica, o respaldo académico da nossa prática, mas nunca obtivemos resposta. (...) E a partir de alguns incidentes desagradáveis com o diretor do Instituto e o conselho de administração do Hospital comecei a desligar-me de tudo. É muito mau ser assistente social neste país. Porque eu tive muitas ilusões… “.

Contudo e, apesar da proximidade aos atores com cargos políticos centrais,

que percebeu estarem «todos ligados entre si», manteve uma certa

«independência» o que lhe valeu alguns revezes na trajetória profissional.

Em paralelo, a situação de indefinição académica do curso de Serviço Social

é descrita como tendo sido muito gravosa para a sua trajetória profissional.

“Andei também a lutar nesse processo desde o seu início. Não tínhamos definição de grau académico e por isso ingressei numa carreira designada de técnico auxiliar. Quando foi aprovado o Decreto que criou o serviço e o respetivo quadro de pessoal, não fui incluída”.

Na relação com os Públicos da Profissão, Fernanda refere: “Nós aqui [no hospital] fazíamos falta, porque as pessoas andam todas doentes, mas nem todas têm patologias graves. E mesmo as pessoas que têm patologias graves, precisam de outros apoios que não existem.

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Eu fico louca, como é que é possível isto acontecer! Inclusivamente temos colegas nossas que têm problemas de patologias graves e que ganhavam em juntar essa rede, a psicoterapia, a medicação e a terapia ocupacional, para esta gente puder fazer coisas e ser tratada como pessoa, não é?”

Esta dimensão de intervenção com as pessoas, protagonistas das suas vidas

e de direitos sociais, é muito vincada na sua narrativa, em detrimento da

intervenção nas estruturas.

Na dimensão do associativismo profissional, sente muita falta de união entre

os assistentes sociais, da «consciência de base» e acha que a profissão

precisa urgentemente de ser regulada. Na sua narrativa imputa a desunião

entre os profissionais “…àquela fissura que foi feita na altura da passagem à

licenciatura” em que o instituto Superior de Serviço Social segundo ela,

obrigou os profissionais a fazer uma formação complementar para obter a

licenciatura, quando “não tinha nada para lhes oferecer”.

Na fase atual de reforma expressa a vontade de participar mais na Associação

de Profissionais e contribuir para a regulação da profissão, mas menciona um

certo mal-estar que a impede de se envolver mais.

“A minha aposentação saiu a 1 de Junho, Dia da Criança, no mesmo dia em que houve a discussão no Parlamento da Lei - quadro das Ordens. Fui para lá toda entusiasmada, estavam colegas, a colega que é deputada, foi-nos receber (ela é espetacular!), deu-nos oportunidade de assistir e ver e ouvir aquela discussão. E depois venho para a Associação, penso na Associação e acho que aquela Associação não tem condições para a gente ir por aí. Não sei, deu-me um desgosto!”

À pergunta sobre o que é que falta na Associação para mobilizar mais os

profissionais, Fernanda é pouco clara e responde assim:

“O que é que falta ali? A direção precisava de dar mais atenção, e deve haver ali muita coisa estranha… sei lá! Tenho de refletir melhor nesse tema, hoje só tenho dúvidas sem respostas. Há muita gente que me liga, antigas alunas, e eu indico sempre para a Associação, criem grupos de trabalho... mas depois não acontece nada. “

Em relação à conciliação entre a vida profissional e a vida privada e familiar,

Fernanda diz que foi boa porque teve suporte familiar, nomeadamente o apoio

da sua mãe quando a filha era criança. Argumenta que sempre colocou um

bocado o serviço à frente, porque gostava do que fazia e entendeu que tinha

de se empenhar, mas sem descurar a esfera familiar.

Entende que a conciliação entre trabalho e família é possível:

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“…quando a gente quer, a gente consegue. A história da falta de tempo é para quando não existe vontade. Penso que quando gostamos do que fazemos, não existem dificuldades. Mas tem de ser mesmo sentido! Mas depois fiquei muito desiludida por causa deste percurso todo…”

E acrescenta: “Saí frustrada em alguns aspetos e orgulhosa, noutros, a gente não está só num patamar, são altos e baixos. Mas saí frustrada com a prática profissional, porque uma coisa em que eu acreditava era que o país tinha necessidade (como pão para a boca) de regular a profissão. …”.

Maria, é uma mulher com ar sereno, afável e de bem com a vida que diz que

trata “muito as coisas ao colo “, que é o que funciona primeiro, mas faz

questão de não se identificar com o estereótipo da assistente social como

“uma senhora de boa vontade e saia comprida”.

Na altura da entrevista já se encontra reformada de um serviço central da

Segurança Social há mais de um ano, após uma trajetória profissional de

trinta e sete anos, maioritariamente realizada num serviço local da

Segurança Social de um concelho suburbano de Lisboa.

Sobre os projetos de futuro diz que teve várias propostas para ir fazer

voluntariado mas que «não se sente sarada o suficiente», que «não se sente

preparada» e, na verdade, não lhe apetece. Não descarta a possibilidade de

vir a fazer voluntariado, mas diz que o que agora lhe apetece é «fazer coisas

bonitas» que nunca pode fazer antes (pintar, fazer um curso de dança,

passear e conviver com amigos). Entende que, após uma vida de trabalho

com muito desgaste emocional tem «direito a um pouco de supérfluo» mas,

ao mesmo tempo, isso faz com que se sinta «egoísta».

Sobre a sua relação com a profissão diz:

“…a gente não consegue sacudir ‘isto’ de repente, de um dia para o outro, não consegue. E onde quer que vá, vou com os mesmos olhos ainda por cima eu sempre fui um bocadinho rebelde, sempre fui insatisfeita com determinadas coisas, sempre procurei pôr o meu cunho pessoal no que fiz (não sei se consegui), de qualquer modo, nunca fui muito “manga-de-alpaca”... (…) Mas não foi nada fácil. Mesmo em relação às chefias e em relação às colegas. Eu tenho a certeza que se fosse mais maleável, mais manipulável, eu tinha ascendido a cargos maiores. Eu cheguei a rejeitar cargos, mas também nunca me interessaram. Para mim, as ofertas de cargos, tinham sempre que ver com condescender em determinados aspetos... percebes? Eu sempre prezei muito a minha liberdade de poder dizer e fazer aquilo

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que entendia. (…) Mas tomar esta posição durante uma vida toda, custa caro”.

Esta argumentação sobre uma certa autonomia na sua trajetória profissional

em relação às hierarquias e aos poderes instituídos é algo que marca a

narrativa de Maria e que, de certa forma, está presente em todas as

narrativas d @s seniores.

Na dimensão dos contextos organizacionais e «área» de intervenção, e

apesar de ter feito parte da sua trajetória profissional como Auxiliar Social

nas estruturas da Segurança Social, trabalhou quase sempre numa vertente

comunitária e de trabalho direto com as pessoas. Quando lhe é pedido para

destacar dessa trajetória, as experiências que foram mais marcantes do

ponto de vista das suas aprendizagens, Maria realça três experiências que

abarcam quase todo o seu percurso profissional:

• a primeira, foi o primeiro trabalho num Projeto da Promoção Social

Comunitária na Madeira (1966) e, apesar de ser de curta duração “foi de

longe o mais gratificante” e foi vivido com uma intensidade tal que lhe ficou

para a vida. Maria argumenta com a excelência das equipas que foram

constituídas e formadas expressamente para aquele trabalho, com o trabalho

em si que lhe agradava e com cuja orientação se identificava (não era

trabalho assistencial como era a maioria do trabalho que se fazia na altura) e

com os afetos que manteve toda a vida com algumas pessoas de lá, para

além das condições oferecidas que eram vantajosas.

“Era um tipo de trabalho com as populações, em bairros ‘especiais’, e quereria sempre os alunos que fossem dos melhores dos cursos porque, à partida, ela [Manuela Silva, a coordenadora] iria ser exigente em relação à qualidade do serviço prestado. Entretanto, eu entusiasmei-me com a ida para a Madeira, para um dos projetos-piloto. (…) porque na altura eu tinha lá a minha irmã a viver e em vez de ficar cá sozinha em Lisboa, ia para a Madeira. Na altura, éramos consideradas pessoal deslocado, tínhamos direito a um Lar e ao vencimento; e na altura, pagavam mais na Promoção Social do que na Assistência (nós recebíamos mais 200 escudos). Mas é engraçado como estes pormenores marcaram uma certa elite em relação às equipas da Promoção.”

Sobre o contexto organizacional da época, Maria diz que naquele tempo

havia o Ministério da Saúde e Assistência, a assistência para um lado e a

providência para outro e os serviços de assistência eram os serviços de

base. A Promoção Social Comunitária na narrativa de Maria é descrita assim:

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“... quase que me dava vontade de lhe chamar um filho ilegítimo, porque depois acabaram com ela. No tempo do Baltazar R.S., um belo dia a Dr.ª Manuela Silva chegou ao gabinete, tinha lá um despacho a acabar com o serviço, foi uma coisa medonha! (…) E foi assim, o serviço acabou de uma forma... como se fosse um ato terrorista. Porque uma das coisas que nos estava a dar um prazer imenso, era ser um serviço completamente diferente, até as relações entre nós eram diferentes, ainda hoje se nota nos vários serviços por onde nós fomos distribuídas, ainda hoje o pessoal que é do tempo da Promoção tem uma relação diferente uns com os outros e ainda nas reuniões agora se fala: - Nós, no tempo da Promoção... Até porque havia hábitos de trabalho, completamente diferentes; por exemplo, os registos do trabalho, o cuidado com os instrumentos de registo, a valorização das relações interpessoais e de grupo e a visão de trabalho inter serviços, a cooperação...”

a segunda experiência, decorreu ao longo de mais de duas décadas

(1970/1996) na Amadora e constitui uma parte muito significativa da vida

de Maria. Foi um período que Maria identifica como de grandes mudanças:

“Em vinte e quatro anos assisti a tudo quanto foi mudança: mudança de chefe, mudança de estrutura, mudança do Ministério, mudou o nome do serviço, todos os anos mudava qualquer coisa. Então com aquelas mudanças sucessivas de governos cada ministro que vinha inventava uma maneira diferente e punha lá outro diretor novo.”

Na sua narrativa sobre este período Maria destaca alguns episódios e

argumentos em que as esferas de vida pessoal, familiar e profissional se

misturam: o reingresso no serviço onde tinha estagiado após uma breve

passagem por um trabalho indiferenciado, a licença sem vencimento por

volta de 1973/74 para acompanhar o marido em comissão de serviço na

Guiné e o regresso com a filha a Portugal, após a Revolução; a «luta» das

reivindicações e movimentações pós-revolução, onde refere ter apanhado a

‘guerra’ das auxiliares sociais a quererem o mesmo estatuto das assistentes

sociais, argumentando que faziam o mesmo trabalho e as auxiliares sociais

que não tinham curso nenhum a quererem a mesma coisa.

Aliás, refere que quando reingressa no serviço foi para fazer o trabalho de

que mais gostava e que tinha feito na Promoção Social Comunitária, que era

trabalhar com as comissões de moradores e as comissões de trabalhadores.

“Lembra-te que a Amadora tem toda aquela cintura industrial das fábricas, era a ‘Somincor’, era a ‘Sorefame’, era uma... que depois fechou, que eu ainda fui lá fazer inquéritos para lhes ser atribuído o subsídio de desemprego, agora já não me lembro do nome. Eu apanhei esse tipo de trabalho todo e ofereci-me logo para fazer também era verdade que ninguém o queria fazer, por isso não tinha concorrentes. E na Cova da Moura foi a mesma coisa, apanhei as comissões de moradores. Nas

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autarquias, existiam os cadernos reivindicativos a pedirem as creches e os jardim-de-infância e os ATL, que não havia nada dessas respostas sociais. Foi uma sementeira (…). Apanhei toda essa fase de trabalho que foi interessantíssima, em que eu recuperei muito da experiência de trabalho que tinha feito e da metodologia que tinha aprendido na Promoção Social e apanhei ao mesmo tempo, internamente, a modificação de estatuto das auxiliares sociais e das assistentes sociais”.

Maria refere que o trabalho social na altura era desenvolvido em grande

proximidade com as autarquias, que não tinham técnicos nos seus quadros de

pessoal e que apoiaram a criação de estabelecimentos de apoio à infância,

para além do trabalho de atendimento normal das populações.

“… passou-se por aquelas fases de divisão por sectores de atividade (infância e juventude, família e comunidade, terceira idade), depois para outro tipo de organização, que era por áreas de intervenção (infância e juventude, apoio às IPSS, às IPAS que na altura chamavam-se IPAS, instituições privadas de assistência, depois passaram a IPSS)…Depois, para além disso existiam todos esses grupos a que eu dava apoio, principalmente as comissões de moradores, naquelas zonas onde eu trabalhei - na Damaia, na Cova da Moura, na Buraca. E aí a realidade era muito semelhante àquela que eu conheci no ilhéu de Câmara de Lobos, parecendo que não, havia muitas coisas em comum: a segregação, o grupo afastado da cidade, as necessidades económicas, o desenraizamento, havia muitas coisas em comum...”

Outro dos atuantes que Maria identifica, este pela negativa, foi uma chefia

que acabou com todo o trabalho comunitário, que desvalorizava

constantemente o trabalho de intervenção social e os seus atores e que

«fechou» o serviço na sua relação com o território, com a comunidade e com

as outras instituições.

“Este senhor era formado em Direito e levava o dia todo a ler legislação. Nós na altura, trabalhávamos muito com os Procuradores de menores e família, que eram o Dr. Epifânio, o Laborinho Lúcio, o Armando Leandro, eles iam lá trabalhar connosco à Amadora sobre as leis da adoção, das colocações familiares, as primeiras orientações que saíram, nós trabalhámo-las com eles diretamente. E então, nós tínhamos muitos pedidos do Tribunal de Menores e do Tribunal de Família, para fazer informações sobre as situações das famílias. (…) Não havia semana nenhuma que eu não tivesse uma ‘rima’ de informações para o Tribunal, até porque tinha um prazo apertado de resposta e era logo, logo que chegava um pedido, eu imediatamente fazia, até porque eu conhecia as famílias. Então aquele bairro da Reboleira, aqueles prédios, com aqueles apartamentos mobilados do J. Pimenta, aquilo era um ambiente de cortar à faca. A maior parte dos apartamentos era habitada por raparigas prostitutas, que deixavam as crianças sozinhas todo o dia, ou então fechavam-nas porque trabalhavam de noite e tinham que dormir de dia... Então, aquelas crianças estavam em perigo, maltratadas e abandonadas na rua e eram queixas a todo o momento. Nós, infelizmente, tínhamos muita experiência naquela

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intervenção de proteção às crianças. Bem, a 1ª vez que eu fui ‘a despacho’ com uma ‘rima’ de informações técnicas para o tribunal o senhor começa-me a corrigir o português. Corrigir o português?! Eu até nem escrevo mal! Por acaso até não escrevo mal, nunca escrevi mal. Se fossem correções de conteúdo eu aceitaria, que às vezes há terminologia na área do Direito que a gente não domina (mas aquela terminologia até dominava, porque eu estava muito treinada a fazer aquilo)... Depois também tinha a mania que doutor era ele, nós éramos umas ‘cabeças de vento’, que levávamos os dias em reuniões e não fazíamos nada. Era assim que ele tratava connosco, para ele os importantes eram os senhores doutores médicos do SVIPES (foi o ano em que foi criado o SVIPES - são os Serviços de Verificação de Incapacidades Permanentes).”

Após esta chefia ter sido destituída, o serviço voltou à «normalidade» e Maria

volta a escolher o trabalho de intervenção direta com as populações (aliás,

era um tipo de trabalho que não precisava de disputar com nenhuma colega

porque ninguém o queria fazer) e fala com detalhe e entusiasmo dos

Projetos de Luta Contra a Pobreza, de Projetos de parceria para apoio à

infância com suporte financeiro da Comunidade Europeia e do trabalho direto

com pessoas com toxicodependência e/ou SIDA.

a terceira, foi no Instituto para o Desenvolvimento Social (IDS) para onde

foi requisitada já quase no final da sua trajetória profissional (2002/03).

Era a pessoa sénior numa equipa muito jovem e o conhecimento que tinha

dos serviços era um contributo muito reconhecido; na altura foi trabalhar no

âmbito da Comissão Nacional das Crianças e Jovens em risco e começaram

a criar as comissões de proteção concelhias por todo o país.

“…estive lá um ano e ao fim de um ano não prolonguei a requisição porque o trabalho era muito desgastante. A gente tinha dias de sair de casa às seis da manhã e regressar à uma, e no dia seguinte, outra vez. Eu não tinha já idade para quilo - Aquelas noitadas... Quilómetros e Quilómetros... Houve um dia em que fomos para uma reunião no Porto e tivemos um acidente a meio do caminho em que íamos morrendo todos. Rebentou um pneu da carrinha, ficámos viradas ao contrário no meio da autoestrada.”

Apesar da saída antecipada, a experiência é narrada como positiva num

contexto de grande apoio e aprendizagem técnica. Contudo, Maria

reconhece que o IDS foi criado «um bocado a mais» para colocar em

funcionamento, o que o governo entendeu não conseguir fazer através da

estrutura dos Ministérios.

“Eu tinha a nítida sensação e era assim que acontecia, que o IDS era a

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‘menina dos olhos’ do Ferro Rodrigues. Projetos que ele queria ver bem conseguidos e, sem falhas e que servissem um bocadinho também de bandeira política, ele entregava ao IDS. E não há dúvida que havia uma vontade muito grande de fazer bem e havia um acompanhamento muito próximo dos técnicos, muito apoio, nós tínhamos com muita regularidade encontros com técnicos especialistas de ‘tudo o que era sítio’, de especialistas que eram convidados para vir falar, fazer reuniões e cursos - aquele pessoal estava sempre em formação permanente. De facto, havia uma vontade muito grande de que aquilo resultasse bem. E resultou bem. Os projetos que passaram pelo IDS tiveram bons resultados. (…)

Estas três experiências que acompanham o início, o maior período de

trabalho no mesmo local e quase o fim da trajetória profissional de Maria,

deixam de fora apenas alguns períodos em que Maria aceitou coordenar

alguns projetos e medidas de política social já numa fase madura da sua

trajetória profissional. Contudo, a sua forma «independente» de trabalhar,

aliada ao gosto pela “rua, pelo direto, por gente” contribuíram para que estas

experiências não fossem sentidas como significativas. Em jeito de balanço

diz:

“A quantidade de coisas que eu fiz ao longo destes anos, a quantidade de gente que eu conheci, a quantidade de serviços por onde eu passei, a quantidade de mudanças dos serviços a que assisti - que se calhar não mudaram tanto como isso, estão agora a inventar coisas que a gente deixou cair nos anos 60 e pensam que descobriram a pólvora. É Verdade! Se calhar, não inventam tanto como pensam, mas pronto nós temos um bocadinho essa mania, de partir sempre do zero. A gente nunca aproveita a experiência dos outros, o trabalho que está para trás não tem valor nenhum, não há que confiar nos outros. E ao nível de dirigentes é igual: o tempo e o dinheiro que se perde por partir sempre do primeiro degrau, sempre a partir do zero, quando há tanta coisa que se podia aproveitar.”

Sobre o significado do percurso profissional, Maria diz que ainda não se

conseguiu distanciar o suficiente para apreciar a reforma, que ainda se “vê

dentro” da profissão e que acha que isto de ser Assistente Social “é como ser

padre, fica para a vida toda”.

Na dimensão das políticas Maria faz uma trajetória dentro do ‘sistema’ e a

trabalhar com as medidas de política definida ao longo das várias décadas,

mas conserva uma certa capacidade de autonomia profissional e de análise

reflexiva e crítica. No entanto, a sua narrativa privilegia claramente a relação

com os Públicos, dizendo que a grande conclusão que tirou ao fim de muitos

anos foi que “a maior parte das pessoas não esperam que a gente lhes dê

nada de especial, esperam que a gente as trate de igual para igual” - a não

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ser, como também refere, “os viciados da assistência” e “algumas

assistentes sociais que também acham que vão salvar o mundo com um

subsídio”; por oposição, exemplifica com outras formas de trabalhar:

“Lembro-me que eu tinha na Amadora, uma série de casos de droga (porque havia muitos casos de droga ali). E era impossível combinar com eles para irem lá ao serviço em dias de atendimento, a determinadas horas – nem pensar! Então, eu já não tinha só os da minha zona, porque depois uns diziam aos outros e eu tinha gente que já nem era da Amadora. Só que, na altura, o coordenador de equipa (que era um tipo inteligente) percebia que não era por não ser da minha zona ou por não ser, que eu ia deixar de acompanhar aquelas situações. Porque na altura, o que se pretendia era que o problema alastrasse o menos possível e se havia alguém que até conquistava a confiança deles, e conseguia conversar com eles e encaminha-los dali para o tratamento especializado das Taipas, melhor. Eu ia todas as semanas reunir com a minha colega das Taipas e todas as semanas trazia um molho de casos e íamos fazendo o acompanhamento, paralelamente, uma e outra. E aonde é que eu os encontrava, onde é que a gente conversava muito? Era lá num café, que havia ali ao pé dos serviços, que se chamava o Danúbio Azul, eu ia lá tomar um ‘cafézinho’ e eles começavam a chegar. Era capaz de estar ali duas horas, na conversa uns com os outros e depois cada um voltava para a sua vida; eu voltava para o serviço ou não, conforme a hora. E um belo dia, o dono do café chama o meu coordenador e diz-lhe: - Ai, veja lá, aquela sua colega que até tem tão bom aspeto, também anda na droga. Passa as tardes às vezes aqui, no meio daqueles drogados, que até faz impressão. Eu até já disse à minha mulher, eu não sei se diga ao chefe, se não diga, mas veja lá que ela nem vai trabalhar. Ela fica aqui no meio deles, todos com um ar desgraçado, eu vejo, porque depois andam aí a drogar-se pelos cantos. E depois o J. disse-lhe: - Olhe, ela está no meio deles mas está a trabalhar”.

Para Maria é claro que tinha de recorrer a estas estratégias para os envolver,

argumentando que não dava para os imaginar numa sala de espera, que eles

não tinham sequer paciência para respeitar uma hora do atendimento e que se

entendia que tinham que ser tratados de outra maneira.

Na narrativa de Maria não aparece a dimensão do Associativismo Profissional,

com exceção de um breve questionamento sobre os movimentos sindicais do

Serviço Social e o poder reivindicativo que a classe profissional não tem, na

sequência de uma argumentação que mencionava a presença/ausência da

profissão nos ‘média’ (sobretudo na televisão) e o entendimento de que é

“uma profissão de pobres” e como tal, tem uma baixa valorização social.

Sobre a conciliação da vida familiar e profissional, Maria diz que, quando

trabalhou na Madeira era solteira e podia trabalhar até «às quinhentas» da

noite que isso não constituía problema. Refere que só sentiu dificuldades

Page 296: As formigas e os carreiros

296

quando a filha nasceu e que foi o facto de estar a morar tão perto do trabalho

que a levou a permanecer no mesmo local tantos anos seguidos, porque a

família ia todos os dias almoçar a casa e esta proximidade permitia-lhe

acompanhar a vida familiar. Apesar de relatar épocas especialmente difíceis (a

seguir ao 25 de Abril em que o marido passava noites inteiras nas reuniões do

Movimento das Forças Armadas e em que se cruzavam muitas vezes à porta

de casa; ou outra altura em que o marido estava a trabalhar fora de Lisboa e

ela estava a fazer o complemento para a licenciatura em horário pós-laboral)

refere que nunca sentiu que a sua vida profissional os afetasse.

À distância, acha que correu bem e que foi sempre um elemento muito

presente, mas a propósito fala na condição das mulheres portuguesas da sua

geração que “têm de programar cada coisa com todas as outras”, ao contrário

dos homens que “podem sempre fazer tudo e dizem que sim a tudo”.

Page 297: As formigas e os carreiros

297

OS DO TEMPO DA ‘LUTA’: INÊS E ANTÓNIO

Neste perfil estão agrupados dois assistentes sociais, Inês (IV6) e António

(AF1), com trajetórias e posicionamentos muito diferentes mas que, nas suas

narrativas, dão testemunho dos tempos de revolução no país (e nas ex-

colónias africanas) vivenciados na juventude e de um processo de ‘luta’ pelo

reconhecimento do grau académico: “Estive num momento um bocado

interessante do Instituto, para o bem e para o mal”, diz António.

Ambos nasceram nos últimos anos da década de 50 e, em termos de faixa

etária distinguem-se d@s seniores; por outro lado, o testemunho das suas

trajetórias profissionais pontua diferentes aspetos dos acontecimentos políticos

e sociais vividos, mas também das alterações da formação em serviço social,

dos perfis profissionais e das mutações do mercado de trabalho. Os tempos

das suas trajetórias profissionais estão marcados (a rosa) no quadro abaixo.

Tabela nº 2 - Tempos e trajetórias profissionais dos entrevistados

1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

Inês Nasceu

1956

Ingresso

1974/75

(Angola)

Curso

1978/82

(Coimbra)

Ent

2008

26TP

António Nasceu

1959

Curso

1980/84

Ent

2006

22 TP

Notas: TP – Anos de trajetória Profissional; Ref – Reforma; Ent - Entrevista

Os períodos e locais da sua formação inicial também são diferentes: Inês

começou por frequentar o Instituto Pio XII em Angola, interrompeu os estudos

e, passados alguns anos, realizou a sua formação em Coimbra e António,

Page 298: As formigas e os carreiros

298

após o secundário andou a fazer ‘outras coisas’, como ele diz, e só voltou a

estudar, para realizar o curso, alguns anos mais tarde também.

Têm em comum, estes tempos de interregno entre o fim do ensino secundário

e a opção pela formação em Serviço Social, a que atribuem um significado de

grande maturação pessoal e riqueza de aprendizagens, sobretudo não

formais e informais.

Em relação às suas trajetórias profissionais, a historicidade e a relatividade de

expressões como «qualificações», «competências» e «saberes» enfatizam

sobretudo o seu carácter relacional e introduzem outras dimensões como

«incerteza», «flexibilidade» e «reversibilidade» nas trajetórias sociais e nos

contextos profissionais. Neste âmbito, o interesse pelas (re) composições dos

processos de reestruturação dos modelos profissionais de socialização e de

identificação foi algo que atravessou o processo de interação com estes

atores.

Fica evidente em ambas as trajetórias que no início da década de oitenta

(1982 e 1984) quando terminaram a sua formação inicial, ainda existia

facilidade de encontrar trabalho no campo profissional, embora com vínculos

mais precarizados (os primeiros recibos verdes ou vagas temporárias na

administração pública sobretudo a nível local) e as suas duas trajetórias são

marcadas por mobilidades de contextos de intervenção, onde imperam

motivações de realização, autonomia profissional e de uma aprendizagem

contínua para renovar e/ ou inovar as possibilidades de exercício profissional.

Na narrativa de Inês é utilizada a metáfora do «ponto-pé-de-flor» (referindo-se

a um tipo de técnica de bordar) que é, segundo explica “um passo em frente e

dois à retaguarda” para descrever a importância da reflexividade na prática

profissional:

“…se nós não nos conseguirmos distanciar do que fazemos, quer no tempo, quer no espaço, se nós não conseguirmos procurar novas energias através das leituras e daquilo que estudamos, nós não vamos criar nada de novo, nós vamos andar em círculos. Por outro lado é, de facto, a flexibilidade, a capacidade de deixar as coisas acontecer à medida que elas vão acontecendo, que permite inovar”.

Na narrativa de António sobressai «um certo pensamento divergente», que

ele nomeia como uma «sensação de ter andado a antecipar as coisas» e

Page 299: As formigas e os carreiros

299

alguma «dissidência», que ilustra também com recurso a metáforas: das

quais destaco duas, a da ‘Lagoa de Óbidos’ e a dos ‘músicos de Jazz’:

“…é saindo que se pode renovar aquilo que está estagnado, ou seja, mal comparado, é como a Lagoa de Óbidos: é preciso que a água do mar lá entre para aquilo refrescar, para que aquele ecossistema (que tem de estar condicionado porque a característica dele é mesmo assim) possa refrescar (…) e faça uma limpeza; ou seja, a gente tem que ir dentro e fora do campo profissional” . “ …às vezes, sinto-me como os tocadores de ouvido, como aqueles músicos que nunca foram à escola e que não sabem ler uma pauta. Os tipos tocam música tão bem como os outros, mas são uma espécie de músicos analfabetos…sempre com um trecho de base, um bocado como o Jazz; o trecho é o mesmo e, se calhar, tu vais reinventando cada uma das coisas, de improviso. (…) É preciso ir buscar trechos de competências da profissão para trabalhar noutras áreas que permitam readaptar-me ao trabalho, uma espécie de rapsódia…”.

Estes dois atores partilham alguns aspetos das suas trajetórias,

nomeadamente uma proximidade ao campo da Sociologia, mas evidenciam

também diferentes formas de «representar» e de «estar» na profissão,

ilustrando algumas das forças tensionais presentes no campo profissional,

nomeadamente a posição de Inês que argumenta uma profissionalidade

reforçada pela qualificação académica e pela reflexividade profissional e a

posição de António, que parece mais próxima de um «pós-profissionalismo».

Inês, é uma mulher com uma narrativa estruturada e eloquente, que fala de

uma grande paixão pelo Serviço Social. Ao longo de uma trajetória profissional

com mais de vinte anos identifica que o seu «fio da meada» profissional é a

prática comunitária e “a polivalência de criar sinergias e de misturar tudo”, com

a “consciência de que a Educação é estruturante para a vida” e cruzando com

outro eixo estruturante que é a formação académica “o fascínio pelas teorias e

pelos livros”. Diz de si que vive sempre na fronteira e na dualidade, mas com

uma grande consciência de ser ator e atuante.

Inês, que nasceu, cresceu e estudou em Angola (onde viveu até aos 18 anos)

iniciou um percurso formativo em Serviço Social interrompido pelo processo

de descolonização, intercalado com outras experiências de vida e de trabalho

e concluído em Coimbra, no Instituto Superior de Serviço Social daquela

cidade.

Page 300: As formigas e os carreiros

300

Na altura da entrevista, exerce como docente do ensino universitário no 1º

ciclo da formação de assistentes sociais e encontra-se a terminar

doutoramento.

A dualidade nomeada por Inês marca a sua trajetória profissional, entre uma

ação profissional comunitária e uma ação profissional como docente, ambas

comprometidas com um aprofundamento contínuo do conhecimento.

Exerce em contextos organizacionais diversificados, embora as suas

experiências mais longas e gratificantes (respetivamente de onze e cinco

anos) sejam em estruturas do poder local, nomeadamente numa Junta de

Freguesia e numa Câmara Municipal. Descreve a localidade onde exerceu

mais tempo como “a minha casa, a minha escola e o meu chão”. Desenvolveu

aí um trabalho comunitário com “três pilares” de alguma maneira constantes

em diversas experiências da sua trajetória profissional: no primeiro pilar,

identifica a ligação ao Teatro como animador do movimento cultural, no

segundo pilar coloca a Paróquia e toda a estrutura de intervenção cristã,

através da solidariedade, da justiça e da igualdade e no terceiro coloca a

Junta de Freguesia que continua a trabalhar com a ligação entre os vetores da

comunidade, da solidariedade e da liberdade.

Nesta experiência, também mobiliza um grupo de trabalho e reflexão com

outras assistentes sociais, reconhecendo que “temos que estar sempre a

reformular tudo”. Considera este período a sua grande «sementeira»:

“…foi fazer associações de moradores, foi fazer associações de pais, foi fazer associações juvenis, foi fazer associações de património e foi o grande fascínio de ver que cada um tem um potencial imenso e passar às pessoas o testemunho de que elas são capazes…”. Valoriza a dimensão de «ouvir» as pessoas e de trabalhar com elas na perspetiva de que o trabalho é feito com as pessoas, “a partir das pessoas onde elas estão e como as pessoas são, não como nós gostaríamos que fossem”.

Após uma divergência com um autarca, muda para uma Câmara da área

metropolitana de Lisboa e faz um trabalho semelhante:

“…vou para os bairros, crio os projetos de intervenção comunitária e começo a trabalhar com ‘rodas’ de pessoas. Não são grandes assembleias, são ‘rodinhas’, ‘rodinhas’, ‘rodinhas’. Quando somos vinte, temos quatro rodas de forma que as pessoas possam falar entre si. E começamos a sistematizar trabalho com objetivos muito claros. É preciso passar às pessoas que «venho aprender com vocês, não trago nada, não ensino nada»; e o grande fascínio é o potencial que está dentro de cada um”.

Page 301: As formigas e os carreiros

301

Nesta experiência de trabalho cria um gabinete de apoio à imigração,

trabalha com as Igrejas e com as Associações de Imigrantes e inicia a

constituição da Rede Social.

Esta narrativa de mobilização e ativação dos recursos e agentes locais para

processos de mudança parece mais do domínio da estratégia e da

metodologia, do que do domínio das Políticas (assegurando um claro «para

quê»), muito embora Inês tenha um posicionamento esclarecido e reflexivo

sobre as Politicas em vigor, colocando a relação com o Estado e as

organizações “dentro da complexidade e do sistema aberto em interação

com outros sistemas, alguns ‘Mega sistemas’ e com os quais eu tenho que

interagir, sobrevivendo na minha pequenez”.

Entende que o Serviço Social “esteve sempre na fronteira do sistema, lá

onde a rutura acontece e é preciso agir “ e argumenta que se a profissão só

reproduzisse o sistema não tinha sobrevivido. A sua atual volta à Faculdade,

como docente e como aluna foi “em busca de aprofundar outras coisas”

diferentes do campo de exercício profissional.

Diz que tem uma leitura otimista mas «louca» do Serviço Social (presente e

futuro) e aprofunda (com algumas dificuldades de aceitação pela academia)

o estudo da participação, “entendida como um conhecimento construído pelo

utente e pelo profissional, na relação-ação”. Este compromisso com os

Públicos com quem se relaciona profissionalmente, contribui para considerar

que existe um «saber construído» conjuntamente, que “a academia não

considera válido porque não é literário, sistematizado, positivista, objetivo,

neutro e lógico”, que está no sujeito epistémico que constrói conhecimento

na ação e esse conhecimento inclui a relação entre os sujeitos, ligada ao

meio e aos outros – e é, segundo Inês, o «fio fininho» que atravessa o

serviço social

Voltando à sua trajetória profissional, esta inicia-se logo após o curso, na

Secretaria Regional de Habitação e Ambiente, pertencente ao Governo

Regional da Madeira (a Madeira era a terra dos avós para onde a família

regressa na volta de África). Trabalha num gabinete de reabilitação no

realojamento social em Câmara de Lobos e diz desta vivência que “foi

fabulosa porque foi voltar à comunidade, voltar ao terreno”. O seu gabinete

Page 302: As formigas e os carreiros

302

de trabalho serve de espaço a várias respostas e dinâmicas comunitárias

(escola de adultos, Atelier de Tempos Livres/ATL, animação comunitária…),

e Inês refere:

“…consegue-se trabalhar com adultos, com jovens, com crianças, com o formal, com o informal, consegues juntar as estruturas e as dinâmicas locais (…) e na primeira exposição que nós fazemos dentro da biblioteca de Câmara de Lobos com os desenhos dos meninos, não tínhamos esticadores, todos os desenhos foram presos às estantes com fita-cola a fazer de fio para colar os desenhos, filas, filas, filas…o fascino dos miúdos por verem os seus trabalhos expostos, foi fabuloso. Foram os pais, foram os tios, foram as primas, foram as avós, foi toda a gente”.

Passado um tempo decide voltar ao continente para se inscrever em

Sociologia e trabalhar na Segurança Social em Torres Vedras para um

«projeto-piloto», numa altura (1985) em que o sistema de Segurança Social

foi reestruturado e unificado.

Considera a experiência marcante em termos profissionais porque entra

numa estrutura “burocrática, fechada, fiscalizadora, fiscalizante, castrante”,

confronta-se com a divergência entre um «espírito legislativo» com que se

identifica e “um ‘aparelho’ que pretende apenas racionalizar o exercício da

assistência por parte do Estado e normalizar os procedimentos dos

assistentes sociais”, mas percebe “que é possível trabalhar em apoio

psicossocial numa secretaria, que é possível trabalhar consciências e é

possível, de facto, transformar as pessoas”.

Situando as dificuldades que encontrou para realizar o trabalho da forma

como lhe fazia sentido (a começar pela dificuldade em se deslocar no

território que lhe estava afeto, passando pela ‘não autorização’ por parte da

hierarquia «aqui não se trabalha assim» e a acabar no seu despedimento),

foi desenvolvendo estratégias de trabalho para conhecer a população

através dos agentes locais (em especial, os párocos e os presidentes de

junta) e articular os processos de intervenção. Relata a intervenção que fez

com as famílias retornadas das ex-colónias (individualmente, em grupo e em

rede) que estavam dependentes de subsídio, no sentido de as autonomizar e

regista que “…as pessoas tinham ideias fabulosas sobre o que elas próprias

podiam fazer e fazia o projeto com a própria pessoa”.

Neste período, Inês identifica a utilização de um sistema de transporte

cooperativo onde, como estudante-trabalhadora, faz um movimento diário

Page 303: As formigas e os carreiros

303

entre Torres Vedras e Lisboa, como uma experiência muito rica: para além

da utilidade prática deste transporte partilhado é dada relevância ao tempo

de convívio durante os trajetos, em que cada um contava coisas da sua

faculdade e às festas que faziam em casa do motorista para celebrar as

formaturas de cada um/a que se formava.

Depois de sair de Torres Vedras vai trabalhar com idosos para Samora

Correia num Centro de Dia e adora a experiência, reconhecendo que parte

da sua ‘escola’ foi com estes idosos:

“Fazia escola no centro de dia, ensinava-lhes as letras e os números mas também aprendia com eles …como é que tinha sido a sua escola? Como é que as coisas eram antes? Como é que podiam ser depois? O que é que podíamos fazer a seguir?”

Ouvia as suas histórias e escrevia os seus relatos de vida:

“…de pessoas que trabalhavam nos arrozais das seis da manhã às sete da tarde, que trabalhavam na apanha da azeitona e que ficavam quatro a cinco meses longe da família, que iam ao sobreiro, que iam para a cortiça, que iam para o castanheiro, que iam para a ceifa. As pessoas eram arrematadas na praça pública ao sábado de manhã. E quem não se apresentasse, a polícia ia buscá-lo a casa e ia preso. As mulheres eram separadas para um pavilhão e dormiam no chão; e comiam meia fatia de broa e uma azeitona. Isto é em Portugal, nos anos 70, não é século XIX.”

Durante este período começa a fazer grupos de trabalho com as várias

diretoras técnicas de outras estruturas de apoio a idosos e considera que o

trabalho de equipa é outra dimensão estruturante do exercício profissional,

porque permite “perceber como é que várias assistentes sociais juntam criam

um saber que nenhuma antes tinha e que vai potenciar o trabalho de cada

uma”. Defende que o trabalho em equipa, feito com regularidade, permite

escrever o que se vai fazer e o que se vai ler e projetar como é que aquilo que

estão a conhecer e a estudar, se vai mobilizar nas respetivas práticas – esta

preocupação com a formação permanente, com as leituras, com o

questionamento das práticas, com a necessidade de trabalhar em equipa, com

a necessidade de ter gente de fora (estagiários) que ajude a ver ‘de fora’ é

algo que Inês refere levar do ISCTE. Entende que tem de se trabalhar como

um sistema aberto, que o conhecimento é de todos e que “há questões que

podes resolver porque estás ‘dentro’ e que vão ‘mexendo’ a partir de ‘fora’ e

que vão interagindo e que se vão resolvendo por esta ligação ‘entre o fora e o

Page 304: As formigas e os carreiros

304

dentro’.” De seguida, vai então para Carnide onde intervém durante onze anos

(primeiro no Centro Paroquial e depois na Junta de Freguesia) e onde refere

ter feito a “sementeira”.

Não existe menção na sua narrativa à dimensão do associativismo

profissional, embora face ao seu ativismo profissional e político e, quando

questionada sobre o ‘movimento de cidadania profissional’ refira com otimismo

que “esta apatia é apenas aparente (…) esta é uma daquelas fases que

parecem mortas e que a seguir vem uma geração que vai dar a volta”.

Sobre a conciliação da sua vida profissional com a vida familiar, Inês não

atribui importância até porque refere que existem hoje “grandes possibilidades

de estar em vários lugares ao mesmo tempo” e argumenta que os assistentes

sociais

“…não foram necessariamente nem missionários, nem eremitas, nem pessoas de vocação. Foram pessoas convictas dos seus ideais e da sua ação transformadora perante a sociedade, convictas da autodeterminação do sujeito e do seu espaço em relação aos utentes”.

António, é um homem que se descreve como «abelhudo», «safa-

enrascadelas» e assume ter perfil de animador - na perspetiva de “uma

animação/educação informal ou não formal”. Privilegia no serviço social a

parte da “animação/dinamização do tecido social e de iniciativas locais” e diz

que a outra parte, “a burocrática”, não lhe interessa; reconhece, contudo, que

a vertente da animação não está aproveitada pela profissão e que, por

vezes, “também não é muito gratificante porque é só utilizada para os

pequenos projetos”.

Na altura da entrevista estava a trabalhar num serviço de formação contínua

de uma autarquia.

Sobre os seus projetos para o futuro refere que se está a reconverter

profissionalmente para trabalhar como ‘técnico de reconhecimento de

competências’ ou ‘técnico de qualidade’ (na área do desenvolvimento

organizacional) e que liga essa «reconversão» com o serviço social através

da «participação», do «projeto» e da «comunidade de trabalho». Considera

que o que o atrai é a possibilidade de “ir buscar trechos de competências da

Page 305: As formigas e os carreiros

305

profissão para trabalhar noutra área” que lhe permitam readaptar-se ao

trabalho.

Na dimensão dos contextos organizacionais, António tem uma posição crítica

defendendo que o serviço social, na sua perspetiva, é “uma profissão típica

do século XIX que não se soube renovar…que tinha um culto das instituições

de forma absoluta e como as instituições eram muito ‘pesadas’, ficámos

colados até no nome” e argumenta que para se reinventar, a profissão não

tem recursos que cheguem; defende que a profissão tem de os ir buscar fora

do campo profissional e tem de ir buscar os dissidentes para receber algo de

novo. Refere também na sua narrativa as questões da relação da profissão

com o poder, argumentando que os assistentes sociais não se têm sabido

defender:

"Nós temos sido manipulados e temo-nos deixado manipular em termos políticos e não se tem batido o pé. Depois também tem a ver com uma cultura de consensualidade a todo o custo; não se criam ruturas..."

A sua trajetória profissional está marcada por uma mobilidade «nómada»,

por ter andado «a saltar de sítio para sítio» numa ideia de trabalho por

projeto:

“…princípio, meio e fim, acabou e segue para outro. Concebê-lo, desenhá-lo, montá-lo, negociá-lo, trabalhá-lo, redesenhá-lo, pôr a funcionar, redefinir outra vez, depois devolve-lo ao serviço, avaliando as partes que interessam e que não interessam”.

António refere que, no início da sua trajetória profissional, teve logo uma

oferta de trabalho por intermédio de um professor, ligando essa oportunidade

com o facto de ser “representante dos alunos no conselho executivo do

ISSSL". As suas duas primeiras experiências de trabalho são de curta

duração (cerca de um ano cada), pagas a «recibos verdes» e a fazer a

coordenação de formação profissional: a primeira, foi no Centro Cultural de

S. (um modelo inspirado nas “Maison de la Culture et de Jeunesse”

francesas) - neste período vive (no parque de campismo) em S. com a sua

esposa, que é professora e também ficou lá colocada; a segunda, foi na

Quinta da Lapa, em Manique do Intendente.

A narrativa de António sobre estas duas experiências, sobretudo sobre a

segunda, é muito crítica e detalha, com bastante pormenor, os atuantes

políticos dos contextos em intervinha, as dinâmicas e as tensões vividas

Page 306: As formigas e os carreiros

306

numa época onde a intervenção social estava muito partidarizada e onde

eram próximas as ligações entre os vários atores do poder político central e

os atores locais “numa ‘guerra’ ideológica, em que em termos partidários

estava tudo muito ‘assanhado’”.

Recorda a ocupação em 1975 da Quinta da Torre Bela (foi o primeiro

exemplo às portas de Lisboa da reforma agrária e foi feita com pessoas da

zona onde estava a intervir) e reconhece que o projeto em que trabalhava

era a «contrarrevolução», um projeto de muita formatação ideológica, um

meio para “dar qualquer coisa em troca e pacificar as pessoas”. Inscreve

esta estratégia na sequência das movimentações anticomunistas de Rio

Maior que eram contra o que na época ‘quente’ do PREC se dizia ser, a

ameaça da ‘ditadura de esquerda’. Situa que uma das prioridades políticas

de então era «limpar» as estatísticas do desemprego, utilizando um

subterfúgio que o financiamento comunitário permitia, que era colocar as

pessoas em formação e retirá-las dos números do desemprego.

Na fase final do projeto, começa a procurar trabalho e volta à Câmara onde

tinha feito o último estágio académico, para trabalhar na Ação Social Escolar.

Esta é uma área de competência autárquica dentro da intervenção municipal

na Educação que ainda estava muito marcada pela construção de escolas

(aliás, a chefia da Divisão de Educação era um Eng.º Civil o que também diz

desta perspetiva). António, aborrece-se com um trabalho muito administrativo

e de gestão processual (“o chefe queria era que eu comprasse fogões e

panelas para os refeitórios escolares”) e, à sua revelia, faz um estudo de

caracterização das escolas e da problemática do insucesso escolar e

trabalha com as associações de pais que na altura reivindicavam a criação

de ATL para os tempos pós-escolares dos seus filhos. Esta estratégia vale-

lhe uma «guerra» com o chefe e acaba por mudar de serviço dentro da

mesma Câmara.

Ele e outra colega saem da Educação e são os primeiros técnicos a integrar

uma nova divisão orgânica com uma designação genérica de ‘Assuntos

Sociais’ e que era chefiada por uma assistente social (o que à época, era

pouco comum).

António inicia então um vasto trabalho de diagnóstico e de intervenção que vai

Page 307: As formigas e os carreiros

307

contribuir também para o crescimento acelerado deste serviço

“…por cada associação ou instituição criada, a chefe abria uma ‘pasta’, muitas ‘pastas’ implicavam muitos processos e muitos armários e a chefe queria ganhar campo de intervenção nos «terrenos de ninguém ou de fronteira entre serviços», os terrenos em que ninguém pegava”.

Na sua narrativa António expressa o entendimento de que esta trajetória, não

sendo isenta de dificuldades, foi de grande aprendizagem: “a gente cresce

com as coisas [em que participa], em todos os sentidos”.

Entretanto, fica responsável pela área dos ‘adolescentes’ e com uma pequena

equipa começa a intervir num espaço que a autarquia arrenda numa das

freguesias suburbanas mais populosas e onde a situação dos jovens é mais

difícil, não só pelo insucesso escolar como também pelo aumento do consumo

e tráfico de drogas.

No contexto deste território e deste espaço de intervenção tem uma das

experiências mais marcantes da sua vida (onde ganhou cabelos brancos)

através de um projeto com jovens em situação de risco e delinquência. O

projeto, que elaborou e coordenou no âmbito do Programa ‘Horizon’, com

financiamento do Quadro Comunitário de Apoio de então, durou um ano e

pouco de trabalho muito intenso, mas com a montagem, organização e

avaliação chegou aos dois anos.

Sobre este projeto que foi pioneiro num tipo de trabalho «em rede e sem

papel», António refere que tinham um objeto «estranho e diferente» e pontua

que a primeira dificuldade foi de constituir uma equipa com técnicos

habilitados e com experiência nesta intervenção «nova».

Começaram a fazer um diagnóstico das situações dos jovens e perceberam

que tinham dois ‘tipos’ diferentes: uns, que frequentavam o espaço da câmara

e ainda estavam inseridos nas escolas e nas famílias e outros, que já tinham

abandono escolar e ligações a grupos muito «pesados». Conforme foram

«puxando o fio da meada» perceberam que era uma «meada terrível» e que

os jovens com situações mais «pesadas» precisavam de um apoio mais

estruturado e prolongado do que o projeto podia dar. António, identifica as

dificuldades em gerir as «fronteiras», já que a equipa do projeto era uma

espécie de «antecâmara» entre as instituições (as escolas e outras) e as

dinâmicas dos ‘gangues’ de rua, que exerciam uma força atrativa nos jovens

Page 308: As formigas e os carreiros

308

através de lideranças fortes que os cooptavam para processos e percursos de

delinquência.

À distância, considera que o saldo do projeto foi trágico porque «acertaram no

alvo» mas só após o tempo de projeto é que conseguiram perceber «as

malhas» do território e «as ligações dos miúdos» e ganhar a sua confiança; e,

nessa altura não tiveram «recursos, dinâmica técnica e cobertura política»

para prosseguir o trabalho.

Refletindo sobre esta experiência, António destaca vários aspetos que

podem ser extrapolados para a sua trajetória profissional:

- a burocracia autárquica que não deixou vingar a intervenção;

- a confusão entre trabalho de projeto (com principio, meio e fim, exploratório

e experimental) e trabalho de serviço; confusão que ele relaciona também

com o financiamento e a ‘tecnologia de projeto’ imposta pela Comunidade

Europeia (para obter financiamento, chamava-se projeto a toda a intervenção

social);

- a forma como a realização destes projetos permitiu aos serviços e às

organizações manter a rigidez e «circunscrever a mudança», no sentido em

que ele ilustra com a expressão: «vão lá para fora brincar às inovações»;

- a dificuldade em produzir registos e evidências escritas (a que o Programa

e o financiamento externo obrigavam) porque a equipa era muito reduzida e

estava toda envolvida na intervenção direta (“ou fazia a intervenção, ou

tratava dos papéis, não dava para tudo”;

- o «branqueamento» dos relatórios de execução do projeto, em que foi

compelido a mudar o conteúdo para «bater certo com o que era exigido».

Estes relatórios não revelavam a intervenção efetivamente feita e as

aprendizagens realizadas por todos os envolvidos, durante aquele tempo de

vivências muito intensas;

- o sentimento de que não dava suporte suficiente aos dois educadores

sociais que estavam na intervenção direta com os jovens e que passaram

por situações dramáticas e de verdadeiro perigo para a sua integridade

física;

- o risco de que a intervenção com estes jovens passe a ser feita por via da

polícia e por via da ‘limpeza’, no sentido em que as instituições podem

Page 309: As formigas e os carreiros

309

assumir que

“…se não os podemos exterminar, limpemos a sociedade como se tiram as ervas ou como se tira o lixo, varremos para de baixo do tapete, ou metemos os jovens a apodrecer num canto ou a levar uns tiros e uns ‘chutos’ de um cartel de droga qualquer para que não chateiem”.

Após o projeto e, após uma segunda candidatura não aprovada, apesar de

terem garantido as parcerias locais e internacionais necessárias e de

considerarem que tinham reunido a experiência, o conhecimento e os

recursos locais necessários, António considera que a equipa técnica tinha

aprendido mas que não foi possível passar essa aprendizagem para o

serviço/organização, concluindo que as instituições (nomeadamente a

autarquia onde trabalhava) não estavam aptas para este tipo de trabalho de

intervenção. Refere que muitos jovens “perceberam e testemunharam que o

melhor período das suas vidas foi aquele” mas, na continuação do apoio

após o projeto confrontaram-se (os jovens e os técnicos da equipa) com a

falta de resposta das instituições (ilustra com o caso caricato dos testes

vocacionais do Centro de Emprego onde alguns jovens «tinham vocação»

para distribuidores de pizas).

Ainda sem tempo para fazer o luto deste processo (“tinha uma necessidade

enorme de falar intensamente sobre aquilo, com pormenores, não percebia o

que nos estava a acontecer…”), foi cooptado para trabalhar na Comissão de

Proteção de Menores e Jovens. Estas equipas tinham sido criadas há cerca

de um ano, eram constituídas por representantes de vários serviços locais e

ele menciona que foi chamado porque “faziam as atas muito direitinhas,

abriam e fechavam processos mas não resolviam nada”. Neste contexto, faz

estudos para compilar e interpretar os dados, mobiliza núcleos de trabalho por

zonas geográficas para debater a proteção das crianças e faz intervenção

direta, reconhecendo que era “com este contacto direto e próximo que surgiam

as ideias”, embora também refira que viveu «coisas tenebrosas»:

“…chegámos a visitar situações muito complicadas, de entrarmos em casas de ‘chuto’, de traficantes, com crianças lá dentro…”.

Em relação a «áreas» de intervenção António, conforme já foi referido coloca-

se de fora de uma divisão setorial e identifica-se transversalmente com a

animação, entendida como educação não formal e informal. Entretanto do

ponto de vista da sua trajetória, muda para outra câmara, mais uma vez

Page 310: As formigas e os carreiros

310

utilizando o apoio dos seus contactos no meio profissional.

Conseguida a mobilidade vai para um serviço ligado à Educação (Ação Social

Escolar) onde, mais uma vez, encontra um trabalho pouco estimulante, “os

primeiros tempos foram um bocado difíceis. Andei eu a comprar o que se

chamava pomposamente ‘palamenta’' [conjunto de pratos, talheres e outros

utensílios que apetrecham os refeitórios escolares] mas, também como é sua

característica, investe e procura dar sentido ao que faz, com uma intervenção

no âmbito da rede de cidades educadoras e com outros trabalhos que o

gratificam. Fica neste serviço sete anos e muda porque entende que:

“...devemos mudar quando estamos a ser bem-sucedidos…um ‘tipo’ ao fim de certo tempo acha que já sabe tudo, tem as rotinas todas adquiridas. E depois, nós sabemos que os procedimentos não são saber…mas dão-nos a sensação de poder, pensa-se que já se sabe tudo.”

Ele considera que já estava ‘convencido’, já todos lhe perguntavam como se

faziam as coisas, já tinha ‘a mania’ que sabia tudo e já controlava tudo,

mesmo o que não era o seu trabalho. Coincidindo com a entrada de uma nova

chefia (a quem não reconhece competência) pede para sair para outro serviço

da Câmara – um gabinete técnico de reabilitação urbana no centro histórico da

cidade.

Em simultâneo, estava a fazer mestrado em sociologia (no ISCTE) e tinha a

expectativa de que neste novo serviço conseguisse estar menos exposto às

questões «do poder» e aos desmandos da hierarquia. Contudo, o novo chefe

reduzia as suas funções ao mínimo e António pede outra vez para mudar de

serviço, desta vez para o Departamento de Formação da autarquia.

Aquando da entrevista está em fase de integração no serviço, a acompanhar

um grupo de pessoas em RVCC com o suporte de uma colega, dizendo-se

«fascinado» e «em aprendizagem». Reconhece que estar em aprendizagem é

um processo de adaptação exigente: “Não me dão espaço e eu, por vezes,

também faço como fazia antes e já não é bem assim”, dando testemunho da

dificuldade de «errar» em certas coisas que parecem básicas e tanto mais

difícil quanto "já se tem uma certa idade e estatuto". Por outro lado, considera

que os conhecimentos e a experiência que possui também lhe dão uma certa

vantagem de compreensão e de análise (que evita expor para não ser tido por

arrogante).

Page 311: As formigas e os carreiros

311

Encontra paralelismos entre o trabalho que desenvolve no âmbito do RVCC e

o de interventor social, nomeadamente “...com uma relação de ajuda em que a

pessoa pode descobrir algo diferente, no sentido de ajudar a perceber e

valorizar as competências que adquiriram ao longo da vida” e principalmente a

ficar com um «saber-ser» que ajude a ver o mundo com outros olhos. Na

dimensão das políticas e dos públicos, este assistente social refere que a

profissão se vinculou às instituições e a modelos institucionais que eram do

passado e não se transpôs, nem evoluiu. E argumenta contra a corrente que

defende a profissão como «uma arte» dizendo:

"Arte onde? Arte o quê? Um 'gajo' que mergulha num contexto, 'agarra' e dinamiza e dá a volta ao contexto por um conjunto de trabalhos... isto é a arte de estar vivo e dar a volta aos problemas para encontrar soluções. É esta a arte de intervir, mas as partes boas que existem na intervenção nunca acontecem dentro da instituição".

Assume que tem um pensamento divergente e que isso lhe dá uma certa

liberdade e que é bom "não ter baias muito altas" mas questiona que se calhar

também é liberdade a mais e que, por vezes, gostaria de ter modelos próprios

e que a profissão andasse menos atrás "das modas", porque desta forma

"andamos sempre a estruturar o que os outros andam a desestruturar".

“...no Serviço Social, não temos o hábito de concretizar as coisas, fica-se muito no «paleio»; é-se prático naquele sentido em que se faz um conjunto de tarefas e pomos toda a gente a mexer, mas o problema é que, por vezes, não sabemos «para quê» ou «para onde» ”.

O Associativismo Profissional não é abordado na sua narrativa, embora se

expresse muitas vezes, em termos coletivos e dê grande relevo às suas

aprendizagens como dirigente associativo estudantil.

Sobre a conciliação da profissão com a esfera de vida privada, António fala na

generalidade e dá destaque à feminização da profissão e, em simultâneo, à

baixa representatividade das mulheres nos cargos de chefia e nos órgãos de

poder onde reconhece que ainda não existe paridade.

Page 312: As formigas e os carreiros

312

Os primeiros «doutores»

Neste perfil estão «agrupados» seis assistentes sociais: Jaime (E JF19), Irene

(E IS11), Filipa (E AR12), Paulina (E PS13), Cristina (E TS14) e Diana (E

AF15) que têm em comum a década de nascimento (segunda metade da

década de sessenta) e a formação inicial no Instituto Superior de Serviço

Social de Lisboa, nos anos de 1985 a 1990 - o curso foi o primeiro a ter um

plano de estudos de cinco anos e a conferir o grau de licenciatura.

Este perfil distingue-se do anterior pela faixa etária (nasceram cerca de uma

década depois de Inês e António), pela formação inicial e sobretudo pelo

reconhecimento do grau académico. Os tempos das suas trajetórias

profissionais estão marcados (a roxo) no quadro abaixo.

Tabela nº 3 - Tempos e trajetórias profissionais dos entrevistados

1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 Jaime Nasceu

em 1968 1985/90 Ent.2009

19TP

Irene Nasceu em 1965

1985/90 Ent.2009 19TP

Filipa Nasceu em 1969

1985/90 Ent.2009 19TP

Paulina Nasceu em 1966

1985/90 Ent.2009 19TP

Cristina Nasceu em 1965

1985/90 Ent.2009 19TP

Diana Nasceu em 1967

1985/90 Ent.2009 19TP

Nota: TP- anos de trajetória profissional

Em relação às suas trajetórias profissionais e, também por referência aos

atores dos outros perfis identificados, os primeiros «doutores» têm trajetórias

com menor mobilidade organizacional: quatro deles (Irene, Paulina, Cristina e

Diana) mantêm-se no mesmo serviço/organização ao longo de quase vinte

anos; Filipa, apesar de ter tido outras experiências na fase inicial do seu

Page 313: As formigas e os carreiros

313

percurso, esteve catorze anos na Justiça (Instituto de Reinserção Social e

Equipa de Círculo) e Jaime que, nos primeiros anos da sua trajetória

aprofundou a sua formação teórica e experiencial com um ano de estágios

profissionais em três países estrangeiros, começou a trabalhar e a lecionar e

depois acabou por optar pela docência na formação inicial de assistentes

sociais, na qual se mantém, também com uma trajetória de quase duas

décadas ligado ao mesmo organismo.

Todos os entrevistados têm, na altura das entrevistas, uma relação

estabilizada com os respetivos empregos. Em parte, esta situação de menor

fluidez organizacional na trajetória profissional estará relacionada com as

oportunidades criadas pelo financiamento externo da Comunidade Europeia e

por uma época (décadas de oitenta e noventa do século passado) de

alargamento do mercado de trabalho para os trabalhadores sociais, quer no

âmbito das políticas sociais, quer no âmbito do crescimento da resposta das

instituições do setor privado solidário cofinanciado pelo Estado.

Este perfil de entrevistados, representando a geração que obteve o

reconhecimento académico da sua formação inicial e que revela globalmente

essa maior estabilização das trajetórias profissionais denota a importância

dos contextos de trabalho para a formação das identidades no trabalho e para

a produção e recomposição de saberes. No caso destes assistentes sociais

que têm exercido a profissão em contextos organizacionais relativamente

estáveis, interessa compreender até que ponto a sua afirmação social está

associada à capacidade de mobilizar as diferentes fontes de poder, tanto mais

quanto a sua função se encontra em posição de dependência hierárquica.

Filipa e Paulina não abordam a questão da relação com o poder,

argumentando com uma afirmação da profissão essencialmente associada ao

reconhecimento académico e profissional. Irene e Cristina, tecem alguns

argumentos condicionantes da afirmação social da profissão, enquanto Diana

e Jaime, a partir de dois contextos concretos de ação profissional configuram

diferentes fontes de poder profissional, confirmando a sua natureza complexa

e paradoxal.

Irene, por exemplo, começa por identificar-se como profissional «do terreno»

(tão capazes como outros, mas com receio de se aventurarem) que conduz a

sua intervenção sem ser para obter “reconhecimento”, mas que nota a

Page 314: As formigas e os carreiros

314

necessidade de controlo das instituições e a presença de alguma ‘confusão’

entre a ‘imagem da pessoa’ e a ‘imagem do serviço’:

“Acho que não temos tanto esse poder… como somos profissionais muito do campo, da prática, não somos muito convidados a produzir reflexões escritas. Quando lançam determinado projeto, acho que não estão muito preocupados em saber se é exequível na prática, ou não. Nós, os assistentes sociais do terreno, não somos convidados a planear projetos para depois serem aplicados na prática, a não ser que seja uma figura ou outra de mais relevo, e por exceção. Se calhar faz-nos falta a tal identificação com a profissão, sentirmo-nos mais valorizados de fora. Eu conduzo a minha intervenção mas não é para obter reconhecimento, faço o melhor que sei mas, nesta Junta de Freguesia, sinto que sou reconhecida sobretudo pelas outras instituições e que sou muito acarinhada por elas, mas tem a ver com a nossa postura pessoal. (...) Era importante sermos chamados a explicar como é que é a nossa função, o que é que nós fazemos, como é que produzimos e como é que depois se transporta esse conhecimento para o exterior. É a imagem da pessoa ou é a imagem do serviço que se vai representar? Na maioria dos casos somos chamados a representar a imagem do serviço. Somos nós que não nos conseguimos impor? Eu acho que não passa por aí. Acho é que ainda há muito aquele estereótipo do assistente social como trabalhador por conta de outrem, com um bocadinho de receio de nos aventurarmos. Somos tão capazes como os outros. Mas, por vezes, temos alguma dificuldade de colocar no papel... porque (…), os serviços onde nós atuamos querem ter o controlo sobre o que fazemos e toda a gente tem receio do que possamos dizer, receio se o serviço é colocado em causa ou se dizemos uma coisa que não cai tão bem… Perante quem é que as assistentes sociais têm de se colocar de acordo? É perante o serviço que lhes paga o vencimento, não é? Eu acho que os outros profissionais que trabalham mais a nível liberal conseguem fazer valer melhor a sua opinião, através de artigos de opinião ou científicos, ou de outras formas. Nós, é mais a nível ‘caseiro’, não é? (…) E esse «salto» era necessário, mas temos todos que nos esforçar para isso” Irene (E IS11).

Cristina dá uma visão fatalista da afirmação dos assistentes sociais, relatando

as experiências negativas de colegas que foram «a terreiro» lutar por uma

causa e/ou para obter reconhecimento:

“Eu presenciei testemunhos de colegas que ‘vêm a terreiro’ deitar por terra um conjunto de regras que não servem a nada nem a ninguém, e que se manifestaram publicamente em contexto académico contra isto ou contra aquilo, e dificilmente conseguem adesão. Não sei se é também uma questão de género...porque essencialmente somos mulheres, onde os nossos interlocutores homens negligenciam essa luta, achando que é uma luta inglória... e tenho vistos ‘decapitações’ em público que não se passam com os homens. Vejo homens a pronunciarem-se com muito menos garra, com muito menos sustentabilidade e que não têm o mesmo desfecho. (...) Vejo mulheres que se associam a causas dentro do serviço social e que conseguem fazer valer o território do serviço social mas estão associadas a causas. Estou a lembrar-me, por essa Europa fora, um conjunto de mulheres que se destacam dentro do serviço social e que são vozes reconhecidas mas que

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315

defendem causas como o feminismo, a interrupção voluntária da gravidez...e têm toda uma máquina que as apoia nesses discursos, são personalidades que encabeçam lutas mas que estão ligadas a movimentos sociais. Estou-me a lembrar do Congresso Internacional de Serviço Social, por exemplo, da Lena Dominelli que é toda pelo feminismo e tem todo este movimento por detrás ou da presidente italiana das escolas de serviço social...e realmente em Portugal não temos essa tradição. Temos uma ou outra pessoa, que acabou por ter uma voz publicamente mais reconhecida...mas tudo o resto acaba por ficar dentro do discurso organizacional. E voltamos ao contexto histórico de Portugal e realmente têm pouca gente que venha a público defender causas. Mas, como te disse, as lutas que eu presenciei, de forma mais recatada dentro das organizações e, mesmo assim, são discursos que não passam. E são pessoas lutadoras e com obra feita, com livros publicados e que falam da legitimidade do serviço social... não sei porque é que acontece, não sei...” (E TS14)

Diana, pelo contrário, destaca o protagonismo dos assistentes sociais dentro

da organização onde trabalha, quer ao nível dos circuitos processuais, quer

ao nível do poder de influenciar tomadas de decisão e de conquistar

autonomia técnica:

“Eu acho que dentro da organização os outros técnicos nos acham uns «chatos» e não nos podem ver porque nós estamos sempre a tentar desbloquear alguma coisa, a apressar a tomada de decisão, a pedir que se facilite um processo porque a situação social é difícil e «fazem de conta que não estão» quando tentamos contactar …mas, por outro lado, eu também acho que isso um sinal positivo, porque nós mexemos nos processos e nos circuitos institucionais e eles percebem que nós estamos a mexer para melhorar o resultado final para as pessoas; e pressionamos para que façam a sua parte na cadeia do, ou ainda mais, em tempo e para que o seu trabalho vá numa determinada direção que tenha a ver com a resposta final que se pretende dar aos munícipes. Eu acho que nós, pelo menos no sítio onde estou, conseguimos que a estrutura hierárquica e os outros técnicos nos reconheçam credibilidade e reconhecem o nosso trabalho, percebem que estamos aqui a fazer algo que implica o bem-estar das pessoas e mudanças. E em termos dos decisores políticos eu acho que também há esse reconhecimento, temos tido alguma sorte com os políticos com quem temos trabalhado. E já foram de vários partidos, o que também é bom. E houve sempre oportunidade de manter alguma autonomia técnica e um respeito pelas nossas propostas e pelos nossos pareceres técnicos. Eu acho que os decisores nos respeitam e consideram aquilo que nós dizemos (E AF15).

Jaime, numa abordagem mais macro da profissão situa a necessidade de os

profissionais se situarem no debate sobre os serviços sociais e de assumirem

um discurso com maior autonomia em relação ao poder:

“Eu penso que aí há um modelo de Estado e de Sociedade que se orienta muito para políticas neoliberais e, portanto, dentro dessa lógica e dessa perspetiva, é evidente que há logo o princípio do emagrecimento dos

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316

serviços sociais na esfera pública. Mas depois também temos as outras partes, com diretivas do Conselho de Ministros da União Europeia de 2001, que nos dizem que o enfoque maior a nível da Europa é uma aposta nos serviços sociais, como promotores de desenvolvimento social e humano e de coesão social. Então? Coexistem perspetivas e orientações diferentes e nós seriamos a classe profissional mais à-vontade, entre os grupos profissionais que trabalham no campo social, que estaríamos mais seguros, no sentido de discutir a reorganização dos serviços sociais estatais, dos serviços sociais públicos - numa articulação direta com os privados, com as comunidades locais, com os cidadãos, porque isso é importante para que haja aqui vetores de coresponsabilização social e de participação interativa. Agora, não podemos é fazer apenas o discurso do poder...parece que estamos a defender o Estado. Ou, por oposição, voltamos ao velho registo de que eu lhe falava há pouco, que é «os assistentes sociais como aqueles que podem provocar perturbação». Então, para não provocarem perturbação, nós colocamos os assistentes sociais numa lógica de controlo, para não haver grandes atritos, nem grandes problemas” (Jaime – E JF19).

Os assistentes sociais deste perfil fazem narrativas mais inteletualizadas, com

menor exposição pessoal e mais ‘racionalização’ e ‘generalização’ do que os

atores dos perfis anteriores; por outro lado, os seus argumentos dão maior

enfoque ao reforço e à autonomização da profissão pelo conhecimento próprio

(das teorias e das metodologias em cruzamento com o conhecimento que

advém do ‘terreno’).

Jaime, salienta a aprendizagem que a profissão lhe permitiu para se

estruturar como pessoa, como profissional e como cidadão.

Apesar de ter oito anos de atividade profissional como assistente social antes

de optar por dedicar-se à atividade académica a tempo integral, é clara na

sua narrativa a identificação profissional ao papel de docente - que ensina,

pesquisa e supersiona em grande ligação com os contextos de ‘terreno’.

Aliás, é com o desempenho profissional como docente que ilustra a sua

narrativa da trajetória profissional e é nessa qualidade que se encontra na

altura da entrevista

Na dimensão dos contextos organizacionais e áreas de intervenção, Jaime

aborda pouco a sua experiência de intervenção na área da proteção à

infância mas destaca que durante o primeiro ano pós formação vivenciou três

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317

experiências que marcam o seu quadro de referência e a sua trajetória

profissional:

Na Holanda, trabalhou com doentes mentais em contexto comunitário e

interveio na sua integração social e na ligação às famílias; aprendeu as

questões da assertividade e da diretividade “que não temos de «andar à

volta» do problema, dá-se o primeiro «choque» e a partir daí trabalhamos

a relação de confiança com a pessoa”. Diz do estágio profissional que foi

um «choque tremendo» mas “foi espantoso, aquilo que aprendi”;

Em Paris, teve uma experiência em contexto de acolhimento hospitalar de

pessoas com problemas de saúde mental e conviveu com uma perspetiva

diferente, de maior envolvimento terapêutico das famílias. Experienciou

sobretudo o «acompanhamento social» em serviço social, sistemático e

estruturado, com uma perspetiva de integração, que tem uma base

terapêutica forte e que trabalha sobre um diagnóstico para atingir

resultados de inclusão;

na Escócia, esteve ligado à universidade e aprofundou a perspetiva do

trabalho em rede, em parceria. Argumenta que foi muito interessante

perceber as ligações e o trabalho de acompanhamento, de investigação e

de supervisão que a Universidade já fazia a unidades terapêuticas de

intervenção (com o sujeito e as famílias) a empresas sociais e a um centro

social.

Refere que ter podido viver estas experiências enriqueceu a sua

aprendizagem e permitiu-lhe estabelecer contactos e articulações com vários

interlocutores no exterior do país, dando-lhe um contributo marcante de

identificação com um determinado papel de professor. No entanto, refere que

a motivação inicial foi:

“…para aprender o que podemos fazer, como podemos inovar, como é que podemos integrar novos contributos teóricos nas práticas para agir em prol dos direitos das pessoas e melhorar o seu bem-estar e qualidade de vida”.

Quando regressa a Portugal inicia o mestrado, mas refere que não pensava

em fazer carreira na docência e na investigação. A docência aparece como

uma colaboração mínima na atividade académica integrada com a atividade

profissional.

Page 318: As formigas e os carreiros

318

Na sua narrativa é transversal a particularidade que se atribui de fazer

ligações, em voluntariado, à atividade profissional no terreno:

“…participo em programas, participo em projetos, faço supervisão com equipas, acompanho e falo com equipas, faço algumas sessões de formação, tento analisar relatórios, tento analisar ‘o que’ e ‘como’ fazem”.

Jaime fala menos da sua trajetória profissional (não refere o que foi mais

importante e significativo) e mais do seu pensamento reflexivo sobre as

questões da profissão.

A partir da perspetiva como docente entende que a teoria se aplica na prática

e refere que lhe dá segurança a possibilidade de demonstrar as questões

teóricas com exemplos ‘do terreno’, considerando que aprende também na

construção circular deste processo dinâmico de aprendizagem entre os

documentos e fontes teóricas e as fontes que recolhe nas suas ligações aos

contextos de prática profissional. Lamenta, contudo, que não exista retorno

“do que se aplica na prática” para a universidade continuar a aprofundar o

«como fazer» e o quadro metodológico.

Na dimensão das Políticas e dos Públicos, Jaime tem uma posição crítica

com a «colagem» que alguns profissionais (sobretudo os que ocupam

posições de chefia ou cargos de decisão) fazem aos ditames do Estado por

não realizarem uma boa coordenação nem defenderem a universalidade do

Estado de Bem-Estar e por colocarem «água benta» em tudo. Argumenta

ainda que coexistem orientações e perspetivas diferentes na União Europeia,

destacando as que apontam para uma aposta nos serviços sociais, como

promotores do desenvolvimento social e humano e da coesão social. E que

os assistentes sociais, entre reproduzir o discurso do poder e colocarem-se

no ‘contrapoder’, não debatem, não aprofundam, nem influenciam a

reorganização dos serviços e a participação alargada dos cidadãos num

debate que lhes diz respeito.

Jaime defende que o Serviço Social é «uma profissão e uma área do saber»,

que precisa de fazer o seu autorreconhecimento enquanto tal - e aqui

identifica o equívoco sério com a designação de ‘técnico superior de serviço

social’ e a necessidade de uma campanha forte que provocasse a mudança

dessa terminologia e que assuma as «garantias» que tem para o futuro.

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319

Neste aspeto, Jaime argumenta que, pela primeira vez, o desafio de novas

legitimidades e novos debates «vem de fora»:

“…vem dos governos, vem dos desafios internacionais, dos processos de globalização social, vem do mundo, do dia-a-dia das pessoas” e que o corpo profissional “precisa de estar aberto a aceitar receber esse desafio: o que é que nós podemos fazer perante esta questão do mundo? … Como é que as sociedades podem ficar mais justas? Como é que as pessoas podem ter uma melhor qualidade de vida?”

E acrescenta que o serviço social da atualidade

“…produz competências, aprendizagens, altera modos de vida – esses é que são os novos enfoques da aprendizagem dos assistentes sociais e da sua preparação para o mundo. Temos de agarrar aí, para que isso valoriza a profissão e lhe dê um lugar no debate público e no debate político”.

Na dimensão do associativismo profissional, Jaime tece críticas à

Associação de Profissionais, nomeadamente: por não ter um papel mais

ativo no debate sobre a pesquisa em serviço social e sobre os seus

contributos para a prática profissional e por não promover o

empreendedorismo social junto dos recém licenciados - entende que o futuro

da profissão passa por um maior empreendedorismo e pela auto valorização

do profissional “por aquilo que sabe fazer, aquilo que é o seu conhecimento,

a sua aprendizagem e depois confrontá-lo com a realidade social e ver como

é que pode inovar e o que é que precisa aprender para o fazer bem”. Neste

âmbito, Jaime argumenta ainda que o individualismo dos profissionais e as

suas «queixas e intrigas» não têm permitido uma aliança, uma proteção e

uma união em torno das questões que lhes dizem respeito.

Sobre a conciliação entre vida profissional e privada, mais uma vez Jaime

não fala de si e, generalizando, afirma que prevalece a feminização da

profissão porque o «reconhecimento da identidade profissional continua nos

antípodas».

A questão da identidade é abordada na narrativa de Jaime como a

construção de um «sujeito coletivo» com várias ligações: i) à premissa de

que a formação de Serviço Social esteja integrada na universidade, com

muitas outras licenciaturas e com a possibilidade de uma coletivização muito

forte do saber e do conhecimento com profissionais de outras áreas; ii) ao

reforço da investigação feminista; iii) à dualidade que muitos profissionais

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manifestam na sua auto afirmação como assistentes sociais entre a

identificação aos princípios e fundamentos da formação (que identifica como

sendo “os direitos humanos, a dignidade humana, a igualdade de

oportunidades e a justiça social”) e a identidade pelas competências (de

ação, de intervenção, de investigação, de autonomia, de participação e de

integração da abordagem individual e coletiva); iv) à anterior identidade

assistencialista, de ajuda, de valorização da autoestima da pessoa e de

recuperação do sujeito como cidadão - que defende como tendo tido

“impactos fundamentais para que as pessoas aguentassem a pressão social

que tinham sobre si”.

Sobre a relação entre a academia e o «terreno», Jaime refere que «está em

fase de construção», mas argumenta que “a relação de confiança entre a

academia e o ‘terreno’, entre as instituições e os trabalhadores, os

assistentes sociais, tinha que ter um investimento forte para ser melhorada”,

embora entenda que o campo profissional continua a olhar menos para a

dimensão do conhecimento, do saber, e mais para a forma como pode

reforçar o seu âmbito de intervenção nas organizações onde trabalha. Refere

que, mesmo os profissionais com alguma produção escrita, coletivizam

pouco para outras publicações e outros instrumentos de difusão do saber,

lamentando a pouca iniciativa em termos de publicação “não é por acaso que

temos 16 ou 17 teses de doutoramento e apenas 3 ou 4 estão publicadas”.

Jaime lamenta também que os profissionais procuram conhecimentos de

outras áreas científicas para sustentar as suas práticas, sobretudo porque

entendem que o conhecimento em serviço social não lhes dá segurança nem

confiança, o que, na sua perspetiva aumenta os dilemas identitários.

Argumenta que um dos equívocos do campo profissional é a perspetiva de

que a produção científica é essencialmente um suporte da academia ou do

sistema de formação e, concebe este equívoco como um problema com duas

faces: do lado de quem produz, que não faz devolução à prática, “parece que

existe um medo inconsciente de não ser validado pelo profissional que está

no terreno” e do lado de quem está no ‘terreno’ que não procura, nem

reconhece, não discute essa produção escrita no âmbito da classe

profissional.

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321

Outro dos equívocos que identifica é a velha história sobre “se o serviço

social é ciência ou não é ciência, se é uma disciplina, se tem princípios e

conceitos científicos”; na sua perspetiva essa discussão terminou com o

processo de Bolonha. O sentimento de ameaça expresso pelos profissionais

em relação a outros campos científicos, na sua perspetiva, vem da memória

de outros tempos em que éramos subsidiários dos cientistas sociais

“…ou seja, nós fazemos mas depois não retiramos o produto, damos o

produto ao outro e isso parece que nos compensa, na «boa-vontade do bem-fazer», mas nós já não estamos mais nessa «boa vontade» e no «bem-fazer»” e para inverter esse sentimento de ameaça é preciso “uma maior coletivização do que sabemos, do que estudamos, do que aprendemos, uns com os outros, em sistema de troca e em solidariedade profissional, que é coisa que eu acho que não temos”.

Jaime termina a sua narrativa, fazendo um paralelo com o «marco

sociológico» e identificando a necessidade de que na formação inicial os

alunos e futuros profissionais aprendam o que é o «marco de serviço social».

Cristina, tem feito a sua trajetória profissional ao longo de duas décadas na

mesma instituição onde estagiou (uma Câmara Municipal) e, embora

passando por vários serviços (sobretudo Projetos comunitários e Habitação)

faz uma avaliação que pondera os «ganhos» desta estabilidade em

simultâneo com o «cansaço, a saturação, o desgaste» e a vontade não

concretizada de uma «rutura»:

“Estar muito tempo na mesma organização é estar sempre à espera de que «amanhã vou fazer a rutura».

Contudo, do lado dos «ganhos» pontua a estabilidade e a procura de um

«equilíbrio»: “pago o preço de um certo equilíbrio financeiro, dum certo

equilíbrio de família…”. Reconhece que essa estabilidade também lhe

permite acumular a atividade profissional com a docência e isso compensa-

a pelas ruturas que não faz, constituindo um ponto de equilíbrio.

Cristina, descreve uma dualidade em relação a esta permanência na

mesma autarquia, reconhecendo que possui um conhecimento

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aprofundado do território, das organizações e dos seus agentes locais, mas

que esse conhecimento também lhe dificulta novas perspetivas:

“…a nossa perspetiva fica muito resistente em determinadas

abordagens porque talvez tenhamos construído uma determinada leitura da realidade ao longo do tempo…e escapam-nos dados que podem ser novos e estamos a medir pela mesma «bitola»…”.

Atualmente, encontra-se a trabalhar num serviço camarário de «Saúde» e a

dar aulas na licenciatura de Serviço Social numa faculdade privada. Mudou

recentemente de serviço na autarquia onde trabalha, dizendo da motivação

para essa mudança que “era altura de mudar para outra abordagem, de ser

crítica e romper a minha própria saturação” e com esta mudança obteve a

confirmação de que estava à tempo de mais a fazer a mesma coisa.

Cristina não aprofunda os contextos e os exercícios da sua trajetória

profissional ficando a sua narrativa mais marcada pelos significados

atribuídos ao seu desempenho profissional como professora. Sobre a forma

como coloca a docência na sua trajetória profissional tem argumentos

duais: diz que os dois desempenhos têm complementaridades e que não

estão em contradição mas por outro lado, diz que também têm

constrangimentos e que causam atritos. No primeiro caso refere:

“…é [a docência] o meu contraponto de reflexão sobre a prática que faço e sem o qual eu me sentiria perfeitamente castrada porque essa prática não tem muitos momentos de reflexão, não proporciona paragens para reflexão (por condições várias, porque temos uma solicitação constante de intervenção) e as nossas possibilidades de refletirmos em conjunto são muito pontuais e também elas pressionadas relativamente a tempos e metas, o que acaba por não me satisfazer. Esta área da docência obriga-me a uma busca mais profunda do conhecimento em Serviço Social. (…) Gosto de perceber para onde vou e o que é que estou a construir, e isso consegue-se na área da docência”.

No segundo caso, argumenta:

“…não se pode sair de um livro teórico …e no outro dia, estar a fazer isso na prática…cruzam-se muitos pensamentos, muitos campos, há a dimensão política…a nossa profissão é privilegiada na visão que tem desses múltiplos domínios que se cruzam na vida profissional: são campos de comunicação, de poder, são jogos e estratégias, são compromissos assumidos e que, de repente, não os podemos transformar noutra coisa, são tempos diferentes… até nós quando chegamos à prática somos outras pessoas…mais técnicos, mais burocratas…”.

Esta dicotomia aparece na narrativa de Cristina em paralelo, quase «como

se» fossem duas pessoas (a que é assistente social ‘prática’ e a que ensina

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‘teoria’). Contudo, quando fala das fontes de aprendizagem ao longo da sua

trajetória, Cristina mistura os dois campos profissionais referindo-se

nomeadamente ao «conhecimento escrito», ao «estado da arte» e às

«pessoas» com quem trabalha; mas é «aos alunos» que dedica mais

entusiasmo na sua argumentação, dizendo que:

“…os alunos entram e fazem as perguntas mais disparatadas…e isso obriga-me a explicar e a mobilizar a experiência de vida deles e tudo isso é enriquecedor. (…) Ao ser questionada e ao explicar, eu torno isso numa aprendizagem. Aqui que ninguém nos ouve, aprendo muito mais com eles do que aquilo que lhes ensino.”

Este desafio e este gosto por ensinar, aprendendo, é um argumento

presente na sua narrativa mas que apesar disso, coincide com uma visão

mais crua da faculdade como organização que “…tem muitos movimentos

internos difíceis, um corpo docente estraçalhado, …e isso tem um efeito de

«pescadinha de rabo na boca» e os poucos professores que lá ficaram têm

é que dar aulas”.

No domínio das Políticas e dos Públicos, Cristina assume na sua narrativa

alguma conformidade à norma, «enfiando o barrete» em relação à

focalização da intervenção social nas «disfunções» dos indivíduos em

detrimento da mobilização de mudanças organizacionais e societárias.

Sobre as questões do papel do Serviço Social na mudança organizacional

diz que:

“…até no seio da universidade somos tomados como pouco promotores de mudança, aceitamos muito mais as regras que são colocadas e temos pouca capacidade de as confrontar…”.

Acrescentando que as situações de confronto à norma que presenciou,

protagonizadas por outros colegas, resultaram muito mal: ou “são

completamente decapitadas, profissionalmente e dentro da academia” ou

não conseguem adesão. E chegado a este ponto do seu argumento,

introduz a questão de género “porque essencialmente somos mulheres”,

referindo que os “homens negligenciam essa luta, achando que é inglória” e

que em situações de contestação idêntica, o desfecho é mais favorável aos

homens. Lembra ainda que, na Europa, as mulheres que conseguem fazer

reconhecer o território do serviço social estão associadas a causas ou a

movimentos sociais e têm o apoio das respetivas estruturas mas que, em

Portugal, não temos essa tradição e que as vozes dos assistentes sociais

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acabam por ficar dentro do discurso organizacional.

Na questão da construção identitária, Cristina oscila entre posições muito

afirmativas e outras posições mais interrogadas que na sua narrativa fazem

recurso a expressões como «se calhar» ou «talvez». Afirmativa quando se

refere a uma identidade «muito fácil de ver» do ponto de vista micro:

“…sei como trabalhamos individualmente, como trabalhamos em grupo

e como é que trabalhamos na comunidade; sei como é que trabalhamos em equipa e o papel que tenho que desempenhar, porque tenho uma metodologia de suporte que produz resultados; e os resultados estão à vista e têm expressão no mercado de trabalho. As equipas quando reclamam um assistente social sabem o que procuram”.

Mas interrogada quando esta identidade passa para outro nível:

“…se calhar, essa identidade perde-se quando passa para um nível

mais amplo…como é que este profissional se afirma perante outros profissionais diferentes. Nesta transposição do conhecimento específico para o coletivo das ciências, saímos deveras prejudicados porque não sabemos defender tão bem a nossa legitimidade, porque sofremos a falta de pessoas de referência no nosso percurso, no contexto histórico que tivemos, não tivemos ao longo da nossa formação os inputs necessários para explicitar e expor a nossa identidade. Talvez a nossa formação não nos tenha preparado para fazer isso…o que é estranho, porque imensos profissionais estão a trabalhar em causas sociais e em muitas questões sociais «quentes» e depois não têm voz...”

Mas a questão «de ter ou não ter voz» e de afirmação face a outros

profissionais e à sociedade em geral, aparece na narrativa de Cristina

ligada à constatação “de uma diferença substancial” entre o que homens e

mulheres procuram na formação inicial e na profissão:

“Vejo as mulheres muito mais preocupadas em gerir problemas de metodologia e de intervenção técnica…como se estivessem mais compelidas à execução… e os homens procuram uma abstração na formação que os ajude a identificar face às outras profissões e a treinarem um discurso de afirmação (…) os homens vão diretamente para lugares mais cimeiros e de decisão”.

Tomando o exemplo dos seus alunos, Cristina refere que «eles» e «elas»

têm com frequência confrontos de perspetivas nas aulas, em que «elas»

reclamam muito mais informação sobre ‘o direto’, sobre a prática

profissional, querem perceber ‘como se faz’ e não entendem porque é que

«eles» se estão a querer situar em questões de identidade, quando há

outras questões de aprendizagens mais básicas, tendendo a achar que

«eles» evitam confrontar-se com o exercício profissional. Na sua perspetiva

refere as dificuldades que enfrenta em facilitar este debate e em fazer com

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325

que «eles» se ocupem mais com matérias de exercício profissional e

«elas» realizam mais a abstração, colocando a profissão a explicitar-se.

Nesta narrativa marcada pelas questões de género, Cristina parece

identificar-se mais com «elas», embora conclua afirmando que, “o que é

certo é que o Serviço Social, nem por uma via nem por outra, tem acabado

por se afirmar como seria nosso desejo”.

Na entrevista, esta assistente social não aborda as questões do

associativismo profissional, embora expresse preocupação pela construção

coletiva da profissão que na sua narrativa aparece muito ligada à

construção de conhecimento próprio como fonte legitimadora. Recorda uma

frase de um professor no contexto do seu mestrado (1991/92) que lhes

dizia: “se vocês fizerem uma tese duplicam a produção nacional, tão

escassa ela é”. Cristina justifica algum «retardamento» da produção de

conhecimento próprio do Serviço Social com o ‘contexto histórico’ da

profissionalização em Portugal, mas também menciona «as muitas

conquistas» alcançadas, dizendo que “não nos podemos esconder atrás de

uma adolescência tardia…temos de chegar à maturidade”. Nesta

sequência, a maturidade profissional e científica pretendida pela

entrevistada (a classe profissional «está no caminho» segundo ela) tem

dois argumentos: i) a necessidade de deixar de lado a rebeldia “de quem

está só a absorver e ainda tem pouco para dar» e ii) a necessidade de

modificar a linguagem própria do Serviço Social, que precisa de ser mais

humanista e ligada aos atuais paradigmas científicos, deixando de ser tão

«técnica e fechada».

Sobre a profissão e a construção de conhecimento, Cristina refere que

pertence a uma geração que tentou “fechar a intervenção do Serviço Social

em matrizes fundamentais, dar-lhe um corpo de coerência e uma referência

matricial na forma de a estruturar” mas que hoje, entende que o Serviço

Social “é um conhecimento livre”, o que lhe dá argumentos para dizer que

“é preciso deixar uma profissão ser o que ela pretende ser”:

“Se tenho argumentos a favor de colocar um espartilho e definir meia dúzia de bases estruturais, também consigo ver a liberdade de uma disciplina dentro da área das ciências sociais, que se quer ligada à intervenção social, que tem que ser flexível às diferentes gerações, às mudanças de significados, aos desafios da pós-modernidade, que tem de estar suficientemente ampla para acompanhar as pessoas para onde

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elas tiverem que ir. Tenho a certeza de que assim o Serviço Social vai garantir o acompanhamento da humanidade para onde ela for, sejam quais forem as questões com que essa humanidade tiver que se confrontar… a primeira coisa que tem de encontrar é a sua própria legitimidade”.

Este «acompanhamento das pessoas para onde elas tiverem que ir» pode

ser entendido como uma espécie de ‘naturalização’ da atividade

profissional que se legitima socialmente por «estar lá». Cristina reforça este

entendimento referindo que não há nada na pós-modernidade que

“…iniba o serviço social de intervir, de estar lá. (…) É uma profissão que sempre se preocupou com o encontro do homem com ele mesmo”.

Esta conceção de legitimidade profissional parece baseada na ‘procura’,

fazendo uso da argumentação de que “enquanto houver questão social e

necessidade de intervir socialmente, o serviço social estará vivo”. Aliás,

Cristina, vai mais longe na sua argumentação quando, a propósito do

movimento de aproximação de outras formações/profissões ao campo

tradicionalmente ocupado pelo serviço social, refere “…que se o fizerem,

vão converter isso em Serviço Social.”

A ambivalência da sua narrativa, plena de «prós e contras», também se

aplica à legitimidade do Serviço Social:

“Se houver falta de legitimidade é porque a legitimidade foi assumida pelas outras ciências. Eu acho que o Serviço Social nunca se extinguirá mas poderá ter outra configuração no domínio das ciências sociais. E terá tanto a sua afirmação e legitimidade quanto a necessária (…) mas penso que está ao nosso alcance e que nos assiste essa responsabilidade de irmos ao encontro de alimentar essa legitimidade”.

Cristina argumenta que “nunca os assistentes sociais, na sua generalidade,

tiveram tanto acesso à informação como hoje têm” mas que, face à

informação disponível, ainda não fizeram tanto quanto seria desejável:

“…as pessoas podiam fazer o esforço de ir à procura de mais e a academia também podia fazer o esforço de publicar mais”.

Sobre a produção e difusão do conhecimento de Serviço Social, Cristina

tece dois argumentos complementares e as respetivas justificações:

i) i) a responsabilidade acrescida da academia na produção e difusão do

conhecimento e a justificação da sua escassez com dificuldades internas e

externas às faculdades:

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“… eu também atribuo responsabilidade a este momento histórico que

estamos a viver…faço parte de um centro de investigação que não tem verbas para se iniciar mas também, como não produz, não recebe verbas. É muito difícil começar a produzir…quem vê isto por dentro…”.

ii) ii) a responsabilidade que assiste sobre “os alunos formados em 90” para

responder ao desafio da cientificidade do Serviço Social e devolver à

disciplina este conhecimento.

“Dar esse contributo era dizer: - o Serviço Social enquanto área

disciplinar rege-se por uma matriz específica que é esta e não pode ser tão fechada que depois morra com a evolução da humanidade (…) e também não pode ser tão aberta, que acabe por se diluir com todas as outras áreas das ciências sociais. Encontrar este ponto de equilíbrio seria um movimento interior [à profissão].”

Cristina coloca a necessidade de “instituir” um movimento intrínseco à

própria disciplina, no sentido de incorporar as várias abordagens (da mais

sistémica, à mais funcionalista ou à mais crítica), dar nota dos esforços das

investigações de doutoramentos e constituir “um fluxo de massa critica” que

atualize as «bases» e os «fundamentos» da profissão.

Irene, é uma assistente social que assume na sua narrativa que é uma

profissional de ‘terreno’. Trabalha atualmente numa Junta de Freguesia e

tem uma «carreira» profissional de dezoito anos na mesma organização.

Fala frequentemente em «nós» referindo-se ao coletivo de profissionais, à

instituição onde trabalha e aos outros agentes e atores do território e

argumenta com frequência que “é no terreno que aprendemos”.

Estagiou noutros contextos organizacionais e saiu do curso com a ideia de

que gostava de trabalhar com menores; teve uma primeira experiência de

trabalho como Técnica de Reinserção Social numa Instituição Particular, mas

a experiência durou apenas três meses porque não lhe garantiam o

vencimento.

Quando pondera o significado da sua trajetória profissional refere que teve

«altos e baixos» mas que teve também algum «sossego» e que para

permanecer onde está, ponderou sobretudo a conciliação com a sua vida

familiar. Embora a meio da sua trajetória tivesse concorrido para o Instituto

de Reinserção Social, na altura de mudar as questões familiares

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sobrepuseram-se: “Se, eu vou para Lisboa, a que horas é que chego a

casa? Quando é que eu vou buscar os meus filhos?”.

Reconhece que “é bom a pessoa mudar”, mas justifica ter permanecido no

mesmo local com argumentos do género: “problemas há em todo o lado” ou

“o facto de estar sozinha é melhor do que estar no meio de muita gente a

competir pelo mesmo” – estes argumentos têm em conta que o meio

profissional é muito competitivo. A este propósito, Irene introduz a questão

de feminização da profissão afirmando:

“…é um problema continuar a ser uma profissão maioritariamente de mulheres…os homens fazem de outra maneira, nós não.”

Sobre o contexto organizacional onde intervém refere que tem vindo a sentir

uma dificuldade crescente com os decisores políticos no sentido de que eles

entendam as propostas técnicas que faz e, sobretudo que entendam, que o

que está em causa é o bem-estar das pessoas e não a visibilidade pública

do que se faz.

Esta tensão com os decisores políticos (que são simultaneamente suas

chefias hierárquicas) é narrada como um problema e uma das dificuldades

recorrentes: Irene diz que não pode estar confinada ao que esperam de si

mas que, é com eles que tem de trabalhar e que, por isso, apesar de ser

complicado de gerir, tem de ter um «jogo de cintura» que lhe permita

perceber quando é que vai falar com o autarca “porque ele está bem-

disposto” e talvez tenha mais oportunidade de decidir favoravelmente em

relação às propostas técnicas ou à concretização de projetos. Uma das

frustrações profissionais que expressa é a fragilidade da sua autonomia e o

«pouco» que a autarquia faz no campo social, face ao que poderia fazer.

“E contra isso, eu não posso fazer mais nada. O que posso fazer é

insistir com propostas (às quais muitas vezes nem tenho resposta) …outras, enfim, porque falei num momento bom e porque dão alguma visibilidade mediática, se calhar até passam. Eu penso que isto também acontece em outras instituições, mas em instituições mais pequenas é mais visível. E podia-se fazer aqui tanta coisa, tanta coisa.”

Apesar das “lutas internas” e de se sentir muitas vezes em “contracorrente»,

sente que tem reconhecimento na organização e argumenta que a

intervenção com outros técnicos e instituições do concelho dão uma

visibilidade positiva ao seu trabalho; destaca também a proximidade da

população como um fator positivo e o fato de os assistentes sociais terem

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329

“capacidade de resistência”.

Neste domínio das Políticas e dos Públicos, identifica como problema a

pouca articulação entre os diferentes técnicos e serviços que intervém no

mesmo território e com as mesmas pessoas, exemplificando com a

impotência que sente nomeadamente face aos colegas da câmara e da

segurança social, que tendem a situar-se “na cúpula” e a achar que quem

está mais próximo da população está “na base”.

“A «Rede Social», infelizmente como está, é muito burocratizada e

pouco eficaz. Obtinham-se melhores resultados quando tínhamos uma rede informal e fazíamos um telefonema ou uma reunião rápida e resolvíamos os assuntos; anteriormente funcionava muito melhor, apesar de nós ainda irmos conseguindo essa articulação, com uma colega ou com outra.”

Irene diz que tem uma profissão “muito bonita”, não só por gostar dela mas

por ter uma atividade que lhe permite “ir ao encontro do ser humano” e ser

“agente de mudança”. Sobre este último aspeto, refere “a luta diária e

constante” que tem para ser agente de mudança (de mentalidades e de

atitudes), acrescentando que se os profissionais não tiverem um grupo por

trás de si para os suportar, acabam por ficar só na relação interpessoal, no

nível micro. E Irene identifica que essa é só uma vertente do trabalho de «ser

assistente social».

Questionando a apropriação organizacional da imagem do assistente social,

argumenta que os assistentes sociais são tão capazes como outros

profissionais mas que têm dificuldade em se impor, em se “colocar no seu

papel” e que isso acontece porque trabalham por conta de outrem e estão

sob controlo de outros:

“…e toda a gente tem receio do que possamos dizer, receio se o serviço é colocado em causa ou se dizemos uma coisa que não cai tão bem…”.

Entende que os assistentes sociais fazem valer os seus conhecimentos e as

suas posições sobretudo a nível da organização/serviço que lhes paga o

vencimento. Mas esta perspetiva de profissional ‘por conta de outrem’ não

impede que defenda uma identidade própria dos assistentes sociais:

“…nós temos uma identidade própria porque o assistente social vai ao terreno e vai ao âmago das situações, o nosso trabalho tem multifacetas, não é sempre o de «apagar fogos» ”.

Neste ponto destaca a evolução positiva na imagem da profissão,

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entendendo que já foi ultrapassada “aquela fase em que o assistente social

era olhado assim de lado, como quando eu comecei a trabalhar”.

“Temos feito um percurso com muito ‘low profile’, mas temos feito um caminho, cada um de nós tentando ser bem técnico, abarcando uma série de áreas de trabalho e é essa riqueza que eu acho que este curso dá, porque nos prepara para intervir na ação social, na intervenção com o ser humano, com o outro, mas também nos torna aptos a trabalhar com as dinâmicas sociais. (…) é uma das profissões que dá uma grande ‘bagagem’ de experiências e de aprendizagem (…) e, se está num patamar diferente, é devido a nós, os profissionais; porque os profissionais gostam do que fazem, identificam-se com o ‘espírito’ do Serviço Social (não é assistencialismo, não é nada disso), nós vamos à luta…seja onde for”.

Desafiada por trabalhar diretamente com as pessoas e clarificando que as

suas chefias são pessoas “que não fazem a menor ideia do que é o trabalho

social”, sentiu-se compelida a acatar algumas diretrizes institucionais mas

pediu autorização e “foi à procura, foi bater portas”, foi apresentar-se às

instituições que estão no território e começou a fazer um percurso pelo

território mais largo.

Os seus argumentos sobre a falta de reconhecimento público da profissão e

a escassez de produção escrita dos assistentes sobre o trabalho que

realizam, são nomeadamente:

- “como vamos a tudo e a todo o lado…falta-nos tempo”: - “faz-nos falta sentirmos que existem assistentes sociais a quem nos possamos referir”; - “existem pessoas e instituições que têm muito mais peso junto do poder (não é tradição, é peso, é ‘lobby’) e isso é outra coisa onde nós não encaixamos”; - “ainda não temos uma Ordem.. e é importante para fortalecer a classe [profissional]”; - “há uma grande rivalidade entre os assistentes sociais” - “não temos esse poder…não somos convidados”.

Estes argumentos, entre outros, não invalidam que Irene refira que seria

importante explicar “como é que é a nossa função, o que é que nós fazemos,

como é que nós produzimos e depois como é que se transporta esse

conhecimento para o exterior”.

Irene não aborda a dimensão do Associativismo Profissional. Apesar do

entendimento coletivo da profissão que trespassa a sua narrativa e do seu

trabalho em conjunto com pessoas com outras formações, refere não sentir

no seu quotidiano a competição entre trabalhadores sociais e argumenta

com alguns aspetos de formação pessoal que, na sua perspetiva, facilitam

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esta interação:

- uma certa “postura e formação de base” prévia às formações iniciais;

- “o perfil e os interesses das pessoas”, como fatores decisivos;

- “a forma como funcionam ao nível das relações humanas”.

Irene atribui muita importância ao que resume como “componente pessoal”

de quem intervém no social e refere a conciliação de uma determinada

“perspetiva de estar na vida” com o exercício profissional:

“Às vezes, as pessoas são tão infelizes na sua profissão que não têm

nada a ver com aquilo que fazem…Tu gostas, ou não gostas, ou também aprendes a gostar…e depois é tentar ser o mais honesta possível e tentar fazer o trabalho o melhor possível para a comunidade e também dar alguma visibilidade ao trabalho técnico, porque o assistente social abrange todas as situações, vai a todo o lado…um centro de convívio não é sé para velhos e «coitadinhos» e realmente eu aqui não lido só com idosos. Nós temos intervenção desde a Intervenção Precoce, com a Comissão de Proteção de Menores, com o Apoio à Infância e a Componente de Apoio à Família nas Escolas, temos a Rede Social…estamos presentes em tudo o que seja projeto e somos sempre chamadas porque é importante a nossa participação.”

Entende que é muito importante estar consciente dos valores e dos

conhecimentos mas que o fundamental, o que faz a diferença, é a

«postura» perante as pessoas e as situações.

Sobre a relação entre os profissionais de ‘terreno’ e da academia, Irene

refere que “já houve mais essa noção de ‘cada um no seu lugar’ do que

existe agora” e que se foi perdendo a ideia de que o académico está

distante da realidade; acha que já não existe “aquela superioridade do

sociólogo” mas que esta aproximação resulta sobretudo de um percurso

feito pelos profissionais.

Em relação à área de conhecimento específico de Serviço Social, Irene

refere que cada um interpreta o que aprendeu na faculdade de forma

diferente e difere também na forma como coloca esse conhecimento no

trabalho, dizendo de si que também vai buscar “outras coisas” [referindo-se

aos conhecimentos de outros campos disciplinares] e o facto de estar no

‘terreno’ dá-lhe a dimensão de estar sempre atenta ao que está a ser

produzido, assumindo que qualquer profissão pressupõe uma

aprendizagem contínua.

Menciona o “orgulho” na profissão e a “obrigação” de levar, muitas vezes,

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uma posição até às últimas consequências:

“- Não, eu sou assistente social, eu tenho que defender este assunto e ir até às últimas consequências, onde eu ponho a minha intervenção, onde eu ‘dou a cara’, tenho de ir até ao final.”

Termina a sua entrevista salientando a “aprendizagem a nível pessoal” que

cada pessoa fazer ao longo da vida e da ‘carreira’.

Filipa, durante a entrevista diz de si que é uma pessoa feliz

profissionalmente porque exerce a profissão que escolheu, com momentos

menos felizes como é óbvio porque não existem situações perfeitas mas

“com a sorte de ter estado nos locais e nos projetos que queria”.

Na altura da entrevista encontra-se numa câmara municipal a coordenar um

serviço de prevenção das toxicodependências. Nunca antes tinha trabalhado

em autarquias (esta transição é recente) nem coordenado ninguém, mas

entendeu que era um “desafio” e uma “oportunidade para estar do outro lado”

e sente-se a aprender. A propósito, refere a conversa que teve com as

colegas da equipa:

“ – Eu nunca coordenei ninguém, portanto não sei e vou aprender, vou aprender com vocês também. Se alguma vez acharem que eu não estou a ter um procedimento correto, digam-me.”

A entrevistada refere que as suas competências de comunicação lhe têm

facilitado a vida e que, como não cria grandes barreiras, os outros em

princípio também lhe respondem da mesma forma – o que sido facilitador na

relação ‘intra’ instituição e ‘entre’ instituições.

Filipa tem uma trajetória profissional com alguma diversidade de contextos

organizacionais, embora maioritariamente feita na «Justiça». Na sua

narrativa impera o tom positivo com que pontua as várias experiências

profissionais, as aprendizagens que realizou e as pessoas “fantásticas” com

quem se cruzou e que foi integrando na sua rede relacional.

Apesar de também mencionar experiências de trabalho emocionalmente

muito ‘pesadas’, contrabalança com “a sorte” de ter trabalhado com pessoas

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muito capazes, que lhe ensinaram imenso e de quem se tornou amiga, o que

para si foi muito importante. Argumenta que o desgaste emocional da

profissão é muito grande (principalmente na área da Justiça onde esteve

catorze anos) e que tem um ‘peso’ enorme trabalhar com pessoas com

muitos problemas e sofrimentos, onde todas as histórias de vida que ouviu

eram “de fazer chorar as pedras da calçada” e para as quais não tinha

soluções.

Filipa entende que “são as pessoas que nos rodeiam que fazem a diferença”,

dado que é com elas que partilha emoções e conversa sobre o que sente e

vive. Sobre o papel como técnica refere que “mesmo que tentemos manter

alguma distância, envolvemo-nos, porque somos pessoas e

emocionalmente, estamos sempre envolvidas nas histórias”.

Filipa diz que teve facilidade em arranjar trabalho e que, apesar de ter sido

mãe no último ano do curso, arranjou trabalho logo que terminou a formação,

através de contactos de família. Do seu primeiro trabalho (quatro anos num

projeto de intervenção comunitária a intervir num bairro degradado, no

âmbito do Programa de Luta contra a Pobreza) diz que foi uma experiência

muito enriquecedora, que lhe permitiu construir um projeto do princípio ao

fim, com toda a complexidade da intervenção comunitária.

Foi a primeira a chegar, de vários recém-licenciados que constituíram a

equipa, com formações diferentes, muito jovens e a aprender em conjunto,

onde tudo era muito partilhado; refere que também aprendeu muito com as

assistentes sociais mais experientes do Centro Regional de Segurança

Social e com a população do bairro, em especial com os seus líderes,

referindo que “ainda hoje reconheço com alegria gente do bairro que

encontro por acaso”. Acabado o projeto esteve nove meses desempregada

mas a receber subsídio de desemprego, o que lhe permitiu cuidar com maior

disponibilidade dos dois filhos pequenos e fazer voluntariado na Associação

para o Planeamento da Família (APF) e numa linha de atendimento

telefónico de apoio a vítimas de maus tratos domésticos. Estas experiências

de trabalho voluntário (em instituições que escolheu e no horário que podia e

queria) foram também recordadas como muito gratificantes.

Entretanto, tinha concorrido para a Justiça, «área» na qual tinha estagiado, e

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foi selecionada para o Instituto de Reinserção Social, no Estabelecimento

Prisional de Caxias. Desta experiência de sete anos diz “que se levantava

todos os dias com um sorriso de orelha a orelha” e que, apesar das

péssimas instalações (trabalhavam numa cela) e do «peso» de uma

instituição deste tipo, destaca com saudade a equipa constituída por homens

e mulheres (o que era pouco frequente) com várias formações, jovens, todos

«técnicos de reinserção social» e que faziam o mesmo trabalho, embora com

«sensibilidades» diferentes.

“…tive situações muito complicadas, que me garantiram alguns constrangimentos e desilusões; porque não é fácil trabalhar num estabelecimento prisional, ainda para mais sendo uma pessoa muito nova…”

Quando se sentiu muito desgastada com o peso da instituição e com a rotina

do trabalho, solicitou a saída por vontade própria e refere que, teve sorte

porque o seu desejo foi concretizado com a mudança para uma «equipa de

círculo», onde permaneceu mais sete anos. Nesta equipa tinha um trabalho

mais diversificado do que na prisão e fazia o acompanhamento de medidas

“não privativas de liberdade: regimes de prova, trabalho a favor da

comunidade, liberdades condicionais”. Pontua repetidamente a excelência da

equipa de trabalho e a presença de estagiários como fatores de

desenvolvimento profissional.

Saiu da Justiça por causa do sistema de avaliação de desempenho, quando

discordou com a definição de objetivos apenas quantificáveis.

No domínio das Políticas e dos Públicos, Filipa privilegia o compromisso com

os públicos, apesar de ser bastante adaptativa em relação aos serviços onde

tem exercido; e quando entende que precisa de mudar de contexto de

trabalho, muda. Sobre a relação com as instituições, Filipa argumenta com a

experiência do «poder» da «Justiça» e diz:

“…o peso da Justiça face a outras instituições é muito forte e aí a comunicação faz-se com facilidade, porque a instituição que se está a representar é muito forte, tem muito poder e o caráter de urgência com que eu contatava outras instituições…era como se as pessoas e as instituições se vissem obrigadas a satisfazer os nossos pedidos”.

No trabalho que desenvolveu na equipa de círculo refere que trabalhou com

pessoas de todas as idades, mais ou menos diferenciadas e, em alguns casos

foram experiências de trabalho muito gratificantes porque as pessoas

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conseguiram inserir-se na sociedade e, embora não tenham sido a maioria,

considera que “basta haver um caso de sucesso para valer a pena”.

Argumenta que a sua riqueza profissional vem toda do contacto que teve ao

longo dos anos com as histórias de vida de pessoas que conheceu e dos

envolvimentos e das relações que criou com essas pessoas; Filipa considera

que mesmo sendo relações profissionais, são sempre relações que lhe

permitiram aprender imenso:

“Até porque eu acho que todas as pessoas com quem me cruzei tinham

alguma coisa para me dizer e para me ensinar, apesar de eu também ter tentado ensinar-lhes alguma coisa do que sabia e da minha experiência de vida”.

Considera que tem aprendido com todas as pessoas, das mais diferentes de

si, às mais parecidas; também com as pessoas de outras formações considera

que não tem rivalidade e que sente como uma «mais-valia» o facto de terem

outras experiências e outras maneiras de intervir que ela desconheça – “o

trabalho de cada um tem uma natureza própria e complementam-se sem

necessidade de se chocarem”. Filipa admite a possibilidade de ter sido uma

“sortuda” por não se ter cruzado com as competições entre os trabalhadores

sociais pelo mesmo campo profissional, referindo que,

“… o que vejo é trabalharmos em parceria com os «ólogos» todos, e acho que não se confundem saberes; acho que o conjunto desses saberes pode fazer a diferença”.

Quanto aos saberes específicos do Serviço Social, Filipa diz que a sua

formação foi muito adequada àquilo que foi fazendo, ou seja, “aquilo que me

ensinaram tem tudo a ver com a realidade com que eu me deparei na prática

profissional”, embora reconheça que foi aprofundando conhecimentos e que a

experiência também lhe foi ensinando formas mais eficazes de intervir e de

atingir o sucesso na intervenção. Reformula para tentar explicitar melhor:

“…são coisas…por vezes, parecem muito do senso comum (mas que não

são senso comum)… e depois quase que nos parece que estamos a intervir sem grande ciência, que é lógico, que é natural, que só poderia ser assim…felizmente que a nossa formação tinha uma parte muito prática, que faz todo o sentido. Porque nestas questões sociais estamos a intervir com pessoas. Não são objetos, são pessoas que estão em constante interação e em constante mudança, com uma comunicação que se faz dos dois lados…com todos os filtros que nós temos e com todas as ferramentas que temos dos saberes que fomos aprendendo. Há sempre uma relação e nas relações que estabelecemos quer com técnicos, com outros profissionais, da mesma formação ou de formações

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diferentes, quer com os utentes com quem nós trabalhamos é tudo muito dinâmico…”

Refere que tem imensas saudades do seu tempo de curso porque foi uma

fase da vida que adorou e que, se voltasse atrás, faria tudo igual. Argumenta

que percebeu logo que nunca iria ficar rica com esta profissão mas que se

calhar ia ficar mais “rica como pessoa” e isso, para ela, pesou mais do que o

dinheiro.

Filipa diz gostar muito da profissão, adjetivando-a de «muito digna»; diz que é

assistente social com muito orgulho e nunca se sentiu diminuída ou

inferiorizada. Apesar de ter encontrado, ao longo do seu percurso profissional,

pessoas que não aceitavam bem os assistentes sociais, nunca sentiu

problemas com zonas de fronteiras na intervenção e nunca sentiu

necessidade de explicar o que faz uma assistente social. Argumenta que para

além de se «sentir como peixe na água» em todas as funções que

desempenhou, conseguiu articular bem o seu trabalho com o dos outros

técnicos e teve sempre muito claro quais eram os seus limites; e menciona

que tem alguma humildade para dizer: «eu não sei fazer, ensinem-me que eu

não sei», da mesma forma que refere que aceita bem a crítica construtiva e

convive sem problemas com uma «conflitualidade saudável». Sobre uma

hipotética especificidade do assistente social refere uma «sensibilidade

própria», ou seja, “…uma forma como as causas sociais me afetam e me

tocam”, referindo-se ao seu «olhar» mais vocacionado para a parte social da

vida e para a «questão social».

Esta «sensibilidade» e «grande envolvimento» têm segundo Filipa, aspetos

positivos e negativos, porque aprendeu muito com o exercício profissional mas

também sofreu com a exposição aos problemas dos outros - “transporto a

minha profissão comigo”. Não reconhece necessariamente em todas as outras

colegas as características que identifica em si e que entende serem a base do

seu «ser profissional», admitindo que outros colegas possam ter encontrado

outras características identificadoras, porque cada pessoa é diferente.

Defende que “é preciso encontrar uma forma saudável de exercer a profissão”

e refere que a experiência também lhe facultou a aprendizagem de

mecanismos de defesa para não se deprimir.

Sobre o futuro da profissão, Filipa, embora reconheça que a taxa de

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337

desemprego entre os assistentes já é elevada (embora menor do que noutras

áreas das Ciências Sociais como a Psicologia, por exemplo), tem a “fantasia”

de que “estamos no bom caminho para nos darem a devida importância e

sentirem que somos precisos na sociedade”, embora o pressuposto que

coloca para a melhoria da legitimidade profissional seja:

“…quando for dada maior importância às questões sociais e quando os nossos governantes tiverem consciência que não é só o poder económico que é importante. Quando se investir na Educação… Às vezes, é preciso haver crise para haver mudança, para se investir e se tomarem grandes decisões”.

Argumenta que, na sua perspetiva, os problemas e as questões em que o

assistente social pode intervir não estão necessariamente associados a

problemas económicos e à pobreza,

“…os problemas sociais são transversais à sociedade… e toda a gente

precisa de apoio num ou noutro momento da vida e nós podíamos ter um papel importantíssimo com pessoas de estrato económico mais elevado.”

Filipa tem a expectativa de que, nas representações do Serviço Social e,

mesmo na cabeça dos próprios assistentes sociais, tenha havido essa

evolução… Quanto a si e, apesar de não abordar a dimensão do

Associativismo Profissional, entende que houve um salto qualitativo na classe

profissional… “as cabeças” alteraram-se e têm mudado e também ela sente

que evoluiu, que também chegou à conclusão de «outras coisas».

Em relação à conciliação entre a esfera profissional e privada, menciona os

filhos na sua narrativa, referindo-se ao ano em que esteve desempregada e

que lhe permitiu cuidar deles em crianças de uma forma mais próxima e, no

final da entrevista, refere que o seu filho mais velho está na faculdade e

detesta o curso, achando Filipa que “ele tem de mudar, porque nós temos de

ser felizes naquilo que fazemos”.

A sua narrativa é marcada por esta dimensão de autorealização que atribui ao

desempenho profissional.

Page 338: As formigas e os carreiros

338

Paulina, teve apenas duas curtas experiências na sua trajetória profissional

antes de ir para o Instituto Português de Oncologia, onde exerce a profissão

de assistente social há dezoito anos.

O seu percurso profissional começou, como o de muitas outras colegas da

sua geração, por um projeto comunitário do Programa de Luta Contra a

Pobreza, mas Paulina conta que, no seu caso, foi uma inserção profissional

dramática porque se sentiu muito circunscrita num território com muita

tensão social, numa problemática nova para a qual não se sentia preparada

e num movimento pendular entre Lisboa e Setúbal que lhe era muito penoso.

Só ficou seis meses, enquanto não arranjou outro trabalho em Lisboa mas,

apesar de tudo, conta que aprendeu:

“…a olhar aquela realidade de outro modo, as opções de vida, a perceber como é que as pessoas estão ali, como é o alojamento e como é que as pessoas ultrapassavam a situação de pobreza…”.

Situa a segunda experiência (também durante seis meses) na Liga dos

Deficientes Motores, mas não lhe atribui aprendizagens, nem faz outras

referências. Diz que a sua vida está sempre ligada a rituais e que ‘as coisas’

com “referências bonitas” marcam-na mais. Conta que foi assim quando

estava a estagiar no Estabelecimento Prisional das Mónicas, não só porque

gostou da orientadora de estágio e da colega com quem fazia grupo de

trabalho, como também gostou da forma como se relacionavam com as

mulheres detidas (havia uma identificação no feminino) e gostava do

percurso diário que fazia a pé e lhe permitia ver “o lado bonito da cidade”.

Também recua a outro estágio (no Estabelecimento Prisional de Lisboa) para

falar de outra aprendizagem que ainda a acompanha:

“…ainda hoje dizia à minha coordenadora, cada vez gosto mais de lidar com a diversidade, fascina-me muito mais e conseguimos aprender muito”.

Sobre a sua longa permanência no serviço social do hospital, refere que, às

vezes, se sente cansada com a exposição constante ao sofrimento e ao

desgaste emocional:

Page 339: As formigas e os carreiros

339

“…porque a Oncologia desgasta-nos muito a nível emocional… e eu não sou apologista do assistente social neutro. Portanto envolvo-me e, há casos em que faço mais projeções ou me envolvo mais sob o ponto de vista afetivo, ou há situações em que pelo sofrimento que geram, nós não conseguimos distância…mas ponho-me a refletir e acho que…consigo sentir que faço alguma diferença. Acho que o assistente social tem de sentir que faz alguma diferença para os outros, porque se não estamos a fazer a diferença, também não estamos a promover a mudança…quando as pessoas conseguem enfrentar melhor a doença, eu já me sinto bem com isso. Acho que é um tipo de intervenção em que podemos dar um pouco daquilo que andámos a aprender e podemos aprender também a reformular para a próxima intervenção; porque nos manuais não está a dimensão do sofrimento.”

Mas contrapõe a este «cansaço» o gosto pelo trabalho multidisciplinar, pela

partilha de informação com os outros técnicos, pela aprendizagem conjunta

que o contexto hospitalar também permite:

“…gosto de ouvir o que os outros técnicos pensam sobre a mesma situação, com outros olhares…e isso em termos hospitalares faz parte da rotina e é uma rotina de que eu gosto porque aprendo, porque me abre os campos de visão, porque me ajuda a ter uma visão mais global da pessoa… nós aprendemos muito uns com os outros, até para nos reequacionarmos em termos de atitude.”

Paulina refere que, por vezes, nem sabe como “encaixar” a dimensão do

experienciado naquilo que aprende; mas identifica “a tal” dialética entre a

teoria e a prática, referindo que esse «encaixe» exige algum “distanciamento”

(porque as coisas são tão intensas do ponto de vista da relação que não se

conseguem logo assimilar) “sentido de oportunidade” e “sensatez”. Para a

entrevistada, estes atributos só chegam com a idade [e experiência de vida] e

se existir disponibilidade para fazer autoanálise. Esta dimensão de

reflexividade está muito presente na sua narrativa: “tem de se refletir para

saber se continuamos a trabalhar bem”, com uma componente de “atualização

teórica” mas sobretudo com um “saber ouvir” e um “não ter receio de admitir

que não se sabe”:

“…compreendo que não é fácil fazê-lo, porque no início também não o fazia…provavelmente também tem a ver com a segurança. Quando estamos muito inseguros, queremos provar que conseguimos fazer «o melhor» e, isso passa por querer aplicar os conhecimentos teóricos às realidades com que trabalhamos. Depois percebe-se que muito do trabalho passa pela nossa dimensão pessoal e por tentar fazer leituras subjetivas do outro… Há uma dimensão muito subjetiva e humana quando estamos com uma pessoa à nossa frente que está em sofrimento. Muitas vezes é a tal situação: uma coisa é o pedido expresso e outra coisa é o que está por detrás daquele pedido, mas isso é preciso ter algum treino para saber ouvir e alguma disponibilidade para entender.”

Page 340: As formigas e os carreiros

340

Paulina interroga-se sobre a possibilidade de os assistentes sociais

construírem um saber específico ao longo da sua trajetória profissional e

refere que anda a refletir sobre isso mas entende que algo não está bem

quando os doentes lhe devolvem que falam consigo «o mesmo» que falam

com a Psicóloga ou com a Enfermeira. Contudo, Paulina argumenta que os

assistentes sociais são treinados para fazer uma “escuta” diferente dos

problemas sociais, a forma como fazem os diagnósticos dos problemas tem

qualquer coisa que é muito própria da profissão, uma postura mais generalista

mas também não sabe explicar muito bem como é.

“Mas mesmo falando comigo da mesma coisa que falaram a pessoas

diferentes, a questão está em saber o que é que eu, na minha área, vou retirar porque considero importante para o acompanhamento e o que é que a outra pessoa com formação noutra área vai retirar para o seu acompanhamento. Mas acho que a especificidade passa por esse tipo de relação e pela capacidade de nós retirarmos das entrevistas aquilo que considerarmos importante e depois dialogar com o doente e a família, que é o mais importante, para construir soluções com eles: ouvindo e devolvendo, para ir aferindo o que é realmente importante para a vida da pessoa”.

Defende como sua «área» de eleição a abordagem psicossocial, embora

reconheça que os assistentes sociais ainda têm uma representação muito

estereotipada, um grande peso histórico ligado ao assistencialismo e sinta que

as pessoas ainda acham que os assistentes sociais estão sobretudo para

ajudar a “fazer qualquer coisa” e essa “qualquer coisa” é na perspetiva de

resolver uma situação problemática e, não, na dimensão de “ouvir, de orientar,

de encaminhar”. Identifica vários aspetos a ter em conta ao longo da trajetória

profissional que têm a ver com o processo de desenvolvimento enquanto

pessoa:

“…o que eu noto, ao fim destes anos de trabalho, é que agora, mais do que nunca, preciso de voltar a ver tudo. Quanto mais tempo vai passando, mais necessidade eu sinto de ler, o que já li ou outras coisas.”

Para já, está satisfeita por ter aprendido a dizer «não», sem que as pessoas

fiquem zangadas ou aborrecidas.

Na dimensão das Políticas e dos Públicos tem expectativa de que, através da

intervenção qualificada dos profissionais, num acompanhamento social que dê

contributos válidos em situações difíceis, possa ser criada uma imagem

Page 341: As formigas e os carreiros

341

diferente junto dos utentes e uma consciência coletiva junto dos utentes e dos

profissionais – mas para que isso aconteça, os assistentes sociais têm de ter

melhores condições de trabalho, pois atualmente são-lhes atribuídos grande

número de casos e, os novos profissionais, trabalham em sítios onde não têm

espaço nem tempo para pensar o seu trabalho, quanto mais para construir a

sua identidade ou a dimensão da relação que faz parte do Serviço Social:

“ Eu própria tive esse exemplo, porque há dois anos a esta parte tivemos um ‘boom’ de atendimento de doentes ambulatórios e eu cheguei a um ponto que disse: «eu não estou a pensar». Mas tiveram que me ‘dar o toque’ para eu perceber, porque nós sozinhos, não conseguimos perceber. (…) Quando tu estás com capacidade de análise e consegues manter algum distanciamento e alguma tranquilidade é uma coisa, quando estás assoberbada e sob pressão, tu não consegues. E cá está, depois passa a imagem que os assistentes sociais da segurança social não dão resposta, não marcam atendimentos, não ouvem…”

Estes alertas para a gestão organizacional e para a autonomia que cada

profissional constrói, não diminuem as inquietações que a entrevistada

expressa sobre o futuro da profissão, pois percebe que outras áreas de

formação estão a fazer uma intervenção muito semelhante ao Serviço Social

(no caso, a Psicologia Social e a Política Social) e tende a achar que “tudo vai

depender da forma como o serviço social conseguir negociar a sua posição

nas instituições”.

Sobre a reduzida produção escrita dos assistentes sociais, Paulina diz que é

porque ainda estão muito inseguros sobre o seu próprio saber e dá dois

argumentos: a grande dificuldade de exposição que os assistentes sociais têm

(porque consideram que as outras ciências sociais são mais importantes) e o

desfasamento entre o trabalho diário dos assistentes sociais e a academia -

na sua perspetiva a academia e o ‘terreno’ funcionam em linhas paralelas e

estão de “costas voltadas”. De si, situando-se nos profissionais do «terreno»,

destaca a falta de tempo para outros investimentos para além do exercício

profissional, embora também reconheça que algumas pessoas ficam com o

que aprenderam na licenciatura e depois pouco evoluem - “se calhar, porque

se rotinizaram e não tiveram oportunidade de se pensar”. Acrescenta que:

“…estamos embrenhados nas respostas do dia-a-dia e temos que dar as respostas. O que é que acontece? Ficamos muito neste trabalho urgente e temos pouco tempo para a reflexão e quando o fazemos tem de ser por conta própria e isso está errado.”

Page 342: As formigas e os carreiros

342

Da academia, lamenta que ainda não tenha sido possível arranjar espaços de

partilha, onde os estudos possam acontecer com a colaboração de ambos os

«tipos» de profissionais e que estimule espaços de aproximação ao ‘terreno’.

Paulina lembra que em cada fase da vida pessoal as coisas fazem um sentido

diferente e diz que “…há aqui qualquer coisa [na profissão] que tem de ser

repensada de outro modo (…) para se construir uma imagem demora muito

tempo, mas para se destruir uma imagem bastam minutos”.

Na dimensão do Associativismo Profissional, Paulina entende que não existe

uma “consciência da profissão” e que criá-la passa pelos próprios profissionais

mas remete para a Associação (ou para a Ordem que se pretende criar) a

tarefa de encontrar soluções para a profissão. A inexistência de regulação na

profissão também contribui, na sua perspetiva, para as dificuldades de

reflexão sobre as práticas e de produção de conhecimento específico,

remetendo para a existência da Ordem a possibilidade de uma “entidade

agregadora que pense sobre essas questões e diga qual é o futuro”. Paulina,

identifica o problema (no feminino) da seguinte forma:

“As assistentes sociais têm, por vezes, uma missão de «formigas

obreiras» que trabalham, trabalham, trabalham, quase como se quisessem salvar o mundo. Também é uma profissão de que se espera que exista um determinado perfil profissional e nós esforçamo-nos por corresponder às expectativas”.

Entende que os assistentes sociais têm que ter um perfil diferente e a

profissão tem de avançar de outras maneiras:

“…se não se refletir, se não se escrever, também os outros não sabem muito bem o que somos, o que fazemos e qual é a nossa importância. Vivemos numa sociedade em que o invisível não existe. Mas nós com esse trabalho do profissional que está presente e acompanha as pessoas a fazer a gestão da sua vida, dos seus problemas e recursos, podemos criar uma consciência nos nossos utentes; e isso faz parte da importância da profissão”.

Diana, tem um percurso de continuidade na autarquia onde fez estágio

académico e onde permanece há duas décadas, como assistente social. Tal

como na trajetória profissional de Cristina (embora em autarquias diferentes)

questiona-se por que é que ainda continua no mesmo serviço:

Page 343: As formigas e os carreiros

343

“…às vezes, penso que devia experimentar outra coisa, mas não consigo ainda. Entretanto, vem uma coisa nova e eu continuo.”

Os argumentos de Diana para a sua continuidade na mesma organização

são os processos de mudança em que está implicada (que demoram muito

tempo a ter resultados) e a existência de sucessivos «desafios novos».

O único trabalho que desenvolveu fora desta autarquia, foi simultaneamente

o primeiro trabalho, a tempo parcial, numa estrutura de apoio a idosos e

realizado em paralelo com o último ano de formação; recorda esse trabalho

como gratificante, apesar de achar confusas algumas coisas que ouvia nas

aulas - achava que “não eram bem assim”. Menciona também sentimentos

de «estranheza» com algumas colegas e professores por não partilharem as

suas inquietações e dúvidas e alguma «dualidade» e «ambivalência» entre

estes dois «mundos» que foi difícil articular.

Na sua trajetória profissional destaca a importância de profissionais que a

ajudaram muito no seu processo de aprendizagem da profissão e que tomou

como referência, que elegeu como modelos. Aliás, refere que as suas

maiores influências não vieram da escola, mas sim do contexto de trabalho e

de um grupo de pessoas que teve a sorte de encontrar no início do seu

percurso profissional e que foram modelos com que pôde identificar-se:

“…aprendi mais no dia-a-dia, no ‘terreno’, aprendi sobretudo com as pessoas com quem tenho trabalhado. É fundamental o sítio para onde se vai trabalhar: o sítio, o espaço, os colegas, a chefia, o serviço que nos recebe…pode ajudar-nos a crescer ou então ajudar-nos a estagnar; ou então (e eu já vi algumas colegas assim) a fecharmo-nos, a protegermo-nos a ficarmos ‘duras’ e pouco flexíveis... porque nos sentimos sozinhas e isoladas”.

Está a trabalhar no «núcleo de infância» do Departamento de Assuntos

Sociais de uma Câmara Municipal e diz que o objetivo da sua equipa é intervir

com as instituições sem fins lucrativos que trabalham nesta área. No domínio

das Políticas, sente que contribui para o desenho da política social local e

coloca no plural todo o investimento e sucessos alcançados, referindo que só

conseguem esses resultados porque estão lá em continuidade. Argumenta

ainda com um sentimento de ter contribuído para o aumento e qualificação

das respostas na área da infância e que esses serviços estão hoje melhores e

mais capacitados porque a sua equipa intervém com eles e que, no fundo,

estas instituições têm grande repercussão no bem-estar das crianças e das

Page 344: As formigas e os carreiros

344

famílias, e também dos funcionários e dirigentes institucionais.

“E isto faz-me ficar feliz porque eu faço parte desse processo, estou cá

(podiam ser outras pessoas, mas fomos nós) e participei dessas mudanças e dessa qualificação; fomos nós que os ajudámos a crescer e a desenvolver os seus projetos.”

Sobressaem na sua narrativa as organizações, quer aquelas com que

intervém, quer aquela em que trabalha. Sobre a intervenção dentro da

organização onde trabalha, Diana refere que a hierarquia e os outros

técnicos reconhecem crebilidade e percebem que o trabalho social implica

com o bem-estar das pessoas e com mudanças sociais. Nesta sequência,

Diana considera que também já têm esse reconhecimento por parte dos

decisores políticos “sejam de que partido forem e já foram de vários partidos”

e que isso permite uma autonomia técnica e um respeito pelas propostas e

pelos pareceres técnicos, que são sentidos como consideração por aquilo

que os assistentes sociais dizem e fazem.

No que respeita aos «públicos» da profissão, entende que as pessoas,

quando procuram individualmente apoio junto de uma câmara municipal,

acham que os funcionários são todos iguais e não distinguem um assistente

social de outro qualquer funcionário, mas que as pessoas das instituições

com que os assistentes sociais trabalham com maior proximidade e

regularidade, já reconhecem as diferentes formações e que os outros

técnicos camarários e os dirigentes locais também sabem distinguir as

diferentes formações e profissões. Diz do seu trabalho:

“O meu trabalho, nesta altura, é sobretudo de planeamento social: identificar necessidades e depois tentar, em termos da autarquia, mobilizar recursos para resolver essas necessidades; ou então, tentar com as instituições e com os grupos com quem estou a trabalhar encontrar outras respostas e o ideal seria que fossem inovadoras e sustentáveis. (..) Nós aqui no serviço apostamos no desenvolvimento e na promoção do trabalho com as instituições locais como interventores de primeira linha e nós somos secundários…eles apoiam os utentes, os cidadãos, e nós apoiamos as instituições”.

Sobre o que considera mais significativo na sua trajetória profissional, para

além dos desafios constantemente renovados que menciona ao longo da sua

narrativa e do sentimento de estar a influenciar ativamente a qualificação das

respostas sociais do concelho.

“Temos que fazer sempre aprendizagens novas, adequando o que já

sabemos com as questões que os contextos reais nos colocam. Nada é

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345

definitivo, temos que colocar sempre as coisas em causa e, vamos partindo para conhecer por aproximações, com a pessoa, com o grupo, com a instituição que temos à nossa frente, fazendo e conhecendo de acordo com o interlocutor e a interação, não há receitas…”

Os contextos organizacionais na narrativa de Diana são determinantes:

“Acho muito importante o contexto em que estamos a trabalhar, para mim é quase 70% do que define o que estamos a fazer: se nos permite crescer, se nos permite ter alguma autonomia para fazer coisas novas…isso é fundamental.”

Explica a propósito que “aqui trabalhávamos muito em equipa, em relação,

não era um trabalho nada individual”.

Sobre a sua especificidade como assistente social, refere que é muito difícil

de explicitar: sabe que não é «especialista», que é preciso ser «boa ouvinte”

e estabelecer uma relação de confiança, não fazer juízos de valor e que

“está para ajudar a pessoa na medida em que ela quiser e em que ela

participar” e entende que é, sobretudo «mediadora», «facilitadora» entre as

comunidades e a organização onde trabalha:

“…se me perguntarem o que fazemos, diria que somos uns mediadores, somos facilitadores, estamos aqui para ajudar as pessoas (individual e coletivamente) a ultrapassar uma dada situação problema. As pessoas não dominam tudo e nós também não, mas vamos à procura de informação e dos recursos e ajudamos a pessoa a encontrar recursos dentro dela própria, na comunidade, na família e nos serviços”.

No entanto, Diana também fala de um dia-a-dia muito diverso e abrangente,

cheio de procedimentos, rotinas processuais e emergências:

“…agora falando do meu dia-a-dia de trabalho, às vezes chego ao final de um dia e penso «o que é que eu fiz? Parece que não fiz nada». Tenho de pensar um pouco no que fiz, porque a diversidade é tanta, fazemos tanta coisa, trabalhamos com tantas pessoas (crianças, adultos, idosos, rede social, toxicodependentes, sem-abrigo, uma reclamação de um equipamento de infância lucrativo…), e as situações são de uma diversidade tão grande que é difícil dizer exatamente o que fazemos.”

Sobre o significado que dá à produção escrita do Serviço Social refere dois

aspetos antagónicos e complementares: por um lado, entende que os

assistentes sociais refletem pouco por escrito e, por outro, menciona que

escrevem muito, mas que grande parte dessa «produção» (estudos,

diagnósticos, planeamentos, avaliações) fica dentro dos serviços e não é dada

a conhecer, sobretudo para fora do meio organizacional e territorial onde

trabalham - também porque não têm a preocupação de mostrar o que fazem

Page 346: As formigas e os carreiros

346

ou fizeram.

Diana defende que diminuiu a distância entre ao académicos e os

profissionais do «terreno», que se estão a aproximar não só através dos

estágios académicos (por onde se faz uma espécie de «ponte» entre os

contextos de intervenção e a academia) mas também porque os profissionais

do ‘terreno’ recorrem a colaborações com investigadores do meio académico e

estes, procuram cada vez mais, a colaboração dos técnicos de ‘terreno’ para

os pôr em contacto com a rede de agentes locais, para dar testemunho das

formas de intervir e para fornecer dados ou facilitar o acesso a dados.

Diana considera que quando começou a trabalhar tinha uma profissão mas

hoje, já não sabe «quem é quem» e acha que já não tem uma profissão.

Reparte as responsabilidades desta situação pelas políticas de educação (que

permitiram a abertura indiscriminada e sem controle de qualidade de muitas

escolas e cursos) e pelo corpo profissional (por não ter conseguido negociar a

opção por assistentes sociais na ocupação de vagas de trabalho), entendendo

que a profissão e os profissionais perderam «alguma coisa» com as

mudanças na formação inicial e lamentando que todos os licenciados tenham

ficado na categoria genérica de «trabalhadores sociais» ou de «técnicos

superiores».

Na forma como antevê o futuro da profissão sublinha aspetos que dificultam

perspetivas de desenvolvimento:

- maior dificuldade em encontrar trabalho, quer porque existem mais escolas

a formar assistentes sociais, quer porque existem outros profissionais a

competir pelos mesmos lugares, quer ainda porque existe menos emprego

disponível;

- ‘desqualificação’ da formação inicial que deixou de ser uma referência de

qualidade (como era no tempo em que se formou);

- os critérios de seleção no recrutamento de técnicos para a administração

pública, que já não passam pelo curso ou pela faculdade, mas que cada vez

mais, privilegiam as características da pessoa e a atitude evidenciadas na

entrevista.

Quanto ao seu futuro profissional, diz que não quer fazer projetos a longo

prazo e procura viver um dia de cada vez mas que “queria ser melhor

técnica”:

“…uma coisa que eu queria era apetrechar-me para responder melhor às necessidades com que vou lidando e acho que posso melhorar muito; (…) estou muito investida nas redes sociais [referindo-se às Redes Sociais

Page 347: As formigas e os carreiros

347

que foram objeto de transferência de competência legislada da Segurança Social para estruturas de base comunitária, formadas por agentes dos territórios] e estou a achar um desafio voltar a trabalhar com os agentes das comunidades. Posso dizer que o meu desafio profissional nos próximos anos vai ser o de tentar ser uma impulsionadora e dinamizadora das redes sociais em que participo”.

Diana não menciona na sua narrativa a dimensão do Associativismo

Profissional, nem a conciliação entre a esfera profissional e pessoal.

Também não dá grande importância à feminização da profissão, referindo

que teve experiência de trabalho com colegas homens de que gostou muito,

apesar de achar que são menos atentos às questões processuais.

“Se calhar, a história da profissão também ajuda a explicar porque é que ela é menos atrativa para os homens. E acho que se, um dia, conseguirmos equilibrar melhor as proporções de género na profissão, isso também será um sinal de que algumas coisas mudaram.”

Page 348: As formigas e os carreiros

348

Os mais «novos»

Neste perfil estão «agrupadas» seis pessoas, sendo que cinco são licenciadas

em Serviço Social e uma é licenciada em Política Social. As primeiras são:

Sílvia (Q SG18), Armando (Q AP19), Mafalda (Q MV17), Américo (Q AD20) e

Madalena (Q MM16) que têm a sua formação inicial realizada após 1990, em

vários anos e por diferentes entidades formadoras, encontram-se a exercer em

diferentes geografias (dentro e fora do país) e têm trajetórias profissionais

necessariamente mais curtas, onde os períodos trabalho alternam com

desemprego e onde está presente a diversidade de perspetivas sobre a

profissão. A segunda é Sofia (E ZC4), que associei a este perfil pela data da

sua formação inicial (1989/94) - a sua inclusão também pretende pontuar a

existência destes profissionais no mesmo campo de trabalho e com

equiparação legislada para o acesso às funções exercidas pelos assistentes

sociais, apesar das consideráveis diferenças em termos de formação inicial e

da tensão existente no campo profissional e nas estruturas representativas da

profissão sobre a equiparação profissional.

Os tempos das suas trajetórias profissionais estão marcados (a verde) no

quadro abaixo e, considerando 2010, variavam entre os dezasseis anos de

experiência profissional de Sofia aos quatro anos de trajetória de Madalena.

Tabela nº 4 - Tempos e trajetórias profissionais dos mais «novos»

1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

Sofia Nasceu em 1970

1989/94 Ent.2008 16TP

Sílvia Nasceu em 1973

1990/95 Quest. 2010 15TP

Armando Nasceu em 1974

1994/99 Quest. 2010 6 TP

Mafalda Nasceu em 1979

1996/01 Quest. 2010 9TP

Américo Nasceu em 1976

1998/04 Quest. 2010 6TP

Madalena Nasceu em 1983

2002/06 Quest. 2010 4TP

Nota: TP- anos de trajetória profissional

Page 349: As formigas e os carreiros

349

Estes assistentes sociais nasceram maioritariamente ao longo da década de

setenta (exceto Madalena que já nasceu nos anos oitenta) e completaram a

sua formação inicial nos anos noventa e na primeira década de 2000. As suas

formações na viragem de milénio foram marcadas por tempos de grande

diversidade; que também está presente nas tentativas de ingresso no mercado

de trabalho e nas experiências de vida, com implicações nos processos das

construções identitárias e nas trajetórias profissionais destes assistentes

sociais. Ao mesmo tempo que se ampliam e diversificam as possibilidades de

formação com o aumento do número de licenciados em Serviço Social, retrai-

se o mercado de trabalho e aumenta a concorrência com profissionais de

outras formações. A «crise» acontece no momento em que aumenta a

competitividade profissional, com o surgimento de «novas» profissões,

reconversão de outras e questionamento do monopólio de conhecimento e de

exercício profissional (Dubar, 1997).

Com a diversidade de trajetórias profissionais e de argumentos sobre as

respetivas aprendizagens, quer nos processos pelas quais elas aconteceram,

quer nos atuantes que nelas interagiram, «os mais novos» pontuam com

diferentes enfoques as questões que lhes foram colocadas.

Sobre a construção identitária e de saber se se sentem assistentes sociais

temos dois «blocos» de posições: um, vai no sentido de argumentar um sim e

de dizer como entendem essa(s) identidade(s) e é defendido por Madalena

(com reservas), por Sílvia (sem dúvidas) e por Américo (de fato); e outro

defendido por Mafalda, Armando e Sofia, argumentando os dois primeiros que,

nesta altura, não se sentem assistentes sociais e a terceira, que não existe

identidade profissional.

Sobre o papel do conhecimento na construção identitária, as respostas são

mais convergentes, embora com argumentação diversa e sobretudo com

algumas distinções entre o uso e a produção de conhecimento e a distinção de

vários tipos de conhecimento.

Sobre a relação entre profissionais de terreno e da academia, dão nota da

evolução nesse relacionamento, mas também de que ainda é preciso uma

maior aproximação e complementaridade.

Sobre as questões projetivas de futuro, profissional e pessoal, impera

novamente a incerteza e a diversidade.

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350

Madalena, a mais nova destes atores «mais novos» refere na sua resposta

ao questionário aberto que, por vezes, é acusada de dar demasiada

importância ao “estético-expressivo» da intervenção social e argumenta que,

sendo o Serviço Social uma profissão de relação, não lhe é possível deixar

de contemplar a subjetividade, nem separar a ‘técnica’ da ‘pessoa’ que é.

Considera que tudo aquilo que vai absorvendo à sua volta, através do que lê,

ouve e sente, tem reflexos no que «é» enquanto profissional, entendendo

que parte da sua formação passa por «estar alerta», não só pelo que lê nos

livros mas também por tudo o que se passa todos os dias à sua volta.

A trajetória profissional desta assistente social, apesar de ser ainda curta, é

marcada segundo ela própria refere, por uma grande dimensão participativa

no território de intervenção. Trabalha numa Junta de Freguesia (onde

também fez estágio académico) e refere que o facto de trabalhar numa

organização pública que não tem as suas funções claramente estabelecidas

na área social, lhe tem proporcionado oportunidades de intervir nas mais

variadas áreas, até mesmo nas áreas que tradicionalmente não são de

serviço social – argumenta sobre isso que “tudo é intervenção social, quando

o fazemos ‘com’ e ‘para’ as pessoas e quando isso interfere na vida delas”.

Na sua narrativa exemplifica o trabalho, referindo que faz atividades tão

diferentes quanto o acompanhamento social a famílias, iniciativas de

sensibilização para os direitos das crianças, formação parental ou visitas

guiadas pelos próprios moradores do bairro onde trabalha para promover o

património cultural. Detalha que o atendimento social e o acompanhamento

que faz a famílias são das maiores fontes de realização profissional e

constituem uma “verdadeira escola”, embora também mencione que é a este

tipo de intervenção que as pessoas associam os assistentes sociais e que,

de facto, tem mais tradição no exercício profissional.

Sobre a tradição assistencialista do Serviço Social, Madalena refere:

“Também é verdade que temos um grande peso de uma imagem

assistencialista e burocrática, em que o assistente social é visto como alguém a quem se vai «buscar» algum benefício económico e a quem se entrega a documentação toda e, a quem se deve contar a vida na perspetiva mais negra possível de forma a obter o maior apoio. Claro que alguns técnicos também alimentam esta imagem mas há a necessidade

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351

de falar sobre isto com as pessoas, de desmistificar, de clarificar que podemos fazer outras coisas e de maneira diferente. Penso que hoje, os serviços ainda incutem esta perspetiva assistencialista porque a pretexto de «ser melhor» para as pessoas, fidelizam clientela. ”

Apesar desta perspetiva crítica, Madalena refere que não tem nada contra

atribuir benefícios ou distribuir recursos às pessoas mas entende que

existem várias formas de os atribuir e que esse trabalho deve ser feito de

forma a dignificar a pessoa e romper com o estigma que muitas vezes, as

pessoas têm de si próprias – este compromisso com os públicos da profissão

é muito evidente na sua narrativa.

Refere a propósito do desempenho profissional naquele contexto

organizacional que, por ser assistente social, herdou um conjunto de

«berbicachos» que as pessoas acham que são sua função (como por

exemplo, preencher formulários de habitação social ou dos programas da

Segurança Social) e que tem tido dificuldade em se desassociar do

preenchimento de «papéis». Menciona outra parte do seu trabalho, com

grupos e com a comunidade, sobretudo através da Rede Social de

Freguesia, onde a intervenção social tem ganho contornos menos

tradicionais e que tem sido um espaço fundamental para alterar

mentalidades e causar impactos positivos a longo prazo, quer esta

intervenção seja junto da comunidade ou seja com técnicos e/ou dirigentes.

E argumenta que a mudança só acontece quando os assistentes sociais se

envolvem com as pessoas com quem trabalham e que a alteração de

perspetivas de uns e outros e o alargar das possibilidades de intervenção

também são formas de mudar e melhorar a imagem que existe do Serviço

Social.

Madalena faz menção ao orgulho na profissão e na classe profissional a que

pertence, acredita que tem uma identidade enquanto assistente social, que

os assistentes sociais têm um papel social da maior importância e que há

gente muito boa a trabalhar mas que, também há muita «incompetência

instalada» e que faz questão de se distanciar de algumas imagens mais

tradicionais. Exemplifica, dizendo que trabalha numa equipa multidisciplinar,

onde cada um sabe o seu espaço e o dos outros e que, ao longo do tempo

foi construindo, pouco a pouco, o seu desempenho profissional, foi ganhando

Page 352: As formigas e os carreiros

352

espaço profissional e hoje a população sabe perfeitamente quem é e qual é o

seu papel.

“Na verdade, acho que é na diferença que se cria o verdadeiro espaço de cada um e acho que a minha construção identitária foi mais facilmente construída por os meus colegas terem formações distintas das minhas.”

Sobre a produção escrita dos assistentes sociais, Madalena reconhece a

importância do registo e da produção e divulgação de conhecimento, até

junto das próprias chefias, mas argumenta com «a falta de hábito», com a

dificuldade dos profissionais em escrever sobre o que se fazem e em

publicar, com a «ânsia» do terreno, com as constantes solicitações e com os

ritmos de trabalho muito intensos do ponto de vista relacional e emocional.

Menciona ‘boas práticas’ que não são divulgadas porque não são escritas e

que ela própria, tem dificuldade em registar porque entende que já passa

demasiado tempo de volta dos «papéis» e menos tempo do que devia, na

intervenção direta.

Madalena refere não ter grande conhecimento sobre a relação entre os

profissionais do «terreno» e os da academia, mas diz-se convicta de que o

ideal seria que fossem os técnicos de terreno a trabalhar o conhecimento

que mobilizam e constroem no dia-a-dia, até pela possibilidade de ampliar a

reflexão e melhorar as práticas. Identifica o “respeito mútuo” e uma “maior

relação entre uns e outros” como os ingredientes para fortalecer a

construção coletiva da profissão.

Situando-se num conceito de profissão que não é estático, acredita que a

partir da identidade profissional que já existe pode construir-se “uma

alteração da visão da profissão” e que isso teria impacto na qualidade de

intervenção dos assistentes sociais. Por outro lado, incomoda-se com a

existência de uma visão muito tradicional da intervenção social que

reconhece em colegas muito novos, inferindo que provavelmente estão na

profissão porque «calhou»; e isto incomoda-a pelo reflexo negativo que tem

na identidade profissional.

Madalena diz-se um bocado «descrente» na profissão argumentando que:

i) A profissionalidade e o associativismo profissional estão em crise.

“…o facto de alguns professores na faculdade «militarizarem» a questão da defesa da classe, sempre por oposição, não é uma boa estratégia, porque funciona ao contrário”;

Page 353: As formigas e os carreiros

353

ii) A classe profissional está fragmentada

“…a não uniformização dos cursos e a rivalidade existente entre cursos de serviço social das diferentes faculdades, acaba por fragmentar a classe profissional”;

iii) A formação inicial tem menos «peso» no desempenho profissional do

que as características pessoais.

“…tenho vindo a perceber que o que faz um bom profissional, mais do que a formação inicial, são as suas características pessoais; o investimento que ele faz e a visão que constrói, é que fazem a diferença”;

Madalena refere ter muito gosto e respeito pela profissão e entende que o

facto de o Serviço Social “não ser ciência é uma mais-valia para a profissão”

porque permite ‘colher’ informação em diferentes ciências e construir uma

visão mais lata; entende também que, mesmo sendo uma profissão altamente

desgastante, que expõe e fragiliza os profissionais, existem formas de prevenir

os riscos, como por exemplo, variando as experiências ao longo da trajetória

profissional e continuando a refletir através da formação contínua e da

supervisão – o que pretende fazer.

“Acho que mesmo a «intervisão» que tento fazer informalmente com outros colegas tem-me protegido de algum desgaste e o facto de ter reuniões de equipa com regularidade dá-me segurança; e o trabalho em parceria tem obrigado a procurar outros conhecimentos e a integrar outras perspetivas da intervenção”.

Américo, sente-se assistente social e argumenta que

“…interiorizou os valores principais do Serviço Social e o que deve ser uma prática profissional cuidada e em constante atualização”.

Um dos valores nomeado por Américo é a “necessidade de primar pela

qualidade do trabalho… porque um mau desempenho profissional «fecha

muitas portas» ” ao próprio e aos profissionais que se lhe seguirem. Esta

dimensão do exercício profissional prescrito, nomeada pelo «dever ser»

parece não ter sido abalada no confronto com o ‘trabalho real’ desenvolvido no

seu contexto organizacional.

Trabalha num Centro de Saúde de uma cidade Algarvia e na sua trajetória

profissional só tem experiência de mais um contexto também na área da

Page 354: As formigas e os carreiros

354

saúde.

É muito sintético na sua resposta sobre a trajetória profissional, pontuando

apenas que era este o contexto organizacional de exercício profissional

preferido (onde também fez estágio académico) e, por isso, apesar da sua

vinculação ao Estado não ter sido fácil nem rápida aguentou a situação de

precariedade com o objetivo de conseguir a posição profissional estável que

tem hoje. O período de cerca de cinco anos em que esteve numa situação

laboral incerta e precária apesar de ser narrado como difícil, permitiu-lhe uma

continuidade de trabalho e um aumento de experiência profissional com

bastantes aprendizagens e amadurecimento pessoal e profissional.

Defende que tem uma profissão: “Sinto-me, de facto, um assistente social…”,

mas tem dificuldade em identificar uma classe profissional e diz-se apreensivo

em relação ao futuro da sua profissão - que se encontra numa situação de

«crise» que já não é nova mas que também é alimentada na atualidade pelo

contexto económico global.

Américo reconhece no Serviço Social a existência de um “corpo teórico-

científico próprio” que é devido à reflexão dos próprios assistentes sociais (que

ultrapassaram as práticas baseadas apenas no «saber-fazer») e ao contributo

das outras ciências sociais e nomeia a importância,

“…da história [profissional] de mais de meio século e o seu nascimento a partir de práticas que foram sendo aperfeiçoadas com a experiência e os conhecimentos de muitos que trabalharam no campo social antes de nós”.

Américo menciona alguns argumentos em defesa da profissionalidade e

outros que contribuem para a «crise» profissional:

Em relação aos primeiros nomeia sobretudo a situação internacional da

profissão: a sua representatividade nas organizações supranacionais e

o enquadramento “bastante favorável aos profissionais” em diversos

países;

em relação aos segundos, situa a situação em Portugal identificando: a

situação de desrugalação da profissão e de desorganização do

mercado de formação.

A proliferação de formações em Serviço Social e áreas sucedâneas aumenta

a competição pelos postos de trabalho, que estão em retração; a frágil

organização de classe; a falta de representatividade da estrutura associativa e

Page 355: As formigas e os carreiros

355

a relação de subserviência com o poder político faz com que “sejamos um

grupo profissional ignorado nos projetos-lei relacionados com as Políticas

Sociais”. Contudo, na sua narrativa Américo não desenvolve o domínio das

Políticas, nem faz menção aos Públicos da profissão, nas suas dimensões de

«utilizadores» de serviços e/ou de «agentes» sociais do território ou em

qualquer outra dimensão, mas refere a existência de temas que o preocupam

e o interessam, entre eles, a organização da formação em Serviço Social, o

marketing junto dos «média» para que os assistentes sociais sejam ouvidos

acerca dos problemas sociais e das políticas sociais e a constituição da

Ordem Profissional.

Américo, na defesa da dignificação da imagem do Serviço Social argumenta

que esta passa em primeiro lugar pelo trabalho de cada profissional e não

apenas (ou sobretudo) por uma entidade reguladora ou por um regulamento.

Na sua resposta expressa que «a defesa» da classe profissional começa na

intervenção de cada profissional e lastima que muitos colegas não tenham

«consciência de classe» e demonstrem indiferença face aos problemas da

profissão - o que para si e, de certa forma, é o espelho de alguma apatia na

abordagem aos problemas do corpo profissional e de algum desprezo pelas

referências teóricas e metodológicas da profissão.

Américo refere-se empenhado na construção da “consciência da classe

profissional”, quer pessoalmente, quer no envolvimento que procura fazer com

os colegas com quem trabalha diariamente; mas a responsabilização

individual dos assistentes sociais que advoga, parece estar em consonância

com a tendência pós-moderna e liberal de atomismo e de atribuição de

responsabilidades às pessoas pela sua própria situação. Sobre o significado

que atribui à relação dos profissionais com o conhecimento e à produção

escrita dos próprios assistentes sociais, Américo faz a defesa de uma

argumentação funcionalista que distingue as profissões das práticas amadoras

admitindo que

“…o conhecimento é fundamental na construção identitária para combater o amadorismo e para enquadrar cada profissional”.

Refere também que é esse corpo de conhecimentos que explica a origem da

profissão e a existência dos seus valores. Seguidamente, menciona que

quando a relação do profissional com os conhecimentos disponíveis não é boa

Page 356: As formigas e os carreiros

356

(e muitas vezes, essa relação difícil começa na faculdade), isso justifica

muitos dos problemas de ‘não identificação profissional’ e de falta de

qualidade nas práticas profissionais. Contudo, Américo distinguindo o

conhecimento científico de outros conhecimentos mais experienciais e táticos,

reconhece que é sobretudo «um utilizador» do conhecimento científico. Esse

conhecimento, do qual assume que não é produtor opõe-se a um outro

conhecimento, no qual diz participar e que produz saberes sobre as realidades

e os contextos onde intervém, mas que fica situado na organização onde

trabalha.

Sobre a relação entre profissionais da academia e do «terreno» diz que é uma

falsa questão, debatida há décadas em ambos os contextos. Considera

fundamental que continuem a existir nos corpos docentes professores-

profissionais de «terreno» e assume que a diversidade de quadros de

referência e de planos de atuação é fundamental para o desenvolvimento da

profissão.

Mafalda está emigrada com o marido e os filhos na Coreia do Sul e, na

altura da resposta ao questionário encontrava-se a aprofundar os seus

conhecimentos em áreas onde entendeu que podia dar respostas mais

profundas, definitivas e provocadoras de mudança e encontrou no

«coaching» a perspetiva e as ferramentas para uma intervenção mais

eficiente.

Na altura em que respondeu ao questionário diz que “está a tentar

estabelecer-se como «coach» num mercado competitivo e em rápido

crescimento” e, como profissional liberal, já tem clientes de muitas

nacionalidades diferentes, com quem trabalha nos seus processos de

mudança por períodos curtos (de três meses), procurando que as próprias

pessoas definam os seus objetivos concretos de alteração dos

comportamentos que desejam.

“ …a população com quem trabalho na área do «coaching» é diferente da população que conheci no atendimento social da cidade de Lisboa (e não só pelas diferenças de geografia e de culturas) mas as metodologias que aprendi a utilizar para facilitar a mudança nas pessoas, poderiam ser

Page 357: As formigas e os carreiros

357

muito úteis no contexto da intervenção social…pois baseiam-se no princípio de que cada um pode ser responsável pelo seu trajeto e bem-estar”.

Mafalda diz que “…já fui assistente social, é algo que me formou e cuja

experiência agradeço” mas que, no momento, não se identifica com a

profissão e considera que não a exerce.

“A minha identidade nunca foi construída em alicerces fortes e confesso (sem querer ser arrogante) que ser assistente social não me preenchia totalmente, por que queria ir mais longe na minha intervenção com as pessoas e que o meu papel como assistente social não me permitia explorar e trabalhar… nos sistemas de trabalho em que estive, não eram objeto de intervenção.”

Os contextos organizacionais e, em especial as pessoas que os dirigiam, não

mobilizaram o compromisso de Mafalda, que assume também alguma crítica

em relação à implementação das Políticas. Refere que o conhecimento

prático, do terreno e das populações, foi o que mais contribuiu para a sua

construção identitária, em paralelo com os conhecimentos ‘adquiridos’ em

algumas (poucas) oportunidades de formação contínua.

Menciona que não procurou regularmente informação relacionada com o

serviço social e que raramente produziu documentação que refletisse o seu

trabalho, talvez porque não tivesse sentido essa necessidade.

Sobre a sua trajetória profissional, Mafalda enumera algumas experiências

em contextos organizacionais diferentes: o seu primeiro trabalho foi na Santa

Casa da Misericórdia de S. Entende que foi a sua melhor experiência

profissional, pelas responsabilidades que teve na criação, desenvolvimento e

avaliação de projetos financiados com fundos comunitários e sobretudo pelas

pessoas que a marcaram ainda mais do que o trabalho que desenvolveu,

nomeadamente uma Assistente Social com quem aprendeu muito e que lhe

deu imensa força.

Contudo, por divergências com uma pessoa da Direção, achou que a sua

posição técnica não era conciliável com uma perspetiva de caridade e, após

muito desgaste, pediu a demissão:

“…o trabalho diário com uma voluntária, que era membro da direção e minha superior hierárquica, que defendia uma vertente exclusivamente caritativa no trabalho social, deixou marcas de muita frustração profissional”.

Page 358: As formigas e os carreiros

358

Ficou desempregada (seis meses), procurou trabalho e fez formação em

“Formação Pedagógica de Formadores” e em “Mediação”. Através de

contactos da assistente social que a ajudou no primeiro trabalho (que

considera sua mentora) conseguiu um trabalho a tempo parcial numa

associação de imigrantes, mas confrontou-se novamente com a

impossibilidade de conciliar a sua perspetiva de trabalho técnico com o modo

de «pensar» e de «fazer» da direção.

De seguida entrou para a Santa Casa da Misericórdia de L. onde esteve três

anos a fazer atendimento social à população (2004/2006). Neste trabalho

refere que aprendeu bastante sobre as respostas do sistema organizacional

e da Segurança Social e adquiriu novos conhecimentos sobre recursos e

redes de resposta, construiu uma rede de contactos profissionais preciosos

para promover respostas às solicitações dos utentes e destaca também a

aprendizagem com as colegas mais experientes. Paralelamente, menciona a

sua insatisfação com este trabalho, quer porque os pedidos dos utentes não

lhe pareciam corresponder às suas necessidades, quer porque o trabalho

social lhe parecia “superficial, insuficiente e temporário”.

Meteu uma licença sem vencimento para acompanhar o marido que ia em

trabalho para fora do país e não lamentou deixar o seu exercício profissional.

Apesar de se sentir distanciada da profissão, defende que “existe profissão” e

acredita que é uma profissão “com futuro garantido e condenado a perpetuar-

se” mas que a qualidade e eficácia da intervenção dos profissionais

dependerão da construção de políticas sociais adequadas, da capacidade de

execução e de adaptação às realidades sociais dessas mesmas políticas e da

qualidade do ensino da profissão, para que não se caia numa mera execução

técnica.

Para si, ser assistente social, significou, muitas vezes, trabalhar e viver ligada

a uma instituição com mais limitações do que possibilidades. Como acredita

que é uma interventora social e que pode dar mais de si do que aquilo que é

permitido aos assistentes sociais nos locais onde trabalham, nunca se

identificou totalmente com a profissão e foi por essa razão que procurou

evoluir com a prestação de outros serviços na área do apoio social.

Sobre a relação entre os profissionais da Academia e do «Terreno», Mafalda

Page 359: As formigas e os carreiros

359

diz que tanto uns como outros parecem ter dificuldades na implementação de

medidas eficazes para intervir em realidades sociais complexas e que mudam

constantemente e teme que fiquem «paralisados» nos seus respetivos

contextos e que não promovam um diálogo ‘inter’ e ‘entre’ si. Pessoalmente,

diz que nunca procurou ajuda junto dos profissionais da academia, embora por

vezes, fizesse algum tratamento de organização de dados dentro da sua

organização.

Mafalda acredita que os assistentes sociais de «terreno» são muito

necessários nas sociedades e que, na sua maioria, são profissionais que

querem provocar mudanças nas pessoas com quem trabalham mas que, por

uma série de ordem de razões, não conseguem.

“Conheço muitos colegas com graus de frustração e «burn out» muito elevados que ficam doentes e não têm utilidade; e acredito que a sua intervenção seria mais eficaz, e gratificante, com a adoção de outras metodologias e com a utilização de outros conhecimentos mais alargados. Uma das conclusões a que cheguei é a de que estes profissionais conseguiriam superar muitas das dificuldades que enfrentam se existisse uma regular discussão de casos, uma formação periódica no posto de trabalho, um bom ambiente de trabalho e superiores hierárquicos que os motivassem e incentivassem”.

Sobre a hipótese de continuidade da sua trajetória profissional prosseguir como assistente social refere:

“Quando voltar a viver em Portugal penso rever a minha posição e ver «onde» e «como» posso contribuir melhor, se como assistente social ou não, mas provavelmente não”.

Armando, encontra-se a trabalhar em Itália, como Educador Social, num

Centro de Acolhimento para menores. É o único ator desta recolha empírica

que se descreve como «Técnico Superior de Serviço Social» e que

argumenta que “dá muito valor a esta designação de «técnico» enquanto

esfera de ação técnica e não como assistente social” – designação que

conota com «assistencialismo».

Quando terminou a formação em Serviço Social e antes de ter tomado a

decisão de sair do seu país, refere que esteve numa fase de «desemprego

ativo», tentando arranjar um estágio profissional mas que foram tentativas

vãs e ineficazes - tanto quanto o sistema político que criou a medida e não a

Page 360: As formigas e os carreiros

360

conseguiu operacionalizar, acrescenta. Ainda tentou outras hipóteses, que

não correspondiam à categoria académica e profissional que possuía, mas

que lhe permitiam uma ocupação e um rendimento, mas foram experiências

sem grande significado. Recorda que a memória desse tempo ainda é

«chocante» para si porque considerou ofensivas algumas entrevistas que

colegas assistentes sociais lhe fizeram e porque entendeu que essa

experiência espelhava um país que funciona por «reinos de poder» e pela

perversão das medidas de política, que entende não servirem para os fins

com que foram criadas.

O seu ponto de viragem foi feito com uma experiência profissional que teve

em Budapeste (Hungria) no âmbito do Programa «Leonardo da Vinci»,

através de uma associação juvenil a que esteve ligado. Nos três meses em

que esteve na Hungria, organizou e desenvolveu atividades de animação

sociocultural com alunos de proveniência étnica cigana, numa escola de

ensino especial e refere que a experiência foi muito significativa e

determinante, quer em termos pessoais, quer profissionais.

Menciona na sua narrativa que o trabalho que desenvolve atualmente com

crianças e jovens em Itália é bastante semelhante ao que dinamizou nesta

experiência. Diz que, embora não perca as noções e as metodologias que

aprendeu como “Técnico de Serviço Social”, a dimensão cultural é agora um

elemento de distinção do seu trabalho que não deixa de ser intervenção

social, mas que lhe coloca alguns dilemas relacionados com a sua

construção identitária.

“Neste tempo, sinto-me um trabalhador social e não um assistente social. Em parte, acho que esta minha identificação tem a ver com o que faço e com o contexto onde estou, o facto de estar fora do meu país é determinante e muito do esforço inicial é realizado para a aprendizagem da língua e cultura italianas. (…) Esta distinção também coloca alguns dilemas profissionais…o meu contributo no Centro é distinto dos outros profissionais, seja na esfera da organização e dinamização das diferentes atividades, seja através do contacto direto que estabeleço com os utentes”.

Fazendo uma análise dos cinco anos de experiência profissional, Armando

revela que o curso lhe permitiu um conjunto de conhecimentos e

experiências muito válidos, o conhecimento de abordagens diferentes e uma

crítica e autocrítica constante sobre o exercício profissional e sobre as

Page 361: As formigas e os carreiros

361

fronteiras com os vários conceitos de trabalho social - o que lhe permite fazer

uma reflexão contínua.

Armando, refere que a utilização e produção de conhecimento é

preponderante em qualquer estrutura onde se exerça uma profissão social e

que os profissionais:

- geram informação e trabalham informação;

- conseguem promover a complementaridade num trabalho em rede;

- articulam sinergicamente, os referenciais teóricos com os contextos da

prática;

- são simultaneamente produtores de conhecimento.

“…estes recursos teóricos também devem ser alvo de reflexão crítica e devem ser o alvo principal de discussão entre os profissionais que, na sua qualidade de produtores de conhecimento, são o espelho de muitas realidades com que convivem e que ajudam a construir. Entendo o conhecimento de forma plural, como formas de leituras que podem conferir luz ao debate e à compreensão de um problema social e permitir aos profissionais patamares de intervenção mais criativos e resolutivos”.

Encara a produção de conhecimento, simultaneamente como um instrumento

de trabalho e uma dimensão que «vem e vai» para o terreno, numa

perspetiva de que “ação gera conhecimento e conhecimento, gera ação”.

Armando entende que os resultados práticos da relação entre os

profissionais do «terreno» e da academia são visíveis na maior

acessibilidade e disponibilidade da informação e na sua constante

remodelação, embora ache necessário não «banalizar» essa relação nem

promover «ilhas de conhecimento» acessíveis a poucos; pelo contrário,

argumenta que a informação deverá estar em constante remodelação e

acessível ao maior número de pessoas.

Armando refere que “existe a profissão de Assistente Social” mas diz que a

sua condição é nos dias de hoje «a nódoa» de um sistema político que

procura colmatar falhas organizacionais, de criação e distribuição de riqueza;

que se baseia no assistencialismo que gera dependências nos indivíduos e

nas instituições e que está sobretudo vinculado ao controlo social dos mais

pobres e vulneráveis. Assumindo uma perspetiva crítica, entende que os

assistentes sociais ainda servem de «cara» a um corpo institucional com

Page 362: As formigas e os carreiros

362

muitas falhas políticas, com recursos apenas paliativos e que, muitas vezes,

servem de «tampão» a verdadeiros problemas sociais.

“No dia-a-dia, o trabalho de grande parte dos assistentes sociais, resume-se à gestão de medidas de apoio económico, com um grande peso processual e com pouca atuação na promoção da mudança”.

Armando refere o sentimento de que “um futuro diferente [para a profissão]

ainda vem longe” e que “hoje estamos muito dependentes dos números da

pobreza e de novas variantes das velhas formas de assistência”. No seu

caso, como diz que pensa no continente europeu, entende que o plano

económico e as mobilidades geográficas estão a criar novos espaços de

confronto e novos problemas sociais, que ainda não sabemos interpretar.

Na pergunta aberta sobre aspetos que o preocupem e/ou interessam do

ponto de vista profissional, Armando refere que está preocupado com os

“novos problemas emergentes ao nível social”:

“…Questiono-me se não estamos a iniciar uma nova era de tantos e tamanhos problemas sociais? E se o excesso de informação proveniente dos novos canais de informação também não tem um papel? Preocupa-me que as camadas mais juvenis da população não tenham acesso ao trabalho nem a formas de participação ativa nas decisões políticas, nem muitas vezes mostrem interesse por analisar as realidades onde estão inseridas”.

Refere que “vivemos um tempo onde não se resolvem problemas, mas onde

se assistem a estes problemas”. E acrescenta que está preocupado

”…por os fatores económicos prevalecerem sobre os fatores humanos, e com as pressões especulativas sobre o trabalho e o emprego – em especial com as deslocações industriais e as novas políticas de «terror» que espalham o medo nos contextos sociais”.

Termina a sua resposta dizendo-se preocupado “com o facto de tentar fazer

uma mediação, enquanto operário do social sem instrumentos concretos de

resolução das problemáticas” com que trabalha.

Page 363: As formigas e os carreiros

363

Sílvia, diz-se assistente social “com todas as letras” e com a profissão

designada “dessa forma e não de outra”. Diz de si:

“Eu tenho 37 anos, dou aulas já vai fazer 15 anos e gostaria mesmo de um dia conseguir que esta profissão não me carregasse, não me pesasse, não me sobrecarregasse tanto e me permitisse outra disponibilidade para a minha família, para os meus amigos, para outras coisas que eu gosto de fazer. E não me tem dado essa disponibilidade nos últimos anos e, de facto, às vezes, penso como seria bom mudar de profissão. Mas acho que isto é só um desejo… acho que vou continuar a ser assistente social, sendo professora de futuros assistentes sociais.”

Começa a sua narrativa sobre a trajetória profissional referindo que quando

terminou o curso (1995) havia pouco emprego na área social; ainda concorreu

para trabalhar no Rendimento Mínimo Garantido (RMG) mas desistiu deste

concurso porque se arrastou no tempo e entendeu que não era o que queria.

Enquanto esteve na situação de desempregada, procurou rentabilizar outros

gostos e competências: abriu uma pequena sapataria (tem uma paixão por

sapatos e design) e colaborou com a «International House» a dar apoio a uma

professora de inglês que dava aulas numa escola privada. Entretanto, é

contactada pelo Instituto Superior Miguel Torga (ISMT) para supervisionar

estágios académicos na área da saúde e tem um convite para ingressar numa

instituição privada de saúde mental - uma comunidade terapêutica destinada a

portadores de psicoses. Acumulou as funções profissionais e de ensino

durante três anos e meio e refere que acabou por sair da instituição por

cansaço mas sobretudo porque o modelo de orientação não coincidia com o

seu, o que lhe dificultou a integração de algumas estratégias da instituição.

Mantendo a atividade profissional como docente, continuou a apostar na sua

formação pós-graduada, nomeadamente com a realização de Mestrado em

“Famílias e Sistemas Sociais” no ISMT (fez a tese sobre as redes sociais de

doentes psiquiátricos, o que constituiu uma nova paixão), com o curso de

Terapeuta Familiar e com o Doutoramento em Saúde Mental, que lhe permitiu

cruzar as áreas da saúde, da família e das redes sociais.

Continuou com a supervisão de estágios e alargou a sua atividade académica:

começou a dar aulas ligadas às políticas de saúde na licenciatura de Serviço

Social e, mais tarde, acumulou com a área sistémica, tanto na licenciatura em

Serviço Social, como no Mestrado de Psicologia Clínica em “Famílias e

Page 364: As formigas e os carreiros

364

Sistemas Sociais” - realiza a coordenação deste Mestrado e de outro criado

recentemente sobre “Gerontologia Social”.

Sobre a construção identitária, refere que a escola (enquanto ideia) marca

muito a construção identitária mas, no seu caso, tem marcado ainda mais o

facto de ensinar futuros assistentes sociais e participar na sua própria

construção identitária.

“O contacto muito próximo com colegas de profissão, particularmente através da supervisão de estágios, foi reafirmando em mim esta identidade. Depois a minha inscrição na profissão traz-me esta inquietude de fazer algo pela profissão, enquanto coletivo: a utilização de espaços na internet para dar um pequeno impulso foi um meio para favorecer a construção desta identidade de forma coletiva e «coletivizável» e achei que só o poderia fazer, só poderia «dar a cara» a um projeto como o blog «Insistente Social» se tivesse essa identidade firmada. Por outro lado, esta dinâmica ainda reforçou mais a minha identidade profissional. Apesar da minha ligação a outras áreas profissionais e do conhecimento, nunca esta esteve em causa nem estará, aconteça o que acontecer”.

Na sua narrativa menciona que apesar da sua “relação umbilical” com o

Serviço Social, se um dia mudar de profissão, será para responder a um

sonho de fazer algo completamente diferente. Equaciona mudar “para uma

profissão manual” e acha que seria uma atividade que favorecia a sua

criatividade e que não gostaria de “adiar até à reforma”; mas mesmo assim

admite manter-se ligada ao campo de Serviço Social, através da investigação.

Para Sílvia, o papel do conhecimento na construção identitária é fulcral:

“…uma disciplina não existe nem campo científico sem massa crítica e sem publicações da área. Acho que muitos dos nossos problemas passam por aí, há um vazio de publicações e isso faz-nos estudar outros autores que não os nossos próprios e outras realidades, e isso não ajuda a consolidar uma identidade própria da profissão.”

Argumenta que hoje já entende porque é que os assistentes sociais escrevem

tanto sobre si próprios e não sobre os seus sujeitos de ação, sobre políticas e

problemas sociais – adiantando que provavelmente tem a ver com a busca de

uma consolidação da tal «identidade diluída» que se associa à

heterogeneidade de pensamento e de disciplinas do campo das ciências

sociais e humanas onde os profissionais vão «beber».

“Hoje valorizo quem o faz, valorizo quem tem a coragem de investigar a sério e de publicar. É preciso coragem para publicar.”

Sílvia lastima que a Fundação para a Ciência e tecnologia (FCT) não

reconheça o Serviço Social como uma área autónoma e diz que “só a sua

Page 365: As formigas e os carreiros

365

massa crítica poderá mudar o estado de coisas”. Sobre a relação entre os

profissionais do terreno e da academia, diz ter uma ótima experiência mas

reconhece que ainda há muita «separação de águas» numa lógica dicotómica

entre a teoria e a prática. Pelo contrário, a si faz-lhe mais sentido uma relação

dialética entre os dois âmbitos em que o motor da investigação pode vir de um

lado ou de outro e, embora não goste da designação de «profissional do

terreno», entende que uns e outros ainda não conseguiram capitalizar esta

relação, no sentido de fazer parcerias e projetos.

Mesmo assumindo que se a articulação não parte dos profissionais, tem de

partir da academia, elenca um conjunto de argumentos do lado da academia

que dificultam essa articulação:

- «um conjunto de inércias»; - «os seus recursos humanos têm sido sobrecarregados e estilhaçados»; - «o corpo docente das várias escolas já não se conhece, o que também não facilita os projetos interuniversitários que poderiam estabelecer, com outro poder, um diálogo com grandes organizações da nossa sociedade».

Sobre a questão que perguntava se achava que tinha uma profissão, a

resposta é veemente e algo irritada:

“…a resposta é sim, sem dúvida (…), é uma profissão porque é reconhecida socialmente, tem uma enorme importância social, apesar de com frequência não ser reconhecida publicamente; mas é reconhecida como profissão e isso é ponto assente, ponto final para mim”.

Gostaria que esta questão deixasse de fazer sentido, não só pela história da

profissão mas sobretudo porque ela é reconhecida pelas entidades e pelas

pessoas e diz que se preocupa com esta necessidade de auto

questionamento. Sobre o futuro da profissão Sílvia entende que a profissão

está legitimada mas o seu futuro “passa muito pela capacidade de

organização e do tal reconhecimento social que tanto se procura”.

“Apesar de ter dificuldades de afirmação no novo panorama do campo do trabalho social: ser assistente social hoje em dia, com as novas profissões que surgiram no campo do trabalho social não é a mesma coisa do que ser assistente social nos anos 60, ou 70, já para não falar nos contornos sociopolíticos e nos contextos e desafios que hoje se colocam à profissão.”

Sílvia tece uma longa teia de argumentos para apontar pistas de futuro para a

profissão, abordando que os compromissos da profissão são mutáveis nos

vários contextos sócio históricos, mas que deviam ser compromissos que

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366

unissem a profissão em torno do seu futuro. Refere que não sabe se a

«questão da mudança social» é o futuro da profissão, argumentando que “se

esse for o objetivo, certamente que outro objetivo de mudança virá de

seguida”. Detalhando a sua argumentação, refere:

- “Eu entendo que o futuro desta profissão tem de passar por uma organização profissional que lhe dê um corpo diferente, que lhe dê um sentido (…) que consolide o sentido da própria profissão e que não só dê união, mas também represente a tal identidade, uma nova organização – estou a falar da Ordem…”; - “Como deve ser o futuro da profissão, se calhar, nenhum de nós consegue ter uma perspetiva muito concreta e muito consolidada acerca dessas configurações; - “…o seu próprio projeto ético e o projeto político das sociedades, traz-lhe contornos distintos.” - “O futuro da profissão está muito dependente do futuro do Estado [não auguro de forma muito otimista o futuro da conceção do Estado Social] e não só do Estado, é da forma [incerta] como concebemos a sociedade …”; - “O futuro da organização profissional, eu vejo como determinante para nos colocar noutro patamar de exigência, de exigência em relação à formação da área, de exigência em relação ao exercício da profissão, de exigência em relação à formação contínua de profissionais, de exigência em relação à forma como nós regulamos todos esses processos, de exigência em relação à forma como nos podemos posicionar perante a sociedade que queremos ter…”; - “Essa legitimação só nos é trazida com um poder organizativo diferente e obviamente também esse poder depende de nós e nós ainda não percebemos isso.” - “…por vezes, eu sinto isso, que nós somos muito invisíveis.” - “Temos que ter mais certezas em relação a quem somos, muito mais certezas em relação à profissão para não nos deixarmos diluir neste campo. Nós temos que marcar o campo, não de forma intransigente e também não devemos ser demasiado corporativos”.

Sílvia defende que existe um espaço de diálogo a explorar e um caminho a

fazer com os intervenientes das várias profissões sociais acautelando o

respeito pela sua complementaridade e percebendo que, articulando, se pode

construir mais do que destruir. Em relação ao seu próprio futuro, Sílvia admite

que tem pensado muito sobre o projeto profissional e que ele passa “pela luta

por uma capacidade de organização coletiva” e pela sua ligação à academia

na qualidade de professora e sobretudo de investigadora. Refere, por um lado

que:

“…não descansarei enquanto não tivermos uma Ordem, ou outra organização qualquer que seja capaz, que tenha poder, que tenha capacidade de organização e uma estrutura suficientemente forte para, por exemplo, apoiar os profissionais; e apoiar, formando-os, apoiar advogando os seus interesses”;

Page 367: As formigas e os carreiros

367

“…interessa-me que esta profissão possa «ter palco» e explorar este palco, de uma forma séria, palmilhando, de uma forma cautelosa, de uma forma rigorosa, de uma forma atrevida e criativa, para que acedam aas luzes neste palco e nos traga muita luz, com muito colorido, com uma paleta de cores, de interesses e de visões que nos permita crescer. E quando digo «crescer em palco» é ter público e não esquecer este público, não só as pessoas comuns, como as pessoas que necessitam particularmente de nós ao longo das suas vidas - e eu acho que todos necessitam de nós”.

Por outro lado diz:

“Não equaciono protagonismos (…) Eu costumo até brincar e dizer que gostaria até de ser um pouco invisível, passar despercebida, trabalhar no meu cantinho, muito na penumbra. (…) lido muito mal com as situações que se colocam quando alguém assume poder”.

A defesa de uma organização coletiva com «poder» e de uma profissão «com

palco» aparece em tensão com uma pretendida «invisibilidade» pessoal e um

«lidar mal com o poder» - este paradoxo parece atravessar esta narrativa (e a

de muitos outros assistentes sociais).

Sílvia defende que vê a profissão voltada para todos os cidadãos porque

entende que ela defende os direitos humanos e o bem-estar social, que

defende acima de tudo o ser humano e um projeto de vida coletivo, embora

respeitando a individualidade. Reconhece que é uma profissão

«extremamente desgastante» que implica «constantes provas» e que essas

«provas» exigem muito da saúde mental dos assistentes sociais, mas

argumenta que lhe continua a dar “imenso prazer fazer parte” e que se

“emociona muito”.

Sílvia refere que, do ponto de vista profissional e como cidadã “uma cidadã

que tem uma responsabilidade acrescida por ser assistente social”, muita

coisa a preocupa:

A pouca visibilidade, a falta de interlocução que os assistentes sociais

têm tido nos últimos anos nas políticas sociais, o lugar de «pouco

poder» que a profissão tem dentro das instituições, a falta de

divulgação «das conquistas» que os profissionais vão fazendo e a falta

de capacidade de defesa dos cidadãos a nível político;

A falta de uma estrutura de organização profissional, a desregulação do

campo profissional e do campo da formação em Serviço Social;

Page 368: As formigas e os carreiros

368

As situações de pobreza e exclusão de várias ordens e de vários níveis;

A distorção a nível do senso comum sobre os problemas sociais e a

falta de implicação e compromisso dos cidadãos nas questões que os

afetam;

O protagonismo de outras áreas que competem no campo profissional;

O desemprego na área;

A falta de perspetiva crítica de alguns profissionais sobre os problemas

sociais e que “não vão para além daquilo que lhes é pedido, do papel

que lhes é dado”.

Os seus interesses expressam-se, sem antagonismos e em tentativas de

cruzamento: na “defesa dos interesses profissionais” e “na defesa dos

interesses dos cidadãos”, na “arte, na fotografia, no cinema, na arquitetura”,

interessam-lhe “os povos” e não lhe interessa “ficar fechada naquilo que são

os papéis públicos”. Interessa-lhe que:

“… o serviço social português se afirme, que possa estar presente em conferências internacionais, que possa investigar ao mais alto nível, que possa ser reconhecido enquanto corpo de investigação, interessa-me a qualidade da produção científica, a qualidade da formação dos futuros assistentes sociais, interessa-me tanta coisa…interessam-me os meus temas, os temas em que trabalho”.

Sofia, diz da sua trajetória profissional que foi uma aposta consciente de

investimento na profissão, no sentido de usufruir do maior número possível de

experiências, de se testar, de ver no «terreno» o que mais «encaixa» com a

sua «pele», de conhecer várias realidades sociais e de ter uma visão da

política social mais abrangente e integrada. Argumenta que esta decisão de

investir na prática profissional foi tomada em detrimento de investir na

formação pós-graduada e que, reflete a sua riqueza profissional e pessoal.

Contudo, avalia que não geriu convenientemente a sua carreira (na altura da

entrevista estava desempregada) mas que fez um trajeto honesto consigo

própria:

“…sou o que sou, graças a este compromisso que estabeleci comigo e com o brio que devo à prática da minha profissão, brio este que achava que estava relacionado também com o máximo de experiências

Page 369: As formigas e os carreiros

369

profissionais, evitando a «formatação»”.

O início do seu percurso profissional foi marcado por duas experiências que a

marcaram pela negativa: i) um estágio profissional no Instituto de Apoio à

Criança (IAC) de seis meses, a trabalhar com crianças de rua, onde estava

rodeada por Assistentes Sociais que não lhe reconheciam competências para

intervir; ii) a elaboração de um projeto de escolas itinerantes que enviou para o

gabinete de cooperação portuguesa, com a motivação de ir para S. Tomé -

país onde nasceu mas que desconhecia. Não conseguiu obter as condições

logísticas para a cooperação e viu o seu projeto ser proposto à UNICEF pelo

Instituto de Apoio à Criança (IAC) de S. Tomé – este episódio marca a sua

primeira grande deceção em termos profissionais.

Argumenta que precisa de se sentir útil e que, já na altura em que começou a

sua trajetória o problema do desemprego era bem evidente na área social.

Entretanto, concorreu a um concurso público e foi para os Açores implementar

o Rendimento Mínimo Garantido (RMG). Refere que foi uma belíssima

experiência em termos profissionais, embora fosse pobre em termos pessoais.

Deste trabalho, salienta o conhecimento que lhe possibilitou da função pública

e da intervenção social propriamente dita: em termos da sua aprendizagem

destaca o que aprendeu com uma colega assistente social que foi uma

referência: “muito do que eu sou profissionalmente devo-lhe a ela” e a

aprendizagem da fundamentação legal dos pareceres técnicos “não se atribui

RMG porque se gosta da cara do utente”.

Na sequência do agravamento do estado de saúde do seu pai, voltou ao

continente e demitiu-se. Após um interregno de desemprego voluntário para

cuidar do seu pai, Sofia foi chamada pelo Centro de Emprego e foi

selecionada para a coordenação técnica de uma Associação de Apoio a

Seropositivos. Refere que aceitou com medo mas que “foi uma bela escola,

porque não só percebi que tenho capacidades de liderança, como ergui

aquele projeto vestindo a camisola, literalmente”.

Refere que foi consigo e com o projeto de Centro de Dia, que a instituição se

tornou IPSS e fez o acordo de cooperação com a segurança social - o que foi

marcante, pois assegurou uma continuidade de financiamento. Fala muito e

com paixão desta experiência onde a diversidade de funções lhe agradou,

Page 370: As formigas e os carreiros

370

onde perdeu muitos dos preconceitos que tinha com os toxicodependentes e

onde diz ter aprendido muito. Entretanto as relações com a direção começam

a degradar-se e saiu, argumentando que a forma como a instituição era gerida

começou a colidir com os seus valores.

De seguida foi convidada para ir trabalhar numa Cooperativa de Educação e

Reabilitação de Cidadãos com Incapacidade (CERCI) local, onde só esteve

quatro meses no serviço de apoio domiciliário. Não gostou do conceito de

serviço porque considerou que era tecnicamente pouco exigente,

assistencialista e muito limitativo.

Ficou em primeiro ligar num concurso para o Instituto de Reinserção Social

(IRS) e foi colocada numa equipa de um Centro Educativo4 (CEPAO), em

Caxias. Com um contrato de trabalho temporário, trocou o lugar certo pelo

incerto mas decidiu arriscar e refere que foi uma experiência espantosa.

“Normalmente, quando saio dos empregos fico nostálgica, sinto a falta

dos utentes, da rotina, do trabalho em si mas não fico triste, nem choro. Trata-se de um luto, do qual faço a gestão com algum pragmatismo mas no caso do CEPAO não… foi o único sítio donde eu saí a chorar, custou-me imenso deixar aqueles miúdos…”

Refere que não acredita nos Centros Educativos e que não se reabilita nem

se reinsere ninguém por lá (é crítica em relação sistema que acha

completamente oco) mas a relação criada com os jovens foi muito boa,

mesmo num contexto organizacional marcado por más condições de trabalho

e por relações muito tensas com a restante equipa técnica.

“Estava sempre cheia de medo, tinha ataques de pânico em privado (aquela história das grades, aquelas sirenes quando das fugas dos miúdos) era tão assustador. (…) aquele som metálico, a fechar as portas nas tuas costas… eu sentia que estava presa também…”

Descobriu com esta experiência de trabalho que tem jeito para trabalhar com

adolescentes, que consegue “entrar na pele deles”, que consegue relacionar-

se com eles - “com os miúdos senti que o que dava recebia a dobrar”, mas

também acabou por perceber que existem coisas “que lhe pesam” e que tem

o direito de não gostar de tudo. O contrato era por dois anos, mas apanhou

uma altura de contenção da despesa pública (com a ministra Ferreira Leite)

4 Estes «Centros Educativos» são estabelecimentos prisionais pertencentes ao Ministério da Justiça e destinados a jovens que cumprem pena judicial por crimes ou delitos cometidos.

Page 371: As formigas e os carreiros

371

em que cessaram os contratados a termo certo e acabou por ficar apenas

um ano. Sabendo disso com alguma antecedência foi procurando trabalho:

“…costumava dizer que tinha dois empregos, que era o que praticava na altura e a procura de outro”.

Ficou só dois meses sem trabalho e entrou por concurso para uma Câmara,

mas essa foi uma experiência onde se sentiu muito maltratada e onde

percebeu que não há solidariedade nem lealdade entre pares - “quase que

diria que são um conjunto de pessoas complexadas que tentam aniquilar-se

umas às outras”.

“…sobretudo se não quiseres criar vínculos afetivos com elas, muitas vezes sentia que era penalizada por não ser amiga de alguns colegas; basicamente, não era pretendida a minha amizade, mas sim vassalagem com o rótulo de amizade. Aliás, uma vez uma superior hierárquica acusou-me de não me ter integrado por não ter feito amizades e disse-lhe que o meu contrato não contemplava essa obrigação mas que garantidamente, era uma colega colaborante e isso teria de ser suficiente. (…) Pagavam-me para trabalhar em equipa e isso fazia, mas quem escolhe os meus amigos, sou eu”.

Deste período diz que foi a única experiência profissional onde percebeu o

que é ser excluído num ambiente insuportável, triste e perverso, onde sentiu

que se não tivesse uma rede de afetos sólida, as pessoas afastar-se-iam de

si, porque estava «triste», «desinteressante», «encolhida» e não é assim a

sua forma de estar na vida. Segundo Sofia, os trabalhadores sociais são

pouco solidários uns com os outros:

“As pessoas entram em competição porque se sentem «pouco» e

precisam de garantir «um lugar ao sol» … com isto não estou a sugerir que não há competições ferozes entre profissionais de outras áreas, mas neste grupo profissional penso que o que está na base é uma insegurança sobre a própria disciplina; é essa insegurança que despoleta a desconfiança sobre a capacidade do outro colega…e raramente conseguem entrar num processo de «eu vou aprender contigo e tu vais aprender comigo», não conseguem…neste grupo profissional a competição é quase automática.”

Após novo período de desemprego, teve uma experiência de trabalho durante

um ano, num Gabinete de Arquitetura a fazer um estudo sobre parte do núcleo

antigo da cidade e refere ter sido das suas melhores experiências

profissionais, não pelo trabalho em si, mas pela aprendizagem de trabalho de

equipa, pela diversidade de conhecimentos e pela aliança efetiva entre os

membros da equipa. Diz desta experiência que “foi uma lufada de ar fresco”

Page 372: As formigas e os carreiros

372

trabalhar com pessoas com outras formações e prioridades, com objetividade

e rigor e isso contribui para a perceção de que o facto de não ter outras

colegas «do social» funcionou muito bem.

Depois da passagem pelo Gabinete de Arquitetura, Sofia esteve a fazer

consultadoria na área social numa empresa privada. Refere que este meio

empresarial é «um mundo cão» e que foi muito mal tratada pelas fragilidades

de conhecimentos na nova área de recursos humanos, da qual assume que

não percebia nada - esta experiência serve sobretudo para ter a certeza de

que o que gosta de fazer é intervenção social. Um dos traços marcantes da

sua trajetória foi a tentativa recorrente para ingressar na função pública,

iniciada com a experiência nos Açores e terminada com a experiência na

Câmara Municipal (que avalia como muito negativa)

Paralelamente, mantem-se ligada ao campo social através de colaborações

voluntárias nomeadamente numa associação de apoio ao luto e, mais tarde,

numa associação que ela própria fundou. Na primeira, refere ter aprendido

imenso mas, entra em choque com a direção que descreve como composta

por pessoas «completamente mergulhadas na dor” e que misturavam as

causas pessoais com a problemática de intervenção; na segunda, tem

grandes expectativas de assumir um projeto que é seu e que se fracassar,

pode assumir como «o seu fracasso» sem a possibilidade de justificações

exteriores.Sofia sente-se assistente social e diz que não abdica da profissão:

“…por detrás dito tudo está o meu amor pela profissão e eu acho que sou boa naquilo que faço. Acredito que é possível ser assistente social, sendo respeitada e respeitando os outros, pares e utentes; acho que é possível praticar esta profissão com dignidade e acho que «sou boa» não só porque estou sempre a questionar-me e a achar que tenho coisas a aprender como, de facto, eu gosto das pessoas. (…) E amo suficientemente as pessoas para ser dura se achar terapêutico, fazê-lo, mas tenho a noção (até porque me autorregulo) que nunca fiz nada por puro exercício de poder, situação que é muito vulgar na nossa prática profissional, feita de forma descarada ou mascarada de bondade”.

Contudo diz que “não sente identidade na profissão” e argumenta com a sua

experiência dizendo que quem trabalha nesta área, se não tiver princípios e

uma formação pessoal muito consistente, torna-se facilmente “amargurada,

má pessoa mesmo e que, por vezes, roça a loucura” porque as pessoas que

exercem a profissão habituam-se a ser maltratadas, argumentando que os

técnicos estão habituados a uma de duas coisas:

Page 373: As formigas e os carreiros

373

“ …a serem endeusados pelos utentes e/ou a serem maltratados pelos pares e chefias; ou então ambas as coisas se conjugam. Com isto resulta pouco tempo para as pessoas refletirem as suas práticas e se unirem para criar uma identidade de profissão”.

Também identifica fatores externos (como a inexistência de supervisão e de

espaços de reflexão) que poderiam inverter o medo que os profissionais têm

de ser julgados e ajudar a desmontar o mito do «herói/heroína profissional».

Sofia argumenta que existe nos profissionais do social um elogio do «bom

senso» e que isso contribui para que não se criam critérios de avaliação e

para que não seja possível responsabilizar os interventores sociais pelas suas

práticas. Sobre a relação entre os profissionais do «terreno» e da academia

diz preferir movimentos de «vaivém» entre o terreno e a academia, a vários

pretextos - e menciona que o inverso também é desejável. A propósito,

menciona uma breve passagem pela universidade, na qualidade de docente,

que lhe traz boas recordações mas destaca que o seu gosto por dar formação

não tem nada a ver com «dar aulas».

Ao fazer um balanço, Sofia diz que a sensação que tem, é a de uma «grande

alegria», numa trajetória profissional de «amores e desamores»

essencialmente porque estava no campo e isso implicava estar a aprender

novas maneiras de estar na profissão, de testar os seus limites e de conhecer

novas realidades, em paralelo com a gestão dos seus medos. Entende que o

que está na base deste tipo de trabalho é “um forte sentido de solidariedade

que é extensivo a tudo e a todos”.

Um dos aspetos que identifica como estando colado à profissão de Assistente

Social (e às profissões sociais de uma maneira geral) é a necessidade de «ser

bonzinho», revelando que existe um discurso do género “temos de ajudar

quem precisa de nós e, de momento não há dinheiro, mas vamos fazer um

esforço…”; refere que para isso não tem paciência e que os assistentes

sociais já têm que «provar» tanta coisa que não podem estar com «jogos».

Apesar da sua atitude crítica com alguns traços da profissionalidade, Sofia

refere que também se foi cruzando com bons profissionais, com os quais se

identificou, mas que curiosamente também esses estavam nas margens das

instituições.

Diz que o seu futuro passará sempre pelo exercício da profissão mas que o

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374

mercado de trabalho tem poucas ofertas e que criou uma prioridade que é a

de preservar a sua sanidade mental. Sobre as suas perspetivas de futuro,

afirma que neste momento está a tentar criar algo que ofereça outro tipo de

serviços e diz … «vamos ver».

Quando generaliza sobre o futuro profissional argumenta que a manter-se “a

perspetiva de «caridadezinha» e do assistencialismo não há futuro” mas que o

desafio que se impõe é o de “encontrar o equilíbrio entre a competência

técnica e a humanidade”. Acredita que a união faz a força e entende que uma

forma de evitar os equívocos que minam as relações laborais é estar

disponível para não ter medo «da verdade dos outros».

Em relação à produção escrita deste campo profissional, Sofia reconhece que

apesar da grande produção de estudos e relatórios, ele «tipo» de registo fica

fechado nas organizações e não dá visibilidade profissional.

Escreve artigos de opinião para a imprensa encarando-os como outra via para

se expressar como cidadã mas argumenta que existe um longo caminho a

percorrer para ultrapassar o sentimento de «pequenez» de alguns

profissionais e treinar “o sentido de humildade de se exporem à crítica de

outros e de aprenderem com isso”.

Page 375: As formigas e os carreiros

375

5. 2. Percursos de aprendizagem da profissão

Este recorte artificial foi novamente realizado com critérios cronológicos e por

tentativas de exploração do «corpus» constituído pelas narrativas recolhidas.

Ao procurar aceder aos percursos de aprendizagem da profissão, privilegiámos

aqui a formação desde os «espaços / tempos» da sua realização.

Os sistemas de formação ao produzirem conhecimentos científicos, teóricos e

abstratos, saberes descontextualizados, simbólicos e espaços disciplinares,

hetero organizados e uni funcionais constituem um espaço de racionalização

que desempenha um papel simbólico importante na produção de modernas

categorias educativas e contribuem para a especialização funcional dos

espaços educativos tendencialmente organizados segundo lógicas distintas

das que estruturam a vida privada (Barroso, 1993). Assim, procurou interrogar-

se a determinação reguladora da formação, que Santos denomina de

“intensidade colonizadora do conhecimento moderno” e que consagra uma

racionalidade cognitivo instrumental que relativiza e exclui pressupostos ou

valores morais, éticos e políticos, como a solidariedade, a participação, a

estética e a emoção da construção desse conhecimento. Neste estudo procura-

se dar visibilidade à produção de um conhecimento situado, dialógico e local,

suscetível de apropriação por parte dos cidadãos, das comunidades locais, do

que pode ser uma ciência social envolvida com diferentes formas de

conhecimento e de experiências e atenta às implicações éticas e políticas da

sua prática (Santos, 2000).

São sugestivos os discursos narrados pelos diferentes atores e autores nas

entrevistas de investigação que realizámos, começando uma parte deles pelas

razões mobilizadoras para a formação inicial. Embora, não fosse uma questão

colocada inicialmente, alguns autores referiram-se a ela como ponto de partida

da sua narrativa, o que sugeriu a sua inclusão.

A formação inicial para um trabalho e um emprego é uma lógica que marcou as

propostas educativas do século passado, assente no modelo da ‘eficiência

social’ (Kliebard, 1999) e que, de modo perverso, continua a querer persistir no

modelo neoliberal através da articulação entre competências adquiridas no

campo da formação e competitividade no mercado de trabalho. No entanto, a

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democratização da educação, a acelerada transformação dos processos

produtivos e a própria conceção do trabalho que se foi alterando, levam a que a

formação deixe de ser anterior ao trabalho para ser concomitante com este

(Dubar e Tripier, 1998). Estes autores sublinham a mudança de sentido dos

trajetos de mobilidade profissional e o claro incentivo ao desenvolvimento de

estratégias individualizadas para assegurar e melhorar a própria

empregabilidade.

A “Aprendizagem ao Longo da Vida” incentivada na União Europeia desde

1996 e os discursos que deslocam a noção e o sentido da «qualificação» para

a(s) «competência(s)» são disto exemplo, deslocando ao mesmo tempo o

investimento na formação das instituições para os indivíduos, que se tornam

responsáveis pela sua empregabilidade e pela manutenção do “estado de

competência e de competividade no mercado” (Dubar, 2000:112). A lógica da

competência coloca em questão

“…uma conceção muitas vezes apelidada de burocrática da qualificação, previamente adquirida e sancionada por um diploma, permitindo o direito a um contrato, a «nível de classificação» (e de salário) correspondente ao nível de diploma e assegurando em seguida a progressão salarial, mais ou menos automática, com a antiguidade” (Dubar, 2006:110).

Das relações entre o campo da formação, o campo do trabalho, a (des)

responsabilização do Estado e a crescente responsabilização do setor privado

advém possibilidades de um processo de reflexão importante a fazer pelos

assistentes sociais. As expetativas construídas no campo da formação inicial e

contínua dos autores (nos diferentes perfis abordados) e o sentido atribuído ao

trabalho que, como refere Dubar (2006) é uma componente das identidades

profissionais que diz respeito à relação com a situação de trabalho (que é ao

mesmo tempo situação e relações de trabalho, envolvimento de si na atividade

e reconhecimento dos pares) confrontam-se com a incerteza das regras, no

plano económico, político e social e ficam evidentes em «trajetórias erráticas»

construídas entre a possibilidade de acesso no mercado de emprego e no

campo do trabalho. Esta situação de instabilidade e incerteza, é atualmente um

dos elementos intervenientes na construção e crise das identidades

profissionais (Dubar, 2006). Por outro lado, no entendimento de Barbier, as

dinâmicas de afirmação identitária individual e coletiva correspondem a

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“…indivíduos diretamente envolvidos, muitas vezes em posição privilegiada, numa ação ou num projeto (…). As imagens e os afetos (positivos ou negativos) que experimentam confundem em grande parte as transformações da ação, as transformações do grupo ou da organização que está envolvida, e as suas próprias transformações identitárias. Eles dão à formação um significado dominante de aumento de eficácia e de apropriação da situação…” (1996a:22-23).

Identificámos este significado nas narrativas dos atores do estudo face à

dualidade experienciada nos contextos de trabalho e à integração incerta que

carateriza as novas formas de integração profissional, que configura uma

relação entre trabalho e formação que se traduz numa relação de «encontros

prováveis entre trajetórias possíveis» (Paugman, 2003).

@s seniores: Ana, Helena, Filomena, Fernanda e Maria

Em relação aos seus percursos de aprendizagem estas cinco assistentes

sociais, com idades compreendidas entre os sessenta e dois e os setenta e

três anos de idade e, no que respeita às suas formações iniciais, quatro delas

partilham dois períodos de formação no Instituto Superior de Serviço Social

de Lisboa - Ana e Helena partilharam a formação nos anos de 1956/1960 e

Fernanda e Filomena partilharam a formação nos anos de 1969/74.

Em relação ao curso de formação de 1956/1960, Ana e Helena, identificam

que a escolha do curso seria essencialmente vocacional: estas duas

assistentes sociais partilham o interesse e a motivação por uma formação que

lhes permitia intervir com os «outros», com as «pessoas».

“Porque achei que era importante...eu sempre tive um certo interesse por perceber o que se passa com os outros…” diz Ana (E TA8) “Desde miúda que eu tinha a noção que as pessoas eram a única ‘coisa’ que me interessava” diz Helena (E HS3).

Sendo jovens de famílias, social e economicamente bem posicionadas e,

numa época em lhes era permitido um vasto leque de opções formativas, a

escolha por Serviço Social era entendida como de baixa expectativa

académica, embora a função fosse socialmente reconhecida. Nas suas

narrativas fica patente a desvalorização familiar por esta opção formativa:

“Houve uma altura que eu pensei em ir para Medicina, depois pensei que eram muitos anos e muito estudo e que não me apetecia e fui para Serviço

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Social. Muita gente me dizia: - Não sejas parva, tu vais para Serviço Social e depois não aprendes nada”, diz Ana (E TA8).

“Acabei o Liceu com 17 anos, queria ir para Medicina e aí o meu pai, que era um homem sensato, disse que eu era demasiado cábula para ir para Medicina (risos). Então, a alternativa foi ir para Economia, para o ISE/Instituto Superior de Economia e fui. E foi durante esse primeiro ano que eu comecei a detestar aquilo, exceto as aulas do Professor Francisco Moura, que eram uma maravilha! Foi durante esse primeiro ano no ISE que eu conheci, através de colegas mais velhas, o Instituto de Serviço Social. - Mas é isto que eu quero, não é mais nada “(E HS3).

Ana e Helena, atribuem significados bastante diferentes em relação à mesma

formação inicial:

“Em relação a isso não tenho dúvidas que naquela altura a formação era

uma «xaxada» (…) realmente, aprendi pouco mas o que aprendi foi uma base que depois foi evoluindo (…) Na altura em que eu fiz o curso achei aquilo muito fraquinho, não havia livros, não havia nada. (…) Quando eu lá andei o Instituto ainda era ligado ao patriarcado, só depois da revolução é que ficou independente” Ana (E TA8)

“- Estou, estou muito satisfeita. E, de facto, o curso apaixonou-me. Fui

muito boa aluna. (…) Eu demorei 5 anos a fazer a curso, apesar do curso ser de 4 anos, porque quase no fim do 3º ano tive que interromper, fui-me a baixo...O curso era muito violento, como ainda hoje é. Havia os estágios... nós tínhamos particularmente um estágio que para mim foi muito doloroso, no 2º ano, nas tutorias de menores, que era com as crianças - problema... e, de fato, aquilo deu cabo de mim. Particularmente uma miúda (não me esqueço) com 8 anos, com uns olhos azuis lindos, muito redondos, que tinha envenenado o pai e a mãe, conscientemente.”, refere Helena (E HS3).

Ana complementou a sua formação pós-graduada no Brasil no final da década

de 60 e princípio da década de 70 do século passado, iniciando contactos com

autores de referência na América Latina, que depois introduziu em Portugal,

por via do ISSSL (na qualidade de docente) e da APSS (na qualidade de

dirigente). Não terminou a tese de mestrado, porque coincidiu com a época da

revolução de 1974 e privilegiou o tempo para a intervenção social numa época

de grande mobilização e participação popular desvalorizando o grau

académico. Contudo, em relação ao seu período de formação no Brasil refere

que “foi bom ter descoberto estas coisas todas, deu-me uma visão do mundo,

das pessoas e da profissão que considero muito rica”.

A propósito Honoré (1990) argumenta que é na quotidianidade, misto de

revelação e de recolhimento, de angústia e de esperança, que o sentimento da

situação que descobre o ser-homem, enquanto ser lançado no mundo, se

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acompanha do sentimento de formação na sua «formatividade», enquanto ser

no mundo.

Helena, que fez uma segunda formação em Política Social passado alguns

anos de exercício profissional, refere o seu compromisso com a aprendizagem

contínua dizendo quando já estava reformada:

“A nível teórico, conceptual e científico, há aquisições hoje que eu não imaginava há vinte anos quando comecei [na formação], que isto pudesse acontecer. Particularmente o trabalho descoberto sobre o funcionamento do nosso cérebro…”.

Em relação à formação em serviço social, refere que “tem uma componente de

valores que é decisiva”, ilustrando com uma conversa que teve com os seus

“queridos alunos”:

“ - Vocês não podem perder a vontade de continuar a aprender, têm que se atualizar, porque há sempre coisas novas (algumas não interessam nada, mas tudo bem), mas nunca esqueçam que o suporte de uma profissão como a nossa, são os valores. E isto não tem a ver nem com política, nem com religião, nem coisa nenhuma, tem a ver com valores morais, sem isso não há Serviço Social”.

Helena, durante todo o percurso profissional acumulou o exercício de Serviço

Social com uma atividade intensa na formação (como formanda e formadora).

A narrativa de Helena é ilustrativa da reversibilidade do processo formativo e

do ativismo colocado na formação inicial e continua dos assistentes sociais e

de outros públicos. No seu percurso profissional maioritariamente ligado ao

meio empresarial, as suas colaborações com a formação inicial foram uma

constante, até ter optado por se dedicar em exclusivo à formação, embora

tenha sempre assumido um estatuto de «colaboradora externa» de forma a

manter a sua independência.

Na linha destas autoras, Charlot (2002) salienta que aprender não é

equivalente a adquirir um saber, entendido como conteúdo intelectual ou

«saber objeto» que é apenas uma das figuras do aprender. Neste sentido e

segundo este autor, a aprendizagem e a formação são uma aproximação do

sujeito ao mundo, aos outros e a si próprio, são uma aproximação ao saber que

não é apenas epistémico. Esta aproximação é também identitária e social,

numa conceção de formação e aprendizagem que se sustenta no sentido e no

significado subjacentes à condição humana e que se afasta das correntes

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comportamentalistas da aprendizagem que frequentemente estão centradas

numa perspetiva instrumental da formação (Canário, 1999).

Em relação ao curso de formação de 1969/1974, quase uma década depois,

Fernanda e Filomena, ambas vindas de fora de Lisboa (respetivamente dos

Açores e do Alentejo) convergem na satisfação pela formação à qual dedicam

muitos argumentos nas suas narrativas. As diferenças pontuadas por ambas

têm sobretudo a ver com as diferentes experiências de vida (nomeadamente as

dificuldades que Fernanda encontrou no domínio escrito da língua portuguesa,

já que tinha crescido e feito o seu percurso escolar no Brasil):

“Não, não foi fácil [o tempo do curso], foi mesmo muito difícil. Mas lá consegui, porque eu sou muito teimosa e aplicada e aquilo que eu me propunha fazer levava até ao fim” (E FCR5).

Filomena recorda-se que:

“…eram umas aulas em que eu estava encantada. Eu ia para lá de manhã, saia de lá à noite, eu vivia naquela Escola num perfeito encantamento. Aquilo era tão diferente do que eu estava habituada, aquilo tinha uma interação tão grande entre os professores e os alunos de um estilo que eu não estava nada habituada e integrei-me muito bem; passava a vida lá” (E FA7).

Sobre a motivação para a escolha desta formação, são diferentes as narrativas

de Filomena e de Fernanda. A primeira refere que, apesar do pai entender que

“iria ser muito boa em Direito e de querer que fosse para Coimbra”:

“Bem, o que é que me levou à formação em Serviço Social? Tinha acabado o meu 5º ano e tinha que me decidir. Nessa altura [finais da década de 60], eu tinha uns amigos, em que uma delas era assistente social, que era a Isabel Costa, que trabalhou em Setúbal durante muitos anos e que foi a primeira pessoa a quem eu ouvi falar do curso de Serviço Social. Eu era uma excelente aluna na área de Ciências e gostava muito de matemática mas tinha umas birras de vez em quando com o meu professor, apesar de ser um homem de quem eu gostava muito... e então decidi que para Ciências eu não ia. Para onde é que eu ia? Para o curso de Serviço Social“ (E FA7).

Fernanda refere que para a compreensão da sua história, precisa de fazer um

enquadramento e relatar um pouco o seu passado, para se perceber o que

influenciou ou determinou a sua escolha profissional. E menciona:

“É assim: aos 3 anos de idade [em 1952], vivi o primeiro marco de uma mudança radical, na vida de uma criança: trocar de país, a família foi toda para o Rio de Janeiro e, segundo as lembranças da história familiar, iríamos apenas por um ano - que acabaram por ser à volta de 12 anos. A minha família foi toda: Pai, Mãe e Avó materna de 79 anos, um irmão mais velho de 6 anos de idade e um irmão mais novo de 1 ano de idade. O motivo desta “aventura” deveu-se ao facto de o meu avô ter deixado uns

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bens imóveis no Brasil, entregues a um procurador que não prestava boas contas... Então o meu pai aceitou o desafio de tratar pessoalmente desses assuntos, com a ilusão de que ao pedir uma licença sem vencimento por um ano no seu emprego (foi gerente do Grémio da Lavoura e fundador da primeira fábrica de lacticínios da ilha Terceira), seria suficiente para solucionar as questões em causa e regressarmos, mas não foi assim que aconteceu” (E FCR5).

Fernanda fala com pormenor desta etapa, do início da escolaridade no Brasil e

das voltas inesperadas da vida, recordando que na família havia um lema

lembrado todos os anos: «meninos este ano ninguém pode ficar com cadeiras

para fazer em 2º época de exames, porque vamos voltar para Portugal»,

lembrando que o aviso funcionou como motivo de maior aplicação escolar das

crianças e também como o despertar da curiosidade para conhecer o País

onde tinham nascido, evitando que ganhassem raízes no Brasil. Reconhece

que a sua escolha no secundário pela área de letras foi feita sem grande

convicção.

Ambas referem os contextos dos estágios académicos como fortes

experiências de aprendizagens, embora ligadas a diferentes «áreas» de

intervenção:

“Eu tive numa situação privilegiada no estágio porque eu queria ir para empresa, mas não queria uma empresa qualquer, queria ir para a TAP. E não fui para a TAP, fui para a «Stander Eléctrica» mas o estágio era remunerado - sempre achei que isso era um direito dos estagiários (nas outras profissões, por exemplo os próprios médicos, naquela altura tinham remuneração e colocação garantida). Nas empresas havia muitos postos de trabalho para o Serviço Social, porque era obrigatório, apesar de ser uma época do corporativismo instalado, não é? As empresas com mais de um determinado número de trabalhadores deviam ter Serviço Social.(…) Eu fiz o estágio na «Stander Eléctrica», em Serviço Social de empresa, e foi muito bom, apanhei a mudança das instalações da fábrica para Cascais que ocorreu durante o estágio e eu acompanhei essa transição dos trabalhadores. Sabe quem é que era o diretor de pessoal da «Stander Eléctrica»? O N.C., um “malandro!” Eu não fiquei lá por causa dele, o senhor Doutor achou que o trabalho que eu fiz estava viciado. Ele achava que as trabalhadoras que estavam na linha de montagem e recebiam prémios de produtividade de cinco escudos à hora, que aquilo era de mais e que elas não sabiam onde gastar o dinheiro! Agarrei essa temática e fiz o respetivo estudo, foi o tema do meu trabalho final, demonstrando o contrário do que ele defendia, mas ele não gostou e disse que eu tinha viciado os dados! Aqui deparei-me com a primeira situação de descriminação profissional porque, apesar da minha orientadora me ter garantido a integração na empresa, também o próprio Presidente do Conselho de Administração manifestou o apreço pelo meu trabalho e vontade em que continuasse, mas não fiquei” (E FCR5)

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“Tive dois estágios de que me lembro bem, um na Misericórdia de Lisboa, que foi feito no Bairro 1º de Maio, no Casalinho da Ajuda, com uma mulher que hoje ainda trabalha por lá como voluntária e foi uma pessoa com quem eu tive algumas fricções, mas com quem acabei por me dar muito bem. Até hoje, cada vez que nos vimos, consideramo-nos bastante. Depois no 4º ano estagiei no Centro de Observação e Orientação Médico - pedagógica, que era o chamado COMP5 (Serviço criado em 1972 por Joaquim Bairrão Ruivo e tutelado pelo Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, sendo uma referência da intervenção multidisciplinar na Intervenção Precoce, com crianças deficientes). Foi assim uma experiência muito interessante para mim. Ao início, perfeitamente devastadora. Lembro-me muito bem das crianças, estou a vê-las... pelo menos aquelas com quem trabalhei. O assistente social tinha um papel de acolher a família e a criança e fazer a primeira conversa com eles, para perceber como é que a família sentia o problema. Nós já tínhamos alguma informação, porque aquelas crianças vinham de fora de Lisboa para serem observadas e face ao diagnóstico, serem ou não, internadas num estabelecimento de ensino especial. Tínhamos uma orientação que era feita com muita qualidade técnica, tínhamos de fazer um registo minucioso. A minha chefe de estágio acabou por ser uma conjugação entre a Isabel do Vale e a Zulmira Antunes e a Isabel do Vale que também está [a lecionar] na Universidade Católica, são duas pessoas com características muito diferentes, ambas têm as suas qualidades, mas foram duas pessoas muito interessantes no meu processo de aprendizagem. E também uma Pedopsiquiatra que estava lá a funcionar na altura, com quem aprendi muito” (E FA7).

Os processos de aprendizagem e de formação, inscrevem-se na temporalidade

biográfica das suas trajetórias e decorrem da aproximação das autoras ao

mundo, aos outros e a si próprias através das unidades de sentido que vão

produzindo e dos atuantes que identificam como significativos (Charlot, 2002).

Maria teve um percurso formativo e profissional diferente das colegas

anteriores, já que começou pela formação de Auxiliar Social - um curso

criado pelo Decreto-Lei nº 38 884, de 28 de Agosto de 1952, por iniciativa e

sob tutela da então Direcção-Geral da Assistência e ministrado pelas Escolas

de Auxiliares Sociais de Coimbra e Lisboa, bem como pelas Escolas de São

Pedro de Alcântara (a que frequentou) e de São Vicente de Paula. Mais tarde

(1979/81), foi frequentar uma formação complementar entretanto criada no

ISSSL para formar pessoas que já exerciam em atividades profissionais

próximas ao Serviço Social:

“Era aquele curso à noite que eles fizeram para nos permitir a reclassificação… Foi aprovado um curso, aquilo tinha um nome… acho que era Plano de Estudos Unificados. Era dirigido para professores primários, auxiliares sociais com curso ou pessoas com formação académica equivalente. Havia lá duas ou três pessoas da área dos

5 Ver Gomes de Almeida, Rosalina (1980) “Uma história da Educação Terapêutica”, Cadernos do COMP.

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serviços prisionais que também foram considerados equiparados. Mas não tinham acesso os que não tinham curso nenhum” Maria (E RA2).

São mulheres que, com todas as suas diferenças, partilharam origens

familiares e sociais de classe média e média-alta (com exceção da Maria que

tem uma condição social de origem menos abastada e estudou sempre com

recurso a bolsa), numa época em que as jovens de famílias socialmente bem

posicionadas tinham acesso privilegiado a uma formação de nível superior.

Mesmo assim, pode inferir-se nas suas narrativas a condição de «rebeldes

meninas de família», onde frequentemente a opção por Serviço Social não

seria uma escolha de agrado familiar, mas sim uma decisão tomada a

‘contragosto’ e depois da negligência de outros cursos académica e

socialmente mais reconhecidos como Medicina, Direito ou Economia.

Maria e Fernanda, ao contrário das outras assistentes sociais deste perfil,

identificam uma escolha da formação pela possibilidade e/ou oportunidade,

face a outras escolhas que se apresentavam impossíveis ou indesejáveis:

“…na minha terra naquele tempo, nos anos 60, as meninas ou iam para senhoras professoras primárias, senhoras enfermeiras ou para os Correios. (risos) (…) Eu sempre sonhei fazer um curso ligado à área da Pintura ou da Arquitetura, ou do Desenho, qualquer coisa dentro dessas áreas que era o que eu gostava. Só que não podia. Era como o sonho de ser bailarina… Era impossível. Naquele tempo e naquela ‘terrinha’... (…) vim passar férias cá a Lisboa, porque a minha irmã tinha casado e vivia cá. (…) E uma cunhada dela era auxiliar social e tinha feito o curso em S. Pedro de Alcântara. E disse-me: - Porque é que tu não vais fazer o curso de auxiliar social? Vou contigo lá ao Colégio, apresento-te às irmãs e não sei quê...E eu assim: - Que curso é que é esse? - Olha, é Serviço Social, é como a Assistente Social, só que é Auxiliar. - É isso mesmo que eu quero! Entre isso, que eu não sabia muito bem o que era, mas que era ligado ao social e que não era senhora professora primária, eu não tive dúvidas: - É mesmo isso que eu vou fazer! “ Maria (E RA2.) “…a minha escolha profissional de ir para Serviço Social foi baseada no curriculum da Escola porque achei que tinham disciplinas do meu interesse. (…) No meu ensino, lá no Brasil, todos os anos nós fazíamos exames, mas era um ensino mais solto, mais técnico, do que o que vim cá encontrar, com «cadeirões»... Fiquei assustadíssima, não é? Então a minha esperteza “saloia” foi optar por uma área que tivesse disciplinas novas, que não encadeassem com conteúdos dos anos anteriores, e aí optei pelas letras, pela alínea e) que dava para Direito. Depois conheci o currículo de Serviço Social e gostei das cadeiras, a Psicologia, a Sociologia, acho que era interessante aquele conjunto... e o Serviço Social também. Aquele desdobrável que davam no início do ano convenceu-me…” Fernanda (E FCR5).

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Maria, fez a sua primeira formação como auxiliar social sensivelmente na

mesma época (1962-64) num curso «profissional» que foi assim descrito:

“Eram dois anos de curso e eu apanhei o último ano daquele curriculum de curso de auxiliares sociais. Depois foi remodelado, retiraram-lhe uma série de cadeiras, inclusive ‘corte e costura’ e culinária que nós tínhamos, economia doméstica... havia assim uma série de cadeiras que depois me foram muito úteis na Promoção Social Comunitária. (…) O curso era oficial. E era realmente um curso muito mais completo. (…) Em relação ao curso de auxiliares sociais era exigido para admissão o 5º ano e o curso dava equivalência ao 7º ano. A formação que tínhamos no curso era muito prática e tinha muito a ver com o trabalho que depois íamos fazer, muitas colegas foram trabalhar para a Obra das Mães. (…) Porque tínhamos mais conotação com aqueles aspetos da formação das raparigas, do acompanhamento das mães solteiras... do que propriamente com o Serviço Social, embora tivéssemos cadeiras de Serviço Social. Tínhamos umas professoras ótimas” (E RA2).

A propósito dos estágios em formação, Maria refere que, na altura (inicio da

década de 60), havia muito poucos assistentes sociais a trabalhar. Havia uma

assistente social responsável por cada serviço e depois a maior parte das

pessoas eram auxiliares sociais sem curso nenhum, as antigas «visitadoras»:

“…por exemplo, a pessoa que me orientou o estágio foi a A. F., em Algés, que era ótima, mas que era dessas pessoas sem formação especializada. Uma mulher, como técnica, impecável – tomaram muitas assistentes sociais com curso ter a categoria dela, aprendi imenso com ela. E depois na Amadora trabalhei com a A., que era impecável também. Tudo pessoas sem curso nenhum, com conhecimentos só da prática e foi com elas que os serviços cresceram, disso não tenho dúvida nenhuma!” (E RA2)

Sobre a expetativa quanto ao futuro da profissão, Maria interroga-se,

interrogando em simultâneo a imagem assistencialista que ainda persiste e a

relação com os saberes:

“…será que o Serviço Social, tal como ele é, se justifica neste momento? Será que as fábricas de fazer máquinas de datilografia não tiveram de se reconverter para a nova época dos computadores? Ninguém hoje constrói máquinas de datilografar. Eu não sei muito bem qual é o Curriculum do curso neste momento. Também posso estar a incorrer num erro muito grande! (…) Dizes-me que o Instituto já nem está no mesmo sítio... e ainda bem! Talvez se tenha alterado um bocadinho. Porque, quer queiramos quer não, a representação, a imagem da Assistente Social não mudou muito ao longo dos anos, continua a ser a senhora do carrapito e do fato saia-casaco cinzento, não é? Por muito que a gente queira mudar a imagem, por muito que a gente diga que os assistentes sociais já não são como eram antigamente... (e se calhar, não são; na essência, não serão - mas ainda trazem muito essa ‘bagagem’ e ainda se põem muito na posição de assistência)... e depois têm uma coisa complicada que é terem a mania que sabem tudo.

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A gente não sabe de tudo, dá uma ‘pincelada’ e talvez por isso é que sabemos tão pouco de nada. Eu realmente, como trabalhei com muita gente de áreas de formação diferentes, fui agarrando muita ‘coisa’, mas isso não me dá o direito de ter a mania que sei se tudo e, às vezes, também tenho. Eu, quando trabalhava com os menores em risco e com o tribunal de menores, já manejava as leis de traz para a frente e de frente para trás, mas isso não me dava o direito de dizer que sei de leis. Sabia-me mexer, sabia o necessário e suficiente para fundamentar o trabalho que me competia fazer. Mas nós continuamos a ser assim um bocadinho... pela rama. É engraçado, porque quando nos dizem para colocar por escrito, aí a gente se calhar tem muito palavreado, mas muito pouco consistente” (E RA2).

Procurando definir o que caracteriza os assistentes sociais, Maria refere que é

o contato com os «problemas do terreno», ou seja, os problemas que se

colocam no dia-a-dia hoje, nos bairros, nas famílias, nas pessoas e que apelam

a que os assistentes sociais se misturem com as pessoas.

“Eu acho que se há coisa que define o nosso campo é a mistura, é o estar por dentro. Se a gente não conseguir estar por dentro, estar próximo, não ‘agarra’ nada. Porque é quando a gente está por dentro das situações, e se senta ao lado, e é igual, que nos passam as coisas, como que por osmose. Agora, se o senhor doutor ou a senhora doutora vai lá engravatado ou encasacada, como é que é? Não lhe ligam nada, nem percebe nada. Acho que uma das nossas características é ser um bocado “mata-borrão”. O Serviço Social, é assim uma virose que a gente apanha e que nunca mais cura, depois vão aparecendo os sintomas, umas vezes dá tosse, outras vezes dá dor de garganta, mas está cá – é uma virulência acumulada. A gente mesmo que não esteja a trabalhar, mesmo que esteja de férias tem isto colado à pele, para onde quer que vá, não consegue ver por outros olhos” (E RA2).

Fernanda refere que entrou para o Instituto de Lisboa a seguir ao Padre

Honorato6 ter falecido, em 1969. Aquela formação, diz Fernanda:

“…dá-nos a sensação de sermos super-herói, de faz-tudo, não é? Como se tivéssemos uma varinha mágica, de fada! Depois nós não temos a maturidade para saber situar as coisas. E quando nos confrontamos com a prática, no terreno, percebemos que as coisas são diferentes” (E FCR5).

Menciona as aprendizagens nos estágios, “uma grande dificuldade por causa

do Português” e talvez o mais surpreendente seja o relato de que nunca

entendeu o que era o Serviço Social durante o curso.

“Só depois é que vim a perceber, só depois é que consegui entender. Agarrei-me a ler a literatura de Serviço Social, desde a brasileira às produções americanas e depois optei pela linha psicossocial, que eu acho que era aquela que me agradava mais (E FCR5).

6 Atuante icónico desta instituição formadora.

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Sobre a aprendizagem ao longo da vida é Filomena quem menciona mais

episódios na sua narrativa, dando relevância aos atores e aos contextos com

quem se cruza e ao conhecimento construído ao longo da trajetória:

“…fui aprendendo sempre coisas ao longo da vida com as pessoas com quem me cruzei, fiz muitas formações (devo ser, até há uns anos atrás, devia ser das pessoas que mais e mais variadas formações tinha feito, dentro daquela ótica de cruzar formações de várias áreas)…” (E FA7). “Eu verifico que, por exemplo, as pessoas que fizeram o curso de Sociologia mas estiveram primeiro em Serviço Social (como eu fiz), ficaram apetrechadas com uma forma de ler a realidade social e são capazes (hoje em dia isso já é mais vulgar, mas aqui há uns anos atrás não era) de sistematizar, com maior qualidade a informação que obtinham dos contextos de trabalho. Os assistentes sociais contavam umas histórias de vida engraçadíssimas mas que nunca mais acabavam, aquilo era muita descrição e pouca análise. As de sociologia não, começaram a ser capazes de quantificar, a ser capazes de fazer uma análise no plano sociológico, porque é que as coisas eventualmente aconteceram assim, o que é que influenciou, o que é que não influenciou...” (E FA7). “Eu acho que o conhecimento que se constrói com os outros, na vida, é um conhecimento estruturante porque no ‘fim das contas’, o que vai valer a cada um de nós é aquilo que foi aprendendo e guardando ao longo da vida. E, de facto, deve ser muito difícil dizer o que está na página quatrocentos e vinte e três do «calhamaço» que eu li, não sei quando. Agora o conjunto das leituras daqueles «calhamaços», mais os pensamentos que os «calhamaços» me suscitaram e as associações que eu fiz em várias áreas da minha vida, mais a vida social... talvez dê um conhecimento específico” (E FA7). “Outra coisa que eu acho importante é interagir com pessoas diferentes, que pensem e vivam de maneiras diferentes da nossa: eu sempre funcionei entre grupos muito diferentes e acho que isso é importante” (E FA7). “No meu caso [o conhecimento construído ao longo da vida], ajudou-me a ser, melhor ou pior, aquilo que sou. Só que a forma como o fomos adquirindo e a forma como o fomos utilizando, faz parecer como coisa ‘natural’, tão ‘natural’ que quase se torna pouco credível quando falamos com algumas pessoas. Eu tenho a experiência e os saberes que me permitem dizer que qualquer coisa ‘é assim de determinada maneira’ e digo-o naturalmente em conversa, e o outro, muitas vezes não reconhece este conhecimento porque aquilo não vem com um enquadramento teórico ou com um formato mais ou menos académico. Mas eu não tenho dúvida que é conhecimento. Da mesma maneira como a minha geração aprendeu um conjunto de saberes com os mais velhos e eram saberes que iam passando de geração em geração; depois fomos questionando ‘se aquilo era mesmo assim’ ou se não era, para depois verificar que ‘aquilo era mesmo assim’. Para outras ‘coisas’ apenas descobrimos explicações diferentes das que nos transmitiram, mas percebemos que no essencial andavam lá próximo” (E FA7).

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“É preciso, e mais uma vez, a formação e, se não derem formação em Serviço Social... não faz mal. Vale a pena ler diferentes fontes e autores diversos, também ficção vale a pena ler, diferentes formas de olhar o mundo – digo eu, que já sou velha” (E FA7)

Este perfil de assistentes sociais «séniores» pode «encaixar» na abordagem

funcionalista das profissões que assenta em três pressupostos básicos: i) a

existência de um reconhecimento social da competência fundada sobre uma

formação longa; ii) a existência de instituições profissionais como resposta a

necessidades sociais; iii) a existência de um estatuto profissional resultante de

um saber científico e prático e do ideal de serviço, corporizados por

comunidades formadas em torno do mesmo corpo de saber, dos mesmos

valores e ética de serviço (Rodrigues, 1997:13).

Os do tempo da ‘luta’: Inês e António

Em relação aos percursos de aprendizagem estes dois atores identificam uma

pluralidade de fontes de aprendizagem que vão muito para além dos contextos

académicos de formação inicial e que assumem ter sido estruturantes no seu

processo de formação. Ao longo das suas trajetórias salientam como Charlot (2002)

que o saber implica uma aproximação epistémica, identitária e social e que revela a

sua relação com os outros e com o mundo. Os saberes valorizados e mobilizados no

trabalho pelos atores articulam-se com o modo como interpretam e experienciam

este último, as suas condições de realização e de interseção com os outros, num

reconhecimento que é particularmente relevante para as suas dinâmicas identitárias.

Inês identifica as seguintes influências, nomeadamente na sua socialização primária

e na formação inicial:

A esfera familiar, através dos exemplos parentais: do pai, professor e diretor

da Ação Social de Angola do Instituto de Ação Social de Angola/IASA que

recorda como “um revolucionário (a favor de uma revolução socialista, de uma

grande mudança para uma sociedade justa, que coadunava os seus valores

políticos com os seus valores cristãos) ” e da mãe “vicentina, católica e

apostólica (…) que teve de tomar conta de nove consciências e de nove seres

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faladores”; e das vivências de uma casa que “era a mistura de tudo (…) a

minha vivência de infância é muito comunitária: é de quem fica a dormir, de

quem fica a comer, de quem vem para ficar, de quem veste a minha roupa, de

quem troca…”;

As vivências com grupos de interventores religiosos: os “missionários

espanhóis” e as “irmãs portuguesas” com quem tem experiências de apoio às

populações locais e o “movimento Shalom, a Juventude Cristã Angolana, que

era um movimento juvenil onde há uma grande influência da Teologia da

Libertação da América Latina” e no qual se forma como dirigente juvenil;

As memórias de uma relação com o conhecimento “que circula por toda a

cidade (…) que só é útil quando apropriado pelos sujeitos”, mas também de

contextos que a marcam e “que reproduzem a desigualdade social”..

Inês recorda a influência na opção por Serviço Social da primeira assistente

social que conheceu: tinha 13, 14 anos, quando foi para o Instituto de Apoio

Social de Angola a primeira assistente social, com quem começa a visitar

famílias no interior e acompanhá-la para outros variados trabalhos.

“Em termos de opções, na minha família, nós tínhamos muito claro que cada um de nós escolhia aquilo que queria ser. A minha irmã mais velha, por exemplo, foi a primeira mulher Regente Agrícola em Portugal, porque queria ser Regente Agrícola mas não havia esta profissão para mulheres. O meu pai consulta toda a legislação e percebe que não havia nada que proibisse uma mulher de ser Regente Agrícola, mas também nunca tinha havido nenhuma mulher a querer ir trabalhar para o campo, a querer trabalhar com animais, com árvores, com frutos, com isto tudo... E então, faz uma grande exposição, na altura ao Secretário de Estado e a minha irmã arranja duas colegas, que são as primeiras mulheres que vão para uma escola de 1000 alunos masculinos, e ficam a viver em casa de um professor – que era a Escola Agrícola que ficava no Tchivinguiro, a 40 Km da cidade. Por isso, também tenho na família a experiência de que uma mulher pode ter o percurso profissional que desejar, sabendo que nós somos os senhores dos nossos sonhos e dos nossos desejos” (E IV6).

Estas influências na sua formação pessoal e na socialização primária culminam

com a vivência da revolução, durante o primeiro ano de Serviço Social:

“Faço o Instituto Superior de Serviço Social em Luanda (…) em 1974, que é a grande fase da Revolução, a chegada dos Movimentos de Libertação à cidade; é a ligação dos Comités Operários às escolas e, por isso, eu vivi o delírio do que é uma Revolução, em Luanda. E isto foi em todo o ano de 74/75. Os antigos guerrilheiros do MPLA, alguns deles Zairenses outros Angolanos, ainda com pouco domínio da língua portuguesa, mas com aquela consciência revolucionária dos Centros de Instrução Revolucionária na mata, são os nossos colegas e tens, no Instituto de Serviço Social Pio XII, em Luanda em 74, uma mistura de um curso que era de elite (porque era pago e era uma Escola privada) com os guerrilheiros vindos da mata...” (E IV6).

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Esta experiência que foi vivida, na qualidade de cidadã angolana com muita

participação política acaba por se confrontar com “a grande divisão em Angola

(e dentro do MPLA) que vai dar fações mais tarde, dentro do partido e depois

com consequências muito mais graves quando começa a haver limpezas

ideológicas pós-revolução e pós-independência”. Inês, não pensava sair do

país que sentia como seu (Angola) mas acaba por se ver confrontada com a

circunstância de ter que o abandonar e, ela e a família regressam à Madeira,

de onde os avós eram originários.

Vão ser necessários oito anos (1975-83) para que Inês se sinta portuguesa e

que assuma que vai ficar em Portugal, porque também pertence e faz parte

deste país. Nestes anos, Inês vive e faz trabalho voluntário na Madeira e

emigra durante um ano para a Suíça com o intuito de “ser operária”:

“…esta experiência do que é ser operária, do que é não ter nome, do que é ser analfabeta, do que é ser considerada…com um grande racismo dos suíços …foi uma experiência riquíssima porque eu vinha de um ano de Serviço Social a ler livros sobre estas vivências, não é? E então a minha grande ansiedade era falar com as portuguesas, conhecer quem eram as operárias portuguesas. Eram jovens que vinham do norte de Portugal, da agricultura, poucas jovens tinham a 4ª classe... e vinham para a Suíça, trabalhavam 12 horas, ofereciam-se voluntariamente para trabalhar sábados e domingos, porque tinham um objetivo a alcançar: juntar X dinheiro para fazer uma casa, para casarem, para se estabelecerem em Portugal. E então, para os Suíços, nós éramos completamente loucas, porque não tínhamos o estatuto do imigrante que só trabalha; nós recusávamos trabalhar sábados e domingos; o nosso passaporte estava fechado na fábrica, exigimos o passaporte, porque depois como tínhamos dinheiro, circulávamos pela Suíça toda, íamos para a Alemanha, íamos para França e para onde pudéssemos. É uma experiência, para mim, muito enriquecedora em termos do que é estar do outro lado da barreira” (E IV6). Após esta experiência volta ao Funchal e porque tem frequência universitária, dá aulas a jovens e adultos no Ensino Unificado: “…a Madeira em 76/77 tem um atraso de desenvolvimento muito, muito mais recuado do que era o desenvolvimento em Angola, nomeadamente em relação à cidade em que eu vivia (Sá da Bandeira) que, por ser uma cidade universitária tinha um desenvolvimento muito grande, mesmo em termos intelectuais, de intercâmbios, de vida cultural, era uma cidade que pulsava e vivia. Eu chego à Madeira e era uma aldeia, fechada, parada…era uma sociedade do século XIX…onde nos campos havia a ‘colónia’ e o regime da posse dos trabalhadores agrícolas por parte do senhor das terras” (E IV6).

Em 1978 vai estudar serviço social para Coimbra e em Coimbra reconstrói a

sua identidade numa escola que a marca e num contexto onde se sente “num

movimento estudantil muito forte” e “novamente integrada na cidade

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académica”. Dos professores refere que tinham estado emigrados em França e

que regressaram após o 25 de Abril, que tinham “a grande perspetiva do

serviço social mais radical, do serviço social intervencionista, do serviço social

com compromisso ético, político, de transformação da sociedade”. Também

valoriza na sua formação inicial o grande entrosamento entre professores e

alunos, entre os alunos dos vários anos, o contacto próximo com o ‘terreno’, as

experiências de estágio que considera experiências de aprendizagens muito

ricas, as ‘novidades’ da formação que na época eram a ‘Dinâmica de Grupos’ e

a ‘Sociologia das Organizações’ e a perspetiva da investigação em serviço

social que se pretendia “mais académica e mais ‘suportada’ científica e

teoricamente”.

Em relação a António, revela que foi para o curso de serviço social com 21

anos (depois de fazer a tropa, de ter andado no teatro e de ter feito vários

trabalhos indiferenciados), sendo que a escolha do curso de formação inicial é

referida na sua narrativa como “um bocado acidental”, tomada a decisão entre

as pressões familiares, a informação do curso prestada por uma amiga e as

semelhanças que encontrou com o curso de Sociologia (onde não entrou por

falta de nota).

António refere que esteve num momento interessante do Instituto (de Lisboa) e

conta, com algum detalhe, a sua participação no coletivo da Associação de

Estudantes, quer no processo de luta externa pelo reconhecimento da

licenciatura (onde faz o paralelo com o movimento negocial do Instituto

Superior de Psicologia Aplicada/ISPA que se encontrava em processo

idêntico), quer na dinamização cultural feita dentro da escola. Refere também a

ligação próxima a alguns docentes, a identificação de fações conflituantes

dentro do Instituto (‘os radicais’, ‘a padralhada’ …), a importância dos estágios

ligados a uma abordagem educativa em contextos comunitários e o

aprofundamento do seu interesse e identificação com a animação – que ele

entende como “uma animação/educação informal ou não formal, a

animação/dinamização do tecido social e de iniciativas locais” e considera que

é boa parte do Serviço Social. Em relação aos estágios António diz que se

adaptou bem.

“No 2º ano estive na Associação de Deficientes das Forças Armadas e no 3º ano estive na Câmara de Oeiras e ainda conheci o Noronha Feio, o pai

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do António Feio, que trabalhava na Faculdade de Motricidade Humana, que era nessa altura o ISEF, e que era Vereador na Câmara na parte do Desporto, Educação e Cultura. Entretanto, andava a implantar (e vê lá tu como são os ciclos de vida), núcleos de alfabetização com a extensão educativa da zona que mudou para a DGEIA, em 1984, salvo erro. Tínhamos feito um estudo com a E. sobre o Insucesso Escolar e era engraçado que, de uma forma muito simples, vimos uma coisa inversamente proporcional ao que se descobriu mais tarde: as crianças que habitavam mais próximas «da linha», tinham melhores resultados que as que estavam no interior. Era uma questão que também era urbanística, com uma série de ligações socioeconómicas. Na altura em Oeiras já estavam a fazer o Plano Diretor Municipal (...) com uma série de gente, com o Arq. Nuno Portas que monitorizou o processo durante algum tempo, havia uma série de dados frescos, etc., andámos lá pelo terreno, ‘naquela onda’ das sociedades recreativas, na sociedade recreativa de Leião (...). E depois no 4º ano estive primeiro na Câmara de Lisboa (ironicamente também, porque agora voltei à mesma câmara) num serviço que antecedeu o que agora é a Proteção Civil (…) e depois na Câmara de Sintra (…) mas, no entretanto, como eu não tinha apoio financeiro para o estágio, e tinha necessidade de ganhar ‘uns trocos’ para os transportes e para a alimentação, fomos parar ao recém-criado Gabinete da Juventude da Câmara (…) Entretanto... foi visto como interessante, até por via da nossa professora, fazer uma dinamização que tivesse a ver com a Educação e com a Animação Cultural. Fomos parar à Serra das Minas a uma instituição que se chamava «Associação de Famílias da Serra das Minas». Essa Associação de famílias «pertencia» à Teresa Costa Macedo, que era quem enquadrava todas as Associações de Família na época. Mais tarde ela inspirou-se, ela e os tipos da Aliança Democrática e criaram a Secretaria de Estado da Família. Desde essa altura, a Associação da Serra das Minas era um núcleo de pessoas muito ligadas à Igreja, com uma senhora na direção que tinha sido retornada, que já tinha andado a dinamizar os africanos lá por Angola; mas era uma coisa muito familiar. Ela é que dominava a população toda da Serra das Minas, muitos dos associados eram retornados e trabalhavam naquela fábrica que foi encerrada... . O nosso trabalho implicava também a Junta, lá colaborámos, a fazer umas animações de rua, outras menos de rua, na constituição e organização de grupos, etc. - E foi isso o mais interessante do projeto. Também fizemos um estudo da comunidade, da evolução da comunidade, e começámos a constatar já um conjunto de questões que mais tarde viemos a apanhar no Cacem: a mobilidade pendular, o crescimento explosivo (...), o crescimento dos dormitórios…” (E AF1).

Esta identificação com um perfil de animador marca a sua construção

identitária como assistente social e reconhece no Serviço Social “um certo

pioneirismo, das autarquias e nas autarquias… muito através da animação”.

Contudo, António com um acentuado espírito crítico, refere:

“Nós trabalhámos muito as questões do espaço público (a questão dos tempos livres dos miúdos também foi abordada) das ofertas educativas e culturais daquela zona, e um pouco a análise da comunidade: como funcionava e o que é que era uma comunidade suburbana, com aquelas camadas todas, os recém-chegados, o pessoal que trabalhava na...

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Sorefame. Muitos operários da Sorefame viviam lá, porque as casas eram mais baratas. Aquilo era recôndito, não tinha transporte nem serviços, nem nada na altura; as pessoas tinham que ir da estação a pé para casa, por uns caneiros, e atravessar uma ponte sobre a ribeira da Serra das Minas. E a população era maioritariamente constituída por pessoal operário e retornados que tinham vindo para cá nessa altura. Depois, com aquela mentalidade interventora do socialismo “da tanga”, de bairro social, ainda acabou por ficar pior... Posteriormente foram lá implantar um bairro social quando aquilo era um sítio normal. É esta mentalidade do bairro social que me passa! Ainda me passa!” (E AF1)

Estas duas diferentes experiências e perspetivas da formação inicial acentuam,

no caso de Inês uma identificação com a escola, com “aquele movimento

estudantil que caracterizava (…) Coimbra de 78: grande diversidade ideológica,

uma grande diversidade partidária, uma associação (AAC) fortíssima que, na

altura, unificava toda a cidade” e com as colegas de curso que reconhece “com

uma determinada postura” e, no caso de António, uma identificação com o

«terreno» e com as aprendizagens realizadas, mais ou menos em autogestão

e, mobilizadas pelas dificuldades que encontrava. Embora António partilhe

algum do entusiasmo pelo movimento estudantil e se identifique com a luta

pela integração no ensino superior e pela atribuição de grau académico,

descreve a sua inscrição no curso de formação inicial «como quem não quer a

coisa», i.e., sem grande compromisso e dá relevo à sua característica de

«abelhudo», evidenciando uma dimensão de autoformação.

Os contextos de trabalho aparecem assim, como lugares de aprendizagem,

experimentação e de prova de capacidades destes atores que se confrontam

com o funcionamento dos atores mobilizados e com as representações dos

outros; ou seja, o contexto de trabalho configura-se no que Dodier (1995)

designa de «arena de habilidades» nas quais os atores procuram a sua

realização. O contexto de trabalho configura-se na oportunidade de transfigurar

os saberes dos especialistas em produções, mais ou menos originais e

contingentes que procuram reconstituir a complexidade nas lógicas de ação.

São estes saberes que, como refere Lévi-Strauss (1962) resultam de um

trabalho de «bricolage», trabalho esse que exige dos atores uma centralidade

que se expressa na capacidade de estabelecer relações e impulsionar

dinâmicas entre saberes dispersos (Didier, 1995). Neste sentido, os saberes

produzidos e mobilizados resultam, em boa parte, da capacidade de

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intervenção em situações inéditas. E também o grupo enquanto coletivo de

trabalho, conforme salientam Courtois et al (1996), constitui-se em estrutura de

formação, dando acesso a novos saberes e a competências individuais e

coletivas transversais. Os dispositivos de formação dinamizados no interior do

coletivo de trabalho configuram uma forte componente de flexibilidade e de

criatividade na medida em que dão acesso a competências e a saberes úteis

pra responder aos problemas identificados no tempo e no espaço de trabalho.

Na relação com a formação pós-graduada os dois atores deste perfil têm a

Sociologia e, em particular o ISCTE, como referência. Dizem respetivamente

Inês e António:

“Inscrevo-me no ISCTE, em Sociologia e venho fazer Sociologia para o continente e volto ao meu fascínio pelas teorias e pelos livros. Fabuloso! Outra coisa que eu considero estruturante é, de facto, a formação académica, é crucial. Eu penso que foi aí que percebi que havia muitas lacunas na minha formação e na minha grande escola de Coimbra, que me deu ferramentas para tudo o que é o trabalho de campo, que me deu ferramentas para me estruturar como pessoa, também me deu algumas teorias mas que não me abriu horizontes dentro dos grandes paradigmas, dentro das grandes teorias sociológicas e dentro do que podem ser os instrumentos metodológicos, para trabalhar a roda teoria empiria, ou seja, a intervenção como articulação entre a observação/investigação e ação. Isso é o ISCTE que me dá, através de dois professores que eu considerei fascinantes (…).E por isso estes marcos para mim são uma escola. Estes são os meus professores de primeiro e segundo ano de ISCTE, que me marcam com ferramentas para estudar, com perspetivas de me movimentar dentro do conhecimento e com uma preocupação pedagógica muito grande, de abrir consciências, de expandir consciências e de... nos dar a consciência da nossa pequenez. A nossa pequenez dentro de tudo o que é o universo académico e de tudo o que é o conhecimento. Então, voltando-me a situar naquilo que tu me pedes, que é uma linha de como é que se estrutura a própria prática profissional, a partir daqui eu não faço a licenciatura até ao fim pois salto para o mestrado...” (E IV6) “Fui fazer Mestrado para o ISCTE (…) A orientadora foi impecável: era Assistente Social na Lisnave em 1975 e depois tirou Sociologia.(…) Não me foi fácil escolher o campo de pesquisa e os gestores começaram a ser um bocado as ‘vedetas da companhia’ e tanto arrasaram com os outros campos, que me foi difícil escolher. Apesar de saber que a questão das organizações era o que me interessava. Depois para a dissertação, foi organizar-me como se fosse para um desafio, um bocado como quem faz uma maratona, mas sozinho, não é?! Às tantas já estava a gerir...a capacidade de sofrimento... não é o fôlego, é a resistência para chegar ao fim, para me arrastar até lá... mas pronto, houve aspetos que também me deram gozo” (E AF1)

Sobre o significado do Mestrado, António refere-o como um percurso de

reflexão, de organização e de reconhecimento do que sabia:

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“Por um lado, foi um bocado voltar a aprender e perceber que uma pessoa aprendeu muito mais durante os percursos profissionais do que aquilo que pensava. Por outro lado, também é o aprender a sistematizar e outra vez a fazer leituras, a debater, etc., etc. E no meio daquele pessoal todo fiquei estupefato por constatar que sempre sabia mais do que pensava. Eu nunca pensei... que fazia a parte da tese e da dissertação. Achava que não tinha ‘estaleca’, até em termos pessoais... quantas vezes eu pensei em desistir. (…) Ajudou-me a organizar o que tinha pensado até ao momento, mal ou bem, não sei se é sobre aquela ‘capa’ ou sobre outra, tenho que utilizar todos os recursos que possuo para concretizar algo” (E AF1)

Embora também reconheça que esta formação lhe aumentou os dilemas profissionais:

“Depois do Mestrado, agora é que eu percebo... porque fui para uma área muito prática, com um trabalho muito estruturado e o meu impacto agora tem sido em termos de trabalho o seguinte: um dilema entre os conhecimentos teóricos que vinham ‘fresquinhos’ do Mestrado (e que eu estava a pensar aplicar nas organizações) e depois o Serviço Social e a Animação, que são relativamente desestruturados e não podem deixar de ser desestruturados, nem deixar o informal porque se calhar perdem a sua essência, mas por outro lado, têm de ter uma estrutura” (E AF1).

As representações do futuro socioprofissional e as perceções do projeto

individual estão ancoradas nas trajetórias pessoais e profissionais dos atores

nos quais são particularmente importantes os mundos vividos do trabalho que

se articulam com o modo como perspetivam a formação, estruturando formas

identitárias mais ou menos coerentes e típicas. De acordo com Dubar (1977 b:

50-51) cada forma identitária associa de modo ideal-típico o mundo vivido no

trabalho com determinada disposição para a formação, cruzando o espaço

prioritário de investimento e de reconhecimento com a temporalidade

biográfica. Nas narrativas destes atores podem identificar-se três modos típicos

de investimento na formação, cujas características se articulam com os

mundos vividos do trabalho e com a trajetória pessoal e profissional: i)

Investimento pessoal; ii) investimento na atividade profissional; iii) e o

investimento na trajetória profissional (Dubar e Tripier, 1998).

Tanto Inês como António possuem «trajetórias nómadas», sendo a formação

percecionada como um investimento pessoal e potenciadora de projetos para o

«ofício». Ao entenderem-se como atores de si (Sainsaulieu, 1997), apresentam

bastante autonomia na identificação e seleção da formação (que tende a

privilegiar os saberes formais e académicos) e na construção do futuro, onde o

projeto socio profissional se sobrepõe ao contexto sociotécnico do trabalho

atual. Outros assistentes sociais assumem maioritariamente a formação como

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um investimento na atividade profissional e ao investirem sobretudo no

presente, elegem como saberes e conteúdos de formação mais significativos

os que relevam das experiências de trabalho, valorizando a partilha, a reflexão

conjunta e o acesso à formalização de saberes socialmente invisíveis e à

afirmação da sua pertinência contra o desperdício da experiência (Santos,

2003). Seguindo a tipologia utilizada, os atores que assumem a formação como

um investimento na trajetória profissional (Paulina, Irene, Filipa, Diana,

Américo, …) mantém elevados níveis de afinidade com as organizações de

trabalho e com a construção de trajetórias profissionais ascendentes. O

investimento na formação destes atores mais estratégicos é o que lhes permite

assegurar a «carreira» que se encontra fortemente ancorada no seu modo de

ser e de estar na organização (Sainsalieu, 1997).

No âmbito da Sociologia das Profissões, e a partir dos contributos da Escola de

Chicago, a abordagem proposta pelo interacionismo simbólico incide sobre as

interações e os conflitos, “bem como nos meios e recursos mobilizados neste

processo, chamando assim a atenção para o papel jogado pelas reivindicações

e os discursos sobre o saber, na transformação de uma ocupação em profissão

“ (Rodrigues, 1997:17-18). A perspetiva interacionista de análise das profissões

assenta em quatro princípios básicos: i) Que os grupos profissionais são

processos de interação que conduzem os membros de uma atividade a auto-

organizarem-se para defender da concorrência a sua autonomia e o seu

território; ii) Que a vida profissional é um processo biográfico de construção de

identidades ao longo do ciclo de vida; iii) Que existe uma relação de

interdependência entre os processos biográficos e os mecanismos de

interação; iv) Que os grupos profissionais procuram o reconhecimento pelos

seus parceiros desenvolvendo retóricas profissionais e procurando proteções

legais (Dubar e Tripier, 1998:96).

Os primeiros «doutores»

Dado que a cronologia e o local da formação inicial são constantes, procurei

junto destes atores auscultar os argumentos e os atuantes a que associavam

a escolha da formação em Serviço Social, bem como os significados que lhe

atribuíam. Foi curioso verificar que Jaime, Cristina, Irene e Paulina

escolheram Direito como primeira opção, sendo que Jaime e Irene ainda

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frequentaram cursos de Direito e desistiram; e Cristina e Paulina acabaram

por optar por Serviço Social na fase de candidaturas. Apenas para Filipa e

Diana o Serviço Social foi uma primeira opção.

Em relação aos atuantes identificados nas diferentes narrativas como

facilitadores desta opção, temos na maior parte destes atores a presença

próxima de uma assistente social que os influencia através dos seus

testemunhos ou, a narrativa de experiências de vida que, em idades

precoces, influenciaram a decisão pela formação inicial. Em relação aos

argumentos evocados para a escolha do curso:

Jaime, refere a importância de «valores», «princípios» e «dimensões»

que não encontrou em Direito, embora até hoje tenha preferência por

“uma articulação de saberes entre o social e o jurídico” que, segundo

ele, é uma das áreas que não tem sido explorada, ou seja, “como é

que o próprio Direito pode promover uma ação social dentro dos

princípios dos valores humanos, da dignidade humana, da igualdade

de oportunidades e da própria dignificação do homem, enquanto

homem …e como é que o Serviço Social pode ajudar a fazer o

equilíbrio nessas relações de poder”;

Irene refere que, quando desistiu de Direito «não sabia o que queria»,

fez testes vocacionais, fez algumas candidaturas a cursos diferentes

(magistério primário, entre outros), teve um apoio incondicional dos

seus pais nesta procura e, em particular, destaca a influência da mãe

que lhe falou da possibilidade de ir para Serviço Social e ela, que

nunca tinha pensado nisso antes, diz-se satisfeita porque “foi a nível

pessoal e familiar que encontrou essa opção”;

Cristina refere que, a propósito de um incidente na sua vida pessoal e

familiar, contactou com uma assistente social que se tornou amiga da

família e que influenciou a sua tomada de decisão;

Paulina toma conhecimento da formação em serviço social através de

uma amiga, mas o que a fez optar foi a diversidade de disciplinas da

área social e a motivação por um ensino generalista, porque diz que

gosta de perceber como se analisa uma situação em várias perspetivas

e refere não gostar “das coisas muito focalizadas”;

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Filipa, escolheu o curso como primeira opção, pelo testemunho de

uma assistente social próxima, que frequentava a sua esfera privada

(cresceu fascinada pelas suas histórias) e pela sua própria

sensibilidade para as questões sociais;

Diana também escolheu o curso como primeira opção mas por

influência de uma colega do secundário (o seu suicidou foi o incidente

que marcou toda uma turma). Diana refere a necessidade que ela e os

colegas sentiram de perceber «porquê» e «como» é que aquela morte

aconteceu e, ao procurar, encontraram aspetos da vida da jovem

colega que desconheciam, nomeadamente a sua entrega a causas

sociais e a sua prática voluntária junto de instituições locais. Este

incidente e esta descoberta foram para Diana e para os seus colegas

tão marcantes que, eles próprios começaram a fazer voluntariado

social. Refere: “devo-lhe a ela ter aberto os olhos para uma série de

aspetos sociais e foi aí que tomei a opção de me formar numa área

social”.

Embora os campos da formação e do trabalho coexistam e se interpenetrem,

acabam por estabelecer cumplicidades distintas em função das suas

experiências e das expetativas de futuro. É neste contexto que são

compreensíveis as relações que os autores estabelecem entre os campos da

formação e do trabalho e são estas cumplicidades que promovem as

disposições para a formação e o investimento que nela fizeram, fazem e/ou

estão dispostos a fazer, no sentido de diferenciarem, afirmarem ou

confirmarem a sua identidade profissional (Barbier, 1996).

Para todos estes atores o gosto expresso pela formação inicial foi constante

nas suas narrativas, embora os argumentos que pontuam sejam diferentes:

“Adorei o percurso da formação, as pessoas e os estágios” (Irene/ E IS11);

“Gostei muito do curso, tive uma experiência muito gratificante na minha vida e os estágios correram muito bem” (Filipa/ E AR12),

Para estas assistentes sociais, também a parte teórica foi importante, pelos

excelentes professores (que ainda hoje recorda) e pelo grupo de trabalho com

quem reconhece ter feito uma aprendizagem em conjunto muito enriquecedora;

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Diana e Paulina, que vieram de fora de Lisboa, de meios familiares e sociais

muito protegidos, respetivamente de uma aldeia do interior e de uma pequena

cidade do centro do país, tiveram algumas dificuldades de integração e referem

‘crises’ pessoais e o isolamento sentido no período inicial. Contudo, passados

estes momentos, atribuem significado ao espaço físico da escola sentido como

«a casa» com que se começaram a identificar e ao ‘sentir’ do Instituto,

pontuando a forma como se sentiam entre colegas, como vivenciavam o

espaço da escola, a relação com os professores e o processo pedagógico, a

forma “como estávamos a aprender coisas novas”;

Diana refere que, apesar de reconhecer algumas lacunas na formação inicial,

nomeadamente no que diz respeito à metodologia, a formação lhe «abriu os

olhos» para muita coisa:

“Fiquei um pouco assustada, porque era tudo novidade…acabei por ficar porque comecei a gostar e era um desafio, uma curiosidade…para mim, tudo era novidade; assustava-me, mas era um assustar que depois me fazia ir mais além” (E AF15).

Cristina refere que, para a sua geração, esses anos de formação ficaram

marcados pela luta de transição para a licenciatura, guardando na memória a

coesão do grupo nessas lutas, as lideranças dos professores, as explicações

sobre o que estava em causa, a consciência da causa e da luta por uma causa.

Recorda ainda a riqueza dos estágios do ponto de vista das vivências

institucionais e das práticas profissionais;

Jaime fez parte da associação de estudantes e esteve ligado à Associação

Académica de Lisboa, à Rádio Cidade e à Comissão Nacional para a Obtenção

da Licenciatura. Este forte envolvimento no movimento associativo (e nos

órgãos de gestão do Instituto na qualidade de representante dos alunos) foi

expresso como um apelo à participação, num desafio descrito como ‘comum’

em torno daquilo que alunos, professores e profissionais pretendiam – a

qualificação da formação e o reconhecimento de grau académico. Menciona a

entrada de novos professores que vêm da Faculdade de Medicina e que

promovem tempos de uma interação maior, introduzem perspetivas muito mais

académicas do que os docentes que já estavam no Instituto e disseminam

literatura de serviço social de origem anglo-saxónica “que não punha «água

benta» em tudo” em contraponto aos autores francófonos e da América Latina

que já faziam parte do referencial teórico da formação. Jaime, refere o papel

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ativo dos alunos na crescente exigência que colocavam aos professores e que

contribuiu para a qualificação do ensino e para a obtenção do grau académico

numa escola que adjetiva como «viva», «dinâmica», «participativa» e, em que:

“a relação de proximidade, debate, reflexão, discussão entre os profissionais, os professores e a comunidade local lhe proporcionaram uma vivência extraordinária em termos de competências profissionais e de maturidade pessoal” (Jaime/E JF19).

Outro enfoque destacado por este entrevistado é a dimensão prática obtida

através de estágios para intervir em realidades sociais que lhe diziam respeito

enquanto cidadão e profissional e para trabalhar dimensões da relação, de

comunicação e de ligação pessoal com o outro. Reconhece que a dimensão

mais importante na formação em serviço social é dada pelos estágios, não

porque a teoria não seja importante mas porque, segundo ele, “são os estágios

que nos estruturam como profissionais, nos permitem uma aprendizagem em

situação e a aprendizagem de saberes práticos” (E JF19).

A experiência de participação ativa no meio académico de Lisboa, proporciona-

lhe “uma descoberta e uma surpresa” ao tomar consciência do peso ideológico

que existia sobre o serviço social, pois eram vistos pelos estudantes de outras

formações como “aqueles que poderiam provocar a rebelião, ou seja, levar os

sujeitos das camadas mais desprotegidas a ter uma influência nefasta sobre o

país organizado e sobre os modelos de organização do país” (Jaime/E JF19).

Do ponto de vista das suas aprendizagens ao longo da vida Jaime, destaca

alguns aspetos que na sua trajetória profissional têm sido marcantes:

a formação curricular de qualificação, inicial e pós-graduada, do

ponto de vista de fornecer um método, uma disciplina, um rigor,

uma coerência científica e uma linguagem comum dentro da área

em que estamos a trabalhar e a intervir;

o trabalho de equipa, sobretudo na sua dimensão reflexiva e de

sistematização da prática;

a investigação, ou seja, o tentar organizar trabalhos de pesquisa

“o pensar e investigar um objeto que é de intervenção pura e dar-

lhe a outra dimensão de ser um objeto de investigação”. Neste

aspeto, Jaime refere que é um exercício «duro» mas «muito

interessante em termos de descoberta»;

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a ‘multi’ e interdisciplinaridade, que Jaime refere como uma das

práticas que lhe tem dado muita satisfação e também muitos

contributos em termos de aprendizagem.

“Eu costumo dizer que quando acabo qualquer trabalho de investigação, fico mais inseguro…do ponto de vista do saber, do conhecimento, por que fico com a sensação de que sabia muito pouco, quando anteriormente estava convencido que sabia tanto”(Jaime/ E JF19)

a ‘comunicação em público’ que, na sua perspetiva é um

exercício imprescindível de exposição e explicitação, que treina

competências, que valoriza e ajuda a centrar o profissional no que

é importante e que evita a «banalização do estatuto profissional»;

a transdisciplinaridade, que Jaime pontua como “o confronto com

realidades, línguas e formas de pensar diferentes…o confronto

com o «estrangeiro»” a que atribui o fortalecimento e

enriquecimento profissional, do ponto de vista da sua segurança,

autoestima e confiança - “mesmo que, muitas vezes, aquilo que

ouvimos não é mais do que aquilo que fazemos”, isso dá reforço

e segurança ao profissional;

a criatividade e a inovação, que reconhece ser dificultada pelos

contextos organizacionais portugueses e pelos próprios

profissionais que estão com funções de coordenação ou chefia (e

que, por vezes, têm um discurso banalizante do género “isso é lá

na faculdade, isso é só para terem o título por que a prática é

outra”. Compara com o discurso de jovens profissionais a exercer

noutros países e que lhe dizem:

“…a responsabilidade e a autonomia são nossas. Aquilo que a minha chefe quer é que eu lhe mostre coisas novas, que eu lhe mostre como é que eu faço o meu trabalho e que lhe explique como é que consegui resolver um caso que era difícil, …que é para esse conhecimento fazer parte da equipa”(Jaime/E JF19).

Irene, sobre o seu processo de aprendizagem profissional, refere

inequivocamente que “isto só se aprende na prática”. Argumenta que os livros

são muito importantes, mas não dão a bagagem para tudo e que é mesmo

através do trabalho efetivo que encontra resposta às suas dificuldades. Neste

processo de aprendizagem identifica colegas a quem foi «beber a sabedoria» e

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diz-se «muito abençoada» por ter estas colegas, identificando os seus

primeiros anos de trabalho como a altura em que mais se sentiu a aprender

porque foi nessa altura que se fez imensa coisa pela localidade:

“Aprendi muito e conheci imensas pessoas que me ensinaram muito, foi aí nessa altura que me formei, sabes?… Éramos menos assistentes sociais, mas havia uma grande união e constituíamos uma rede, havia menos burocracia…e menos política partidária – aprendi muito”(Irene/ E IS11)

Menciona a importância da formação inicial e que, ou as pessoas se identificam

com o curso ou então desistem, ou as pessoas se moldam à profissão ou vão

para uma área mais ‘fresca’ com a qual se identificam, porque há aquelas

áreas de trabalho mais tradicionais e compartimentadas do que a sua. Neste

âmbito, reconhece que o curso lhe proporcionou uma preparação, uma

dimensão humana e um amadurecimento através dos estágios que, se calhar

se perdeu com o fecho do ISSSL, com o processo de Bolonha e com a

proliferação de cursos e entidades formadoras; até porque entende que as

pessoas da nova geração já não vão tanto para este curso por opção, vão

“porque tem de ser” e como alternativa a outro curso no qual não conseguiram

entrar. Argumenta que é fundamental “a postura e a formação de base” que

cada um leva para o curso e que depois “se projeta e se desenvolve, durante o

curso”.

Comparando a sua formação com a da geração mais nova, refere que “sabem

pouco ao que vão” e têm menos contacto com os contextos reais e atribui a

estas diferenças a diminuição da aprendizagem prática e da maturidade de

atitudes que os estágios permitiam. Irene insiste que o curso pode estar

integrado numa qualquer universidade mas tem de fomentar “um certo saber

estar muito próprio e um saber mobilizar os conhecimentos, saber misturar”,

justificando que é no âmbito multidisciplinar que se aprende com os outros mas

que é no contacto direto com as populações e com os contextos de intervenção

que se aprende a lidar com os problemas e com os outros profissionais, não é

academicamente. O conhecimento válido, para Irene, é o que resulta do

conhecimento do local e de conseguir passar informações e mobilizar recursos.

Filipa refere que aprendeu no curso a abertura a outros saberes e que sempre

foi buscar informação a várias fontes, fossem ou não de Serviço Social e nunca

se preocupou em perceber se as dúvidas que tinha eram respondidas pelo

serviço social, ou não: “sempre que tive dúvidas ou quando me faltavam

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ferramentas para intervir da melhor forma, fui buscar esses saberes onde foi

preciso” (Filipa/ E AR12). Acrescenta:

“Uma das grandes vantagens do social é estar tudo ligado, como na vida, e

é a grande sorte que nós temos, porque a cabeça abre-se para as várias ciências disciplinares e isso dá-nos uma visão abrangente” (E AR12)

Estes atores / autores poderiam fazer parte de uma perspetiva que tende a

considerar as profissões como “grupos específicos de trabalhadores,

pertencentes às classes médias, que partilham, em graus diferenciados,

crenças comuns e que se envolvem de diversas formas, em ações coletivas

que visam estabelecer o monopólio sobre o mercado para assim melhorar o

seu estatuto social” (Dubar e Tripier, 1999:113). Assim, a perspetiva designada

por estes autores de «novas teorias das profissões» e que MacDonough (1999)

designa de «teorias neo-weberianas» realiza uma reflexão critica sobre os

contributos da teoria funcionalista, propondo a reinvenção do debate em torno

do profissionalismo, agora alargado a uma nova dimensão que é a do poder: o

poder profissional, económico, social e político dos diferentes grupos

profissionais.

Neste perfil de profissionais com trajetórias académicas e profissionais

estabilizadas como nenhum outro, as questões do poder colocam-se com

bastante acuidade. Partindo da centralidade do poder para a análise das

profissões, o contributo de Larson decorre da importância que atribui ao projeto

profissional que, enquanto projeto coletivo, se caracteriza por ganhar ‘status’

através do trabalho, o que se traduz num “processo histórico através do qual

certos grupos profissionais procuram estabelecer um monopólio sobre um

segmento específico do mercado de trabalho, fazendo reconhecer a sua

«expertise» pelo público com a ajuda do Estado” (Dubar e Tripier, 1999:130) - o

que está dependente da existência de um mercado estável.

Como já referi e, partindo da constatação histórica de que não existe

estabilidade na definição das fronteiras entre as diversas áreas profissionais,

Abbott (1988) centra a sua reflexão em torno da análise dos mecanismos de

concorrência pelo monopólio jurisdicional de uma dada competência, partindo

do caracter contingencial dessas competências que são objeto de disputa entre

grupos profissionais.

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Nas narrativas dos profissionais deste perfil são identificados trechos de

argumentação sobre a competição pelo ‘monopólio jurisdicional’ desde as

posições mais corporativistas, às posições que advogam uma cooperação,

mais ou menos idealizada. Abbott (1988) propõe uma visão sistémica assente

na análise de três dimensões para compreender as razões pelas quais um

dado grupo consegue triunfar na competição entre profissões:

i) a natureza do trabalho (em constante mudança, quer por imperativos

naturais ou tecnológicos, quer por imperativos subjetivos, impostos

culturalmente);

ii) as fontes de mudança no interior do grupo profissional (pressupondo

que os grupos profissionais são atravessados por diferenciações e

estratificações de natureza diversa);

iii) as fontes de mudança no exterior do grupo profissional (de entre

elas, Abbott destaca a evolução tecnológica, o crescimento da

burocracia, o novo papel dos ‘media’ e, em particular, as mudanças

na estrutura do conhecimento profissional, nomeadamente o

conhecimento produzido no meio académico).

Esta visão sistémica aplicada ao Serviço Social, consubstancia que as

mudanças no exterior e no interior do grupo profissional, implicam mutações na

natureza do trabalho para as quais este perfil dos primeiros «doutores» parece

simultaneamente melhor preparado e mais resistente.

Os «mais novos»

Mantendo o interesse por recolher, em cada perfil e em cada resposta, os

significados a que os autores associam a escolha da sua formação inicial

selecionei os seguintes argumentos no material narrativo recolhido:

Para Sofia foi uma escolha precoce (no decurso do ensino secundário)

motivada pela vontade e pelo gosto de “estar atenta aos outros” e

reforçada a partir de experiências de voluntariado social nas férias

escolares. A opção por Política Social na faculdade pública foi apenas

“por causa do dinheiro que não tinha, não queria pesar no orçamento

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familiar e a escolher outra formação seria Serviço Social. Não foi, porque

o Instituto era particular…”;

Para Sílvia, o Serviço Social foi uma “descoberta acidental”, com a

perceção de que o que influencia as suas escolhas não é

exclusivamente racional.

A sua primeira opção foi por Sociologia (não sabe explicar bem porquê) e a

segunda por Psicologia, mas não conseguiu ficar colocada em Coimbra. Entrou

em Sociologia em Évora e podia ter entrado em Psicologia no Porto, mas não

quis sair da sua cidade, nem afastar-se de uma relação amorosa e foi essa

conjugação de fatores que a afastou das primeiras opções. Entretanto,

procurou alternativas e alguém lhe falou no Serviço Social, uma prima afastada

estava no curso e sugeriram-lhe que “tinha a ver” com o que queria. Descreve

que, apesar de ter sido uma escolha acidental, preencheu o que pretendia e

ultrapassou em larga medida o interesse que os outros planos de estudos

curriculares lhe tinham despertado.

Não havia Serviço Social na Universidade pública e ficou no Instituto Superior

de Serviço Social de Coimbra por escolha. Diz que nunca a motivaram razões

de «boa samaritana», de «ajudar» ou de «fazer o bem», nem tão pouco

motivações religiosas; a sua ideia era tentar «mudar algo» - o que reconhece

ser necessariamente, uma ideia vaga. A sua narrativa, em termos de ciclo de

vida, começa na adolescência (dizendo que foi uma adolescente responsável

mas suficientemente «fora dos trilhos» para se aventurar por «estéticas

alternativas às tidas por dominantes» e pontua: i) a importância do percurso

escolar no ensino secundário, com o gosto por Filosofia e História e com a

excelência dos respetivos professores; ii) o acesso a culturas alternativas e às

tribos urbanas de Coimbra dos anos 80 e 90, em que as vivências nos cafés

jogaram um papel importante na sua formação cultural e pessoal,

nomeadamente o café «República» que era «habitado» por pessoas muito

diferentes entre si e lhe possibilitou a convivência com a diferença, uma

abertura de horizontes e a quebra de barreiras internas; iii) o interesse pela

literatura, pela música, pelo cinema e outras artes e, pela política (esclarecendo

que não foi no domínio partidário); iv) ter amigos que são pessoas criativas

“com escolhas de vida menos óbvias” e que pensam “outside the box” o que

considera estruturante para si. Desta narrativa ressalta ainda a sua motivação

Page 405: As formigas e os carreiros

405

por “uma sociedade justa” e a construção de um “sentido de justiça social e de

um olhar o outro em plena igualdade”.

Armando e Américo não mencionam as motivações da escolha para o

curso no ISSSL, mas Américo refere que foi a sua primeira escolha após

ter tomado a decisão de que se iria formar em Serviço Social (ainda

apanhou o plano curricular de cinco anos pré-Bolonha).

Mafalda, proveniente de um contexto familiar privilegiado e muito

protegido, entrou no curso da Universidade Católica com dezassete

anos e tinha uma motivação, que reconhece como muito infantil, de

«ajudar os mais pobres»;

Madalena, a mais nova, diz-se apaixonada pelo Serviço Social.

Residente numa cidade pequena do Oeste e com um percurso escolar

pouco entusiástico, considera que teve o seu «ponto de viragem» no

ensino secundário realizado numa escola profissional, no curso de

Animação sociocultural.

Considera que esse curso a despertou para a aprendizagem escolar (por ser

um ensino de experimentação, com um sistema modular e muito baseado em

trabalhos práticos) e atribui responsabilidades ao fantástico corpo de docentes

e ao facto da escola ser fora da sua zona de residência, o que contribuiu para

treinar a sua autonomia, responsabilidade e amadurecimento. Refere que foi

nessa altura que aumentou o seu interesse pelos «outros», o que acabou por

influenciar a escolha de prolongar os estudos e de seguir a profissão de

assistente social.

Na sua narrativa identifica como marcantes duas professoras dessa formação

profissional que eram assistentes sociais e que lhe deram uma visão fascinante

da profissão; foi também no contexto desta formação secundária que teve o

primeiro contacto com os contextos de intervenção e as realidades

profissionais. Madalena considera que esses momentos lhe mudaram a

perspetiva de vida e que começou aí a construir um ideal da profissão do tipo

«já sei o que quero ser quando for grande», reconhecendo que ainda hoje tem

marcas dessa época quer na visão que construiu sobre certas problemáticas e

formas de intervir, quer na manutenção de preconceitos com intervenções

sociais com as quais não se identifica.

Page 406: As formigas e os carreiros

406

Apesar da diversidade de motivações expressas neste e nos outros perfis, não

deixa de ser possível identificar algum grau de compromisso empático com «os

outros» e com a «mudança» entendida de muitas formas e feitios.

Sobre o que cada um/a destaca como mais importante na sua formação inicial,

sob o ponto de vista das suas aprendizagens, temos situações, atuantes,

argumentos e significações novamente diversas:

Madalena, que se formou no ISSSL, já com um plano curricular de

transição face ao Tratado de Bolonha, fala da sua inquietação sobre se

teria ou não «vocação» e que, mesmo antes da entrada e durante a

faculdade o seu espírito não ficou tranquilo.

“Isto para dizer que a formação inicial foi importante, não só pelo conteúdo

teórico que deram/dão suporte à minha prática e aprendizagem contínua, mas também pelo equilíbrio conseguido entre as aprendizagens individual e coletiva e onde, o papel de reflexão do grupo e da gestão relacional com colegas e professores, foram fundamentais” (Q MM16).

Durante o curso, o que mais lhe agradou foram: a informalidade dos

contextos de ensino/aprendizagem, a possibilidade de ser confrontada

com diferentes teorias, metodologias e práticas e de poder experimentar

momentos de reflexão/questionamento e alguns professores que lhe

alimentaram o fascínio pela profissão. Na sua narrativa exemplifica

várias «lições» que aprendeu durante a formação, não tanto por aquilo

que lhe ensinaram, mas sobretudo por aquilo que a fizeram pensar.

Américo considera que, no global, a qualidade da formação foi positiva

e destaca como marcante a oportunidade de conviver com professores,

que também exerciam na prática, quer fossem assistentes sociais ou de

outras profissões. Refere que, foi através dessas referências que

relativizou a carga teórica (que, em certas alturas do curso, dificultou a

perceção do que seria a profissão de Assistente Social) e se tornou

possível «fazer a ponte» com as realidades e os contextos de exercício

profissional. Também menciona os profissionais experientes que

encontrou nos locais de estágio e o seu papel importante no seu

processo de formação - este conjunto de referências permitiram-lhe

sentir-se “relativamente seguro” (da metodologia de intervenção, dos

aspetos teóricos e dos valores do Serviço Social) quando ingressou no

mercado de trabalho.

Page 407: As formigas e os carreiros

407

Mafalda que fez a sua formação, muito nova (dos 17 aos 21 anos) na

Universidade Católica e que, na sua narrativa, menciona o facto de ser

proveniente de um contexto de vida muito protegido (dentro de um meio

familiar e social de origem privilegiada) salienta que, apesar da

aprendizagem teórica não a ter marcado muito, existiram dois aspetos

significativos na sua formação inicial onde, de facto, entende que

aprendeu: o contacto com algumas pessoas (professores e orientador

de estágio) cujos testemunhos mudaram a sua perspetiva inicial e as

atividades de voluntariado que realizou em Portugal e em África, e que

lhe permitiram experiências de vida e de formação ricas e variadas, mas

que também consolidaram o pouco entusiasmo pelos estudos

académicos.

Armando, fez a sua formação no ISSSL e é o único entrevistado que se

designa como Técnico Superior de Serviço Social, referindo que dá

grande valor a esta designação “enquanto esfera de ação profissional

técnica e não como Assistente Social”.

Argumenta que a licenciatura lhe permitiu: i) um conjunto de conhecimentos e

experiências muito válidos; ii) acesso a abordagens diferentes; iii) uma crítica e

autocritica constantes sobre o exercício profissional e sobre as fronteiras com

os vários conceitos de trabalho socia e também permitiu um estado de reflexão

contínua; iv) construir uma opinião, um sentido, para os diferentes conceitos

abordados nos espaços de formação; v) permitiu um crescimento pessoal e a

aquisição de instrumentos técnicos e metodológicos para enfrentar as questões

sociais; vi) saber questionar o ‘social’ em diversas perspetivas e noções

teórico-práticas.

Armando sublinha ainda a importância de alguns desses professores, a quem

reconhece mérito e por quem tem afeto, que lhe passaram “uma certa imagem

do professor/formador como aquele que faz a mediação entre os

conhecimentos retidos nos livros (ou em diferentes documentos) …e a nossa

disponibilidade para aprender” e que conseguiram despertar nele “verdadeiros

sentimentos de aprendizagem, comunicação e reflexão sobre o trabalho social,

seja na vertente de trajetória profissional, seja no aspeto de conhecimentos

para ‘saber, querer e ser’ um agente de mudança”.

Page 408: As formigas e os carreiros

408

Sílvia, que fez a sua formação em Coimbra, no ISSSC e entrou no ano

da aprovação da licenciatura (1990) refere na sua narrativa os seguintes

aspetos significativos e marcantes:

i) o terceiro ano do curso (refere que os primeiros foram muito introdutórios e

acessíveis), que considera ter sido estruturante relativamente à formação em

Serviço Social, por que teve professores com uma enorme paixão pelas suas

áreas de ensino e realizou trabalhos de grupo que a obrigaram a um grande

aprofundamento sobre determinadas problemáticas; ii) o estágio no Hospital

Psiquiátrico ‘Sobral Cid’, que criou nela “o bichinho da saúde mental”. Descreve

este estágio como um período marcante, que lhe permitiu uma experiência

muito rica, à qual ainda hoje se reporta; onde aprendeu “o real sentido do

trabalho de equipa”, onde fundeou as suas pertenças epistemológicas e

metodológicas à “intervenção sistémica e à intervenção em rede” e onde

trabalhou na perspetiva da desinstitucionalização das pessoas com patologias

crónicas graves; iii) o 5º ano do curso (dedicado à investigação), onde

desenvolveu um trabalho em equipa sobre aspetos psicossociais associados à

velhice e à institucionalização e em que refere ter aprendido imenso a nível

metodológico, sobretudo pela utilização das metodologias quantitativas; iv) a

sua atividade como membro da Associação de Estudantes e a sua participação

em representação dos alunos na Direção e no Conselho Pedagógico do

Instituto (atividade que iniciou no final do primeiro ano e em que se envolve,

nomeadamente, na contestação contra a passagem para a Fundação Bissaya

Barreto, é descrita como “muito marcante enquanto experiência de participação

democrática”.

Sofia, que fez a sua formação em Lisboa, no ISCSP (Política Social) diz

que o curso foi uma deceção e que percebeu que era apenas e só “um

canudo”.

Na sua narrativa refere o que gosto pelos dois primeiros anos (por que

identificou-se com o conceito de Universidade e ganhou uma visão mais

alargada do Mundo e dos saberes) e a deceção no terceiro ano do curso,

quando a opção era pela Política Social (porque as cadeiras eram

completamente obsoletas e, salvo raras exceções, as disciplinas eram

desinteressantes e lecionadas de forma igualmente desinteressante). Destaca

como marcantes, apenas dois professores, argumentando que, para além de

Page 409: As formigas e os carreiros

409

terem o dom da comunicação, entregavam-se à causa de ser

professor/formador e eram pessoas que se preocupavam com os alunos e com

o seu futuro profissional. Em relação ao estágio que realizou num Colégio e

num Lar da Casa Pia de Lisboa, Sofia refere que:

“…foi uma coisa um pouco estranha e desorientada. Foi muito bom em termos relacionais e afetivos (com as educandas internas no Lar) mas, em termos profissionais, ou pré-profissionais, acho que não me deu absolutamente nada…lembro-me de ter pensado que tudo aquilo era muito estranho: a falta de organização, a falta de parâmetros de avaliação e de objetivos a atingir”.

Em relação à orientadora, que era Assistente Social, Sofia diz ter criado uma

boa relação em termos pessoais, mas que em termos profissionais sentia da

parte dela “uma certa relutância” em a orientar por ela ser de Política Social

“quase uma cerimónia versus… um mal-estar quase, mas nunca foi falado

entre nós”.

Estas diferentes pontuações de «ingredientes» formadores acentuam a

importância que é atribuída neste estudo não apenas ao que as pessoas

«fazem», mas sobretudo ao que elas «dizem fazer» e ao que dizem que as

levou a «fazer o que fizeram». Se é verdade que muita da desconfiança face

ao subjetivismo nos nossos conceitos explicativos tem a ver com a alegada

discrepância entre o que as pessoas «dizem» e o que elas realmente «fazem»,

esta narrativa diz respeito ao que as pessoas «dizem» ser os seus mundos e o

que neles fizeram. Esta preocupação com a «ação», em especial com a «ação

situada» em contextos culturais e na interação mútua dos participantes procura

que o Serviço Social deixe de ser neutro quanto ao seu significado e assuma a

necessidade de ser explicado, em vez de fornecer explicações.

Jerome S. Bruner (1977) foi um psicólogo que se consagrou ao estudo do

desenvolvimento cognitivo e da inteligência na sua relação com a memória, o

pensamento e a linguagem e que concebeu o papel ativo do organismo no

controlo do ambiente, bem como o caracter seletivo e estratégico da

aprendizagem.

“Cada geração dá, na sua época, uma forma diferente às aspirações que moldam a educação. Aquilo que parece identificar a nossa geração é o renovar da preocupação pela qualidade e pelos objetivos intelectuais da educação sem, no entanto, abandonar o ideal de que a educação deve servir de meio para preparar cidadãos equilibrados para a democracia” (Bruner, 1977:27).

Page 410: As formigas e os carreiros

410

Na sua obra sobre “O processo da Educação” detalha quatro temas: i) O papel

da estrutura na aprendizagem e de como se pode tornar central para o ensino

uma compreensão dos princípios e das ideias fundamentais. O requisito

mínimo é o de fornecer um conhecimento da estrutura fundamental das

disciplinas a ensinar, de modo a que o conhecimento possa ser utilizado e

aplicado a problemas e acontecimentos que cada um encontra fora da sala de

aula; ii) A disposição para a aprendizagem advoga o «currículo em espiral» que

retorna a si próprio nos níveis mais avançados; iii) A natureza da intuição,

encarada como técnica intelectual de chegar a formulações experimentais mas

plausíveis, sem passar pelas fases analíticas que validariam essas formulações

ou invalidariam as conclusões; iv) O desejo de aprender e a maneira de o

estimular, onde são destacados o clima em que a aprendizagem acontece e o

papel principal dos professores.

Esta passagem por este autor e, em particular por esta obra, ajudou a

consolidar o entendimento de que o fluxo de conhecimento em Serviço Social

que cada um/a partilha não permite perder de vista a natureza cultural da

aquisição desse conhecimento e a sua perspetiva distributiva. Fazendo um

novo paralelo com a psicologia social, mobilizo Kenneth Gergen (1973) na

qualidade de um dos primeiros psicólogos sociais a ver como esta ‘disciplina’

se poderia transformar mediante a adoção de uma conceção interpretativista,

construtivista e “distributiva” dos fenómenos psicológicos a alguns dos seus

primeiros trabalhos visaram especificamente a construção de «si mesmo».

Neles começou por mostrar como é que a autoestima e o autoconceito das

pessoas se transformavam em reação aos tipos de pessoas com que

conviviam e mudavam ainda mais em resposta às observações positivas ou

negativas que as outras pessoas lhes faziam. Mesmo se lhes pedissem apenas

para representar um determinado papel público num grupo, a sua autoimagem

mudava de forma a ajustar-se a esse papel. De fato, na presença de pessoas

mais velhas ou que pareciam mais poderosas, as pessoas referiam-se ao “si

mesmo” de forma bastante mais atenuada e diferente do modo de se verem a

si próprias quando na presença de gente mais nova ou menos estimada.

Ademais Gergen sublinhou que estes «resultados» não podiam ser

generalizados par além das ocasiões históricas em que foram obtidos.

Page 411: As formigas e os carreiros

411

Mas acrescentou que há duas generalidades que importa ter em conta: a

primeira é a reflexividade humana, i.e., a nossa capacidade de voltar ao

passado e de alterar o passado à luz do presente e a segunda é a capacidade

intelectual de «visionar alternativas», i.e., de conceber outras maneiras de ser,

de agir e de lutar. O que parece providencial para ser recolocado pelos

assistentes sociais no debate crescente sobre “si mesmos”.

Esta breve panorâmica7 sobre a diversidade de representações das formações

iniciais e dos significados que os atores/autores da profissão lhes atribuem

marca, de diferentes formas os seus percursos de aprendizagem e de

construção identitária. Contudo, as opiniões emitidas podem ser entendidas

como uma forma acrítica de adesão à visão técnica instrumental da educação,

à ideologia meritocrática, ao discurso sobre a gestão individual de

competências e ao mito da modernização e do sucesso individual. Cruzando

com a reflexão sobre a “Socialização Escolar e Profissional dos Jovens:

Projetos, Estratégias e Representações”, Natália Alves diz:

“As políticas educativas levadas a cabo na última década em Portugal não ficaram imunes à difusão das orientações de matriz neoliberal que têm estado na origem de algumas reformas dos sistemas educativos que, ancorados numa racionalidade instrumental, elegem a «modernização», a «qualidade», a «eficácia» e a «autonomia» como os elementos estruturantes de um retórica discursiva que procura ocultar as suas dimensões ideológicas através da exaltação do princípio do pragmatismo e de uma inevitável convergência educativa a nível europeu” (2006:8).

Esta autora refere ainda que a tensão entre os discursos da modernização e da

igualdade de oportunidades agudiza-se com a «reinvenção» do conceito de

meritocracia que faz depender a resolução dos problemas sociais da

responsabilização individual e da posse de competências adequadas como

entre outras, a «autonomia», a «flexibilidade» e a «adaptação». E acrescenta

que,

“…as políticas educativas das décadas de 80 e 90 em Portugal procuraram responder à crise da escola de massas através da produção de discursos educativos que na defesa de um «bem comum» recorrem, alternadamente, aos princípios de serviço público e do mercado”.

7 Recorda-se que a recolha destas narrativas fez recurso a instrumentos diferentes, sendo que aos

licenciados em Serviço Social foi proposto um questionário com perguntas abertas, que quatro deles responderam por escrito e que uma respondeu com gravação em áudio. A licenciada em Política Social foi entrevistada com uma entrevista semidiretiva de inspiração biográfica, conforme os atores dos perfis anteriores.

Page 412: As formigas e os carreiros

412

Segundo a mesma referência, as tensões permanentes entre estas duas

matrizes discursivas, a «retórica da igualdade» de oportunidades e dos valores

humanistas e o «discurso europeu» da racionalidade, têm contribuído para a

elevada ambiguidade das reformas do sistema educativo português. Na

primeira metade do século passado, a «escola das certezas» corresponde à

escola que pode funcionar como uma instituição que «fabricava» cidadãos

conformes com um modelo cívico preestabelecido; assumidamente elitista, não

estava comprometida com a produção de injustiças sociais e favorecia

percursos de mobilidade social ascendente, em função do mérito.

No final dos anos 60, em Portugal, assiste-se de forma tardia e contraditória à

transição para a «escola de massas» com a expansão dos sistemas escolares

e a democratização do acesso, associadas a uma perspetiva otimista que

assinala a passagem para a «escola das promessas: uma promessa de

desenvolvimento, uma promessa de mobilidade social e uma promessa de

mais igualdade”. A partir de meados dos anos 70, a chamada «crise da

escola»8 corresponde a um défice de legitimidade e de sentido que é

indissociável das mutações sofridas pela instituição escolar ao longo do século

XX, passando progressivamente a uma procura «desencantada» que marca a

entrada da escola num período de incertezas, no início dos anos 80. Durante

os anos 90, a raridade dos empregos articula-se com a inflação dos diplomas

tornando-os «simultaneamente menos rentáveis e mais necessários do que

nunca» - de que os percursos de aprendizagem da profissão deste perfil de

assistentes sociais «mais novos» é uma boa ilustração.

Rui Canário em publicação que organizou sobre “Educação Popular e

Movimentos Sociais” menciona que também no campo da educação pode

afirmar-se que “mais do que uma crise do capitalismo, vivemos uma crise da

capacidade de criticar o capitalismo” (2007:31) e sugere algumas questões em

aberto que representam domínios de investigação e pesquisa: i) “Os problemas

da educação numa perspetiva nacional” constrangem a procura de soluções

autónomas e emancipatórias em movimentos sociais internacionalistas; ii) “A

8Cf. Canário (2005:61) sobre a distinção entre o conceito de crise e o de mutação, argumentando que o

conceito de crise remete para problemas de natureza conjuntural e que o conceito de mutação remete

para mudanças e problemas de caráter estrutural.

Page 413: As formigas e os carreiros

413

naturalização do Estado”, encarado como entidade neutra, situada acima das

classes sociais e defensora do bem comum embate com as transformações

que, num quadro de integração económica supranacional, conduzem a uma

transferência de poderes do Estado-Nação e suas instituições formais, para um

nível de Estado difuso, sem fronteiras políticas, nem geográficas, cujo poder

reside na esfera económica; iii) “O trabalho da crítica ter como base conceitos

mal esclarecidos ou equívocos”, como são o caso dos conceitos de «mercado»

e «vaga neoliberal». A crítica centrada nestes conceitos, segundo o autor, só

pode ser imprecisa e dissimular um desejo nostálgico de regresso ao

idealizado “Estado-providência”.

5.3. Sobre a importância de prosseguir com uma

análise temática

A análise estrutural da narrativa baseia-se no pressuposto defendido pelos

linguistas de que a linguagem é entendida como discurso e feita de uma

hierarquia de níveis – o das funções, o das ações e o da narração. A

configuração específica que esta hierarquia assume exprime a lógica da

narrativa mas, a análise das significações coloca-nos no plano

fenomenológico da compreensão do sentido (Alves, 2007). Segundo a

mesma fonte, as «unidades de significação» construídas a partir das

estruturas relacionais que são o que Demazière e Dubar (1997) designam

de «categorias», i.e., as palavras que os entrevistados utilizam para narrar

as suas histórias e os significados que lhes atribuem.

Para ter acesso ao conhecimento do universo de crenças e do mundo

socioprofissional dos entrevistados, utilizei as valorizações que atribuíram

às categorias-chave e as relações que entre elas estabeleceram nas suas

narrativas. Recordo que a etapa anterior foi marcada pela submersão

profunda e sucessiva no «corpus» constituído pelas narrativas, onde

procurei realizar o agrupamento por agregados, numa construção ainda

grosseira e provisória, que resultou na identificação de quatro perfis

Page 414: As formigas e os carreiros

414

profissionais marcados por uma estratificação cronológica – os «seniores»,

os do «tempo da luta», os «primeiros doutores» e os «mais novos».

O modelo tipológico, como refere Schnapper (2000:157), tem por objetivo a

classificação das estruturas narrativas e o «método dos agregados» permite

o agrupamento por agregados que constitui uma classificação e não uma

tipologia. Esta primeira abordagem exploratória e descritiva, privilegia a

coerência individual dos atores / autores e tenta explorar as suas

identidades narrativas. Na rescrição das narrativas originais procura-se

selecionar os elementos fundamentais de cada perfil e alcançar um

equilíbrio das caracterizações.

A utilização de critérios cronológicos permitiu estabelecer «chaves de

leitura» que resultaram na possibilidade de agrupar os atores da profissão

em perfis profissionais, utilizados simultaneamente para identificar

diferentes percursos profissionais e biográficos e diversos percursos de

aprendizagem da profissão. Contudo, os critérios cronológicos que

unificaram estes «perfis» não são suficientes para realizar o esboço de uma

tipologia de formas identitárias, pelo que se avançará para uma análise

temática.

Page 415: As formigas e os carreiros

415

Capítulo 6 - Formas identitárias: esboço de uma

tipologia

Estudar as formas identitárias requer compreender o estatuto da palavra

enquanto veículo de sentido e analisar as “produções narrativas como

expressão das transações que constituem o cerne dos processos identitários”

(Dubar e Demazière, 1997:305). Como Dubar defende, as identidades são o

produto de uma dupla transação entre uma identidade biográfica e uma

identidade relacional, atribuída no quadro mutável dos sistemas de ação em

que as pessoas se inscrevem.

Nesta «dupla transação» entendem-se os processos de construção identitária

como necessariamente dinâmicos, sendo as formas identitárias também

mutáveis e sujeitas a negociações e reconfigurações entre a identidade para si

e a identidade para o outro – procurando, num processo inacabado, dar sentido

ao mundo através da linguagem enquanto instrumento de mediação (Ricoeur,

1986:85).

As trajetórias profissionais e biográficas e os percursos de aprendizagem dos

Assistentes Sociais foram abordados no capítulo anterior e permitiram uma

primeira estratificação que resultou na identificação de quatro perfis

profissionais. Não obstante ter sido privilegiada uma dimensão de análise

atenta às vozes dos atores da profissão, ao processo de socialização

profissional e às relações sociais, concluiu-se sobre a insuficiência da análise

cronológica para chegar à categorização de formas identitárias.

Autores como Dubar e Demazière (1997) pretendem que o trabalho de

construção de tipologias é o de ordenar os materiais recolhidos, classifica-los

segundo critérios pertinentes e encontrar variáveis escondidas que explicam as

variações das diferentes dimensões analisadas.

Nesta abordagem, mobiliza-se um conceito de identidade (Berger e Luckman,

1971) não constante, produto de sucessivas socializações e variável, conforme

os contextos sociais e os significados atribuídos. Considera-se que a

construção da identidade é realizada segundo as trajetórias que ocorrem

através de sucessivas negociações com os outros, podendo estes atribuir

identidades não coincidentes com o que o próprio sujeito constrói e personifica

(Dubar, 1997a). Desta forma, a construção identitária refere-se a um conjunto

Page 416: As formigas e os carreiros

416

de aspetos da imagem que a pessoa tem de si própria, a qual tem forte

influência dos contextos sociais onde interagiu e, onde as representações

sociais são construídas socialmente a partir de fenómenos de interação e

comunicação (Berger e Luckman, 1971).

Neste capítulo, realiza-se um esboço de uma tipologia das formas identitárias,

contemplando no plano fenomenológico (Ricoeur, 1986:87) a análise das

significações e a compreensão de sentido das formas identitárias que @s

assistentes foram construindo ao longo das suas trajetórias de vida e de

profissão. Esta abordagem será cruzada com a identificação de percursos de

aprendizagem que tentam identificar alguns dos aspetos que estruturam as

narrativas dos assistentes sociais colaborantes neste estudo.

O capítulo apresenta-se estruturado em quatro pontos, que correspondem a

outros tantos esboços de formas identitárias – a utilização de «esboços»

prende-se com a noção de que foram identificadas sobretudo dinâmicas,

tendências e tensões, sem ideias «acabadas» ou qualquer intenção de

futurologia. Assim, os quatro esboços de formas identitárias são

respetivamente:

i) Os «Ecossistemas Protegidos» numa pedagogia do «modelo»

marcada por uma socialização profissional forte, uma visão da

Profissão como declaração de «dever ser» que privilegia uma

identidade profissional com um compromisso coletivo, num discurso

pontuado por «nós» e comprometida com a autonomia profissional e

os públicos.

É uma forma identitária próxima à que Dubar designou de

«identidade estável ameaçada» (1997a) e onde também falamos, do

ponto de vista dos percursos de aprendizagem profissional, da

relação dos/as profissionais com o sujeito coletivo.

ii) Os «Trilhos Seguros» têm uma componente importante de

socialização organizacional, uma visão da profissão como emprego,

como «função» e como «carreira», onde a posição profissional no

seio da organização e a classificação profissional assumem

protagonismo.

É uma forma identitária em que existe sobreposição entre a pessoa e

@ profissional, com alguma colagem a papéis organizacionais e a

Page 417: As formigas e os carreiros

417

‘zonas de conforto’ mais estereotipadas, com identificação de alguns

constrangimentos face às inovações exigidas pelos contextos

societais, organizacionais e/ou académicos – na terminologia de

Dubar (1997a) seria uma «identidade bloqueada».

Nesta forma identitária, damos destaque à relação com ‘o que se

sabe’ no processo de aprendizagem da profissão.

iii) «Abrir Caminhos» para uma profissão que se vai construindo e

interrogando (Quem somos e para onde vamos?) com uma forte

componente de referência à especialização profissional, aos projetos,

numa visão da profissão em desenvolvimento. Simultaneamente,

nesta forma identitária temos uma diluição de «fronteiras» das

«coutadas» do conhecimento disciplinar, uma porosidade que

permite a surpresa do «novo», do fenómeno total, do provisório e do

reversível, mas também da «competência» profissional em percursos

de qualificação reflexiva ao longo da vida – na terminologia de Dubar

(1997a) seria uma «identidade responsável pela sua promoção».

Nesta forma identitária, elegemos a relação de ‘quem se é’ com a

aprendizagem da profissão;

iv) «Inventar Carreiros» apresenta-se como uma possibilidade para

algumas pessoas licenciadas em Serviço Social que, num campo

profissional cada vez mais fluído e concorrencial, se mobilizam por

inventar novos conteúdos e formas para o exercício da profissão. Os

«carreiros» são construídos passo a passo, provisórios, provocando

pouca alteração na ‘paisagem’.

Do ponto de vista da aprendizagem profissional destaca-se a relação com a

incerteza e a heterogeneidade.

Estas pessoas podem ou não exercer a profissão, podem ou não sentir-se

assistentes sociais (sendo estes exercícios e estes significados mutáveis ao

longo do tempo e do espaço), relacionam-se de formas menos tradicionais com

a profissão e a sociedade e os seus «fios condutores» do exercício de

atividade e de compromisso ético e social, estão em redes de contato e são

feitos de compromissos que estão para além da profissão. Na tipologia de

Dubar (1997 a) esta forma identitária encontra correspondência na «identidade

autónoma e incerta».

Page 418: As formigas e os carreiros

418

Desafios da construção tipológica

A construção de uma tipologia baseia-se no conceito de ideal-tipo weberiano9 e

a passagem da classificação das estruturas narrativas para a elaboração de

ideais-tipo exige, por um lado, um exercício de abstração que permite o

transporte para outras populações e, por outro, a atenção ao “verdadeiro

significado” só possível a partir dos processos globais e estruturais em que as

narrativas se inscrevem (Schnapper, 2000).

Na perspetiva weberiana trata-se de uma construção teórica realizada a partir

dos casos particulares analisados para que se possam estabelecer relações e

para orientar o trabalho de interpretar as «realidades» e a ação, sendo esta

construção um dos procedimentos mais generalizados quer nas ciências

sociais quer nas ciências experimentais.

O «ideal-tipo» é definido como uma esquematização do objeto de pesquisa que

se obtém através da enfatização de uma ou de várias facetas determinantes da

realidade analisada e da ordenação de fenómenos em função de cada uma das

dimensões analíticas selecionadas. Um «ideal-tipo» é assim, uma proposta de

conceptualização simplificando e clarificando a realidade, propondo uma

“ordem inteligível” de compreensão da diversidade social.

A dificuldade de construir tipologias empíricas que traduzam a diversidade de

formas identitárias dos assistentes sociais implicou numa primeira fase, a

exploração de tipologias já construídas por diferentes investigadores, dos quais

se destaca Serge Paugam (1996) com uma tipologia das situações de pobreza,

Natália Alves (2007) com uma tipologia dos percursos de inserção profissional

e das formas identitárias dos jovens licenciados da Universidade de Lisboa e

António José Almeida (2012) com uma tipologia identitária dos profissionais de

Recursos Humanos, entre muitos outros.

Este interesse de investigadores de várias profissões e áreas do conhecimento

provavelmente não é indiferente ao decréscimo de importância das profissões,

9 O uso de tipologias ou ideais-tipo foi desenvolvido por Weber (1992) que os definia como ideais num sentido puramente lógico, distinto da noção de «dever ser» ou de «modelo». O ideal-tipo é um processo de construção

«lógica» sobre a realidade e não é um ideal no sentido de utopia ou da apreciação com base em juízos de valor.

Page 419: As formigas e os carreiros

419

por relação às mudanças ocorridas no sistema ocupacional das sociedades e

ao surgimento da noção de pós-profissionalismo, marcada pela perda da

exclusividade profissional, pela crescente segmentação do conhecimento

através da especialização, pela transformação dos mecanismos de controlo e

autonomia profissional, pela globalização da prestação de serviços

profissionais e pelo crescimento do uso das tecnologias no acesso às fontes de

informação. Nesta linha, a alteração da natureza do trabalho combinada com a

diminuição do emprego estatal e a globalização da atividade económica

constituem as condições para a emergência do pós-profissionalismo.

O Serviço Social partilha com as profissões mais tradicionais alguma «perda»

de legitimidade, procurando resistir a este processo com a argumentação que

só os profissionais com determinado nível de conhecimentos podem assegurar

desempenhos de qualidade e a proteção dos direitos dos cidadãos.

Num estudo recente que a Associação de Profissionais de Serviço Social

(2009) publicou sobre a profissão e os profissionais são identificados alguns

traços salientes da formação em Serviço Social em Portugal, nomeadamente:

“i) A formação superior em Serviço Social é uma realidade consolidada, reconhecida há quase meio século (1961); ii) o processo de ‘academização’ do Serviço Social em Portugal apresenta um caráter recente, depois de um processo tardio e complexo, como se evidencia na história da atribuição do nível universitário (1989) e na ausência de oferta de formação pública até 2000; iii) a oferta formativa atual é predominantemente universitária, com uma duração de sete semestres e ministrada em estabelecimentos de carater público; iv) as propostas formativas configuram um mosaico com tipificações diversas, quer quanto aos perfis das áreas de formação matriciais e da sua relação com o Serviço Social enquanto área científica predominante, quer quanto aos modelos de formação específica designadamente formação experiencial, quer ainda quanto à capacitação para a investigação e produção de conhecimento; v) a diversidade de propostas formativas não parece resultar tanto na afirmação de projetos concorrenciais de formação, em termos de conceção e perfis profissionais, mas de contingências associadas à constituição do mercado de ensino superior e à crise de financiamento do ensino superior público; vi) esta diversidade tão significativa, na ausência de tradição e de ‘Known how’ das novas escolas de formação de Assistentes Sociais em Portugal, configura o campo do ensino em Serviço Social, ao nível do 1º ciclo, como um domínio atravessado por fragilidades e riscos na qualidade da formação assegurada, exigindo uma atenção redobrada e a exigência de uma regulação básica da formação…“ (Ferreira e Hespanha:2009:23, 24).

No que respeita aos percursos formativos dos Assistentes Sociais foi

identificado nesta investigação, em particular nas narrativas d@s Assistentes

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420

Sociais, a importância da formação inicial, mas também o caráter contínuo da

formação, a múltipla proveniência das fontes de aprendizagem, a importância

dos contextos e da «atitude pessoal», da interação com os atores e da

reflexividade nessa aprendizagem.

Também as passagens da condição de estudante a trabalhador e de

trabalhador a profissional, foram entendidas como processos com muitas

variáveis, nem lineares nem sequenciais. Destaco ainda algumas dimensões

que se evidenciaram nas narrativas sobre os percursos de aprendizagem d@s

Assistentes Sociais: a aprendizagem contínua nos contextos organizacionais

de trabalho; a aprendizagem no processo de formação pós-

graduada/investigação/ensino; a aprendizagem com ‘colegas-referência’ e a

aprendizagem experiencial e reflexiva de toda a trajetória de vida.

Na tentativa de caracterizar as práticas de formação e de aprendizagem nas

narrativas que foram objeto de estudo e, a partir de alguns aspetos que são

comuns e outros que se diferenciam, foi possível identificar quatro tipologias

marcadas: i) pela relação de ‘quem se é’ com a aprendizagem da profissão; ii)

pela relação da aprendizagem da profissão com ‘o que já se sabe’; iii) pela

relação com o sujeito coletivo da profissão; iv) pela relação com a

heterogeneidade e a incerteza.

Estas dimensões são abertas a vários cruzamentos e combinações e a tensões

no campo profissional entre o centro e a periferia, entre a adoção de uma

matriz generalista ou de especialidade, entre compromissos com abordagens

de enfoques variáveis e muitas outras variantes onde, a opção de prosseguir a

formação contínua dentro ou fora do Serviço Social, entre posicionamentos de

maior ou menor sedução pelos poderes instituídos e pelo desempenho de

cargos hierárquicos, são parte das escolhas que os profissionais podem fazer.

Page 421: As formigas e os carreiros

421

6.1. “Ecossistemas protegidos”10

Esta metáfora permite a analogia com alguns contextos profissionais de

Serviço Social (cada vez mais raros), onde os respetivos profissionais ainda

podem exercer com uma forte pedagogia de modelo. Os 'ecossistemas' a que

nos referimos a propósito desta profissão são mais relacionais do que

geográficos e os seus 'habitantes' têm socializações profissionais fortes e uma

visão da profissão assente sobretudo no que 'deve ser', nos seus conteúdos

prescritos, mais próximos da identidade «de ofício».

A identidade profissional é tendencialmente forte e no discurso aparece franca

referência a «nós», numa idealização mais ou menos hegemónica de um

sujeito coletivo que se diferencia de outros e assume a sua legitimidade

'porque existe'. A autonomia situa-se entre o polo organizacional, dependendo

do lugar que o profissional ocupa na hierarquia, e o polo cliente, dependendo

do compromisso que estabelece com os públicos da sua intervenção. Os

profissionais que 'habitam' estes 'ecossistemas' tendem a privilegiar as

vertentes técnicas e científicas do seu desempenho.

Curiosamente neste ideal-tipo, as narrativas dos assistentes sociais

colaborantes aparecem com referências a setores (à Saúde, por exemplo), a

permanências institucionais longas (como nos casos dos «primeiros doutores»)

e/ou ao exercício da docência, quer em exclusividade, quer de forma

acumulada com o exercício profissional. É uma forma identitária com um

desenho que configura uma «identidade estável ameaçada» (Dubar, 1997a)

próxima à que o autor (2006) designa de «cultural» e que contem uma atenção

especial aos princípios, valores e normas que regem a profissionalidade.

10

No sentido comum desta designação, nomeadamente aquele que lhe é atribuído pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, Suíça, 2008),verifica-se que nomeia “espaços geográficos claramente definidos, reconhecidos, geridos através de meios legais ou outros meios eficazes, para atingir a conservação a longo prazo da natureza, em especial de ecossistemas associados a valores culturais”.

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- A relação dos profissionais com o ‘sujeito coletivo’

As formas como @s profissionais se relacionam com a profissão,enquanto

sujeito coletivo (do ponto de vista organizativo, estatutário e/ou deontológico)

diz bastante sobre os seus percursos de aprendizagem, mas também sobre a

intervenção cívica que estão, ou não estão, disponíveis para levar a cabo. Em

última análise, esta tipologia identifica percursos profissionais e de

aprendizagem, mais ou menos permeáveis às atuais tendências gestionárias e

que, podem atribuir significados mais incluídos/excluídos do campo profissional

e outros que, apesar de estarem no exercício profissional atribuem (com

argumentos variados) pesos diferentes à individualidade de «gestor de si» e/ou

à pertença participada num coletivo profissional.

Jaime e Helena, nas suas diferentes posições, pontuam o que outros

entrevistados também referem como um grande individualismo (Jaime) ou uma

excessiva competição e rivalidade (Helena) entre os assistentes sociais.

“…é preciso que todos nós ganhemos um maior espírito de coletivizarmos o que sabemos, o que estudamos, o que aprendemos, o que investigamos, uns com os outros, em sistema de troca e em sistema de solidariedade profissional, que é coisa que eu acho que não temos. Somos extremamente individualistas, por mais que a gente queira combater o individualismo…” Jaime / E JF10 “…nós quando nos sentimos ameaçados, somos coesos, de outra forma, há uma competição desenfreada: «- Eu sou melhor do que tu». E isso... penso que é um bocado impeditivo de se encontrar os denominadores comuns que possam ser propulsores para uma cada vez maior qualificação da profissão. Penso que houve uma grande ajuda, que foi a carreira docente ter acordado as pessoas para uma maior investigação, para a necessidade de produzir materiais, isso é, sem dúvida nenhuma, um suporte diferenciável. Penso que isso ajudou muito. Não só as escolas, os profissionais em geral, relacionam-se de outra forma com o conhecimento” E Helena/ HS 3.

Para a investigadora não é conclusivo (nem poderia ser, quer por razões

metodológicas, quer conceptuais) que estas características imputadas ao corpo

profissional sejam traços distintivos da profissionalidade e/ou que estejam tão

ou mais presentes nestes profissionais do que em profissionais de outras áreas

de formação e de profissão.

Questiona-se até que ponto a forte presença destes argumentos nas narrativas

profissionais não se relaciona com uma idealização do/a profissional? E qual a

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423

relação desta hipotética idealização com um perfil profissional prescrito na

formação inicial como o que «deve ser» ou uma «obrigação» de «ser

profissional» de determinada forma?

Alimenta-se a possibilidade de que um alter-ego profissional (que a título de

exemplo, pode reunir um «dever ser» colaborativo, ético, empático e altruísta),

na comparação com a diversidade do «que se é», possa acentuar algumas

características conferindo-lhes peso relativo que eventualmente não têm.

Contudo, o que a análise das narrativas dos assistentes sociais que são co

autores deste estudo nos pode dizer é que os argumentos referentes às

supostas características individuais dos assistentes sociais ainda estão muito

presentes, confirmando que esta profissão não está imune às tendências, às

mutações e dinâmicas das formas societárias e da diversidade de conceções

sobre o trabalho, o emprego e a formação.

Relação dos profissionais com o «Sujeito Coletivo»

a) Modos de entender o estatuto socioprofissional

São muito variáveis ao modos de entender o estatuto socio profissional,

embora os colaboradores deste estudo mencionem nas suas narrativas que a

regulação da atividade profissional é essencial, muitas vezes referindo o atual

processo de criação da Ordem dos Assistentes Sociais e/ou argumentando

sobre as vivências, as dificuldades e os desencantos com o associativismo do

corpo profissional.

“…enquanto não houver regulação da profissão, não há profissão. Há boas vontades, atividades profissionais, distorcidas por vezes, porque nós não temos um corpo profissional coeso... e enquanto acusam outros de corporativismo, nós não conseguimos o mínimo dele para nos juntar. Fazia-nos falta algum corporativismo. Mas não vejo profissão neste país, ainda” E Fernanda /FCR5

Estatuto socio profissional

Organização Coletiva

Abertura e Fechamento

Social

Page 424: As formigas e os carreiros

424

Num contexto societário de transformações na divisão social e técnica do

trabalho, a retração e a erosão do trabalho contratado e regulamentado, bem

como dos respetivos direitos laborais atinge também o trabalho social nos

diferentes espaços institucionais em que se realiza.

As recentes produções de Marilda Iamamoto (1992, 2007) analisam as

consequências teóricas e políticas mais profundas relacionadas com o

reconhecimento do assistente social como trabalhador assalariado de

instituições públicas e privadas, resultante do processo de profissionalização e

institucionalização da profissão.

Autores críticos brasileiros, dos quais se destacam Iamamoto e Paulo Netto,

referem-se a uma ordem societária que cria espaços sócio ocupacionais na

divisão sócio técnica do trabalho, que constituem condições através das quais

a profissão fica legitimada para a execução de um amplo leque de atribuições

profissionais, nomeadamente no âmbito das diferentes políticas sociais

setoriais.

“O caminho da profissionalização do Serviço Social é, na verdade, o processo pelo qual os seus agentes - ainda que desenvolvendo uma autorrepresentação e um discurso centrados na autonomia dos seus valores e da sua vontade - se inserem em atividades interventivas cuja dinâmica, organização, recursos e objetivos são determinados para além do seu controle. [...], o que [esse] deslocamento altera visceralmente, concretizando a rutura, é, objetivamente, a condição do agente e o significado social de sua ação; o agente passa a inscrever-se numa relação de assalariamento e a significação social de seu fazer passa a ter um sentido novo na malha da reprodução das relações sociais. Em síntese: é com esse giro que o Serviço Social se constitui como profissão, inserindo-se no mercado de trabalho, com todas as consequências daí derivadas (principalmente com o seu agente tornando-se vendedor da sua força de trabalho) (Netto, 2005, p. 71-72).

As profundas implicações deste processo incidem na autonomia relativa do

assistente social que não possui o poder de definir prioridades, nem modos de

desenvolver o «trabalho socialmente necessário», coletivo e cooperado com os

outros trabalhadores sociais. Nesses termos, a análise das políticas sociais e

dos espaços ocupacionais nos quais se inserem os assistentes sociais não

pode ser apreendida de modo linear e determinista, ainda mais considerando

as formas de relação do capital com as suas crises de acumulação, que

aprofundam e agravam as expressões da questão social, mas também

Page 425: As formigas e os carreiros

425

desencadeiam respostas da sociedade e dos trabalhadores no seu movimento

de resistência e defesa de direitos conquistados historicamente.

Assim, nestas perspetivas, analisar o significado social da profissão significa

inscrever o trabalho do assistente social no âmbito do trabalho social coletivo

nas sociedades, destacando, em simultâneo, a sua utilidade social e

«diferencialidade» face a outras profissões e a sua «unidade» - "Em outros

termos, estabelece-se a tensão entre projeto ético-político e alienação do

trabalho, indissociável do estatuto assalariado" (Iamamoto, 1992).

Para Paulina esta alienação do trabalho ligada ao estatuto assalariado está

refém de uma perspetiva funcionalista, com uma representação profissional

ainda muito marcada pelo ‘assistencialismo’ e pela ‘resolução de problemas’.

“…por muito que nos custe a aceitar ainda temos o peso histórico da ligação ao assistencialismo. Eu ainda o sinto muito. Ainda tenho a ideia... de que as pessoas acham que os assistentes sociais são, sobretudo, para ajudar a fazer «qualquer coisa» e essa «qualquer coisa» não é na dimensão de ouvirmos, de orientar, de encaminhar. Não! É na perspectiva de resolver uma situação problemática. É uma visão bocado funcionalista - eu acho que essa representação mantém-se” Paulina/E PS13.

Mas o trabalho dos assistentes sociais pode ser entendido como expressão de

um movimento que articula conhecimentos e luta por espaços no mercado de

trabalho; competências e atribuições que têm reconhecimento legal nos

estatutos normativos e reguladores (diretrizes curriculares da formação, código

deontológico, regulamentação profissional), e pessoas que exercem a profissão

com subordinação às normas institucionais - mas que também se podem

mobilizar em movimentos onde se questionem e repensem a si mesmas e à

intervenção. É neste processo tenso que as profissões constroem os seus

«sujeitos coletivos» e o projeto ético-político profissional, entrando em

permanente tensão e contradição com o estatuto de trabalhador assalariado.

O próprio estatuto sócio – profissional é um jogo complexo de conflitos e

tensões que envolve diferentes protagonistas, interesses, projetos e estratégias

e onde são requisitadas a presença e a intervenção de profissionais, que

disputam espaços de reconhecimento e poder no interior do aparelho

institucional.

“O futuro da organização profissional, eu vejo como determinante para nos colocar noutro patamar de exigência, de exigência em relação à formação na área, de exigência em relação ao exercício da profissão, de exigência em relação à formação continuada dos profissionais, de exigência em

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426

relação à forma como nós regulamos todos estes processos, de exigência em relação à forma como nos podemos posicionar perante a sociedade que queremos ter, perante os compromissos que queremos assumir; ou seja, como interlocutores na discussão, por exemplo, de políticas sociais, de medidas que queremos ver implementadas, de lutas que queremos travar e, obviamente, interlocução perante outras instâncias com quem podemos discutir e podemos dialogar de forma legitima. E essa legitimação só nos é trazida com um poder organizativo diferente e obviamente, também este poder depende de nós e nós ainda não percebemos isso” Sílvia/Q SG18.

b) Modos de entender o relacionamento com a organização coletiva

da profissão

As narrativas dos assistentes sociais envolvidos neste trabalho têm bastante

consenso sobre a pouca «consciência coletiva» e sobre a «fragmentação da

classe profissional» mas revelam tensões e posições diversas, mais ou menos

comprometidas com a organização coletiva.

A Associação Profissional (APSS) tem poucos associados por relação aos

diplomados que exercem e mesmo dentro daqueles que se inscreveram algum

dia na Associação, serão ainda menos aqueles que efetivamente têm uma

participação continuada e ativa. Apesar desta escassez de participação efetiva,

está muito presente no discurso profissional a valorização e a necessidade de

autoregulação da profissão

“… uma coisa em que eu acreditava era que o país tinha necessidade (como pão para a boca) de regular a profissão. Esta profissão não pode funcionar sem uma regulação e isto devia ser entendido como um direito de cidadania. Pôr a lei a funcionar, será difícil também. Mas enquanto não há lei é uma terra de ninguém” E Fernanda / FCR5.

Esta expressão de ‘terra sem lei’ designa o território das dificuldades sentidas

na regulação profissional, tanto ao nível da formação inicial como do exercício

profissional.

“... penso que é um bocado impeditivo [referindo-se à competição desenfreada] de se encontrar os denominadores comuns que possam ser propulsores para uma cada vez maior qualificação da profissão. Penso que houve uma grande ajuda, que foi a carreira docente ter acordado as pessoas para uma maior investigação, para a necessidade de produzir materiais, isso é, sem dúvida nenhuma, um suporte diferenciável. (…) Penso que era muito bom que surgisse a Ordem, eu diria que neste momento é quase indispensável que surja a Ordem. Nós vamos debater-

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nos com profissionais com o mesmo título e com uma qualificação diferente; na medida em que os politécnicos estão a formar Assistentes Sociais, há uma diversidade de entidades formadoras mesmo ao nível da licenciatura e, portanto, só uma Ordem é que pode realmente diferenciar os vários tipos de formação e certificar os profissionais, inclusivamente através de um carta que lhes permita exercer a profissão de uma forma correta. Enfim, de outra forma, é complicado. Depois há ainda uma outra questão, que me preocupa muito neste momento, é que há uma cruzada na comunicação social, particularmente na televisão, contra os Assistentes Sociais” Helena/E HS3.

No estudo de Ferreira e Hespanha (Coimbra, 2009), realizado por iniciativa da

Associação de Profissionais, pode verificar-se que 98,8% dos respondentes

manifestaram concordância face à criação de uma instância de autoregulação

profissional (Ordem), com vantagens identificadas ao nível

- da «defesa dos interesses da profissão e dos associados» (48,2%),

- da «melhoria da visibilidade e credibilidade da profissão» (22,4%),

- de «fazer respeitar o código deontológico e exercer jurisdição disciplinar»

(15,5%),

- de «promover a valorização profissional e cientifica dos associados» (8,1%)

e ainda de outros aspetos com valorações menos significativas.

Assim, a organização coletiva que, salvo alguns momentos bem identificados

na história da profissão em Portugal, tem tido bastante dificuldade em mobilizar

«a classe», parece ganhar novo fôlego de adesão e de mobilização com a ideia

da Ordem Profissional. Mas mais do que tecer considerações sobre esta

estratégia e este processo, importará percorrer a argumentação presente no

material narrativo sobre a relação com a organização coletiva da profissão,

sublinhando os seguintes argumentos:

- ‘Profissão muito fragilizada e com uma terrível dificuldade de afirmação’

“Nestes 46 anos de carreira, eu sempre tive a noção de que a profissão de Serviço Social estava, por uma ou outra razão, sempre muito fragilizada. No início a sensação que eu tinha, e tive essa experiência nas empresas onde nós tínhamos que ‘bulhar’ pelo nosso lugar, pelo nosso estatuto profissional, era preciso explicar sempre, passar a vida a explicar o que fazíamos e a discutir umas com as outras sobre o que é que fazíamos (…) Eu penso que há duas características que se mantém (eu vejo da mesma maneira que via há quase 50 anos): um empenho muito sério dos profissionais em trabalharem bem, em fazerem as coisas como devem ser feitas mas, por outro lado, uma terrível dificuldade na sua própria afirmação” E Helena / HS 3

- Posições, de crítica interna à atuação paliativa e aos desempenhos conotados

com «velhas formas de assistência»

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“No dia-a-dia, o trabalho de grande parte dos Assistentes Sociais, resume-se à gestão de medidas de apoio económico, com um grande peso processual e burocrático na gestão de problemas isolados de indivíduos isolados e pouco atuam na promoção da mudança. Os Assistentes Sociais ainda servem enquanto ‘cara’ a um corpo institucional com falhas políticas, como recursos paliativos que, muitas vezes, servem de ‘tampão’ a verdadeiros e reais problemas sociais. Sinto que um futuro diferente ainda vem longe e que hoje estamos muito dependentes dos números da pobreza e de novas variantes das velhas formas de assistência” Armando/ Q AP19.

- Uma diversidade de entidades formadoras e de formações “…era muito bom que surgisse a Ordem, eu diria que neste momento é quase indispensável que surja a Ordem. Nós vamos debater-nos com profissionais com o mesmo título e com uma qualificação diferente; na medida em que os politécnicos estão a formar Assistentes Sociais, há uma diversidade de entidades formadoras mesmo ao nível da licenciatura e, portanto, só uma Ordem é que pode realmente diferenciar os vários tipos de formação e certificar os profissionais, inclusivamente através de um carta que lhes permita exercer a profissão de uma forma correta” E Helena / HS 3.

- Ideias divergentes sobre a participação coletiva

“Entrei para a Associação por considerar que se a Associação pretendia defender os assistentes sociais, tinha que apostar fundamentalmente na formação. E tinha que ser por aí que a gente tinha que ir. E, por outro lado, tínhamos que mostrar, tentar saber mostrar as coisas que as pessoas faziam, que tinham qualidade e deviam ser mostradas” E Filomena/ FA 7. “Eu costumo dizer aos meus alunos também: - Tenhamos um comportamento de vírus. Bastam duas pessoas para infetar, então que seja um vírus benéfico: um vírus de liberdade, de autonomia dos sujeitos, de solidariedade... ele também circula (Porque é que só a SIDA é que infecta e a gente não consegue infetar?), um por um, um por um, um por um... na natureza, o que é pequenino sobrevive, a formiga tem mais possibilidades de sobrevivência do que o elefante. O que é pequenino sobrevive, não se preocupem com o grande: Pequeno, pouco, possível” Inês / E IV6.

- Condições laborais para o exercício profissional

“Eu também compreendo que não consigam dar resposta. Se nós queremos que o assistente social tenha um determinado tipo de «performance», que oiça, que escute, que tenha alguma tranquilidade, que saiba gerir os conflitos... tem de ter condições para trabalhar. Eu própria tive esse exemplo, porque há dois anos a esta parte tivemos um ‘boom’ de atendimento de doentes ambulatórios e eu cheguei a um ponto que disse: - Eu não estou a pensar. Tiveram que me dar um toque, para eu perceber que não estava a pensar, porque às vezes, nós sozinhos não conseguimos perceber” Paulina/E PS13.

- Pontuações de significado variável sobre o projeto profissional

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“O meu projeto profissional passa muito pela luta por uma capacidade de organização que nos permita tudo aquilo que eu disse atrás, ou seja, não descansarei enquanto não tivermos uma Ordem, ou outra organização qualquer que seja capaz, que tenha poder, que tenha capacidade de organização e uma estrutura suficientemente forte para, por exemplo, apoiar continuadamente os profissionais; e apoiar, formando-os, apoiar supervisionando-os, apoiar advogando os seus interesses; nunca me quero ver desligada deste projeto “Sílvia/ Q SG18. “Penso que era muito bom que surgisse a Ordem, eu diria que neste momento é quase indispensável que surja a Ordem. Nós vamos debater-nos com profissionais com o mesmo título e com uma qualificação diferente; na medida em que os politécnicos estão a formar Assistentes Sociais, há uma diversidade de entidades formadoras mesmo ao nível da licenciatura e, portanto, só uma Ordem é que pode realmente diferenciar os vários tipos de formação e certificar os profissionais, inclusivamente através de um carta que lhes permita exercer a profissão de uma forma correta. Enfim, de outra forma, é complicado.” Helena/E HS3.

Estas duas últimas citações ilustram duas posições dos profissionais, que vão

de um maior envolvimento pessoal no projeto coletivo a um ‘desejar’ mais

distante e menos presente no processo de luta por aquilo que se quer

conquistar, revelando algum desfasamento entre a idealização de uma

estrutura coletiva e a disponibilidade de participação, o que é consonante com

a pouca centralidade da ação da associação profissional representativa do

grupo na afirmação da identidade profissional.

Quer a organização coletiva (nomeadamente a Associação de Profissionais de

Serviço Social) quer os profissionais, coincidem com a escassa participação no

processo coletivo mas divergem nos argumentos evocados – a Associação

tende a imputar responsabilidades ao individualismo e ao deficit de cidadania

profissional dos assistentes sociais e estes, a privilegiar a perceção da

distância entre a estrutura associativa e as condições de trabalho e os

problemas reais com que se defrontam. Uns e outros, pontuam a atual

diversidade de formações académicas e a importância dos contextos de

exercício enquanto espaços de reconhecimento profissional como argumentos

que dificultam a participação coletiva. Os profissionais tendem a falar mais da

‘não participação’ dos outros, do que da sua. Alguns, como Filomena, apontam

algumas responsabilidades à Associação e à ausência de «figuras de

referência» nos serviços para onde vão trabalhar os jovens assistentes sociais

como dificuldades acrescidas para consolidar o projeto profissional e a

organização coletiva.

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“Mas continuo a achar que a Associação de Serviço Social, pelo menos que eu saiba, não está a fazer uma das coisas mais importantes que é defender os profissionais. E tenho muita pena que, com as pessoas que nestes últimos anos têm estado à frente, não tenham aproveitado para arranjar… (nas posições em que estão conhecem a realidade, não são pessoas que estejam de fora, sabem das dificuldades da gente jovem), podiam posicionar-se para defender melhor essas pessoas. Eu acho que estamos a atravessar um momento muito difícil (já vem desde há alguns anos mas nesta altura está demasiado crítico) para que uma Associação de Profissionais não olhe para a forma como, do ponto de vista profissional, são feitos os contratos, como é que as pessoas são avaliadas... não pode ficar de fora, acho eu. Tem de olhar para ali e tem de verificar o que é que ali se passa. Porque há gente muito boa, mas muito nova, que se perde porque a vida delas, um dia, fica muito parecida com a dos utentes que têm de atender. E a cabeça delas baralha-se um bocado. Algumas ficam muito deprimidas. Se não encontrarem alguém que tenha alguma capacidade de ser firme e de ajudar no caminho, o percurso profissional perde-se. Já vi situações dentro do distrito de Lisboa em que disse a algumas chefias (se calhar não me ouviram, porque também entendo que não é fácil nos tempos que correm ouvir isso): as pessoas, estando na ação direta, ou em determinados serviços demasiado tempo, precisavam de ter um apoio Psicopedagógico em permanência, chamem-lhe o que chamarem. Porque senão aquilo é caótico e é caótico a vários níveis, toca a vida pessoal e familiar de cada um e o desempenho profissional. Isso é, ainda hoje, ou hoje mais do que há algum tempo atrás, muito importante. E depois quando eu comecei a trabalhar existiam umas figuras, que eram as figuras de referência a nível dos serviços. Atualmente, com a forma como as chefias vão sendo designadas, temos figuras de «não referência» nos serviços” Filomena/E FA5.

António, encarna uma voz dissidente de alguém que diz que os outros não o

reconhecem como assistente social, referindo que a profissão precisa de ir

buscar recursos «fora» de si para se renovar.

“Para reinventar a profissão não temos recursos que cheguem, tem que se ir buscar fora do campo profissional. Acredito que de hoje para amanhã hão-de ir buscar os dissidentes, bater á porta dos dissidentes, para receber alguma coisa de novo. (…) Há alguns anos atrás, tinha muita raiva... e algum despeito em relação à profissão, até com algumas questões mal resolvidas lá com o Instituto... e com alguns profissionais. Mas em alguns casos vai-me batendo cá a ideia de que é saindo, que se pode renovar aquilo que está estagnado, ou seja, mal comparado, é como a Lagoa de Óbidos, é preciso que a água do mar lá entre para aquilo refrescar, para que aquele ecossistema (que tem que estar condicionado, porque a característica dele é mesmo assim) possa refrescar com a entrada daquela água toda do mar e faça uma limpeza; ou seja, a gente tem que ir dentro e fora do campo profissional” António/E AF1.

Sílvia, que fala com muito entusiasmo da sua participação associativa, nomeia

a necessidade de «dar palco» à profissão, embora também seja percetível na

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sua narrativa o paradoxo com a (in) visibilidade dos profissionais. Esta

assistente social ilustra um conjunto de preocupações e de interesses, onde

inclui a organização coletiva da profissão.

“Preocupa-me a pouca visibilidade, preocupa-me a falta de interlocução que temos tido nos últimos anos nas políticas sociais, preocupa-me o protagonismo de outras áreas que competem no nosso campo, preocupa-me a falta de capacidade de defesa dos cidadãos que nós temos tido a nível político, já não digo obviamente no quotidiano – no quotidiano, acho que nós temos imensa capacidade de defesa dos cidadãos, não damos é visibilidade dessa nossa capacidade de agir. Preocupa-me a falta de uma estrutura de organização profissional, preocupa-me a falta de supervisão profissional, preocupa-me o lugar de pouco poder que temos dentro das instituições e, por vezes, as perdas que vamos tendo, mas também me preocupa a falta de divulgação das conquistas que em termos organizacionais, em termos institucionais, em termos profissionais, vamos fazendo. Preocupa-me … a desregulação do campo profissional, preocupa-me a desregulação do campo da formação em Serviço Social, preocupa-me tanta coisa… preocupa-me neste momento o desemprego na área, preocupa-me imenso a situação de pobreza, as situações de exclusão de várias ordens e de vários níveis, preocupa-me imenso a incompreensão, a distorção que existe a nível do senso comum, dos cidadãos em geral, sobre os problemas sociais. Preocupa-me imenso a falta de perspectiva crítica de alguns profissionais sobre os problemas sociais, sobre as questões da pobreza e exclusão; preocupa-me imenso a falta de implicação e compromisso dos cidadãos nas questões que os afetam e preocupa-me isto refletido a nível dos profissionais de Serviço Social. Preocupa-me que os assistentes sociais não sejam críticos, ou pelo menos quando eu percebo que não são críticos (e não generalizo). Preocupo-me que não vão para além daquilo que lhes é pedido, do papel que lhes é dado, preocupa-me muito coisa… estava aqui a dizer uma lista enorme de coisas que me preocupam, mas as minhas preocupações são essencialmente como cidadã, uma cidadã que tem uma responsabilidade acrescida por ser assistente social que deve preocupar-se com algumas questões mais e de uma forma mais assumida” Sílvia/Q SG18.

“Interessa-me a defesa dos interesses profissionais, interessa-me a defesa dos interesses dos cidadãos, interessa-me … a arte, interessa-me a fotografia, interessa-me o cinema, interessa-me a arquitetura, interessam-me os povos… não me interessa ficar fechada (nunca fiquei fechada) naquilo que são os nossos papéis públicos, tento cruzar muito estes interesses. De facto, interessa-me muito, neste momento, que o serviço social português se afirme, que possa estar presente em conferências internacionais, que possa instigar ao mais alto nível, possa ser reconhecido (por exemplo pela FCT) enquanto corpo de investigação, interessa-me a qualidade da produção científica, interessa-me a qualidade da formação dos futuros assistentes sociais e dos assistentes sociais, interessa-me tanta coisa… interessam-me os meus temas, os temas em que eu trabalho. Neste momento também me interessa ir de férias. E queria acabar dizendo que, de facto, interessa-me que esta profissão possa ‘ter palco’ e explorar

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este palco, de uma forma séria, palmilhando, de uma forma cautelosa, de uma forma rigorosa, de uma forma também atrevida e criativa, para que acendam as luzes neste palco e nos traga muita luz, com muito colorido, com uma paleta de cores, de interesses e de visões que nos permita crescer. E quando eu digo ‘crescer em palco’ é ter público e não esquecer este público, não só as pessoas comuns, como as pessoas que necessitam particularmente de nós ao longo das suas vidas, e eu acho que todos necessitam de nós. Eu nunca vi esta profissão como exclusivamente voltada para aqueles que mais dela sentem necessidade, num período ou outro, ou ao longo de toda a sua vida, mas de todos os cidadãos. Porque se nós defendemos os direitos humanos e o bem-estar social, defendemos acima de tudo o ser humano e um projeto de vida coletivo, respeitando a sua individualidade e os direitos humanos” Sílvia/Q SG18.

Esta citação diz bastante da «mistura» e do «cruzamento» de preocupações e

interesses que habitam os profissionais e também deste «dever acrescido», de

uma responsabilidade que muitos assistentes sociais consideram ter a mais do

que os outros cidadãos por terem a profissão que têm. Por outro lado, a

condição de assalariados e a escassez de autonomia profissional contribuem

para as dificuldades de participação coletiva e eventualmente, a feminização,

será uma das variáveis a ter em conta, na medida em que o papel social da

mulher ainda é pautado por menores participações cívicas e pela acumulação

pouco paritária do exercício profissional com o exercício doméstico e educativo.

Por outro lado ainda, a «terceirização»11 surge como um fenómeno crescente

na relação incerta dos assistentes sociais com as possibilidades de trabalho.

Nas narrativas dos assistentes sociais as condições deste tipo de exercício

aparecem através da descrição da passagem por ‘projetos’ (sendo que a

designação de ‘projeto’ se banalizou para passar a nomear a maior parte do

trabalho social com vínculos laborais descontínuos e precários), uns que são

mencionados como experiências de aprendizagem e outros que não, mas de

onde se induz a «terceirização» com o aumento de fragilidade do vínculo

laboral.

Este mecanismo torna muito mais invisível o trabalho real, na medida em que

descaracteriza o vínculo empregado/empregador e oculta a relação de trabalho

com a máscara de relações de trabalho mais ‘flexíveis’ e ‘independentes’, o

que na prática resulta num aumento da precarização do trabalho. As mudanças

11 Entendida como uma das formas de flexibilização do trabalho mediante a transferência da atividade para ‘terceiros’ que não se responsabilizam pela relação de emprego.

Page 433: As formigas e os carreiros

433

nas relações de trabalho e o aumento do desemprego têm efeitos profundos no

trabalho social nomeadamente porque: a) desconfiguram o significado e a

amplitude do trabalho técnico realizado pelos assistentes sociais e demais

trabalhadores sociais; b) deslocam as formas de representação e a gestão

governamental para uma intermediação de empresas e organizações

contratadas que tendem a estabelecer uma relação ‘branca’, ou seja, ainda

mais neutra e gestionária, com as populações; c) subordinam as ações

desenvolvidas a prazos contratuais e aos recursos financeiros definidos,

implicando descontinuidades, rompimento de vínculos e descrédito da

população nas ações públicas; d) realizam uma cisão entre prestação de

serviço e o direito, pois o que preside o trabalho não é a lógica pública,

obscurecendo-se a responsabilidade do Estado perante os seus cidadãos e

comprimindo ainda mais as possibilidades de inscrever as ações públicas no

campo do direito. Nesta linha é importante evidenciar a dimensão qualitativa da

terceirização, que cria uma divisão entre os trabalhadores (os de "primeira" e

"segunda" categorias), além da fragmentação entre os trabalhadores com

diferentes formas de contrato e níveis salariais, muitas vezes na mesma

equipa, o que agrava dificuldades e constrangimentos para o trabalho social e

para a luta coletiva.

Outra questão que também é mencionada nas narrativas é a crescente

informatização do trabalho. No caso do setor público, a exemplo do setor

privado, as mudanças tecnológicas contribuem para incutir uma «cultura de

gestão» e para esvaziar os conteúdos mais criativos de trabalho,

desencadeando o desgaste criado pela atividade mecânica, repetitiva e que

não instiga à reflexão.

“Assim como acho que também há pessoas que ficam com aquilo que aprenderam na licenciatura e depois pouco evoluem. Se calhar, porque se rotinizaram (o que é muito fácil, porque a pessoa tem de dar respostas, tem de tentar resolver os casos e, sem querer já está embrenhada naquele mundo das respostas-tipo) e não tiveram oportunidade de se pensarem...”Paulina/E PS13.

C) Modos de entender a abertura ou o fechamento social da

profissão.

As entidades formadoras, através da atribuição da maior ou menor exigência

do grau académico, podem assumir um papel de relevo no grau de abertura ou

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434

fechamento da profissão. Recorda-se que a abordagem funcionalista das

profissões (Sousa Almeida, 2011) assenta na existência de um estatuto

profissional resultante do saber e do ideal de serviço, corporizados por

comunidades formadas em torno do mesmo corpo de saber, dos mesmos

valores e ética de serviço, na existência de um reconhecimento da

competência e na existência de instituições profissionais como resposta a

necessidades sociais e ainda está muito presente no discurso dos

profissionais.

Por outro lado, a inserção mais recente da formação inicial em Serviço Social

em Universidades que lecionam muitas outras formações (quando o panorama

anterior do ensino de Serviço Social era o de entidades que lecionavam apenas

Serviço Social) contribuiu para uma maior interação entre os alunos e as áreas

do conhecimento e, eventualmente, contribuiu também para esbater uma certa

socialização escolar que era um forte marco identitário e que podem contribuir

para a construção de construções identitárias mais próximas da perspetiva

interacionista.

Filomena é uma das profissionais que defende uma maior abertura quando

menciona que “temos de ser uma voz entre pares”, identificando-se mais com o

grupo mais vasto dos trabalhadores sociais, a que têm acesso uma pluralidade

de formações no âmbito das ciências sociais.

“…é difícil a gente... se impor como uma voz única, temos que ser uma voz entre pares. (…) estamos lá para ouvir aquelas pessoas, dar voz aos seus problemas e construir respostas. Mas temos que ter mais imaginação porque as instituições, neste momento, têm muito pouca imaginação; …” E Filomena/ FA 7.

Uma outra dimensão de abertura social da profissão tem sido a socialização

profissional em equipas de trabalho (multi, pluri ou Transdisciplinares), onde os

assistentes sociais precisam de negociar e afirmar o seu espaço profissional

face a outras formações e que, a ver pelos testemunhos dos entrevistados, são

mencionados como espaços privilegiados de exercício, de aprendizagem e de

construção identitária.

“Eu acho que os assistentes sociais têm características muito próprias, muito específicas do nosso trabalho, cruzamo-nos com outros saberes e outros profissionais, mas o trabalho pode perfeitamente ser encaixado um no outro. Para mim, o que vejo é trabalharmos em parceria com os «ólogos» todos e acho que não se confundem os saberes; e acho que o conjunto desses saberes pode fazer a diferença” Filipa/E AR12.

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435

Se bem que, em Portugal, o crescimento do número de Assistentes Sociais não

seja fácil de aferir dada a sub-identificação nas fontes oficiais, segundo Martins

(1995:60) até 1992 diplomaram-se 4 540 Assistentes Sociais e na década

seguinte, de 1993 a 2003 formaram-se 4 770, o que revela um aumento pouco

expressivo (Martins e Tomé, 2008:7). Nos dois anos seguintes, entre 2004 e

2006 e, segundo a mesma fonte, surgiram mais 2 501, o que totaliza 11 181

assistentes sociais diplomadas em Portugal. Considerando o período de 1992 a

2006, a taxa de evolução dos diplomados mais do que duplicou.

Este apontamento sobre o crescimento do número de licenciados em Serviço

Social inscreve-se no aumento de disponibilidade da oferta formativa do ensino

superior na década de 90 do século passado mas não nos diz muito sobre a

relação com o crescimento de outros grupos profissionais que concorrem para

o mesmo campo. De qualquer maneira, este aumento do número de

diplomados revela (e eventualmente, contribui para) uma maior proletarização

da profissão e eventualmente de uma maior abertura social.

Um dos períodos de fechamento social da profissão no passado recente foi

identificado nas entrevistas, respetivamente por Maria quando fala do

reconhecimento da licenciatura (1989) e da contestação das auxiliares sociais,

com e sem curso ou, por Fernanda, quando se refere à obrigatoriedade de

realizar o complemento formativo para obter a equivalência do grau académico.

“Apanhei toda essa fase de trabalho que foi interessantíssima, em que eu recuperei muito da experiência de trabalho que tinha feito e da metodologia que tinha aprendido na Promoção Social e apanhei ao mesmo tempo, internamente, a modificação de estatuto das auxiliares sociais e das assistentes sociais” Maria / E RA2 “Era aquele curso à noite que eles fizeram para nos permitir a reclassificação de serviço. Foi aprovado um curso, aquilo tinha um nome… acho que era ‘Plano de Estudos Unificados’, que era uma formação dirigida para professores primários, auxiliares sociais com curso ou pessoas com formação académica equivalente (havia lá duas ou três pessoas da área dos serviços prisionais que também foram considerados equiparados), mas não tinham acesso a esta formação as pessoas que não tinham curso nenhum” Maria/E RA2. “Houve aquela fase de união na luta pela licenciatura, e a minha interpretação é que quando as escolas e os profissionais estavam todos unidos foi espetacular! Estavam todos mobilizados e aquele movimento não podia ter-se desmembrado. Deu-se uma fissura, quando a escola

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obrigou todos os profissionais com planos de estudos antigos, a voltar para lá, para obter o grau de licenciado. Quando não tinha mais nada para nos dar, não é? Porque se tivesse, as pessoas não são burras e iriam, não desmobilizavam. Portanto, como aquilo era uma necessidade dos profissionais, porque nós estávamos muito maltratados nos serviços da função pública, aquilo foi muito mau. Conseguiu-se ultrapassar, porque a Escola recuou, mas maldizendo os profissionais. E então deu-se um divórcio muito grande. Nunca mais houve uma junção” Fernanda/E FCR5. .

Outro dos aspetos que é identificado como fonte de mal-estar e que pode

contribuir para um fechamento profissional, eventualmente mais defensivo, é

resultante da forma como os ‘média’ abordam os profissionais.

“Depois há ainda uma outra questão, que me preocupa muito neste momento, é que há uma cruzada na comunicação social, particularmente na televisão, contra os Assistentes Sociais” E Helena / HS 3.

Esta ‘cruzada’ a que Helena se refere terá que ver com múltiplos fatores, dos

quais destacamos: i) o maior acesso dos cidadãos aos órgãos de comunicação

social; ii) o maior interesse destes pelas questões ligadas com a pobreza e com

as condições de vida das populações; iii) o desmantelamento de respostas

sociais do estado-providência; iv) a ineficácia e impunidade atribuída aos

serviços públicos e, em particular, aos «serviços sociais» com os quais

frequentemente os assistentes são confundidos; v) a não organização dos

órgãos coletivos da profissão e dos seus profissionais para fazerem ouvir as

suas perspetivas; vi) o poder da comunicação social na resolução de situações

e problemas que eram prioritariamente do âmbito das políticas sociais.

Estas questões relacionam-se inevitavelmente com a noção de poder que os

profissionais constroem, individual e coletivamente, e com os significados que

lhe atribuem sendo que, na voz de António, «temo-nos deixado manipular»

pelo poder instituído.

“O Serviço Social chegou-se ao debate das questões do poder (porque era muito revolucionário falar do poder!) e é revolucionário falar do poder. O poder tem todo a mesma lógica, seja qual for. Não queria ser maquiavélico, mas é inevitável, confrontarmo-nos com as questões do poder e, na minha posição eu tenho é que estar defendido do poder. (…) Nós temos sido manipulados e, temo-nos deixado manipular, em termos políticos, e não se tem batido o pé...Depois também tem a ver com uma cultura... da consensualidade... a todo o custo. Não se criam ruturas... ” António / E AF1.

Coloca-se também a questão dos valores inerentes à profissão, que os

profissionais assumem como exclusivos, ou não, do Serviço Social e que

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podem, conforme forem interiorizados e assumidos pelos profissionais, ser

fonte de maior abertura ou fechamento profissional.

“O nosso trabalho tem uma componente de valores que é decisiva. No outro dia eu dizia aos meus queridos alunos, que são os últimos: - Vocês não podem perder a vontade de continuar a aprender, têm que se atualizar, porque há sempre coisas novas (algumas não interessam nada, mas tudo bem) mas nunca esqueçam que o suporte de uma profissão como a nossa, são os valores. E isto não tem a ver nem com política, nem com religião, nem coisa nenhuma, tem a ver com valores morais, sem isso não há Serviço Social” E Helena / HS 3.

A abordagem de Catherine McDonald (2003) anteriormente mobilizada, fala-

nos de uma dupla marginalidade deste grupo profissional, por relação ao

reconhecimento do Estado e ao caracter periférico atribuído à ‘assistência

social’, no sistema de redistribuição e proteção social e, de como essa

«marginalidade» e a presença de valores profissionais genéricos (como o bem-

estar e a justiça social) podem contribuir para a união do grupo em torno de um

projeto profissional coletivo.

Esta investigadora australiana, não deixa no entanto, de sublinhar as

ambiguidades e contradições que inevitavelmente emergem da diversidade de

práticas profissionais.

Apesar do estatuto de maior maturidade da profissão (por relação à disciplina),

a ‘consciência da rutura paradigmática’ em curso parece abrir caminho a novas

participações e a maior fluidez entre as estratégias de abertura e fechamento,

baseadas na autonomia dos atores e na partilha do poder no interior das

organizações, como forma de reabilitar a sua legitimidade social e de

reivindicar o aumento do Bem-Estar Social e da Justiça Social.

A existência de dissociações ainda instaladas entre ‘teoria/prática’,

‘profissionais da academia/«terreno»’, ‘produção/reprodução de conhecimento’

e as ‘relação de controlo/apoio ao desenvolvimento com os públicos da

profissão’ contribuem para a clivagem entre «o que se aprendeu na teoria» e

«o que se faz na prática» e induz posicionamentos defensivos e o

«fechamento» da profissão.

“Ser assistente social passa também (não é por salvar o mundo), mas passa por ter duas perspetivas: estar ali ao lado, estar presente, essa é a direção mais importante na nossa profissão e acompanhar e saber estar disponível para dar um contributo em situações difíceis - eu acho que esse papel é nosso. Claro que também não posso escamotear que a profissão tem de avançar de outras maneiras, se não se refletir, se não escrevermos, também os outros não sabem muito bem o que somos, o que fazemos e qual é a nossa importância. Vivemos

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numa sociedade em que o que é «invisível» não existe. Mas nós com esse trabalho do profissional que está presente e acompanha as pessoas a fazer essa gestão da sua vida e dos seus problemas e recursos, podemos criar uma consciência nos nossos utentes. E isso também faz parte da importância da

profissão” Paulina/E PS13.

Na perspetiva que aqui se apresenta, contrariar o «fechamento» da profissão

pode fazer-se na medida em que os profissionais forem capazes de mudar (e

de explicitar) a sua relação com as pessoas, com as comunidades e com os

contextos, em processos de aprendizagem com dimensões individuais e

coletivas.

“Mas, cada vez mais me tenho apercebido, até à conversa com pessoas que terminaram o doutoramento, e todas elas pugnam pela liberdade de pensamento e por não fechar o Serviço Social, não o confinar a uma área de saber espartilhada. E, portanto, se tenho argumentos a favor de colocar um espartilho e definir com meia dúzia de bases estruturais, também consigo ver a liberdade de uma disciplina dentro da área das ciências sociais, que se quer ligada à intervenção social, que tem que ser flexível às diferentes gerações, às mudanças de significados, aos desafios da pós-modernidade, que tem de estar suficientemente ampla para acompanhar as pessoas para onde elas tiverem que ir. Tenho a certeza que assim o Serviço Social vai garantir o acompanhamento da humanidade para onde ela for, sejam quais forem as questões com que essa humanidade tiver que se confrontar” Cristina/E TS14.

O processo de «abertura» aos contextos envolve necessariamente todos os

atores, pelo que a inclusão do assistente social em sistemas de pessoas que

aprendem, a partir da experiência e das suas competências próprias pode

ampliar processos de mudança. Estes processos (que precisam de integrar a

história e a cultura profissional) podem provocar simultaneamente novas

aprendizagens de «como intervir», a produção de novos conhecimentos a partir

de muitos «fazeres» refletidos, a intencionalidade e os significados de «um

fazer específico» e o reconhecimento e legitimidade dos profissionais e da

profissão.

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6.2. “ Trilhos seguros”12

Estes 'trilhos' têm uma componente importante de socialização organizacional,

uma visão da profissão que se confunde com a função e o emprego, onde a

posição hierárquica e a classificação profissional assumem protagonismo.

É uma forma identitária em que existe sobreposição entre o profissional e os

papeis que desempenha, com menor ou maior autonomia em relação aos

poderes instituídos.

Na terminologia de Dubar, salienta-se o desenho de uma «Identidade

bloqueada” e/ou de uma «forma estatutária».

Nas narrativas dos profissionais ‘séniores’ e em alguns dos ‘primeiros doutores’

percebe-se a existência de “Trilhos seguros” por mais que a ideia de uma

«carreira» tendencialmente ascendente não tenha norteado as suas opções e

os seus exercícios profissionais.

“…nós temos de ser felizes naquilo que fazemos - isso é fundamental, independentemente do que fizermos. Eu percebi logo muito cedo que nunca ia ficar rica com esta profissão, mas se calhar ia ficar muito mais rica como pessoa e isso para mim pesou mais do que o dinheiro. (…) Obviamente que gosto de dinheiro e gosto de viver bem e ter coisas boas (como toda a gente) mas não é isso que me move. Quando fiz esta opção de vida, percebi logo que não ia ganhar rios de dinheiro e, portanto, tinha que ser feliz. E, neste momento, sinto que tenho a compensação de outras coisas e só por isso vale a pena” Filipa/E AR12.

Seria como se sua proveniência social privilegiada lhes conferisse uma

estabilidade que, em conjunto com a facilidade em encontrar trabalho, lhes

permitia exercícios profissionais nos quais se expressavam e ‘eram felizes’ e,

por outro lado, lhes facilitasse condições para não se sentirem ‘presas’ a

trajetórias profissionais previsíveis e monótonas. Estas condições ‘de partida’

facilitam a autonomia profissional e a mobilidade organizacional, em narrativas

profissionais que são norteados pelo gosto e pelo desafio de uma profissão,

com a qual expressam grande compromisso.

Essa mesma expetativa de segurança e estabilidade na profissão e no trabalho

como «coisa certa» encontra-se nos dois assistentes sociais do «tempo da

12

É comum atribuir a designação de 'trilho' a um dispositivo que permita formar um caminho fixo para o suporte de ganchos ou rodas como, por exemplo, para instalar um caminho-de-ferro. A metáfora serve para falar de «carreiras» profissionais, com a ideia de uma trajetória previsível, fixa e ascendente.

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luta»: apesar das suas trajetórias profissionais nómadas e da inquietação por

novos desafios. Mas são, de fato, os assistentes sociais do perfil identificado

como os «primeiros doutores» que constroem narrativas mais próximas da

identidade estatutária, dando relevo a trajetórias profissionais entendidas como

«carreiras», muito embora a presença dos valores profissionais nas suas

narrativas iniba vontades de poder e de ascensão hierárquica nas

organizações de trabalho.

- A relação de aprendizagem da profissão com ‘o que se sabe’

A construção desta tipologia, para além da formação inicial, tem fortes

contributos dos modos de entender a socialização organizacional e profissional,

bem como os modos e as formas de entender o conhecimento – a sua

apropriação, reprodução e produção. Em percursos de aprendizagem mais

convencionais destaca-se a menção à «matriz fundamental do Serviço Social»,

constituindo-se esta como uma forma de ordenamento da tensão entre o

Assistente Social generalista e o Assistente Social especialista.

“Uma das grandes vantagens do «social» é estar tudo ligado, como na vida e é a grande sorte que nós temos, porque a nossa cabeça abre-se para as várias ciências disciplinares e isso dá-nos uma visão muito abrangente” Filipa/E AR12. “Agora o que eu também acho é que e, independentemente das proximidades, o Serviço Social é treinado para fazer uma escuta diferente dos problemas sociais, nós temos um treino diferente das Psicologias. A forma como nós fazemos os «screnings» dos problemas tem qualquer coisa que é muito própria desta profissão e que eu também não sei explicar o que é. Mas digamos que nós, de repente, olhamos todo o contexto da pessoa e os outros técnicos são muito mais dirigidos a «isto ou àquilo». A nossa postura generalista pode vir a ser a nossa mais-valia, a abordagem generalista pode-nos dar o carácter distintivo... Agora, como é que a profissão vai agarrar isso para se distinguir é que eu não sei” Paulina/E PS13

Nestes percursos de aprendizagem a formação inicial tem vindo

tradicionalmente a apontar para o traço generalista, apesar de tendências

atuais (profissionais, organizacionais e de mercado de formação) para formar

«especialistas». Contudo, os argumentos relativos às supostas especialidades

são fundamentalmente da ordem dos contextos de atividade (Saúde,

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441

Educação, Justiça…) ou do maior domínio sobre a informação relativa a

problemas sociais (Mau Trato e Vitimização de Crianças, Mulheres…;

Envelhecimento; Dependências e Doenças crónicas; …) e/ou a campos ou

ferramentas de conhecimento em muitos casos, importados de outras áreas

científicas (Informática, Gestão...).

Na construção desta tipologia serão ainda de mencionar argumentos favoráveis

e desfavoráveis à matriz generalista do Serviço Social, objeto de bastante

atenção na componente formativa dos estágios académicos. Os primeiros

evidenciam que lhe permite um posicionamento identitário mais identificado

com os «fenómenos totais» e mais apto para analisar, compreender e intervir

nas relações entre os componentes dos fenómenos ou das situações com que

trabalham; os segundos, evidenciam que o reconhecimento e legitimidade

profissional passam por uma crescente especialização, que possa seguir a

tendência de outras profissões sociais e credencie @s assistentes sociais junto

aos seus pares, públicos e potenciais empregadores.

Outra perspetiva defende que a especialização acarreta uma estratificação

profissional que contribui para reformular e subdividir as identidades

profissionais com outros profissionais de níveis de qualificação mais baixos.

Não obstante as várias tentativas de o fazer, primeiro com as Visitadoras e

Auxiliares Sociais (de que a entrevistada Maria dá testemunho) e

posteriormente, com outros profissionais com qualificação profissional de nível

secundário (sobretudo Educadores Sociais e Animadores Sócio- culturais), esta

estratégia confrontou-se com as próprias aspirações de mobilidade profissional

ascendente destes profissionais e com a ampliação da oferta formativa de nível

superior. De fato ficou instituída, sobretudo com o Processo de Bolonha, uma

tendência de uniformização do ensino superior, tendo todas estas diferentes

formações conseguido a possibilidade de alcançar a Licenciatura e a formação

pós-graduada – o que, no caso, eram ainda conquistas muito recentes para os

assistentes sociais (1989 e 1995 respetivamente).

Estas dinâmicas num campo profissional onde o Serviço Social manifestava

forças e fraquezas, poderes instalados e dificuldades de afirmação, têm sido

agravadas pelo crescimento exponencial da própria formação em Serviço

Social – atualmente com cerca de vinte cursos que formam assistentes sociais

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442

e também com formações bietápicas no Ensino Politécnico que atribuem graus

diferenciados em termos profissionais.

Com os campos de formação e de trabalho em grande transformação, a

jurisdição profissional do Assistente Social fica dependente de múltiplos fatores

que ainda parecem fornecer argumentos para a necessidade de clarificar «a

matriz do Serviço Social». Ao nível da formação inicial (1º ciclo), o crescimento

acentuado e não sustentado da oferta formativa apresenta riscos, segundo

Francisco Branco (2008), quanto à qualidade da formação assegurada por

inúmeras instituições sem tradição, «Know-how” e condições estruturais para o

cumprimento desta missão.

“… tive uma grande mentora, que foi a Professora Maria Augusta Negreiros e abate sobre mim o peso que é o de ter tido a formação que ela nos deu e ela ter sido uma das pessoas que se preocupava muito com esta questão. Daquilo que ela me passou há uma necessidade de instituir um movimento interior, intrínseco à própria disciplina, no sentido de defender as matrizes do serviço social, suficientemente amplas para incorporar as várias abordagens, às várias áreas (da mais sistémica, à mais funcionalista ou à mais crítica)...Se queres que te diga tenho esta pedra no sapato por ainda não ter aprofundado nem posto em prática as ideias que tenho na cabeça, seria talvez o meu desafio em dar o meu contributo na afirmação da profissão. Dar esse contributo era dizer: - Muito bem, o serviço social enquanto área disciplinar rege-se por uma matriz específica que é esta e não pode ser tão fechada que depois morra com a evolução da humanidade (…), e também não pode ser tão aberta, que acabe por se diluir com todas as outras áreas das ciências sociais. Encontrar este ponto de equilíbrio seria um movimento interior” Cristina/E TS 14.

A Matriz de conhecimento em Serviço Social que se tenta representar na figura

que se segue está enquadrada pelo eixo que vai do polo Generalista ao polo

Especialista (no modo de entender a profissão) e pelo eixo que liga o polo

Individual e o polo Estrutural (no modo de privilegiar a atuação).

O cruzamento destes dois eixos, circunscreve quatro formas complementares

de entender o conhecimento: i) Os saberes de experiência de intervenção; ii)

Os saberes de organização e procedimentos; iii) Os saberes temáticos

especializados; iv) Os saberes de explicitação e investigação.

Estes diferentes saberes cruzam-se nas narrativas dos profissionais e cada

profissional faz deles uma estrutura combinada própria, com maior distância ou

maior proximidade em relação aos processos de aprofundamento, explicitação

e reconhecimento feitos pela academia, mas também com maior ou menor

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443

reconhecimento e valorização (para si e para os outros) dos saberes que

possui.

Matriz de conhecimento em Serviço Social

a) Em relação aos saberes de experiência

Eles saberes tendem a ser bastante generalistas, embora relacionados com

o(s) campo(s) de intervenção da organização/serviço onde o assistente social

exerce, como refere Jaime

“Até porque toda a minha formação académica, profissional, científica e também de exercício profissional foi sempre muito no domínio da relação entre a intervenção social e a intervenção judicial, uma articulação de saberes entre o social e o jurídico” Jaime/ E JF10.

António questiona o significado de «ser prático», identificando-se como

«tocador de ouvido» e referindo a falta de modelos teóricos de intervenção.

“Nós no Serviço Social, por vezes, não temos o hábito de concretizar coisas, fica-se muito no ‘paleio’. É-se «prático» naquele sentido em que se faz um conjunto de tarefas e pomos toda a gente a mexer, o problema é que, por vezes, não sabemos é para quê ou para onde. (…) O Serviço Social não me deu grandes modelos. Se calhar, se tivesse tido modelos, aonde é que poderíamos ter ido! Às vezes sinto-me como os tocadores de ouvido, como aqueles tipos que nunca foram para a escola e que não sabem ler uma pauta. Os tipos tocam música tão bem como os outros. Mas são uma espécie de músicos analfabetos” António/ E AF1.

Para o sentimento de um certo «analfabetismo teórico» contribuirá certamente

a noção de que as teorias e metodologias disponíveis (e acessíveis através da

formação inicial) são insuficientes para «ler» os contextos, as situações e os

problemas com que os assistentes sociais se confrontam.

saberes de experiência de

intervenção

saberes de organização e

procedimentos

saberes temáticos

especializados

saberes de explicitação e investigação

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“…as assistentes sociais ainda são muito inseguras sobre o próprio saber. Primeiro, acho que há uma grande dificuldade de exposição. Os assistentes sociais têm imensa dificuldade em se expor, não sei porquê, mas nesta profissão assiste-se muito a isso. Depois, exatamente porque consideramos que as outras ciências sociais são mais importantes do que a nossa porque, de facto, elas têm um reconhecimento muito maior e nós somos o quê? Uma disciplina? Não sei… mas não temos a mesma projeção porque escrevemos muito pouco, comparando com os outros. Depois há um desfasamento entre o trabalho diário (digamos assim), a intervenção diária dos assistentes sociais e a academia. Os académicos estão lá para escrever e para refletir. Mas, muitas vezes, os assuntos da profissão deviam começar por aqui, por quem está no terreno todos os dias. Mas há um desfasamento, é como se fossemos linhas paralelas. E isso é mau porque assim não crescemos, é por isso que a gente não evolui” Paulina/E PS13

Contudo, a experiência profissional da investigadora também permite colocar a

hipótese de uma questão problemática (e não será a da insuficiência dos

«mapas» conceptuais e metodológicos) na necessidade de aumentar o

reconhecimento (auto, inter e hétero) do estatuto dos saberes experienciais

pelos profissionais, o que pode significar aumento da sua capacitação para

explicitar esses saberes e constituir novos referenciais, em diálogo com outras

fontes de conhecimento disponíveis mas também não negligenciando a

possibilidade de serem produtores de conhecimento.

“O que é que cada assistente social tem na sua cabeça, como é que construiu a forma de olhar a profissão, o que é para cada um/a é a «resolução dos problemas» ou o «acompanhamento das pessoas»? (...) Quanto mais trabalho se tem mais fácil é cair nesse erro [de não enquadrar teoricamente a intervenção] e eu própria já tenho dado conta de mim a escrever nos processos e nas minhas fichas e dizer: - Espera lá, mas isto enquadra-se aonde? É que nós temos mesmo de fazer esse treino. Eu acho que isso pode acontecer e pode acontecer se nós, não relermos as coisas outra vez, se não analisarmos. O que eu noto, ao fim destes anos de trabalho, é que agora, mais do que nunca, preciso de voltar a ver tudo. Quanto mais tempo vai passando, mais necessidade eu sinto de ler, o que já li ou outras coisas. O que hoje pensam sobre o assunto, porque se há livros novos, têm de pensar de forma diferente, do que pensavam naquele tempo em que me formei. Eu sinto essa necessidade” Paulina/E PS13.

Entre a vertente mais tradicional e individual do Serviço Social, eventualmente

aquela pela qual a profissão é mais (re) conhecida e distinguida na sua

especificidade, existe espaço para outras vertentes mais estruturais que

Malcolm Payne (1997) conjuga nas três visões já referidas: individualista-

reformista, socialista-coletivista e reflexiva-terapêutica, contemplando a

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possibilidade de integração da compreensão sociológica e psicológica,

articulada com o compromisso com a Justiça Social e os Direitos Humanos.

“…tive/tenho a oportunidade de fazer uma intervenção com um carácter mais individualizado (atendimento social e acompanhamento a famílias) e que é, sem dúvida, uma das maiores fontes de realização profissional e uma verdadeira ‘escola’, no sentido em que me obriga a uma grande exposição relacional e a bastante destreza e rapidez de raciocínio, pois as pessoas que nos procuram encontram-se na sua maioria em situação de fragilidade ou sofrimento e procuram uma resposta; e mesmo quando não temos essa resposta (o que acontece com frequência) acho que o facto de mostrarmos o maior respeito pela pessoa e pela sua situação e a ouvirmos e a ajudarmos a pensar sobre ela, só por si, já ajuda. Acho que é neste tipo de intervenção que o Assistente Social tem tradição e também é a esta intervenção que as pessoas nos associam. (…) Penso que hoje, os serviços ainda incutem muito esta perspetiva da intervenção assistencialista, porque a pretexto de ‘ser melhor’ para as pessoas, fidelizam a sua ‘clientela’. Não tenho nada contra atribuir benefícios ou distribuir recursos às pessoas, seja eles de que género forem, acho que há várias formas de os atribuir e que esse trabalho deve ser feito de forma a dignificar a pessoa e romper com o estigma que, muitas vezes, as pessoas têm de si próprias” Madalena/MM16.

Em outras narrativas encontra-se menção à dificuldade de reconhecimento do

saber experiencial e ao papel da formação pós-graduada, como referem

Paulina e António:

“Para além do que nós aprendemos teoricamente há sempre uma dimensão do que é experienciado, que às vezes, nem sabemos como é que encaixamos naquilo que aprendemos. A tal dialética entre a teoria e a prática... porque às vezes as coisas são tão intensas do ponto de vista da relação (nós aqui com as pessoas que estão em situação de crise, de desespero, tudo isso...), são tão intensas que nós não conseguimos logo assimilar ou formatar. Mas depois temos que ter algum distanciamento para nos sentarmos a refletir...e eu já tenho dado comigo a fazê-lo. Mas acho que só a maturidade pessoal é que faz com que nós tenhamos capacidade para nos distanciarmos e percebermos que temos que refletir” “ [voltar à faculdade para fazer o Mestrado] … foi um bocado voltar a aprender e perceber que uma pessoa aprendeu muito mais durante os percursos profissionais do que aquilo que pensava. Por outro lado, também é o aprender a sistematizar e outra vez a fazer leituras, a debater, etc., etc. E no meio daquele pessoal todo fiquei estupefacto por constatar que sempre sabia mais do que pensava…”

António/ E AF1

Este «voltar a aprender» aliado ao reconhecimento «do que se sabe» pela

experiencia refletida reposiciona os saberes práticos – na conceção de Barbier

(1996), entendidos como um meio de reaprender de outra forma e de assimilar

os conhecimentos anteriores através da sua mobilização na ação. O saber

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«composto» (articulando saberes de ação, saberes pedagógicos e normativos

e saber epistemológico), altamente contingente e com finalidades operacionais,

assemelha-se pouco ao saber científico.

Filomena a este propósito, menciona a sua forma de analisar, que parece típica

da cultura profissional dos assistentes sociais, embora não clarifique em que

medida ela é resultado ou resultante do seu percurso formativo:

“Eu andei em várias formações ao mesmo tempo e fiz outros cursos de outras coisas completamente diferentes porque eu achava que isso era interessante para ter uma visão do mundo e das diferenças de olhar o mundo, da maneira de estar e de pensar de cada um. Qualquer coisa que eu tenha que estudar ou analisar, a primeira proposta que eu faço a mim mesma é verificar, à volta daquilo, o que é que mexe, o que é que se move, vamos lá ver como é que é ” E Filomena / FA 7.

Para Jaime, o desafio que se coloca ao profissional é “… valorizar aquilo que

sabe fazer, aquilo que é seu de conhecimento, de aprendizagem, e depois

confrontá-lo com a sua realidade social e ver como é que pode inovar, e o que

é que necessita de aprender para o fazer bem …” Jaime/ E JF10.

Enquanto para Fernanda o «confronto com a prática» é o mote de uma

argumentação que acentua a divergência entre a formação inicial e os desafios

que se colocam ao exercício profissional:

“Aquela formação - na minha época e, pelos vistos, a de agora também, dá-nos a

sensação de sermos super-herói, de faz-tudo, não é? Como se tivéssemos uma varinha mágica, de fada! Depois nós não temos a maturidade para saber situar as coisas. E quando nos confrontamos com a prática, no terreno, percebemos que as coisas são diferentes” Fernanda / E FCR 5.

São muito diversas as conceções e os significados atribuídos ao ‘que se sabe’

mas o ideário de «super-herói» ou de «faz-tudo», ou ainda como refere Sousa

Almeida (2011), as “práticas discursivas encantatórias destinadas a garantir a

regulação social” têm um peso simbólico muito considerável.

Será como se alguns profissionais ainda oscilassem entre uma menorização do

seu conhecimento próprio (sobretudo face ao saber reconhecido pela

academia) e uma sobrevalorização da sua eficácia prática (sobretudo face aos

públicos e aos agentes que se movem no campo social); sendo que essa

‘eficácia prática’ também tem uma versão de saber, prático e contingente, mas

dificilmente explicitado e objetivado para partilha externa. Maria alerta para o

perigo de «achar que se sabe tudo».

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“Por muito que a gente queira mudar a imagem, por muito que a gente diga que os assistentes sociais já não são como eram antigamente... (e se calhar, não são; na essência, não serão - mas ainda trazem muito essa ‘bagagem’ e ainda se põem muito na posição de assistência)... e depois têm uma coisa complicada que é terem a mania que sabem tudo. A gente não sabe de tudo, dá uma ‘pincelada’ e talvez por isso é que sabemos tão pouco de nada. Eu realmente, como trabalhei com muita gente de áreas de formação diferentes, fui agarrando muita ‘coisa’, mas isso não me dá o direito de ter a mania que sei se tudo e, às vezes, também tenho” Maria / E RA5

Os saberes experienciais constituem boa parte do acervo específico de

conhecimento da profissão e estão presentes nas narrativas recolhidas;

contudo, os profissionais entrevistados ainda atribuem pouco valor à sua

explicitação e tendem a subvalorizá-lo por relação ao saber académico e o

próprio saber académico também tende a ter dificuldades no seu

reconhecimento como se constata na narrativa de Inês.

“E vou buscar ao Serviço Social este saber construído, que a Academia não considerava válido porque não era literário, académico, sistematizado, positivista, objetivista, neutro e lógico. E digo: - Não, esse não nos serve, o que nos serve está no paradigma emergente, está no paradigma interpretativista, está no construtivismo, está no sujeito epistémico, que constrói conhecimento na ação. Esse conhecimento que inclui a relação entre os sujeitos, o sujeito concreto, ligado ao meio e aos outros, é o que está na Mary Richmond e é o que atravessa o Social como um fio muito fininho. Porque ele pode ter mil ramos, ele é a seiva da árvore, pode ter mil braços desde a raiz, mil galhos, mil folhas, mas a seiva que circula é o fio condutor, é este conhecimento co construído pela vivência prática, pelo conhecimento académico e disciplinar e pela experiência, transformando-se numa estratégia da ação – e isto é uma especificidade” Inês/ E IV6.

Inês é uma das assistentes sociais que mais evidencia na sua narrativa o

conhecimento específico de Serviço Social e a necessidade deste ser

reconhecido (e de se dar a reconhecer) pelo saber académico:

“… o que eu acredito é que o Serviço Social tem um conhecimento estratégico, que tem toda a razão de existir na atualidade e que vai ser reconhecido como conhecimento académico. Não o situo no paradigma positivista, situo-o totalmente no paradigma emergente e, a fragilidade que ele tem, têm todas as ciências da atualidade: a fragilidade de operacionalizar um novo conhecimento que não pode ser só lógico e racional, que não pode ser neutro, que tem de ser comprometido. É complexo. E, por isso tem uma série de entradas, uma série de leituras e uma série de vertentes “ Inês/ E IV6.

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O otimismo expresso por esta assistente social em relação ao futuro da

profissão está ancorado na sua experiência profissional e de vida, mas também

na perspetiva conceptual que foi construindo.

“E vejo [o Serviço Social], na perspetiva sistémica, como um sistema aberto, como um sistema que interage com o ambiente e com os outros, mas como um sistema que é capaz de se auto-organizar. É capaz de, nas situações de maior desordem e de maior crise, criar um sistema novo e reformular-se como sistema vivo. Porque é assim que o Serviço Social tem sobrevivido. Ele tem sobrevivido dos seus próprios produtos, ele tem sobrevivido da sua própria aprendizagem, ele tem sobrevivido dentro do sistema dominante, nas suas margens, a partir da recriação do sistema, dentro e fora do sistema. (…) E aquilo que o Serviço Social já faz dentro da organização que é, de facto, viver em situações de desequilíbrio, viver em situações de articulação, de informação, comunicação e troca de energia, com os elementos internos e externos, pode fazer fora das organizações. Sempre foi isso que o Serviço Social fez! O Serviço Social sempre esteve na fronteira do sistema, lá onde a rutura acontece e é preciso agir… Se o Serviço Social só reproduzisse o sistema não tinha sobrevivido. Já tinha sido substituído, não tinha sobrevivido! “Inês/ E IV6.

A relação da aprendizagem da profissão com ‘o que se sabe’ aparece muito

mediada pelas aprendizagens tornadas conscientes a partir da experiência

refletida, constituindo esse acervo uma das maiores riquezas do saber próprio

da profissão, que carece de ser mais explicitado e tornado disponível para os

profissionais do campo e demais interessados. Para que tal possa mobilizar os

profissionais de forma crescente, importará refletir no potencial de incremento

de autoeficácia, de conhecimento e de autonomia que a explicitação destes

saberes experienciais pode trazer a cada um/a.

b) Em relação aos saberes de organização e procedimento

Estes saberes também tendem a ser generalistas dentro da «especialidade» e

da organização/serviço em que o profissional intervém. São saberes que se

encontram em maior interdependência com o poder, com o modelo

organizacional, com os dispositivos processuais e com a posição que o

assistente social ocupa na hierarquia; muitas vezes, são também estes os

saberes pelos quais os assistentes sociais são mais facilmente reconhecidos.

São saberes especialmente valorizados nas narrativas dos profissionais com

menor mobilidade organizacional, como é o caso dos «primeiros doutores»,

mas também identificados noutros perfis profissionais como as «seniores» -

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embora com exceções como são, por exemplo, os casos das narrativas de

Filomena ou Maria, que apresentam argumentos mais próximos dos saberes

de explicitação e investigação.

“Ao longo destes anos experimentaram-se tantos modelos, chamem-se lá os nomes que se chamarem e enquadrem-se lá nas teorias que quiserem, mas tentaram de todas as formas organizar os serviços... concentra, desconcentra, concentra, desconcentra mais, dá maior autonomia, volta a concentrar e tudo isto aqui se passa sem haver avaliação nenhuma dos impactos de cada mudança” E Filomena / FA7. “Em vinte e quatro anos assisti a tudo quanto foi mudança: mudança de chefe, mudança de estrutura, mudança do Ministério, mudou o nome do serviço, todos os anos mudava qualquer coisa. Então com aquelas mudanças sucessivas de governos, cada ministro que vinha inventava uma maneira diferente e punha lá outro diretor novo. Tivemos lá um diretor que, quando chegou pôs tudo de ‘pantanas’ porque achava que nós só trabalhávamos fora de horas e não podia ser. Acabou com tudo o que era trabalho comunitário…” Maria/ E RA2

Ambas, nas suas perspetivas complementares construídas em trajetórias

dentro dos serviços da Segurança Social, argumentam que a sucessão de

modelos organizativos e organizacionais impostos de ‘cima para baixo’, sem

avaliação de impacto e sem atenção os agentes internos, à experiência, aos

públicos e às mutações sociais revelam a variedade de importância e peso

relativo atribuídos às políticas sociais, mas também a posição de bastante

subalternidade destes profissionais.

“ Somos uma profissão de pobres”, diz Maria (E RA2), querendo significar que

na afirmação social dos grupos profissionais, parte da valoração é dada pela

importância atribuída aos públicos da profissão e que, o entendimento de que

trabalhamos exclusivamente ou prioritariamente com «os pobres», empobrece

a construção identitária e também as zonas de autonomia e construção do

sujeito coletivo.

A excessiva focagem da profissão na pobreza e, em especial, nas condições

materiais de vida e no controlo social, constituem argumentos do

‘empobrecimento’ e do ‘funcionalismo’ dos profissionais.

Jaime e António, de diferentes formas, evocam argumentos de relação com os

poderes instituídos para pontuar alguns constrangimentos profissionais. Para

Jaime, a questão da autonomia profissional face aos poderes instituídos

aparece como fundamental para que o assistente social deixe de ser um

agente de controlo.

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“Coexistem perspetivas e orientações diferentes e nós seriamos a classe profissional mais à-vontade, entre os grupos profissionais que trabalham no campo social, que estaríamos mais seguros, no sentido de discutir a reorganização do serviços socais estatais, dos serviços sociais públicos - numa articulação direta com os privados, com as comunidades locais, com os cidadãos, porque isso é importante para que haja aqui vetores de co-responsabilização social e de participação interativa. Agora, não podemos é fazer apenas o discurso do poder... parece que estamos a defender o Estado. Ou, por oposição, voltamos ao velho registo de que eu lhe falava há pouco, que é «os assistentes sociais como aqueles que podem provocar perturbação». Então, para não provocarem perturbação, nós colocamos os assistentes sociais numa lógica de controlo, para não haver grandes atritos, nem grandes problemas” Jaime/ E JF10.

António argumenta com clareza que “os procedimentos não são saber...mas

dão-nos a sensação de poder, pensa-se que já se sabe tudo.” A sensação de

poder decorrente do domínio das rotinas organizacionais é confundida por

vezes, com ‘saber’ mas, para António, não são ‘saber’ e as partes boas da

profissão, aquelas com que se identifica, nunca são as que ocorrem dentro da

instituição.

Este desconforto com as organizações, com as suas políticas, as suas práticas

e os seus procedimentos colocam, por vezes, os assistentes sociais em papéis

paradoxais de trabalhadores assalariados em que muita da sua intervenção

ocorre «fora» e «para além» da legitimidade, das regras e dos canais definidos

pelas organizações – como se os assistentes sociais fossem «empresários de

si» no sentido em que atuam nos espaços de não-formalidade ou de

informalidade entre serviços, poderes e recursos - são estes os espaços de

«formigas do sistema» a que alguns colaboradores deste estudo se referem.

No domínio dos saberes contingentes aos contextos organizacionais e muito

interdependentes dos poderes instituídos, também é pontuada a

competitividade entre profissionais e o mito do herói/heroína:

“…mas a minha experiência diz-me que quem trabalha nestas áreas, se não tiver princípios e uma formação pessoal muito consistente, torna-se facilmente uma pessoa amargurada, má pessoa mesmo e que, por vezes, roça a loucura, sabes? Paralelamente, existem fatores externos que também contribuem para esta situação: por exemplo, não é obrigatória a supervisão técnica dos profissionais, não lhes é dada oportunidade para poderem conversar e compreender as suas dificuldades, para falar e pensar sobre a sua ação sem o medo (sempre presente) de ser julgado...há muito a ideia que temos de ser heróis e heroínas na prática da nossa profissão” Sofia/ E ZC4.

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As diferentes perspetivas que os profissionais adotam no seu posicionamento

na organização onde/para quem trabalham e o patamar de autonomia

profissional que estão dispostos a negociar e a aceitar, interferem na relação

que estabelecem com a imagem de si, dos outros, com a aprendizagem dos

saberes procedimentais da organização e também com a(s) forma(s) como

lhes atribuem significado.

“… há profissão! Agora as pessoas não percebem porquê e às vezes vão buscar a ideia mais antiquada possível da profissão, e é ‘lixado’ porque tu próprio vais ao mais tradicional porque tens que estabelecer o diálogo com os outros, até para lhes desmontar á posteriori, como ‘as coisas’ são diferentes. Portanto, há alguma culpa partilhada que está aqui no meio - as coisas são o que parecem, também, deixemo-nos de disfarces! No Curso e no Instituto não conseguiram perceber isso: na profissão, nós somos também aquilo que parecemos. (…) a imagem corresponde também a alguma coisa interior da atuação profissional, deixemo-nos de ‘coisas’. Eu acho que neste momento é uma profissão pré-moderna, tipicamente pré-moderna. E não conseguiu evoluir porquê? Porque vinculou-se a instituições e modelos institucionais que eram do passado, ou seja, não se transpôs, nem fez o esforço de evoluir…Como não tem um corpo de saberes, único e próprio, tem que ir ‘beber’ aos outros; ou tinha técnicas muito fortes e muito importantes, como a Engenharia tem relativamente à Física e à Química, etc., mas não é o caso do Serviço Social” António/ E AF1.

Em trajetórias de grande estabilidade organizacional, encontram-se narrativas

que elegem a «segurança» e a «estabilidade» em detrimento de contextos

organizacionais com mais desafio, argumentando com vontades adiadas de

mudança, mas também com as vantagens atribuídas ao aumento do

conhecimento do contexto organizacional, do território, dos seus agentes no

âmbito de intervenção em que atuam; em narrativas de maior mobilidade, são

pontuadas mais frequentemente perspetivas críticas dos processos e dos

poderes institucionais.

Neste campo, foram identificadas nas narrativas (referindo-se a outros colegas

e não a si próprios) estratégias de assistentes sociais que são «vítimas e

cúmplices» das lógicas institucionais, quando assumem a vitimização do

sistema em que atuam mas também a reprodução desse mesmo sistema junto

das populações com quem trabalham, numa espécie de espiral mórbida de

vitimização e ascendência /controlo sobre o outro.

O mal-estar, o absentismo, a alienação ou mesmo o «burn-out» mencionados

por alguns entrevistados aparecem como argumentos de efeito dos contextos

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sobre os profissionais, mas seguramente ampliam também as consequências

sobre as intervenções levadas a cabo, sobre os públicos e sobre a própria

visibilidade pública da profissão.

“Conheço muitos colegas com graus de frustração e ‘burn out’ muito elevados que ficam doentes e não têm utilidade e acredito que a sua intervenção seria mais eficaz (e gratificante) com a adoção de outras metodologias e a utilização de outros conhecimentos ainda mais alargados. Uma das conclusões a que cheguei é que estes profissionais conseguiriam superar muitas das dificuldades que enfrentam se existisse uma regular discussão de casos, uma formação periódica no posto de trabalho, um bom ambiente de trabalho e superiores hierárquicos que motivassem e incentivassem” Mafalda/ Q MV17.

A inexistência, ou insuficiência, de condições que facilitem aos interventores

sociais e, em particular aos Assistentes Sociais, o exercício profissional

refletido tem dificultado a capacidade negocial destes técnicos e o aumento de

uma «competência coletiva» (Courtois et al, 1996), entendida como identidade

coletiva produzida na ação coletiva.

Armando, a propósito da imagem e dos valores da profissão, menciona uma

deontologia comprometida com a qualidade da prática profissional.

“Sinto-me, de facto, um assistente social, pois penso ter interiorizado os valores principais do Serviço Social e o que deve ser uma prática profissional cuidada e em constante atualização. Considero que um dos valores que devemos ter presente é o da necessidade de primar pela qualidade do trabalho do Serviço Social a partir da nossa prática profissional, porque um ‘mau’ desempenho individual fecha muitas portas. Devemos ter consciência que a dignificação da imagem do Serviço Social passa em primeiro lugar pelo trabalho de cada profissional, e não apenas (ou sobretudo) a partir de uma qualquer entidade reguladora ou de um regulamento. Assim, entendo que não devemos ficar à espera de uma “ordem milagrosa” para modificar as práticas profissionais que estão erradas, ou desajustadas e que, nós sabemos que não dignificam a profissão. A defesa do Serviço Social começa na intervenção de cada profissional” Armando/ Q AP19.

Outros Assistentes Sociais como Maria e Filomena, identificam nos colegas

mais novos um aumento da vertente mais tecnológica, em detrimento da

vertente mais humanista e relacional mas também o agravamento das

condições de trabalho em que exercem e às quais se sujeitam.

“Lidei com algumas colegas acabadas de formar, algumas muito boas, que me pareceram pessoas realmente abertas, mas lidei com outras que me fizeram muita impressão, porque as vi muito agarradas a um computador, muito tecnocratas: sabiam muito bem fazer quadros bonitos no computador, sabiam muito bem usar os programas informáticos todos e fazer relatórios lindíssimos, só não sabiam era o que queriam dizer as

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coisas que tinham que meter nos quadros. Achei (não posso generalizar) … mas foram muito os casos em que me desiludiram no aspeto relacional, achei-as muito teóricas, muito... informatizadas, pronto” Maria / E RA 2 . “... os mais novos que saltitam de trabalho em trabalho, ou de função em função, são obrigados às vezes, a fazer coisas muito estranhas, algumas das quais até desonestas, alguns vão para empresas que ainda por cima os incitam a fazer coisas de má fé... (…) vão parar por falta de oportunidade de trabalho no campo profissional... e são submetidas a regimes de trabalho muito difíceis” Filomena/ FA 7.

Madalena é uma das colaboradoras deste estudo que, apesar dos saberes de

organização e procedimento, pontua positivamente o espaço profissional que

foi conquistando.

“Quando cheguei não havia Assistente Social e o atendimento social era feito por uma colega que não é Assistente Social (em boa verdade, devo-lhe a minha integração e uma postura de abertura que me deixou construir a minha identidade profissional) e foi, a pouco e pouco, que fui construindo o meu desempenho profissional - e hoje a população sabe perfeitamente quem sou e qual o meu papel. Embora, por ser assistente social, tenha herdado um conjunto de «berbicachos» que as pessoas acham que são nossa tarefa e que têm a ver com burocracias (por exemplo, o preenchimento de formulários de habitação social, ou os ‘papéis’ dos programas da Segurança Social) e ainda não consegui quebrar esta associação que as pessoas fazem entre o preenchimento de papéis e as funções do assistente social” Madalena/ Q MM16.

A associação dos assistentes sociais com os «papéis e procedimentos» é algo

que parece fazer parte da imagem da profissão e de um certo perfil profissional

atribuído e/ou esperado ainda pelas organizações e que, para alguns

assistentes sociais, será uma zona de conforto e de poder. Contudo, é de

salientar a narrativa ontológica (Paul Ricour, 1995) de alguns entrevistados,

com a produção de sentido dos atores em processos de construção identitária

simultaneamente, múltiplos, contínuos e, por vezes, contraditórios.

Estes processos que oscilam entre o polo da estabilidade e da alteridade

permitem, na terminologia de Ricour (1990) «colocar em intriga uma

personagem». E é de uma «personagem» que muitas vezes se trata nestes

entendimentos dos saberes de organização e procedimento, na medida em que

os assistentes sociais que os tendem a privilegiar adotam «papéis» mais ou

menos rígidos e norteadores do seu comportamento, das interações e dos

processos de aprendizagem; por outro lado, na narrativa de outros

profissionais, como na de António, é identificável a dificuldade de desempenhar

o «personagem» esperado mas também o aumento do reportório de

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«personagens» que podem fazer com que o ator se sirva deles e não o

contrário.

“…estou em aprendizagem e, às vezes, isso é difícil. Não me dão muito espaço e eu, por vezes, também faço como fazia antes, e já não é bem assim. Mas depois também já vou ‘ganhando a mão’, e aqui há tempos estava assim num dia em que não me correram muito bem as coisas: - Este erro! Errar com esta idade, já com um estatuto e errar certas coisas que parecem ser básicas... é difícil, é necessária uma adaptação difícil. Mas às vezes, nestes momentos mais difíceis, penso num dito chinês que li algures e que diz assim: «O cavalo velho fará o caminho», ou seja, quando há uma situação de dificuldade, ‘o cavalo velho’ é o que faz o caminho e aponta a direção” António/ AF1.

Talvez o mencionado processo de ‘estar em aprendizagem’ permita aos

profissionais ‘ganhar a mão’, na medida em que lhes for possível a

desinstalação do conforto adquirido nos saberes de organização e

procedimento e se permitam errar. A coragem necessária a este processo é um

dos ingredientes a ter em conta, para além das circunstâncias da relação de

assalariado, com ou sem trabalho.

c) Em relação aos saberes temáticos especializados

Podem ter uma maior aproximação à especialidade por via do aprofundamento

da formação formal e académica e/ou por via do aprofundamento de uma

«área» de intervenção (Saúde, Habitação, …) ou ainda por via de uma maior

pertença ou conforto com determinada perspetiva do exercício profissional

(Formação, Animação, Gestão/Informática, …).

No caso da formação académica pós-graduada, existe uma valorização

explícita da via formal.

“Eu penso que a formação curricular, inicial e pós-graduada, de qualificação, toda ela é importante, do ponto de vista de nos dar um método, uma disciplina, um rigor, e uma coerência científica dentro da área em que estamos a trabalhar e a intervir; e dá-nos uma terminologia, uma linguagem comum para trabalharmos dentro daquela temática e daquele problema. Acho que aí sou defensor dessa formação estruturada, pensada, fundamentada e que seja de qualificação, que qualifica para ir mais longe – dá elementos para que o profissional, se quiser, possa avançar muito mais para além daquilo que está a fazer. Acho que esta é uma dimensão importante” Jaime/ E JF10.

No entanto, a formação pós-graduada é simultaneamente referida como uma

oportunidade de tomada de consciência e uma fonte de aumento dos dilemas

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que se colocam aos profissionais, quer por via da dificuldade em mobilizar o

aprofundamento teórico e metodológico para as respetivas práticas, quer por

via da dificuldade de aproximação ao sujeito coletivo da profissão e à respetiva

construção identitária.

“Depois do Mestrado, agora é que eu percebo... porque fui para uma área muito prática, com um trabalho muito estruturado e o meu impacto agora tem sido, em termos de trabalho o seguinte: um dilema entre os conhecimentos teóricos que vinham ‘fresquinhos’ do Mestrado (e que eu estava a pensar aplicar nas organizações) e depois o Serviço Social e a Animação, que são relativamente desestruturados e não podem deixar de ser desestruturados, nem deixar o informal porque se calhar perdem a sua essência, mas por outro lado, têm de ter uma estrutura” António/E AF1. “Acho que também continuamos numa lógica de ensino, muito na vertente de «na universidade ensina-se a fazer e na prática aplica-se» e depois não há mais o retorno daquilo que se aplica, para a universidade continuar a aprofundar o «como fazer», aprofundar pelo menos o quadro metodológico que é uma das questões que eu acho fundamental. O que é que eu identifico? Que os profissionais estão sempre à procura de conhecimentos de sustentação, de informação para aquilo que estão a fazer noutras áreas científicas e não na sua área nuclear, na sua área específica – isto tem que nos dizer alguma coisa. A interpretação que eu faço é a de que os profissionais consideram que o conhecimento de Serviço Social não lhes dá segurança, não lhes dá confiança; pensam que só indo buscar fora é que podem obter o contributo que procuram. Mas depois, a seguir, quando acabam essa formação deparam-se com um dilema ainda maior, que é assim: - Mas agora, o que é que eu sou? Querem que eu seja assistente social mas eu já não estou a fazer trabalho de assistente social, já estou a fazer trabalho de Psicologia ou de Sociologia ou de Jurista, ou de outra coisa qualquer, há aqui qualquer coisa que não está bem comigo. Isto que me está a solicitar está a conflituar comigo nos princípios do Serviço Social” Jaime/ E JF10.

O aumento da formação pós-graduada também fornece argumentos para os

dilemas profissionais e para a dificuldade de valorização, individual e coletiva,

dos assistentes sociais; tanto mais quanto a formação for hibrida e construída

em outras ‘courelas’ disciplinares (no discurso de Jaime). Contudo, perspetivas

como a de Filomena defendem, não obstante o recurso à formação formal

contínua como via de ‘especialização’ e/ou de credenciação de conhecimentos,

que o processo de construção de conhecimento exige a integração complexa

de saberes de várias origens.

“Eu acho que o conhecimento que se constrói com os outros, na vida, é um conhecimento estruturante porque no ‘fim das contas’, o que vai valer a cada um de nós é aquilo que foi aprendendo e guardando ao longo da

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vida. E, de facto, deve ser muito difícil dizer o que está na página quatrocentos e vinte e três do «calhamaço» que eu li, não sei quando. Agora o conjunto das leituras daqueles «calhamaços», mais os pensamentos que os «calhamaços» me suscitaram e as associações que eu fiz em várias áreas da minha vida, mais a vida social... talvez dê um conhecimento específico. Outra coisa que eu acho importante é interagir com pessoas diferentes, que pensem e vivam de maneiras diferentes da nossa: eu sempre funcionei entre grupos muito diferentes e acho que isso é importante” E Filomena/ FA 7.

No caso da via de especialização ou aprofundamento de determinada «área»

de intervenção (Saúde, Habitação, Justiça …) foi identificado um leque variado

de significados, dos quais salientamos alguns:

“…eu acho que na Saúde, especialmente nos Hospitais, os Assistentes Sociais deviam fazer um internato de Serviço Social, como os médicos fazem o internato médico” E Fernanda /FCR5 “E aqui (no IPO], como é uma situação de continuidade, é uma doença crónica, as pessoas vêm várias vezes, nós acabamos por ver essa pessoa várias vezes no tempo, mesmo que não haja uma situação direta, há uma continuidade, vemos se o doente piorou, se melhorou, se a família está bem, se não está e só essa pequena abordagem, às vezes, ajuda-os no percurso deles. E nós sentimo-nos bem por podermos ajudar com os nossos conhecimentos nesse sentido. E eu também gosto do trabalho multidisciplinar, gosto da partilha de informação com os outros técnicos, gosto de ouvir o que os outros técnicos pensam sobre a mesma situação, com outros olhares...e isso em termos hospitalares faz parte da rotina e é uma rotina que eu gosto porque aprendo, porque me abre um bocadinho os meus ângulos de visão, porque me ajuda a ter uma visão mais global da pessoa. (…) …nós aprendemos muito com os outros, até para nos reequacionamos em termos de atitude e isso eu acho importante” Paulina/E PS13.

“Estávamos a funcionar numa antiga cela, mas era uma equipa fantástica, porque era uma equipa mista, com homens e mulheres (uma coisa rara na nossa profissão) portanto era uma equipa muito equilibrada, uma equipa jovem, apesar de eu na altura ser a mais jovem. (…) Eu ainda hoje me recordo daquela experiência com muita saudade porque efetivamente o trabalho nas prisões estava no meu coração. (…) Apesar de ser também uma experiência de trabalho muito pesado. Durante esses anos tive situações muito complicadas, o que garante alguns constrangimentos e desilusões, porque não é fácil trabalhar num estabelecimento prisional ainda para mais sendo uma pessoa muito nova. Eu todos os dias sentia o peso da instituição, desde a revista na entrada até ao caminho até ao local de trabalho dentro da prisão a ouvir coisas que nunca tinha ouvido na vida, algumas complicações entre técnicas e guardas prisionais, e até as rivalidades que existiam na altura entre o IRS e a Direção geral dos serviços prisionais, mas mesmo assim eu recordo este período de trabalho com saudade” Filipa/E AR12.

“Eu estou a trabalhar no núcleo de Infância [de uma autarquia], o nosso objetivo é intervir com as instituições sem fins lucrativos que trabalham nesta área e a equipa é composta por duas assistentes sociais, uma

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educadora social e uma educadora de infância. Eu acho que nós, enquanto assistentes sociais, temos uma sensibilidade diferente porque nós não nos focamos só na criança, ou na educadora, ou na família...quando eu vou a uma instituição estou sensível a muitos aspetos e à interação entre eles, desde as crianças, os adultos que trabalham com elas, as instalações, o ambiente, as famílias, abrange-se um pouco de tudo e, em termos de diagnóstico é mais complexo no sentido de perceber o que se passa e qual o apoio ou intervenção prioritários. Os outros profissionais dirigem-se mais para a sua área de especialidade, não têm esta abrangência” Diana/ E AF15.

Recorda-se C. Josso (2002) a propósito da possibilidade de mobilização de

uma pluralidade de registos. A «especialização», quando se trata de trabalho

social, é algo que faz apelo à natureza interativa e composta dos saberes, das

competências e do conhecimento que vão sendo construídos ao longo da vida,

num movimento que ultrapassa uma «falsa racionalidade» como diria Edgar

Morin (2000).

Para além do local/área de intervenção/problemática com que intervém que

exige variáveis graus de especialização de conhecimentos e de desempenhos,

a profissão parece ter uma «fluidez» que contribui para a sua sobrevivência e

também para a possibilidade de se redefinir constantemente a si própria ou de

se reinventar.

O para alguns é fragilidade para outros é potencialidade, no sentido em que

uma identidade profissional «flutuante» (Riffault, 2007) permite a «mistura» tão

característica do Serviço Social e as abordagens complexas das situações-

problema, mesmo em situações ou em contextos de exercícios profissionais

que requerem bastante ‘especialização’.

“… isto só se aprende com a prática. Os livros são muito importantes, mas não te dão a bagagem para tudo. E é mesmo através do trabalho efetivo que tu vais encontrar as tuas dificuldades. (…) Procurei, informei-me, (…) preparei-me. Preparei-me, neste sentido, porque eu não fazia a menor ideia do que é que fazia uma Junta de Freguesia. (…) Quem trabalha diretamente com pessoas que não fazem a menor ideia do que é o trabalho social enfrenta uma situação muito complicada. Ou tu vais pelo que te dizem, ou então, acatas algumas coisas mas pedes autorização e vais à procura, vais bater às portas. Foi assim que eu fiz” Irene/ E IS11.

No caso de uma maior pertença ou conforto com determinada perspetiva da

profissão (Formação, Animação…), os significados aparecem situados entre o

polo da continuidade/especificidade e o da alternativa à via profissional que se

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considera mais tradicional e corrente e com a qual não è produzida

identificação.

“[A opção pela formação] É uma continuidade, uma especificidade e a sensação de uma maior eficácia.(…) E comecei a pensar que aquilo que é o suporte do Serviço Social, aquilo que hoje chamamos o empowerment (na altura não sabíamos dizer isso), talvez fosse mais eficaz através da formação. (…) Ou seja, quando eu opto pela formação comportamental eu estou claramente na mesma linha que me fez optar pelo Serviço Social, ou seja, provocar que as pessoas sejam donas de si próprias, provocar que as pessoas tenham direito ao seu projeto de vida, provocar que as pessoas sintam as contrariedades como provisórias e não definitivas” E Helena/ HS 3. “…o que salva mesmo o Serviço Social nas autarquias é a parte de animação. Se não fosse a animação... (…) É uma animação /educação informal ou não formal. Era a animação /dinamização do tecido social e de iniciativas locais para outras coisas - era um bocado ingénua, um bocadinho espontânea, mas considero que era uma boa parte do Serviço Social; porque a outra parte, a burocrática, acho que não interessa... mas ainda continua” António / E AF1. “Atualmente estou a tentar estabelecer-me como ‘coach’ num mercado competitivo e em rápido crescimento; tenho clientes de todas as nacionalidades com quem trabalho no seu processo de mudança por períodos de três meses, acordando a alteração de comportamentos desejada, no sentido de alcançar objetivos muito concretos e definidos pelas próprias pessoas” Mafalda/Q MV17.

Estas opções de «especialidade» por outros saberes e fazeres profissionais

correspondem a vias de pertença, de oportunidade e/ou de realização

profissional com enfoque num campo social mais largo que volta a englobar o

educativo e o cultural; estas opções também podem implicar diferentes

significados conforme se entenda possível continuar a «ser» ou deixar de

«ser», assistente social.

A nossa experiência no campo profissional também nos permite saber que

existem percursos de dissidência, de desistência e/ou de abandono da

profissão, mas essas foram situações que não privilegiámos na amostra de

conveniência.

Contudo, em algumas narrativas foram relatadas interrupções temporárias na

profissão em que as pessoas dizem ter feito «outras coisas» sobretudo pela

necessidade de garantir um rendimento; também, em outros casos,

argumentaram com uma certa vontade em cortar com «o canto da sereia» do

campo social, tentando ‘a sorte’ em ocupações criativas, artísticas ou

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associativas que não tenham nada a ver com o social. O que parece ser

evidente nas diferentes narrativas é a necessidade de atribuir sentido ao que

faz e ao que se pretende aprender, quer seja em continuidade ou em

divergência com «o que se sabe».

“…a profissão sobrevive enquanto profissão, eu penso que sim; e cada vez em mais diferentes campos de ação. E não tenho medo nenhum de me misturar com os outros todos [profissionais de outras formações] porque eu preciso deles, nem tenho medo da perca de empregabilidade no Estado, porque temos um potencial... cada vez mais, vamos trabalhar junto da sociedade civil e junto de grupos de cidadãos organizados, cada vez mais vamos fazer organização, na solidariedade e fora da lógica dominante, cada vez mais! E aquilo que o Serviço Social já faz dentro da organização que é, de facto, viver em situações de desequilíbrio, viver em situações de articulação, de informação, comunicação e troca de energia, com os elementos internos e externos, pode fazer fora das organizações. Sempre foi isso que o Serviço Social fez! O Serviço Social sempre esteve na fronteira do sistema, lá onde a rutura acontece e é preciso agir… Se o Serviço Social só reproduzisse o sistema não tinha sobrevivido. Já tinha sido substituído, não tinha sobrevivido! “ Inês / E IV6

d) Em relação aos saberes de explicitação e de investigação

As narrativas evidenciam um leque de argumentos diversos para estes saberes

que vão desde a inventariação dos motivos pelos quais os assistentes sociais

explicitam pouco o que fazem e o que pensam sobre o que fazem, até

argumentos mais normativos sobre o «dever» de investigar e produzir

conhecimento próprio respetivamente, nos argumentos de Irene, de Jaime e de

Helena.

Nos primeiros, Irene destaca a dificuldade e o receio em colocar no papel o que

se experiencia, a situação de subjugação hierárquica, o controlo dos serviços

sobre o que se escreve e fala fora das organizações, a falta de convites e o

sentimento de que os assistentes sociais não precisam de mais

reconhecimento do que o que obtém nas esferas de proximidade do seu

desempenho.

“Por vezes, temos alguma dificuldade de colocar no papel... porque nós conseguimos de uma forma prática colocar as questões, mas quem está nestas áreas, além das IPSS, que são muito controladoras, os serviços onde nós atuamos querem ter o controlo sobre o que fazemos e toda a gente tem receio do que possamos dizer, receio se o serviço é colocado em causa ou se dizemos uma coisa que não cai tão bem, então espera

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lá… Perante quem é que as pessoas têm de se colocar de acordo? É perante o serviço que lhe paga o vencimento. (…) Como somos profissionais muito do campo, da prática, não somos muito convidados a produzir reflexões escritas. (…) Nós, os assistentes sociais do terreno, não somos convidados a planear projetos para depois serem aplicados na prática. A não ser que seja uma figura ou outra, de mais relevo, por exceção. Se calhar faz-nos falta a tal identificação com a profissão, sentirmo-nos mais valorizados de fora. (…) É a imagem da pessoa ou é a imagem do serviço que se vai representar? Neste caso é a imagem do serviço. Somos nós que não nos conseguimos impor? Eu acho que não passa por aí. Acho é que ainda há muito aquele estereótipo do assistente social como trabalhador por conta de outrem, com um bocadinho de receio de nos aventurarmos. Somos tão capazes como os outros. (…) “Eu conduzo a minha intervenção mas não é para obter reconhecimento. Faço o melhor que eu sei mas, nesta Junta de Freguesia, sinto que sou reconhecida sobretudo pelas outras instituições e que sou muito acarinhada por elas. (...) Era importante sermos chamados a explicar como é que é a nossa função, o que é que nós fazemos, como é que produzimos e como é que depois se transporta esse conhecimento para o exterior” Irene/ E IS11.

Por outro lado, existem também argumentos (entre muitos outros, mais

compreensivos, interpretativos e/ou normativos) que salientam aspetos:

- de poder

“Porque depois, se calhar, vem um sociólogo que fez um trabalho de

investigação... se calhar são pessoas e instituições que têm muito mais peso junto do poder. Não é tradição, é peso, lobby - e isso é outra coisa onde nós não encaixamos” Irene/E IS11;

- de modelos e de ‘modas’

“Nós como andamos muito atrás das modas, é o seguinte, andamos ainda a estruturar o que os outros andam a desestruturar” António/E AF1.

- de ‘peso’ da formação inicial

“Era uma formação que levantava várias quezílias políticas (…). Quando me envolvi nessas discussões políticas dei-me conta do peso ideológico que havia sobre o Serviço Social, porque éramos vistos como aqueles que poderiam provocar a rebelião, ou seja, poderiam levar os ‘utentes’, ou os sujeitos das camadas mais desprotegidas a ter uma influência nefasta sobre o país organizado e sobre os modelos de organização do país. (…) Recordo também que, de facto, uma das coisas importantes, era a escola viva, ou seja, a escola com dinâmica, a escola participativa, em que a relação de proximidade, debate, reflexão, discussão entre os profissionais, entre os professores, com a comunidade local, tudo isso era uma vivência extraordinária e que trouxe uma grande riqueza para os domínios da maturidade e das competências profissionais que nós vamos adquirindo e desenvolvendo. Outra questão é o enfoque da dimensão prática, da formação com casos práticos, com questões concretas, com realidades sociais do dia-a-dia... o nós conseguirmos sair da porta do Instituto e olhar à volta e ver uma

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realidade social que nos diz respeito enquanto cidadãos, mas principalmente enquanto profissionais, enquanto assistentes sociais” Jaime / E JF10

- de reconhecimento científico da produção escrita dos assistentes sociais e de

validação e ‘utilização’ pelos profissionais

“Eu penso que a produção escrita está no meio académico porque há um problema de reconhecimento científico dessa produção que não foi tratado ainda, ainda não foi discutido, não foi exposto, no âmbito da classe profissional; ou seja, eu nunca tive nenhum documento que me informasse, por exemplo, que a Associação dos Profissionais de Serviço Social organizava um debate sobre «pesquisa em serviço social, contributos para a prática profissional». Esse é um dos primeiros problemas do reconhecimento: se não é a própria classe profissional a impor esse reconhecimento, não são as outras que nos vão levar a esse reconhecimento. (…) Depois, porque parece que olhamos para a produção científica como mero suporte da academia ou do sistema de formação – isso é um erro, é um equívoco pura e simplesmente! Se nós fizermos uma análise aprofundada da produção científica, mesmo dentro dos produtos formativos da academia, eles estão todos virados para a prática profissional, ou seja, eles analisam em 99% dos casos, as práticas profissionais. E depois não há devolução à prática profissional; ou seja, parece que se encerra dentro de uma concha, parece que existe aqui um medo inconsciente, de não ser validado pelo profissional que está no terreno” Jaime/ E JF10.

- de divulgação e reconhecimento do bom trabalho que se faz

“Há imensa gente a fazer trabalhos excelentes, e que não é reconhecida. E não vejo nenhuma forma de avaliação que permita alterar isso. Era aqui, que eu acho, mais uma vez, que a Associação dos Profissionais de Serviço Social e as pessoas que estão neste momento na associação e que têm conhecimentos no plano teórico e no plano prático, deviam influenciar a opinião pública e atuar E Filomena / FA 7.

- de esforço coletivo

“Eu acho que os outros profissionais que trabalham mais a nível liberal conseguem fazer valer melhor a sua opinião, através de artigos de opinião ou científicos ou de outras formas. Nós, é mais a nível ‘caseiro’, não é? Mas a nível externo, com repercussão nacional, não conseguimos produzir reflexões por escrito tão bem. Só meia dúzia de profissionais é que se destacam, e são as mesmas há não sei quantos anos a esta parte - acho que são as mesmas desde que eu entrei para Serviço Social. E esse «salto» era necessário, mas temos todos que nos esforçar para isso” Irene/E IS11.

Estes argumentos associam-se à existência de uma comunidade científica de

Serviço Social recente e pouco numerosa (composta também por profissionais

que lecionam em parte do seu tempo e/ou que desenvolvem percursos

pessoais de investigação) mas que tem desenvolvido um enorme esforço de

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explicitação e investigação, embora ainda seja possível melhorar muito a

relação entre a academia e o campo profissional.

“Acho que esta relação de confiança entre a academia e a prática, entre as instituições e os trabalhadores, os técnicos, os assistentes sociais tinha que ser melhorada, tinha que ter um investimento forte. E isso ganharia com uma dimensão de espírito de grupo e de reconhecimento da classe profissional. Sem isso estou convencido que nós não conseguimos ter estas dinâmicas integradas e a funcionar” Jaime/ E JF10.

Um elemento também presente em algumas narrativas que contribui para inibir

estes saberes de explicitação e investigação foi a falta de expetativa positiva

sobre o futuro coletivo da profissão.

“…[a profissão]está a perder mercado de trabalho, em todas as frentes. A concorrência é muita e, por outro lado, as pessoas, do ponto de vista do corpo profissional, estão entre a extinção ou a renovação, das duas, uma. Agora também te digo uma coisa: as «coisas» que morrem é porque têm que morrer, ponto final. Não me deixa pena nenhuma. O que ficar de historial é uma memória, boa ou má, como a memória do funileiro, como de outras profissões extintas. A função em si, o trabalho em si, será feito de uma forma ou de outra, por outros” António/ E AF1.

A presença em algumas entrevistas de analogias com profissões artesanais

desaparecidas (funileiro) ou tecnologias obsoletas (máquina de escrever)

ilustra a argumentação (sentida com ambivalência) de que a profissão poderia

desaparecer por perda de legitimidade do seu objeto e/ou de pertinência da

sua ‘tecnologia’. Também foram expostos argumentos de continuidade por

razões não desejadas,

“…ainda há pessoas que estão nessa atitude, do «dar» e do «resolver» o problema da pessoa dando um “subsídio”, ainda existe muita prática assistencial. Mesmo quando se lançou o RMG (e eu, de um modo geral, concordei com o rendimento mínimo)... havia ali vertentes de intervenção que se não fossem mesmo acompanhadas, de perto e a sério, descambavam para a assistência. Porque muitos técnicos também não estão para se esforçar mais: pois se com a atribuição de um subsídio não têm mais com que se ‘ralar’, nem pensar em mais nada, porque é que teriam de telefonar para aqui e para acolá, a pedir colaboração à saúde, a pedir colaboração à escola, a perguntar à professora se o menino tem aproveitamento escolar ou não. Acham que ninguém lhes paga para fazer isto e que não têm porquê arranjar mais trabalho” Maria/E RA2 “Penso porém, que a sua definição [da profissão] seja nos dias de hoje a “nódoa” de um sistema político que procura colmatar falhas organizativas, de criação e distribuição da riqueza e que se baseia em atividades de assistencialismo que geram dependências nos indivíduos e nas instituições e que está sobretudo vinculado ao controlo social dos mais pobres e vulneráveis. No dia-a-dia, o trabalho de grande parte dos Assistentes Sociais, resume-se à gestão de medidas de apoio económico, com um

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grande peso processual e burocrático na gestão de problemas isolados de indivíduos isolados e pouco atuam na promoção da mudança. Os Assistentes Sociais ainda servem enquanto ‘cara’ a um corpo institucional com falhas políticas, como recursos paliativos que, muitas vezes, servem de ‘tampão’ a verdadeiros e reais problemas sociais. Sinto que um futuro diferente ainda vem longe e que hoje estamos muito dependentes dos números da pobreza e de novas variantes das velhas formas de assistência” Armando/ Q AP19.

Por outro lado, também esteve presente o discurso da valorização e do orgulho

profissional que, segundo Jaime, carece de debate público.

“Ora, para nós ganharmos esse reforço, esse gostar da classe, para nos sentirmos identificados porque nos dá reconhecimento, nos dá valorização, é preciso termos tudo isso, é preciso termos esse debate público, é preciso darmo-nos a conhecer, é preciso que a gente fale sobre nós próprios e fale das nossas práticas, das nossas intervenções. Porque isso é que vai mudar e levar, mesmo os mais reticentes a dizer assim: - Não, eu sou assistente social! Nem que seja porque isto agora está numa fase boa e toda a gente fala de nós com validade, com valorização” Jaime/ E JF 10.

Mais uma vez, na diversidade de argumentos e perspetivas encontra-se terreno

fértil e potencial para que a relação da profissão com o seu ‘capital de

conhecimento’ seja fortalecida. Defende-se a ideia de que na medida em que

os assistentes sociais puderem ganhar segurança sobre ‘o que sabem’ (e essa

segurança é obtida em boa parte por exposição e reconhecimento externo)

podem ficar mais disponíveis para procurar ‘saber o que não sabem’, colocar-

se em contextos de partilha e reflexão, comprometerem-se com percursos

aprendentes, com processos de experimentação social e de resistência, que

podem conferir algum otimismo ao futuro.

“A área de trabalho do «social» é tão abrangente, tão abrangente, que tem uma identidade própria, nós sabemos que a tem. Ela tem é que ser reconhecida a nível superior. Eu acho que a nossa profissão, neste momento, já está num patamar diferente; e isso é muito devido a nós, profissionais. Porque os profissionais gostam daquilo que fazem, porque se identificaram com o espírito do Serviço Social (não é o assistencialismo, não é nada disso) nós vamos à luta, seja nas barracas, seja onde for. Eu acho que, essencialmente, nós temos uma grande capacidade de resistência” Irene/E IS11

Esta posição não esquece o dilema profissional com as instituições, sobretudo

na relação de assalariado, em postos de trabalho (quando os têm) que lhes

exigem apenas a resolução de problemas, que os avaliam por quantificações

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fabris e que não reconhecem, nem validam, os saberes de explicitação e

investigação.

Os saberes de especialidade e, ainda mais, os saberes de procedimento e

organização são contextualizados, isto é, o seu valor está profundamente

dependente do respetivo contexto de exercício, dificultando a apropriação pelo

profissional, o reconhecimento pelos outros e a transposição para outros

contextos.Também nestes cenários, os assistentes sociais não detêm a

exclusividade destes constrangimentos e muitas outras formações e profissões

se questionam sobre os futuros possíveis para não continuarem reféns de um

modelo desenvolvimentista que se esgotou. Um dos principais desafios nestes

tempos de viragem do «capitalismo triunfante» poderá ser o de transformar os

processos individuais e coletivos de resolução de problemas em processos de

aprendizagem.

“Reforço novamente que já ultrapassámos aquela fase em que o assistente social era olhado assim de lado, como quando eu comecei a trabalhar. Temos feito um percurso com muito low profile, acho eu. Mas temos feito um caminho, cada um de nós, tentando ser um bom técnico, abarcando uma série de áreas de trabalho e é essa a riqueza que eu acho que este curso dá, porque nos prepara para intervir na ação social, na intervenção com o ser humano, com o outro, mas também nos torna aptas a trabalhar com as dinâmicas sociais. Claro que há coisas que não referimos aos outros, porque temos esse compromisso ético, mas podemos ouvir e aconselhar, com os pés muito assentes no chão. Mas realmente é uma das profissões que dá uma grande ‘bagagem’ de experiências e de aprendizagem... Irene/ E IS 11

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6.3. “Abrir Caminhos”13

Na significação que quisemos atribuir neste trabalho de investigação «abrir

caminhos» foi a expressão que alguns assistentes sociais utilizaram para referir

que a sua trajetória profissional foi marcada pela intervenção em campos novos

e/ou de formas inovadoras. Fala-se da evolução de uma profissão que se vai

construindo na ação e na reflexão, com uma forte componente de referência à

especialização profissional (mesmo sem perder a vocação generalista) e aos

projetos e que «abriu caminhos» por entre modelos e modas.

Simultaneamente, nesta forma identitária, temos uma diluição de 'fronteiras'

das 'coutadas' do conhecimento disciplinar, uma porosidade que permite a

surpresa do fenómeno total, do novo, do provisório, do reversível; mas também

da «competência» profissional construída em percursos de qualificação

reflexiva ao longo da vida.

Na terminologia de Dubar teríamos um desenho de identidade que fica

«responsável pela sua promoção», com uma forma identitária “reflexiva” e

alguma inquietação na «unidade do eu» - que procura compromissos entre o

projeto, o significado subjetivo e o reconhecimento dos pares e/ou de «outros

significativos».

“…o trabalho, mesmo o mais «comum», tornou-se um desafio para o reconhecimento de si, um «espaço de palavra» a investir (ou não), um «campo de problemas» a gerir e para tentar resolver (ou não), um «universo de obrigações implícitas» e já não de «contrariedades explicitas de obediência». Quem diz desafio, diz ao mesmo tempo incerteza e grande implicação. O trabalho, mesmo assalariado, tornar-se-á, para cada vez mais assalariados, uma ocasião de criatividade pessoal e coletiva, reconhecida e valorizada ou, pelo contrário, uma necessidade de sobrevivência pelo cumprimento de tarefas cada vez mais insignificantes? Nada está ainda decidido. O recurso à criatividade dos assalariados, para resolver problemas e rentabilizar investimentos, faz-se acompanhar de racionalizações que dividem e fragmentam as atividades e são exercidas ao mesmo tempo pelos coletivos. A concorrência e a competição penetram nas empresas, dividem os assalariados ainda mais quando se fazem acompanhar pela redução de empregos e de racionalização dos «recursos humanos». Eis o que permite compreender o desencadeamento (…) do «modelo da competência», ao longo dos anos 1980 e 1990” Dubar (2006:97)

13‘Caminho’ é a designação usual para o percurso que une um ponto a outro e que pode ser pré-definido,

improvisado ou a explorar; entre outros, tem também um significado de descoberta pessoal.

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Todos os profissionais entrevistados evidenciaram narrativas reflexivas, a que

provavelmente não será estranho o fato de estarmos a trabalhar com uma

amostra de conveniência. Contudo, o experimentalismo de «abrir caminhos»

(quer em relação ao «quê», quer em relação ao «como») está mais presente

nas narrativas de Fernanda (FCR5), de Helena (HS3), de António (AF1), de

Sofia (ZC4), de Armando (AP19) e de Madalena (MM16). Nas respetivas

argumentações, todos eles dão ênfase a este gosto por desbravar, por ‘ir à

frente sem mapa’, por co construir uma trajetória profissional que não podem

deixar de identificar com as suas vidas e que tem uma marca pessoal – na

expressão de Irene designada como «dar a cara».

“Porque nós estarmos numa determinada profissão tem de ser sempre um fator de orgulho e isso permite-nos ir até às últimas consequências: - Não, eu sou assistente social, eu tenho que defender este assunto e ir até às últimas consequências, onde eu ponho a minha intervenção, onde eu ‘dou a cara’, tenho de ir até ao final” Irene/E IS11.

Nos processos de «abrir de caminhos» profissionais, parece importar o

conceito de «assinatura» de Bruno Latour (1998), onde a identidade é

entendida como um fio que liga as camadas que envolvem a pessoa; e onde a

pessoa pode ter múltiplas assinaturas.

Por outro lado, a «vulgata da competência» como refere Dubar (2006:98),

identifica «os três pilares» como «saber, saber-fazer, saber-estar»

mencionando que depressa foram substituídos por outras «qualidades» a exigir

e/ou a desenvolver: «iniciativa, responsabilidade e trabalho de equipa».

A formação contínua aparece aqui como o lugar de uma verdadeira «batalha

identitária» que desvaloriza as identidades coletivas de profissão e valoriza a

conversão a uma identidade de empresa comprometida com os objetivos

estratégicos e a mobilização para os realizar.

No material narrativo, o conceito de «competência» é pouco situado e, por

vezes, é confundido com «ter conhecimentos para», como se o processo

adaptativo aos novos léxicos fosse feito em tradução «à letra».

“…identifico-a [a identidade de uma área profissional ]em termos dos princípios e dos fundamentos que tem que ter na sua formação. (…) Depois temos a questão da identidade pelas competências e eu aí tenho que ver: «o assistente social tem competências para fazer o quê?». Tem competências para diagnosticar, mas tem competências para estudar o problema com o sujeito, com a comunidade e com a relação da família,

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tem competências para analisar esse problema e elaborar um plano de intervenção sobre ele. E agora mais recentemente tem uma competência de, para além de realizar esse plano de intervenção, o avaliar e de o investigar e de o voltar a planear e reorganizar. Essas são competências de ação, competências de intervenção e investigação também associadas. Depois tem uma competência que, para mim, é fundamental ser reconhecida em Serviço Social, que é integrar a abordagem individual e coletiva. Nós, a partir das duas abordagens, que estão unidas na intervenção do assistente social, que é a abordagem individual centrada na relação de ajuda com a pessoa, e a abordagem coletiva, centrada na família e na comunidade, como um todo, fazemos um processo integrado e em simultâneo o desenvolvimento de competências. Competências para quê? Para um fim último que é a cidadania plena das pessoas, em comunidade, em sociedade e a melhoria da sua qualidade de vida como sujeitos. E isto implica trabalhar competências de autonomia, de participação” Jaime/ E JF10.

Entende-se que a gíria profissional do Serviço Social tem sido continuamente

‘revista e atualizada’ integrando os léxicos da moda, sem que esse processo

tenha correspondido necessariamente a um aprofundamento do debate interno

sobre eles.

Um dos exemplos, é a ideia de «empregabilidade» nascida com a subida do

desemprego e o enfraquecimento do movimento sindical no final da década de

90, e cujo surgimento responsabiliza os assalariados pela aquisição e

manutenção das suas próprias competências, sendo a formação concebida

como um investimento pessoal a rentabilizar (Dubar, 1999) - esta ideia de que

cada um/a é responsável por se manter atrativo e ‘competente’ para o mercado

de trabalho também inunda o campo profissional dos trabalhadores sociais.

Aliás, os espaços de debate existentes entre trabalhadores sociais é

essencialmente autorizado/promovido pelas instituições, quer as académicas,

quer as estatais, quer as da sociedade civil e, está muito ligado às questões

instrumentais (de como se faz) e aos impactos produzidos (com que

resultados), o que reforça a instrumentalização do Serviço Social.

A questão do compromisso ético e deontológico nos percursos de

aprendizagem profissional é, por outro lado, um eixo central desta tipologia,

demarcando formas e modos d@ assistente social se posicionar, em especial,

na relação que estabelece com os modos de entender o estatuto socio

profissional, no relacionamento com a organização coletiva da profissão e com

a abertura ou fechamento social da profissão.

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A relação de ‘quem se é’ com a aprendizagem da profissão

A forma como cada pessoa entrevistada relacionou a representação de si com

a aprendizagem da profissão é diversa mas procura-se destacar as formas de

‘se representar’ articuladas com os percursos de aprendizagem identificados.

O processo de aprendizagem da profissão

Do ponto de vista das formações de base a diversidade verificada prende-se

mais com a diferença de anos de formação e respetivos planos curriculares, de

entidades formadoras (não obstante o predomínio do ex- Instituto Superior de

Serviço Social de Lisboa) e muito menos de linguagens, que apresentam uma

relativa harmonização.

“A gente já ouviu isto quando fez a licenciatura, porque isto já foi dito mas, no dia-

a-dia a pressão é tanta, nós dispersamo-nos por tantas coisas, que esquecemos coisas que são básicas. (...) Também em cada fase da nossa vida pessoal as coisas fazem um sentido diferente. Há várias coisas que temos de ter em linha de conta ao longo do nosso trajeto como profissionais e também tem a ver com o nosso desenvolvimento enquanto pessoa” Paulina/E PS13.

A relação triangulada que se estabelece entre polos diferentes - as

características individuais e o maior ou menor carisma, a experiência e a

formação – expressa a complexidade e diversidade destes percursos. A

combinação e a força de influência relativa destes polos diferem ao longo da

trajetória de vida, criando um movimento contínuo de interdependências que

não é alheio aos contextos onde se desenvolve.

“Acho muito importante o contexto em que estamos a trabalhar, para mim é quase 70% do que define o que estamos a fazer: se nos permite crescer, se nos permite ter alguma autonomia para pudermos crescer, para puder fazer coisas novas… Isso é fundamental. No fundo eu ainda estou aqui

Experiência

Caraterísticas e

história pessoal Formação

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469

porque não é sempre o mesmo trabalho, posso fazer coisas diferentes” Diana/E AF15

Esta atenção a ‘quem se é’ não pretende destacar o individualismo pós-

moderno; antes pelo contrário os sujeitos são, no entender de Alain Touraine

(1992), o ator coletivo pelo qual os indivíduos atingem o significado holístico da

sua experiência.

a) @s tecelãs/ões de histórias

As narrativas com centralidade nos atores e na tecelagem das suas histórias

salientam percursos de aprendizagem mais humanistas, no sentido em que

os profissionais reconhecem o compromisso com as pessoas numa grande

proximidade ao ‘terreno – contexto’ como fonte privilegiada de aprendizagem e

procuram a oferta formativa preferencialmente dentro do campo científico de

Serviço Social e nas suas instituições formadoras (Inês, por exemplo); ou, no

polo oposto, saliento percursos formativos compostos por vários campos das

ciências sociais (Filomena, por exemplo).

“Porque eu vim de um País que diziam que era colonial e que escravizava as pessoas (é verdade que eu vim de um País colonial, é verdade que havia escravatura), mas aqui a escravatura era muito pior e vocês não tinham nomes para as coisas. Não davam nomes às coisas. Eu escrevi os relatos de vidas dos idosos ( …). Estas pessoas tinham histórias fabulosas... eu escrevia-lhes as canções, escrevia-lhes as coisas todas e dizia: - A vossa televisão eram as desgarradas, as canções ao desafio... Vocês denunciavam tudo. As palavras estão aqui, estão escritas nos versos. (…) …[o trabalho de equipa] permite perceber como é que várias assistentes sociais juntas criam um saber que nenhuma antes tinha e que vai potenciar o trabalho de cada uma. (…) há questões que podes resolver porque estás dentro e que vão mexendo a partir de fora e que vão interagindo e, que se vão resolvendo por esta ligação entre o fora e o dentro” Inês/ E IV6. “A riqueza que as histórias de vida têm e a capacidade que estas nos dão de produzir conhecimento é, para mim, algo fantástico” Madalena/Q MM19. “Os assistentes sociais contavam umas histórias de vida engraçadíssimas mas que nunca mais acabavam, aquilo era muita descrição e pouca análise” Filomena/E FA7.

Estes diferentes enfoques encontram-se representados sobretudo na ligação

entre as «características individuais» e a «experiência», embora cruzem com

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470

influências de foco, mais individual ou mais estrutural, com maior compromisso

com a estabilidade ou com a mudança. São percursos dentro da mesma linha

de aprendizagem da formação inicial que privilegiam a perspectiva de aprender

com a experiência (com uma supremacia clara da empiria sobre a teoria), mas

também de «reciclar» os conhecimentos e de os «aplicar» nos contextos reais.

“Eu acho que a minha riqueza profissional vem toda do contacto que eu tive ao longo destes anos com as histórias de vida de pessoas que eu conheci e dos envolvimentos e das relações que criei com essas pessoas. Porque, no fundo, criamos sempre relações (relações profissionais, obviamente), mas não deixam de ser relações e eu considero que aprendi imenso. Até porque eu acho que todas as pessoas com quem me cruzei tinham alguma coisa para me dizer e para me ensinar, apesar de eu também ter tentado ensinar-lhes alguma coisa do que sabia e da minha experiência de vida” Filipa/E AR12.

Encontram-se argumentos nestas narrativas que vão no sentido de destacar a

«formação pessoal e social» de cada profissional, como uma componente

prévia à formação inicial que é identificada como o interesse e o gosto por

«trabalhar com pessoas» (como os exemplos de Helena ou de Ana, “Desde

miúda que eu tinha a noção que as pessoas eram a única ‘coisa’ que me

interessava” Helena ou “…eu sempre tive um certo interesse por perceber o

que se passa com os outros” Ana). Também a «vontade de mudar o mundo»

está presente, como no caso de Irene:

“Acho que esta profissão é uma profissão muito bonita, não só bonita pelo facto

de se gostar dela, mas por permitir ir ao encontro do ser humano. O ser agente de mudança … eu acho que essencialmente é isso, a luta diária e constante que tu tens para ser agente de mudança - mudança de mentalidades, mudança de atitudes” Irene/ E IS11.

Mas também se encontram argumentos, no outo extremo da ‘linha’, mais

genéricos e menos estereotipados, como os de Sílvia:

“Nunca me motivaram razões de “boa samaritana”, de “ajudar” ou “fazer o bem”, nem tão pouco motivações religiosas pois sou ateia (refiro-o porque ainda hoje encontro motivações veladas desta ordem), a minha ideia era tentar “mudar algo”, ideia vaga necessariamente” Sílvia/ Q SG18.

Curiosamente, ou não, nestes percursos de aprendizagem a formação é

tendencialmente entendida como complementar às características pessoais e à

‘educação de base’ e é descrita uma apropriação do percurso formativo com

grande empowerment, embora a ligação com a academia e o compromisso

com a profissão possam ser variáveis.

A profissão de assistente social, como em muitos domínios expressivos e/ou

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artísticos, aparece nas narrativas de alguns entrevistados «colada» à vida,

como se não existisse separação entre a pessoa e o profissional – onde as

características da pessoa e da sua relação «apaixonada» com a profissão

fossem um eixo distintivo.

De qualquer forma, a pessoa que habita o técnico e, sobretudo, as formas e os

modos como essa dimensão se manifesta, condiciona e interfere no

desempenho profissional, contribuindo para o posicionamento no campo (no

entendimento de Chopart, 2003) e relaciona-se com diferentes modos de

entender a formação e o trabalho.

“Esta é a minha perspetiva de estar na vida, porque isto também passa muito pela forma como nós estamos na nossa vida, não é? Porque senão, não nos conseguimos encaixar nesta profissão. Às vezes, as pessoas são tão infelizes na sua profissão, porque não têm nada a ver com aquilo…Tu gostas, ou não gostas. Ou aprendes a gostar...” Irene/ E IS11.

Escolhemos trechos de posições diversas para revelar algumas variáveis

presentes nos posicionamentos descritos nas entrevistas: algumas

identificadas como pré-existentes em relação à formação, como a Paixão “Eu

sou grande otimista do futuro do Serviço Social, primeiro porque sou uma

grande apaixonada pelo Serviço Social e pelas assistentes sociais” (Inês/ E

IV6), o "Sentido social" que Maria menciona

“…eu sempre privilegiei muito a qualidade da relação com o outro (com o cliente ou com o utente, chamem-lhe o que quiserem) e acho que isso se perdeu. (…) Mas eu acho que esta atenção ao outro... não sei se é da profissão que eu tinha, ou se eu já levei isto para a profissão. Eu acho que o Serviço Social não se aprende todo na Faculdade, acho que não, arruma-se. Mas eu acho que o sentido social, de que tanto se fala lá, se leva cá dentro” Maria/ E RA2.

ou a "Sensibilidade para as questões sociais" como refere Filipa (E AR12); e

outras, que os entrevistados imputam à formação, em especial à formação

teórico-prática nos contextos de estágio, como a «Riqueza de saberes», uma

«Visão de mundo»

“Porque nós somos diferentes das outras áreas. Nós abarcamos uma série de áreas de trabalho que mais nenhum curso abrange e estamos muito mais bem preparados para ir para o terreno, exatamente pela componente de aprendizagem prática que os estágios permitem. Eu sinto essa riqueza de saberes” (Irene/E IS11) “…o que aprendi foi uma base que depois foi evoluindo. (…) foi um tempo em que eu fui pensando as coisas e tentando encontrar qual era o fio da

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meada, quer dizer, inclusive como é que se trabalhava com as pessoas, com os mais pobres, com as crianças, com os velhotes, etc., porque eu passei por essas fases todas e isso era interessante.(…) Mas foi bom ter descoberto estas coisas todas, deu-me uma visão do mundo, das pessoas e da profissão que considero muito rica” Ana / E TA8.

ou a «Mistura» como refere Inês (E IV6) "...esta polivalência de criar sinergias e

de misturar tudo" ou ainda como diz Maria:

“…se há coisa que define o nosso campo é a mistura, é o estar por dentro. Se a gente não conseguir estar por dentro, estar próximo, não ‘agarra’ nada. Porque é quando a gente está por dentro das situações, e se senta ao lado, e é igual, que nos passam as coisas, como que por osmose” Maria / E RA2.

Por outro lado, alguns entrevistados constroem a sua narrativa com bastante

distância em relação ao polo das características pessoais, não evidenciando a

presença das variáveis anteriormente descritas. Por exemplo, Fernanda e

Diana falam de dúvidas, dúvidas sobre «o que é» o Serviço Social no caso de

Fernanda (E FCR5) “…nunca entendi o que era o Serviço Social. (risos)

Terminei o curso sem saber. Só depois é que vim a perceber, só depois é que

consegui entender” e dúvidas sobre quem são os assistentes sociais

“Quando comecei a trabalhar, eu achei que tinha uma profissão, mas nesta altura e, quando estou a trabalhar com colegas de diferentes formações já não sei «quem é quem» - por exemplo, na rede social, oiço uma colega falar e fico a pensar «é assistente social, ou não?» e não sei, sei que é uma técnica da área social mas já não sei identificar se é assistente social” Diana/E AF15.

Um outro posicionamento é marcado por Mafalda (Q MV17) que acredita que é

uma "interventora social" e que pode dar mais do que aquilo que é permitido

aos assistentes sociais nos locais onde trabalham. Mafalda nunca se identificou

totalmente com a profissão porque ser assistente social "...significou, muitas

vezes, trabalhar e viver ligada a uma instituição com mais limitações do que

possibilidades...".

A narrativa de Mafalda faz parte de uma subcategoria (com as de Helena,

António e Armando) que, talvez pela menção das suas próprias características

e inquietações, procuraram outras formações e formas de exercício profissional

- o «coaching», a formação, a animação e a educação social. Os significados

que atribuem a estas outras formas de exercer vão desde «uma continuidade»,

passando para uma «sensação de maior eficácia», à rutura com a dependência

institucional e a burocracia, até à oportunidade que se revelou uma via menos

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tradicional de exercer no campo do social. Encontram-se significados deste tipo

também nas narrativas de alguns entrevistados, para quem a docência a tempo

parcial significa sobretudo a possibilidade de não estagnar e de continuar uma

aprendizagem que o exercício de trabalho assalariado como assistente social

não facilita (é o caso de Cristina, por exemplo).

Dois dos entrevistados mais novos, respetivamente Madalena (Q MM16) e

Armando (Q AD20) situam na contemporaneidade argumentos opostos que

podem ajudar a entender a amplitude das motivações e caraterísticas pessoais

nomeando a velha questão da «vocação» (bastante ‘mal querida’ no meio

profissional porque é identificada com «vocação confessional») e identificando-

se outro, como «operário do social», num compromisso de luta pela mudança

de fatores estruturais. Nas suas palavras:

"Antes da entrada na faculdade tive dúvidas sobre qual seria a formação certa para mim, até que finalmente entrei em Serviço Social, mas mesmo assim não fiquei tranquila e tive alguns momentos so meu percurso académico em que me inquietei sobre se teria, ou não, vocação; mas também acho que foram esses momentos de questionamento que acabaram por fortalecer o que considero ser uma paixão pelo Serviço Social" Madalena (Q MM16). "Estou preocupado por os fatores económicos prevalecerem sobre os fatores humanos e com as pressões especulativas sobre o trabalho e o emprego (em especial com as deslocações industriais e as novas políticas de terror que espalham o medo nos contextos sociais. Preocupa-me o facto de tentar fazer uma mediação, enquanto operário do social, sem instrumentos concretos de resolução das problemáticas com que trabalho" (Q AD20).

Estes diferentes significados expressos por assistentes sociais jovens,

reafirmam a diversidade de formas de entender a relação de «quem se é» com

«o que se faz» e/ou com «a formação que se tem», num tempo em que a falta

de trabalho atinge também os licenciados em Serviço Social e onde não existe

correspondência entre a formação inicial que se possui e a possibilidade de ter

um trabalho no respetivo campo profissional. Os entrevistados contribuem

assim, através de diferentes lógicas e da diversidade de significados, para

desmistificar o estereótipo profissional que atribui um papel principal à

«vocação» e a determinadas características pessoais, ainda identificadas com

o género feminino.

Curiosamente, recolocam também «fantasmas» da história da profissão como

«modo de fazer bem o Bem», do tempo em que se pretendia formar agentes de

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controlo social, cujo exercício profissional era uma missão e uma arte, onde

predominavam as funções simbólico-ideológicas em detrimento das funções

técnicas. Como referem Branco e Fernandes (1985) em artigo intitulado «O

Serviço Social em Portugal: trajetória e encruzilhada" que faz a análise da

evolução da formação em Serviço Social, as qualidades requeridas ao

profissional até aos anos 60 passavam por ser (ficar?) "compreensiva,

prestável, equilibrada, ter tato, delicadeza, ternura, paciência, bondade, aprumo

exterior e dignidade física".

Temo que estas características ficcionadas ainda povoem alguns imaginários e

que possam servir fins de controlo social. Mas as narrativas dos assistentes

sociais que colaboraram neste trabalho espelham densidades humanas e

trajetórias de aprendizagem e de vida tão diversas e complexas, que

contribuem para o antídoto do perfil estereotipado destes profissionais.

Na relação entre as características pessoais e a experiência, os percursos

formativos mais humanistas são, neste sentido, os d@s séniores, com exceção

de Filomena (E FA7) que refere um percurso formativo por outros campos do

conhecimento:

“Eu andei em várias formações ao mesmo tempo e fiz outros cursos de outras coisas completamente diferentes porque eu achava que isso era interessante para ter uma visão do mundo e das diferenças de olhar o mundo, da maneira de estar e de pensar de cada um. E até hoje, considero isso muito benéfico” Filomena/E FA7.

Também o percurso formativo de Madalena (Q MM19), embora ainda curto,

pode ser colocado nesta classificação.

As posições de maior sobreposição entre ‘quem se é’ e ‘o que se faz’ são

identificadas, por exemplo, por expressões como ‘ter a profissão colada à pele’

ou ‘é como ser padre, fica para a vida toda’; encontrando-se também

descrições da profissão como ‘forma de dizer quem se é’. Numa argumentação

próxima da ‘profissão-oficio’ sobressai uma vertente expressiva que marca

também os percursos de aprendizagem; sendo estes percursos muito

modelados por profissionais de referência, verdadeiros ‘mentores’ e ‘mestres’

com quem os mais novos aprendiam os referentes identitários.

“… eu acho que o que tenho tentado ao longo da vida foi reproduzir o que recebi… eu tive gente que me apoiou, que foi excelente para comigo em

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termos de relação e que tentou ter sempre uma atitude pedagógica mesmo quando as coisas não corriam bem” E Filomena / FA 7. “Tínhamos muitas reuniões, fomentávamos reuniões para partilhar as nossas dificuldades, havia um bocadinho aquela supervisão entre nós. Eu fui muito abençoada por ter estas duas colegas” Irene/ E IS11. “Eu acho que tive a sorte de encontrar pessoas (sobretudo profissionais) que me ajudaram muito e que elegi como um modelo. Nos primeiros anos do curso andava um pouco perdida porque não conseguia ter referências no Instituto, não me revia nos professores porque lhes faltava a parte prática, de intervenção direta. Depois felizmente conheci pessoas que me ajudaram, a quem eu reconheci qualidades e que tomei como referência - gostava de ser como elas quando fosse crescida (risos). Acho que isso faz a diferença “ Diana/ E AF15.

O peso da aprendizagem experiencial nesta categoria é acentuado e, como

refere Fernanda, faz falta melhorar a formação inicial, mas também faz falta

atender às especificidades dos múltiplos contextos de intervenção e fomentar

formações pós-graduadas contextualizadas, como no caso da Saúde:

“Foi no terreno [que se sentiu a aprender mais], no Hospital. Porque ali a gente tem imenso trabalho para fazer e as pessoas não conseguem ver que o trabalho social não é andar apenas a despachar pessoas das camas. E depois não têm força, nem teoria bastante que dê segurança ao profissional para se confrontar com aqueles dois grupos (médicos e enfermeiros) que estão ali no terreno ao lado. E então, vão mendigar. Elas (as colegas) aceitam mais uma chefia de fora da profissão, do que uma chefia de dentro. Porque eu andava sempre a protegê-las. Mas a minha proteção para elas, no internamento e no contacto com as corporações dominantes, não foi suficiente. A Escola não chega para dar a preparação necessária a esse ‘enfrentamento’. Por isso eu acho que na Saúde, especialmente nos Hospitais, os Assistentes Sociais deviam fazer um internato de Serviço Social, como os médicos fazem o internato médico. Só assim é que a gente chega lá” E FCR5.

Apesar da defesa verificada em algumas narrativas de que ‘é no terreno que se

aprende’ e de que ‘quem está no terreno é que conhece, é que sabe’, também

existe a argumentação de que a experiência carece de ser refletida e

provocada com outros conhecimentos - “A experiência não ensina tudo, ou

melhor, a experiência também deve ensinar-nos a atualizar os conhecimentos”

Maria/ E RA 2.

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b) @s semeadoras/es do estado social

Nas narrativas que evidenciam a relação entre as características

pessoais e a formação identificam-se posições, por um lado mais

distanciadas de «quem se é», com mais argumentos «técnicos» e

neutrais e, por outro, mais prescritivas na forma de entender a

profissão, os seus agentes e as dinâmicas do campo – são

percursos de aprendizagem mais técnicos.

A linguagem profissional apresenta aspetos comuns, aproximando-

se da designação das «care professions» na terminologia anglo-

saxónica e ganhando distância de profissões que se conotam mais

com as clássicas fontes de poder e prestígio. A afirmação social dos

assistentes sociais entrevistados parece fazer-se de forma ambígua

e problemática em relação ao poder dentro e fora das organizações

onde trabalham.

“Ora, onde é que eu identifico a identidade de uma área profissional: identifico-a em termos dos princípios e dos fundamentos que tem que ter na sua formação. No caso do Serviço Social, para mim, eles são os direitos humanos, a dignidade humana, a igualdade de oportunidades e a justiça social – são princípios fundamentais que têm que estar presentes em qualquer base de intervenção do assistente social” Jaime / E JF10

A tensão entre um objeto de intervenção muito abrangente e a condição de

assalariado, contribui para que o profissional esteja em posições de fragilidade

negocial onde sobressai a vertente «executante» e instrumental da profissão.

Jaime argumenta que a discussão sobre se o serviço social é ciência ou não é

ciência, se o serviço social é uma disciplina ou é uma ciência social, se o

serviço social tem princípios e conceitos científicos ou não tem, deixou de fazer

sentido. Com Bolonha, os assistentes sociais têm "... uma formação

estruturada, que tem uma definição de saberes e competências e que tem um

número de créditos para atribuir um grau académico, portanto, a partir daí nós

não temos mais a outra discussão, porque o paradigma atual de formação

superior é outro” Jaime/ E JF 10.

Em posição oposta, outra entrevistada, também com funções docentes, realça

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a formatação da formação pelo sistema e coloca dúvidas na formação atual

chamando a atenção para o perigo de que os profissionais fiquem meros

executores e reprodutores de procedimentos administrativos, conforme advoga

a corrente da «prática baseada em evidências» - Evidence-based practice.

“Porque o sistema de tal forma nos tem formatado, e eu coloco aí a dúvida na formação que nós fazemos de assistentes sociais (coloco aí muitas dúvidas): - Como é que nós estamos a formar pessoas para não serem meros executores de um sistema, para não serem meros reprodutores de procedimentos administrativos? Cada vez mais os procedimentos estão pré-formatados, estão normalizados e os assistentes sociais são cada vez mais assistentes sociais de gabinete, mas de gabinetes sem ‘utente’, de gabinete com computador e sem ‘utente’ e muito menos de terreno. (…) Porque nós não estamos a adequar a formação à realidade dos campos de intervenção na atualidade, nós não estamos a preparar os alunos para o terreno que eles vão enfrentar, não é? É de facto, como se estivéssemos a treinar pessoas na Casa Branca para irem para a guerra do Iraque, não pode ser, não é? Não pode ser!” Inês / E IV6

As tensões sobre os significados da formação inicial e o debate sobre o «para

quê» e o «como» se formam estes profissionais é uma questão que parece

permanecer em aberto e que coloca na agenda da profissão a necessidade de

procurar entendimento sobre a sua autoregulação.

Sobre a matriz da formação, torna-se pertinente continuar a interrogar a divisão

instituída entre social, educacional e cultural, de molde a não confinar o agir

profissional dos assistentes sociais à dimensão socioeconómica dos grupos

mais pobres e desfavorecidos, ocultando a complexidade das dimensões

possíveis para o exercício profissional, confinando-o a reproduzir o instituído e

a ser um ‘placebo’ instrumental do capitalismo. Contudo, as narrativas d@s

assistentes sociais dão nota das grandes mudanças ocorridas após a

revolução de 74 – anos descritos como um tempo de «sementeira», criando as

condições para desenvolver um estado social que agora agoniza, mas também

para realizar aprendizagens em contextos que marcaram alguns percursos

profissionais e que marcam algumas das histórias:

“Estive onze anos em C., foi a minha grande sementeira (…) o grande fascínio que é ver que cada um tem um potencial imenso e passar às pessoas este testemunho ‘que elas podem’, que ‘são capazes’ (…). É levar também para o campo de intervenção o que estudámos. (…) A perspetiva é a de que temos de continuar a estudar porque somos muito ignorantes sobre as realidades e os contextos com que trabalhamos…” Inês / E IV6.

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“Foi trabalhar muito, com todos os atores sociais, com as juntas de freguesia, com os senhores padres, com a câmara municipal, com o presidente e os vereadores...Primeiro as juntas de freguesia começaram logo a pedir assistentes sociais para apoiar e continuar o trabalho... (...) Nos projetos de Luta contra a Pobreza, nos bairros da Torre e na Galiza, também houve um grande envolvimento de todas as instituições e das populações” Ana/ E TA8.

As questões de género e a distância/proximidade ao campo de intervenção

direta com as populações são argumentos que surgem claros através da

narrativa de Cristina.

“Eu considero que no exercício profissional, homens e mulheres, acabam por ter visões sobre o exercício da profissão. Sobretudo os homens (…) procuram uma abstração na formação que os ajude a situar e a identificarem-se face às outras profissões e a treinarem um discurso de afirmação. E vejo as mulheres muito mais preocupadas em gerir problemas de metodologia e de intervenção técnica. Com isto eu não queria apontar tudo para as questões do género porque, apesar de as sentir, posso estar a poluir esta questão com aspetos da minha própria educação. Confesso que também não aprofundei muito o que te estou a dizer, pelo que fica um discurso um pouco ‘pela rama’ baseado apenas na constatação de uma diferença substancial entre aquilo que homens e mulheres procuram no serviço social e, sobretudo na formação, falo-te sobretudo ao nível da formação inicial. Do que vejo de alunos e colegas, os homens vão diretamente para lugares mais cimeiros e de decisão, muito mais do que as mulheres e realmente não sei se isso é fruto de algo que nós acabamos por incrementar na formação, como se as mulheres tivessem mais compelidas à execução. (...) Em muitas aulas acaba por haver um confronto de perspetivas, elas não entendem porque é que eles estão a querer situar essas questões da identidade, quando há questões de aprendizagens mais básicas que eles têm que ter e consideram que essas são preocupações de quem não se quer confrontar com o exercício profissional, elas reclamam muito mais informação sobre o direto, sobre a prática profissional” Cristina/ E TS14.

Esta entrevistada é uma das que coloca a questão da relação da profissão com

o poder, identificando a clara feminização desta profissão como um dos

ingredientes da relação problemática neste domínio. As entrevistadas seniores

nomeiam características pessoais, como «uma certa rebeldia» ou «uma certa

liberdade» para designar o processo de conquista de autonomia profissional:

“…eu sempre fui um bocadinho rebelde, sempre fui insatisfeita com determinadas coisas, sempre procurei pôr o meu cunho pessoal no que fiz (não sei se consegui), de qualquer modo, nunca fui muito “manga-de-alpaca”... (…) Mas não foi nada fácil. Mesmo em relação às chefias e em relação às colegas. Eu tenho a certeza que se fosse mais maleável, mais manipulável, eu tinha ascendido a cargos maiores. Eu cheguei a rejeitar cargos, mas também nunca me interessou. Para mim, as ofertas de cargos, tinham sempre que ver com condescender em determinados

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aspetos... percebes? Eu sempre prezei muito a minha liberdade de poder dizer e fazer aquilo que entendia” Maria / E RA2

Este processo de luta pela autonomia profissional, quando levado às últimas

consequências, tinha/teve/tem repercussão em «castigos» ou represálias

impostos pelas hierarquias; ou seja, os profissionais ficam sujeitos a mudanças

de funções/serviços ou mesmo à tradicional «prateleira» (o estratagema

utilizado nas situações de emprego fixo para retirar trabalho, constituindo assim

uma forte represália psicológica e simbólica) - “Fui de castigo por ter dito o que

queria dizer” E Filomena / FA 7.

Sílvia, do grupo dos «mais novos» dá um outro exemplo da relação de

ambiguidade com o poder quando, por exemplo, critica a «invisibilidade» dos

assistentes sociais e faz uma argumentação poderosa sobre a necessidade de

auto-organização dos profissionais, evidenciando o protagonismo público e

político que a classe profissional precisa de ter mas, simultaneamente, diz de

si:

“Não equaciono protagonismos, aliás nunca o equacionei. Foi-me sendo dado algum protagonismo nesta questão mas não foi procurado, nunca fui obcecada com o poder. Eu costumo até brincar e dizer que gostaria até de ser um pouco invisível, passar despercebida, trabalhar no meu cantinho, muito na penumbra”.

Foi sendo curioso agregar as narrativas nesta categoria através do seu

processo de análise e verificar que eram sobretudo os assistentes sociais

docentes – Jaime, Cristina, Sílvia, em exclusividade ou em acumulação - mas

também outros como «os primeiros doutores» e André dos «mais novos» que

privilegiam a formação pós-graduada/investigação/ensino como principal fonte

de aprendizagem contínua do seu processo formativo e expressavam posições

mais técnicas, com mais certezas sobre a profissão e a sua aprendizagem.

“A teoria é importante, nós teremos sempre que ter uma base e um quadro teórico de suporte suficiente, para sabermos gerir e lidar com situações sociais na sua multidimensionalidade e multiculturalidade e diversidade, até para podermos debatê-las e discuti-las com as outras áreas profissionais e os outros saberes, mas essa nós podemos aperfeiçoá-la, aprofundá-la, mesmo depois da formação inicial – temos é que ter as pistas certas, as diretivas e os suportes de conhecimento para saber como vamos buscá-la e usá-la a seguir, aplicá-la. Aquilo que temos de fazer é estruturar-nos como profissionais, como pessoas, como sujeitos e essa estruturação não é fácil de fazer. Pode parecer simples, pode parecer fácil, mas não é nada fácil” Jaime/E JF10.

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A «estruturação» que Jaime identifica parece ser um ingrediente da formação e

da identidade dos assistentes sociais que ao possibilitar a integração da teoria

com a experiência, altera o modo positivista como se entende o conhecimento

e contribui para construir as formas identitárias.

c) @s hibridas/os14

Na significação que aqui se pretende dar, a «hibridez» é sobretudo referente à

existência de desempenhos profissionais e especializações formativas em

áreas diferentes da formação inicial em Serviço Social, sublinhadas pelos

sentidos de «mistura», «especialidade» e/ou «alternativa» encontrados nas

narrativas.

Os «híbridos» constituem simultaneamente uma complexificação da trajetória

formativa em resposta à dificuldade de inserção no mercado de trabalho e/ou

de interesses pessoais e profissionais e uma diversificação das possibilidades

de intervir no social, em processos que buscam mais autonomia, realização

profissional e/ou aumento de eficácia. Como os processos de construção

identitária não são dicotómicos, evidenciam-se ainda um conjunto de

significados que falam de estar simultaneamente «dentro e fora» do campo

profissional, o que se aproxima de um conceito de «inclusão/exclusão» como

faces complementares de posicionamentos profissionais, dinâmicos e

contingentes.

Nas narrativas essencialmente marcadas pela relação entre a formação e a

experiencialidade refletida encontram-se os percursos de aprendizagem

mais heterogéneos sobretudo nos entrevistados Filomena, António, Inês,

Sofia, Armando e Mafalda. Filomena que fez um longo percurso profissional no meio

de Assistentes Sociais e em contextos de intervenção clássica do Serviço Social, menciona

uma distância:

“…distanciei-me dos assistentes sociais... porque eu nunca li muitas coisas de Serviço Social. Eu acho que... é melhor a gente baralhar…” Filomena / E FA 7.

14 A utilização do adjetivo «hibrido» foi importada da ‘blended-learning ou b-learning’ que originalmente se refere a um sistema de formação à distância, misto ou combinado (blended), onde parte dos conteúdos são trabalhados à distância e outra parte, presencialmente.

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A sua hibridez foi sobretudo resultante de uma trajetória formativa e profissional

movida pelo interesse e pela curiosidade de aprender, pelo gosto em exercer

com qualidade e em procurar a inovação e, por uma prezada autonomia

profissional (que, segundo ela, fez com que dissesse sempre o que queria dizer

e que pagasse ‘o preço’ por essa autonomia).

António, que considera ter uma voz «divergente» argumenta que a sua ideia de

trabalho - “…é o projeto: princípio, meio e fim, acabou, segue para outra”.

António / E AF1, o que tem implicações na forma como foi construindo o seu

percurso de aprendizagem de ‘reinvenções’ e de ‘improvisos’:

“Eu estou-me a reconverter profissionalmente. Tenho esta noção clara, para o mal e para o bem. [Reconverter é trabalhar] noutra profissão mesmo, como técnico de reconhecimento de competências ou técnico de qualidade. Nem é bem na área da qualidade, é na área de desenvolvimento organizacional, que é outra coisa, um bocado o ‘Kaisen’ à japonesa mas agora com outras componentes. [O que mais atrai] É ir buscar trechos de competências da profissão para trabalhar noutra área, que me permita readaptar-me ao trabalho, uma espécie de rapsódia, não é?! Ou seja, tens o mesmo tipo de melodia, aquelas melodias que são feitas de trechos de outras músicas, sabes? Havia uma fase nos anos 70, em que misturavam as musicas todas… sempre com um trecho de base, um bocado como o Jazz. O trecho é sempre o mesmo, e se calhar tu vais reinventando cada um das coisas, de improviso” António/ E AF1.

António dá a dimensão da necessidade de vigilância contra o ‘sentimento de

que se sabe tudo’, de controlo, mas revela que foi quando voltou à faculdade

para fazer Mestrado que descobriu que afinal, sempre sabia mais do que

imaginava. Por outro lado, apesar de continuar dentro do campo profissional,

António assume uma certa dissidência na forma como se perspectiva e como

entende a profissão e o seu futuro.

A integração da narrativa de Inês nos percursos de aprendizagem mais

híbridos resulta de dois fatores: a importância formativa que atribui (como

António) às variadas experiências de trabalho e de vida que teve entre o fim do

secundário e a entrada para o curso de Serviço Social, e a diversidade de

interesses científicos que foi tendo ao longo da sua trajetória profissional,

alimentados sobretudo pela Sociologia. Inês, a propósito de recordar a sua

grande «sementeira», referindo-se ao seu trabalho de apoio ao movimento

associativo no território onde trabalhava, enuncia a estratégia de aprendizagem

que designa por «ponto pé de flor» defendendo a reflexividade sobre a prática:

“...o grande fascínio que é ver que cada um tem um potencial imenso e passar às pessoas este testemunho, que elas podem, que são capazes,

Page 482: As formigas e os carreiros

482

mas temos de estudar, trabalhar, estudar, estudar, não é? É esta dimensão que eu digo... é levar também para o campo de intervenção o que estudamos. Eu digo que a estratégia é… comparando com o bordado da minha mãe que é o ponto «pé de flor», que é um passo em frente e dois à retaguarda, e de facto, o ponto «pé de flor» ensina-nos um ponto à frente e dois atrás... - tenho lá «naperons» da minha avó que têm cento e tal anos e as linhas ainda estão no lugar, não é? É porque resulta, e é de facto, a reflexividade sobre a prática (Inês/ E IV6).

Sofia, a única entrevistada que não tem formação em Serviço Social, mas sim

em Política Social, assume-se como Assistente Social e diz-se sempre no

limiar, coloca-se simultaneamente «fora» e «dentro» da profissão, em território

hibrido. Refere que uma das coisas que lhe desagrada e que ainda está muito

colada à profissão (às profissões que têm que ver com a intervenção social de

uma forma geral) é …“… o ser bonzinho. Existe sempre aquele discurso que

temos que ajudar quem mais precisa de nós, e de momento não há dinheiro,

etc, etc. mas vamos fazer um esforço. E pá, não há ‘pachorra’!” Sobre o seu

percurso formativo apostado em «evitar a formatação», refere:

“E foi um ato consciente: ao invés de investir num mestrado ou num doutoramento, investi na prática profissional e daí, ter tido tantas experiências profissionais, as quais refletem parte da minha riqueza profissional e pessoal. (…) Hoje, sei que não geri convenientemente a minha carreira (no sentido em que preteri a estabilidade laboral que conduz à estabilidade financeira) contudo, penso que fiz um trajeto honesto para comigo própria. Sou o que sou, graças a este compromisso que estabeleci comigo e com o brio que devo à prática da profissão, brio este que achava que estava relacionado também com o máximo de experiências profissionais evitando a formatação” (Sofia/E ZC4).

Com uma posição crítica, faz a narrativa de uma aprendizagem muito

experimental e empírica, defendendo um exercício profissional com dignidade:

(…) Mas a sensação que eu sempre tive, neste percurso de amores que se vão sucedendo em termos profissionais... amores e desamores, foi sempre em paralelo com os meus medos, por cada aventura profissional novos medos surgiam, mas depois também tinha uma grande alegria porque eu estava lá dentro a aprender uma nova maneira de estar na profissão, a testar os meus limites, a conhecer novas realidades...Acredito que é possível ser Assistente Social, sendo respeitada e respeitando os outros: pares e utentes. Acho que é possível praticar esta profissão com dignidade. Acho que sou boa … porque estou sempre a questionar-me …” (Sofia/E ZC4).

Do ponto de vista do processo de aprendizagem, Sofia menciona o «vaivém»

entre o terreno e a academia como situação desejável pela complementaridade

dos desafios.

Page 483: As formigas e os carreiros

483

“ Na minha experiência profissional, tenho uma breve passagem como docente numa pós-graduação na Universidade (…) e foi mais uma experiência enriquecedora e que me obrigou a melhorar competências ao nível da investigação social, da preparação das aulas e na forma de comunicar com os outros. Correu muito bem, a minha avaliação foi muito lisonjeira e, penso que do elenco de docentes, era a única que nunca tinha lecionado antes. E de facto, dar formação, nada tem a ver com dar aulas... Gostei do desafio. Mas só veio reforçar este meu lado sequioso por novas experiências, mas nunca pondo em causa o amor pela intervenção no terreno. Só que, enquanto profissional de terreno posso fazer movimentos de «vai-vem» entre o terreno e a academia, a vários pretextos e o inverso também me parece verdadeiro” (Sofia/E ZC4).

Armando e Mafalda, dois dos assistentes sociais «mais novos» que se

encontram no exterior do país têm narrativas muito diferentes e significados

também diversos em relação aos seus percursos de aprendizagem. A narrativa

de Armando foi colocada nos percursos de aprendizagem híbridos pelos

significados que este lhe atribui, no exercício e na atenção a aspetos que o

entrevistado não conota com o Serviço Social, como as vertentes mais culturais

ou educacionais – que, entretanto, foram desenvolvidas por outras

formações/profissões do campo do Trabalho Social. Armando é o único

entrevistado que utiliza a designação de «Técnico de Serviço Social», valoriza

o conhecimento teórico-prático como uma «âncora» onde lhe foi possível

‘amarrar’ outros conhecimentos e experiências e atribui importância a docentes

que encontrou e que lhe fizeram “despertar verdadeiros sentimentos de

aprendizagem, comunicação e de reflexão constante sobre o trabalho social,

seja na vertente de uma trajetória profissional, seja no seu aspeto de

conhecimentos para saber, querer e ser um agente de mudança social”. Diz da

sua formação:

“A minha formação foi moldada através do conhecimento teórico/prático proporcionado no Instituto de Serviço Social de Lisboa, na licenciatura como Técnico Superior de Serviço Social - dou grande valor a esta designação de ‘Técnico’ enquanto esfera de ação profissional técnica e, não como Assistente Social. Fazendo uma análise dos cinco anos de experiência já como profissional, acho que o curso, a licenciatura, me permitiu sem dúvida um conjunto de conhecimentos e experiências muito válidos, abordagens diferentes e uma crítica e autocrítica constante sobre o exercício profissional e sobre as fronteiras com os vários conceitos de trabalho social; permitiu também um estado de reflexão contínua. Permitiu-me construir uma opinião, um sentido, para os diferentes conceitos abordados nos espaços de formação, permitiu um crescimento na aquisição de instrumentos técnicos e metodológicos para enfrentar as questões sociais, e permitiu o saber questionar este ‘social’ em diversas perspetivas e noções teórica/práticas” Armando/ Q AP19.

Page 484: As formigas e os carreiros

484

Armando atribui a uma experiência laboral na área da animação/educação

social a sua atual referência profissional como Trabalhador Social. Foi uma

experiência na Hungria que teve resultados muito significativos, quer no plano

profissional, quer na dimensão pessoal. Aliás, o que em parte, explica o

contexto de trabalho de hoje, como educador social, num Centro de

Acolhimento para Menores em Itália, desenvolvendo o mesmo tipo de

atividades culturais e educacionais e que proporcionam também elas, uma

grande riqueza profissional e humana na sua constante reformulação e ação; e

não deixa de ser intervenção social, como ele próprio refere.

Mafalda, que faz um corte com a profissão quando sai de Portugal para

acompanhar o marido argumenta:

“… meti uma licença sem vencimento, sem grande pena de deixar aquele trabalho. No país onde agora estou, procurei trabalhar e aprofundar os meus conhecimentos em áreas onde pudesse dar respostas mais profundas, definitivas e provocadoras de mudança, a quem de facto se dispusesse a tal. Encontrei um curso de ‘Coaching’, que além de mudar a minha visão sobre a responsabilidade social, deu-me ferramentas muito mais eficientes na intervenção com os clientes. Atualmente estou a tentar estabelecer-me como ‘coach’ num mercado competitivo e em rápido crescimento; tenho clientes de todas as nacionalidades com quem trabalho no seu processo de mudança por períodos de três meses, acordando a alteração de comportamentos desejada, no sentido de alcançar objetivos muito concretos e definidos pelas próprias pessoas. (…) que a população com quem trabalho na área do ‘coaching’ é, obviamente, diferente da população que conheci no atendimento social da cidade de Lisboa (e não só pelas diferenças de geografia e de culturas), mas as metodologias que aprendi a utilizar para facilitar a mudança na pessoa poderiam ser muito úteis no contexto da intervenção social realizada por Assistentes Sociais, pois baseiam-se no principio de que cada um pode ser responsável pelo seu trajeto e bem-estar. (…) neste momento não me identifico com a profissão, uma vez que também não a exerço” Mafalda/ E MV17.

Esta deriva de Mafalda que, pode ser um hiato no exercício profissional como

assistente social, também pode significar uma reconversão da formação e da

atividade profissional futura num percurso hibrido de aprendizagem.

Estas narrativas divergem de outras em que os assistentes sociais (como

Diana, por exemplo) se assumem como «funcionários» e aumentam a distância

em relação às tecnoestruturas organizacionais onde a profissão foi

consolidando alguns nichos de poder.

Em todas estas narrativas, as relações com a estrutura associativa profissional

e com a promoção de um projeto profissional coletivo são ténues ou

Page 485: As formigas e os carreiros

485

inexistentes, sobressaindo sobretudo a contingência dos contextos concretos

de ação profissional em cruzamento com a fluidez de motivações,

oportunidades, interesses e significados que os entrevistados atribuem ao seu

papel como profissionais.

Nesta linha, o trabalho de Abbott (1988) ganhou notoriedade na sociologia das

profissões, recuperando alguns dos contributos teórico-metodológicos

expressos pelos funcionalistas, pelos interacionistas simbólicos e pelos

defensores das teses do poder profissional. Este autor formula um quadro

conceptual sobre as profissões e os processos de profissionalização nas

sociedades capitalistas avançadas, dirigindo a sua atenção para a análise da

natureza do trabalho.

Èste nível de observação parece fundamental para se perceber as práticas

profissionais, os modos como são mobilizados os conhecimentos produzidos

nos espaços académicos e as relações de conflito com outras profissões a

propósito do controlo das respetivas jurisdições – sabendo que ‘Jurisdição’

significa para este autor, a relação entre uma determinada profissão e o seu

trabalho.

6.4. “Inventar carreiros”15

Na significação que quisemos atribuir neste trabalho, os 'carreiros'

correspondem a formas identitárias improvisadas, que servem por determinado

tempo e uso e depois alteram-se, dando lugar a outras, igualmente

improvisadas, orgânicas e provisórias.

A metáfora serve para agregar uma forma identitária fluida que alguns

profissionais de Serviço Social assumem, mobilizando-se num campo

profissional muito concorrencial, por uma atividade marcada por oportunidades

(ou falta delas) e por talentos (mais do que por formações), em que estas

pessoas podem ou não exercer a profissão e podem ou não, sentir-se e

designar-se como assistentes sociais.

15

Os 'carreiros' são geralmente menos estruturados que os caminhos, mais estreitos, muitas vezes traçados por trajetórias individuais em geografias inóspitas e rapidamente 'apagados' pela Natureza quando pouco utilizados.

Page 486: As formigas e os carreiros

486

Apesar destes sentidos e destes significados serem contingenciais e mutáveis

ao longo do tempo e do espaço, estes profissionais tendem a relacionar-se de

forma menos tradicional com o campo, sendo que os seus 'fios condutores'

podem encontrar-se em compromissos éticos e/ou políticos, através de redes

de interação que estão para além do campo profissional.

Na tipologia de Dubar esta forma identitária encontra correspondência na

«identidade autónoma e incerta» com um questionamento das identidades

atribuídas e o desenho de projeto de vida que pretende incluir o

reconhecimento pelos «outros significativos» ou a «identidade narrativa».

Destacam-se nesta categoria as narrativas de Filomena, António, Armando e

Mafalda.

“No fim disto tudo, quando me perguntares qualquer coisa sobre Serviço Social, não sei bem o que é que te posso dizer sobre isso, percebes? Mas, logo se vê. (…) Sim, normalmente digo que sou assistente social. Quando estou assim num grupo em que todos «armam ao pingarelho» eu faço uma de duas coisas: ou digo que sou assistente social e é mesmo para provocar, ou digo que sou socióloga e fico à espera de ver a reação” Filomena/E FA 5. “…comigo as pessoas nem têm muito a noção de que eu sou assistente social” António/E AF1 “Neste tempo sinto-me como um trabalhador social e não como um Assistente Social. Em parte, acho que esta minha identificação tem a ver com o que faço e com o contexto onde estou (…)” Armando/Q AP. “Sinto que já fui Assistente Social ( é algo que me formou e cuja experiência agradeço) mas neste momento não me identifico com a profissão, uma vez que também não a exerço” Mafalda/Q MV.

Estas formas de autorepresentação mais marginais em relação à

profissionalidade de Serviço Social podem ilustrar a «invenção de carreiros» a

que se aludiu.

Nas narrativas dos próprios estas variantes não aparecem como dissidências

nem como ruturas definitivas, mas sim como ‘tentativas’, ‘procuras’, ora mais

ligadas a oportunidades e a contextos de exercício, ora mais norteadas por

quadros de referência largos que se identificam pouco com o que consideram

ser as ‘baias’ da profissão e do campo disciplinar restrito.

Page 487: As formigas e os carreiros

487

- A relação com a heterogeneidade e a incerteza

A profissão ganha em diversidade e em complexidade se incluir e prestar

atenção às formas de exercício plural dos assistentes sociais, em especial à

inclusão das trajetórias profissionais menos tradicionais. Embora não se

pretenda imputar a exclusividade da inovação profissional a estes ‘carreiros’,

também nos parece que podem merecer atenção na qualidade de tentativas de

posicionamentos profissionais que procuram novas legitimidades e encontram

novos significados para a profissionalidade.

A posição de Manuel Castells, na sua publicação sobre «O poder da

Identidade», remete-nos para o “carater subtil e descentralizado das redes de

mudança social que dificulta a perceção e a identificação de novos projetos de

identidade que têm surgido” (2007:509), argumentando que essa penetração

subtil das mudanças dos símbolos processadas através de redes multiformes e

fora das sedes de poder nos são de difícil entendimento, dada a perspetiva

histórica habituada ao ordenamento e a proclamações calculadas de mudança

social.

“…perante o fracasso dos movimentos e políticas proactivas (por exemplo, o movimento operário, os partidos políticos) na luta contra a exploração económica, a dominação cultural e a repressão política, não sobrou outra alternativa às populações senão render-se ou reagir com base na fonte mais imediata de autorreconhecimento e organização autónoma: o seu próprio território. Assim, surgiu o paradoxo de forças políticas com bases cada vez mais locais num mundo estruturado por processos cada vez mais globais. Houve a produção de significado e identidade: a minha vizinhança, a minha comunidade, a minha cidade, a minha escola, a minha árvore, o meu rio, a minha praia, a minha capela, a minha paz, o meu ambiente. Contudo, essa foi uma identidade de fechamento dentro do que é conhecido contra a imprevisibilidade de desconhecido e do incontrolável” (Castells, 2007:76)

Neste posicionamento, pode inscrever-se o que parece ser um crescente

interesse da jovem comunidade científica de Serviço Social pelo seu

«território» profissional e científico, já não na perspetiva de um fechamento

defensivo contra a incerteza e a imprevisibilidade, mas sobretudo como uma

procura de novas fontes de legitimação que possibilitam grande

heterogeneidade. Do quadro de pensamento deste autor destaca-se a seguinte

conceção,

Page 488: As formigas e os carreiros

488

“Na aurora da Era da Informação, uma crise de legitimidade tem esvaziado o sentido e a função das instituições da era industrial. Ultrapassado pelas redes globais da riqueza, do poder e informação, o Estado-Nação moderno tem perdido uma boa parte da sua soberania. Ao tentar intervir estrategicamente no cenário global, perde a capacidade de representar as suas bases políticas estabelecidas num território. Num mundo regido pelo multilateralismo, a divisão entre Estados e nações, entre a política de representação e a política de intervenção, desorganiza a unidade de medida política sobre a qual a democracia liberal foi construída e exercida nos dois últimos séculos. A privatização de empresas públicas e a queda do Estado-Providência, embora tenha aliviado a sociedade de parte do seu fardo burocrático, piora as condições de vida da maioria dos cidadãos, rompe o contrato social histórico entre capital, trabalho e Estado e usurpa grande parte da rede de segurança social, a trave-mestra da legitimidade do governo, no sentido do senso comum. (…) As ideologias que emanam das instituições e organizações industriais, do liberalismo democrático baseado no Estado-Nação ao socialismo fundado no trabalho, encontram-se destituídas de significado real dentro do novo contexto social. Perdem atrativos e, na tentativa de sobreviver, submetem-se a incessantes adaptações, ficando sempre um passo atrás da nova sociedade, como bandeiras desbotadas de guerras já esquecidas” (Castells, 2007:499, 500).

Assim e, retomando as suas tipologias identitárias, nomeadamente as

«identidades legitimadoras e compartilhadas», as «identidades de resistência»

e as «identidades de projeto», atrevemo-nos a estabelecer um paralelo entre

as formas identitárias que nomeámos de «inventar carreiros» e as «identidades

de projeto» deste autor.

Nesta perspetiva, o dissolver das identidades legitimadoras e compartilhadas

está relacionado com processos de transformação das instituições e

organizações da sociedade civil construídas em torno do Estado e do contrato

social entre capital e trabalho e da incapacidade de manter o vínculo com as

vidas e os valores das pessoas em boa parte das sociedades. E se o

mainstream pós-moderno aponta para o aparecimento de um mundo

maioritariamente constituído por mercados, por um individualismo mais ou

menos radical, por redes e organizações estratégicas e aparece regido pela

aparente racionalidade de uma teoria económica, por outro lado, observa-se o

aparecimento de poderosas «identidades de resistência» difundidas na

sociedade em rede e ligadas a valores, a territórios e a movimentos sociais,

como por exemplo, os movimentos feminista e ambientalista.

A dicotomia expressa nesta categorização é extensível também a binómios

como «globalização/comunidade», «incluído/excluído»,

Page 489: As formigas e os carreiros

489

«adaptação/transformação», «sociedade civil/comunidades» entre outros que

estabelecem «lados» de posicionamento nas redes e nos fluxos.

“As elites globais dominantes que habitam o espaço dos fluxos tendem a ser formadas por indivíduos sem identidades específicas (“cidadãos do mundo”); ao passo que as pessoas que resistem à privação dos seus direitos económicos, culturais e políticos tendem a sentir-se atraídas pela identidade comunitária” (Castells, 2007: 502).

A sociedade em rede está fundamentada, neste autor, na disjunção sistémica

entre o local e o global e na separação em diferentes estruturas de

tempo/espaço e de poder e experiência. As «identidades de projeto»,

constituindo novos sujeitos históricos, podem surgir do desenvolvimento das

«identidades de resistência», «sob determinadas circunstâncias e através de

processos específicos a cada contexto institucional e cultural», contrariando

lógicas dominantes e organizando-se em torno de campos fundamentais de

uma nova estrutura social: espaço, tempo e tecnologia.

A produção de entendimento sobre as questões da heterogeneidade e da

incerteza (no quadro concetual que se procurou explicitar neste trabalho ou em

qualquer outro) aparece como fundamental para que a construção identitária do

Serviço Social deixe de ser de «resistência» e passe a ser «de projeto» numa

posição clara – e plural - de ator coletivo.

Se entendermos esta «procura» como um verdadeiro potencial dos assistentes

sociais se constituírem em movimento social, precisamos de: i) prestar muita

atenção, conhecer e integrar as práticas discursivas que o autodefinem («são o

que dizem ser»; ii) aceitar que não existe uma direção predeterminada no

fenómeno de evolução social e que os movimentos sociais podem ser, em

simultâneo, conservadores e revolucionários, ou nem uma coisa nem outra; iii)

utilizar referenciais organizadores como, por exemplo, o de Alain Touraine

(1966) que define movimento social de acordo com três princípios: a identidade

do movimento, o adversário principal e a sua visão sobre o tipo de ordem ou

organização social que procura no horizonte histórico da ação coletiva que

promove.

“ É todo um modelo circular que depois nos põe em movimento, nos coloca em dinâmica” Jaime/ E JF10. “Acredito que a verdadeira mudança só acontece se nos envolvermos com as pessoas com quem trabalhamos e que esta alteração de perspetivas e

Page 490: As formigas e os carreiros

490

o alargar do leque de intervenção também são formas de melhorar a imagem que existe do Serviço Social” Madalena/Q MM19.

As tendências em conflito da identidade e da globalização têm moldado o

mundo e a vida, introduzindo a sociedade em rede caraterizada pela

globalização das atividades económicas estrategicamente decisivas; pela sua

forma de organização em rede; pela flexibilidade e instabilidade do emprego e

pela individualização da mão-de-obra; por uma cultura de virtualidade nela

construída a partir de um sistema de media omnipresente; pela transformação

das bases materiais de vida - o tempo e o espaço – mediante a criação de um

espaço de fluxos e de um «tempo atemporal» como expressões das atividades

dominantes e das elites que as controlam (Castells, 2007).

Nestes termos, as identidades de resistência do Serviço Social enquanto

«profissão ofício/disciplina» coexistem na sociedade em rede com projetos

individualistas, uns ligados às identidades constituintes e legitimadoras da

sociedade civil e outros mais ligados à construção identitária «de projeto».

a) Processos de resistência e experimentação social

As histórias que os profissionais contaram nas narrativas sobre as suas

trajetórias profissionais estão repletas de episódios que testemunham os

contextos, os atores e as organizações onde intervém. Do ponto de vista das

construções identitárias, as narrativas ainda expressam uma grande

ambivalência entre, por um lado, as «identidades legitimadoras» com um

referente estrutural ao Estado-Nação e ao Estado-Providência como principal

fonte de legitimidade, associadas às sociedades civis e às instituições do

Estado de onde se originaram e, por outro, as «identidades de resistência»,

cuja força advêm do seu carater comunitário e da sua responsabilidade coletiva

em detrimento dos projetos individuais. Prosseguindo ainda na argumentação

de Castells,

“…a (re) construção do significado por parte de identidades defensivas rompe com as instituições da sociedade, acenando com a promessa de reconstrução a partir das bases, ao mesmo tempo que se fecha num paraíso comunal. É possível que, dessas comunas, novos sujeitos – isto é, agentes coletivos de transformação social – possam surgir, construindo novos significados em torno da identidade de projeto” (2007:84).

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491

Em termos coletivos não se (re) conhecem no campo profissional de Serviço

Social os referidos «paraísos comunais» mas admite-se a possibilidade de que

existam novos «agentes coletivos agentes de transformação social» e que as

respetivas «identidades narrativas» desses sujeitos não fiquem apenas nas

dimensões individuais e possam constituir recurso para a profissão, como

fontes de significado e construção identitária.

“A perspetiva é a de que temos de estudar porque somos muito ignorantes sobre as realidades e os contextos com que trabalhamos e temos que procurar outras pessoas quando não sabemos, chamar peritos, chamar especialistas, chamar outros; temos que ter a capacidade de ouvir outros e de criar momentos próprios para reflexão, porque senão não aprendemos. Se nós não nos conseguimos distanciar do que fazemos, quer no tempo, quer no espaço, se nós não conseguirmos procurar novas energias, através das leituras e daquilo que estudamos, nós não vamos criar nada de novo, nós vamos andar em círculos. Por outro lado é de facto, a flexibilidade, a capacidade de deixar as coisas acontecer à medida que elas vão acontecendo, que permite inovar.” Inês/E IV6.

A aceitação da perda de controlo (ou ‘pseudo controlo’ sobre as vidas das

pessoas e das comunidades com quem trabalham) e da difusão do poder

acontece num movimento tensional, entre a sua maior ou menor concentração

institucional nas organizações ou nos mecanismos simbólicos de controlo, e a

circulação nas redes globais de riqueza, poder, informação e imagens, que se

transmutam num «sistema de geometria variável e geografia

desmaterializada».

“A nova forma de poder reside nos códigos da informação e nas imagens da representação em torno das quais as sociedades organizam as suas instituições e as pessoas constroem as suas vidas e decidem o seu comportamento” (Castells, 2007:506).

Esse poder, simultaneamente identificável e difuso é, segundo este autor,

função de uma batalha interminável pelos códigos culturais da sociedade, já

que a turbulência dos fluxos de informação mantem os códigos em constante

movimento.

A possibilidade de emergência de novos sujeitos coletivos a partir dos

movimentos sociais, prendem-se com a hipótese de serem mobilizadores de

símbolos que ajudem a transformar os códigos culturais e subvertam a

«sociedade em rede» em função de valores alternativos.

Castells (2007) identifica duas classes principais nestes agentes, a primeira

que designa de «profeta», é definida como personalidade simbólica que dá um

Page 492: As formigas e os carreiros

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rosto ao início de caminhos, afirmando valores e manipulando símbolos; a

segunda, que designa de «rede», é uma forma de organização e de

intervenção descentralizada e integrada, característica dos novos movimentos

sociais.

“Tem-se então a amostragem de uma grande diversidade de práticas com articulação contra hegemónica, experimentalismos e reconhecimentos da diversidade cultural e do carater distributivo não só da democracia como da criatividade e das subjetividades individuais e coletivas” (Cunha, 2012:10)

No decurso da análise das narrativas dos assistentes sociais, foram

identificadas estas «classes», oscilando a argumentação entre ser um profeta

«que não quer ser profeta» (como no caso de António) e identificar o potencial

transformador das redes «não sabendo muito bem como se posicionar nelas»

(como nos casos de Armando e Mafalda). Por outro lado, a «experimentação»

que è parte integrante das narrativas e práticas profissionais (em expressões

como por exemplo, «cada caso é um caso», «intervir por tentativa e erro»,

«não existem receitas para a intervenção social») abre um campo de

possibilidades para que a profissão mantenha e incremente formas de se

repensar, a partir da crítica interna mas também dos referenciais externos, que

a podem ajudar a situar-se em relação a eles.

“Eu penso que a formação curricular, inicial e pós-graduada, de qualificação, toda ela é importante, do ponto de vista de nos dar um método, uma disciplina, um rigor, e uma coerência científica dentro da área em que estamos a trabalhar e a intervir; e dá-nos uma terminologia de linguagem comum para trabalharmos dentro daquela temática e daquele problema. Acho que aí sou defensor dessa formação estruturada, pensada, fundamentada e que seja de qualificação, que qualifica para ir mais longe – dá elementos para que, o profissional, se quiser, possa avançar muito mais para além daquilo que está a fazer. Acho que esta é uma dimensão importante. A outra dimensão importante é que nós consigamos desenvolver equipas que tenham uma perspetiva reflexiva, ou seja, que se faça reflexão sobre aquilo que faz na prática. E para isso temos de fazer o exercício de escrever sobre a nossa prática. (…) A outra dimensão foi a investigação, ou seja, o tentar organizar trabalhos de pesquisa; o pensar e investigar um objeto que é de intervenção pura e dar-lhe a outra dimensão de ser um objeto de investigação” Jaime/ E JF10.

Desta perspetiva decorre a necessidade de ultrapassar o que Rui Canário

chama uma «intervenção ortopédica», ou seja, uma intervenção que tenta

sobretudo corrigir aquilo que é tido como disfunção social (hoje, concebida

Page 493: As formigas e os carreiros

493

maioritariamente como decorrente da responsabilidade individual das pessoas)

e que não se coloca a si própria em causa.

As narrativas co construídas neste processo de investigação dão conta da

rebeldia e da coragem das/dos assistentes sociais que não se limitam a ‘fazer

bem’ o que as organizações que os contratam lhes pedem para fazer, mas

também se comprometem com uma certa «contaminação» positiva em ordem à

capacitação dos seus públicos e a dinâmicas de mudança instituintes,

revelando também uma atividade de “democratização discursiva” que dá conta

do seu valor heurístico e epistemológico.

b) A construção de um novo vocabulário e de novos «palcos» para a

profissionalidade

A adjetivo «novo» institui um desejo de inovação que não advém de estar

constantemente a querer «inventar a roda» mas de procurar, a partir de uma

memória comum, redescobrir, inventar e experimentar formas mais amigáveis

(ou mais incisivas) de combater as vulnerabilidades sociais e de participar nos

movimentos que procuram instituir novas ordens societárias mais

harmonizadas com o «bem viver», nas vertentes de relação consigo próprio,

com os outros e com o ambiente natural que sustem a raça humana.

Na compilação de artigos feita por Teresa Cunha (2011), por exemplo, este

novo vocabulário ganha forma, aproximando as palavras ‘justiça’, ‘dignidade’,

‘democracia’ e ‘bem-viver’ e demonstrando, em simultâneo, que a economia de

mercado não é única, nem exclusiva. Esta obra está repleta de ‘saberes

solidários’, que nos mostram

“…outros mundos de saberes que vêm à luz pela coragem de pesquisadoras/es que aprendem e descrevem práticas vivas, quer através da sua interpretação teórica, quer através do universo imagético que constroem, quer pelas falas que reproduzem nos seus textos. (…) No conjunto de textos se percebe o sentido da compaixão. Fazer o que sabemos fazer. Para aliviar o estado de coisas do sofrimento produzido pela desigualdade social. E ao mesmo tempo, contribuir para transformar/formar rebeldes emancipadas/os e esclarecidas/os” (Cunha, 2011:8).

Page 494: As formigas e os carreiros

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São exemplos como este que nos inspiram a pensar as práticas vividas e a

refletir referenciais teóricos ‘sobre experiências em movimento’ e a colocar em

ação a ‘prática de pensar a prática’, como diria Paulo Freire.

Na construção identitária de uma profissão que se pretende legitimada (nos

seus valores, na pluralidade e na credenciação pelas competências e pelo

conhecimento) a presença clara e assumida de uma memória coletiva constitui

«o chão» a partir do qual as trajetórias, as conceções e as práticas podem

derivar e desenvolver-se.

“O serviço social da atualidade, volto a repetir, é um serviço social que produz competências, produz aprendizagens, altera os modos de vida – esses é que são os novos enfoques da aprendizagem dos assistentes sociais e da sua preparação para o mundo. Temos de agarrar aí, para que isso valorize a nossa profissão e dê à nossa profissão um lugar no debate público e no debate político” Jaime/ E JF 10.

Admitindo que boa parte do corpo profissional pretenda que a profissão tenha

lugar no debate público e politico, tenha «palco», não só assume relevância a

inscrição numa memória coletiva mais longínqua, que instituiu e legitimou a

profissionalidade, como assume enorme importância a disseminação do

conhecimento pelos profissionais «do como se pensa, como se vive e como se

faz» contemporâneo.

“Sei que é uma profissão altamente desgastante e que nos expõe muito e que isso

acaba por nos fragilizar, por isso pretendo ao logo da minha vida profissional ir variando as minhas experiências de forma a prevenir esse desgaste, assim como continuar a interrogar-me através de formação e da supervisão” Madalena/Q MM16.

“Preocupa-me que as camadas mais juvenis da população não tenham acesso a trabalho nem a formas de participação ativa nas decisões políticas, nem (muitas vezes) mostrem interesse por analisar as realidades onde estão inseridas. Vivemos um tempo onde não se resolvem problemas, mas onde se assistem a estes problemas. Estou preocupado por os fatores económicos prevalecerem sobre os fatores humanos, e com as pressões especulativas sobre o trabalho e o emprego (em especial com as deslocações industriais e as novas políticas de ‘terror’ que espalham o medo nos contextos sociais. Preocupa-me o facto de tentar fazer uma mediação, enquanto operário do social, sem instrumentos concretos de resolução das problemáticas com que trabalho” Armando/Q AP 19 .

“Há espaço para todos os intervenientes desde que haja respeito e que haja perceção de que estas profissões podem ser muito complementares, sem serem invasivas em relação aos seus campos, sem serem mesquinhas nessas lutas, percebendo que se pode construir mais do que destruir. Mas isto ainda é um caminho que se tem de fazer e há muito

Page 495: As formigas e os carreiros

495

diálogo que se tem de fazer com outras profissões em relação a estas questões - e eu penso que isso urge” Sílvia/Q SG 18. “Sou o que sou, graças a este compromisso que estabeleci comigo e com o brio

que devo à prática da minha profissão, brio este que achava que estava relacionado também com o máximo de experiências profissionais evitando a “formatação”.(…) Mas a sensação que eu sempre tive, neste percurso de amores que se vão sucedendo em termos profissionais... (amores e desamores) foi sempre em paralelo com os meus medos, por cada aventura profissional novos medos surgiam, mas depois também tinha uma grande alegria porque eu estava lá dentro a aprender uma nova maneira de estar na profissão, a testar os meus limites, a conhecer novas realidades...” Sofia/E ZC4.

Provavelmente e, tendo em conta a disponibilidade e acessibilidade das

tecnologias de informação, os assistentes sociais (como os outros

trabalhadores sociais) nunca como hoje, participaram em tantas «redes».

Contudo, sabendo que informação não é confundível com conhecimento e com

saber, a participação em múltiplas redes informacionais e relacionais não

impede que exista um deficit de conhecimento sobre as experiências, as

reflexões e as trajetórias profissionais no campo profissional.

Nesta matéria coloco a possibilidade de que seja nas zonas mais periféricas do

campo profissional que esteja a centralidade - no trabalho desenvolvido fora

dos grandes centros urbanos ou nas zonas urbanas e suburbanas degradadas,

no trabalho desenvolvido em bairros de população imigrante, com minorias

étnicas ou outras populações estigmatizadas; sobretudo, em contextos que

permitem inventar práticas – o que parece central na produção de novos

caminhos e de uma sociedade em que todas as dimensões sejam, por

definição, educativas.

“Acho que tem que ver com a forma como cada um interpreta o que aprendeu e com a forma como coloca esse conhecimento no seu trabalho. Porque depois tu vais buscar outras coisas, ou que estás a aprender no momento (porque qualquer profissão pressupõe uma aprendizagem contínua que tem de ser atualizada)... e, o facto de estar a trabalhar no terreno dá-nos essa dimensão de estarmos sempre atentos ao que foi produzido, para ponderares o que podes, ou não podes, intervir e atuar” Irene/ E IS 11 .

Se o Serviço Social quiser constituir-se como uma forma efetiva de

democratização das relações sociais, económicas e políticas, das

subjetividades, das dinâmicas e dos termos em que as pessoas dos locais se

enunciam e se entendem, poderá consegui-lo democratizando as próprias

conceções e associações e cativando para isso as energias e as capacidades

disponíveis nos profissionais. Para que tal seja possível não pode esquecer-se

Page 496: As formigas e os carreiros

496

da matriz de onde partiu, nem melhor nem pior que a de outras profissões e

disciplinas, mas que contem um potencial emancipatório para os próprios

assistentes sociais e, como outro lado da mesma moeda, para as próprias

populações e comunidades com que trabalham; o que provavelmente implica

também utilizar outras palavras e uma linguagem diferente.

“E eu estou a usar um tipo de linguagem que também é uma linguagem que nos pode dar pontos a ganhar, ao deixarmos de usar uma linguagem muito técnica e fechada e utilizarmos uma linguagem mais humanista e que nos ligue aos atuais paradigmas científicos da humanidades, talvez façamos evoluções. Fechando este raciocino, diria que a resposta a esta questão é a maturidade, deixando de lado aquela rebeldia de quem está só a absorver e ainda não tem nada para dar” Cristina/E TS14.

As experiências de intervenção em prol da emancipação social exigem

relações horizontais e uma partilha de poder e reciprocidade que não se

coadunam com as posições de muitos serviços ou projetos (sejam eles

educativos, culturais ou sociais) em que os profissionais se comportam como

detentores do saber, como «ensinantes» de como se faz ou do que é certo ou

errado.

Sabendo da necessidade (e da dificuldade) de manter os profissionais

autovigilantes sobre o seu próprio conhecimento, dado que este é sempre

limitado pelas experiências e visões de mundo que se possuem, torna-se

decisivo manter uma certa plasticidade e abertura à transformação e à

mudança – até para evitar atitudes e posições moralistas e arrogantes, mesmo

que usando as ‘melhores intenções’.

Page 497: As formigas e os carreiros

497

Síntese conclusiva

Na difícil finalização deste processo e deste percurso de estudo, diálogo e

reflexão tenho mais perguntas do que respostas.

Procurei aumentar a compreensão sobre a profissionalização e a

profissionalidade dos assistentes sociais, numa trajetória comprometida com a

aprendizagem contínua, com a minha própria formação e com a procura de

significados que deem sentido ao trabalho: um ‘trabalho-saber’, um ‘trabalho-

política’, um ‘trabalho-significado’, um ‘trabalho-aprendizagem’, um ‘trabalho-

expressão de si’, um ‘trabalho/não trabalho’, um ‘trabalho-(des)emprego’, um

‘trabalho-adaptação/rutura/mudança’, um ‘trabalho-capitalismo’, um ‘trabalho-

placebo’, um ‘trabalho-fim do trabalho’, um ‘trabalho-colado à pele’, um

‘trabalho-de pobres’, um ‘trabalho-assalariado/controlado’, um ‘trabalho-vida’.

Do aprofundamento dos múltiplos sentidos do trabalho fica a convicção da sua

importância para o processo de construção identitária e da importância de

compreender o social através das narrativas múltiplas dos próprios atores

sociais.

Foi no quadro do questionamento e da explicitação da profissão de assistente

social a partir de dentro que se foi fazendo o cruzamento com os eixos da

aprendizagem ao longo da vida e da construção identitária, co construindo

assim a própria narrativa desta tese. Uma narrativa que, lutando contra os seus

próprios defeitos, procurou não dizer «como é» ou «como deve ser», mas

antes contar uma história complexa, com muitas entradas, que abrisse

perspetivas e possibilidades de debate e ampliasse entendimentos. Uma

narrativa que no contínuo processo de escolhas, também abandonou muitas

outras possibilidades.

Quando penso na trajetória desta investigação, uma das principais conclusões

deste trabalho reside na importância da dimensão estético-expressiva do

trabalho do Assistente Social que, não sendo independente das macro

políticas, das condições materiais e contextuais em que se desenvolve, do

projeto profissional coletivo, da necessidade de demonstrar e reinventar a sua

credibilidade e legitimidade, nem da feminização da profissão (entre outras

variáveis), atribui um papel relevante a ‘quem se é’ na relação profissional com

Page 498: As formigas e os carreiros

498

todos os outros, quer sejam públicos, pares, chefias ou população com quem

interage.

As relações com as pessoas e com o saber convergiram no quadro da relação

pedagógica porque esta, para além da intencionalidade do ato educativo exige

condições institucionais (um tempo e um espaço) e um saber que se aprende e

se ensina.

Neste ‘quem se é’ individual e coletivo, os processos de construção identitária e

os percursos de aprendizagem assumiram uma grande importância, pelo que

entendi dissidir dos cânones académicos tradicionais e utilizar a metáfora da

formiga no título deste estudo parafraseando alguns dos sujeitos envolvidos.

“... as assistentes sociais têm, por vezes, uma missão de «formigas obreiras» que trabalham, trabalham, trabalham, quase como se quisessem salvar o mundo” Paulina/E PS13. “…na natureza, o que é pequenino sobrevive, a formiga tem mais possibilidades de sobrevivência do que o elefante. O que é pequenino sobrevive, não se preocupem com o grande: Pequeno, pouco, possível” Inês / E IV6.

Sobre esta metáfora e, apesar da grande variedade de formigas16, privilegiei a

conceção do «senso comum» que as descreve como adaptativas, resistentes,

rotineiras, vivendo e atuando em grupo, com grande parte da sua atividade

subterrânea ou pouco visível e realizando tarefas muito maiores do que seria

admissível para o seu tamanho - vivem e trabalham em sociedades complexas,

com um sistema de comunicação apurado e uma ‘engenharia’ de construção

verdadeiramente admiráveis.

Das formigas para os sujeitos de conhecimento, a sua centralidade foi outro

dos eixos que coloquei em confronto com os estereótipos, quer do papel de

investigador, quer do papel de assistente social. Nomeadamente, este último

parece tero pouco conteúdo que deixa espaço de possibilidade para que os

profissionais possam mostrar e demonstrar muito mais.

Por outro lado, procurei evitar a racionalização e a intelectualização de

«leituras» das realidades sociais e profissionais que criam uma separação

16

No ideário da cultura ocidental este pequeno inseto está ligado às histórias infantis, representando

fundamentalmente a primazia do trabalho e do esforço cooperativo; na investigação científica são abundantes os estudos sobre a sua evolução e organização e vastas as potencialidades de utilização do seu conhecimento para áreas tão distintas quanto a Medicina ou a Informática.

Page 499: As formigas e os carreiros

499

artificial entre «nós» e «eles» e entre «contextos», «atores» e «argumentos»,

mantendo as clivagens entre o mundo das funções herdado do Taylorismo e do

Fordismo e o mundo complexo da vida, onde tudo está ligado e acontece ao

mesmo tempo. Ao invés, a construção de um processo cultural, com toda a

diversidade e criatividade que lhe está inerente, com tensões, dinâmicas fluidas

e não acabadas como a vida, possibilita a inclusão de paradoxos e metáforas,

do grotesco e do ingénuo e de crenças românticas ou revolucionárias. Este

processo, que foi simultaneamente social, ambiental e cultural, inscreve estes

componentes como interactuantes e necessariamente interligados – o que

recoloca a questão política e ideológica.

Partindo de uma problematização e da (des) contrução profissional do Serviço

Social, esta investigação procurou encontrar nas ‘raízes, as ‘opções’ que

podiam ser mobilizadas nos processos de construção identitária. A equação

‘raízes/opções’ na terminologia de Sousa Santos (1998) nomeia a relação entre

o que é profundo, único, permanente e de grande escala com o que é variável,

efémero, substituível e de tempo instantâneo, para lembrar que estamos em

turbulência de escalas e em sociedades com o tempo acelerado.

Os entendimentos que foram mobilizados, associados à convicção da

transformação da natureza e da difusão do saber, apoiam a produção de

compreensões sobre as novas legitimidades que o Serviço Social procura,

assentes na «transformação de perspetivas» e na «conquista de um tempo

pessoal» como tempo integrado em que o sujeito consegue produzir sentido e

ultrapassar dicotomias. O conceito de ‘campo profissional’ foi útil, na medida

em que permitiu levar em conta e explicitar um conjunto interdependente de

atores, estruturas e mecanismos de interação que assumem configurações

próprias em cada contexto social e temporal, geradoras de oportunidades

objetivas e esperanças subjetivas de afirmação de construções identitárias

(Sousa Almeida, 2011).

O modelo de análise que foi sendo construído ‘à medida’, constituiu

simultaneamente uma forma de vigilância epistemológica da «prática-

investigadora» que tentou aprofundar o conhecimento sobre o campo

profissional que também ocupa, incidiu sobre a importância de refletir sobre ‘o

lugar do não saber face ao saber dos outros’ e permitiu construir um olhar

Page 500: As formigas e os carreiros

500

crítico sobre “o que é a formação e qual o lugar que nela ocupam as

experiências”, como refere Josso (2002).

No cruzamento entre formação, experiência, identidade e subjetividade, o ‘lugar

do saber’ ocupou um posicionamento transversal na procura de compreensão

sobre como se formam os assistentes sociais e como constroem as suas

formas identitárias ao longo da vida. A questão central de partida viu a sua

compreensão aprofundada ao longo deste trabalho e deste processo

aprendente, onde voltar às cinco questões orientadoras iniciais significa

consciencializar os contributos de conhecimento que se procurou alcançar.

Este conhecimento, necessariamente parcelar e provisório, carece da

salvaguarda de que a compreensão ampliada pelo processo de investigação e

pela análise das narrativas embora não permita generalizações, constituiu um

observatório de mudança social e dos múltiplos saberes que lhe estão

associados.

Que ligações estabelecem os assistentes sociais entre os

saberes teóricos e os saberes da prática?

Os assistentes sociais que colaboraram neste estudo falaram sobretudo da

mobilização dos saberes teóricos para a sua praxis, reforçando esta via em

detrimento da via inversa, isto é, da construção de saberes a partir das suas

experiências refletidas.

Estes últimos saberes, nem sempre são reconhecidos como tal e validados

pelos próprios com o estatuto de ‘saber’ em paridade com o saber científico,

sendo necessário muitas vezes o retorno de outros, sobretudo no contexto da

academia, para que os consciencializem. Se, por um lado, os seus argumentos

são veementes sobre a produção de saberes próprios a partir da

experiencialidade e da proximidade aos contextos, aos atores e às dinâmicas

em que interagem, por outro, estes saberes enformam de um ‘estatuto de

menoridade’ autoatribuída e são frequentemente ‘naturalizados’ como se

fossem do domínio de ‘toda a gente’, ou seja «senso comum».

Precisamente uma das ideias caras a Sousa Santos sobre o conhecimento

menciona a reabilitação da importância do «senso comum» para o

conhecimento científico.

Page 501: As formigas e os carreiros

501

“…na ciência moderna a rutura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum…” (1990:57).

Neste trabalho de investigação mobilizaram-se ideias de muitos autores, de

Serviço Social e de muitas outras áreas do conhecimento, teóricos e práticos,

procurando ter sempre presente a reflexividade feita nos percursos

profissionais e de vida e nas narrativas dos profissionais que aceitaram

colaborar. Por analogia com as pessoas com quem trabalham, estes

«profissionais das terras baixas» nem sempre têm presente a validade e a

importância dos seus saberes e dos conhecimentos que foram construindo (por

relação aos saberes académicos). Contudo, a convicção sobre o interesse

desses saberes no processo de capacitação individual e coletiva dos

assistentes sociais fez com que a relação estabelecida com o saber tenha sido

um dos eixos estruturantes desta tese. Como diz Charlot, enquanto relação

com o saber, a Educação também consiste na sua apropriação e interiorização

(palavras, ideias, teorias, mas também técnicas do corpo, práticas quotidianas,

gestos técnicos, formas de interações, dispositivos relacionais) pelo sujeito –

concebido como “um ser humano, portador de desejos (e levado pelo desejo) e

envolvido em relações sociais” (Charlot, 2001:19).

Foi testemunhado um processo semelhante com a produção escrita dos

profissionais que reconhecem não a privilegiar nos seus ‘fazeres’, ou fazendo,

não a divulgar evocando sobretudo constrangimentos de pouca autonomia, de

pertença organizacional e de submissão hierárquica. Por outro lado, as

narrativas do lado dos profissionais vinculados à academia apontam os

progressos da produção teórica, em quantidade e qualidade mas não deixam

de mencionar a escassez de publicação no campo e de divulgação pelos

profissionais mais práticos. Uns e outros reconhecem aproximações, apesar de

pontuarem os constrangimentos organizacionais que do lado da academia,

quer do lado das restantes organizações empregadoras, reconhecem que

foram feitos esforços de proximidade e paridade, mas insistem na manutenção

de «duas vias paralelas» - a via dos profissionais-académicos e a via dos

profissionais-do terreno - que têm dificuldade em se cruzar.

Page 502: As formigas e os carreiros

502

No que respeita aos saberes co construídos na práxis, os argumentos oscilam

entre o reconhecimento do potencial que este conhecimento tem para

engrossar o acervo de conhecimento próprio do campo profissional e a

dificuldade em o tornar instituinte para os quadros teóricos disponíveis na

profissão como referências novas que se submetem à crítica e à validação

epistemológica.

Destaca-se por último a menção ao «vaivém» entre o «terreno» e a academia

como um dos tipos de estratégia que gratifica os profissionais e lhes permite

«tempos» e «espaços» para a pretendida reflexividade, para a produção e

integração de conhecimentos.

Que perspectivas sobre a interação entre a formação inicial,

a formação contínua formal e as aprendizagens experienciais

e organizacionais?

As narrativas dos profissionais estão repletas de argumentos que confirmam a

importância da formação inicial, nomeadamente a componente teórico-prática,

a existência de professores-profissionais de referência e a aproximação aos

contextos de exercício.

A componente teórico-metodológica é aquela que é objetivada como mais

carecida de aprofundamento na formação contínua pós-graduada. No entanto,

a corrida à formação contínua certificada que o Tratado de Bolonha incentivou,

se bem que revele aspetos positivos no que respeita à prossecução da

reflexão, do aprofundamento e do desenvolvimento de estudos empíricos,

poderá ter também efeitos perversos ao nível da instrumentalidade do saber e

do afunilamento metodológico, com uma forte conceção ‘bancária’.

Numa leitura estereotipada, os assistentes sociais ainda são conotados com o

modelo de controlo, o que faz deles instrumentos privilegiados do capitalismo e

da manutenção de ordens societárias em decadência; ainda expressam

sentimentos de fragilidade epistemológica, aliados à condição subalterna e ao

enfraquecimento das zonas de autonomia profissional – o que contribui para

que as aprendizagens experienciais e organizacionais sejam pouco refletidas,

integradas, explicitadas e reintroduzidas nas organizações e na academia com

‘valor acrescentado’.

Page 503: As formigas e os carreiros

503

Contudo assiste-se a um aumento de profissionais licenciados no campo e, do

ponto de vista da formação académica, assiste-se também a um aumento da

cientifização dos profissionais, através da formação pós-graduada. Se o

primeiro aumento aponta para um alargamento da base social de recrutamento

e das motivações iniciais para este tipo de formação, interligados com a

ampliação e diversificação da oferta formativa inicial e pós-graduada; o

segundo interroga-nos sobre a(s) direção(ões) que esse aumento do corpo

profissional (e eventualmente de massa crítica) irá tomar, bem como sobre

quais os efeitos que esta maior ligação à formação pós-graduada terá, não só

na legitimidade e na credibilidade profissional, mas também no estatuto e no

prestígio social dos profissionais, considerados individual e coletivamente.

Como é que se constrói uma reflexividade critica no

profissional e na profissão?

Da análise das narrativas decorre que a reflexividade crítica dos profissionais

se constrói ‘a duras penas’ e a ‘contragosto’ das instituições empregadoras e

dos poderes presentes no campo profissional.

‘A duras penas’ porque parece muito dependente dos tempos e espaços

pessoais para se viabilizar, já que os profissionais referem não ter esse tempo

e esse espaço no seu tempo de trabalho e na sua condição de assalariados

(repleta de atividades processuais «contraprodutivas», como diria Illinch) cuja

missão expressa será maioritariamente a de resolver problemas.

Numa profissão muito feminizada, em que as mulheres ainda são sujeitas a

discriminações no mercado de trabalho e nos seus papéis familiares e sociais e

estão habituadas a ser desvalorizadas, quer do ponto de vista material, quer do

ponto de vista simbólico as ‘duras penas’ adquirem sentido pleno, apontando

para processos de luta e de grandes sacrifícios, se as profissionais entenderem

prosseguir um caminho formativo e de reflexividade que amplie a visão crítica e

a sua capacitação para se constituírem em poderes instituintes.

Historicamente, o estereótipo feminino ligado ao ‘cuidar’, à organização

doméstica e educativa e ao controlo ‘maternal’ foram fatores de valorização do

‘fazer’ e em simultâneo, de desvalorização do ‘dizer’ e do ‘pensar’ na relação e

na influência com um trabalho que se assemelhava mais à ‘vida’ do que a uma

relação assalariada e inscrita nas relações de trabalho e de poder. Este espaço

Page 504: As formigas e os carreiros

504

no «avesso» das profissões constitui um legado que precisa de ser tornado

consciente para que não comprometa os posicionamentos atuais dos

assistentes sociais que procuram agir e refletir no campo profissional.

A ‘contragosto’ porque as organizações em que os assistentes sociais

trabalham, de uma maneira geral, ainda não fomentam a reflexividade, não a

valorizam como competência coletiva e, em alguns casos, não a toleram.

Estas duas expressões são parte da argumentação sobre as condições

adversas à construção de uma reflexividade crítica mas, apesar de ser possível

enumerar muitas mais, optou-se por evidenciar outros argumentos que também

ressaltaram deste estudo e que dão conta de condições de possibilidade.

Dentre elas, destacam-se as de ordem individual (onde as motivações pessoais

e o suporte familiar e de rede também estão presentes), as de ordem

organizacional (onde a heterogeneidade do grupo de trabalho e a

complexidade e diversidade do exercício profissional são tidos em conta), até

às de ordem ambiental (onde ganham relevo ingredientes macro como a

inscrição no grupo social de origem ou de pertença, a perceção do

risco/segurança no emprego, as condições de rendimento e de vida, as

referências culturais e educacionais, entre outras).

Atendendo às produções de Giddens e Beck sobre a ‘Modernidade Reflexiva’,

a reflexividade representa a reinvenção da pluralidade, estimula a

autoconfrontação e o questionamento da tradição e do ‘natural’, como se fosse

reinventada uma sensibilidade estética e hermenêutica.

As narrativas dos/das assistentes mencionam ‘condições de possibilidade’ da

reflexividade profissional mas são menos eloquentes sobre os processos de

criação da reflexividade crítica na profissão; sobretudo se aceitarmos a ideia de

que a reflexividade do sujeito coletivo não será igual à simples soma das

trajetórias reflexivas dos profissionais, nem se avalia numa operação

aritmética.

Na medida em que a profissão quiser desenvolver-se em sentido inverso ao

rótulo da instrumentalidade e de efeito placebo do capitalismo, precisa de

continuar a questionar o seu papel de «contrapoder» no quadro das relações

de poder e de trabalho da sociedade onde atua e criar ruturas, internas e

externas – as primeiras, através da reinvenção de um projeto profissional

emancipatório capaz de mobilizar o corpo profissional e as segundas, através

Page 505: As formigas e os carreiros

505

da demonstração da sua jurisprudência e crebilidade para os públicos e pares

com quem interage.

Como se forma a profissionalidade e a identidade

profissional destes profissionais?

Os processos de construção da profissionalidade dos assistentes sociais, têm

como ingredientes de base a socialização profissional desde a formação inicial

até aos vários contextos e atuantes onde e com quem interagem. Assumindo

posicionamentos de clarificação, coerência e consistência (referidos em Payne,

2006), a profissão aprofunda a sua relação com o conhecimento e começa a

ter algum interesse pelos saberes ocultos e não nomeados que os profissionais

constroem nas suas práticas.

A construção identitária, eixo que atravessou toda a experiência de

investigação, aparece assim como resultado de uma identificação contingente,

marcada pela dinâmica entre diferenciação e generalização. A identificação ‘de’

e ‘pelo’ outro, mas também a importância de «manter a face» como refere

Goffman (1982) ou de produzir uma «identidade narrativa» são aspetos que os

assistentes sociais envolvidos mencionaram, na sua dupla qualidade de

sujeitos e de atores sociais coletivos. Assim num primeiro momento, foi

possível identificar nas narrativas quatro perfis profissionais, essencialmente

cronológicos, que representam outras tantas formas de construir percursos de

aprendizagem da profissão destes atores: ‘@s séniores’, ‘os do tempo da luta’,

‘os primeiros doutoras’ e ‘os mais novos’.

A crítica interna também faz referência à característica de «apaziguador

político» como refere Autès (2004), que acompanha por vezes práticas de

cunho educativo para alcançar «a ordem societária idealizada», o que parece

ter promovido a adaptabilidade dos profissionais e a sua atuação reprodutiva

junto das populações. Contudo, «as ideias fraturantes» presentes nas

narrativas, no quadro de pensamento da profissão e nas versões mais críticas

e inovadoras do Serviço Social colocam em causa, num segundo momento, os

marcos cronológicos que estiveram na base da diferenciação de «perfis» e,

fazendo uso de outros argumentos, permitiram uma análise temática e

dialógica que tentou ultrapassar as velhas dicotomias entre o foco no individuo

ou na estrutura e o compromisso com a estabilidade ou com a mudança.

Page 506: As formigas e os carreiros

506

Por último, no ensaio de análise temática e construção tipológica foram

descritas quatro formas identitárias - ‘os ecossistemas protegidos’, ‘os trilhos

seguros’, ‘abrir caminhos’ e ‘inventar carreiros’.

Estas formas correspondem a outras tantas formas dos profissionais «se

representarem e se dizerem» no cruzamento e nas tensões entre as

identidades biográficas para outrem (forma cultural) e/ou para si (forma

narrativa) e as formas relacionais para outrem (forma estatutária) e/ou para si

(forma reflexiva).

Como se processa a ‘conquista do tempo pessoal’ e a

‘transformação de perspetivas’?

Neste ponto mobilizo três conceitos de origens diferentes para destacar

contributos essenciais para o processo de aprendizagem e de construção

identitária e que são respetivamente: i) a «mestiçagem» enquanto conceito e

valor que constitui e unifica a matriz do Serviço Social; ii) a «não-inscrição»

enquanto conceito e valor que dificulta que os profissionais se posicionem, que

ultrapassem uma neutralidade com história e que se envolvam, que participem

ativamente, nos movimentos e dinâmicas sociais. Neste entendimento a

«inscrição» dos assistentes sociais equivale a assumir a sua tomada de

posição, individual e coletiva; e iii) a «convivialidade» enquanto conceito que

gera condições de possibilidades para agir, pensar a ação e produzir

conhecimento.

A Mestiçagem

O Serviço Social mantem-se unificado, apesar de algumas tendências internas

para consolidar vias de especialização (como, por exemplo, no caso da Saúde,

das Autarquias ou da Justiça onde existem profissionais com posições de

destaque e historiais de reconhecimento profissional) e tem evoluído de forma

diferente de outras ciências, nomeadamente da Sociologia e da Psicologia, que

foram admitindo grande pluralidade interna e se tornaram simultaneamente

mais especializadas e diversas.

Esta unicidade, mais normativa do que genealógica, é balizada por duas

abordagens: uma, mais epistemológica que argumenta com a totalização, o

status quo e a necessidade de reforçar a cientificidade do Serviço Social e

outra, amparada pelas «condições de possibilidade» de um saber que não fica

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507

refém das ideias reguladoras de ‘verdade’ e de ‘progresso’ e que pode evoluir

sem a colonização dos modelos científicos de outras ciências. Esta última

abordagem foi inspirada na perspetiva antropológica com que Bruno Latour

(1990) refletiu a ciência, focando como objeto as «práticas científicas»,

ultrapassando a dicotomia entre o natural e o humano, o objetivo e o subjetivo

e passando do princípio metodológico ao princípio ontológico (que privilegia os

híbridos, a rede e os ‘fetiches’17) numa perspetiva que integra ciência e cultura.

Um dos aspetos que gostaria de voltar a ressaltar em Latour são as «condições

de possibilidade» que permitem misturar temas e métodos diversos que a

modernidade separou, constituindo um território hibrido, mestiço, com novas

possibilidades de combinação e inclusão, onde o ‘micro’ e o ‘macro’ se

relativizam e onde a pesquisa empírica se completa na reflexão, com uma

‘ampliação de interesses’ em vez de ruturas epistemológicas. A ontologia

proposta por Latour (1993, 2002) ultrapassa o ‘princípio de simetria ampliado’18

e a impossibilidade de cisão entre natureza e sociedade e deixa de se produzir

a partir de extremos dicotómicos.

Procura-se nesta antropologia amoderna, que não se oponha o monismo dos

‘primitivos’ (sem separação entre sociedade e natureza) ao dualismo ‘civilizado’

assente na oposição entre verdade e erro que só os modernos podem atingir

(Latour, 1994:91). Para além de todos os relativismos culturais e

universalismos naturais, o mesmo autor sugere o «relativismo relativista»

enfatizando o pôr-se em relação entre as culturas, sem que se interponha entre

elas qualquer medida que não seja produto de uma mediação construída

(1994:111). Esta conceção valoriza o hibrido, entretanto já não entendido como

‘mistura indevida’.

Esta valorização da «mestiçagem» parece ser um traço identitário fundamental

do Serviço Social - da mesma forma como as famílias multiculturais, ou as

17 ‘Fetiches’ é uma tradução para a palavra ‘faitiches’, querendo significar algo que é ao mesmo tempo fato, real e fetiche, artefacto simbólico produzido por nós. Faz apelo a um modo de existência que incluiria os objetos científicos e os sujeitos (simultaneamente livres e socialmente produzidos) e que os assemelharia aos fetiches produzidos pelas culturas ancestrais.

18 Este princípio aponta para duas assimetrias (verdade/erro e natureza/sociedade) e para uma não diferença essencial entre saber científico e não científico e opõe-se à rutura, ou ao corte epistemológico, do discurso científico em relação ao senso comum.

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pessoas com percursos de grande diversidade cultural e geográfica (que, por

exemplo, têm pais de nacionalidades diferentes, cresceram num dado país que

não era nenhum dos países das origens parentais e residem em adultas,

noutro país ou têm percursos por vários países), precisam de construir a sua

identidade, entre a diversidade e a hibridez, como uma «mistura» que torna

único/a aquele individuo, que é uma riqueza por si só e que pode ser um eixo

gerador e potenciador de aprendizagens significantes.

A «Não-inscrição»

Este é um conceito de José Gil (2004) que fala no seu ensaio filosófico de

«uma lacuna invisível», de «um branco», num Portugal que vive com medo de

existir. Segundo o autor, nada acontece em Portugal entre a pré-modernidade

e a pós-modernidade, entre a sociedade da norma e do controlo; com a «não-

inscrição» não rebentam conflitos, não se grita, tudo se torna impune com o

tempo, mesmo o imediato, o presente. Pelo contrário, ‘inscrever’ é agir, afirmar,

decidir; é correr perigo, conquistar autonomia e sentido das coisas; é produzir

real e desejo. A «inscrição» é o acontecimento que ganha o estatuto de

experiência decisiva, formadora mas, que implica por isso, confrontos,

sofrimentos, divergências, perdas e danos.

A utilização do conceito de «não-inscrição» pretende constituir uma imagem

para a neutralidade que tem marcado a profissão, tentando retirá-la da sua

naturalização e instituir a possibilidade de assumir ruturas. Defende-se aqui

que a «inscrição» dos assistentes sociais nos seus respetivos quadros de

referência e em posicionamentos ético-políticos é outro dos eixos da

construção identitária da profissionalidade, que pode contribuir para construir o

sujeito coletivo e produzir a «identidade narrativa».

A luta contra a «não-inscrição» é algo que marca inclusive este processo de

investigação, onde foi muito difícil assumir uma posição através de uma

narrativa própria que marcasse um ponto de vista sobre a profissão e os seus

processos de aprendizagem e construção identitária.

À questão tantas vezes interrogada pelo orientador sobre «qual é a sua tese?»,

seguiram-se longos períodos de «não-saber», de ponderar ‘isto e aquilo’, de

deambular por argumentos variados que pontuavam as circunstâncias da

situação, mas não ajudavam a concluir a resposta.

Page 509: As formigas e os carreiros

509

Escrever sobre a profissão e os profissionais fez-me emergir num ‘pote’ - de

ligações e de posições sobre o campo profissional, que incluía forças, tensões,

atores, dilemas, paradoxos, escolhas e muito mais que ficou por enunciar – de

onde saí com dificuldade e poucas certezas. Por outro lado, o gosto pela leitura

e pela escrita amadurecido ao longo dos anos (nomeadamente nas reflexões e

nos registos profissionais) foi questionado, na medida em que neste processo

«escrever» ganhou uma redobrada exigência, instalando a dificuldade e o

sentimento de «não saber». Como refere Lobo Antunes (2011: 154, 155), na

“Crónica para aqueles que vão escrever”:

“O mistério do ato de criar permanece intacto. Passeei na prosa de gente que procurava compreender também, e o mistério do acto de criar permanece intacto. (…) Os mecanismos são ocultos. A gente pode verificar os resultados mas nunca atinge as raízes. Nem o tronco. (…) Uma porção de versões para as primeiras páginas.(- Ainda não é o que eu quero, ainda não é o que eu quero) até a mão encarreirar. Faz-me lembrar a água que se derrama nas tábuas do chão, devagar, a escolher o caminho”.

Utilizo esta citação e a imagem da ‘água que se derrama nas tábuas do chão a

escolher o caminho’ para dizer da estranheza, da falta de controlo e das

dificuldades que experimentei na construção desta narrativa, nomeadamente

no processo de confronto com «ideias feitas» - as minhas, as de outros com

quem me foi ‘encontrando’ e debatendo, e as do «mainstreming».

Na tentativa de evitação de uma retórica discursiva sedimentada em

racionalidades instrumentais, meritocráticas e/ou humanistas, fui-me

confrontando com a incerteza do conhecimento, convencendo-me de que as

possibilidades de erro e de ilusão são múltiplas e permanentes, quer as

oriundas do exterior cultural e social, quer as provindas do interior.

Como diria Morin “O dever principal da educação é o de armar cada um para o

combate vital para a lucidez” (2000:33). Muita «Incerteza», pouca «Lucidez» e

uma relação com o «Erro» que é simultaneamente marcada pelo medo e pelo

direito – um direito ao erro, que foi aprendido e conquistado com o sentido do

experimental, da criatividade, das hipóteses, de quem não pode intervir ou

refletir apenas com o receituário de «by the book» e precisa de arriscar para co

construir soluções e perspetivas com os outros atores, em processos negociais

e produtores de sentido.

Page 510: As formigas e os carreiros

510

De facto, as Ciências Sociais tratam «do mundo da vida» em que todos se

julgam competentes e em que o próprio cientista é levado, muitas vezes, a

confundir os resultados da investigação com o seu próprio conhecimento

espontâneo da realidade. E estas dificuldades só serão superáveis com «uma

constante vigilância epistemológica” (Sousa Santos, 1989:35) que só se poderá

concretizar no esforço por avançar no conhecimento contra o já conhecido

(preconceitos, noções pseudocientíficas) e na comunicação livre que permite o

controlo cruzado das suas investigações. A vigilância epistemológica foi neste

processo, uma função imprescindível que permitiu aos assistentes sociais uma

reflexão critica sobre si mesmos, sobre os métodos que utilizam e sobre as

suas certezas e erros19 - neste entendimento comprometido com o avanço

científico, os obstáculos epistemológicos constituem, ao mesmo tempo, outras

tantas dificuldades no levar por diante uma rutura com eles mesmos.

A «Convivencialidade»

A «convivencialidade» é um conceito de Ivan Illich (1976), um autor de

«utopias» e de «contracorrente» que constitui uma referência na Educação e

fez furor nos anos 70. Este conceito reporta a uma ideia de sociedade em que

o homem controla a «ferramenta» e em que a ferramenta moderna está ao

serviço da pessoa integrada na coletividade e não ao serviço de especialistas;

a sociedade convivencial é uma sociedade que oferece ao homem a

possibilidade de exercer uma ação mais autónoma e mais criativa, com o

auxílio das ferramentas menos controláveis pelos outros. Diz o autor:

“A própria crise geral pode estabelecer, de forma duradoura, um contrato social que abandone o poder de prescrever o bem-estar ao despotismo tecnoburocrático e à ortodoxia ideológica, ou então ser a oportunidade de construir uma sociedade convivencial, em transformação contínua dentro de um quadro material, que seria definido por abolições racionais e políticas” (1976:136).

Sem pretender aprofundar a complexidade e a atualidade deste autor, rendi-me

à importação deste conceito para o Serviço Social – sobretudo pela

possibilidade de pensar «utopias» e pelo sentido que faz a dinâmica de uma

19

O problema do erro atravessa transversalmente o ensino e a educação, na sua própria essência e

sentido, mas também no que respeita aos educadores e professores, nos seus estatuto e formação; não na sua razão de ser (porque educar é sempre indispensável em termos pessoais e sociais), mas enquanto conceito, função, auto e hétero-imagem (cf. Damião,2001).

Page 511: As formigas e os carreiros

511

‘transformação continua’ em que o homem não seja dominado pelas

‘ferramentas’ que cria.

Nas sociedades ocidentais contemporâneas o significado do trabalho tem

sofrido profundas alterações e, para além do aumento exponencial de pessoas

excluídas da possibilidade de ter trabalho, das mutações na auto

representação pelo trabalho e/ou das alterações dos significados de inclusão

social pela posição profissional ocupada, as atividades de trabalho parecem

seguir tendências de fluidez de atividades remuneradas e de

desprofissionalização.

A mudança na organização social do trabalho, a escassez de postos de

trabalho convencionais e a instrumentalização da formação cumprem a função

de preparar com maior rapidez os jovens para o ingresso no mercado de

trabalho mas diminuem as possibilidades de aprendizagem dos conteúdos

teóricos e metodológicos, encarados como formas de leitura dos fenómenos e

dos contextos em que @s assistentes sociais intervém e, simultaneamente,

tornam-os profissionais mais maleáveis em relação aos poderes instituídos e à

função de ‘placebo social’ que frequentemente lhes é atribuída.

Natália Alves em estudo recente sobre os licenciados da Universidade de

Lisboa refere que

“…a tensão entre os discursos da modernização e da igualdade de oportunidades agudiza-se com a reinvenção do conceito de meritocracia que (…) faz depender a resolução dos problemas sociais da mobilização das vontades individuas e estas da posse de competências adequadas que a escola é chamada a transmitir. Esta tendência para a privatização dos problemas sociais e consequente responsabilização individual está associada à configuração de novas subjetividades individuais e sociais que se constroem por referência ao domínio das competências como a autonomia, a flexibilidade, a adaptação entre outras, que a escola deve proporcionar e que os jovens devem desenvolver sob pena de se inscreverem em processos de exclusão social” (2006:8,9).

A tendência meritocrática, a responsabilização individual e a privatização dos

problemas sociais são domínios do instituído que @s assistentes sociais

podem refletir, refletindo-se nas possibilidades de futuro. Afinal, a sua

existência diz muito da capacidade de reinventar a profissão e dos modos de a

tornar aprendente.

“Agora, para ultrapassar aquele sentimento de «pequenez» que eu muitas vezes

encontro nos profissionais, existe um longo caminho a percorrer, até no sentido da humildade de se exporem à crítica de outros e aprenderem com isso” Sofia/E ZC4.

Page 512: As formigas e os carreiros

512

Limitações do estudo e investigações futuras

“Este entrelaçar de sonhos, projetos, gentes, pescadores de bocadinhos de futuro e sonhos possíveis, já e agora, ficam sempre aquém. Aquém do sonho, mas além da realidade que seria sempre mais pobre sem a nossa intervenção” (Rodrigues in Cunha, 2012:141) ”.

Esta citação inspira-nos e sintetiza um entendimento sobre o processo

contínuo de aprendizagem, nos equlibrios e desiquilibrios entre a estabilidade e

o incómodo, na adoção de papeis reversíveis e nesta ideia de sermos

«pescadores de bocadinhos de futuro».

Neste estudo exploratório, apresentam-se sobretudo pistas para ampliar um

olhar compreensivo, mais sistémico e mais plural, sobre a profissão de

assistente social. O esforço de fundamentação e argumentação teórica, de

explicitação, de cumprir os preceitos do método não se esgotaram nesta

trajetória formativa, nem na tentativa de desocultar o objeto de estudo.

As próprias condições de realização e produção deste trabalho inscreveram

constrangimentos e limitações que dificultaram a recolha de dados, ficando por

fazer uma compreensão analítica relativamente a algumas das dimensões que

estruturam o campo profissional; entre elas, o associativismo profissional e as

respetivas estratégias de afirmação do projeto coletivo, o peso das culturas de

serviço na socialização profissional e a exploração das possibilidades

instituintes em perspetivas e desempenhos menos tradicionais.

O dinamismo e a mudança que caracterizam os fenómenos sociais e o próprio

processo de construção de conhecimento, aliados às insuficiências e

constrangimentos deste processo de investigação, reforçam a ideia de que as

pistas alcançadas são necessariamente provisórias e merecem uma reflexão

continuada, muitos outros pontos de entrada e a inclusão de dimensões que

foram preteridas neste processo.

Em investigações futuras, seria pertinente ter em conta a reorganização do

sistema de ensino, tentando explorar as alterações aos modelos de

funcionamento, as dinâmicas da procura e da oferta formativa e as definições

da formação, quer no seu ciclo inicial, quer no ciclo pós-graduado.

Por último, e numa procura de ampliar a procura de perspetivas também se

considera relevante explorar as representações externas a este grupo

Page 513: As formigas e os carreiros

513

profissional, nomeadamente dos decisores de políticas sociais, dos

empregadores, das hierarquias, dos pares de outras formações e dos públicos

com quem interagem.

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ANEXOS

1. TABELAS DE CARACTERIZAÇÃO DOS ENTREVISTADOS:

- CARACTERIZAÇÃO SOCIO-DEMOGRÁFICA

- TEMPOS E TRAJECTÓRIAS PROFISSIONAIS

2. GUIÕES DA ENTREVISTA

3. QUESTIONÁRIO

4. PROTOCOLOS DAS ENTREVISTAS E RESPOSTAS AO QUESTIONÁRIO