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As festas religiosas nas ordens terceiras franciscanas: a procissão de cinzas em São Paulo e em Braga no século XVIII Juliana de Mello Moraes* Doutoranda - Universidade do Minho A celebração da Quaresma constitui-se num importante momento para os ca- tólicos. Rememorar os momentos vividos por Cristo em seus últimos dias, relem- brando a precariedade da vida terrena face a eternidade da existência pós-morte, mostra-se fundamental para a salvação das almas. Durante o século XVIII, entre as instituições que celebravam o período quares- mal em terras portuguesas, destacavam-se as ordens terceiras franciscanas da peni- tência. Estas realizavam a procissão de cinzas, na quarta-feira de cinzas, marcando a entrada da Quaresma da época penitencial. As ordens terceiras da penitência estavam atreladas a ordem regular dos frades franciscanos. Como terceiras ordens, elas agrupavam leigos e religiosos seculares em busca de uma vivência mais estreita de sua fé. Existentes desde o século XIII, foi so- mente no século XVII que as ordens seculares franciscanas ganharam novo impulso de acordo com os apelos da reforma tridentina e a promoção do associativismo leigo. Esse crescimento numérico é perceptível nas datas de formação das terceiras ordens em diferentes partes do império português: em 1615, em Lisboa; em 1633, no Porto; em 1659, em Coimbra 1 ; em 1673, em Braga. Na América portuguesa, em 1619, no Rio de Janeiro; em 1635, na Bahia; em 1641, em Santos 3 ; em 1646, São Paulo. 4 *Doutoranda do Departamento de História, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga. Bolsista da Fundação para a Ciência e para a Tecnologia (FCT - Portugal). 1 A respeito da origem das ordens terceiras em Portugal, ler: EIRAS, José Aníbal Guimarães da Costa. “A obra assistencial dos terceiros franciscanos portuenses: elementos para seu estudo”. In: Revista de História. Actas do Colóquio “O Porto na Época Moderna”. Porto: s. ed., 1980. Vol. III. p. 1. ARQUIVO DA VENERÁVEL ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO DE BRAGA (AVO- TB). Livro 1º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fls. 1-. 3 Sobre a data de fundação de algumas ordens terceiras na América portuguesa, ver: MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (1700-1822). São Paulo: Vols. I e II. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da USP, 001. pp. 69-83. Policopiada. 4 Apesar de 1646 ser a data aceita pela historiografia brasileira, a ordem terceira de São

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As festas religiosas nas ordens terceiras franciscanas: a procissão de cinzas em São

Paulo e em Braga no século XVIII

Juliana de Mello Moraes*Doutoranda - Universidade do Minho

A celebração da Quaresma constitui-se num importante momento para os ca-tólicos. Rememorar os momentos vividos por Cristo em seus últimos dias, relem-brando a precariedade da vida terrena face a eternidade da existência pós-morte, mostra-se fundamental para a salvação das almas.

Durante o século XVIII, entre as instituições que celebravam o período quares-mal em terras portuguesas, destacavam-se as ordens terceiras franciscanas da peni-tência. Estas realizavam a procissão de cinzas, na quarta-feira de cinzas, marcando a entrada da Quaresma da época penitencial.

As ordens terceiras da penitência estavam atreladas a ordem regular dos frades franciscanos. Como terceiras ordens, elas agrupavam leigos e religiosos seculares em busca de uma vivência mais estreita de sua fé. Existentes desde o século XIII, foi so-mente no século XVII que as ordens seculares franciscanas ganharam novo impulso de acordo com os apelos da reforma tridentina e a promoção do associativismo leigo. Esse crescimento numérico é perceptível nas datas de formação das terceiras ordens em diferentes partes do império português: em 1615, em Lisboa; em 1633, no Porto; em 1659, em Coimbra1; em 1673, em Braga.� Na América portuguesa, em 1619, no Rio de Janeiro; em 1635, na Bahia; em 1641, em Santos3; em 1646, São Paulo.4

*Doutoranda do Departamento de História, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga. Bolsista da Fundação para a Ciência e para a Tecnologia (FCT - Portugal).

1 A respeito da origem das ordens terceiras em Portugal, ler: EIRAS, José Aníbal Guimarães da Costa. “A obra assistencial dos terceiros franciscanos portuenses: elementos para seu estudo”. In: Revista de História. Actas do Colóquio “O Porto na Época Moderna”. Porto: s. ed., 1980. Vol. III. p. �1. � ARQUIVO DA VENERÁVEL ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO DE BRAGA (AVO-TB). Livro 1º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fls. 1-�. 3 Sobre a data de fundação de algumas ordens terceiras na América portuguesa, ver: MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (1700-1822). São Paulo: Vols. I e II. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da USP, �001. pp. 69-83. Policopiada. 4 Apesar de 1646 ser a data aceita pela historiografia brasileira, a ordem terceira de São

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Em distintas localidades, do império português, foi notória a sua edificação e crescimento demonstrando a adesão das populações a devoção franciscana. Ine-rente aos diversos contextos onde se formavam encontravam-se nas ordens tercei-ras discrepâncias no modo de gerir o sodalício, todavia alguns elementos perpetuam-se e assemelham-se nos mais díspares locais. Entre essas características comuns as ordens terceiras de São Francisco no cenário português destaca-se a necessidade de elaborar compromissos consoantes a Regra estipulada por Nicolau IV, em 1�89; ter um frade franciscano entre os gestores da instituição; a possibilidade dos irmãos ter-ceiros adentrarem a ordem terceira de outras localidades quando munidos de docu-mentação válida; a prática de assistência aos membros doentes e pobres; a realização da procissão de cinzas e da festa em dia de São Francisco, entre outras.

Em diferentes cidades brasileiras como Salvador, Olinda, Ouro Preto, Mare-chal Deodoro e São Paulo5 ocorreu, durante os séculos XVIII e XIX, a procissão de cinzas enquanto que, em Portugal, há informações dessa festividade para as atuais cidades do Porto, de Vila Viçosa, de Vila do Conde, de Braga, por exemplo.6

A procissão de cinzas realizava-se na quarta-feira abrindo o tempo da Quares-ma. Momento de reflexão católica e de penitência, o período que precede a Páscoa se configura num dos momentos fundamentais da vivência dos cristãos. O primeiro dia da Quaresma era marcado pela procissão promovida pelas ordens terceiras da penitência de São Francisco. Diferentemente da Espanha, mais especificamente na

Paulo só possuí documentação datada a partir de 1674. Sobre a fundação da ordem secu-lar franciscana, ver ORTMANN, Adalberto. História da antiga capela da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco em São Paulo. Rio de Janeiro: Publicações do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), 1951. p. 17; ARQUIVO DA VENERÁVEL ORDEM TERCEIRA DE SÃO PAULO (doravante AVOTSP). Livro I de Termos 1686-1733. fl. �.5 Para mais informações sobre a procissão de cinzas na América portuguesa, ler: FERRARE, Josemary Omena Passos. “Fé e festa em percursos urbanos na Alagoas barroca, Marechal Deodoro – Brasil”. In: Actas do II Congresso Internacional do Barroco. Porto: Serbilito, �003. p. 356. CAMPOS, Adalgisa Arantes. “As ordens terceiras de São Francisco nas Minas colo-niais: cultura artística e procissão de cinzas”. In: Estudos de História, Franca: Editora Unesp, vol. 6, n. �, 1999. pp. 1�1-134. FLEXOR, Maria Helena Ochi. “Procissões na Bahia: teatro barroco a céu aberto”. In: Actas do II Congresso Internacional do Barroco. Porto: Serbilito, �003. pp. 5�1-533. ORTMANN, Adalberto. História da antiga capela da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco em São Paulo. Rio de Janeiro: Publicações do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), 1951. pp. 113-153. ALVES, Marieta. História da Venerável Ordem de São Francisco da Bahia. Rio de Janeiro: Publicações do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), 1948. pp. 193-�19. 6 Sobre a procissão de cinzas em Portugal, ver: FERREIRA, J. A. Pinto. “Os majestosos andores da procissão de cinza”. In: Separata do Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto. Porto: Câ-mara Municipal do Porto, vol. XXIX, 1967. pp. 3-6�. PEREIRA, João Maria dos Reis. “A procissão de cinza de Vila do Conde”. In: Separata de Vila do Conde. Barcelos: Tipografia Vitória, 1963. pp. 3-11. ARAÚJO, Maria Marta Lobo de. “Vestidos de cinzento: os irmãos terceiros franciscanos de Vila Viçosa, através dos Estatutos de 1686”. In: Revista de Cultura Callipole. Vila Viçosa: Câ-mara Municipal de Vila Viçosa. nº. 1�, �004. pp. 57-58. PROENÇA, Maria José. A procissão de cinzas que se realizava em Braga. Braga: Ordem Terceira de Braga, �00�. pp. 55-59.

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Galícia, onde essas instituições celebravam principalmente a Via Crucis7, em Por-tugal e nos seus territórios de além-mar, os irmãos terceiros destacavam-se por ce-lebrar o início ao tempo da expiação. Essa diferença entre as associações espanho-las e portuguesas no tocante às suas festividades mostra-se aparentemente inexplicável visto que todas elas tinham em Madrid o seu maior responsável: o Comissário Geral. Contudo, ao analisar o panorama da vivência religiosa em Por-tugal, fundamentalmente ao apreender o quadro mais amplo das diversas associa-ções leigas e religiosas, pode-se compreender tal distinção.

Em terras portuguesas, diferentes irmandades participavam das festividades da semana santa. As Misericórdias8 realizavam a procissão das endoenças na quinta-feira enquanto que os outros dias importantes dessa semana contavam ainda com os carme-litas (sexta) e dominicanos (domingo de ramos). Segundo as Constituições do Arcebis-pado da Bahia (1707) fixava-se a realização da procissão de cinzas pelos devotos de São Francisco.9 Essa especialização das festividades estabelecida e institucionalizada denotava o papel destinado a cada uma dessas associações nos mais variados espaços do universo português, diferenciando-as e hierarquizando-as consoante características ligadas aos seus membros, as suas práticas religiosas e assistenciais.

Como a própria nomenclatura indica, as ordens terceiras da penitência ocupa-vam-se sobremaneira em purificar e edificar os seus membros e a comunidade. Demonstrar a importância do período penitencial e a necessidade desse para o bom viver cristão faziam parte dos ideais dessa instituição. Entre os treze funda-mentos da regra dos terceiros franciscanos, a penitência encontra-se em segundo lugar somente sobrepujado pela fé.10

Além dessa importância destinada a penitência, as ordens terceiras durante o século XVIII, participavam do contexto mais amplo da renovação religiosa tridenti-na. Nesta, as procissões ocupavam um papel de destaque visto proporcionarem

7 A Via Crucis constitui-se por percorrer quatorze estações que representam os últimos mo-mentos da vida de Cristo. Em Espanha, os irmãos terceiros realizavam a Via Crucis não so-mente na Semana Santa, mas também durante todo o ano. Como, por exemplo, em Porto do Son onde os seculares franciscanos possuíam o “campo de Atalaya” com quatorze cruzes de pedra em sua propriedade para realizar esse exercício espiritual. De acordo com: MARTÍN GARCIA, Alfredo. “La celebración de la semana santa en las fraternidades terciarias del Rei-no de Galicia durante el Antiguo Régimen”. In: Archivo Ibero-Americano. Madrid: Editorial Cisneros, �004, vol. 64, n. �49. pp. 6�9-654. 8 Para verificar as festas realizadas pelas Santas Casas de Misericórdia, ler: ARAÚJO, Maria Marta Lobo de. Dar aos pobres e emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e Ponte de Lima (Séculos XVI-XVIII). Barcelos: Santa Casa de Misericórdia de Vila Viçosa; Santa Casa de Misericórdia de Ponte de Lima, �000. pp. 133-137. 9 FLEXOR, Maria Helena Ochi. “Procissões na Bahia: teatro barroco a céu aberto…”. p. 5�1.10 Os treze principais fundamentos da regra dos terceiros franciscanos consistiam em: fé, peni-tência, esperança, caridade, justiça, piedade, humildade, obediência, castidade, religião, tempe-rança, bom exemplo e prudência. Sobre esse tema, ver: SÃO FRANCISCO, Luís de. Que contem tudo o que toca a origem, regra, estatutos, cerimonias, privilégios, progressos da sagrada ordem terceira de nosso seraphico padre São Francisco. Lisboa: Oficina Miguel Deslandes, 1684.

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importante momento de difusão dos ideais cristãos inspirando condutas.11 Nesse sentido, recomendavam as Constituições Sinodais bracarense, do século XVII, a necessidade de veneração, quietação e decoro no momento processional. Tudo com o objetivo de louvar a Deus, honrar os santos para atingir o bem supremo do “remédio de Deos”.1�

As benesses divinas angariadas pelo bom andamento da procissão incorpora-vam-se na comunidade em prol do bem-estar comum. Portanto, destinada a edifi-car seus membros e a comunidade circundante, a procissão de cinzas ocupava sobremaneira os sodalícios franciscanos. Para realizar essa festividade confeccio-nava-se diversos paramentos, mobilizavam-se grande grupo de leigos e religiosos.

Como importante momento da vivência religiosa das instituições seculares e como uma cerimônia de caráter público, as procissões de cinzas revelam-se num momento fundamental para atentar para as características particulares das ordens terceiras franciscanas face as outras instituições de cariz leigo e religioso. Nesse sentido, ao analisar a organização, a realização e a finalidade desse evento descor-tina-se uma das principais facetas das ordens seculares da penitência.

Em Braga esse evento ocorreu desde o final do século XVII. A ordem terceira bracarense teve sua origem dentro da irmandade de São Francisco sita na Sé, quan-do alguns de seus membros obtiveram aprovação, em 1673, do ministro geral do Madrid e do ministro da província da Soledade para formar a ordem secular. Segui-damente, os primeiros irmãos terceiros decidiram fazer a procissão de cinzas.13

Em São Paulo os primeiros registros relacionados a procissão também datam do século XVII, contudo o primeiro livro de termos, iniciado em 1691, não é claro a respeito desse tema, indicando somente uma listagem dos andores da instituição. Nesse rol, os andores mais antigos datam de 169�.14

Nas duas localidades a procissão teve início nas últimas décadas do século XVII, demonstrando a fluidez e a amplitude da influência franciscana e a importância dada a celebração pública pelos seus membros. Outro fator análogo as duas localidades é a presença de diferentes irmandades e ordens religiosas participando das celebrações da quaresma e semana-santa. Primeiramente, a existência da Santa Casa de Misericórdia

11 Para compreender o papel da procissão no contexto pós-tridentino, ler: TEDIM, José Ma-nuel. “A procissão das procissões. A festa do corpo de Deus”. In: A arte efémera em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, �001. pp. �18-��3.1� A respeito das disposições das procissões no Arcebispado de Braga, ler: CONSTITUIÇO-ENS SYNODAES DO ARCEBISPADO DE BRAGA, ordenadas no ano de 1639. Pelo Illustris-simo Senhor Arcebispo D. Sebastião de Matos e Noronha: E mandadas imprimir a primeira vez pelo Illustrissimo Senhor D. João de Sousa Arcebispo, & Senhor de Braga, Primaz das Espanhas, do Conselho de Sua Magestado, & seu Sumilher da Cortina. Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes, 1697. pp- 300-301. 13 Sobre a fundação da ordem terceira bracarense, consultar: AVOTB. Livro de acordos da irmandade do seraphico São Francisco 1638-1672. fls. 35, 39, 41-44v.14 AVOTSP. Livro I de Termos… fls. 1, 169v.-170v.

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tanto em São Paulo15 quanto em Braga16. Como mencionado anteriormente, essa ir-mandade era a responsável pela execução da procissão de quinta-feira de endoenças em todo o império português.

Em terras paulistanas, durante o século XVIII, além da Santa Casa, destacavam-se as irmandades do Santíssimo Sacramento, de Santo António, de São Miguel, das Almas, de Nossa Senhora das Dores, de Nossa Senhora dos Remédios, da Boa Mor-te, de Nossa Senhora do Rosário e a ordem terceira do Carmo17. Em Braga, entre as 87 irmandades e confrarias18 existentes na segunda metade do setecentos, encon-travam-se, em suas diversas igrejas, as associações do Santíssimo Sacramento, da Santa Cruz, das Almas, de São Vicente, de São Pedro dos Clérigos, dos Passos de São João do Souto, da Santíssima Trindade, da Apresentação e Almas e de Nossa Senhora do Rosário.19

Dessa forma, as ordens terceiras paulistana e bracarense atuavam em meio de diversas instituições leigas e religiosas. Não somente a Santa Casa de Misericórdia, mas também outras irmandades e, no caso paulistano, outra ordem terceira (Or-dem Terceira do Carmo) realizavam variadas festas ao celebrarem seus oragos, durante a Semana Santa e, finalmente, nas cerimônias públicas (procissão do Cor-po de Deus ou em datas relevantes para a Coroa). Nesse contexto, também as or-dens terceiras franciscanas participavam de diferentes eventos quando solicitadas.

Em Braga o arcebispo Dom José de Bragança (1741-1756) incluiu o sodalício franciscano na procissão de Corpus Christi�0. Em São Paulo a ordem terceira cons-

15 Em São Paulo, a Misericórdia, originária do século XVI, período em que já recebia doações em testamentos dos habitantes da região. De acordo com SANTOS, Maria da Conceição. “Ir-mandades e confrarias em São Paulo Colonial”. In: VILHENA, Maria Ângela; PASSOS, João Décio (Orgs.). A igreja em São Paulo: presença católica na história da cidade. São Paulo: Paulinas, �005. p. �54. 16 A Santa Casa de Misericórdia bracarense teve sua origem no século XVI. Sobre a fundação da Misericórdia em Braga, ler: CASTRO, Maria de Fátima. A Misericórdia de Braga. Braga: Secção de Artes Gráficas das Oficinas de Trabalho, �003. pp. 35-40. 17 Em finais do século XVIII, São Paulo contava com pelo menos �1 associações de leigos entre irmandades e ordens terceiras. A Ordem Terceira do Carmo foi fundada em 1594. Sobre as irmandades e ordens terceiras em São Paulo, ver: SANTOS, Maria da Conceição. “Irmandades e confrarias em São Paulo Colonial…”. pp. �33- 64; WERNET, Augustin. “Vida religiosa em São Paulo: do colégio dos jesuítas à diversificação de cultos e crenças (1554-1954)”. In: PORTA, Paula (Org.). História da cidade de São Paulo: a cidade colonial. São Paulo: Paz e Terra, �004. pp. 191- �43. 18 Sobre irmandades e confrarias em Braga no século XVIII, ver: FERREIRA, Ana Cunha; CAPELA, José Viriato. Braga Triunfante ao tempo das memórias paroquiais de 1758. Braga: Compolito, �00�. pp. 193-�04. 19 Destacamos as irmandades de maior rendimento financeiro. A respeito das finanças das irmandades bracarenses, ler: GOMES, Paula Alexandra de Carvalho Sobral. Oficiais e Con-frades em Braga no tempo de Pombal. Braga: Universidade do Minho, �00�. pp. 134-137. Dissertação de Mestrado. Policopiada. �0 A propósito da procissão de Corpus Christi em Braga, ler: FREITAS, Bernardino José de Senna. Memorias de Braga. Braga: Imprensa Catholica, 1890. vol. V. p. 3��.

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tava entre as associações participantes da procissão, em 1770, estipulada pelo go-vernador Luiz Antonio Botelho de Souza Mourão (Morgado de Mateus), efetivada entre os variados festejos de cunho político na cidade.�1

Além da participação em festividades públicas e da procissão de cinzas, as ordens terceiras organizavam outras celebrações. Nas instituições em pauta, tanto a festa em dia de São Francisco, em 4 de outubro, quanto a comemoração em dia das Chagas do santo de Assis, em 17 de setembro, faziam parte do cotidiano das instituições. Marcadas pela música e pelo sermão, essas festas estimulavam a devo-ção a São Francisco e rememoravam sua ligação a Cristo.��

Apesar da existência de outras festividades nas duas instituições, observa-se a importância destinada a procissão das cinzas em relação as outras celebrações. Como um momento relevante, a procissão era previamente organizada. Os irmãos bracarenses, por exemplo, ocupavam-se da procissão desde o mês de janeiro, quando optavam por fazer o evento e dar início aos preparativos para tal.�3

Os andores, as imagens e outras figuras recebiam especial atenção, pois a decência dos paramentos ocupavam sobremaneira os membros das Mesas admi-nistrativas das duas instituições. Esse cuidado com as peças, não somente pelo decoro do evento, representavam aos olhares alheios a situação financeira e social da associação. Por outro lado, configuravam-se nos principais atrativos da encena-ção processional. Durante o período em questão, as imagens e sua representação tinham crucial importância nas comemorações realizadas, seja pela Coroa ou por entidades religiosas. Uma das componentes fundamentais pautava-se na visualiza-ção. O olhar se constituía num dos sentidos mais eficazes e utilizados para propa-gandear diferentes mensagens tanto de caráter sagrado quando profano.�4

�1 KANTOR, Iris. “Festividades públicas em São Paulo colonial: memória e colonização na segunda metade do século XVIII”. In: VILHENA, Maria Ângela; PASSOS, João Décio (Orgs.). A igreja em São Paulo: presença católica na história da cidade… pp. 3�3-334.�� Nas associações bracarense e paulistana, os gastos anuais com as festas em dia de São Francisco e das Chagas mostram a presença de música e sermão como características seme-lhantes, de acordo com: AVOTSP. Livro da formação do patrimonio da capela 1758-1802. fls. 1�, 15, 18v., �0v., ��v., �4v., �6v., �9. AVOTB. Livro de despesas do sindico da Ordem Terceira de Braga 1760-1787. fls. 1-1�1; Livro de despesas do sindico da Ordem Terceira de Braga 1710-1760. fls. 51-193. �3 Nos livros de termos da Mesa administrativa da ordem terceira de Braga elaborados duran-te o século XVIII observa-se o início da preparação para a solenidade de cinzas, a respeito ler: AVOTB. Livro 2º de Termos da Veneravel Ordem 3ª .fls. 87, 97, 1�4, 141.; Livro 3º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fls. 43, 158v., 159v., 164, 167v., 187v.; Livro 4º de Termos da Veneravel Ordem 3.ª fls. �-�v., 3�v., 35, 63, 9�, 1�7v., 191v., �18v.; Livro 5º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fls. �v., �7, 55, 97, 1�8, 163v., 181, �0�v., �31v., �87v.; Livro 6º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fls. 67v., 1��v., 143, 161v., 191, �05v., �59v., �78, �89v.; Livro 7º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fls. 61v., 8�, 94, 137v., 147v., 166, 185v., ��0; Livro 8º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fls. �4, 46, 57, 80, 9�, 101. �4 No que se refere a importância das imagens visuais na idade moderna, ver: MARAVALL, José António. A Cultura do Barroco. Lousã: Tipografia Lousanense, 1997. p. 331.

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Para compreender a constituição do evento é fundamental observar as esco-lhas das imagens e das figuras. Durante o setecentos ocorreram alterações nos an-dores, acrescentando ou diminuindo seu número. Para Braga vemos algumas alte-rações no decorrer do século, em 1749 o andor de Santa Clara�5 é incluído. Esse não volta a aparecer em anos posteriores e, em 1758, não há referências a São Roque nem a Santo Ivo. Contudo, em 176�, observa-se novamente a presença desses dois andores.�6 Os motivos pelos quais ocorreram mudanças nas escolhas daqueles andores que acompanhariam a procissão não são explicitadas na docu-mentação, todavia, pode-se sublinhar como hipóteses a necessidade de reforma desses andores ou das imagens, a falta de aceitação pela comunidade franciscana de algumas dessas imagens não usuais na procissão ou, ainda, problemas financei-ros para a construção e manutenção dos andores em questão.

Mesmo com algumas alterações, de modo geral, entre as imagens dos andores nas procissões de cinzas, durante o século XVIII encontravam-se:

�5 AVOTB. Livro 4º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fl. 95v.�6 Infelizmente, não aparecem explicados os motivos dessas alterações. AVOTB. Livro 5º de termos da Veneravel Ordem 3ª. fls. �9, 1�8 e �34.

Quadro 1 - Imagens dos andores nas procissões de cinzas, Bragae São Paulo, século XVIII

Braga São Paulo

São Francisco São Francisco

Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora da Conceição

Santa Isabel Rainha da Hungria Santa Isabel Rainha da Hungria

Santa Margarida de Cartona Santa Margarida de Cartona

São Luiz Rei de França São Luiz Rei de França

Santa Rosa de Viterbo Santa Rosa de Viterbo

Santo Ivo Santo Ivo

Santa Bona Santa Bona

Santo Lúcio Divina Justiça

Santa Izabel Rainha de Portugal Santa Ângela de Fulgino

São Francisco recebendo aschagas

São Francisco recebendo as chagas

São Roque

Fonte: AVOTSP. Livro I de Termos. fls. 169v.-170v.; Documentos Avulsos, Recibos, 1784; AVOTB. Livro 5º de termos da Veneravel Ordem 3ª. fls. �9, 56, 97, 1�8, �03, �34; AVOTB. Livro 6º de termos da Veneravel Ordem 3ª. fl. �9v.

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Como fica evidente no quadro acima, muitas imagens nas duas procissões igua-lam-se. Essa é uma das características gerais as ordens terceiras nos dois lados do Atlân-tico do império português.�7 Também na cidade do Porto encontramos as mesmas imagens, destacando-se Santa Ângela de Fulgino, Santa Isabel Rainha de Portugal e São Roque�8, ao total a ordem portuense executava a procissão com �4 andores.

Os santos e santas escolhidos para representar a instituição nesse momento fulcral faziam parte da hagiografia de terceiros franciscanos. Incluindo os beatos Lúcio e Bona, primeiros recebedores do hábito de seculares franciscanos, que te-riam tomado a primeira regra elaborada por São Francisco diretamente de suas mãos dando início a ordem terceira.

A presença evidente de personagens, do século XIII, demonstra a necessidade de destacar a fundação e o momento inicial da ordem terceira. Ao divulgar as suas origens e aqueles que inicialmente se destacaram como membros, a instituição se auto valori-zava ao mesmo tempo em que propagava seus fundamentos. Essa divulgação também englobava uma carga didática importante lembrando aos fiéis a importância da peni-tência para auxiliar na salvação da alma. Paralelamente, através dos andores, as cenas ordenadas ilustravam a história das ordens terceiras franciscanas e seu papel no con-texto religioso da época.

Nesse sentido, com seus variados significados, os andores e suas imagens torna-vam-se componentes de grande carga sentimental e apelativa aos participantes do evento. Característica não ignorada pelos próprios irmãos terceiros. Em São Paulo, de acordo com observação feita no livro de termos, salienta-se a utilidade de se cuidar dos ornamentos e imagens da procissão, pois “pelas ruas públicas são conduzidas as imagens de muitos santos, […] pregando mudamente aos fiéis, procurem imitá-los na penitência, para conseguirem o prêmio que já eles estão possuindo na glória”.�9 Pre-gação e modelos de conduta, toda a procissão deveria inspirar nos seus participantes, por meio da grandiosidade e quantidade de andores e figuras, a importância da pe-nitência e sua necessitade para atingir a almejada salvação da alma.

Em conformidade com a relevância dispensada à escolha das imagens, fazia-se necessário zelar por essas peças, premissa atestada pelas somas gastas para sua aquisição e manutenção. Os membros da Mesa administrativa paulista, em 1764, mandaram vir do Rio de Janeiro “todos os paramentos precizos e necessários para

�7 Nas ordens terceiras franciscanas de Vila Rica, Brasil, e Vila do Conde, Portugal, também encontravam-se andores similares na procissão de cinzas. A respeito desses, ler: CAMPOS, Adalgisa Arantes. “As ordens terceiras de São Francisco nas Minas coloniais: cultura artística e procissão de cinzas”… p. 1�7; PEREIRA, João Maria dos Reis. “A procissão de cinza de Vila do Conde”… pp. 11-14. �8 Estatutos e Regra da Ordem Terceira de São Francisco da cidade do Porto. Lisboa: Oficina de Manoel Soares Vivas, 1751. pp. 18-19.�9 Documento também citado por ORTMANN, Adalberto. História da antiga capela da Or-dem Terceira da Penitência de São Francisco em São Paulo… p. 114. Nesse termo encon-tram-se disposições a respeito da administração financeira da ordem terceira paulistana. AVOTSP. Livro II de termos. fls. 30-36.

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a nossa Procição da Cinza por estarem os de que ella se compõem todos ou a mayor parte incapazes e indecentes”.30 Para realizar esse intento os irmãos tercei-ros gastaram, além do valor dos próprios objetos, com o transporte das mercadorias feito pelos índios, o que atingiu a soma total dos gastos a cifra de 977$308 réis.31

Diversas figuras alegóricas seguiam com a procissão. Estas representavam, no caso bracarense: Adão e Eva, Cinza, Querubim e Árvore da Penitência. Para São Paulo verifica-se somente a participação da figura da Morte. Essas figuras davam um tom mais dramático à procissão e completavam o quadro simbólico inerente ao evento. Em outras ordens terceiras, para o mesmo período, observa-se o uso das figuras similares como as de Adão e Eva, em Vila Rica, e da Penitência e da Cinza, na cidade do Porto.3� Em 1780, por exemplo, a ordem terceira bracarense, somen-te para vestir e arrumar as figuras, desembolsava 10$000 réis.33

Adão e Eva, causa do pecado original, representam o início da necessidade da penitência para a humanidade. Livrar-se desse mal no batismo e evitar pecar durante a existência utilizando a penitência, como fonte de expurgação, marcavam a cerimônia. Em Braga, em 1781, “decidiram cobrir Adam e Eva de peles para acharem mais com-decente ao pio acto da procição”.34 Nota-se nessa passagem a importância de aproxi-mar as imagens à suposta realidade, ao deixar Adão e Eva com escassas vestes, tal como encontravam-se no Paraíso, foi o recurso utilizado até finais do século XVIII.

Além das figuras, em Braga, contava-se ainda com a urna.35 Essa seguia ornada com pano preto e fitas bordadas, destacando mais uma vez a transitoriedade da vida terrena e retomando a morte como momento crucial para a salvação. Catequizar através de ima-gens e figuras, a urna reforçava a composição voltada a penitência e a morte.

Em Braga os gastos com a preparação dos andores nem sempre foram realiza-dos pela própria instituição. Segundo seus estatutos, os sacristães tinham como obrigação cuidar do andor de Nossa Senhora da Conceição.36 Ainda, em diversos anos – entre 1746 e 1764 – os andores foram distribuídos entre os irmãos terceiros. Eles tinham como obrigação compor o andor que lhe havia sido incumbido gastan-do para isso seu próprio dinheiro. Atividade nem sempre bem recebida pelos ir-mãos selecionados. Em Fevereiro de 1748,

30 AVOTSP. Livro II de Termos. fl. 45v. 31 AVOTSP. Livro da formação do patrimonio da capela… fl. �6v. Com as mercadorias gas-taram-se 969$8�8 réis acrescido ao transporte até a cidade de São Paulo no valor de 7$480 réis, totaliza-se 977$308 réis. 3� Sobre as figuras na procissão de cinzas, ver: CAMPOS, Adalgisa Arantes. “As ordens tercei-ras de São Francisco nas Minas coloniais: cultura artística e procissão de cinzas”… p. 1�7; Estatutos e Regra da Ordem Terceira de São Francisco da cidade do Porto… pp. 18-19.33 AVOTB. Livro de despesas do síndico 1760-1787. fl. 99v. 34 AVOTB. Livro 7º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fl. 61v. 35 A urna começou a fazer parte da procissão de cinzas em 1761 quando aparecera gastos para orná-la. De acordo com: AVOTB. Livro de despesas do síndico 1760-1787. fl. 5. 36 AVOTB. Estatutos da Veneravel ordem terceira da cidade de Braga… fl. 100.

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“[…] o irmão Jozeph da Costa, da Porta de São João, foi chamado para vestir e ornar o andor de Santa Izabel Raynha da ungria e mostrandoce com renitência na aceytação da dita vilheta se mandou sahir para fora para se ponderar a sua dezo-bediencia, andando a escrotinio se venceo por favas brancas que havião por condenado ao dito irmão em oitocentos reis, não aceytando a tal vilheta, e sendo chamado outra vez o dito irmão para se lhe cominar a condenação ou aceytar o dito Andor, por elle foy dito que aceytava a vilheta para que fora chamado.”37

Como fica evidente, não aceitar a tarefa implicava em sanções financeiras ao desobediente. João da Costa havia adentrado a instituição, em 1746, pouco tempo antes de receber a tarefa de ornar o andor. Além dele, outros que foram selecionados, em 1748, para arrumar os andores, tais como: Manuel Ferreira, morador na rua da Fonte da Carcova, e João Francisco dos Anjos, morador na rua da Régua, igualmente faziam parte da instituição a pouco tempo.38 Dessa forma, a arrumação dos andores parece recair nos novos membros, sendo um modo de testar a vontade do novo as-sociado e, ao mesmo tempo, reafirmar a superioridade e a importância do órgão gestor da instituição. Esse, por meio de aplicação de multas, demonstrava aos deso-bedientes sua capacidade para decidir sobre os destinos de seus irmãos terceiros.

Esse método de distribuição dos andores aos novos associados entra em colapso em 1768, quando “[…] foi proposto que por não aver irmaons novos e os velhos ter já feito andores, e se ter dado toda a porcição da cinza e não aver quem faça ornada a Igreja, se determinou se mandaçe fazer por conta da caza.”39

Dessa forma, andores, figuras e imagens compunham a cena com os anjos. Es-ses, em Braga, seguiam o cortejo vestidos com túnicas.40 Tanto na ordem terceira bracarense quanto na paulista não existem registros detalhando toda a ordenação da procissão. Entretanto as varas do pálio recaíam sobre os membros mais destacados e distintos da ordem terceira bracarense.41 Parte da organização da procissão de cinzas foi descrita nos estatutos da instituição portuense, na qual aparecem os anjos seguin-do os andores e as figuras. Provavelmente, o mesmo ocorria em Braga e São Paulo. A partir de 1760, despendia-se anualmente com doces para oferecer aos anjos pau-listanos oito mil réis. Contudo, eles participavam da procissão anteriormente, visto encontrarem-se referências a confecção de “varas” para os anjos, em 1758.4� Em Braga, somente a partir de 1780, se enumeram entre os gastos com a procissão con-feitos distribuídos aos anjos ou figuras, nos valores de 300 e 480 réis. Os confeitos

37 AVOTB. Livro 4º de Termos da Veneravel Ordem 3º. fl. 66v. 38 Manuel Ferreira entrara na instituião em 1747 e João Francisco dos Anjos participava da ordem terceira desde 1746, de acordo com: AVOTB. Livro 4º de Termos da Veneravel Or-dem 3ª. fls. 7, 9v., 66v. 39 AVOTB. Livro 6º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fl. 1�4v. 40 AVOTB. Estatutos da Veneravel ordem terceira da cidade de Braga… fl. 34. 41 Ex-membros da Mesa administrativa, respectivamente ministros e vice-ministros ou sacer-dotes que ocuparam outros cargos, ficavam responsáveis por levar as várias do pálio. AVOTB. Estatutos da Veneravel ordem terceira da cidade de Braga… fl. 75.4� AVOTSP. Livro da formação do patrimonio da capela…fl. 1�v.

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podiam ser conjuntamente distribuídos para a comunidade, como ocorreu em 1783, quando despenderam �$810 réis.43

A música também acompanhava o cortejo. Um importante elemento para a composição da procissão e das festas durante o século XVIII, a música servia para louvar a Deus e unia-se aos inumeráveis elementos utilizados durante as celebra-ções religiosas, com a finalidade de “comover e despertar a admiração, para des-lumbrar, fascinar e seduzir.”44 As comemorações religiosas por todo o reino de Portugal, tanto nos meios rurais quanto urbanos, utilizavam a música para enalte-cer seus oragos. Premissa que não exclui as terras de além-mar. Missas cantadas e festas de irmandades e organizações religiosas empregavam a música para soleni-zar suas atividades.45

Em São Paulo observa-se o constante pagamento da música entre os anos de 1758 e 1765, no valor de 16 mil réis. Em 176�, como não se efetivou a realização da procissão, pagaram três mil réis aqueles que foram até a igreja no intuito de to-car a música durante o evento.46 Em Braga os gastos com a música, de 1600 réis anualmente, não aparecem discriminados entre os gastos do sodalício surgindo com mais freqüência a partir de 1769.47

Nota-se a riqueza de elementos constituintes da procissão de cinzas. Aparatos diversos e multiplicidade de imagens incitavam os sentidos e deveriam inspirar maior devoção aos fiéis. A cerimônia igualmente requisitava cuidados para a sua execução no que se refere aos locais por onde passava e das pessoas que para ela acorriam. “O cortejo obedecia um roteiro previamente estabelecido, e consagrado pelo uso conti-nuado e que devia afetar, de igual forma, os sentidos do participante.”48

A descrição do itinerário da procissão de cinzas para São Paulo não foi locali-zada. Em Braga, registros do século XVII, mostram o estabelecimento do itinerário da procissão que passava pelas ruas de São Marcos, do Souto e Nova e retornavam pelas ruas de Dom Gualdim e do Anjo.49

Esse circuito perdurou até finais do século XVIII, sofrendo alterações em 1798, momento em que os responsáveis pela administração da ordem terceira decidem que por

43 AVOTB. Livro de despesas do síndico… fls. 99v., 117v., 1�1.44 MILHEIRO, Maria Manuela de Campos. Braga. A cidade e a festa no século XVIII. Viseu: NEPS, �003. p. 76. 45 Sobre a música, ver: MARQUES, João Francisco. “A música religiosa e litúrgica: a longa persistência da polifonia”. In: AZEVEDO, Carlos Moreira. (Dir.). História Religiosa de Portu-gal. Vol. �. Lisboa: Círculo de Leitores, �000. pp. 486-515. 46 AVOTSP. Livro da formação do patrimonio da capela… fls. 1�-�9. 47 Os gastos com música aparecem nos anos de: 1769, 1770, 1775 e 1783. AVOTB. Livro de despesas do síndico… fls. 5v., 8-9, 1�v., 15v., ��v., 40v., 45-45v., 73-73v., 99v., 117v., 1�1v.48 Veja-se a propósito FLEXOR, Maria Helena Ochi. “Procissões na Bahia: teatro barroco a céu aberto…” p. 5�7. 49 AVOTB. Livro 1º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fl. 4.

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“[…] se achar esta ordem empenhada despendendo mais do que recebe de sorte que em breve tempo exprementará ruína grande e necessário providen-ciarce as suas despezas diminuindose quanto puderem e porque huma delas hera a que se fazia com a procição da cinza da sua grande volta, que dá pela cidade achandosse a sera muito cara se determinou que a volta da mesma procição fosse pela rua do Souto abaixo caminhando para a rua da Senhora do Leite fosse pela de São João acima e voltando pela rua de São Marcos e alpendres se recolher a esta igreja.”50

As dificuldades financeiras da instituição no final do setecentos geraram profundas alterações na sua mais importante festividade. Os gastos tanto com os paramentos quanto com os outros elementos para a composição do evento oneravam sobremanei-ra a ordem bracarense. Apreende-se nesta passagem, também, a importância na utili-zação da cera durante a procissão. Diminuir o caminho percorrido para não deixar de usar a cera mostrava-se na opção viável para os membros da administração.

O uso de luminárias, velas e tochas marcavam as procissões em Portugal e na América portuguesa. A população improvisava a iluminação nas suas fachadas, participando juntamente do acontecimento ao trazer luzes a cidade. Como um dos aparatos da festa barroca, as luzes sobrepujavam a escuridão e culminavam muitas vezes nos fogos de artifício.51

Essa importância dispensada a iluminação da cerimônia estava sempre no âm-bito das preocupações da Mesa administrativa bracarense. Em 1747, por exemplo, decidiram deixar de usar velas e começaram a carregar tochas, que eram alugadas pela instituição e entregues aos irmãos na sacristia da igreja antes da procissão.5�

Em São Paulo a utilização de iluminação na procissão de cinzas e o desembol-so empenhado com a cera também aparece. Contudo, não é contabilizado separa-damente das outras funções da instituição, vindo agregado aos gastos gerais.53

A transformação da cidade em palco da festa não se fazia somente através da iluminação. Incensar as ruas por onde passava o cortejo, num sinal de sacralização dos espaços percorridos pelos fiéis, compunha um dos gestos relevantes da celebra-

50 AVOTB. Livro 8º de Termos da Veneravel Ordem 3ª. fl. 9�v.51 Sobre a iluminação das cidades durante as festas, ler: TEDIM, José Manuel. “A festa e a cidade no Portugal Barroco”. In: Actas do II Congresso Internacional do Barroco. Porto: Ser-bilito, �003. pp. 317-3�3. 5� Os irmãos que recebiam as tochas eram listados e aqueles que faltassem receberiam mul-ta. AVOTB. Livro 4º de Termos da Veneravel Ordem 3º. fl. 35.53 Em 1758, por exemplo, tem-se: “19 livras de cera gasto no oficio da ordem e procissão de cinza semana santa e Maio funções de uso do anno na capella emporta por vários preços com todo caderno do irmao sindico importou 1�8$880”. AVOTSP. Livro da formação do pa-trimonio da capela… fl. 1�. A libra é equivalente ao arratél que corresponde a 459 gramas.

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ção. Tanto os terceiros bracarenses quanto paulistanos cuidavam em adquirir incen-so para a solenidade demonstrando a necessidade de realizar esse ritual.54

Manifestações coletivas, as procissões constituíam-se num momento de atra-ção das populações transformando a cidade no cenário da festa. Esse agrupamento de pessoas e o seu movimento seguindo a procissão mereciam a atenção dos res-ponsáveis, ciosos com o bom decorrer da festividade. Em Braga, em 1784, dois homens eram pagos para “arrumar a gente na procissão”55 durante o evento.

Os irmãos terceiros juntavam-se ao cortejo utilizando vestimenta apropriada: o hábito de irmão terceiro. Segundo os estatutos paulistanos, o hábito pardo se consti-tuía na vestimenta adequada para acompanhar as procissões e demais atos públicos da instituição.56 Entre os bracarenses, o hábito, denominado descuberto, se compu-nha por uma túnica aberta ou abotoada na frente, com mangas justas e uma capa de comprimento similar. Tanto um hábito como o outro eram feitos com panos simples (lã ou tecido grosso), cinzentos e com o cordão, tal como dos frades franciscanos, atado a volta da cintura.57

A participação na procissão de cinza fazia parte da obrigação de todos os irmãos tanto a ordem bracarense quanto paulistana.58 Apesar de constar entre as obrigações dos membros da instituição, em Braga, nota-se a necessidade de legislar a respeito dessa tarefa, imputando multa aos possíveis infratores ao destacarem que

“[…] acompanhem todos a Ordem na Procissão de Quarta feira de Cinza com Hábitos descubertos; e por que esta função he hua das mais publicas e solemnes que se fazem na Ordem, queremos que todo o Irmão que faltar na tal Procissão não tendo legitimo impedimento, seja multado em cento e vinte reiz pelo Zelador Mor, e desde logo por esses presentes Estatutos o havemos por multado na dicta quantia que aplicamos para obras da Capella.”59

54 Os gastos com incenso fazem parte das contas nas duas ordens terceiras em pauta, como demonstram os livros de despesas. AVOTB. Livro de despesas do síndico… fls. 5v., 8-9, 1�v., 15v., ��v., 40v., 45-45v., 73-73v., 99v., 117v., 1�1v.; AVOTSP. Livro da formação do patrimonio da capela… fls. 1�-�9. 55 AVOTB. Livro de despesas do síndico… fl. 1�1.56 Os Estatutos dos irmãos terceiros franciscanos paulistanos, de 1686, estão escritos nos li-vros de termos. Sobre as obrigações dos membros da ordem secular em pauta, ver: AVOTSP. Livro I de Termos… fl. 3v. 57 AVOTB. Estatutos da Veneravel ordem terceira da cidade de Braga… fl. �1. 58 AVOTSP. Livro I de Termos… fl. 3. 59 O zelador mor, na ordem bracarense, exercia diversas tarefas, entre as quais destacavam-se: zelar pela observância dos estatutos da ordem, multar aos irmãos que faltavam em procissões e acompanhamentos de irmãos defuntos, avisar a Mesa administrativa se algum irmão fosse preso, tomar contas aos responsáveis pela gestão financeira do sodalício e poderia ocupar o cargo de vedor da fazenda (caso esse tivesse de se ausentar ou estivesse impedido). AVOTB. Estatutos da Veneravel Ordem Terceira da cidade de Braga 1742. fls. �7, 83-84.

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Não somente os irmãos terceiros, de boa vontade ou impelidos, participavam da procissão. Os religiosos franciscanos e seculares colaboravam mediante recebi-mento de refeições e de tabaco.

A procissão incluía, em Braga e São Paulo, no período em pauta, missa com sermão realizado por um franciscano. Parte importante da procissão, o sermão deveria incentivar os fiéis e irmãos terceiros ao ato penitencial. No contexto da reforma católica, pregar ao povo tornava-se fundamental para marcar a diferencia-ção entre a prática católica e protestante. Distinto da homilia, o sermão constituía-se numa pregação moral de tempo ampliado.60 No caso da ordem terceira francis-cana, tanto em Portugal quanto na América, era o Padre Comissário – franciscano responsável pela tutela espiritual dos irmãos terceiros – o principal encarregado pela realização do sermão. Em São Paulo o sermão custava aos irmãos terceiros 8$000 réis. Para a instituição paulistana não é especificado nas contas quem reali-zava o sermão. Presume-se que fosse o Padre Comissário. Isso porque, a proximi-dade física com a ordem primeira propiciava a presença de um maior número de franciscanos regulares nas atividades desenvolvidas pela ordem terceira.61

Em Braga, a partir de 1755, o Padre Comissário aparece discriminado entre as despesas a compra de um arrátel (459 gramas) de tabaco despendendo-se para isso anualmente 1$�00 réis.6�

No dia da procissão davam-se refeições aos participantes de destaque do evento. Tanto a comunidade franciscana regular quantos os padres que carregavam os andores recebiam recompensas pela sua participação. Os frades franciscanos em São Paulo, por exemplo, ganhavam o jantar, no que despendiam os irmãos terceiros 1�$800 réis63. Em Braga os franciscanos que levavam o andor de São Francisco, em 1755, faziam uma refeição composta por vinho maduro e pão leve, a custo de 1$390 réis64.

A procissão de cinzas, como a primordial festividade, celebrada pelas ordens terceiras franciscanas ocupava lugar de destaque no cotidiano dessas instituições, seja entre seus membros, entre os religiosos da ordem regular franciscana e entre a comunidade onde se realizava. Os elementos constitutivos da procissão, relevadas as especificidades regionais, possuíam similaridades em sua composição e no ob-jetivo final de sua execução. Essa premissa atesta o caráter de elo de ligação e proporcionador de vínculo entre os habitantes da império português ao materiali-

60 Para compreender a importância da pregação durante a idade moderna, ler: MARQUES, João Francisco. “A palavra e o livro”. In: AZEVEDO, Carlos Moreira. (Dir.). História Religiosa de Portugal… p. 399. 61 AVOTB. Livro de despesas do síndico… fls. 5v., 8-9, 1�v., 15v., ��v., 40v., 45-45v., 73-73v., 99v., 117v., 1�1v.; AVOTSP. Livro da formação do patrimonio da capela… fls. 1�-�9.6� AVOTB. Livro de despesas do síndico… fls. 5v., 8-9, 1�v., 15v., ��v., 40v., 45-45v., 73-73v., 99v., 117v., 1�1v. 63 AVOTB. Livro de despesas do síndico… fls. 5v., 8-9, 1�v., 15v., ��v., 40v., 45-45v., 73-73v., 99v., 117v., 1�1v.; AVOTSP. Livro da formação do patrimonio da capela… fls. 1�-�9.64 AVOTB. Livro de despesas do síndico 1710-1760. fl. 180v.

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zar uma solenidade comum aos seus habitantes. Não somente as festas promovidas pela família real portuguesa65, mas também aquelas de cunho sagrado, reforçavam o sentimento de pertença a um império encabeçado pela mesma Monarquia e pela mesma Igreja. Ao realizar festividades análogas, utilizando para isso os mesmos símbolos, as ordens terceiras configuravam-se em espaços multiplicadores da fé e da identidade portuguesa em localidades distintas.

65 A respeito das festas relacionadas ao governo português em diferentes locais, tanto em Por-tugal quando na América portuguesa, como promotoras do reforço da autoridade real e iden-tificação ao mesmo império, ler: FILHA, Matilde B. de Barros Lima e Moura. “Festas no Brasil colonial: elos de ligação com a vida da Metrópole”. In: Actas do II Congresso Internacional do Barroco... pp. 465-473; PEREIRA, Sónia Gomes. “A representação do poder real e as festas públicas no Rio de Janeiro colonial”. In: Actas do II Congresso Internacional do Barroco… pp. 663-678; KANTOR, Íris. “Notas sobre aparência e visibilidade social nas cerimônias públicas em Minas setecentista”. In: Pós-História, Assis: Unesp, v. 6, 1998. pp. 163-174; FURTADO, Júnia Ferreira. “Desfilar: a procissão barroca”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Publicação da ANPUH, v. 17, n. 33, 1997, pp. �51-�79.